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Organizadores

Márcia Schwantes
Maximilia de Paula
Ana Maria Brongar de Castro
Laura Albrecht Freitas
Josiane Petry Faria
Alexandre Torres Petry

ELAS NA ADVOCACIA III

Porto Alegre, 2023


Copyright © 2023 by Ordem dos Advogados do Brasil
Todos os direitos reservados

Márcia Schwantes – Presidente CMA


Maximilia de Paula – Vice-Presidente CMA
Ana Maria Brongar de Castro – Vice-Presidente Interior CMA
Laura Albrecht Freitas – Secretária CMA
Josiane Petry Faria – Coordenadora do GT de Produção Científica CMA
Alexandre Torres Petry - Diretor de E-books e Revista Eletrônica da ESA/RS

Recebimento dos textos, diagramação, ficha catalográfica


Jovita Cristina Garcia dos Santos

Projeto Gráfico e capa


Victor Baldez Silva
Revisora dos textos
Dieniffer de Souza Silva Lemes

E39
Elas na advocacia III/, Márcia Schwantes, Maximilia de Paula...[et.al]
(Organizadores). – Porto Alegre: OAB/RS, 2023. p. 430.
ISBN: 978-65-88371-25-1
1. Direito. 2. Advogadas. I.Schwantes, Márcia. II, Paula, Maximilia de
Paula. III. Título
CDU: 347.965
Jovita Cristina Garcia dos Santos- CRB 10ª 1.517

A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos


assinados, serão de inteira responsabilidade do(s) autor(es).

Escola Superior de Advocacia da OAB/RS


Rua Manoelito de Ornellas, 55 – Praia de Belas
CEP 91110-230 – Porto Alegre/RS
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CONSELHO FEDERAL
DIRETORIA/GESTÃO 2022/2025

Presidente: Beto Simonetti


Vice-Presidente: Rafael Horn
Secretária-Geral: Sayury Otoni
Secretária-Geral Adjunta: Milena Gama
Diretor Tesoureiro: Leonardo Campos

ESCOLA NACIONAL DE ADVOCACIA – ENA

Diretor-Geral: Ronnie Preuss Duarte

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECÇÃO DO RIO GRANDE DO SUL

Presidente: Leonardo Lamachia


Vice-Presidente: Neusa Maria Rolim Bastos
Secretário-Geral: Gustavo Juchem
Secretária-Geral Adjunta: Karina Contiero Silveira
Tesoureiro: Jorge Luiz Dias Fara

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

Diretor-Geral: Rolf Hanssen Madaleno


Vice-Diretor: Eduardo Lemos Barbosa
Diretora Administrativa-Financeira: Graziela Cardoso Vanin
Diretoras de Cursos Permanentes: Fernanda Corrêa Osório, Michelle da Silva G. Vieira
Diretor de Cursos Especiais: Roger Eridson Dorneles
Diretor de Cursos Não Presenciais: Jair Pereira Coitinho
Diretoras de Atividades Culturais: Ana Lúcia Kaercher Piccoli, Eliane Chalmes Magalhões
Diretor de E-books e da Revista Eletrônica da ESA/RS: Alexandre Torres Petry

CONSELHO PEDAGÓGICO

Bruno Nubens Barbosa Miragem


Simone Tassinari Cardoso Fleischmann
Gerson Fischmann
Cristina da Costa Nery
Raimar Rodrigues Machado

CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS

Presidente: Pedro Zanette Alfonsin


Vice-Presidente: Paula Grill Silva Pereira
Secretária-Geral: Morgana Bordignon
Secretária-Geral Adjunta: Alessandra Glufke
Tesoureiro: Matheus Portella Ayres Torres
TRIBUNAL DE ÉTICA E DISCIPLINA

Presidente: Airton Ruschel


Vice-Presidente: Gabriel Lopes Moreira

CORREGEDORIA

Corregedora: Maria Helena Camargo Dornelles


Corregedores Adjuntos
Maria Ercília Hostyn Gralha
Josana Rosolen Rivoli
Regina Pereira Soares

OABPrev

Presidente: Jorge Luiz Dias Fara


Diretor Administrativo: Otto Junior Barreto
Diretora Financeira: Claudia Regina de Souza Bueno
Diretor de Benefícios: Luiz Augusto Gonçalves de Gonçalves

COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO..................................................................................................................... 8
PREFÁCIO ............................................................................................................................... 18
MEDIAÇÃO: O FUTURO DO JUDICIÁRIO – Adriana De Toni, Adriana Parisotto e Rejane
Ribicki ...................................................................................................................................... 22
A VIUVEZ NA ESFERA JURÍDICA CIVIL E PREVIDENCIÁRIA – Aisha Vogel da Silva,
Bruna Luisa Schwan e Karina Miranda .................................................................................... 31
TRABALHO E GÊNERO: OS REFLEXOS DA VIOLÊNCIA COMETIDA CONTRA
MULHERES NA RELAÇÃO DE EMPREGO – Alana Menezes Batista e Cristiane Terezinha
Rodrigues .................................................................................................................................. 44
CONTRATO DE TRABALHO A TERMO – Amanda do Nascimento da Silveira................ 54
TRABALHO INFANTOJUVENIL ARTÍSTICO : A INTERNET COMO FERRAMENTA DO
PROCESSO DE ADULTIZAÇÃO PRECOCE – Ana Carolina Sassi .................................... 67
CAUTELAR DE INCOMUNICABILIDADE ENTRE ACUSADOS-SÓCIOS E O
PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA – Ana Vitória Lopes Taffarel ................ 80
AS MULHERES NOS ESPAÇOS DE TOMADA DE DECISÃO: UM AVANÇO PARA A
DEMOCRACIA PARITÁRIA, AUTONOMIA, DESENVOLVIMENTO E
SUSTENTABILIDADE – Andréa Marta Vasconcellos Ritter ................................................ 91
A TEORIA SISTÊMICA DO DIREITO SOB O PRISMA DE NIKLAS LUHMANN E
GUNTHER TEUBNER –Ariane Faverzani da Luz e Isabela Bohnen .................................. 104
IMPLICAÇÕES DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS NO COMPLIANCE
TRABALHISTA – Camila Eliza Zanella Lacerda ................................................................. 120
A ATUAÇÃO EFETIVA DO DIREITO: UMA ANÁLISE DOS MEIOS ADEQUADOS DE
SOLUÇÃO DE CONFLITOS – Camila Sbalchiero Morello, Liliane de Oliveira Camargo e
Maira Angélica Dal Conte Tonial .......................................................................................... 132
CONTEXTO DA POLÍTICA NACIONAL DE PRÁTICAS INTEGRATIVAS E
COMPLEMENTARES NO SUS (PNPIC) E A EFICÁCIA COMO TRATAMENTOS
ALTERNATIVOS MENOS CUSTOSOS AO ESTADO – Cristina Dal Sasso e Daniela Dal
Sasso ....................................................................................................................................... 155
A HERANÇA DO PATRIARCADO NAS PRISÕES FEMININAS: UMA ANÁLISE
QUANTO ÀS CONDENAÇÕES A PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE PELO CRIME
DE TRÁFICO DE DROGAS NO CONTEXTO RIO-GRANDENSE – Daiane Specht Lemos
da Silva e Marisa Maria Ribeiro de Oliveira .......................................................................... 168
BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA PARA IMIGRANTES E REFUGIADOS:
INVISIBILIDADE E LUTA PELA ASSISTÊNCIA SOCIAL – Dandra Trentin Demiranda,
Nathielen Isquierdo Moneiro e Vanessa Aguiar Figueiredo .................................................. 181
MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA NA LEI MARIA DA PENHA: UM PANORAMA
ACERCA DAS ALTERAÇÕES CONTIDAS NA LEI 14.550/2023 – Desyrrê Moraes Lemes
Mota, Helena Gil Klein e Júlia Farias Mertins ....................................................................... 196
A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO ADVOGADO FAMILISTA EM AÇÕES QUE
ENVOLVEM CRIANÇAS E ADOLESCENTES – Elisângela Teixeira e Natalia
Mascarelo................................................................................................................................ 213
PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLITICA BRASILEIRA: DOS ESTERÓTIPOS DE
GÊNERO A VIOLÊNCIA POLÍTICA – Felipa Ferronato dos Santos ................................. 226
ANÁLISE DE TIPIFICAÇÃO PENAL EM CRIME DE TRANSFOBIA LESÃO CORPORAL
OU TENTATIVA DE FEMINICÍDIO EM ESTEIO/RS – Flávia Giovana Ferreira Pereira,
Priscila Francielle dos Santos Knoop e Francieli Raupp Corrêa ............................................ 238
CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL CONTRA VÍTIMAS DIVERSAS E A
PROBLEMÁTICA DO CONCURSO DE CRIMES – Francine de Carvalho Machado e Josiane
Petry Faria .............................................................................................................................. 257
COMPLIANCE CRIMINAL ESTRATÉGIAS PARA PREVENIR CRIMES
CORPORATIVOS E OS IMPACTOS DA LEI ANTICRIME – Ingrid Fagundes Ziebell,
Carolina Höhn Falcão e Cinthia Bubolz Heidemann ............................................................. 278
A PARIDADE DE GÊNERO NA FORMAÇÃO DAS LISTAS SÊXTUPLAS PARA
INDICAÇÃO DOS COMPONENTES DO QUINTO CONSTITUCIONAL – Jane Mara
Spessatto ................................................................................................................................. 292
DA EFETIVIDADE PRÁTICA DA LEI N. 14.181/2021: UTOPIA OU REALIDADE?
Jordana Schaedler ................................................................................................................... 302
OS DESAFIOS DA PROTEÇÃO DE DADOS DO CONSUMIDOR NO COMÉRCIO
ELETRÔNICO EM FACE DA PUBLICIDADE COMPORTAMENTAL – Jovana De Cezaro
e Nadya Regina Gusella Tonial .............................................................................................. 315
A APLICABILIDADE DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA MÉDICA EM SERVIÇOS
PÚBLICOS DE SAÚDE – Juliana Nicolini de Melo ............................................................ 333
APONTAMENTOS SOBRE A SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA NA
RESPONSABILIDADE CIVIL PARA FINS DE REPARAÇÃO DE DANO À VÍTIMA –
Roberta Eggert Poll ................................................................................................................ 353
“SER MULHER” E A ADVOCACIA: A MULHER ADVOGADA E A DISCRIMINAÇÃO
EM RAZÃO DO GÊNERO – Eduarda Fernandes e Rowana Camargo ................................ 365
A AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE E O SUPREMO – Sara
Daniela Silva de Souza ........................................................................................................... 378
VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: ATO ATENTATÓRIO CONTRA OS
DIREITOS HUMANOS – Simone Rossini ........................................................................... 394
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DOS DIREITOS DAS MULHERES – Vanessa de Donati
Feijó ........................................................................................................................................ 408
LEI DE DROGAS E SELETIVIDADE PENAL O REALISMO JURÍDICO COMO ÁLIBI –
Vanessa Silva Moro ................................................................................................................ 420
APRESENTAÇÃO

Esta apresentação foi desenvolvida pelas integrantes da diretoria da Comissão da


Mulher Advogada (CMA) da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Rio Grande do Sul, a
fim de contar sobre a trajetória de cada uma na instituição. Escrito em conjunto por nós quatro
– Presidente Márcia Schwantes; Vice-presidente Maximilia Silva de Paula; Vice-presidente
responsável pelo interior Ana Maria Brongar de Castro e Secretária Laura Albrecht Freitas.
É importante saber que, cada uma, com sua trajetória, está doando o seu tempo à esta
instituição e a toda advocacia do RS. O trabalho desenvolvido na OAB, por sua diretoria,
conselho e integrantes de comissões, seja na seccional ou em cada uma das 106 subseções é
totalmente gracioso, em caráter voluntário, em busca de aprimorar a advocacia, buscar melhores
condições em todas as demais instituições ligadas à nossa profissão seja no judiciário, na
promotoria, no legislativo e no executivo, pois melhorando a atuação da advocacia, melhora o
trabalho entregue à cidadania.
Desejo que tenham todas uma ótima leitura e grande inspiração nas trajetórias de cada
integrante da diretoria da CMA – gestão 2022/2024!

Das trajetórias de Ordem das mulheres da diretoria

Ao me apresentar - Márcia Schwantes – registro alguns momentos de minha trajetória.


Era 1994 - cinco anos da minha formatura, quando recebi um convite – participar de uma chapa
para concorrer à diretoria da OAB Subseção de São Leopoldo, no cargo de conselheira, aceitei,
fizemos campanha e a nossa chapa sagrou-se vencedora. Na época eram poucos os advogados
que faziam parte da subseção que nem sede tinha! As reuniões eram feitas no escritório do Dr.
Sezefredo, então presidente. Éramos apenas três conselheiros, além da diretoria executiva.
Nessa gestão, deixamos uma marca que será trocada neste ano – ou seja 27 anos atrás em 1996
adquirimos a sede da Subseção de São Leopoldo, com grande esforço. Outra marca – foi a
realização do primeiro Baile do Rubi, sendo que até a presente data, em agosto é realizado,
ajustando-o ao tempo e necessidades de hoje!
Afastei-me dos trabalhos da subseção na segunda gestão do Dr. Sezefredo porque já
estava grávida da minha filha Karolina. Voltei para fazer campanha em 2006, por convite da
Dra. Rosangela, hoje Conselheira Federal da OAB/RS, para compor a diretoria como vice
presidente da chapa que veio a ser eleita e empossada para a gestão de 2007/2009. Nesta gestão
tendo como Presidente do Dr. Carlos Eduardo Szulcewski, reformamos toda a sede no último
ano de gestão.
Na gestão de 2010/2012 fiz parte da gestão no cargo de Secretária Geral. Para a eleição
ocorrida em 2012, montamos uma chapa junto com os colegas Franciel Munaro, Cristine
Ruckert, Rita Maria Geremia Pavoni e Rene Engroff, além dos colegas que compuseram o
Conselho e, para nossa surpresa, depois de muitos anos de eleições nessa subseção, não tivemos
chapa opositora e conquistamos 88% dos votos válidos!!

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A responsabilidade para a condução de nossa subseção teve peso dobrado por termos
sido chapa única, pois tal situação, naquela época, não ocorria na nossa cidade há mais de 20
anos! Fizemos o melhor possível pela advocacia e pela cidadania, com transparência, ética e
trazendo para a subseção o maior número de advogados para participarem nas mais diversas
comissões.
Se esta gestão foi exitosa, onde fizemos vários cursos, palestras, conseguimos a
implantação da UAA da Justiça Federal, além de outros eventos, só tenho a agradecer à toda a
diretoria executiva que foram incansáveis, aos ouvidores, aos nossos conselheiros, aos
componentes de cada comissão, além dos representantes da OAB em todos os conselhos de
nossa cidade, que trabalharam graciosamente para toda uma classe. Ainda mais honrada fiquei
quando ao indicar a minha sucessora, não teve essa também oposição nas urnas. Conseguimos
unir, da melhor forma, a advocacia Leopoldense, sempre com renovação, pois cada gestão traz
uma nova ideia, um novo jeito de conduzir a subseção. Fizemos novamente história nessa
subseção, pois foi a primeira vez que mais duas mulheres me sucederam.
Final de 2015, mais uma eleição e em 2016 assumi o cargo de Conselheira Estadual sob
o comando do Presidente Ricardo Breier, nesta gestão participei como membro da CSI –
Comissão de Seleção e Inscrição, ingressei na Segunda Câmara e no Órgão Especial. No triênio
2019/2021, mantive o trabalho na Segunda Câmara, no Órgão Especial e comecei na Assessoria
da Presidência.
Na gestão atual - 2022/2024, reconduzida ao cargo de Conselheira, fui honrada com o
convite de ser a Presidente da Comissão da Mulher Advogada, um grande desafio, pois com
todos esses anos de OAB, nunca havia presidido uma comissão estadual, e essa sem dúvidas é
uma das mais importantes comissões, pois abrange mais de 50% da advocacia, sim, pois hoje o
número de advogadas já é maioria. Empossada em 08 de março de 2022, escolhida a diretoria,
começamos nosso trabalho – Maximilia de Paula, Ana Maria Brongar de Castro e Laura
Albrecht Freitas – aos poucos fomos convidando as coordenadoras dos Grupos de Trabalho
(GT) e montando a nossa equipe.
Analisando a trajetória até a presente data, muito já entregamos para a advocacia
feminina do Estado e tem sido uma grata surpresa a participação pessoal nessa comissão, pois
hoje tenho uma visão, um entendimento completamente diferente das demandas das mulheres
do que tinha antes de participar.
Sou mais uma vez grata por estar acompanhada por mulheres comprometidas com a
pauta e que me auxiliam a cada dia, a cada dificuldade a crescer e estar juntas por uma causa
maior. A minha coordenação nessa comissão visa o trabalho compartilhado, dando voz e vez à
todas, pois entendo que o trabalho em conjunto só trás alegria e engajamento de todas, até por
ser um trabalho voluntário necessitamos de muitas mãos para podermos fazer o melhor.
A OAB é umas das instituições com maior credibilidade, principalmente nos dias de
hoje, e participar dela, frente à Comissão da Mulher Advogada é uma grande alegria também,
estamos fazendo história e deixando nossa marca nesta gestão, fazendo a entrega de trabalho
efetivo que servirá de base para este e as demais gestões vindouras.

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Sou grata por pertencer à esta gestão da OAB que tem como Presidente Leonardo
Lamachia, que é uma pessoa visionária e comprometida com a advocacia do Rio Grande do
Sul.
Meu nome é Maximilia Silva de Paula, advogada, inscrita na OAB/RS sob n. 46.031, e
estou muito feliz em compartilhar um pouco sobre mim, com vocês nesta oportunidade de
continuidade do trabalho de Ordem. Eu sou formada em Direito pela Unicruz - Faculdade de
Direito de Cruz Alta/RS, tenho 25 anos de experiência na Advocacia, tendo iniciado na área de
Direito Criminal quando estudei por dois anos na UPF – Faculdade de Direito de Passo
Fundo/RS. Ao longo dos anos atuei no Direito de Família e hoje atuo nas áreas de Direito do
Trabalho Empresarial, LGPD, Duo Diligence em Recursos Humanos e Direito da Saúde. Nessa
jornada advocatícia percorri várias Comarcas do Rio Grande do Sul e do Brasil, onde
desenvolvi habilidades em entender as diversidades de cada local, tanto no modo regional como
no tipo de pedidos e decisões, mas principalmente me aprofundar como pessoa dentro do
universo tão rico que é a Advocacia.
Além do trabalho, tenho uma paixão por esportes, pela escrita, leitura e viagens. Essas
atividades me ajudam a desenvolver habilidades como criatividade, trabalho em equipe,
disciplina, perseverança e amor a vida. Também sou apaixonada por proporcionar informações
ao maior número de pessoas. Pensando nisso sempre tive facilidade de engajamento em grupos
de voluntariado na minha cidade natal (Soledade/RS) e nas cidades das quais residi no RS e em
SC.
Ao longo da minha caminhada de Ordem, como Mulher de Ordem, obtive algumas
conquistas importantes, como participar ativamente da Comissão da Mulher Advogada da OAB
Seccional Rio Grande do Sul. Recebendo minha primeira portaria na OAB/RS no ano de 2017
na gestão da então Presidente da CMA Beatriz Peruffo. Engajada nas questões da pauta
feminina auxiliei na organização da Conferência Estadual de 2017, a qual aconteceu, nas
dependências do conglomerado Hotel Plaza São Rafael, em Porto Alegre/RS, não tínhamos a
sede CUBO na época, onde obtive a honrosa Portaria com Voto de Louvor, das mãos do então
Presidente da Seccional Dr. Ricardo Breier, como serviços prestados à Ordem como integrante
da CMA. Também tive a oportunidade de contribuir e participar como integrante dos Grupos
de Trabalho Violência contra a Mulher e Mulheres de Ordem na gestão de 2016-2018.
Na Gestão 2019-2021 fui convidada pela Presidente da CMA Estadual Claudia Sobreiro
de Oliveira, para Coordenar o Grupo de Trabalho Mulheres Visíveis, que visava apresentarmos
às Subseções do nosso Estado eventos significativos para o engajamento das colegas nas
questões de paridade de gênero, de empreendedorismo, apresentações em público, bem estar e
sobretudo dar visibilidade ao trabalho das Advogadas dentro do sistema OAB através de
estudos sobre a pauta de gênero com recorte de raça.
Durante a pandemia o GT Mulheres Visíveis, foi fundamental o acolhimento das
Advogadas na avassaladora crise mundial. Tão logo nos vimos distantes presencialmente, foi
acolhido pela Diretoria da CMA projetos de capacitação para as advogadas. Cujo objetivo
visava treinar as Advogadas para o uso e apresentação em plataformas virtuais, apresentação
de pocket palestras para as demais colegas com temas ligados a temática feminista e direito das

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Mulheres, negras ou não negras. Com o agravamento do distanciamento Social e remodelação
da estrutura da Coordenação fui incumbida de Coordenar os Grupos de Trabalho Mulheres
Visíveis e Mais Mulheres na Ordem. E para engajar as colegas e coordenadoras dos GT’s todos
os painéis de eventos na CMA passaram a ser apresentados e coordenados pelo GT Mulheres
Visíveis tais como Encontros Regionais, Conferência Estadual e 16 dias de Ativismo pelo fim
da Violência contra as Mulheres.
Durante os anos de 2019/2021 integrei o Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/RS,
primeiramente como Julgadora e após o primeiro ano como Presidente da 13ª Turma do TED.
Na gestão 2019/2021, aconteceram as votações no Conselho Federal que institui a paridade de
gênero e as cotas raciais no sistema nacional da OAB o Projeto de Alteração de Atos
Normativos da Advocacia e da OAB Relacionados à Participação Feminina Nas Eleições
Institucionais – Projeto Valentina.
Com o novo regramento para as Eleições Gerais da OAB e para representar a CMA, fui
honrosamente convidada, pela então secretária-geral adjunta da Ordem gaúcha, Fabiana da
Cunha Barth, e Coordenadora-Geral das Comissões da OAB/RS, para integrar a Comissão
Eleitoral da OAB/RS. Sendo que a Comissão Eleitoral trabalhou na maior eleição da história
da Ordem gaúcha em número de votantes e também foi inovadora ao permitir o voto on-line.
No total foram 48.198 advogados e advogadas que participaram da votação virtual,
representando 86.62% do total de votantes aptos. O pleito ficou marcado pela transparência,
rapidez e economicidade do processo. E ainda aumento do número de mulheres advogadas a
integrar as chapas no sistema OAB, a partir da obrigatoriedade institucional da paridade de
gênero e cotas raciais a OAB. Tive a honra de trabalhar com a presidente da Comissão Eleitoral,
Elaine Harzheim Macedo, e composta por Miguel Antônio Silveira Ramos, Avelaine Cardozo
dos Santos, Caetano Cuervo Lo Pumo e Telmo Lemos Filho. Após o fechamento dos trabalhos
da Comissão Eleitoral recebemos a distinção oferecida pelo Conselho Pleno, em abril de 2021.
Na gestão 2022/2024 através da indicação da Diretoria anterior da CMA Claudia
Sobreiro de Oliveira, Alba Elizabeth Pias e Luceline Prado, ao Presidente da Seccional Dr.
Leonardo Lamachia, fui honrosamente convidada para compor a Diretoria da CMA, como
Vice-Presidente, ocupando a atividade que desde 2020 estava em nome da colega Alba
Elizabeth Pias.
O trabalho de Ordem é sequencial e dinâmico agradeço a oportunidade concedida nesta
gestão 2022/2024 aos membros da Diretoria Seccional Presidente Leonardo Lamachia, Vice-
Presidente Neusa Maria Rolim Bastos, Secretário Geral Gustavo Juchem, Secretária Geral
Adjunta Karina Contiero Silveira e ao Tesoureiro Jorge Luiz Dias Fara pela confiança e
atribuições da nossa CMA. Mas faço aqui um especial agradecimento às minhas colegas que
honrosamente trabalham ao meu lado na Diretoria da CMA, nossa Presidente Marcia
Schwantes, Secretária Geral Laura A. Freitas, Vice-Presidente Interiorização Ana Maria
Brongar de Castro e às nossas queridas e competentes coordenadoras dos Grupos de Trabalho,
Bruna M. Rossato, Maiaja F. Freitas, Claudia Ghichard, Josiane P. Faria, Simone Rossini,
Patricia Oliveira, Kelly Goulart. E um agradecimento também as colegas que estiveram conosco
na Coordenação Fabiane Xavier, Daniela Matos, Nara Piccinini e Líbia (in memorian).

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Acredito firmemente nas palavras de Bell Hooks quando fala que o feminismo é para
todo mundo, e ressalta a importância de que desde o princípio do feminismo as mulheres devem
ter o direito de escolher, eu escolhi aceitar o desafio de estar aqui. Não fujam dos desafios, não
se desviem das suas escolhas, como diz a memorável Medalha Rui Barbosa Dr.ª Clea Carpi da
Rocha “...tenha a visão do futuro, ache a solução, desvie do não procure o sim”.
Sinto que tenho em mim um pouco de cada Mulher de Ordem e assim nos reconstruímos
nos espelhando nas que nos antecederam e refletindo nossas conquistas e aprendizados para
que no futuro tenhamos mais espaço e igualdade. É um desejo pessoal que estejamos prontas
para pensar analiticamente e criticamente, e Márcia Tiburi nos diz: “Não há nada mais
importante na vida do que aprender a pensar e não se aprende a pensar sem aprender a perguntar
pelas condições e pelos contextos nos quais estão situados os nossos objetivos de análise e
interesse”.
No livro “Mulheres, Cultura e Política”, Angela Davis, inicia um dos capítulos citando
um poema de Nicky Finney “South Africa: When a Woman Is a Rock”, que, na tradução
constante desse livro, consta: Eles sempre colocam as mãos primeiro nas mulheres fazem isso
para ganhar a vida fazem para provar seu ponto de vista arrancando o coração sempre fica um
buraco grande o suficiente para as balas se infiltrarem eles batem nas mulheres gentis e bravias
primeiro e quanto eles fazem isso eles não sabem que estão tocando rocha. Quer dizer, nós,
mulheres, não sabemos de onde sai a força, para suportar a violência, em suas mais diversas
formas. Mas, o fato, é que nós seguimos lutando, contra essa violência. Que possamos seguir,
reconstruir, construir e superar nossos desafios, que não são poucos como mulher advogada no
combate às desigualdades e a todo tipo de violência.
Me chamo Ana Maria Brongar de Castro, advogada atuante desde a formatura, inscrita
na OAB-RS sob o nº. 40.178, hoje, com muito orgulho, Conselheira Estadual da OAB-RS,
Vice-Presidente da CMA-RS – Comissão da Mulher Advogada do RS (responsável por todas
as CMAs do interior do Estado do RS), Julgadora do Órgão Especial da OAB-RS, Julgadora da
Primeira Câmara da OAB-RS, integrando também a Comissão da Mulher Advogada da OAB-
Uruguaiana, a Comissão de Fiscalização do Serviço Profissional da OAB-Uruguaiana e a
Comissão de Eventos da OAB Uruguaiana.
Iniciei a minha trajetória acadêmica concluindo e colando grau, no ano de 1.988 no
curso de Administração de Empresa pela PUC-RS; em 12 de janeiro de 1996, colei grau no
curso de Ciências Jurídicas e Sociais, também pela PUC-RS. Tão logo formada já iniciei uma
série de especializações, tendo no ano de 2000 cursado a Escola Superior do Ministério Público,
carreira que não segui em decorrência de uma separação de união que enfrentei justamente no
mês de conclusão do curso, o que culminou me impulsionando exclusivamente à minha
profissão de advogada.
Já no primeiro ano de formada em direito fui chamada por uma amiga a integrar e
coordenar um trabalho de ajuda jurídica, psicológica e social instalado na 1ª. Delegacia de
Polícia de Uruguaiana, para atendimento às mulheres vítimas de violência. Referido trabalho,
pioneiro na cidade e totalmente filantrópico, despertou em mim um amor maior pelo que eu
fazia e a certeza de que eu era capaz de muito mais. No período em que lá estive (cerca de oito

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a dez anos) passamos a exigir que as mulheres fossem atendidas na Delegacia por policiais do
sexo feminino, formamos uma equipe de advogadas, médicos, psicólogos, assistente social e
demais profissionais necessários ao atendimento desta mulher, que era acompanhada desde o
registro da ocorrência até as demais necessidades decorrentes deste registro.
Referido trabalho se estendeu até que, sob a ajuda de autoridades e demais
departamentos pertinentes foi instalada em Uruguaiana a tão sonhada Delegacia da Mulher, que
passou a ser atendida por profissionais contratados por esta Delegacia Especializada; todavia,
a Vara de Família de Uruguaiana, nos chamou para a continuidade destes atendimentos
diretamente no Forum, o que também se estendeu por algum período.
Meu trabalho junto à OAB iniciou quando nos primeiros anos de formada em direito fui
convidada pelo então presidente da Subseção Uruguaiana, Dr. Higino Macagnani, para
participar da gestão como Delegada da Caixa de Assistência da Subseção, função na qual
participei por várias gestões, inclusive quando sucedeu a presidência em Uruguaiana o Dr.
Roberto Duro Gick, que permaneceu na presidência por duas gestões. Neste período, e por duas
gestões também fui presidente da Comissão da Mulher Advogada da Subseção Uruguaiana e,
a convite do presidente Roberto, passei a participar de todos os Colégios de Presidentes da
OAB-RS representando Uruguaiana. Esta aproximação me oportunizou um melhor
conhecimento do que efetivamente é a OAB, sendo que passei a ser convidada para participar
ativamente de vários eventos da Seccional RS.
Quando assumiu a presidência em Uruguaiana o Dr. Maurício Felix Blanco, fui
convidada por ele para participar da diretoria da Subseção Uruguaiana na condição de
Secretária Geral e também convidada pela OAB Seccional RS para participar do Tribunal de
Ética e Disciplina, tendo integrado a 2ª. Turma deste E. Tribunal. No segundo mandato de
Maurício Felix Blanco em Uruguaiana, e Ricardo Breier na Seccional RS, com muita honra fui
convidada a integrar o CONSELHO PLENO da OAB-RS. Passei desde então, a também
integrar a Primeira Câmara Julgadora da OAB/RS e o Órgão Especial da OAB-RS,
permanecendo desde então, tanto no Conselho Pleno, como nas referidas Câmara Julgadoras já
na terceira gestão (desde o ano de 2.016). Em todos estes anos acompanhando a OAB-RS passei
também a integrar a CMA-RS (Comissão da Mulher Advogada da OAB- RS), desde a gestão
da Dra. Carmelina Mazardo.
Na atual gestão, com muita honra, fui convidada a participar da diretoria da CMA-RS.
Também para minha surpresa, a nossa querida presidente Márcia Schwantes inovou e, pela
primeira vez, compôs a sua diretora com duas vice-presidentes.
Falar da minha trajetória de vida e de profissão certamente fugiria da objetividade e do
limite da presente apresentação. Passa um filme na minha cabeça lembrar de tantas lutas, tantas
realizações as quais graças à Deus conquistei, creio que mais em prol da minha família e da
minha Instituição OAB, do que de mim própria. Mas, e estas lutas que resultaram em vitórias
não seriam o prêmio pelas nossas conquistas e a nossa própria realização ? tenho em mim que
sim, que o mundo, e principalmente o que existe de melhor nele, é resultado de lutas conjuntas.
Nossos antecessores lutaram e conquistaram espaços que hoje ocupamos, tornaram estes

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espaços melhores e é a nossa obrigação cuidar e melhorá-los ainda mais para os que nos
sucederem.
Esta é uma felicidade que permanece ínsita em nós, que ninguém nos tira, o orgulho de
ter participado da construção de um espaço, de um mundo melhor.
Nestes vinte e sete anos de OAB tenho dentro de mim a alegria de ver o quanto já
conquistamos com o nosso trabalho dentro da Subseção Uruguaiana e o quanto ainda estamos
conquistando dentro da Seccional RS. É da soma de ações positivas que o mundo e os espaços
se tornam melhores e que nós avançamos como seres humanos e finitos que somos.
Meu nome é Laura Albrecht Freitas, advogada inscrita na Ordem dos Advogados do
Brasil, seccional Rio Grande do Sul, desde abril de 2017. Sou Secretária-Geral da Comissão da
Mulher Advogada, gestão 2022/2024. Até chegar aqui, tive uma caminhada, tanto profissional,
quanto institucional.
A violência contra a mulher e a disparidade de direitos sempre me incomodou. Desde
antes de ingressar na faculdade de Direito, queria utilizar o meu conhecimento para mudar a
realidade e sempre soube que não mudaria o mundo, mas se eu fizesse a diferença na vida de
uma pessoa, mudaria o mundo dela.
Durante a faculdade, fiz estágio na 9ª Promotoria de Justiça Criminal do MPRS,
especializada em violência doméstica. Foi meu primeiro contato com a violência contra a
mulher. O meu Trabalho de Conclusão de Curso foi sobre a Lei do Feminicídio, Lei nº
13.104/2015, e meu Trabalho de Conclusão da Pós-Graduação em Direito do Trabalho foi sobre
a violência contra as mulheres no ambiente de trabalho, artigo que publiquei no e-book Elas na
Advocacia I.
Comecei a participar da CMA em setembro/2018. Aos poucos, comecei a integrar os
Grupos de Trabalho, participar dos eventos e me integrar na comissão. A partir de 2019 comecei
a participar dos GTs: Ações Solidárias e Em Defesa das Mulheres. Participava ativamente das
reuniões e dos projetos destes grupos. Em 2020, fui convidada pela então presidente da CMA,
Dra. Claudia Sobreiro de Oliveira, para coordenar o GT Ações Solidárias. À frente deste GT,
coordenei diversas ações importantes, dentre elas destaco duas que muito me tocaram:
oportunizamos uma ceia de Natal completa para as mulheres vítimas de violência acolhidas
com seus filhos na Casa Mirabal de Porto Alegre e a entrega de enxoval para oito bebês recém-
nascidos recebidos em uma casa de acolhimento mantida por uma ONG, que recebia bebês e
crianças retiradas do convívio com suas famílias por ordens judiciais.
Como coordenadora, tive a oportunidade de palestrar em eventos, fazer o cerimonial de
painéis e auxiliar na mediação de um importante curso promovido pela ESA e pela CMA,
“Atuação na Defesa de Mulheres Vítimas de Violência”. Em quase dois anos de coordenação,
aprendi e amadureci muito. Fiz coisas que imaginava que faria em um futuro distante, quando
já tivesse mais conhecimento e experiência. Conheci pessoas incríveis e aprendi com colegas
que se tornaram amigas. Finda a gestão, entreguei meu trabalho, ansiosa pela próxima gestão,
onde pretendia ser apenas “espectadora”.

14
Em uma tarde de março de 2022, estava trabalhando em meu escritório e recebi a ligação
da Dra. Marcia Schwantes, recém-empossada Presidente da CMA, me convidando para ser
secretária da comissão. Inicialmente eu respondi que não poderia ocupar o cargo, pois não tinha
conhecimento e experiência para tanto. Jamais me sentira preparada para tamanha
responsabilidade. Eu com apenas cinco anos de OAB, enquanto outras colegas tinham
caminhadas mais longas que a minha, certamente se adequariam melhor. Eis que ouço como
resposta da nossa Presidente que eu fui muito bem recomendada por minhas colegas da gestão
anterior e que aprenderíamos juntas. Aceitei o convite e aqui estou.
O primeiro ano de gestão foi de muito desafiador. Redigir os projetos levava tempo,
demorei até conseguir me organizar nas pautas, atas, projetos, reuniões, eventos, planejamentos,
auxiliar as colegas que me procuravam, as presidentes das CMAs das subseções, as
coordenadoras. Pensei em desistir muitas vezes, até hoje tenho dúvida se estou realmente
preparada para este cargo importante em uma das maiores comissões da nossa seccional.
Tenho ao meu lado, companheiras de diretoria que não me deixam desistir, que me
fortalecem e me ensinam diariamente. Erro sim, mas considero estes erros, aprendizados. Hoje
faço os projetos com mais facilidade, consegui organizar minha rotina de trabalho institucional,
esquematizei todos os compromissos. O aprendizado que eu tive com tudo isso é que nós
precisamos nos arriscar, aceitar os desafios que a vida nos impõe. Alguém terá de fazer. No
meu caso, alguém teria que ser a secretária da CMA. E por que não, eu?
As comissões são a porta de entrada para o trabalho institucional. Nestes grupos
aprendemos, nos qualificamos e interagimos com colegas com os mesmos interesses que os
nossos. Acredito na importância de todas as mulheres que ocupam cargos de decisão
compartilharem suas trajetórias para que possamos inspirar, para que cada vez mais tenhamos
cadeiras decisórias ocupadas pelo sexo feminino. É através do exemplo que mostramos que
somos capazes de ocupar o espaço que quisermos, mas, para tanto, precisamos estar preparadas
e confiantes.

Dos projetos da Comissão da Mulher Advogada

Em 2023, a OAB/RS e a CMA lançaram o Programa de Auxílio à Mulher Advogada –


PAMA, que tem como objetivo, entre outros, tornar definitivos projetos que a CMA já
desenvolvia. Assim, os projetos passam a ser da instituição, ganhando maior proporção e se
tornando fixos da OAB/RS. O PAMA tende a crescer cada vez mais, ganhando mais projetos e
sendo cada vez mais conhecido das advogadas.
O lançamento contou com cinco projetos que já fazem parte do programa e são fixos da
nossa instituição, OAB/RS. Vamos utilizar desse espaço, mais um projeto do PAMA, para
explanar um pouco de cada um destes itens do programa.
O e-book Elas na Advocacia foi lançado em março de 2020 com o intuito de valorizar a
produção científica das advogadas. Com o sucesso da publicação, em 2021 foi lançada a
segunda edição. Em 2023, além de celebrarmos o Elas na Advocacia III, com a sua inclusão no
PAMA, temos a certeza que este e-book terá muitas edições, oportunizando a muitas advogadas
15
mostrarem a sua capacidade, desenvolverem produções científicas e ser uma vitrine para tantos
trabalhos importantes. O e-book é um projeto pioneiro da nossa seccional, tem uma grande
importância para as advogadas e tem crescido cada vez mais.
A Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas, CDAP, tem como função principal
defender e prestar assistência, aos inscritos na OAB/RS, sempre que este sofrer restrições ao
livre exercício de sua profissão1. É a comissão que assegura o cumprimento da Lei 8.906/94. O
Estatuto da Advocacia tem artigos específicos à proteção da mulher advogada, que dispõe da
proteção à advogada gestante, lactante e adotante2 e, para assegurar o fiel cumprimento do art.
7º e demais dispositivos, foi criada a Vice-Presidência da Mulher da CDAP.
Assim, as mulheres advogadas passam a ter assistência especial na CDAP, através da
Vice-Presidência da Mulher, que está à disposição de todas para prestar defesa e assegurar que
os direitos das advogadas sejam respeitados.
Outro importante ganho para as advogadas é a abertura da Sala Pérola, espaço de
acolhimento para advogadas vítimas de violência doméstica. A CMA, em parceria com a ESA,
vem qualificando advogadas através do curso Atuação na Defesa de Mulheres Vítimas de
Violência Doméstica3. Em trinta horas-aula, estão englobados conteúdos jurídicos, psíquicos e
sociológicos, ministrados por advogas e psicanalistas das mais diversas áreas de atuação, que
qualificam advogadas para serem acolhedoras na Sala Pérola.
O espaço é pensado para acolher as advogadas em situação de violência, que são
amparadas com muita segurança e qualificação. Os procedimentos são sigilosos e obedecem a
ritos de atendimento previamente estabelecidos. Assim, além do Auxílio Proteção, ofertado
pela Caixa de Assistência aos Advogados4, a advogada passa a contar com um espaço de escuta
ativa e acolhimento, a Sala Pérola.
A OAB/RS já contava com uma Ouvidoria desde 2003, com o propósito de atender a
advocacia e a sociedade, orientar, receber demandas e realizar o encaminhamento das
proposições que versam sobre as relações entre a instituição, a sociedade e advocacia 5. Vinte
anos depois da instalação da ouvidoria, foi lançada a ouvidoria da mulher, um espaço para
atender e ouvir a mulher advogada.
Os dados coletados a partir da Vice-Presidência da Mulher da CDAP, dos atendimentos
realizados na Sala Pérola e da Ouvidoria da Mulher, farão parte do Observatório da violência
contra a mulher advogada. O objetivo deste acompanhamento, através, ainda, de pesquisas e
monitoramento de dados, é desenvolver ações de conscientização, estudos e proposições, não
só à instituição, como aos poderes estatais de políticas públicas de enfrentamento e combate à
violência contra a mulher.
A OAB/RS e a CMA trabalham incessantemente para tornar a advocacia cada vez mais
segura e inclusiva para as advogadas. Os projetos aqui apresentados, além daqueles que não

1
https://www2.oabrs.org.br/comissao?id=3, acesso em 26/05/2023
2
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm, acesso em 26/05/2023
3
https://esars.org.br/curso/1936, acesso em 26/05/2023
4
https://www.caars.org.br/beneficio-22-auxilio-protecao, acesso em 26/05/2023
5
https://www2.oabrs.org.br/estrutura/ouvidoria/, acesso em 26/05/2023
16
integram o PAMA, são voltados à proteção e à valorização da mulher advogada. Já
representamos 52% da advocacia no Rio Grande do Sul, mas esta igualdade ainda não se reflete
na realidade, onde ainda enfrentamos desrespeito às nossas prerrogativas e desvalorização do
nosso trabalho.
O PAMA é um importante passo dado pela advocacia feminina no Rio Grande do Sul,
engrandecendo um caminho que vem sendo percorrido pelas advogadas há muitos anos.
Podemos comemorar muitas conquistas, mas ainda há muito a percorrer. Juntas, iremos cada
vez mais longe.

CONCLUSÃO

Conforme a trajetória de cada uma das integrantes, percebe-se que há uma pluralidade
de trabalhos desenvolvidos por todas, seja na história pessoal, na profissional ou na
desenvolvida dentro da OAB.
Temos uma vice-presidente que tem grande trajetória na comissão da mulher advogada
que é a Maximilia Silva de Paula, a vice-presidente responsável pelo interior, Ana Maria
Brongar de Castro, além de participar e presidir a comissão da mulher advogada na sua subseção
– OAB de Uruguaiana – teve outros cargos na subseção e participa do Conselho Seccional de
OAB/RS, a secretária Laura Albrecht Freitas, que começou participando da CMA na gestão
anterior e aceitou o desafio de estar conosco nesta gestão 2022/2023 e eu que comecei na
Subseção da OAB de São Leopoldo, passando por vários cargos, além de estar na terceira gestão
como Conselheira Estadual, participando da Segunda Câmara, Órgão Especial e tendo passado
pela Comissão de Seleção e Inscrição e pela Assessoria da Presidência.
Nós fomos reunidas nessa comissão para aprendermos umas com as outras, enfrentando
os nossos próprios desafios, limitações, nos conhecendo, nos criticando e apoiando uma à outra
a fim de fazer um trabalho em conjunto de qualidade! Com o nosso trabalho em prol da
advocacia feminina, nós temos deixado marcas ao longo dessa gestão, pois queremos fazer
entregas efetivas para as mulheres advogadas, que hoje, no Rio Grande do Sul e no Brasil já
são em maior número e, principalmente honrando a quem antes nos antecedeu.
Uma grande marca da nossa gestão é a entrega do PAMA - Programa de Apoio à Mulher
Advogada, que se desdobra na criação da Ouvidoria da Mulher Advogada, na criação da vice-
presidência da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas dos Advogados - CDAP, na
inauguração da Sala Pérola, na elaboração do terceiro e-book Elas na Advocacia, na criação do
Observatório da Violência contra a Mulher.
Mas todo esse movimento somente é possível com o apoio da Diretoria da OAB/RS
desta gestão e o nosso maior tesouro conquistado com o envolvimento na OAB, são as amizades
criadas, só gratidão é o meu sentimento, pela minha diretoria, pelas colegas coordenadoras dos
vários Grupos de Trabalho da CMA e demais integrantes!

17
PREFÁCIO

Elas na Advocacia III é uma iniciativa que, com a mesma qualidade das edições
anteriores, dá seguimento ao importante projeto realizado em conjunto pela Escola Superior
da Advocacia – ESA/RS e pela Comissão da Mulher Advogada - CMA/RS, da OAB do Rio
Grande do Sul, coordenado pela presidenta da Comissão antes referida, Márcia Swantes, por
suas vices, Maximilia de Paula e Ana Maria Brongar, pela secretária Laura Albrecht
Freitas, bem como por Josiane Petry Faria, coordenadora do GT de Produção Científica, e
Alexandre Torres Petry, diretor de e-books e da Revista Eletrônica da ESA/RS.

Os artigos que o/a leitor/a encontrará na presente coletânea abordam assuntos diversos,
mas há características que lhes são comuns: escritos por mulheres, por mulheres advogadas, e
trazem temas relevantes, a partir de análises percucientes.

São 48 autoras/advogadas que emprestam seu saber acerca de temas de relevância


social, filosófica e política, o que demonstra que a produção acadêmica das mulheres não se
resume a assuntos ligados à sua condição, embora seja de extrema importância que as mulheres
investiguem, pois, ao fazê-lo, contribuem para que nossas dores, aflições, valores e desejos
sejam evidenciados e levados em conta no momento de se propor ações voltadas a superar
violências, injustiças, preconceitos, discriminações, estereótipos, opressões, sofrimentos e
subalternidades que se associam ao gênero feminino, incluindo-se, as barreiras imorais e ilegais
que as mulheres acadêmicas precisam transpor no seu cotidiano.

Tal situação foi especialmente evidenciada no período da crise de saúde pública


provocada pelo Coronavírus (pandemia Coronavírus). Inúmeras pesquisas demonstram a queda
da produção científica de mulheres em tal ocasião.

O projeto brasileiro do Parent in Science, que traz dados e análises sobre a maternidade
na ciência, divulgou, no ano de 2021, estudo mostrando queda de mais 50% na disponibilidade
de trabalho remoto entre os entrevistados com filhos. Para as mulheres cientistas, o número é
ainda mais dramático: apenas 9,9% das entrevistadas com filhos admitiram conseguir trabalhar
remotamente, contra 17,4% de homens com filhos.6

Outra pesquisa, esta realizada pela UFRGS e divulgada no ano de 2020, explicita que,
no geral, “as pesquisadoras relatam mais dificuldade de trabalhar no regime de home office.
Entre os pós-doutorandos, por exemplo, 13,9% das mulheres e 27,9% dos homens afirmam
estar conseguindo trabalhar remotamente. Essa desigualdade se repete nos outros grupos
pesquisados: nos docentes, esse índice é de 8% entre as mulheres e 18,3% entre os homens; no
aluno de pós-graduação, 27% das mulheres e 36,4% dos homens conseguem trabalhar no
formato home office”.7

6
Disponível em: https://www.cdts.fiocruz.br/en/node/283. Conheça outros dados em:
https://www.scielo.br/j/ress/a/c7TkCBBBsYtF7nhnsDmZ83n/?lang=pt# . Acesso em 10.07.2023.
7
Disponível em:
https://www.ufrgs.br/ciencia/pesquisa-da-ufrgs-revela-impacto-das-desigualdades-de-genero-e-raca-no-mundo-
academico-durante-a-pandemia/. Acesso em 10.07.2023.
18
A pesquisa também demonstra o impacto da maternidade na produtividade da
pesquisadora. “No caso dos pós-doutorandos, entre as mulheres com filhos, apenas 2,2% estão
conseguindo trabalhar de casa; entre as pesquisadoras sem filhos, o índice sobe para 25,1%.
Mesmo para os homens, o fato de ter ou não filhos é uma variável relevante: 37,6% dos pós-
doutorandos do sexo masculino sem filhos conseguem realizar trabalho remoto, contra 4,2%
dos homens com filhos”.8

Quando analisado em relação à idade das crianças, verificou-se que o impacto é ainda
mais grave: “entre as docentes, o índice de submissão de artigos conforme planejado antes do
isolamento social é menor quando a pesquisadora tem filhos com menos de um ano de idade
(32%) ou entre um e seis anos (28,8%). Nos homens com filhos, a submissão de artigos não
varia tanto em razão da faixa etária das crianças”.9

Ainda sobre o tema mãe acadêmica, deve ser registrado que, somente no ano de 2021,
a Plataforma Lattes (que agrega currículos de pesquisadores de todo o país) passou a conter
uma seção (nomeada “Licenças”) para que as mulheres possam indicar seus períodos de
licença-maternidade. Com isso, as cientistas que tiveram filhos não ficarão com registros de
pausas de sua produção acadêmica, situação que traz inúmeros prejuízos, já que a publicação
de artigos tem peso importante nos sistemas de avaliação do desempenho de pesquisadores,
influenciando, portanto, as possibilidades de encontrar emprego, obter financiamento de
projetos, progredir na carreira, ter visibilidade acadêmica etc.

Ademais, pesquisa do IBGE demostra que, ao ter o primeiro filho, o salário da mulher
é reduzido em cerca de 24%. E a situação piora ainda mais em relação às mulheres com três ou
mais crianças, pois recebem até 40% a menos se comparadas a colegas que não são mães.10 Tal
implica mais um contingenciamento para as acadêmicas mulheres: dificuldade financeira de
adquirir livros para suas pesquisas, de arcar com custos de transporte para efetivação de
pesquisas de campo, de participar de intercâmbio de conhecimento em outro país ou instituição
etc.

A nova seção (“Licenças”) é resultado da mobilização de cientistas brasileiras iniciada


no ano de 2017, em Porto Alegre, pelo já mencionado movimento Parent in Science.11 Deve
ser sublinhado: um movimento majoritariamente de mulheres que, por sua condição de mulher,
conhecem obstáculos que mulheres, por sua condição de mulher, têm de transpor.

Outra revelação trazida nos estudos empreendidos pelo Parent in Science diz respeito
ao quão impactante é a questão da raça. Os resultados apontaram que as respostas sobre a

8
Disponível em:
https://www.ufrgs.br/ciencia/pesquisa-da-ufrgs-revela-impacto-das-desigualdades-de-genero-e-raca-no-mundo-
academico-durante-a-pandemia/. Acesso em 10.07.2023.
9
Disponível em:
https://www.ufrgs.br/ciencia/pesquisa-da-ufrgs-revela-impacto-das-desigualdades-de-genero-e-raca-no-mundo-
academico-durante-a-pandemia/. Acesso em 10.07.2023.
10
Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/colunas/Bolsa-de-Valores/noticia/2018/12/quanto-mais-
filhos-menor-o-salario-da-mulher-ao-longo-da-carreira.html. Acesso em 10.07.2023.
11
Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2021/04/16/iniciamos-uma-revolucao-lattes-
comeca-a-registrar-licenca-maternidade.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 10.07.2023. Conheça outros estudos
e publicações em: https://www.parentinscience.com/documentos.
19
produção científica de mulheres negras com ou sem filhos foram parecidas. “Entre as docentes
que responderam ao questionário, por exemplo, quando perguntadas se estavam conseguindo
submeter artigos científicos como planejado, apenas 46,5% das mulheres negras com filhos e
48,7% das mulheres negras sem filhos responderam afirmativamente. Entre as mulheres
brancas, a diferença entre os dois grupos é maior: 47,2% das mulheres brancas que são mães
estão conseguindo enviar artigos para revistas científicas, contra 58,9% das brancas sem filhos”.

De conformidade com uma das realizadoras do estudo, Rossana C. Soletti, “as


mulheres negras não precisam ter a parentalidade como ‘obstáculo’. O fator raça por si só é
mais uma etapa que as mulheres têm que atravessar na carreira científica, porque sabemos que,
infelizmente, a academia não é inclusiva, assim como muitas outras áreas”.12
Importa também citar o levantamento realizado pela Dados, revista de Ciências Sociais
editada pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos – IESP – da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro – UERJ –, que, por meio da análise das submissões de trabalhos enviados para sua
avaliação, mostrou que a submissão de artigos acadêmicos assinados por mulheres caiu
drasticamente durante a pandemia de coronavírus. “O estudo analisou a quantidade relativa de
mulheres que assinaram artigos como autoras ou coautoras, independente da ordem de autoria.
Entre 2016 e o primeiro trimestre de 2020, a média de participação feminina nos trabalhos foi
de 40,8%. O ano de 2020 começou com o percentual de 40% nos primeiros três meses. No
segundo trimestre, no entanto, foi registrada a menor proporção do período analisado, com
apenas 28% de mulheres assinando artigos submetidos. Em seguida, foram examinados os
trabalhos em que mulheres assinam como primeira ou única autora.”13 Aqui, a discrepância foi
ainda maior: a média de primeiras autoras entre 2016 e o primeiro trimestre de 2020 foi de 37%,
sendo que esse percentual caiu para 13% no segundo trimestre do mesmo ano.

A realidade traduzida pelos dados acima coletados, faz compreender a importância de


se prestigiar a escrita de mulheres, principalmente, de mulheres mães e negras. Este ensejo,
portanto, recomenda enaltecer a iniciativa da OAB do Rio Grande do Sul, por meio da sua
Escola Superior da Advocacia e da Comissão da Mulher Advogada, pela sua iniciativa, que
já está na terceira edição, torcendo para que não haja solução de continuidade e que futuras
escritoras possam se engajar no projeto.

Ao prestigiar a produção feminina, a presente constitui-se em uma ação reparadora, haja


vista os desafios materiais, existenciais e ideológicos interpostos às mulheres que empreendem
escrever e divulgar o assentamento de suas ideias, que são seus escritos.

Merece destaque a escolha do formato de publicação escolhido (e-book), que, mais


democrático, por ser menos custoso, permite que o acesso às presentes contribuições do
seguimento feminino tenha maior alcance, propiciando que o público em geral se aproprie dos

12
Disponível em: https://www.cdts.fiocruz.br/en/node/283. Conheça outros dados em:
https://www.scielo.br/j/ress/a/c7TkCBBBsYtF7nhnsDmZ83n/?lang=pt#. Acesso em 10.07.2023.
13
Disponível em: https://oglobo.globo.com/celina/submissao-de-artigos-academicos-assinados-por-mulheres-cai-
durante-pandemia-de-coronavirus-24428725. Acesso em 10.07.2023.
20
relevantes conhecimentos trazidos pelas autoras, que merecem toda a consideração pela
qualidade dos textos apresentados.

Por fim, um elogio com perspectiva de gênero a essas mulheres advogadas autoras que,
além de todas as dificuldades gerais em se promover Ciência em nosso País, tiveram, em maior
ou menor grau, que enfrentar os obstáculos que são próprios da condição de mulher. Reiterando
votos de que outras contribuições femininas, inspiradas na presente iniciativa, se somem em
futuras edições, quiçá com o entusiasmo contagiando outras seccionais e instituições, a fim de
gerar inúmeras iniciativas desta grandeza.

Alice Bianchini

21
MEDIAÇÃO: O FUTURO DO JUDICIÁRIO

Adriana De Toni1
Adriana Parisotto2
Rejane Ribicki3

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo esclarecer ao leitor a diferença entre mediação e
conciliação, contendo informações básicas a esclarecer seus benefícios, pois por
desconhecimento muitos advogados, assim como eu, pecam com meus clientes, eis que até
pouco tempo atrás, via a mediação como perda de tempo, e não como um método inovador e
autocompositivo. O texto a seguir, vai levá-lo a refletir sobre o que realmente importa em um
processo judicial, a revisar às questões sentimentais que muitas vezes são postas de lado, onde
a conhecida morosidade do judiciário pode dar lugar ao poder de decisão, onde as partes são
realmente ouvidas e têm o “poder” de decidir. A mediação é o futuro do judiciário, onde ela
não será mais vista como uma exceção, mas sim como regra.

Palavras-chave: Resolução de conflitos. Relações. Mediação. Sentimentos. Autocomposição.

1 INTRODUÇÃO

Caro colega advogado(a), você sabe o que é mediação? Para que serve?
Lhe questiono, pois já pequei muito, mesmo sendo advogada até pouco tempo, por
desconhecer do processo/procedimento.
Sim, muito oportuno lhes colocar aqui minhas falhas.
Certa vez, quando em uma sessão de mediação, o mediador solicitou ouvir o meu
cliente, que na ocasião era o Solicitante, tomei a frente e comecei a discorrer sobre os fatos e
fundamentos do processo, no entanto, sem entender que aquele momento era tão
exclusivamente para o meu cliente, que ali ele, poderia externar seus sentimentos, para que
assim conseguisse explicar o porquê chegou até ali. E eu na ânsia de ajudá-lo falei por ele.
Sim, porque, qual o advogado que deixa seu cliente resolver seus conflitos sozinhos?
Para que, a necessidade de um procurador quando a parte sozinha resolve suas questões?

2
Advogada, inscrita na OAB/RS 117.521, graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/RS, Mediadora
Cível em formação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, atualmente (2023) Secretária da
Comissão da Jovem Advocacia da OAB/RS da Subseção de Bento Gonçalves, endereço eletrônico:
advogadaadrianaparisotto@gmail.com.
3
Advogada, inscrita na OAB/RS 94.603 - graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul/RS,
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Caxias do Sul/RS, Mediadora Cível em
formação do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e, atualmente (2023), Presidente da Comissão
Especial de Direito do Trabalho da OAB na Subseção de Bento Gonçalves/RS, eletrônico eletrônico:
rejanesag@gmail.com.
22
Eram estes meus pensamentos quando da proposição de uma demanda, porém quando
entendi que a mediação é um processo voluntário que oferece àqueles que estão vivenciando
uma situação de conflito, a oportunidade e o espaço adequados para conseguir buscar uma
solução que atenda a todos os envolvidos, consegui auxiliar melhor meus clientes.

2 A INTRODUÇÃO DA MEDIAÇÃO NO JUDICIÁRIO

Com a publicação da Lei de Mediação número 13.140/2015, juntamente com o Código


de Processo Civil de 2015 e com a Resolução no 125/2010, consolida o marco legal da mediação
no Brasil.
Com a criação da Resolução 125 do CNJ, deu origem a criação dos CEJUSCS – Centro
de Mediação do Poder Judiciário, que vem sendo de grande ajuda no judiciário, eis que vem
desafogando os fóruns, dando oportunidade para as partes resolverem suas questões de forma
mais humanizada, sem que um terceiro resolva para eles, e assim aumentar ainda mais o conflito
e as desavenças das partes.
A mediação é um meio consensual e voluntário de resolução de conflitos de interesses,
realizado entre pessoas físicas e/ou jurídicas, que elegem, segundo a sua confiança, uma terceira
pessoa – o mediador, independente e imparcial, com formação técnica adequada à natureza do
conflito, que terá como a principal função, aproximar e facilitar a comunicação das partes, para
que estas solucionem suas divergências e construam, por si próprias, seus acordos com base
nos seus interesses.
O objetivo da mediação é que as partes possam voltar a dialogar, se comunicar, por isso
dizemos que numa mediação não há ganhadores ou perdedores. A mediação utiliza de várias
ferramentas para curar a mágoa, a raiva, o conflito que existe entre as partes, para que assim,
além de poderem resolver seus conflitos, as partes curem o seu eu interior e não o ego, pois o
conflito começa a partir de um ruído que houve na comunicação entre duas ou mais pessoas.
Muito embora, os advogados (as), isso também me incluía, achem que a mediação não
serve para nada, pois ficam ali conversando e muitas vezes sem chegar à conclusão nenhuma,
muito pelo contrário, a mediação é a única oportunidade onde as partes envolvidas num conflito
tem a chance de serem ouvidas, de colocar para fora o que sentem, de dizer para outra pessoa o
que estão sentindo e o quanto esse ruído entre elas vem machucando o seu interior.
Apesar da mediação no Brasil ser exceção, em outros países é a regra, as demandas são
ajuizadas em últimos casos.
Mas por que a mediação tem força em outros países e não aqui no Brasil?
23
Bom, em nosso entendimento por questão cultural, lá fora eles prezam muito o diálogo,
estimulam os cidadãos a terem mais responsabilidade, criam habilidade para os cidadãos
lidarem seus conflitos e diferenças.
Aqui no Brasil, a mediação está começando, será um trabalho de formiga, quando os
operadores do direito entenderem e olharem a mediação com outros olhos perceberam o quanto
essa ferramenta é valiosa.
Confesso, pequei com meus clientes por não saber o que é mediação, pois na faculdade
ensinam a litigar, mas não a dialogar.
A mediação pode aumentar a eficiência do judiciário, pode dar economia de tempo e
despesas, tanto para o judiciário como para as partes, reduz a quantidade de tramitação
processual, permite que as pessoas encontrem suas próprias soluções, sem que um terceiro faça
isso por elas, o cidadão tem voz.
A mediação vem ganhando importância, sendo reconhecidas as vantagens e benefícios
que o método traz, em relação ao litígio na justiça estatal.
A mediação vem ganhando força em várias áreas do direito, empresarial, familiar, cível,
trabalhista, superendividamento, previdenciário, conflitos coletivos, penal, justiça restaurativa,
podemos dizer que a mediação é o futuro do judiciário onde não será mais exceção e sim regra.

3 QUAIS SÃO OS PRINCÍPIOS BÁSICOS DA MEDIAÇÃO?

A mediação ganhou uma grande repercussão junto ao Novo Código de Processo Civil -
Lei 13.105/2015 que trouxe alternativas para a resolução das situações ocorridas pelas
partes. Em regra, ocorre a audiência de mediação de forma prévia.
A mediação é utilizada quando as partes possuem algum vínculo anterior e a função do
mediador é apenas intermediar, podendo as partes chegarem a uma solução adequada.
A mediação pressupõe o interesse das partes em encontrar de forma conjunta, a solução
para o conflito que vivenciam. Dessa forma, é possível dizer que são elas (os mediandos) quem
protagonizam uma sessão de mediação. A mediação é uma forma de empoderar às partes, de
dar-lhes o poder de decisão, partindo a ação e decisão dos interessados.
Como consequência, não haverá e até diminui-se o desgaste do litígio, com uma solução
gerada as partes, que possivelmente manterá as relações e até restaurará o diálogo e a confiança
na relação.
Nos artigos 7º e 8º da Resolução 125/10 do CNJ, que fala sobre a criação de Núcleos
Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos, conhecidos como NUPEMEC,

24
e dos CEJUSC’s – Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadanias que são
fundamentais para a consolidação dos mecanismos autocompositivos.
Quanto às partes, essas devem estar dispostas ao princípio da voluntariedade, ou seja,
deve ser de vontade das partes participar de uma sessão de mediação, e para os mediadores
existem os princípios da imparcialidade, informalidade, confidencialidade e neutralidade.
No que tange ao princípio da confidencialidade, os mediadores não podem expor os
fatos presenciados em audiência, tudo que for ali tratado não pode ser anotado em a ata/termo
de sessão. Já na confidencialidade, deve-se manter o sigilo sobre todas as informações trazidas
na sessão, salvo se as partes permitirem.
Na imparcialidade, os mediadores devem agir de forma imparcial, respeitando a decisão
das partes, que poderão ou não chegar em um acordo. Normalmente os mediadores não tem
acesso a integra do processo, para que tais informações não prejudiquem o andamento da
mediação e na tomada decisões, principalmente na utilização das ferramentas a serem
empregadas na sessão.
As partes não são obrigadas a chegar a um acordo, se chegarem, esse acordo será
homologado pelo juiz e se tornará um título executivo judicial, que, caso não for cumprido,
poderá ser executado.
Porém o objetivo principal da mediação, podemos dizer que seria “dar ouvidos às
partes”, nem sempre o acordo é o que resultado que a parte quer/deseja e sim, que seja ouvida,
que seu ponto de vista seja analisado e que suas opções sejam consideradas.
Deve-se sempre respeitar as decisões das partes, assegurando para que cheguem a uma
decisão voluntária com liberdade, assim a mediação poderá ser considerada exitosa.
Os mediadores nunca, não devem forçar um acordo ou tomar decisões, eles devem junta
às partes, criar opções para ajudá-los a chegar a um entendimento.

4 DIFERENÇAS ENTRE A MEDIAÇÃO E A CONCILIAÇÃO

Conforme o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), mediação é:

Mediação é uma forma de solução de conflitos na qual uma terceira pessoa, neutra e
imparcial, facilita o diálogo entre as partes, para que elas construam, com autonomia
e solidariedade, a melhor solução para o conflito. Em regra, é utilizada em conflitos
multidimensionais ou complexos. A Mediação é um procedimento estruturado, não
tem um prazo definido e pode terminar ou não em acordo, pois as partes têm
autonomia para buscar soluções que compatibilizem seus interesses e necessidades. 4

4
Sítio: Conciliação e mediação. Conselho Nacional de Justiça (CNJ), [Brasília], 28 maio. 2023. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao/
25
Já a conciliação é tida como:

A Conciliação é um método utilizado em conflitos mais simples, ou restritos, no qual


o terceiro facilitador pode adotar uma posição mais ativa, porém neutra com relação
ao conflito e imparcial. É um processo consensual breve, que busca uma efetiva
harmonização social e a restauração, dentro dos limites possíveis, da relação social
das partes.5

A mediação e conciliação poderão ser indicados por juízes, advogados, Ministério


Público, defensores públicos ou até mesmo pelas partes a qualquer tempo.
As sessões poderão ser reagendadas quando assim achar necessário o mediador, para
que às partes cheguem a uma resolução do conflito. As medidas adotadas para cada
procedimento variam de acordo com o tipo de conflito e a “vontade das partes”. A conciliação
é definida no artigo 165, parágrafo 2º do Código de Processo Civil de 2015, e tem como objetivo
gerar hipóteses para o conflito, e resolver a questão.

Art. 165 - § 2º - O conciliador, que atuará preferencialmente nos casos em que não
houver vínculo anterior entre as partes, poderá sugerir soluções para o litígio, sendo
vedada a utilização de qualquer tipo de constrangimento ou intimidação para que as
partes conciliem.

Já a mediação, é definida pelo artigo 165, parágrafo 3º do Código de Processo Civil de


2015, busca dar ouvidos as partes, para que essas possam expressar seus sentimentos e as razões
pelas quais os levaram buscar o judiciário e manter o vínculo entre as partes. Na mediação as
partes trabalham junto para buscar de uma solução para o conflito, tira das mãos do judiciário
e coloca isso nas mãos das partes.

Artigo 165 - § 3º - O mediador, que atuará preferencialmente nos casos em que houver
vínculo anterior entre as partes, auxiliará aos interessados a compreender as questões
e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento da
comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios
mútuos.

Na mediação, se tira de um terceiro o poder de decidir, ou seja, às partes decidem sobre


suas questões, sobre suas vidas, tirando a decisão da mão de um juiz (terceiro) evitando
desgastes muitas vezes emocional, financeiro e diminuindo o tempo de tramitação do processo.
Na mediação é possível que as partes se fazerem representar por seus procuradores ou
representantes legais.

5
Sítio: Conciliação e mediação. Conselho Nacional de Justiça (CNJ), [Brasília], 28 maio. 2023. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao/

26
O advogado na mediação, exerce um importante papel que é o de ajudar a pensar em
soluções criativas para que se atendam aos interesses das partes, bem como o de esclarecer
quais os direitos de seus representados.
Quando as partes e seus procuradores aceitam participar da mediação, normalmente
buscam juntos gerar opções para resolver a situação que levam para a sessão de mediação,
demonstrando estarem empoderados, mantendo uma postura positiva e sem palavras ofensivas,
diferente da conciliação que busca apenas gerar hipóteses para o conflito, e resolver a questão.

5 QUEM É O MEDIADOR

O mediador é um terceiro, alheio ao processo, que não precisa ter formação na área do
direito, porém necessitando ter a formação técnica.
Para se tornar um mediador judicial, de acordo com a Lei da Mediação nº 13.140/2015,
em seu artigo 11, é necessário ser pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso de
ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido
capacitação em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola
Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais,
observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto
com o Ministério da Justiça.
O mediador pode ser encontrado no judiciário, através do CEJUSC – Centro Judiciário
de Solução de Conflitos e Cidadania ou através de uma Câmara Privada Credenciada junto ao
Tribunal de Justiça.
Entre os advogados, ainda existe grande dúvida, quanto a possibilidade de poder atuar
como mediador e conciliador na comarca que atua como a advogado (a).
Segundo o CNJ – Conselho Nacional de Justiça, o advogado que desempenha a função
de conciliador ou mediador vinculado ao CEJUSC, não fica impedido de atuar, desde que não
atue como mediadora ou como conciliadora na sessão que irá atuar como advogada, conforme
decisão que segue abaixo:
Trata-se de Consulta formulada pelo Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de
Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio da qual
indaga (DOC SEI 0966095): A atuação de advogado como mediador ou conciliador
perante um juízo que compõe uma sociedade de advogados gera o impedimento dessa
sociedade atuar nesse mesmo juízo? É o breve relatório. Decido. Esta Comissão
recebeu, recentemente, do CEJUSC do Distrito Federal, por meio da juíza federal
Rosimayre Gonçalves de Carvalho (DOC SEI 0822572), consulta bastante similar.
Indagou-se quanto ao previsto no Art. 167, § 5º, do Código de Processo Civil, que
assim dispõe: Art. 167. Os conciliadores, os mediadores e as câmaras privadas de
conciliação e mediação serão inscritos em cadastro nacional e em cadastro de tribunal
de justiça ou de tribunal regional federal, que manterá registro de profissionais

27
habilitados, com indicação de sua área profissional. (...) § 5º Os conciliadores e
mediadores judiciais cadastrados na forma do caput, se advogados, estarão impedidos
de exercer a advocacia nos juízos em que desempenhem suas funções. Considerando
a relevância da temática para as atividades inerentes à Política de Tratamento
Adequado de Conflitos, designei a Juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Trícia
Navarro Xavier Cabral, para elaboração de parecer nos processos SEI 00727/2020 e
SEI 08947/2020. Em 26/10/2020, acostou-se o Parecer (DOC SEI 0975784)
elaborado pela referida magistrada, o qual conclui que: a) o advogado que
desempenha papel de conciliador ou mediador vinculado ao CEJUSC bem como a
sociedade a qual pertença não ficam impedidos de atuar nos juízos, juizados ou varas;
b) o advogado que funcione como conciliador ou mediador não poderá atuar em
processos em que figurem outros advogados da sociedade advocatícia da qual
pertença; e c) o eventual impedimento do advogado que atua como conciliador ou
mediador é de cunho pessoal, que afeta apenas o profissional, e não se estende a
sociedade. 19/01/2021 SEI/CNJ - 0978541 - Decisão
file:///C:/Users/crisf/Downloads/Decisao_0978541 (1).html 2/2 Diante dos
fundamentos jurídicos expostos, bem como do objetivo de propiciar os meios
necessários para o uso efetivo dos métodos autocompositivos de resolução de
conflitos, ACOLHO integralmente o supracitado parecer. Encaminhe-se cópia desta
decisão e do Parecer (DOC SEI 0975784) ao Núcleo Permanente de Métodos
Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
para ciência. Conselheiro HENRIQUE ÁVILA Presidente da Comissão Permanente
de Solução Adequada de Conflitos.6

Desta forma, como visto o mediador, por mais que não detenha acesso ao processo,
quanto às suas questões formais e de direito, é uma pessoa que possui o conhecimento técnico
a facilitar um diálogo positivo, com linguagem neutra, visando criar uma atmosfera propícia à
identificação das reais necessidades de ambas as partes.

6 A REGULAMENTAÇÃO DA MEDIAÇÃO

Como mencionado anteriormente, a mediação é regulamentada pela Lei número


13.140/2015, que dispõe sobre os princípios da mediação, além disso, dispõem ainda sobre os
seus objetivos, quem pode ser mediador, os procedimentos das mediações judicias e
extrajudiciais.
Bem como, os mediadores possuem o código de ética, que está regulamentada pela
Emenda número 2 de 08/03/2016 pelo CNJ, que caso cometa qualquer infração ética sofrerá
uma penalização.
Temos ainda, os Enunciados da FONAMEC – Fórum Nacional da Mediação e
Conciliação, que dão diretrizes aos mediadores, conciliadores e aos CEJUSCs, onde a Lei, as
resoluções entram em conflito.
Importante destacar, que após o Ato 47/2021, foi regulamentado o pagamento dos
mediadores que atuam nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos, através de URC

6
Sítio: https://www.tjrs.jus.br/static/2022/06/Decisao-CNJ-Mediador-Advogado.pdf

28
(Unidade Referência de Custas). Antes deste ato, os mediadores trabalhavam de forma
totalmente voluntária.
Porém, mesmo tendo regulamentado o pagamento do mediador, muitas vezes, tal
pagamento não acontece, por má-fé e até mesmo por desconhecimento dos procuradores dos
solicitantes que não carecem do benefício da assistência judiciária gratuita. Assim, é necessário
fomentar cada vez mais que este trabalho não é mais de forma voluntária.
Muito embora, os Juízes solicitem que o pagamento do mediador certificado seja
efetuado 24h. (vinte e quatro horas) antes da sessão, na prática não é o que acontece.
Isso acontece, por desconhecimento por parte dos operadores do direito, que confundem
os honorários dos mediadores com as custas processuais, que são institutos completamente
diferentes.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mediação pode ocorrer de forma pré-processual e processual, mas qual seria a


diferença?
A pré-processual, o nome já diz pré, ou seja, antes de litigar, onde é feito um pedido
junto ao CEJUSC, onde esse fará uma carta convite para as partes comparecerem à sessão de
mediação, se as partes não comparecerem não ocorrerá a multa por ato atentatório à justiça,
pois é convite.
Já o processual, é onde o juiz determina, que as partes sejam intimadas a comparecer,
se não comparecerem sofrerão, multa por ato atentatório à justiça. Importante destacar que essas
penalidades sempre constam do despacho/intimação.
Importante ainda, esclarecer que, tanto no pré-processo como no processo, se as partes
pactuarem um acordo, esse acordo após homologado pelo juiz, o mesmo tem força de título
executivo.
Em muitos CEJUSC do Brasil, a mediação é feita de forma gratuita, ou seja, o mediador
não é remunerado, mas no Estado do Rio Grande do Sul após o ato 47 /2021-P do TJRS
regulamentou a remuneração dos conciliadores e mediadores judiciais, ainda o mesmo
determina que quem for beneficiado pela AJG quem arcará com os custos da mediação é o
Estado.
É necessário compreender que, a mediação é um método alternativo de resolução de
conflitos que tem a participação de uma terceira parte, neutra e imparcial, do qual a sua função
é auxiliar e conduzir, buscando restabelecer a comunicação entre duas ou mais pessoas físicas,
29
e ou jurídicas, para estas, cheguem a um acordo que atenda aos interesses de todos os
envolvidos, encerrando assim o conflito, da melhor forma, com as alternativas encontradas.
A mediação vem crescendo como um procedimento poderoso de pacificação e
amadurecimento da sociedade, onde resgata o passado das partes, para solucionar, no presente,
de forma consensual e aceitável, o conflito de interesses entre elas surgido no passado,
preservando, no futuro, o relacionamento harmônico entre as partes.

REFERÊNCIAS

Sítio: Conciliação e mediação. Conselho Nacional de Justiça (CNJ), [Brasília], 28 maio. 2023.
Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/conciliacao-e-mediacao/>.

Sítio: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/mediacao-internacional-como-a-mediacao-e-
aplicada-em-outros-paises/601514702>.

Sitio: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/mediacao-e-conciliacao-no-novo-codigo-de-
processo-
civil/321444012#:~:text=Tal%20artigo%20define%20que%20a,partir%20do%20restabelecim
ento%20da%20comunica%C3%A7%C3%A3o>.

Sitio: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm>.

Sitio: <https://www.tjrs.jus.br/static/2022/06/Resolucao-No-125-de-2010-CNJ.pdf>.

Sítio: <https://www.tjrs.jus.br/static/2022/06/Enunciado-FONAMEC.pdf>.

Sítio: <https://www.tjrs.jus.br/static/2022/06/Decisao-CNJ-Mediador-Advogado.pdf>.

Curso de Formação de Conciliadores e Mediadores Judiciais. Acesso à justiça os métodos não


adversariais, a política nacional de solução adequada de conflitos e a ética do conciliador e do
mediador. Valéria Ferioli Lagrasta, Marina Azevedo e Arthur Napoleão. 2020.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. SAF SUL Quadra 2 Lotes 5/6 - CEP: 70070-600.
Endereço eletrônico: <www.cnj.jus.br>.

30
A VIUVEZ NA ESFERA JURÍDICA CIVIL E PREVIDENCIÁRIA

Aisha Vogel da Silva1


Bruna Luisa Schwan2
Karina Miranda3

RESUMO

O trabalho abordará questões jurídicas relevantes acerca da viuvez sob a ótica do direito civil e
do direito previdenciário. No direito civil, embora sejam várias as implicações, será discorrido
sobre a possibilidade de alteração do sobrenome após a morte do/a cônjuge. No campo do
direito previdenciário serão feitas considerações acerca da pensão por morte, seu alcance e as
principais alterações pós reforma. O tema tratado neste artigo é pouco abordado no mundo
jurídico e, por isso, merece atenção especial, haja vista que a perda do/a cônjuge tem impactos
não só na saúde psicológica e emocional do cônjuge sobrevivente, mas também reflete sobre a
sua identidade e sobre a sua vida financeira e patrimonial.

Palavras-chave: Viuvez. Direito Civil. Direito Previdenciário.

1 INTRODUÇÃO

O tema da presente pesquisa é a viuvez, sendo que a delimitação temática abrange os


seus principais desdobramentos sob o ponto de vista do direito civil e do direito previdenciário,
com análise da legislação vigente e de relevantes entendimentos jurisprudenciais relacionados
ao tema.
O objetivo do trabalho é abordar aspectos importantes acerca dos principais
desdobramentos da vida viúva após a morte do/a cônjuge no cenário atual da legislação
brasileira. A natureza da pesquisa é teórico-científica, com método de pesquisa indutivo e
dedutivo, baseando-se, principalmente, na doutrina, na legislação vigente e na jurisprudência.
Outrossim, a abordagem é de suma importância e se justifica à medida que, ainda que
pouco discutida no mundo jurídico, a viuvez é uma realidade que precisa ser enfrentada com
dignidade pelos cônjuges sobreviventes, o que engloba a garantia de direitos civis e

1
Acadêmica do Curso de Direito das Faculdades Integradas Machado de Assis, inscrita na OAB/RS 52E762. E-
mail: aishav95@gmail.com.
2
Pós-graduada em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Pós-graduanda em Planejamento Patrimonial,
Familiar e Sucessório pela Faculdade LEGALE. Bacharela em Direito pela FEMA, inscrita na OAB/RS 120.714.
E-mail: brunaschwan3@hotmail.com.
3
Pós-graduada em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário Aplicados, pelas Faculdades Integradas Machado
de Assis. Pós-graduada em Direito Previdenciário pela FGV, inscrita na OAB/RS 086.497. E-mail:
karinamiranda86497@gmail.com.
31
previdenciários, principalmente. Para tanto, é necessária não só uma atuação estatal, mas
também, e principalmente, a defesa dos direitos e prerrogativas deste grupo, dentro e fora do
poder judiciário.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O presente trabalho trata das principais questões jurídicas ligadas à viuvez, no aspecto
civil e previdenciário, tema este que tem sido destaque em decisões jurisprudenciais recentes
que serão apresentadas e estudadas ao longo deste artigo, cujas quais tiveram – e vem tendo –
impactos importantes no conceito e na acepção jurídica da viuvez.
Entretanto, antes de se adentrar no mérito, é importante relembrar que não há que se
falar em viuvez sem antes abordar o instituto do casamento. Isso porque, há muito tempo o
próprio conceito de família foi relacionado – e até mesmo condicionado – ao prévio casamento.
Nesse sentido, Maria Berenice Dias, em sua obra Manual de Direito das Famílias, aborda que:

Quando da edição do Código Civil de 1916, havia um único modo de constituição da


família: pelo casamento. A família tinha viés patriarcal, e as regras legais refletiam
esta realidade. A influência religiosa persistiu. Somente era reconhecida a família
ungida pelos “sagrados laços do matrimônio” por ser considerado um sacramento:
sagrado em sua origem. Não havia outra modalidade de convívio aceitável. O
casamento era indissolúvel. A resistência do Estado em admitir outros
relacionamentos era de tal ordem que a única possibilidade de romper com o
casamento era o desquite que não dissolvia o vínculo matrimonial e, via de
consequência, impedia novo casamento.
Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a visão matrimonializada da família
permaneceu. O desquite transformou-se em separação. Passou a existir duas formas
de romper o casamento: a separação e o divórcio. Na tentativa de manutenção da
família, era exigido o decurso de longos prazos da separação de fato, ou a identificação
de um culpado, o qual não podia propor a ação para dar fim ao casamento. (DIAS,
2021, p. 464).

O Código Civil atual, por sua vez, ainda que fortemente criticado pela interpretação
tendenciosa à concepção do casamento como regra social, estabelece que o referido instituto
nada mais é do que a comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres
entre os cônjuges. (BRASIL, 2002).
Por assim dizer, não estabelece um conceito único, certo e determinado sobre o instituto
do casamento, que, todavia, entre recortes de tentativas conceituais da doutrina majoritária,
pode ser denominado como um contrato social celebrado entre duas pessoas com laços afetivos
consolidados, que buscam a chancela estatal para a criação de uma relação matrimonial e
jurídica, mediante imposição de deveres e de direitos entre ambos.

32
A celebração do casamento, portanto, importa na assunção de obrigações pessoais e
interpessoais, de cunho familiar, financeiro, patrimonial e sucessório, cujos quais somente
deixarão de existir com a extinção do casamento, que por sua vez, poderá ocorrer com o
divórcio ou com a morte de um dos cônjuges.
Conforme dispõe o artigo 1.571 do Código Civil4, o casamento só termina quando,
dentre outras hipóteses, sobrevier a morte de um dos cônjuges, cujo fato dará ao cônjuge
sobrevivente o título de viúvo ou de viúva.
Nesse contexto, embora o dispositivo legal supramencionado mencione “pela morte”,
apenas, “[...] o casamento válido se dissolve não só pelo divórcio e pela morte real, como
também pela morte presumida do ausente, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão
definitiva (CC, arts. 1.571, § 1º, segunda parte, e 6º, segunda parte)”. (GONÇALVES, 2017, p.
262), como preceitua Carlos Roberto Gonçalves.
É neste momento, e somente aqui, que se passa a falar de viuvez, cujo termo é utilizado
para tratar do cônjuge sobrevivente e alcança todos os tipos de casamento, sem distinção de
sexo ou gênero, tampouco leva em consideração a idade, embora seja comumente associada à
velhice em razão da atual e longeva expectativa de vida.
O termo “viúvo” ou “viúva”, por outro lado, não alcança àqueles que viviam em união
estável, pois ainda que a legislação pátria tenha equiparado a união estável ao casamento para
todos os seus efeitos jurídicos, o seu reconhecimento ou a sua declaração não tem o condão de
alterar o estado civil dos cônjuges, que, por isso, mantêm o estado civil de solteiro ou de solteira.
Pois bem.
Feitas tais abordagens iniciais, a partir deste momento será discorrido acerca dos
principais aspectos jurídicos ligados à viuvez sob o plano do direito civil e do direito
previdenciário. Num primeiro momento, dentro do direito civil, será discorrido acerca do novel
entendimento que possibilita a alteração do nome do (a) viúvo (a) após a morte do cônjuge.
Após, sob a ótica do direito previdenciário, serão tratadas questões referentes à pensão
por morte, como os seus requisitos e impactos da reforma previdenciária sobre o referido
benefício.

2.1 Importantes desdobramentos da viuvez no direito civil


De início é importante contextualizar que, como bem se sabe, a celebração do casamento
implica numa série de direitos e prerrogativas às partes envolvidas, como por exemplo, a
alteração do sobrenome dos cônjuges.

4
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina: I - pela morte de um dos cônjuges; [...]. (BRASIL, 2002).
33
Nesse aspecto, sabe-se também que ao longo dos anos, e na maioria dos casos de união
heteroafetiva, foram as mulheres quem têm sofrido mais abdicações de direitos relacionados à
sua personalidade ao adotarem o apelido patronímico do cônjuge ao final do seu nome.
Rolf Madaleno, nesse diapasão, observa que:

Sempre foi da tradição brasileira a mulher assumir com o casamento o sobrenome do


marido, para unificar e identificar o vínculo matrimonial. Esse era o costume e a
consequência natural da superada chefia masculina da sociedade conjugal. O uso do
sobrenome do marido pela mulher sempre exerceu certo fascínio do sentimento de
posse do homem sobre a mulher e assim sucedeu-se até o advento da Lei do Divórcio
de 1977. A importância da identidade familiar a ser assumida pela mulher ao acrescer
ao seu nome o apelido do esposo era, para a cultura da época, de fundamental
relevância social e psíquica, tanto que o § 2º do artigo 57 da Lei dos Registros Públicos
(Lei n. 6.015/1973), autorizou a mulher solteira, judicialmente separada ou viúva, a
requerer ao juiz competente que mandasse averbar no seu registro de nascimento o
patronímico de seu companheiro, sem prejuízo dos apelidos próprios, de família,
desde que houvesse impedimento legal para o casamento, em razão do estado civil de
qualquer das partes ou de ambas. O pedido só poderia ser processado se tivesse a
expressa concordância do companheiro, e se a vida em comum fosse de cinco anos
mínimos ou se existissem filhos da união (art. 57, § 3º).

[...]

Era mais frequente a mulher casada suprimir o seu sobrenome familiar para
acrescentar ao seu prenome apenas o nome de família de seu cônjuge, salvo se seu
apelido de família fosse marcante e de tradição, quando então ela conservava o
patronímico de origem. O uso pela mulher do sobrenome do marido era ato obrigatório
do casamento, regulado pelo artigo 240 do Código Civil de 1916 e pelo artigo 70 da
Lei dos Registros Públicos. Ainda na atualidade é corriqueiro deparar com mulheres
que suprimem seu apelido de família com o casamento e também seus filhos terminam
não carregando o sobrenome materno, o que se afigura em um enorme equívoco do
ponto de vista da identidade da descendência de um casal, e cujas dificuldades se
agravam com a dissolução do matrimônio em que a mulher renuncia ao sobrenome
do marido e termina não mais se identificando com seus filhos conjugais.
(MADALENO, 2018, p. 248-249).

Atualmente, todavia, já é possível a opção pelo não acréscimo do sobrenome do


cônjuge, assim como o acréscimo do sobrenome da mulher ao nome do homem, ante o princípio
de isonomia entre os cônjuges, estabelecido pelo Código Civil de 2002. A mesma lógica ocorre
quando do fim do casamento, tanto pelo divórcio quanto pela morte de um dos cônjuges.
Nesse contexto, há algum tempo somente se falava na possibilidade de alteração do
sobrenome com a ocorrência do divórcio, quando, na grande maioria dos casos, a mulher
voltava a usar o nome de solteira, de cujo direito, inclusive, há previsão legal (art. 1.571, §2º
do CC)5.

5
Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:
34
Não havia, entretanto, posicionamento legal acerca da possibilidade de alteração do
sobrenome após a morte de um dos cônjuges, o que veio a surgir somente em 2018, no
julgamento do Recurso Especial nº 1.724.718, quando em brilhante decisão de relatoria da
Ministra Nancy Andrighi, foi reconhecido o direito de restabelecimento do nome de solteira (o)
do cônjuge sobrevivente, conforme ementa que segue:

CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESTABELECIMENTO DE NOME DE


SOLTEIRO. DIREITO AO NOME. ATRIBUTO DA PERSONALIDADE E VETOR
DE DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. RETORNO AO NOME DE SOLTEIRO
APÓS O FALECIMENTO DO CÔNJUGE. POSSIBILIDADE. QUESTÃO
SOCIALMENTE MENOS RELEVANTE NA ATUALIDADE. AUTONOMIA DA
VONTADE E DA LIBERDADE. PROTEÇÃO DO CÔNJUGE SOBREVIVENTE
DE ABALOS EMOCIONAIS, PSICOLÓGICOS OU PROFISSIONAIS.
PLAUSIBILIDADE DA JUSTIFICATIVA APRESENTADA. REPARO DE
DÍVIDA MORAL COM O PATRIARCA CUJO PATRONÍMICO FOI
SUBSTITUÍDO POR OCASIÃO DO CASAMENTO. DISSÍDIO
JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE COTEJO ANALÍTICO.

1- Ação distribuída em 10/07/2012. Recurso especial interposto em 22/07/2013 e


atribuídos à Relatora em 25/08/2016.

2- O propósito recursal é definir se o restabelecimento do nome de solteiro apenas é


admissível na hipótese de dissolução do vínculo conjugal por divórcio ou se também
seria admissível o restabelecimento na hipótese de dissolução do vínculo conjugal
pelo falecimento do cônjuge.

3- O direito ao nome é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade


e da dignidade da pessoa humana, pois diz respeito à propriedade identidade pessoal
do indivíduo, não apenas em relação a si, como também em ambiente familiar e
perante a sociedade.

4- Impedir a retomada do nome de solteiro na hipótese de falecimento do cônjuge


implicaria em grave violação aos direitos da personalidade e à dignidade da pessoa
humana após a viuvez, especialmente no momento em que a substituição do
patronímico é cada vez menos relevante no âmbito social, quando a questão está, cada
dia mais, no âmbito da autonomia da vontade e da liberdade e, ainda, quando a
manutenção do nome pode, em tese, acarretar ao cônjuge sobrevivente abalo de
natureza emocional, psicológica ou profissional, em descompasso, inclusive, com o
que preveem as mais contemporâneas legislações civis.

5- Na hipótese, a justificativa apresentada pela parte – reparação de uma dívida moral


com o genitor, que foi contrário à assunção do patronímico do cônjuge, e com isso
atingir a sua paz interior – é mais do que suficiente para autorizar a retomada do nome
de solteiro pelo cônjuge sobrevivente.

I - pela morte de um dos cônjuges;


II - pela nulidade ou anulação do casamento;
III - pela separação judicial;
IV - pelo divórcio.
§ 1 o O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção
estabelecida neste Código quanto ao ausente.
§ 2 o Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado;
salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial. (BRASIL, 2002).
35
6- Não se conhece do recurso especial interposto ao fundamento de dissídio
jurisprudencial se ausente o cotejo analítico dos julgados supostamente divergentes.
7- Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. (BRASIL, 2018).

Muito embora o caso ao fundo tratasse de pretensão de reparação de dívida moral com
o genitor da viúva, a Corte entendeu que a questão deveria ser tratada a luz de uma interpretação
constitucional de igualdade nas causas de dissolução do casamento:

Em síntese, sendo a viuvez e o divórcio umbilicalmente associados a um núcleo


essencial comum – existência de dissolução do vínculo conjugal – não há justificativa
plausível para que se trate de modo diferenciado as referidas situações, motivo pelo
qual o dispositivo que apenas autoriza a retomada do nome de solteiro na hipótese de
divórcio deverá, interpretado à luz do texto constitucional e do direito de
personalidade próprio da viúva, que é pessoa distinta do falecido, ser estendido
também às hipóteses de dissolução do casamento pela morte de um dos cônjuges.

Ademais, sob outro ângulo e, sobretudo, por tal perspectiva, estabeleceu-se a


supremacia do direito ao nome como atributo intrínseco de personalidade e da dignidade da
pessoa humana, sendo esta a máxima para o reconhecimento da possibilidade de alteração do
sobrenome após o falecimento do cônjuge, conforme trecho da decisão que segue:

Dessa forma, a despeito da inexistência de previsão legal específica acerca do tema


(eis que a lei apenas versa sobre uma hipótese de retomada do nome de solteiro, pelo
divórcio) e da existência de interesse público estatal na excepcionalidade da alteração
do nome civil (porque é elemento de constante identificação social), deve sobressair,
à toda evidência, o direito ao nome enquanto atributo dos direitos da personalidade,
de modo que este deverá ser o elemento preponderante na perspectiva do intérprete
do texto legal, inclusive porque o papel identificador poderá ser exercido por outros
meios, como o CPF ou o RG.

A partir desta decisão e de outras sob a mesma temática, especialmente do Recurso


Especial n.1.069.864, o Provimento nº 82 do CNJ passou a regulamentar a possibilidade de
alteração de patronímico nos registros civis diretamente perante o Oficial de Registro Civil,
conforme se vê da disposição do art. 1º, item 3º:

Art. 1º. Poderá ser requerida, perante o Oficial de Registro Civil competente, a
averbação no registro de nascimento e no de casamento das alterações de patronímico
dos genitores em decorrência de casamento, separação e divórcio, mediante a
apresentação da certidão respectiva.
• 1º. O procedimento administrativo previsto no caput deste artigo não depende de
autorização judicial.
• 2º. A certidão de nascimento e a de casamento serão emitidas com o nome mais
atual, sem fazer menção sobre a alteração ou o seu motivo, devendo fazer referência
no campo 'observações' ao parágrafo único art. 21 da lei 6.015, de 31 de dezembro de
1973.
• 3º. Por ocasião do óbito do(a) cônjuge, poderá o(a) viúvo(a) requerer averbação para
eventual retorno ao nome de solteiro(a). (BRASÍLIA, 2019).

36
A própria Lei dos Registros Públicos sofreu alteração recente, ocasionada pela Lei nº
14.3826, para prever a possibilidade de alteração do nome, mediante requerimento pessoal
diretamente no cartório de registro civil, conforme previsão do art. 57, inciso III. Senão veja-
se:
Art. 57. A alteração posterior de sobrenomes poderá ser requerida pessoalmente
perante o oficial de registro civil, com a apresentação de certidões e de documentos
necessários, e será averbada nos assentos de nascimento e casamento,
independentemente de autorização judicial, a fim de:

I - inclusão de sobrenomes familiares;

II - inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento;

III - exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal,


por qualquer de suas causas; [...]. (BRASIL, 1973).

A partir disso, tem-se que o entendimento trouxe não só mais segurança jurídica no
tratamento de questões análogas, mas, sem dúvida, foi um marco revolucionário na visão
conservadora do instituto do casamento e do próprio conceito de família, como abordado no
início deste trabalho.
Além do mais, consoante ensinamento de Dias, “Como é possível ao divorciado excluir,
a qualquer tempo, o sobrenome adotado quando do casamento (art. 1.578, §1º), nada justifica
que se negue tal direito ao viúvo.” (DIAS, 2021, p. 176).
Logo, ainda que evidente o avanço dos entendimentos legais vigentes, é imprescindível
que o ordenamento jurídico brasileiro prossiga se atualizando conforme a modernização das
relações sociais, adequando-se, principalmente, às novas necessidades desta sociedade plural e
multicultural.

2.2 Importantes desdobramentos da viuvez no direito previdenciário

No âmbito do direito previdenciário, quando se fala de evento ligado à morte, é comum


a abordagem dos benefícios previdenciários afetos, em especial da pensão por morte, a quem
ela é devida e quais os seus requisitos.

6
Dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp); altera as Leis nºs 4.591, de 16 de dezembro de
1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.935,
de 18 de novembro de 1994, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 11.977, de 7 de julho de 2009,
13.097, de 19 de janeiro de 2015, e 13.465, de 11 de julho de 2017; e revoga a Lei nº 9.042, de 9 de maio de 1995,
e dispositivos das Leis nºs 4.864, de 29 de novembro de 1965, 8.212, de 24 de julho de 1991, 12.441, de 11 de
julho de 2011, 12.810, de 15 de maio de 2013, e 14.195, de 26 de agosto de 2021.
37
A priori, considerando que a temática do presente artigo trata da viuvez, insta mencionar
que as responsabilidades de um cônjuge para com o outro iniciam no casamento e compreendem
deveres como os descritos no art. 1.566, inciso III do CC, in verbis.

Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges:


I - fidelidade recíproca;
II - vida em comum, no domicílio conjugal;
III - mútua assistência; [...]. (BRASIL, 2002).

Ou seja, desde a celebração do matrimônio, ambos os cônjuges devem assistência


mútua, o que não se supera mesmo após a morte, pois da viuvez decorre o direito do cônjuge à
percepção da pensão por morte, que no contexto do presente artigo, será considerada, a viuvez,
em relação à mulher, somente.
Nesse sentido, Maria Helena C. A. Ribeiro, em sua obra Trabalhador Rural Segurado
Especial, conceitua “[...] a pensão por morte como o benefício de prestação continuada, cuja
finalidade é suprir a falta do segurado que, até então, provia total ou parcialmente as
necessidades de seus dependentes, substituindo a remuneração do segurado falecido.”
(RIBEIRO, 2023, p. 243).
A concessão do referido benefício está regulamentada pela Lei nº 8.213/1991, conhecida
popularmente como “LBPS”, iniciando em seu artigo 747, o qual prescreve que a pensão por
morte é devida ao conjunto de dependentes do segurado que vier a óbito, estando, este último,
aposentado ou não.
Ocorre que, a morte não gera, por si só, o automático reconhecimento do direito à
concessão do benefício, pois é necessária, além da comprovação do óbito do indivíduo, a
comprovação da condição de dependência do cônjuge sobrevivente e a condição de segurado
do de cujus.
Sobre isso, cumpre destacar que a questão da condição de segurado foi tema de
importante discussão, resultando na Súmula 416 do Superior Tribunal de Justiça, a qual
estabelece que “É devida pensão por morte aos dependentes do segurado que, apesar de ter
perdido essa qualidade, preencheu os requisitos legais para a obtenção de sua aposentadoria até
a data do seu óbito.” (BRASIL, 2009).

7
Art. 74. A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou
não, a contar da data:
I - do óbito, quando requerida em até 180 (cento e oitenta) dias após o óbito, para os filhos menores de 16
(dezesseis) anos, ou em até 90 (noventa) dias após o óbito, para os demais dependentes;
II - do requerimento, quando requerida após o prazo previsto no inciso anterior;
III - da decisão judicial, no caso de morte presumida. (BRASIL, 1991).
38
Assim, mesmo tendo perdido a qualidade de segurado, se ao tempo do óbito já possuía
o direito a aposentadoria, a pensão é devida aos dependentes.
Desse modo, ao encaminhar o requerimento administrativo, a viúva deve anexar o
comprovante do óbito de seu marido, assim como deve comprovar a sua dependência na
condição de cônjuge por meio de certidão de casamento ou pela própria declaração de
dependência já registrada perante o INSS ou perante a Receita Federal, ou, ainda, mediante
outros documentos capazes de provar a relação existente entre eles.
A propósito, é importante relembrar que em época longínqua, era habitual constar na
carteira de trabalho do marido a anotação previdenciária indicando a dependente.
Sobre a comprovação da dependência financeira, é relevante esclarecer também que
mesmo após a separação e mesmo tendo a mulher renunciado ao direito de alimentos, caso seja
comprovada a sua necessidade econômica posterior, haverá, ainda assim, direito à pensão
previdenciária, conforme entendimento sumulado pelo STJ8.
De outra banda, acerca da data inicial do benefício, sabe-se que, em tese, a pensão por
morte é devida desde o óbito do segurado, ocorre que, a data de entrada do requerimento
administrativo tem implicações nessa questão, conforme previsão dos incisos do artigo 74 da
Lei 8.213/91, já transcrito.
De acordo com o referido diploma, se a viúva realizar o pedido após o prazo de 90 dias
do falecimento do seu cônjuge, o benefício passa a ser devido somente a partir da data da
realização do pedido, não tendo direito a reaver esse período entre a data do óbito e o pedido.
Ainda, vale mencionar que, caso o falecido tenha filhos ou outro dependente, o valor da
pensão será rateado igualmente entre todos e, caso ocorra habilitação tardia de qualquer um dos
dependentes, este possui direito ao recebimento da pensão por morte a partir da habilitação, não
retroagindo à data do óbito ou a do requerimento de outro dependente.
Já no que se refere aos valores da pensão por morte, esta é dividida em “cotas” e o
cálculo é feito com base em 50% da remuneração do de cujus, sendo que a este se somam 10%
a mais por dependente. A fim de exemplificar, se a viúva e o falecido não possuíam filhos e
sendo somente ela a dependente, o valor do benefício será equivalente a 60% da remuneração
que o cônjuge falecido percebia.

8
Súmula 336-STJ: A mulher que renunciou aos alimentos na separação judicial tem direito à pensão previdenciária
por morte do ex-marido, comprovada a necessidade econômica superveniente. (BRASIL, 2007).
39
De outro modo, caso esse valor seja inferior a um salário mínimo, por força do artigo
201, §2º da Constituição Federal9, automaticamente, o valor a ser percebido pelo dependente
será igual ao salário mínimo vigente.
Essa nova forma de cálculo da pensão por morte tem sido vista como um retrocesso
social, uma vez que retira do segurado dependente o direito social reconhecido na Constituição
da pensão como de natureza alimentar.
Ainda, conforme José Higídio, na sua obra STF suspende julgamento sobre cálculo de
pensão por morte antes da aposentadoria, publicado no Conjur:

[...] o cálculo da pensão com base nas novas regras da aposentadoria por incapacidade
não reflete proporcionalmente o valor sobre o qual foram descontadas as contribuições
previdenciárias. Além disso, a regra violaria o direito dos dependentes a uma
subsistência digna. (HIGÍDIO, 2023).

Tanto é que a discussão virou tema da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7051,
em que o Ministro Luís Roberto Barroso Dias, no mesmo sentido das anteriores manifestações
de Dias Toffoli e André Mendonça, se manifestou pela constitucionalidade da regra, salientando
que a modificação apresentada pela reforma não se configura como violação da Constituição
Federal.
Em suma, o voto afirma que somente seria inconstitucional caso o valor fosse inferior a
um salário mínimo, o que é vedado, ou ainda, se tratasse de única fonte de renda do dependente.
No voto afirma que:

É preciso ter em conta que as pensões por morte não visam à manutenção do padrão
de vida alcançado pelo segurado falecido. Também não têm natureza de herança, uma
vez que não compõem o patrimônio do instituidor. Em realidade, elas são um alento
– normalmente temporário – para permitir que os dependentes reorganizem-se
financeiramente, busquem novas alternativas e tenham condições, afinal, de prover
recursos suficientes à sua própria subsistência. Não há que se falar, portanto, em
ofensa à vedação ao confisco, ao direito de propriedade ou à proporcionalidade.
(BRASIL, 2021).

Em outro trecho, Barroso afirma, ainda, que a modificação do valor da pensão por morte
não se configura como violação do princípio da vedação ao retrocesso social, destacando a

9
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter
contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e
atenderá, na forma da lei, a:
[...]
§ 2º Nenhum benefício que substitua o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho do segurado terá valor
mensal inferior ao salário mínimo. (BRASIL, 1988).
40
necessidade de se avaliar a modificação fática e que atualmente a realidade é diversa daquela
quando a previdência social foi pensada originalmente.
Nesse sentido:
O princípio da vedação ao retrocesso, que ainda desperta controvérsias na doutrina,
não pode ser interpretado como uma proibição a qualquer atuação restritiva do
legislador em matéria de direitos fundamentais, sob pena de violação ao princípio
democrático. Só permitir que se modifique a regulamentação de um direito
fundamental para ampliar o seu alcance, cristalizando-se tudo o mais, impõe amarras
excessivas ao poder de conformação legislativa e limita exageradamente o espaço de
deliberação democrática. E não se pode esquecer que muitas das escolhas feitas na
Previdência Social tiveram como pano de fundo um quadro de abundância de
recursos, que já não se põe mais. A mudança nas circunstâncias fáticas não pode ser
desconsiderada na interpretação constitucional. O Direito tem, sim, a pretensão de
conformar a realidade, mas também sofre a influência dos aspectos fáticos que se
apresentam diante de cada caso. (BRASIL, 2021).

O julgamento foi suspenso com o pedido de vistas do Desembargador Ricardo


Lewandowski e até a presente data (29 de maio de 2023) ainda não foi retomado.
À vista disso e considerando o contexto atual, é possível identificar um endurecimento
do olhar para o dependente, sendo que com relação à mulher existe um prejuízo ainda maior,
visto que na grande maioria dos casos, as mulheres abdicaram do seu direito de se consolidar
no mercado de trabalho para dar atenção aos afazeres domésticos e aos filhos.
Essa ainda é um a realidade de grande parte das mulheres, razão pela qual o
reconhecimento da inconstitucionalidade da nova regra de apuração do valor da pensão por
morte, conforme estabelecido pela EC 13/2019, se mostra verdadeiramente essencial à garantia
dos direitos mínimos deste público.
Levando em consideração esse aspecto, é possível também afirmar que existe uma
grande necessidade de reflexão e de colocar em pauta questões previdenciárias como esta, pois
é necessário que o direito ande no sentido da ampliação dos direitos dos segurados e não o
contrário.
Assim, é sempre mais necessária a discussão não somente dos aspectos ligados à pensão
por morte, mas também com relação a todos os outros benefícios previdenciários que de alguma
forma foram afetados negativamente pela alteração legislativa incluída pela Emenda
Constitucional nº13 de 2019.

41
3 CONCLUSÃO

Conforme esboçado acima, a viuvez possui uma série de implicações na vida do cônjuge
sobrevivente, que, em muitos casos, e principalmente nos das viúvas mulheres, refletem em
grandes mudanças no estilo de vida, na organização da vida financeira e patrimonial e na própria
identidade pessoal.
Neste último aspecto, não há como negar que a possibilidade de alteração do sobrenome
após a morte do cônjuge consiste num verdadeiro avanço na luta pela liberdade e pelo
empoderamento feminino social, pois significa, acima de tudo, o reconhecimento do nome
como um atributo inerente da personalidade e, por assim ser, um direito personalíssimo,
intrinsecamente ligado à dignidade humana.
No que se refere à pensão por morte, em que pese o aparelhamento jurídico e
jurisprudencial atual, tem-se que há muito que se percorrer para que o direito de todos
brasileiros, considerando, aqui, todas as classes sociais, seja observado. É necessário, sim, que
reformas legais sejam feitas, porém, é inadmissível que o “avanço legal” signifique um
“retrocesso social”.
Dessa forma, para concluir, é importante enfatizar que o ordenamento jurídico brasileiro
caminha diariamente para entendimentos revolucionários em todos os campos, e deve assim
prosseguir, a fim de que, em tempos vindouros, a igualdade social não seja um objetivo a ser
alcançado, mas um bem jurídico preservado por toda a sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

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Nacional de Justiça. Brasília, DF, 2019. Disponível em: <
https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2973>. Acesso em: 26 mai. 2023.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF:


Senado Federal, 1988. Disponível em: <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso o em: 28 mai.
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BRASIL, Lei n. 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá


outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 31 de dez 1973.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm>. Acesso
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BRASIL, Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da


Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil,

42
Brasília, 24 de jul. 1991. Disponível em: <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213compilado.htm>. Acesso em: 28 mai. 2023.

BRASIL, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da
República Federativa do Brasil, Brasília, 10 de jan. 2002. Disponível em: <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 26. mai.
2023.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 336. In: Enunciados das súmulas do STJ.
Brasília, 16. dez. 2009. Disponível em: <
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STJ_asc.pdf>. Acesso em: 28. mai. 2023.

BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Súmula n. 416. In: Enunciados das súmulas do STJ.
Brasília, 16. dez. 2009. Disponível em: <
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Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=Resp+1.724.718&aplicacao=processos.
ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO>. Acesso
em: 25. mai. 2023.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 7.051. 2021.


Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6320471>. Acesso
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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador.
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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 6. 14. ed. São Paulo: Saraiva,
2017.

HIGÍDIO, José. STF suspende julgamento sobre cálculo de pensão por morte antes da
aposentadoria. Consultor Jurídico – CONJUR. 28. fev. 2023. Disponível em: <
https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/stf-suspende-pensao-morte-antes-
aposentadoria#:~:text=Conforme%20o%20artigo%2023%20da,dez%20pontos%20percentuai
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MADALENO, Rolf. Direito de família. 8. ed., rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense,
2018.

RIBEIRO, Maria Helena Carreira Alvim. Trabalhador rural segurado especial: legislação,
doutrina e jurisprudência. 5. ed. – Curitiba: Alteridade Editora, 2023.

43
TRABALHO E GÊNERO: OS REFLEXOS DA VIOLÊNCIA COMETIDA
CONTRA MULHERES NA RELAÇÃO DE EMPREGO

Alana Menezes Batista1


Cristiane Terezinha Rodrigues2

RESUMO
A violência contra a mulher, embora esforços para sua eliminação, ainda é evidente na
sociedade. A mulher vítima, além de sofrer com as consequências físicas e psicológicas da
agressão, ainda precisa ocupar-se com outros problemas decorrentes desse fato. Desse modo,
estudo se propões a refletir sobre a repercussão da violência sofrida pela mulher na relação de
emprego. Para seu desenvolvimento utilizou-se do método dedutivo, apoiando-se em pesquisa
bibliográfica a fim de elucidar o tema. Para tanto, primeiramente apresentou-se uma
contextualização da desigualdade de gênero e suas consequências nas vivências femininas,
destacando aquelas voltadas ao mercado de trabalho e posteriormente abordando a repercussão
da violência especificamente na relação de emprego. Para efeito de conclusão, pode-se afirmar
que os reflexos da violência doméstica e familiar cometida contra a mulher atingem seu
ambiente laborativo, de forma a prejudicá-la no desempenho de suas funções e na manutenção
de emprego, sendo fundamental que os empregadores adotem medidas para a eliminação da
violência e a emancipação dessas trabalhadoras, as quais foram sugeridas no último capítulo.

Palavras-chave: Desigualdade de gênero. Violência contra a mulher. Relação de emprego.

1 INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher apresenta-se como um problema social em evidência


hodiernamente. A violência sempre fez parte da história da mulher, porém, por convenções
sociais de determinação de diferentes papéis para homens e mulheres, não era posta em
discussão.
Com a evolução das sociedades, a mulher passou a reivindicar seus direitos na busca da
igualdade de gênero. No entanto, embora todos os esforços dispendidos, ainda hoje, a
desigualdade de gênero se faz presente e impacta a vida das mulheres em diversos setores. A
desigualdade de gênero por vezes é apontada como fator justificador da violência contra a
mulher.

1
Advogada, OAB/RS 123.869. Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo. Especialista em Direito e
Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2022). E-mail: 158770@upf.br.
2
Advogada, OAB/RS 131.688. Mestranda em Direito na Universidade de Passo Fundo, Bolsista CAPES do PPGD
UPF. Especialista em Direito das Mulheres pela Uni Dom Bosco São Paulo (2023). E-mail 175574@upf.br.
44
A violência contra a mulher influencia fortemente a vida da mulher como um todo, suas
relações familiares e de amizade, sua saúde física e psicológica, bem como, suas atividades
profissionais.
Nesse sentido, o presente estudo, a partir de pesquisa bibliográfica, objetiva refletir
sobre o impacto da violência contra a mulher na relação de emprego apresentando uma breve
contextualização sobre a desigualdade de gênero e suas consequências e posteriormente
discorrendo sobre a repercussão da violência cometida contra à mulher na relação de emprego,
com o propósito de analisar o fenômeno social das violências de gênero e o impacto dessas na
jornada profissional feminina.

2 CONTEXTUALIZANDO A DESIGUALDADE DE GÊNERO

A desigualdade de gênero, é tema recorrente nos debates da atualidade. Esse fenômeno


vem ocorrendo, pois, a mulher passou a reivindicar seu espaço na sociedade. Quando analisado
o papel da mulher na história, identifica-se a sua condição de submissão e inferioridade. Não
por escolha própria, mas como consequência da organização social patriarcal que distribuiu
atribuições sociais distintas para homens e mulheres.
A cultura patriarcal está arraigada na sociedade, por um longo período ditou as regras
de organização social, sem oposições. Porém, com o passar do tempo, a mulher, gênero
“submisso” passou a lutar por mudanças, pois, não aceitava mais os papéis a ela designados.
O patriarcado, ainda é muito discutido e está fundado numa ideologia de superioridade
masculina. Segundo essa ideologia, o gênero masculino ocupa o principal posto na estrutura
familiar e a organização social. Portanto, ao homem é destinado os papéis de domínio, enquanto
às mulheres e filhos os de submissão e obediência.
Por muito tempo a mulher foi considerada inferior e incapaz por conta da visão do
patriarcado. E, embora algumas mudanças tenham acontecido, ainda há muitos resquícios desse
comportamento na atualidade.
Para Bianchini (2021, p. 80), os papéis determinados para o homem e para a mulher na
sociedade são diferentes e não proporcionam igualdade:

Os papéis sociais atribuídos a homens e a mulheres são acompanhados de códigos de


conduta introjetados pela educação diferenciada que atribui o controle das
circunstâncias ao homem, o qual as administra com a participação das mulheres, o
que tem significado ditar-lhes rituais de entrega, contenção de vontades, recato sexual,
vida voltada a questões meramente domésticas, priorização da maternidade. Resta tão
desproporcional o equilíbrio de poder entre os sexos, que sobra uma aparência de que
não há interdependência, mas hierarquia autoritária.

45
No decorrer da história, identifica-se uma distribuição de tarefas que destina a mulher
aquelas do âmbito provado (domésticas) e para o homem, as do âmbito público. Observa-se
então, uma desvantagem para o gênero feminino, o homem é quem atua no espaço público, ou
seja, nos espaços de poder. É ele que vai para o mercado de trabalho e dispõe dos recursos
materiais e financeiros e, portanto, detém o poder de decisão. Quem tem o poder de decisão,
também tem o poder de impor sua vontade aos demais membros da família.
Essa estrutura de organização familiar se reflete na sociedade e os fenômenos se
repetem. Ou seja, o homem detém os papéis mais importantes e mais valorizados, enquanto as
mulheres os secundários de menor valor.
Esse fenômeno mostra-se resistente às mudanças pois, desde criança todos são educados
a diferenciar as pessoas pelo gênero associando-as aos seus papéis. Como consequência, essa
formulação social é perpetrada e essas ‘regras’ convencionadas são repetidas de geração em
geração.
Em qualquer período da história, verifica-se que o homem sempre teve direitos de
participação nas decisões sociais. A eles, sempre foi assegurado direitos políticos, direito ao
ensino, ao trabalho entre outros, enquanto às mulheres era destinado o papel de cuidar da casa
e dos filhos.
Nesse sentido, Benvegnú e Faria (2022, p. 54) apontam:

A mulher na sociedade possui um histórico de assimetria em relação ao homem, de


modo que o patriarcado – responsável pela dominação masculina – foi durante muito
tempo incontestavelmente aceito por ambos os sexos, evidenciando a formação de
dois polos: de dominação, pelo homem; e de submissão, pela mulher.

A desigualdade de gênero, em uma sociedade sexista e patriarcal permeia toda a


convivência humana. Nesta mesma perspectiva, Saffioti (2015) refere que as relações
patriarcais, suas hierarquias e sua estrutura de poder contaminam a sociedade como um todo, o
direito patriarcal ultrapassa as fronteiras da sociedade civil e atinge também o Estado.
Outro ponto importante, é que o trabalho doméstico, embora custoso para quem tem que
desempenhar, nunca foi, nem atualmente é remunerado, esse fator eleva o homem a uma
posição de superioridade financeira, potencializando assim a dependência feminina e limitando
seu poder de decisão.
Toda essa problemática da dependência feminina está intrínseca na cultura da
humanidade. Segundo OXFAM (2021) “algumas causas da desigualdade de gênero abrangem
a existência e perpetuação de conceitos normativos, que reforçam a necessidade de rotular

46
pessoas e estabelecer uma divisão”. Isso já é identificado na educação das crianças que reforça
essa diferença. Outros fatores que também dificultam a conquista da igualdade de gênero são:
a falta de representatividade, a superioridade econômica, as questões sociais.

2.1 Consequências da desigualdade de gênero para as mulheres

Todas as relações sociais são afetadas pela desigualdade de gênero. Essa desigualdade
é utilizada para reforçar a falta de representatividade feminina nos mais diversos espaços, para
justificar a violência contra a mulher e para justificar as diferenças nos cargos e salários no
mercado de trabalho.

Violência contra a mulher

Essa característica social, advinda do patriarcado, é um dos motivos para a aceitação


como normal de situações de violência contra mulher. Embora inaceitável, ainda é muito
comum a justificação de atitudes de violência nas questões de gênero.
Segundo Bianchini (2021) a violência de gênero resulta da relação de poder de
dominação do homem e subordinação da mulher. A violência de gênero, independentemente
do tipo, causa danos para além dos danos físicos, a violência deixa marcas que por vezes,
impedirão a mulher de prosseguir e prosperar contribuindo para que a desigualdade continue
assim como a dominação masculina.

Falta de representatividade

A representatividade está relaciona a presença das mulheres nos postos de poder. A falta
da representatividade nos diversos espaços também reforça a ideia da inferioridade feminina,
na política por exemplo, onde a representatividade feminina poderia trazer grandes benefícios,
influenciando a mudança do contexto discriminatório em função do gênero, não há espaço para
as mulheres.
O Brasil, ainda não conseguiu alcançar resultados satisfatório quando se trata da
representatividade feminina na política, por exemplo. Consoante dados da União Parlamentar,
organização internacional responsável pela análise dos parlamentos mundiais, no ano de 2023,
o Brasil ocupa a posição 131º lugar no ranking que analisa a participação feminina na política.
Embora se identifique alguma evolução no sentido de determinar maior participação das
mulheres na política, como se observa, as soluções apresentadas ainda não são satisfatórias e
não mudam muito o cenário.
47
Nesse sentido, a mudança de pensamento é necessária e urgente, visto que, a
representatividade é fundamental para que ocorra o reconhecimento do papel da mulher na
sociedade. É imprescindível que a mulher ocupe todos os espaços que são ocupados pelo
homem de maneira igualitária, pois somente com a participação essa participação as demandas
femininas serão levadas em consideração, contribuindo para o alcance da igualdade.

Desigualdade no mercado de trabalho


No mercado de trabalho, também a desigualdade é experimentada pela mulher,
principalmente quando se refere a questão salarial. Independente da formação a mulher recebe
salários inferiores aos dos homens que atuam nos mesmos cargos. Ademais, as mulheres
ocupam menos cargos de liderança.
Conforme Fernandez (2019, p. 79) nesses casos tem-se a segregação vertical:

A segregação vertical, por sua vez, ocorre quando a maioria dos trabalhadores que
ocupam os postos mais elevados de determinada profissão é formada por homens, ao
passo que a maioria dos trabalhadores que ocupam os escalões mais baixos é composta
por mulheres. Grosso modo, em todos os ramos profissionais observa-se que, à
medida que se ascende na escala profissional, aumenta a presença masculina.

Também, segundo Fernandez (2019) o número menor de mulheres em cargos mais altos
e melhores remunerados acontece por uma série de fatores, dentre eles obrigações relacionadas
ao lar e aos filhos imputadas as mulheres, preconceito em relação a capacidade feminina,
mesmo elas tendo maior grau de escolaridade e a sub-representação feminina nos altos postos
de comando das carreiras executivas, acadêmicas, políticas, entre outros.
Nessa perspectiva, ressalta-se que a violência, socialmente aceita, também é fator que
impacta diretamente o desenvolvimento profissional da mulher. A mulher que sofre a violência,
além de não conseguir desempenhar eficientemente seu ofício, também não encontrará amparo
do empregador para que ao mesmo tempo que esteja protegida, mantenha seu posto de trabalho,
condição importante para sua emancipação e necessária para a saída de sua condição de vítima
de violência.

3 A REPERCUSÃO DA VIOLÊNCIA COMETIDA CONTRA MULHERES NA


RELAÇÃO DE EMPREGO

No capítulo anterior foi tratado sobre a contextualização da violência de gênero, sendo


observada suas consequências. Diante disso, identificou-se que no mercado de trabalho, a
mulher vítima de violência, seja ela física, sexual, psicológica, patrimonial ou moral, enfrenta
as consequências no desempenho laborativo de seus ofícios e, na grande maioria dos casos, são
48
vítimas pela conduta do agressor, mas também pela ausência de proteção do empregador. Desta
forma, nesse capítulo, será estudado acerca da repercussão da violência cometida contra às
mulheres na relação de emprego, a fim de averiguar o fenômeno social das violências de gênero
e o impacto dessas na jornada profissional feminina.
Nesse seguimento, sabe-se que os papéis tradicionais de gênero foram socialmente
construídos ao longo da história, com notória supremacia masculina. Com isso, dentro da
relação de emprego, percebe-se que o labor feminino ocupa uma posição discriminatória quanto
a situação de empregos, salários e cargos ao ser comparado com a força de trabalho dos homens.
Sendo assim, o trabalho está no centro das relações de gênero e, a partir disso, a
problemática da violência cometida contra as mulheres repercute no meio ambiente laborativo
a na efetiva proteção do trabalho da mulher de forma significativa.
Nesse contexto, o emprego e as violências cometidas contra às mulheres são duas
questões importantes para alcance da igualdade entre os sexos. Primeiro porque encontrar um
emprego ou conservar o seu é uma condição primordial da emancipação da mulher vítima de
violência doméstica. Em segundo lugar porque, a violência em relação às mulheres é uma
manifestação das relações de força historicamente desiguais entre o feminino e o masculino que
levou a dominação e à discriminação das mulheres pelos homens, privando a emancipação
feminina (KARZABI; LEMIÉRE, 2019, p. 154).
Para fins de conceituação, a violência é um ato intencional que causa danos ou
intimidação moral a outra pessoa. Tal conduta repercute na violação da autonomia, atinge a
integridade física ou mental das vítimas e reforça uma ideia equivocada de dominação. Atinente
a questão da mulher, a violência é caracterizada como qualquer conduta ou ação, baseada no
gênero, que cause, morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como no privado (SILVA, 2016).
O Brasil, por sua vez, é lembrado pelas altas taxas de violência doméstica. De acordo
com os dados sobre a violência, o Brasil aparece como um dos países onde mais ocorrem casos
de violência contra a mulher3.
Aliado a isso, Zini (2021) reforça que a violência contra as mulheres costumeiramente
ocorre quando a personalidade feminina é desenvolvida e ganha espaço social, representando
uma ameaça e, principalmente um desafio à autoridade masculina. Ou seja, a violência é a chave
para o controle das mulheres.

3
Artigo 19. DADOS SOBRE FEMINICÍDIO NO BRASIL. Disponível em: <https://artigo19.org/wp-
content/blogs.dir/24/files/2018/03/Dados-Sobre-Feminic%C3%ADdio-no-Brasil-.pdf>. Acesso em: 04
jun. 2023
49
Esta construção traz uma reflexão sobre a forma como é encarada a violência no meio
ambiente de trabalho, uma vez que notoriamente as violências atingem as mulheres de maneira
maciça, qualquer que seja sua idade ou meio social (KARZABI; LEMIÉRE, 2019, p. 154). Em
outras palavras, a violência não escolhe classe social, idade, raça ou etnia, sendo apenas, comum
à grande maioria de mulheres.
Para Buckley (2000), a violência é uma praga que se espalha pelo mundo, sem
circunstâncias definidas, sem distinção de classe econômica, idade e raça. Nesse sentido, a
violência é um fenômeno democraticamente distribuído (SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995).
De acordo com Cerqueira, Moura e Pasinato (2019), estima-se que cerca de 1,3 milhões
de mulheres sofrem violência doméstica no Brasil, e mesmo que indiretamente, essas situações
têm forte influência no desenvolvimento do país.
Nesse ínterim, violências cometidas contra mulheres ocasionam perturbações em seus
estudos ou em seu trabalho. Deste modo, devido a maior autonomia financeira, também se
constatou aos longos dos anos, aumento de agressões, pois os companheiros começaram a ficar
apreensivos, visto que as mulheres com maior inclusão no mercado de trabalho, conseguiriam
sustentar-se sozinha, não havendo a necessidade de submeter-se as possíveis violência dentro
de seus lares. Todavia, o aumento das agressões decorrentes desses fatos, resulta no abandono
ou faltas consecutivas das vítimas em seus empregos (CARVALHO; OLIVEIRA, 2017).
Nessa lógica, o comportamento do agressor atua progressivamente no isolamento e na
desvalorização da mulher vítima, também se observa o controle, a possessão e a vigilância, por
meio do controle financeiro, da inversão da culpa e do medo que o agressor exerce sobre a
vítima. Ainda, em muitos casos, ocorre ameaças, intimidações, golpes de violências física,
patrimoniais ou sexuais em relação à mulher (KARZABI; LEMIÉRE, 2019, p. 156).
Ainda, Carvalho e Oliviera (2017) chamam a atenção para que outras consequências da
violência doméstica no mercado de trabalho, entre elas, o absenteísmo, atrasos no trabalho,
redução momentânea de produtividade e de capacidade laborativa e perda de emprego.
Neste aspecto, o Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher (2016)4, salienta que o
emocional se deteriora ainda mais que a presença de hematomas físicos, influenciando na
produtividade das mulheres vítimas de violência e na qualidade dos seus serviços, elementos
chaves para desempenhar suas respectivas funções no mercado de trabalho.

4
NÚCLEO ESTADUAL DE GÊNERO PRÓ-MULHER. Dialogando nas empresas: Prevenção da violência
doméstica contra a mulher. Disponível em < https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Comissoes/CSP/projetos-
boaspraticas/segurancapublica/Projeto_Dialogando_nas_Empresas/2._APRESENTA%C3%87%C3%83O.pdf>.
Acesso em: 04 jun. 2023
50
É neste ponto, quando abordamos a temática laborativa, que a independência financeira
das mulheres é vital para o rompimento do ciclo da violência. Pois, em muitos casos, é
justamente através da dominação econômica que os agressores mantêm suas vítimas que
demonstram excessiva dependência financeira do parceiro.
Todavia, são justamente essas violências que afetam de forma significativa a vida
profissional das mulheres, ocasionando abstenção, diminuição da produtividade dentro das
empresas e até mesmo desistência da procura por uma posição mais digna através de melhores
condições de trabalho. Em concomitância, a falta de emprego também impacta na violência
sofrida por essas mulheres.
Torna-se oportuno destacar que quando o efeito da violência doméstica chega até o
ambiente coorporativo, mulheres nestas situações são vitimizadas duas vezes, passando a sofrer
também com a precarização do trabalho e, frequentemente, com a perda de seus ofícios, o que
dificulta o rompimento do ciclo da violência, uma vez que altera a autonomia financeira
feminina.
Com isso, evidencia-se a necessidade de um maior acolhimento e uma efetiva proteção
ao trabalho da mulher vítima de violência. Aqui, cita-se a experiência realizada pela Associação
Objectif Emploi de Saint-Denis que acolhe as pessoas a procura lhe emprego, e nos anos de
2010-2011, realizou um questionamento junto as mulheres acompanhadas sobre as violências
sofridas. Da pesquisa, constatou-se que enquanto uma ausência ou um atraso antes eram
sancionados pelos empregadores, essa mesma situação foi modificada para ser acompanhada
por apoio e felicitação à mulher vítima de violência por ter conseguido ir até o trabalho
(KARZABI; LEMIÉRE, 2019, p. 160).
Percebe-se, então, o papel essencial dos empregadores. Afinal, a luta contra a violência
doméstica é comum a todos, devendo a sociedade e o Estado atuar fortemente na eliminação,
bem como propiciar a emancipação dessas mulheres através de informação e campanhas de
conscientização da importância da denúncia da ocorrência de violência doméstica. Ademais,
parcerias com instituições públicas, ongs e redes de atendimento a mulheres vítimas de
violência podem ser realizadas pelas empresas, a fim de construir uma rede de apoio, cumprindo
assim os empregadores também com sua responsabilidade social.

51
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por finalidade averiguar as questões de gênero no mercado


laborativo, de forma a compreender as quais são as consequências da violência doméstica e
familiar no mercado de trabalho em que a vítima está inserida. Ocorrendo no primeiro capítulo
a contextualização das questões de gênero, no qual se evidenciou a desigualdade de gênero
presente em nossa sociedade, caracterizada pela falta de representatividade de mulheres em
diversos espaços públicos, mas também marcada pela violência contra a mulher e pelas
desigualdades enfrentadas cotidianamente no mercado de trabalho.
A partir disso, no segundo capítulo, após a análise da repercussão da violência cometida
contra mulheres na relação de emprego, respondeu-se a problemática com a necessidade de
adoção de medidas pelos empregadores de forma a proteger a trabalhadora vítima de violência
doméstica e familiar. Tal conclusão fundamentou-se na constatação da preocupante repercussão
da violência no mercado de trabalho, de forma a prejudicar a vítima. Nesse sentido, observou-
se que a emancipação financeira das vítimas, é fundamental para rompimento do ciclo da
violência e, desta forma, o papel das empresas é vital, de forma a efetivamente assegurar a
proteção do trabalho da mulher. Por isso, sugeriu-se que os empregadores efetivem sua
responsabilidade social e atuem promovendo e participando de campanhas de conscientização
acerca da importância de denúncia para que às trabalhadoras tenham acesso à informação e
conhecimento dos seus direitos, bem como que às empresas busquem parceiras com órgãos
públicos e privados para construir uma rede de apoio à vítima.
Nesse sentido, confirmou-se a hipótese positiva de que a violência doméstica repercute
no mercado de trabalho das vítimas, sendo possível afirmar juridicamente que a violência causa
prejuízos ao desempenho dos ofícios das trabalhadoras, tornando necessária a implementação
de medidas por parte das empresas para a eliminação da violência e emancipação das vítimas.

REFERÊNCIAS

BIANCHINI, A. Lei Maria da Penha: Lei n. 11.340/2006: Aspectos criminais e políticas


públicas de enfrentamento à violência de gênero. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021.

BENVEGNÚ, A.; FARIA, J. P. Violência de gênero e assimetria do poder intrafamiliar:


perspectivas a partir do princípio do superior interesse da criança e do adolescente. Revista de
Direito de Família e Sucessão. Belo Horizonte, v. 8, n.1, p. 53 – 67, jan./jul. 2022.

52
CARVALHO, J. R.; DE OLIVEIRA, V. H. Por que os economistas devem estudar a violência
doméstica? In.: ÁVILA, Thiago Pierobom de. Reflexões sobre políticas de prevenção à
violência de gênero contra mulheres e meninas: debates no brasil e na Austrália. Brasília: ONU
Mulheres, 2021. p. 270.

CERQUEIRA, Daniel.; MOURA, Rodrigo.; PASINATO, Wânia. Participação no mercado de


trabalho e violência doméstica contra as mulheres no Brasil: texto para discussão. 2501.ed.
Rio de Janeiro: IPEA, 2019. p. 38.

FERNANDEZ, B. P. Teto de vidro, piso pegajoso e desigualdade de gênero no Mercado de


trabalho brasileiro À luz da economia feminista: por Que as iniquidades persistem? Revista
Cadernos de Campo. Araraquara. n. 26, p. 79-103, jan./jun. 2019.

IPU Parline. Monthly ranking of women in national parliaments. Disponível em:


https://data.ipu.org/women-ranking?month=4&year=2023. Acesso em: 29 abr. 2023.

KARZABI, I.; LEMIÉRE, S. Acesso ao emprego e violências cometidas contra mulheres. In:
MARUANI, Margaret. Trabalho, logo existo respectivas feministas. FGV Editora: Rio de
Janeiro, 2019. V.1. p. 154-165.

OXFAM Brasil. Desigualdade de gênero: causas e consequências. Disponível em:


<https://www.oxfam.org.br/blog/desigualdade-de-genero-causas-e-
consequencias/#:~:text=Por%20isso%2C%20esses%20fatores%20muitas,pessoas%20e%20es
tabelecer%20uma%20divis%C3%A3o>. Acesso em: 25 abr. 2023.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero patriarcado violência 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2015.

WORLD ECONOMIC FORUM. Global Gender Gap Report 2022. Disponível em:
<https://www.weforum.org/reports/global-gender-gap-report-2022/>. Acesso em: 20 abr.
2023.

ZINI, A. C. A Interseccionalidade entre o provita e a Lei Maria da Penha: Análise da


possibilidade de uma política pública de prevenção e proteção a extrema violência doméstica e
familiar. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Passo
Fundo, Passo Fundo, 2021.

53
CONTRATO DE TRABALHO A TERMO

Amanda do Nascimento da Silveira1

RESUMO

O artigo busca apresentar um apanhado geral sobre o contrato de trabalho a termo, que é uma
forma usual de contratação nas relações de emprego que vincula empregador e
empregada/empregado por determinado tempo limitado por Lei, seja de forma experimental ou
para atender necessidades transitórias da empresa contratante. Possui mais de uma forma e
características próprias, e o seu término não necessariamente resulta na cessação do vínculo de
emprego, servindo de estímulo a contratação de novos trabalhadores e da formalização dos
contratos de trabalho. A utilização dos contratos de trabalho a termo se constitui em um instituto
usual e efetivo na busca de novas/novos trabalhadoras/trabalhadores, bem como para suprir
novos postos de trabalho, de extrema relevância para o mercado de trabalho, merecendo
enfoque aprofundado. O presente trabalho utiliza-se do procedimento metodológico
bibliográfico tendo como base a legislação pátria vigente.

Palavras-chave: Contrato. Empregada/Empregado. Colaboradora/Colaborador. Empregador.

1 INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objetivo apresentar um breve aprendizado sobre o contrato de
trabalho, em especial a termo. A Lei nº 13.467/2017, chamada de Reforma Trabalhista, que
alterou inúmeros artigos da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho de 1943, trouxe a todas
e todos incertezas quanto às regras, exigências, características do contrato de trabalho. Visando
o esclarecimento de tais dúvidas, apresentam-se conhecimentos e doutrinadores sobre o
contrato de trabalho propriamente dito, sujeitos da relação de emprego, objeto do contrato
individual de trabalho a termo, características, duração, espécies, suspensão e interrupção e
cessação do contrato de trabalho.

2 CONTRATO DE TRABALHO A TERMO

Quando duas pessoas (empregador e colaborador) convencionam o dia da admissão, o


horário de trabalho, cargo e funções que deverão ser exercidas, bem como o salário que será
devido, teremos um contrato individual de trabalho, independentemente se ele for escrito ou

1
Advogada inscrita na OAB/RS 65.121, contabilista inscrita no CRC/RS 77.991, especialista em Direito e
Processo do Trabalho e Direito Previdenciário (UNISC), especialista em Educação (IFSUL), MBA em Gestão
de Pessoas (UNINTER), Mestra em Educação (UERGS), e-mail: adv.amandanascimento@gmail.com.
54
não. Segundo Sergio Pinto Martins, o contrato de trabalho “tem, porém, natureza contratual,
pois não deixa de ser um ajuste de vontades entre as partes, pois o empregado e empregador
fazem a contratação porque querem e não por obrigação legal” (MARTINS, 2014, p. 24).
Carmem Camino traz o conceito de contrato individual de trabalho, observa-se:

Contrato individual de trabalho é a relação jurídica de caráter consensual, intuitu


personae em relação ao empregado, sinalagmático, de trato sucessivo e oneroso pela
qual o empregado obriga-se a prestar trabalho pessoal, não-eventual e subordinado ao
empregador o qual, suportando os riscos do empreendimento econômico, comanda a
prestação pessoal de trabalho, contra prestando-a através do salário. (CAMINO, 2004,
p. 257).

Rodrigo Coimbra Santos descreve contrato de trabalho como:

O negócio jurídico pelo qual uma pessoa física (empregado) se obriga, mediante o
pagamento de uma prestação (salário), a prestar trabalho não eventual em proveito de
outra pessoa, física ou jurídica (empregador), a quem fica juridicamente subordinada.
(SANTOS, 2006, p. 93).

O artigo 442 da CLT – Consolidação das Leis do Trabalho – dispõe que o contrato de
trabalho pode ser tácito ou expresso, ou seja, pode ser por escrito ou verbal, tendo o mesmo
valor. Observa-se a norma legal mencionada:

Art. 442 – Contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso,


correspondente à relação de emprego.
Parágrafo único – Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa,
não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os
tomadores de serviços daquela. (BRASIL, 1943).

Em que pese muito se discuta sobre a validade do contrato de trabalho verbal nas
relações, está pacificado o entendimento de que ele é válido e aceito na prática trabalhista. Nesta
linha de raciocínio, Valentin Carrion argumenta que “a simples tolerância de alguém permitindo
e usufruindo o trabalho alheio terá os mesmos efeitos jurídicos do pacto expresso, se o esforço
humano desenvolvido estiver cercado das mesmas caraterística do contrato de emprego”
(CARRION, 2006, p. 2008).
Por fim, importante salientar que, independentemente de o contrato de trabalho ser tácito
ou expresso, a anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) é obrigatória, nos
termos da nossa legislação pátria vigente.

55
2.1 Sujeitos da relação de emprego

Sabe-se que há dois sujeitos no contrato de trabalho, quais sejam, empregado e


empregador. Primeiramente, atentamos para o conceito trazido pela nossa legislação pátria
vigente, mais especificamente pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), que dispõe:

Art. 2º – Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo


os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de
serviço.
§ 1º – Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego,
os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou
outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como
empregados.
§ 2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade
jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda
quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico,
serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de
emprego.
§ 3º Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias,
para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva
comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes. (BRASIL,
1943).

Art. 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza
não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único – Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição
de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual (BRASIL, 1943).

Considera-se empregador aquele que independentemente de estar formalizado, admite


pessoa física para trabalhar em sua empresa. Possui poder de direção (organizar seu
estabelecimento como melhor lhe convier), poder de controle (fiscalizar e controlar sua
empresa) e poder disciplinar (aplicar penalidades pedagógicas às empregadas e aos empregados
que não cumprirem com o determinado e combinado, a fim de que ela/ele não cometa
novamente a mesma falta, como por exemplo, advertências e suspensões de trabalho).
No tocante ao empregado, julga-se toda pessoa física que, de forma efetiva, trabalha,
pessoalmente, com habitualidade e de maneira permanente e contínua a um superior
hierárquico, cumprindo ordens e recebendo remuneração.
Martins apresenta algumas considerações importantes quanto ao conceito dos sujeitos,
analisa-se:

O empregador assume os riscos de sua atividade, ou seja, tanto os resultados positivos,


como os negativos. Esses riscos da atividade econômica não podem ser transferidos
para o empregado, como ocorre na falência, na recuperação judicial e quando da
edição de planos econômicos governamentais.
O empregador admite o empregado, contrata-o para a prestação de serviços, pagando
salários, ou seja, remunerando-o pelo trabalho prestado. Admitir vem do latim admitio
56
(ad + mitio, misi, missum), significando dar acesso, acolher, deixar entrar. O
empregador admite, acolhe o empregado na empresa, dá acesso a ele na empresa.
(MARTINS, 2014, p. 38).

Sublime destacar que, em que pese a legislação pátria vigente utilize o termo empregado
para conceituar o sujeito subordinado da relação de trabalho, hodiernamente, a tendência é
chamá-lo de colaboradora/colaborador.
Com efeito, no tocante à capacidade dos sujeitos para contratar e serem contratados,
ressalta-se que a Lei nº 10.406/2002, que institui o Código Civil Brasileiro, estabelece o
conceito de pessoas físicas relativamente capazes e/ou incapazes. Atenta-se ao artigo 3º e 4º do
Código Civil Brasileiro (CCB), que trata dos relativamente incapazes:

Art. 3 o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os


menores de 16 (dezesseis) anos. (Redação dada pela Lei nº 13.146, de
2015) (Vigência)
I - (Revogado) ; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
II - (Revogado) ; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
III - (Revogado) . (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência) (BRASIL,
2002).

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:


I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II – os ébrios habituais e os viciados em tóxico;
III – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua
vontade;
IV – os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos indígenas será regulada por legislação especial.
(BRASIL, 2002).

Não obstante o artigo 3º do Código Civil Brasileiro (CCB) determinar que os menores
de 16 (dezesseis) anos de idade são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos
da vida civil, o artigo 403 da CLT autoriza o trabalho para maiores de 14 (quatorze) anos de
idade na condição de aprendiz. Assim:

Art. 403. É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade, salvo na
condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos.
Parágrafo único. O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais
à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários
e locais que não permitam a frequência à escola.
a) revogada;
b) revogada. (BRASIL, 1943).

Ainda, no que se refere à autorização do trabalho para o jovem a partir dos 14 (quatorze)
anos de idade, o Decreto nº 9.579/2018, que constitui atos normativos emitidos pelo Poder
Executivo Federal sobre várias temáticas, dentre elas as relativas à criança e ao adolescente
aprendiz, também tem o mesmo entendimento e disserta sobre o tema. Neste pórtico:

57
Art. 44. Para fins do disposto neste Capítulo, considera-se aprendiz a pessoa maior
de quatorze anos e menor de vinte e quatro anos, inscrita em programa de
aprendizagem, que celebra contrato de aprendizagem, nos termos do disposto no art.
428 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º
de maio de 1943.
Parágrafo único. A idade máxima prevista no caput não se aplica a aprendizes com
deficiência. (BRASIL, 2023, grifo nosso).

Aponta-se que o artigo 44, acima mencionado, mais precisamente seu parágrafo único,
fora alterado recentemente pelo Decreto nº 11.479, chancelado em 06 de abril de 2023, que
versa sobre o direito à profissionalização dos jovens brasileiros por meio dos programas de
aprendizagem profissional (BRASIL, 2023).
Quanto às obrigações dos sujeitos (colaboradora/colaborador), além de prestar o
trabalho efetivamente, estão previstas, de forma indireta no artigo 482 da CLT, que trata da
configuração da justa causa, como por exemplo, não ser desidioso no desempenho de suas
funções, ser honesto, manter em sigilo o segredo da empresa, se tiver, ter disciplina, não
abandonar o emprego, dentre outros. Reflete-se:

Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo
empregador:
a) ato de improbidade;
b) incontinência de conduta ou mau procedimento;
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e
quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou
for prejudicial ao serviço;
d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido
suspensão da execução da pena;
e) desídia no desempenho das respectivas funções;
f) embriaguez habitual ou em serviço;
g) violação de segredo da empresa;
h) ato de indisciplina ou de insubordinação;
i) abandono de emprego;
j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou
ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou
de outrem;
k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o
empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou
de outrem;
l) prática constante de jogos de azar.
m) perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da
profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado.
Parágrafo único – Constitui igualmente justa causa para dispensa de empregado a
prática, devidamente comprovada em inquérito administrativo, de atos atentatórios à
segurança nacional. (BRASIL, 1943).

De acordo com Saad,

Só adquire “status” jurídico de empregado quem presta serviços contínuos que


respondam a uma necessidade permanente da empresa, tendo em vista os fins
econômicos que persegue. A condição de trabalhador não resulta de um “status”

58
permanente, pois o contrário só ocorre numa organização social dividida em
segmentos herméticos, sem qualquer comunicação entre si. Esse “status” só se
manifesta, entre nós, depois da celebração de um contrato de trabalho. (SAAD, 2009,
p. 59).

Da mesma forma, as obrigações do empregador estão fundamentadas implicitamente no


artigo 483 da CLT, da qual cito alguns exemplos, tais como: não exigir serviços do empregado
superiores às suas forças e/ou contrários aos bons costumes, não tratar os colaboradores com
rigor excessivo, cumprir as obrigações contidas no contrato, praticar atos lesivos contra a honra
e boa fama do empregado e/ou sua família, não ofender fisicamente, dentre outros (BRASIL,
1943).

2.2 Objeto do contrato individual de trabalho a termo

Sabe-se que o contrato individual de trabalho é uma via de mão dupla, ou seja, a/o
colaborador deverá declarar que quer continuar trabalhando na empresa, que gosta de trabalhar
nas dependências e de executar seus serviços, que concorda com a visão, missão e princípios
da empresa, e, em contrapartida, o empregador irá analisar se a/o colaborador preenche os
requisitos da vaga.
Nesta linha de raciocínio, ousa-se dizer que o contrato individual de trabalho consagra
o ato jurídico entre os sujeitos da relação de trabalho – colaboradora/colaborador e empregador
– e regula as relações básicas de direitos e deveres.

2.3 Características do contrato de trabalho a termo

Diversos são os entendimentos sobre o número de características que o contrato de


trabalho apresenta. Entende-se, entretanto, que o contrato de trabalho possui apenas quatro
características essenciais para a sua existência, quais sejam: bilateral, consensual, não solene e
oneroso. Faz-se necessário conceituar cada uma das características, conforme a seguir:

2.3.1 Bilateral

A bilateralidade do contrato se solidifica, pois há, no mínimo, dois lados, duas partes,
dois sujeitos que compõem e perfectibilizam a relação de trabalho. Os sujeitos se identificam
como empregada/empregado e empregador. Segundo Santos (2006, p. 94), “no mínimo dois
contratantes assumem obrigações recíprocas, em nexo de causalidade (trabalho – salário)”.

59
2.3.2 Consensual

O contrato de trabalho caracteriza-se pela vontade das partes, ou seja, é de comum


acordo entre os sujeitos da relação de trabalho, não sendo, portanto, imposto. Para Camino
(2004, p. 252), “basta a oferta e a aceitação do trabalho para termos como celebrado o contrato”.

2.3.3 Não solene

O contrato de trabalho é sem formalidades. Contudo, em que pese não haja


obrigatoriedade legal para que o contrato de trabalho seja expresso, sugere-se que seja
concebido por escrito, inclusive há obrigatoriedade de que tal contrato seja anotado na Carteira
de Trabalho e Previdência Social (CTPS) da/do colaboradora/colaborador.

2.3.4 Oneroso

Não haverá perfectibilização, concretização de um contrato de trabalho, se este trabalho


se der voluntariamente. Segundo Camino (2004, p. 255), “força de trabalho e salário constituem
o objeto do contrato de trabalho”. Neste pórtico, Martins também disserta sobre onerosidade
quando afirma que:

O contrato de trabalho é oneroso. O empregado recebe salários pela prestação de


serviços ao empregador. Não existe contrato de trabalho gratuito, como ocorre com o
filho que lava o veículo com o pai. O trabalho voluntário é previsto na Lei nº 9.608/98,
mas não há remuneração. (MARTINS, 2014, p. 29).

2.4 Duração do contrato de trabalho

A nossa legislação pátria vigente prevê, como regra, contratos de trabalho a prazo
indeterminado, isto é, quando a contratação se perdura, quando não há prazo para findar o
contrato. Todavia, a norma jurídica prevê também a exceção a esta regra, ou seja, contratos de
trabalho a prazo determinado, que, como o nome já adianta, tem final pré-determinado.
Segundo Martins, contrato a prazo determinado diz respeito a:

Há termo especificado quando as partes estabelecem seu final. Acontecimento


suscetível de previsão aproximada é o que ocorre com o contrato de safra, em que se
sabe quando aproximadamente ela será colhida, tendo previsão no parágrafo único do
artigo 14 da Lei nº 5.889/73. (MARTINS, 2014, p. 25).

Os artigos 443 e 452 da CLT dispõem sobre o tema em tela, vejamos:

60
Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou
expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado,
ou para prestação de trabalho intermitente.
§ 1º – Considera-se como de prazo determinado o contrato de trabalho cuja vigência
dependa de termo prefixado ou da execução de serviços especificados ou ainda da
realização de certo acontecimento suscetível de previsão aproximada.
§ 2º – O contrato por prazo determinado só será válido em se tratando:
a) de serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do prazo;
b) de atividades empresariais de caráter transitório;
c) de contrato de experiência.
§ 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de
serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos
de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses,
independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para
os aeronautas, regidos por legislação própria. (BRASIL, 1943).

Art. 452 – Considera-se por prazo indeterminado todo contrato que suceder, dentro de
6 (seis) meses, a outro contrato por prazo determinado, salvo se a expiração deste
dependeu da execução de serviços especializados ou da realização de certos
acontecimentos. (BRASIL, 1943).

Por fim, importante relembrar que o contrato que será abordado neste trabalho será a
termo, ou seja, contrato a prazo determinado.

2.5 Espécies de contrato a termo

Ratifica-se, dessa forma, a regra, na qual os contratos de trabalho devam ser a prazo
indeterminado, excetuando-se o contrato com final já determinado, que apresenta prazo
determinado. Segundo o artigo 443 da CLT, colacionado acima, são apenas 3 (três) os
autorizados, quais sejam: o contrato de serviço onde a natureza ou transitoriedade esclarece a
predeterminação do prazo; o contrato de atividades empresariais de caráter momentâneo e o
contrato de experiência (BRASIL, 1943).
Outra peculiaridade dos contratos a prazo determinado é que o prazo máximo de
vigência dos mesmos é de até 2 (dois) anos. Apenas o contrato de experiência possui prazo
máximo de 90 (noventa) dias, podendo ser prorrogado uma única vez, desde que não
ultrapassados os 90 (noventa) dias (SANTOS, 2006).
Por último, importante mencionar que existe contratos regidos por Leis especiais, como,
por exemplo, contrato de aprendizagem (regido pela Lei nº 10.097/2000 que alterou artigos da
CLT, inclusive), contrato de trabalho temporário (regido pela Lei nº 6.019/1974) e outros.

61
3 SUSPENSÃO E INTERRUPÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO

O contrato de trabalho pode ser suspenso quando houver, não somente a cessação
temporária e parcial do contrato de trabalho, mas também a execução dele. Podem ser citados,
como exemplos, a falta não justificada, o período de greve, a suspensão disciplinar e outros.
Neste caso, o empregador continuará a pagar o salário da/do colaboradora/colaborador, ou seja,
não haverá desconto e/ou suspensão de pagamento (MARTINS, 2014).
O contrato de trabalho, no entanto, poderá ser interrompido quando houver apenas a
cessação temporária e parcial do contrato de trabalho, como, por exemplo, férias, descanso
semanal remunerado, afastamento do colaborador por doença até o décimo quinto dia útil, as
faltas justificadas determinadas no artigo 473 da CLT, dentre outros (MARTINS, 2014).
Com relação aos contratos a termo no tocante às suspensões e/ou interrupções desses,
relata-se que referida questão vem sendo tratada de forma diversa na prática do Tribunal
Regional do Trabalho da 4ª Região. Neste sentido, colacionam-se 3 (três) entendimentos
jurisprudenciais. Veja-se:

EMENTA RECURSO ORDINÁRIO DA RECLAMANTE. ESTABILIDADE


PROVISÓRIA DA GESTANTE. CONTRATO DE EXPERIÊNCIA POR PRAZO
DETERMINADO. 1. A garantia no emprego debatida nos autos está prevista no artigo
10, II, “b”, do ADCT, o qual estabelece ser vedada a dispensa arbitrária ou sem justa
causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após
o parto. A redação do item III da Súmula 244 do TST estabelece: “A empregada
gestante tem direito à estabilidade provisória prevista no art. 10, inciso II, alínea b, do
Ato das disposições Transitórias, mesmo na hipótese de admissão mediante contrato
por tempo determinado”. 2. Assim, o fato de haver sido firmado contrato de
experiência, por prazo determinado, por si só, não retira o direito pretendido pela
demandante. 3. Compatibilidade, pois, da garantia ao emprego da gestante com a
contratação por prazo determinado, a título de experiência, ainda que o término da
relação tenha se dado pelo transcurso do prazo. 4. Entendimento de que a situação não
se amolda estritamente à Tese fixada pelo STF quando da apreciação do Tema 497.
5. Apelo da autora provido. (RIO GRANDE DO SUL, 2023a).

EMENTA Estabilidade Sindical. Contrato de Experiência. A eleição do trabalhador


para cargo de direção ou representação sindical não altera a natureza jurídica do
contrato de experiência (modalidade de contrato a termo), de modo que a ele não se
aplica a garantia provisória de emprego sindical, por se tratar de instituto destinado a
evitar despedidas arbitrárias, a fim de manter a continuidade da relação de emprego,
o que somente é compatível com o contrato por prazo indeterminado. (TRT da 4ª
Região, Jurisprudência. (RIO GRANDE DO SUL, 2023b).

Percebe-se pelo entendimento jurisprudencial acima que o contrato de trabalho a termo


prepondera em relação à garantia de emprego do representante sindical, possibilitando a
rescisão do contrato de trabalho da data inicialmente pactuada entre as partes. O mesmo

62
entendimento, contudo, não se aplica em relação à garantia de emprego da gestante, pois o
contrato de trabalho ficará assegurado até o retorno ao trabalho após a licença-maternidade.
Com relação à empregada ou ao empregado doente, observa-se o entendimento
jurisprudencial abaixo:

DESPEDIDA DISCRIMINATÓRIA. INOCORRÊNCIA. Não caracteriza despedida


discriminatória a rescisão contratual ao final do contrato de trabalho por prazo
determinado, quando não há comprovação da alegada relação com a doença da qual o
empregado é portador. (RIO GRANDE DO SUL, 2023c).

A decisão acima reconhece que, mesmo que a/o empregada/empregado esteja acometido
de alguma doença, o referido fato não afasta o encerramento do contrato a termo, desde que não
haja nexo de causalidade entre a doença e o trabalho desempenhado por ele no decorrer das
suas atividades laborais.

4 CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO

O contrato de trabalho termina quando se encerra o vínculo empregatício, podendo ser


por iniciativa da/do empregada/empregado ou do empregador.
A cessão por iniciativa do empregador dá-se quando há dispensa sem justa causa (poder
do empregador, já que detém o ônus da atividade econômica), e dispensa com justa causa
(abandono de emprego, insubordinação, indisciplina, violação do segredo da empresa,
embriaguez, desídia, condenação criminal, negociação habitual, mau procedimento,
incontinência de conduta, improbidade, ato lesivo à honra, práticas constantes de jogos de azar,
ofensa física, dentre outros descritos no artigo 483 da CLT) (BRASIL, 1943).
Já a cessão por iniciativa do empregado, ocorre quando esse pede demissão, rescisão
indireta (faltas praticadas pelo empregador estabelecidas no artigo 483 da CLT) e aposentadoria
(BRASIL, 1943).
Há de salientar que existem outras formas de cessação, tais como a extinção do contrato
pelo seu término natural, a morte de uma das partes, extinção das atividades da empresa, culpa
recíproca, caso fortuito, força maior, e a nova modalidade de extinção trazida pela Lei nº
13.467/2017 – Reforma Trabalhista – qual seja, a extinção por mútuo acordo.
Sublime informar que, da cessão do contrato, não há incidência de multa de 40% do
FGTS, tão pouco, pagamento de aviso prévio. A empregada ou o empregado irá perceber, na
rescisão, saldo de salário, a proporção dos meses trabalhados a título de décimo terceiro, bem
como a proporção dos meses trabalhados a título de férias proporcionais, acrescido de 1/3 (um

63
terço) constitucional de férias. E, segundo a CLT vigente, o prazo para pagamento desta
rescisão do contrato de trabalho a termo são de 10 (dez) dias a contar da saída da/do
trabalhadora/trabalhador.
Na hipótese de não cumprimento do contrato de trabalho a termo até o prazo
convencionado entre as partes, ou seja, encerrar-se antes do prazo final, à parte que deu causa
recairá na multa equivalente à metade dos dias que faltam para o cumprimento, nos termos da
regra contida no caput do artigo 479 e art. 480, ambos da CLT (BRASIL, 1943).

5 CONCLUSÃO

Os contratos de trabalho a termo, tão comumente utilizados nos ambientes de trabalho


para formalização das relações de emprego, embora se admita a forma tácita, há que ser
celebrado preferencialmente de forma expressa, considerando a hipótese de cessação ao final
do período previamente pactuado. Por outro lado, após transcorrido o prazo com permanência
da prestação de serviços, ainda assim o contrato permanece válido para a relação de emprego
se outras disposições contratuais, com exceção do termo, estiverem ali consignadas.
As diferentes formas de celebração do contrato a termo (experiência ou por prazo
determinado) tem, como maior distinção, o período máximo previsto em lei (90 dias ou 2 anos,
respectivamente) sendo que, em ambas as hipóteses, é admitida uma única prorrogação, desde
que não ultrapasse o prazo máximo.
É praticamente um ritual obrigatório adotado pelas empresas, objetivando observar as
aptidões da/do nova/novo empregada/empregado, sua adaptação às normas da empresa,
literalmente uma espécie de teste probatório, que simplifica a extinção da relação ao final do
prazo, mas também permite e estimula novas contratações, o que se revela fundamental para a
economia do País, como instrumento de distribuição de riqueza e renda, por conta disso, é de
suma importância no mundo do trabalho.
Por fim, destaca-se que o assunto não fora esgotado. Um primeiro e imperioso passo foi
dado para o impulso de conhecimento e incentivo para o aprofundamento do tema em tela, que
pode ser feito em estudos posteriores, buscando comprovar e/ou complementar as constatações
colhidas até o momento.

64
REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do


Trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, 1943. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 20 mai. 2023.

BRASIL. Decreto nº 9.579, de 22 de novembro de 2018. Consolida atos normativos editados


pelo Poder Executivo federal que dispõem sobre a temática do lactente, da criança e do
adolescente e do aprendiz, e sobre o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente, o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e os programas federais da
criança e do adolescente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República,
2018. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/decreto/d9579.htm>. Acesso em: 20 mai. 2023.

BRASIL. Decreto nº 11.479, de 6 de abril de 2023. Altera o Decreto nº 9.579, de 22 de


novembro de 2018, para dispor sobre o direito à profissionalização de adolescentes e jovens por
meio de programas de aprendizagem profissional. Brasília, DF: Presidência da República, 2023.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-
2026/2023/decreto/D11479.htm>. Acesso em: 20 mai. 2023.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF:
Presidência da República, 2002. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 29 mai.
2023.

CAMINO, Carmen. Direito Individual do Trabalho. 4. ed. Porto Alegre: Síntese, 2004.

CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. Legislação


Complementar/Jurisprudência. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

MARTINS, Sergio Pinto. Fundamentos de Direito do Trabalho. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário, nº


0020311-65.2022.5.04.0305 ROT. 2ª Turma. Relator: Desembargador Alexandre Correa da
Cruz, 20 de abril de 2023. Porto Alegre/RS, 2023a. Disponível em:
<https://pesquisatextual.trt4.jus.br/pesquisas/rest/cache/acordao/pje/arGxse_ZTD1_H-
F4YVFsyw?>. Acesso em: 29 mai. 2023.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário, nº


0020199-33.2021.5.04.0014 ROT. 7ª Turma. Relator: Desembargadora Denise Pacheco, 03 de
maio de 2023. Porto Alegre/RS, 2023b. Disponível em:
<https://pesquisatextual.trt4.jus.br/pesquisas/rest/cache/acordao/pje/E1ky29UaDeLxBgEwi2J
WAQ?>. Acesso em: 29 mai. 2023.

RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. Recurso Ordinário, nº


0020632-47.2021.5.04.0334 ROT. 4ª Turma. Relator: Desembargador George Achutti, 26 de
abril de 2023. Porto Alegre/RS, 2023c. Disponível em:
<https://pesquisatextual.trt4.jus.br/pesquisas/rest/cache/acordao/pje/LoY1AsV0G5Vi4z6IPcC
RUw?>. Acesso em: 29 mai. 2023.
65
SAAD, Eduardo Gabriel. Consolidação das Leis do Trabalho: comentada. 42. ed. São Paulo:
LTr, 2009.

SANTOS, Rodrigo Coimbra. Direito do Trabalho. Novo Hamburgo: Feevale, 2006.

66
TRABALHO INFANTOJUVENIL ARTÍSTICO: A INTERNET COMO
FERRAMENTA DO PROCESSO DE ADULTIZAÇÃO PRECOCE

Ana Carolina Sassi1

RESUMO

A Carta Constitucional garante o direito social ao trabalho do povo brasileiro, dentre as


categorias de trabalho, o ramo artístico tem tido destaque, especialmente quando integra
crianças e adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente inaugura no ordenamento
jurídico o princípio da proteção integral e reconhece como seres de direito em desenvolvimento
peculiar. Atrelado a isso, a expansão tecnológica possibilitou ao trabalho artístico uma maior
difusão, pois através das redes sociais artísticas vem divulgando a si mesmo numa espécie de
promoção de potencial artístico, o que gera uma auto exposição, na qual atores infantojuvenis
também tem adotado. Com isso questiona-se a suficiência do ordenamento jurídico brasileiro
na promoção da proteção integral, bem como na prevenção da adultização precoce de crianças
de adolescentes no ambiente de trabalho artístico. Para responder o questionamento utilizou-se
o método de abordagem dedutivo que partiu de uma abordagem geral dentro do cenário
brasileiro destacando pontos constitucionais específicos; passando então a verificar a
compatibilidade do trabalho infantojuvenil artístico e sua relação com a adultização precoce
devido a influência das tecnologias digitais, através do método de procedimento histórico
comparativo. Desse modo, o ordenamento jurídico brasileiro tem o dever de garantir a
preservação do desenvolvimento completo e sadio de crianças e adolescentes, especialmente
quando estão integradas no ambiente de trabalho artístico.

Palavras-chave: Trabalho Infantil. Artístico. Adultização.

ABSTRACT
The Constitutional Charter guarantees the social right to work of the Brazilian people, among
the categories of work, the artistic branch has been highlighted, especially when it integrates
children and adolescents. The Statute of the Child and Adolescent inaugurates in the legal
system the principle of integral protection and recognizes them as beings of law in peculiar
development. Tied to this, the technological expansion has enabled the artistic work to be more
disseminating, because through artistic social networks it has been spreading to itself in a kind
of promotion of artistic potential, which generates a self-exposure, in which children's actors
have also adopted. This questions the sufficiency of the Brazilian legal system in promoting
comprehensive protection, as well as in the prevention of early adultization of adolescent
children in the artistic work environment. To answer the question, we used the method of
deductive approach that started from a general approach within the Brazilian scenario
highlighting specific constitutional points; then to verify the compatibility of artistic child and
adolescent work and its relationship with early adultization due to the influence of digital
technologies, through the comparative historical procedure method. Thus, the Brazilian legal

1
Advogada inscrita na OAB/RS 126.781. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Previdenciário pelo Centro
Universitário União das Américas Descomplica. Mestranda em Direitos da Sociedade em Rede na Universidade
Federal de Santa Maria/UFSM.

67
system has the duty to ensure the preservation of the complete and healthy development of
children and adolescents, especially when they are integrated into the artistic work environment.

Keywords: child labor; artistic; adultization.

1 INTRODUÇÃO

O Estatuto da Criança e do Adolescente, legislação específica para a proteção das


crianças, juntamente com a Constituição Federal busca assegurar seus direitos, porém, a
pecabilidade de tais normas é vista diariamente, uma vez que vemos todos os dias crianças na
mídia em situações constrangedoras e até mesmo degradantes usando acessórios adultos ou
mesmo sendo coagidas a agirem como tal.
Ocorre que o avanço das tecnologias de informação e comunicação acabam por mascarar
e enraizar o trabalho infantojuvenil artístico em nossa sociedade, fazendo com que seja natural
às crianças e adolescentes se portarem como adultos. O tema é pouco discutido e confunde a
adultização como ‘’consequência da fama’’ quando na realidade está sendo-lhes negado o
direito de serem crianças e adolescentes provando que o princípio de proteção integral é
‘’rasgado’’ de diversas formas diariamente.
O trabalho infantojuvenil é uma realidade histórica a qual não pode ser ignorada e que
com o passar dos anos tornou-se diretamente relacionado à adultização infantil, a qual tem
tomado proporções perigosas pelo avanço tecnológico. Nessa perspectiva, cresce a ideia entre
os juristas de uma legislação que protege tais práticas e assegure o direito das crianças à vida,
à liberdade e principalmente de poder ser criança. Diante disso, questiona-se em que medida o
princípio da proteção integral protege a criança da adultização no trabalho infantojuvenil
artístico?
Para responder a esse questionamento de pesquisa, neste trabalho foi utilizado o método
de abordagem dedutivo uma vez que a pesquisa partiu de uma abordagem geral dentro do
cenário brasileiro destacando pontos constitucionais específicos, tais como o princípio da
proteção integral e assim verificar a compatibilidade do trabalho infantojuvenil artístico e a
adultização precoce com a influência das tecnologias digitais.
Como métodos de procedimento foram utilizados o histórico comparativo, pois partiu-
se da análise do uso das tecnologias de informação e comunicação pelas crianças e adolescentes,
seguindo para o desenvolvimento da proteção integral, se desenrolou a discussão sobre o tema
em questão.

68
O presente trabalho tem como objetivo geral analisar a aplicação do princípio da
proteção integral tendo em vista o trabalho infantojuvenil artístico e a precoce adultização em
face do uso das tecnologias digitais. Bem como possui objetivos específicos que estruturam o
trabalho.
Dessa maneira, inicia-se com a análise do uso das tecnologias pelas crianças e
adolescentes, passando-se a investigar a compatibilidade do trabalho artístico infantil com a
adultização precoce e seus efeitos com o desenvolvimento sadio e harmonioso, para ao fim,
pontuar a proteção da criança e do adolescente no ordenamento jurídico brasileiro.

2 O USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS PELAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES E


OS IMPACTOS NO SEU DESENVOLVIMENTO

Não é de hoje que o uso das tecnologias de informação e comunicação digitais cresce
exponencialmente na sociedade. Além da popularização do seu uso, o ambiente virtual
apresenta grande potencial na influência de como a sociedade se comporta, atingindo não só
usuários adultos mas também aqueles em desenvolvimento, como as crianças e adolescentes,
que cada vez mais cedo estão inseridos no ciberespaço.
O Comitê Gestor de Internet realizou, no ano de 2020, uma Pesquisa sobre o Uso da
Internet por Crianças e Adolescentes no Brasil, segundo os dados apresentados, tem-se que
crianças e jovens são predominantes nesse ambiente. Com isso cerca de 94% da população na
faixa etária de 10 a 15 anos são usuários na internet, e entre 16 e 24 anos a quantidade chega a
97% (CGI, 2020, p. 47).
Conforme demonstra a pesquisa há uma centralidade pelas crianças e adolescentes
quanto ao uso das tecnologias digitais, por consequência essa participação online impacta o
modo como se desenvolvem e se relacionam socialmente. Nesse sentido, Manuel Castells já
havia dito em sua obra A sociedade em Rede (1999, p. 414) que o surgimento de um novo
sistema eletrônico de comunicação caracterizado pelo seu alcance global, integração de todos
os meios de comunicação e interatividade potencial mudaria para sempre a nossa cultura.
A construção da identidade foi impactada pelo avanço da conexão pela sociedade,
aumentada as possibilidades de conhecimento e exposição, também modificaram-se as
maneiras pelas quais se busca um reconhecimento social. Dessa forma, levando em
consideração as plataformas de acesso a conteúdo audiovisual, indicadores sobre dados

69
culturais apontaram o crescimento de sites e aplicativos de compartilhamento de vídeo, de modo
que as redes sociais representam 49% de uso por crianças e adolescentes (CGI, 2020, p. 61).
John Palfrey (2011, p. 31), em sua obra Nascidos na Era Digital, esclarece que conforme
estudos de formação da identidade online, os jovens, sejam ou não nativos digitais, tendem a
expressar sua identidade online de maneira muito parecida com as que realmente têm, e de
maneiras que são consistentes com suas identidades no espaço real.
Ainda, Palfrey (2011, p. 28) explica que a identidade pessoal se refere aos atributos que
tornam o ser único, tais quais as características pessoais, interesses e atividades a que dedica
seu tempo. Enquanto isso, a identidade social se constrói a partir das vivências familiares e
comunitárias a que o indivíduo pertence. O autor reconhece que a era da internet proporcionou
mudanças na construção e administração da identidade, principalmente em relação à sua
identidade social, que passou a ser associada às pessoas as quais interage virtualmente.
Através da Pesquisa sobre o Uso da Internet por Crianças e Adolescentes no Brasil,
percebe-se que o consumo de meios multimídia e a criação de conteúdos possibilitou que uma
só pessoa pudesse experimentar diversas facetas, tendendo a possuir múltiplas
autorrepresentações. Nessa linha a proporção de usuários da rede, na faixa etária de 10 a 17
anos, reportaram ter postado textos, imagens, fotos, vídeos ou músicas que tenham criado na
Internet foi de 30%, enquanto a porcentagem daqueles que criaram ou atualizaram blogs,
páginas na Internet ou websites foi de 18% (CGI, 2022, p. 62).
Nas palavras de Guy Debord (2003, p. 20), onde o mundo real se converte em simples
imagens, estas imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um
comportamento hipnótico, o que explica a popularização dos aplicativos voltados para
relacionamentos sociais, nos quais há forte presença dos chamados influenciadores digitais, que
ditam a maneira de vestir-se e portar-se para que sejam “aceitos” naquela comunidade.
Portanto, devido a isso, a formação de identidade dos nativos digitais é diferente da
formação pré era digital, no sentido em que há mais experimentação e reinvenção das
identidades e diferentes modos de expressão (PALFREY, 2011, p. 31).
O período pandêmico contribuiu para a ampliação do uso da internet facilitando o acesso
aos conteúdos audiovisuais e às funcionalidades de plataformas digitais. Logo a expansão na
conectividade e na participação on-line reforçou a necessidade do desenvolvimento de
habilidades digitais que possibilitem e estimulem o uso de ferramentas on-line para a produção
de conteúdos autorais (CGI, 2020, p. 63).

70
Embora a conectividade tenha se expandindo, o avanço no acesso e uso de tecnologias
digitais estabeleceu novas oportunidades para a realização de práticas diversas de educação,
comunicação e entretenimento, com isso também aumentaram os riscos do contato ou interação
de crianças com adultos por meio de canais digitais, indicando potenciais prejuízos no seu
desenvolvimento e conduta (CGI, 2020, p. 63).
O uso das redes sociais pelas crianças e adolescentes é uma realidade pela qual a
sociedade tem buscado maneiras de controlar e restringir o contato com conteúdos adultos e até
mesmo a interação com eles, entretanto essa tarefa torna-se dificultosa quando tratamos de sites
de relacionamento social. Hoje em dia, para um reconhecimento social de sucesso, o uso das
redes sociais pelas crianças e adolescentes tornou-se regra, e ali vemos atores e atrizes infantis
também se utilizando dessa ferramenta para expor-se e assim estar em alta na mídia.
Nesse sentido, as infinitas possibilidades das plataformas digitais tornam-se cada vez
mais ligadas à identidade unitária no mundo real, uma vez que as contribuições digitais
intencionadas a identidade, isto é, na forma de informações pessoais compartilhadas, são
fundamentais para uma identidade emergente dos nativos digitais (PALFREY, 2011, p. 32-33).
O autor Palfrey (2011, p. 35) levanta o ponto de que os jovens compartilham
informações sobre si online com o objetivo de construir uma relação de confiança com os
demais, como uma extensão de suas vidas offline. Embora esse processo de construção e
manejo das identidades na era da internet seja complexo e cheios de possibilidades, aqueles que
não procuram controlar ou moldar sua identidade virtual podem sofrer reflexos na área
trabalhista, visto que agora o perfil online atua como vitrine social, influenciando a perspectiva
no mercado de trabalho (PALFREY, 2011, p. 41).
Portanto a intensificação do uso de recursos digitais para a fruição e a criação cultural
reconfigurou o direito à cultura na sociedade da informação, logo as práticas culturais de
crianças e adolescentes também migraram para o ciberespaço, que tem influído nas diversas
áreas do desenvolvimento e fomentado maneiras de agir, em especial na população
infantojuvenil do meio artístico, razão pela qual tratar-se-á no próximo capítulo do trabalho
infantojuvenil artístico.

71
3 O TRABALHO INFANTOJUVENIL ARTÍSTICO FRENTE A ADULTIZAÇÃO
PRECOCE

O trabalho artístico está positivado na Lei 6533 de 1978, essa legislação em seu artigo
2º, inciso I, conceitua o artista como “o profissional que cria, interpreta ou executa obra de
caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exibição ou divulgação pública, através de
meios de comunicação de massa ou em locais onde se realizam espetáculos de diversão
pública”.

É de conhecimento notório que o trabalho artístico está fortemente vinculado à emoção,


ao encantamento e à reflexão crítica e criativa. Desse modo, são alguns exemplos de trabalhos
artísticos o cinema, as novelas, as peças teatrais, bem como as propagandas.
Para Sandra Regina Cavalcante (2013, p. 141) a atividade artística é importante
elemento na formação dos indivíduos, por agregar cultura, criatividade, sensibilidade e
autopercepção. Nesse sentido, para produzir obras, os artistas documentam vivências pessoais
de pessoas comuns, muitas vezes de realidades distintas, o que requer um grande trabalho de
compreensão e entendimento da vida do outro.
De fato a liberdade de expressão artística e o acesso às fontes de cultura constituem
direito de todos os cidadãos, independente de sua faixa etária, conforme dispõe o artigo 215 da
Constituição Federal:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das
manifestações culturais (CF, 1988).

Por isso a autora (CAVALCANTE, 2013, p. 141) reforça que a participação da infância
e adolescência no trabalho artístico somente será positiva se levar em conta o perfil de pessoa
em desenvolvimento, respeitando suas fragilidades biológicas e psicológicas.
Assim, embora a lei 6533/78 defina o que é o trabalho artístico e traga disposições de
proteção e regulamentação da profissão, a legislação não faz qualquer menção à população
infantojuvenil que está presente nesse meio.
Historicamente o primeiro importante e abrangente documento a tratar do trabalho
infantil, de maneira geral, foi a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 da ONU. Essa
declaração, trouxe em seu 9º princípio que “Não será permitido à criança empregar-se antes da
idade mínima conveniente; de nenhuma forma será levada a ou ser-lhe-á permitido empenhar-

72
se em qualquer ocupação ou emprego que lhe prejudique a saúde ou a educação ou que interfira
em seu desenvolvimento físico, mental ou moral”.
O trabalho artístico infantojuvenil é visto diariamente, nas novelas, nas peças de teatro,
propagandas, e outros tipos de atuação de crianças e adolescentes na mídia. Conforme a autora
Rafaella Barros Barreto (2016, p. 37) o espetáculo e o prazer de ver talentos tão jovens passa
um ar de inocência quanto ao que acontece por trás das câmeras, tais quais são as cobranças, as
metas, a regularidade de horários, as gravações exaustivas e os ensaios.
Dessa maneira, no trabalho artístico infantojuvenil há a configuração de relação de
subordinação a um terceiro, o que diferencia-se da atividade meramente lúdica e recreativa
permitida pela legislação. Assim, prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 54,
inciso V, que é assegurado seu acesso aos níveis mais elevados de ensino, pesquisa e da criação
artística, consoante com o disposto no artigo 2082, V da Carta Constitucional.
Ainda, pode-se dizer que o Estado nada mais é do que o fomentador e detentor da
obrigação de facilitar as manifestações artísticas, uma vez que o artigo 215 da Constituição
Federal preceitua que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso
às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações
culturais (BARRETO, 2016, p. 32).
Essa atividade artística torna-se cultural para os espectadores, pois quem a realiza sofre
com a pressão, estresse e fadiga dos bastidores, o que afeta a infância e a adolescência, e
consequentemente antecipa a sua adultização devido a carga de responsabilidade trabalhista.
Além disso, os pais tendem a deslumbrar-se com o talento dos filhos, pressionando-os e os
encarcerando em um papel social que exige que estejam sempre em destaque.
As redes sociais possibilitaram que esse ambiente artístico, antes confinado aos sets de
gravações e teatros, expandir-se pelo ciberespaço, fomentando a divulgação de conteúdos e
aumentando a necessidade de ser visto e consumido dos artistas, inclusive crianças e
adolescentes, que agora procuram colocar em cena construções performáticas de si.
Conforme Barreto (2016, p. 50) o ambiente de representações artísticas envolve uma
série de tarefas complexas como, por exemplo, a memorização de textos e falas de personagens,
a preparação para a filmagem com trocas de roupas, maquiagem, cabelo, além da execução de
determinados atos de filmagem de acordo com a vontade do terceiro, agora possui ainda a
preocupação com sua identidade virtual, buscando agir e performar da maneira que os

2
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:
V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada
um;
73
espectadores desejam, mantendo-se consumível e desejável e assim permanecer nos holofotes
da fama.
Consoante com a autora Paula Sibilia (2016, p. 417) houve um aumento das tendências
exibicionistas e performáticas em razão das tecnologias de informação e comunicação que
expandiram o campo da visibilidade, ocasionando um dever de performar e construir uma
subjetividade alterdirigida. Isto é, saber aproveitar as possibilidades para tornar-se visível e com
isso obter reconhecimento dos olhos alheios.
Frente a quebra das barreiras com a internet, crianças e adolescentes transitam por
diversos ambientes, em razão disso o direito de ser criança e de ser adolescentes tem sido
afetado e com isso seus valores e comportamentos alteram-se, seja pela forma de vestir-se, seja
pela maneira de expor-se, ocasionando a diminuição do tempo de infância, prejudicando o
desenvolvimento saudável, e por consequência causando sua precoce adultização.
O padrão cultural da sociedade em relevar comportamentos adultos vistos em
manifestações artísticas transmite uma responsabilidade que não deveria ser atribuída à infância
e à juventude, vez que as deixam preocupadas e condicionadas a uma expectativa
comportamental padronizada e, atualmente, fortemente influenciada pelas redes sociais.
Diante o direito de cultivar a infância e a adolescência, torna-se necessária a análise do
princípio da proteção integral positivado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente na busca
de uma compreensão do desenvolvimento saudável, bem como dos demais dispositivos
jurídicos que visam a proteção da criança e do adolescente diante o trabalho artístico infantil.

4 O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTEGRAL CONSTITUCIONAL E A PROTEÇÃO


JURÍDICA DIANTE DO TRABALHO ARTÍSTICO INFANTIL

O direito social ao trabalho está previsto na Constituição Federal, através da previsão


do artigo 6º garante-se que o trabalho deve assegurar uma existência digna, consoante com o
disposto no artigo 7º em que o trabalho, urbano ou rural, deve visar a melhoria de sua condição
social.
O trabalho na legislação pátria encontra-se profundamente vinculado aos direitos
fundamentais e ao princípio da dignidade humana, de forma que é imprescindível sua proteção
e salvaguarda. Embora o artigo 7º garanta o acesso e desenvolvimento do trabalho, o inciso
XXXIII veda o trabalho a indivíduos menores de 16 (dezesseis) anos, exceto na condição de
aprendizes a partir dos 14 (quatorze) anos (BARRETO, 2016, p. 32).

74
Ao mesmo tempo em que o artigo supracitado proíbe a relação de trabalho, o artigo 5º,
inciso IX3 permite a forma de expressão artística da criança e do adolescente. No entanto,
atenta-se ao fato de que o dispositivo não se refere à exploração do trabalho artístico, mas sim
da permissão para a livre expressão. Logo o legislador não estabeleceu a proibição total ao
trabalho infantil artístico, mas sim restrições para coibir abusos de modo geral (BARRETO,
2016, p. 33-34).
Dessa forma, o ordenamento jurídico define que a idade mínima para a realização de
trabalho por crianças e adolescentes está restrita a 16 anos, com exceção daqueles maiores de
14 anos com a finalidade de aprendizes, isto é, uma forma especial de trabalho protegido com
direitos trabalhistas, previdenciários e proteção especial.
A Convenção nº 138 da Organização Internacional do Trabalho tem sido erroneamente
interpretada e utilizada com a finalidade de permitir o trabalho artístico infantojuvenil, pelo fato
de que dispõe:

A autoridade competente poderá conceder, mediante prévia consulta às


organizações interessadas de empregadores e de trabalhadores, quando tais
organizações existirem, por meio de permissões individuais, exceções à proibição
de ser admitido ao emprego ou de trabalhar, que prevê o artigo 2 da presente
Convenção, no caso de finalidades tais como as de participar em representações
artísticas (OIT, 2002).

Como se vê, a Convenção não trata do trabalho artístico, mas sim da participação em
representações artísticas que envolvem caráter pedagógico e cultural consoante com as
disposições da Constituição Federal.
Veronese (2017, p. 192) explica que no contexto cultural brasileiro a exploração do
trabalho infantil conduz à ideia de que o trabalho infantil em atividades artísticas não seria um
trabalho, por conseguinte essa falsa ideia esconde que a exploração da mão de obra infantil
nesse âmbito compromete o tempo que crianças e adolescentes deveriam dedicar ao seu
desenvolvimento. Ademais, estão sujeitos a danos que poderiam ser causados em outras formas
de trabalho desenvolvidas por crianças e adolescentes, uma vez que exige compromissos e
responsabilidades não compatíveis com sua idade.
A adoção do princípio da proteção integral no Estatuto da Criança e do Adolescente
contempla especial proteção que deve alcançar todas as dimensões da criança e adolescente,
com especial atenção às condições de pleno desenvolvimento físico, mental, emocional,

3
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de
censura ou licença
75
cognitivo e espiritual. Para a autora Tânia da Silva Pereira (2008, p. 138) a doutrina da proteção
integral se trata de uma trilogia de direitos referentes à liberdade, respeito e dignidade, valores
esses que são um reflexo da capacidade de tolerância do ser humano e de aceitação de si e do
meio social em que vivem.
A lei 8069/90 congruente com a carta constitucional também definiu como dever do
Estado assegurar às crianças e adolescentes o acesso à criação artística, porém destaca-se que a
liberdade artística encontra-se no âmbito educacional.
Quanto ao direito à profissionalização e proteção do trabalho, a referida legislação
possui disposições próprias encontradas no capítulo V. Assim o Estatuto da Criança e do
Adolescente, além de reafirmar a proteção constitucional dos limites de idade mínima para o
trabalho, estabeleceu critérios mais detalhados das situações caracterizadoras do trabalho
infantil no art. 67, ao conceituar o trabalho noturno; além de incluir a proteção contra os
trabalhos considerados penosos, realizados em locais que prejudiquem o desenvolvimento da
criança e do adolescente, bem como, aqueles realizados em horários e locais que não permitam
a frequência à escola (VERONESE, 2017).
Apesar da Consolidação das Leis do Trabalho trazer disposições congruentes com a
Constituição Federal e com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o seu artigo 406 permite
que a autoridade judicial autorize ao menor o trabalho, observados que a representação tenha
fim educativo, que não seja prejudicial à sua formação moral, e certificado que a ocupação seja
indispensável à própria subsistência.
Conforme Barreto (2016, p. 45) o trabalho artístico infantojuvenil, atualmente se insere
na hipótese de competência da Justiça do Trabalho, pois ainda que não se considere o trabalho
artístico infantojuvenil como relação de emprego, a mera “participação” da criança ou do
adolescente em qualquer modalidade laborativa, ainda que não venha a preencher todas as
hipóteses do art. 3º da CLT estará subsumida à hipótese constitucional da “relação de trabalho”,
atraída para a nova competência da Justiça do Trabalho.
Dessa maneira, a permissão para o trabalho artístico infanto juvenil depende de
autorização judicial para ser exercida, mas cabe destacar que trata-se verdadeiramente de uma
relação de trabalho, que se materializa através de um contrato em que há regras, obrigações e
multas que influenciam a maneira com que os pais e a criança se comprometerão com a
atividade (BARRETO, 2016, p. 37).
Uma vez que tanto a criança quanto o adolescente são seres ainda em formação, o
trabalho artístico infantojuvenil, para ser aceito deverá adaptar-se às atividades essenciais ao

76
desenvolvimento em cumprimento ao princípio da proteção integral salvaguardando os direitos
à infância e adolescência e o desenvolvimento pleno e sadio.

5 CONCLUSÃO

O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, em especial das


redes sociais, possibilitou à população que construísse e afirmasse sua identidade perante a
sociedade. Com isso, o ciberespaço também tornou-se uma ferramenta de validação trabalhista,
sendo também observado o comportamento cibernético dos trabalhadores.
Fica claro que para a faixa etária adulta a internet trouxe inúmeras possibilidades que
influenciam seus comportamentos e até mesmo servem como oportunidade de crescimento
trabalhista, no entanto devemos atentar que o presente trabalho refere-se às crianças e
adolescentes, com isso destaca-se que o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe ao
ordenamento jurídico brasileiro o princípio da proteção integral.
O princípio da proteção integral evidencia a condição da criança e do adolescente com
sujeitos de direito, e ainda que estes estão em desenvolvimento, isto é, estão construindo sua
identidade. Por isso é dever da família, da sociedade e do Estado preservar o seu
desenvolvimento integral sadio e harmonioso.
Com isso, a Constituição Federal positivou o direito social ao trabalho, trazendo, no
entanto, a proibição expressa do trabalho para menores de 14 anos, o que está consoante com
as leis infraconstitucionais da Consolidação das Leis do Trabalho e do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
Porém, vemos na mídia crianças e adolescentes participando de trabalho artístico nas
novelas, comerciais, teatros e outros programas televisivos. Toda essa exposição faz com que
o tempo direcionado ao seu desenvolvimento e o direito da infância seja reduzido, contribuindo
para uma adultização precoce.
Essa adultização é acentuada pelas redes sociais, de modo que crianças e adolescentes
procuram performar sua identidade e agir com trejeitos adultos para que possam estar sob os
holofotes da fama e assim prosseguir em alta com sua carreira artística.
Assim diante do questionamento de que em que medida o princípio da proteção integral
protege a criança da adultização no trabalho infantojuvenil artístico, pode-se dizer que o
trabalho artístico infantojuvenil só terá a aplicação eficácia do princípio da proteção integral
quando a jurisdição brasileira ao lavrar autorizações para o seu exercício observar as atividades

77
essenciais ao desenvolvimento sadio e harmonioso, preservando, dentre outros, o direito de se
ter infância e o direito à educação.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

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reunião da Conferência Internacional do Trabalho (Genebra — 1973). Disponível em:
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78
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https://siabi.trt4.jus.br/biblioteca/direito/doutrina/artigos/Revista%20do%20Tribunal%20Supe
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PALFREY, John. Nascidos na Era Digital: Entendendo a primeira geração de nativos digitais.
Tradução: Magda França Lopes. Porto Alegre: Artmed, 2011.

PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da Criança e do Adolescente: Uma proposta interdisciplinar.


2ª edição revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da Criança e do Adolescente: Novo curso - Novos
Temas. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2017.

79
CAUTELAR DE INCOMUNICABILIDADE ENTRE ACUSADOS-SÓCIOS E
O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

Ana Vitória Lopes Taffarel1

RESUMO
O objetivo aqui traçado, de forma abrangente, é analisar a cautelar de proibição de comunicação
entre investigados ou acusados que figurem sócios-administradores e o risco de tal decretação
à preservação da empresa. Para isso, buscou-se analisar as medidas cautelares diversas da
prisão, bem como seus requisitos, esmiuçando-se a proibição de comunicação entre
investigados ou acusados e o princípio da preservação da empresa. A partir desse estudo, poderá
ser compreendida a problemática da decretação de proibição de comunicação entre investigados
ou acusados, que figurem como sócios, à luz do princípio da preservação da empresa.
Palavras-chave: Cautelar de Proibição de Comunicação. Investigados-Sócios. Princípio da
Preservação da Empresa.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A cautelar diversa da prisão, consistente na proibição de comunicação com pessoa


determinada em razão de circunstâncias relacionadas ao fato, está prevista no art. 319, inciso
III, do Código de Processo Penal. Os demais incisos da normativa trazem outras hipóteses,
podendo elas serem aplicadas isoladas ou cumulativamente, a depender da necessidade inerente
ao caso.
Tais medidas foram inseridas pela Lei nº 12.403/2011 com o intuito de substituir a
decretação de prisão cautelar, cuja gravosidade justifica a sua aplicação somente como último
recurso, ou seja, em não sendo suficientes as medidas cautelares diversas ou em caso de
descumprimento dessas.
Contudo, não raras vezes, por entenderem que a gravosidade permeia tão somente a
cautelar de prisão, julgadores banalizam a decretação de medidas diversas, sem sopesar a
necessidade, proporcionalidade, tampouco as consequências irreversíveis que poderão
igualmente resultar de tais medidas.
No que se refere especificamente à cautelar de incomunicabilidade entre investigados,
para além da finalidade a que se propõe, discute-se acerca da decretação em face de agentes

1 Advogada inscrita sob o n.º 125.188/RS, bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, cursando L.LM. em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Desenvolvimento e Pesquisa, e-
mail analopestaffarel@gmail.com
80
que compõem o mesmo núcleo familiar e a afronta à integridade familiar, bem protegido pelo
art. 226 da Constituição Federal, que embora necessária, não esgota a atenção que o tema
necessita. Por isso, a presente análise será voltada à decretação da referida cautelar em face de
investigados ou acusados que figuram como sócios e a potencial prejudicialidade à preservação
da empresa.

2 DA CAUTELAR DE INCOMUNICABILIDADE ENTRE INVESTIGADOS OU


ACUSADOS
2.1 Breves considerações acerca das medidas cautelares diversas da prisão

A Lei 12.403/2011 modificou substancialmente o capítulo V do Código de Processo


Penal, que trata das medidas cautelares. Especificamente em relação ao art. 319 do referido
diploma, a redação original restou alterada, passando a prever diversas medidas cautelares
diversas da prisão, quais sejam (BRASIL, 2011):

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão: (Redação dada pela Lei nº
12.403, de 2011).
I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz,
para informar e justificar atividades; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por
circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante
desses locais para evitar o risco de novas infrações; (Redação dada pela Lei nº 12.403,
de 2011).
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias
relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; (Redação
dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou
necessária para a investigação ou instrução; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o
investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; (Incluído pela Lei nº 12.403,
de 2011).
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica
ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações
penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com
violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-
imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; (Incluído pela Lei
nº 12.403, de 2011).
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos
do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência
injustificada à ordem judicial; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
IX - monitoração eletrônica.

Tais medidas de natureza cautelar visam substituir a decretação de prisão preventiva,


medida mais gravosa que apenas justificar-se-á quando as demais forem inadequadas ou

81
insuficientes à proteção do bem ameaçado, podendo serem aplicadas isoladas ou
cumulativamente, a depender do caso concreto.

2.2 Requisitos que norteiam a aplicação das medidas cautelares diversas da prisão

Para que haja a decretação e manutenção das medidas cautelares diversas à prisão,
deverá ser observado o binômio necessidade e adequação2, previsto no art. 212, I e II do Código
de Processo Penal (BRASIL, 1941):

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas
observando-se a: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal
e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações
penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições
pessoais do indiciado ou acusado. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

Não estando mais presentes os requisitos, a medida deverá ser imediatamente afastada,
diante da sua natureza cautelar e provisória. Cumpre ressaltar, nesse aspecto, que só poderão
ser adotadas medidas alternativas quando preenchidos os mesmos requisitos da prisão
preventiva.
No que se refere à necessidade, deve ser observado o periculum libertatis
contemporâneo. Trata-se de avaliar se no momento da decretação a liberdade do agente
efetivamente coloca em risco a aplicação da lei penal, a investigação ou a instrução criminal,
bem como se há probabilidade de o agente praticar novos delitos. Nesse diapasão, Aury Lopes
Jr. Adverte que o desprezo a tal requisito acarreta ilegalidade à prisão cautelar, porquanto o
periculum libertatis deve ser atual, não passado ou futuro (LOPES JR., 2019, p. 660).
Por outro lado, a adequação, decorrente do princípio da proporcionalidade, pressupõe
que a medida diversa a ser adotada seja capaz de atingir a finalidade a que se propõe e, além
disso, seja menos onerosa ao agente do que eventual prisão. Rogério Schietti sintetiza que “essa
escolha da medida – dentre as igualmente idôneas – apta para atingimento do fim almejado

2
“3. As medidas cautelares devem ser ministradas pelo binômio necessidade, à vista da aplicação da lei penal, da
investigação ou a instrução criminal e para evitar a prática de infrações penais; e adequação, avaliada pela
gravidade do crime e pelas circunstâncias e condições pessoais do indiciado ou acusado do fato (art. 282, I e II -
CPP), não podendo ser tidas como permanentes, mas apenas enquanto visarem um resultado útil para a
investigação ou o processo de fundo (cautelaridade).” SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC 145.501, de
relatoria do Ministro Olindo Menezes. 6ª Turma. Publicado em 04/10/2021. Disponível em:
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2102404&num_
registro=202101035072&data=20211004&formato=PDF
82
deverá resultar da análise de qual dessas escolhas representa o menor gravame ao direito
sacrificado” (CRUZ, 2022, p. 127).
Ainda, acerca de tais requisitos, Renato Marcão corretamente sinaliza sobre a
excepcionalidade da medida (MARCÃO, 2021, p. 368):

São medidas constritivas ou restritivas de direitos, e exatamente por isso de imposição


excepcional, como toda e qualquer restrição cautelar, cumprindo que se observem os
requisitos gerais de aplicação – necessidade e adequação (CPP, art. 282) –, bem como
a taxatividade do rol disponibilizado.

No entanto, embora as cautelares diversas possuam os mesmos requisitos robustos da


decretação da prisão cautelar, parte das decisões judiciais demonstram a banalização na hora de
aplicação das primeiras. A título de exemplo, tem-se desde decisões fundamentadas
genericamente (ou sequer fundamentadas), o excesso de prazo, o desprezo às restrições que elas
impõem e a antecipação de pena, como muito bem reconhecido em decisões proferidas pelo
Superior Tribunal de Justiça, que reformaram aquelas proferidas pelas instâncias a quo
(SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RHC n.º 165.278, 2022) e (SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA, RMS n.º 67.613, 2022). Aury Lopes Jr. corretamente critica a banalização da
adoção de tais medidas pelo Poder Judiciário (LOPES JR., 2021, p. 287):

Infelizmente os juízes banalizaram as medidas cautelares diversas e deram a elas uma


autonomia que não possuem. São medidas cautelares substitutivas e, portanto, exigem
a presença do fumus commissi delicti e do periculum libertatis, não podendo, sem eles,
serem impostas. Inclusive, se durante uma prisão preventiva desaparecer
completamente o requisito e/ou fundamento, deve o agente ser libertado sem a
imposição de qualquer medida alternativa.

Assim, em algumas situações, a banalização da decretação de medida diversa pode


acarretar consequências mais gravosas do que a própria decretação da prisão preventiva, como,
por exemplo, a incomunicabilidade entre investigados – medida que será amplamente analisada
a seguir.

2.3 Considerações acerca da medida cautelar de proibição de comunicação entre com


pessoa determinada

A medida cautelar de proibição de manter contato com pessoa determinada, seja ela
vítima, testemunha ou corréu, está prevista no art. 319, III, do Código de Processo Penal e tem
como finalidade evitar o risco de novas infrações diante das circunstâncias relacionadas ao fato.

83
Cumpre ressaltar que, embora a sua aplicação seja amplamente adotada pelos julgadores
para proibição de contato entre investigados ou acusados, a doutrina restringe-se a abordá-la
precipuamente nas hipóteses de incomunicabilidade entre investigado ou acusado e vítima. Isso
porque tal cautelar mantém correspondência com a medida de urgência prevista no art. 22, III,
“b”, da Lei 11.340/20063.
No que se refere à amplitude do contato, diante da lacuna do legislador, a doutrina
entende que deve abranger o contato físico, telefônico, virtual, inclusive através de terceiros,
para assegurar sua eficácia. A fim de ilustrar tal entendimento, colaciona-se trecho escrito por
Norberto (AVENA, 2018, p. 223):

Outro aspecto importante refere-se à expressão proibição de manter contato,


incorporada ao texto legal. Não olvidamos que a redação do art. 319, III, referindo-se
à pessoa de que deva o indiciado ou acusado permanecer distante, sugere tratar-se
proibição de contato pessoal. Sem embargo, compreendendo que a medida tem
por finalidade não apenas proteger a integridade da pessoa em prol de quem é
aplicada (ofendidos e testemunhas, principalmente), mas também evitar o
comprometimento da prova em razão de atitudes do agente, e tendo em vista que o
seu comportamento intimidatório pode se externar não somente pelo contato direto,
mas também através de outros meios de comunicação, reputamos que nada
impede, inclusive em face da leitura do dispositivo análogo existente na Lei
11.340/2006 (art. 22, III, b), que, ao impor a medida cautelar restritiva do art. 319, III,
determine o magistrado a proibição de qualquer tipo de contato com a pessoa
protegida, isto é, não apenas o contato direto e pessoal como também aquele externado
por outros meios – telefone, e-mail, correspondência etc.-, os quais devem ser
explicitados na decisão judicial. Trata-se de conferir efetividade à tutela prevista na
legislação.

Por fim, para que haja a decretação da medida cautelar, imprescindível o contraditório,
ou seja, a prévia manifestação do investigado ou acusado acerca da imposição. Contudo, o
contraditório acaba sendo mitigado em inúmeras oportunidades, por força do art. 282, §3º, do
Código de Processo Penal4, o qual dispõe que em casos de urgência ou risco de ineficácia, torna-

3
“Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz
poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de
urgência, entre outras: [...] III - proibição de determinadas condutas, entre as quais: [...] b) contato com a ofendida,
seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;”. BRASIL. Lei 11.340 de 2006. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em 22 de jan. de 2023.
4
“Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: [...] § 3º
Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida
cautelar, determinará a intimação da parte contrária, para se manifestar no prazo de 5 (cinco) dias, acompanhada
de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo, e os casos de urgência ou de
perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que
justifiquem essa medida excepcional.” BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Acesso em 24 de jan. de 2023.
84
se viável a decretação das medidas cautelares diversas da prisão sem a prévia manifestação da
parte contrária (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, RHC n.º 133.584, 2022).

3 DO PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

O princípio da preservação da empresa, decorrente da função social, norteia o objetivo


principal do instituto da Recuperação Judicial e, diante de tamanha importância, restou
expressamente previsto em diversos dispositivos da Lei n. 11.101/05, mais especificamente no
art. 47, que dispõe (BRASIL, 2005):

art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de
crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte
produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo,
assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica.

Scalzilli, Tellechea e Spinelli assim o definem (SCALZILLI; TELLECHEA;


SPINELLI, 2012, p. 16):

O princípio basilar da LFRE é o da preservação da empresa, especialmente diante dos


interesses que em torno dela gravitam. Vale dizer, a empresa é a célula essencial da
economia de mercado e cumpre relevante função social, porque, ao explorar a
atividade prevista em seu objeto social e ao perseguir o seu objetivo o lucro, promove
interações econômicas (produção ou circulação de bens ou serviços) com outros
agentes do mercado, consumindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos,
movimentando a economia, desenvolvendo a comunidade em que está inserida, enfim,
criando riqueza e ajudando no desenvolvimento do País, não porque esse seja seu
objetivo final – de fato, não o é -, mas simplesmente em razão de um efeito colateral
e benéfico do exercício da sua atividade.

Ou seja, tal princípio decorre da manifesta preocupação do Estado em manter a empresa


em funcionamento, porquanto sua extinção não afeta tão somente um indivíduo ou grupo de
sócios, mas toda a estrutura social em que está inserida, desde a manutenção da produção,
empregos, interesse dos credores, até mesmo redução da arrecadação tributária,
enfraquecimento de políticas sociais, perspectivas de desenvolvimento social (BANNWART,
2015, p. 270).
Contudo, embora esteja prevista na Lei de Recuperação Judicial e Falências, o princípio
da preservação da empresa não deve resguardá-la somente nas hipóteses previstas na normativa
referida, mas desde seu nascedouro, justamente para evitar o acometimento por crises que
coloquem em risco a sua existência. Nesse aspecto, Francisco Satiro de Souza Junior e Antônio
Sérgio Altieri de Moraes Pitombo advertem (SOUZA JR., 2007, p. 54):
85
Em primeiro lugar, a clara opção institucionalista pela preservação da empresa da
nova Lei de Falências exigirá, por necessidade de coerência lógica, a extensão desse
institucionalismo para a vida social. O que se quer dizer é que não é possível pensar
em preservação da empresa apenas no período de crise da empresa, mas também
durante a sua vida. Assim sendo, a aplicação da nova Lei de Falências de forma
coerente com o princípio da preservação da empresa pode ajudar a dar aplicação a
princípios institucionalistas societários como o do art. 116 da Lei 6.404/1976.

Diante da relevância de tal princípio, o mesmo deve ser observado durante toda a vida
da empresa, devendo o Estado ser o seu maior e principal guardião. Assim, a preocupação com
o funcionamento dos empreendimentos acarretou a positivação do referido princípio na Lei de
Recuperação Judicial e Falências.

4 DA PREJUDICIALIDADE DA DECRETAÇÃO DA CAUTELAR DE


INCOMUNICABILIDADE ENTRE INVESTIGADOS OU ACUSADOS-SÓCIOS À
PRESERVAÇÃO DA EMPRESA

Embora não se discutam os benefícios trazidos pela inclusão de medidas cautelares


diversas da prisão ao diploma processual penal, cumpre referir a necessidade de avaliação da
necessidade e proporcionalidade para sua adoção, ainda que não se trate de medida tão gravosa
quanto a prisão cautelar.
No âmbito da proibição de manter contato com pessoa determinada, algumas situações
acarretam preocupação acerca das consequências por vezes mais graves do que eventual prisão.
Nesse sentido, ainda que não seja o escopo do presente trabalho, oportuno referir a hipótese de
proibição de contato com co-investigado ou corréu que componha o mesmo núcleo familiar ou
resida no mesmo local.
Com efeito, a adoção de tal medida afronta diretamente a integridade familiar, bem
protegido pelo art. 226 da Constituição Federal. Para além disso, mitiga direito que o acusado
ou investigado teria assegurado em eventual encarceramento preventivo, qual seja, o direito à
visita, previsto expressamente no art. 41, X, da Lei de Execuções Penais5, tornando a medida
cautelar ainda mais gravosa.
Por outro lado, quando se trata de incomunicabilidade entre co-investigados ou corréus
que figurem sócios de empresa, a gravidade das consequências não destoa da citada acima. Isso

5
“Art. 41 - Constituem direitos do preso: [...] X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias
determinados;” BRASIL. Lei de Execuções Penais. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em 23 de jan. de 2023.
86
porque, tratando-se principalmente de sociedades em que sócios também são administradores,
como no caso das sociedades limitadas, eventual incomunicabilidade entre eles afeta não só a
relação pessoal, característica relevante para associarem-se, mas também a preservação da
empresa, conquanto não há como administrá-la conjuntamente, lembrando que a comunicação
sequer pode ser feita por interposta pessoa.
Ou seja, nessas situações, o Estado incide em evidente contradição, pois, de um lado,
decreta cautelar cujas consequências podem ser nocivas à continuidade da empresa, e de outro
positiva em nosso ordenamento jurídico a sua preocupação com a preservação dela.
Para além disso, afeta a lógica dos preceitos constitucionais, pois os reflexos das
cautelares transcendem a figura do indivíduo a qual está direcionada, situação em que diante de
eventual apenamento seria constitucionalmente inadmissível, por força do art. 5º, XLV, da
Constituição Federal6.
Inobstante, fere diretamente o que preceitua o art. 20 da Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se
decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as
consequências práticas da decisão”. Rafael (MAFFINI, 2018, p. 253) analisa a referida
normativa do seguinte modo:

O art. 20 “caput” do Decreto-Lei no 4.657/1942, inserido, como visto, pela Lei no


13.655/2018, é eloquente em determinar ao intérprete do direito público que ele
“dialogue com a realidade”, conferindo-se ênfase nas “consequências práticas” da
decisão. E não é só: essa determinação vale para o gestor público, para quem perfaz
o controle da atividade administrativa e para os magistrados. Destaque-se que tal
preceito legal não veda que decisões administrativas sejam exaradas com base em
valores jurídicos abstratos. Aliás, “valores jurídicos abstratos” por vezes consistem
em decorrências lógicas de instrumentos legítimos utilizados pelo legislador quando
da estipulação de regras de competências, sobretudo nos casos de regras
discricionárias e de regras portadoras de conceitos jurídicos indeterminados. O que se
veda é que a utilização de tais “valores jurídicos abstratos” ocorra de modo
descompromissado com as consequências práticas da decisão.

Por fim, diante da banalização da decretação da referida cautelar, pouco se observa o


juízo de proporcionalidade e as consequências extraprocessuais que poderão resultar, a exemplo

6
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...] XLV - nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a
obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores
e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;”. BRASIL. Constituição Federal.
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 24 de jan. de
2023.
87
da (in)viabilidade de manutenção da empresa. Não se desconhece que o Juízo não possua todas
as informações acerca das condições pessoais e profissionais dos afetados pela medida.
Contudo, o momento em que esses poderiam alertá-lo, não raras vezes, acaba sendo mitigado,
por força do art. 282, §3º do Código de Processo Penal, que afasta o contraditório.
Assim, não se está criticando os benefícios da adoção de medidas cautelares diversas
em detrimento da prisão. No entanto, sua decretação deve ser pautada pelos critérios de
necessidade e proporcionalidade, adotando-se medida mais eficiente para atingir a finalidade e,
por outro lado, menos gravosa ao acusado, cuja letalidade poderá ser identificada a partir da
adoção do contraditório.

5 CONCLUSÃO

Conforme amplamente discorrido acima, as medidas cautelares diversas visam mitigar


a incidência da prisão cautelar. Contudo, para que haja sua decretação, deverão ser observados
os requisitos de necessidade e proporcionalidade, que norteiam, da mesma forma, a prisão
cautelar. Dentre as cautelares diversas ao encarceramento, está a proibição de comunicação
entre investigados ou acusados, de modo a evitar o risco de reiteração criminosa.
Assim, embora de natureza menos gravosa, a aplicação da medida cautelar em análise
não pode ser banalizada, conquanto suas consequências extraprocessuais podem ser
avassaladoras, superando em muito o benefício do alcance de sua finalidade. Nesse sentido,
destaca-se a importância do exercício do contraditório, por meio de manifestação prévia dos
acusados ou investigados, para que possam trazer ao conhecimento do Juízo eventuais
consequências desconhecidas por esse, como a sociedade entre acusados ou investigados de
empresa em pleno funcionamento.
Portanto, o presente estudo teve o intuito de esmiuçar, especificamente, a decretação da
medida cautelar de proibição de comunicação entre investigados ou acusados que figurem
sócios e a transcendência dos efeitos da cautelar à preservação da empresa, de modo a contribuir
com a compreensão de aspectos complexos inerentes ao tema, e, consequentemente, com a
diminuição da banalização da decretação de medidas cautelares diversas, que sequer são
precedidas de contraditório, e das possíveis consequências que ultrapassam o indivíduo ao qual
estão direcionadas.

88
REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto. Processo Penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2018.

BANNWART, Cleodomiro José Jr. et al. A preservação da empresa e sua participação para
consecução de políticas públicas. In: Revista Brasileira de Direito Empresarial. v. 2. Nº 1.
Minas Gerais, 2015.

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<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm>.

_______. Constituição Federal. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>.

_______. Lei de Execuções Penais. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>.

_______. Lei de Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm>.

_______. Lei Maria da Penha. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>.

CRUZ, Rogério Schietti. Prisão cautelar: dramas, princípios e alternativas. 7ª ed. São Paulo:
JusPodivm, 2022.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

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MAFFINI, Rafael. Análise acerca da aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito


Brasileiro (na redação dada pela Lei nº 13.655/2018) no que concerne à interpretação de
normas de direito público. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/77683/74646>.

MARCÃO, Renato. Curso de Processo Penal. 7. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2021.

SCALZILLI, João Pedro. et al. Objetivos e Princípios da Lei de Falências e Recuperação de


Empresas. In: Revista Síntese Direito Empresarial. ed. 26. São Paulo, 2012.

SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro de Souza. Comentários à Lei de recuperação de empresas


e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RHC n. 133.584/AC de relatoria da Ministra Laurita


Vaz, Sexta Turma, publicado em 1/7/2022. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202002213205&dt_p
ublicacao=01/07/2022>.

89
_______. RHC 145.501, de relatoria do Ministro Olindo Menezes. 6ª Turma. Publicado em
04/10/2021. Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequenc
ial=2102404&num_registro=202101035072&data=20211004&formato=PDF>.

_______. RHC n. 165.278/CE de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma,
publicado em 12/12/2022. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202201550919&dt_p
ublica>.

_______. RMS n. 67.613/DF de relator ia do Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma,
publicado em 16/11/2022. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202103276441&dt_p
ublicacao=16/11/2022>.

90
AS MULHERES NOS ESPAÇOS DE TOMADA DE DECISÃO: UM AVANÇO
PARA A DEMOCRACIA PARITÁRIA, AUTONOMIA, DESENVOLVIMENTO
E SUSTENTABILIDADE

Andréa Marta Vasconcellos Ritter1

RESUMO

O objetivo deste artigo consiste em demonstrar que as mulheres como são agentes nos espaços
de tomada de decisão e nesta qualidade, fazem parte do sistema político, em seus vários órgãos
e poderes, sendo importante para estabelecer um meio para busca a democracia paritária. As
mulheres na liderança, no processo de tomada de decisão, são as propulsoras em prol das
políticas institucionais e públicas, bem como impulsionam ações em favor da equidade de
gênero, autonomia, desenvolvimento e sustentabilidade. A pesquisa é documental e de caráter
qualitativo, os doutrinadores e documentos referenciados são os fundamentos jurídicos e
principal eixo. A conclusão é que as mulheres são agentes, que nos distinguem nos ambientes
de tomada e decisão ao resolver sobre as políticas públicas atuam em prol da coletividade e
empoderadas, são de grande importância para a democracia paritária bem como para o
desenvolvimento social e econômico da humanidade. Trata-se de impulsionar a liderança das
mulheres, de tornar visível o invisível e de reconhecer que é necessário considerar o “recorte
de gênero” para a tomada de decisão, para a formulação, planejamento e execução das políticas
públicas pelas mulheres, devendo a perspectiva de gênero ser aplicada para reduzir as
desigualdades, na consecução do bem estar e dos objetivos da Agenda 2030, com mobilidade
para além do ordenamento jurídico. O desenvolvimento requer uma visão estratégica com a
liderança das mulheres que são as agentes da tomada de decisão, transformando e atingindo a
sustentabilidade da vida com igualdade e paz.

Palavras-chave: Mulheres.Tomada de Decisão. Liderança. Democracia Paritária.

1 INTRODUÇÃO

As questões de gênero, nos últimos 45 anos e especificamente às referentes ao lugar e


papel das mulheres adquiriram uma grande importância na promoção da autonomia,
desenvolvimento e sustentabilidade.
Cresceram os Movimentos de Mulheres, as Agendas foram incrementadas pelas
Resoluções das Conferências, Acordos e Pactos mundiais e regionais de mulheres, mas ainda
há necessidade de lutas, estratégias, Força Tarefa, sendo contínua, crescente a conscientização
sobre a importância das questões de gênero e os impactos nas crises, sub-representação e
consequências desproporcionais das vidas e direitos das mulheres.

1
Advogada- OAB/RS n. 24451, Professora Universitária, Mestre em Direito Internacional, Pós-Graduação em
Direito Público e Privado e Estudos e Estratégia Internacional, Julgadora do Tribunal de Ética e Disciplina da
OAB/RS. E-mail: amritter@terra.com.br
91
Apesar das questões de gênero de estarem em expansão é necessário pontuar que se
apresenta um quadro em alguns Estados em que as políticas não são entabuladas e exercidas
com os chamados “recortes de gênero”, que são essenciais, face às necessidades e
especificidades das meninas, jovens e mulheres e necessária a liderança das mulheres para
reconhecer a divergência e a pluralidade na governança democrática.
As mulheres ainda estão invisíveis e afastadas dos espaços de poder e as questões e
resultado do feminino não tiveram força suficiente para empoderar as mulheres e consideradas
irrelevantes para as esferas internas e externa.
Essencial impulsionar a liderança das mulheres e a democracia paritária, para tanto,
necessário seguir na promoção e execução das ações, Convenções e Pactos, aprovados com a
finalidade de fortalecer a luta das mulheres pelo empoderamento, pela autonomia, pela
igualdade e pela liberdade.
O processo de tomada de decisão das mulheres ainda é ignorado e não fosse isso,
também existe a definição convencionada de que o Estado é o tomador de decisão, é o
responsável pela formulação e exercício da Alta Política, isto é, as questões referentes à
segurança e a macropolítica e neste nível, as questões de gênero têm pouco ou nenhum lugar.
A impulsão da liderança das mulheres com as Agendas de Gênero, Cartas das
Conferências, apesar de tais Resoluções, cabe dizer que as questões multiníveis e transversais
não são propostas, mediadas e definidas através dos Estados, mas sim, por meio das verdadeiras
protagonistas, agentes e tomadoras de decisão que são as mulheres que de fato decidem e devem
tomar as decisões sobre as políticas institucionais e públicas e para tanto, necessário à presença
das mulheres em todos os espaços públicos ou privados.
A promoção da liderança das mulheres promoverá a igualdade de gênero e o
empoderamento através de maior sinergia entre os Estados e Instituições públicas e provadas.

2 AS MULHERES COMO PROTAGONISTAS NA TOMADA DE DECISÃO:


LIDERANÇA, AUTONOMIA E DEMOCRACIA PARITÁRIA

O poder e da prática do Estado e Instituições públicas e privadas, ainda são próprios e


impregnados de dominação masculina, distante das normas de paridade de gênero, raça e etnia,
também, nas esferas de poder e formação de políticas em Ministérios e Secretarias, valendo
inclusive para o Sistema Internacional.

92
Na ideologia convencional, as mulheres não são preparadas para atividades de liderança
e tomadas de decisão e consoante (HALLIDAY, 1999), não se pode contar com as mulheres
em uma questão de segurança e crise, que nada poderá estar mais distante da esfera tradicional
de preocupação das mulheres do que a segurança internacional e as outras questões globais.
Em verdade, tal pensamento patriarcal, intencional e estrutural é desconsiderado na
maior parte das relações e nos processos de tomada de decisão, além do paternalismo,
machismo, pretender uma separação entre o gênero e o processo de tomada de decisão, que é
manter as mulheres invisíveis e subjugadas, quando é através das mulheres que se alcança o
desenvolvimento, a democracia paritária, os objetivos da Agenda 2030 e a paz.
Não há como não considerar às questões de gênero, sendo necessário o recorte, a
liderança das mulheres, para o processo de tomada de decisão, para a formulação e execução
de políticas públicas e negligenciar a existência desta leitura particular de gênero implica em
amparar a tese de que os processos de tomada de decisão seriam neutros em gênero, ou seja,
que não teriam nenhum efeito sobre a posição e o papel das mulheres na sociedade.
Então, é necessário considerar o feminismo que se preocupa com o interpessoal,
subjetivo, com o privado, com o individual, que vê as formas de domínio, ideologia, diferenças
do trabalho e sobre tudo, a paridade de gênero, raça e etnia.
Cabe ressaltar que a sub-representação das mulheres em vários ambientes de tomada de
decisão é manifestação de significado, história, estrutura de gênero, no exercício do poder e a
escassa presença das mulheres, em questão de desenvolvimento, economia, política, justiça,
saúde, previdência, clima, emergências, crise, concebidas além das necessidades especiais das
mulheres, ignora a importância das mulheres para a sociedade com consequências
desproporcionais em suas vidas e direitos.
O Estado tem obrigação e compromisso com os direitos das mulheres que de verdade
realizam a tomada de decisão, fato é que os processos de tomada de decisão possuem os efeitos
de gênero e que as mulheres são as agentes, as atoras das relações, sujeitos de direitos,
protagonistas e participantes das tomadas de decisão e por isso vital impulsionar a liderança das
mulheres e a democracia paritária.
Citando (DARVIN,1978), a política do futuro será doméstica, eis que “não existe um
útero estatal, não existe seios estatais, não há substitutivo real para a beleza da maternidade
individual”. Neste sentido, mister as mulheres, como agentes e tomadoras de decisão, que têm
liberdade que significa autonomia e tal gera desenvolvimento e sustentabilidade que são os
objetivos da Agenda 2030 e da democracia.

93
No debate político contemporâneo, ainda há a presença da violência, dos dominadores,
de insultos para as mulheres, de tais como louca, histérica, chorona, fraca, burra, entre outros
adjetivos que reduzem e menosprezam as mulheres, mas também se verifica mulheres que
ocupam posições políticas de destaque, assegurando a contraparte masculina e à opinião pública
de que podem agir e ser tão fortes quanto os viris homens.
A emergência sobre as questões das mulheres dentro da política institucional e nos
processos de tomada de decisão envolve desafio duplo e para (RITTER, 2021), tais domínios
que estão separados. Isto é, a primeira deveria reconhecer em que grau está sujeita à percepção
de gênero e o processo de tomada de decisão teria que superar a negação sobre o agente, se
Estado ou as mulheres, ou o processo e normas e formular sua análise e sugestão para apresentar
um processo em que as mulheres são agentes, formuladoras, tomadoras de decisão e exercem
as políticas destas oriundas.
O desafio é revelar como as questões de gênero exercem e poderiam desempenhar um
papel relevante da liderança das mulheres, nos processos de tomada de decisão, com vistas à
formulação e realização de políticas públicas para as meninas, jovens e mulheres; e segundo,
analisar as especificidades de gênero, o denominado recorte de gênero, nas várias áreas de
atuação do Poder Público e também dos processos militares, ideológicos, políticos, sociais que
tem consequências domésticas e mudanças internas com implicância nos destinos das mulheres
e da sociedade.
Após anos da emergência do feminismo, mesmo assim, a relevância sobre as questões
de gênero nos processos de tomada de decisão, como fator de autonomia das mulheres, de
desenvolvimento e sustentabilidade é vista como evidente, principalmente pelos Movimentos,
Organizações Internacionais e pelas Conferências de Mulheres.
Neste ponto, importante salientar, dentre as várias Conferências, Acordos e Pactos que
impulsionaram a liderança das mulheres e a democracia paritária a VIII Cúpula das Américas
(2018- Peru) que aprovou a criação da Força Tarefa Interamericana sobre a liderança das
mulheres comprometidas a promover a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres
através de maior sinergia entre Instituições que promovem a liderança das mulheres na América
Latina.
Integram a Força Tarefa, treze (13) Instituições Interamericanas e Internacionais com
experiência e programas nas áreas relacionadas com a liderança, participação política e
empoderamento das mulheres estão engajadas no diálogo, mobilização de Ações

94
Governamentais dos vários setores da sociedade, frente a desafios regionais, incluindo
recuperação, paridade e fortalecendo a governança democrática.
Considera a Força Tarefa, que a liderança das mulheres é elemento transversal em todas
as discussões tem relevância em relação à governabilidade, pois a participação das mulheres
nos espaços de tomada de decisão é fundamental para a democracia, desenvolvimento
sustentável e a recuperação da Região.
Não havendo neutralidade de gênero, então, mais que necessário a presença das
mulheres nos espaços de poder em todos os níveis. O recorte de gênero nos possibilita observar
peculiaridades femininas para o processo de tomada de decisão mais específico.
As políticas nacionais e internacionais e os processos de tomada de decisão não são
neutros de gênero e consoante (RITTER, 2021), exercem importante presença na determinação
do lugar das mulheres na sociedade, que como protagonistas são livres para estar, ter vez e voz,
onde desejar, bem como na estrutura das relações sociais, econômicas e políticas entre os sexos.
Importante impulsionar a liderança das mulheres nos processos de tomada de decisão
ou há um lugar, uma posição ou uma tarefa específica para as mulheres?
Na esfera política o ingresso das mulheres na vida política como eleitoras e sujeitos
políticos, um fenômeno internacional e após apresentado como nacional foi uma grande
mudança no século XX.
Desde então, as mudanças políticas tem consequências diretas para as mulheres,
considerando que são as mulheres as tomadoras de decisão e formulação de políticas públicas
atuando de forma transversal, em diversos âmbitos, mas ainda há desafios para alcançar a
paridade substantiva e a autonomia das mulheres.
Sem risco de exagerar, (HALLIDAY, 1999) estende o slogan do movimento das
mulheres - que o pessoal é político - para afirmar que o pessoal é internacional, no sentido de
que as relações interpessoais, são bastante influenciadas pelos processos transnacionais e tal é
agora comprovado pela Covid-19, cujo efeito é múltiplo nas relações de gênero e agravou mais
os problemas particulares das mulheres, como o excesso de trabalho e a violência doméstica.
A dimensão a ser considerada, é que as mulheres, apesar da história e estrutura de
subordinação, têm excelência, competência, experiências e na qualidade de protagonistas, como
agentes internacionais e nacionais em assuntos de gênero e paz, bem como desenvolvimento
econômico, sustentabilidade e também cumprimento de Agendas, crescimento de Movimentos
de Mulheres, com a preocupação de alterar a posição e pensamento que estuda a sociedade e
pessoas.

95
Assim, vital a participação com equidade e significativa das mulheres e a igualdade de
oportunidades de liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, social,
cultural e eliminar barreiras estruturais, legislativas, institucionais, econômicas, sociais que
impedem a paridade democrática de mulheres e meninas.
As redes, movimentos e organismos de mulheres, existem desde a antiguidade, sendo
exemplos de lutas, de resiliências, de protagonismos de autoras não estatais e de fato ainda é
necessário reforçar que de fato as mulheres agentes, que atuam e exercem a tomada de decisão,
todos os dias, nos ambientes públicos e privados, promovendo o desenvolvimento e a
sustentabilidade.
As questões de gênero devem ser tratadas em várias arenas, em multiníveis e com
transversalidade entre os poderes, matérias e ações, pois tais questões de gênero não são
pessoais ou únicas, mas formam parte de um todo, como é evidente nas campanhas para a
promoção da igualdade, as dimensões de gênero da política econômica com relação ao
emprego, divisão sexual do trabalho, cuidatoria, migração, desenvolvimento e sustentabilidade
recebem mais agentes e ações que beneficiam as mulheres e a sociedade.
O patriarcado utiliza o Estado e as ideologias que o legitimam como um meio de reforçar
o controle sobre as mulheres exercendo por política estatal o que consideram melhorar a posição
das mulheres, mas sem ouvir as mulheres e assim vários objetivos que são contraditórios para
as mulheres.
Com a liderança das mulheres e a democracia paritária a posição das mulheres iria
alterar, mudaria se realizasse o recorte de gênero e as dificuldades seriam resolvidas e a
sociedade iria evoluir para a independência de Estado e as mulheres consideradas agentes,
protagonistas têm o direito de desafiar a autoridade do Estado que abriga a nação.
O nacionalismo não pode ter consequência prejudicial para as mulheres e a disciplina
de gênero deve ser realizada, privilegiada e não marginalizada ou silenciada o que, também
deve ocorrer com a política como direito das minorias, étnicas, trabalho ou outras designações.
Não se trata apenas de entender a relevância das relações de gênero no Estado, na
organização da vida social, mas como as mulheres são as mais afetadas de forma potencial, de
modo especial a liderança e o processo de tomada de decisão que na política, uma vez realizado
pelas mulheres o seu ponto de vista para a formação transversal e execução das políticas
públicas.
Fato é que os Estados e Instituições não conseguem dispor sobre as especificidades,
pluralidades e peculiaridades das mulheres e assim, as mulheres como protagonistas no sistema

96
e a política exercendo um impacto sobre os indivíduos, suas identidades é o poder das mulheres
em postos de tomada de direção, relevante para a política nacional e internacional que está em
ascensão.
Consoante dados do Observatório da Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe,
nove (09) países da América Latina tem norma de paridade em sua legislação eleitoral
(Argentina, Bolívia, Costa Rica, Equador, Honduras, Nicaragua, México, Panamá e Peru) e
outros nove (09) contam com leis de cotas entre 20 e 40 % de representação por sexo para as
candidaturas eleitorais (Brasil, Chile, Colômbia, El Salvador, Guiana, Haiti, Paraguai,
República Dominicana e Uruguai).
De acordo com o Global Gender Gap Report (2021) outra geração de mulheres terá que
esperar para alcançar a paridade de gênero, salientando o relatório que segundo a trajetória atual
e impactos diversos da pandemia da Covid-19, levará 135,6 anos para fechar a brecha de gênero
em todo o mundo e 145,5 anos para alcançar a paridade de gênero na política.
Neste ponto, as mulheres necessitam vencer as barreiras do patriarcado, estrutura dos
partidos, elegibilidade, reeleição e permanência no sistema partidário, sendo necessária a
criação de política transversal, no mais alto nível da gestão pública, instituições fortes, que
promovam o empoderamento das mulheres, junto com as Redes e Movimentos, para garantir
avanços e impedir retrocessos.
A visão tradicional deve ser superada, o “telhado de vidro “deverá ser quebrado, assim
como a masculinidade atribuída ao poder, bem como os preceitos e estereótipos sobre o papel
dos homens e mulheres levando em conta a participação da democracia, cultura política e as
relações de gênero (RITTER, 2021).
Os processos de tomada de decisão irão oportunizar a autonomia e o empoderamento
das mulheres, sendo necessário viabilizar práticas e os interesses estratégicos das mulheres tão
necessários para a democracia paritária.
A tomada de decisão nesse sentido aproxima o aspecto prático do aspecto estratégico e
mudanças deverão ser realizadas nestes âmbitos, com o empoderamento e a consciência na
tomada de decisão é a forma de enfatizar a existência de desigualdade de gênero e a importância
da participação e da organização social das mulheres.
Os processos de autonomia e tomada de decisão têm por objetivo a transformação das
estruturas que reforçam a discussão de gênero e a desigualdade social, sem ignorar processos
individuais e demandas cotidianas, sendo fundamental para o desenvolvimento do sistema e a
realização dos direitos humanos, que em conjunto com a democracia paritária irá incluir as

97
vozes das mulheres nos debates e formar avanços nas Agendas que buscam transformar os
ciclos assimetria de poder.
Comprovado que mulheres que exercem cargos políticos, destinam mais recursos para
investimentos socais e são preocupadas como bem estar e proteção jurídica, cidadania e
produtividade, que tem impacto na paridade.
O empoderamento político não está ainda consolidado, vez que as instituições do Estado
e sociais ainda não garantem para as mulheres igualdade de direitos humanos básicos, bem
como nos recursos, no emprego e, ganhar a participação social e política, requer intervenção
estratégica em todos os níveis de programação, elaboração e execução das políticas.
Há baixa representação no nível das Instituições públicas e particulares, governos,
parlamentos, órgãos de decisão regionais e locais organizadores da sociedade civil e
associações.
A baixa representação prejudica o exercício completo da cidadania e conduz à decisão
e políticas que ignoram problemas e necessidades especiais os direitos e prioridades devem ser
garantidas e consideradas nas decisões e políticas afetando de forma direta ou não a vida das
mulheres.
Necessário empoderar as meninas, jovens e mulheres e alterar as engrenagens das
estruturas e aproximar a vida pública da vida privada e considerar o envolvimento das mulheres
na política como legítimo e feminino e não como material e masculino e também, que o valor
lideranças femininas e a inclusão trás necessidades especiais e interesses das mulheres em toda
a diversidade e âmbitos.
O empoderamento e a autonomia, também são trazidos através dos movimentos, redes
de apoio e cooperação, que são fundamentais para a progressão política das mulheres que serão
modelos, referências, inspirações para outras mulheres devido à invisibilidade das mulheres nos
processos de tomada de decisões, fundamentais para erradicar as desigualdades, estrutura de
gênero e a construção de sociedade mi igualitária.
Cabe fomentar a aprendizagem e a autonomia das jovens, no que diz respeito às
competências de intervenção no domínio público, de modo que possam participar efetivamente
e eficazmente na tomada de decisão, com ativismo e incidência em políticas públicas.
O fato de visibilizar, empoderar as mulheres e sensibilizar as jovens para a igualdade de
gênero é forma de conscientizar seus direitos e deveres como cidadãs e avançar para a
autonomia e participar mais ativamente em todas as dimensões da tomada de decisão política e

98
social, para alcançar um mundo não sexista, não racista, não homofóbico, com igualdade,
desenvolvimento e sustentabilidade.
Para tanto, vital reconhecer o aumento paulatino de mulheres e o fortalecimento das
mulheres como massa crítica na representação política e das instituições como um todo.
A autonomia feminina é o empoderamento das mulheres que traz nova concepção de
política, assumindo formas democráticas, constituindo novos mecanismos de respeito coletivo
e de tomada de decisões e respeito compartilhado.
Em tais relações há a presença do poder ideológico, instituições partidárias, que se
valem de formas de saber, de doutrinas, conhecimento, informações, códigos de condições para
exercício de informações sobre comportamento de terceiros e induzem os membros a realização
ou não de ações, sem destaque para a liderança das mulheres, para as leis de cotas e sistemas
de representação político partidárias.
De outra banda, o Poder Político é legitimado pelo indivíduo e o homem político é livre
para perseguir os próprios objetivos, sendo que os problemas de poder fazem parte das relações
de terceiros, das relações da comunidade e das relações sociais e pessoais e por isso, importante
a superação das diferenças de gênero e o exercício dos direitos e autonomia das mulheres.
Essencial entender o poder nas relações de gênero e o empoderamento das mulheres
para o desenvolvimento sustentável e salientar que as relações de poder se mantêm porque os
atores ainda negam a existência da desigualdade e é personificada como masculina eis que as
mulheres são invisíveis e sofrem a influência do patriarcado estrutural e são mantidas como
subalternas do outro lado do poder.
Nesta seara, (COSTA, 1998) salienta que muitas mulheres não podem resolver sobre
suas vidas, não se constituindo enquanto sujeitos, não exercem o poder e também, não
acumulam este poder, mas o reproduzem para elas mesmas, mas para aqueles que de fato
contém o poder e segue dispondo que as pequenas parcelas de poder ou os pequenos poderes
que lhes tocam e permitem romper em alguns momentos ou circunstâncias, a supremacia
masculina, são poderes tremendamente designados.
Como se salientou, o domínio do patriarcado está presente na sociedade, em distante
manifestação, no mundo, domínio público e assegura poder para os homens e desiguala para as
mulheres envolvendo conteúdos de trabalho, sexo, violência, acesso restrito das mulheres aos
recursos do Estado, sociedade e participação política que distribui recursos desiguais entre
homens e mulheres, sendo que as mulheres continuam subjugadas, excluídas de qualquer esfera
de decisão.

99
As políticas de liderança e tomada de decisão, incluindo planejamento e execução,
consideram que as necessidades das mulheres são idênticas as dos homens ou a de grupos da
sociedade civil e assim, as mulheres são tratadas como mães, esposas e não como sujeito de
direitos com autonomia e vários projetos são inócuos, ineficazes e contraproducentes não
produzindo resultados transformadores o que não supera designação de gênero nem traz
desenvolvimento das mulheres, jovens e meninas.
A democracia paritária impulsiona as mulheres de diferentes regiões para uma igualdade
substantiva e a paridade como vértebra da governança democrática, valendo transcender a
paridade eleitoral e apontar para a consolidação de um Estado inclusivo, igualitário, com
representação paritária em todos os poderes de Estado, normas de governo, cargos eleitorais
designados e eleições populares.
Para avançar até a democracia paritária é necessário redobrar esforços e se comprometer
com a paridade geral, seja política de Estado para assegurar o acesso das mulheres em condições
de igualdade nos postos de tomada de decisão em todos os poderes e âmbitos do Estado,
incluindo o judiciário e medidas legais, garantindo a participação da sociedade civil em
participar de organismos democráticos e feministas como atores chaves para o fortalecimento
da democracia.

3 CONCLUSÕES

Com o empoderamento as meninas tomam conta de seus próprios assuntos, vida e


consciência de sua habilidade e competência para produzir, criar, gerir e dentre a busca do
empoderamento está à promoção da tomada de decisão e a ação, sendo que o componente
político supõe a habilitação para analisar e o meio circunda em termos políticos e sociais que
surge a capacidade para organizar promover a mudança social, com maior igualdade e maior
empoderamento.
O poder assume e torna a democracia com mecanismos de responsabilidade coletiva,
tomada de decisão, responsabilidade compartilhada e constrói uma democracia política mais
ampla, mas o avanço é lento e para alcançar a paridade política e cumprir com a ODS 5.5 é
necessário acelerar os esforços, aços e políticas até a igualdade substantiva, assim como
comprometer os recursos e financiamento necessário.
Há uma transformação na dominação tradicional dos homens sobre as mulheres, pois
com o empoderamento, conforme (LÉON, 2002), há empoderamento também dos homens, no
sentido material e psicológico, já que as mulheres logram ter acesso aos recursos materiais em

100
benefício da família e da comunidade, a compartilhar responsabilidade e também devido a que
permitirem-se novas experiências emocionais para os homens e os libera dos estereótipos de
desigualdade.
A igualdade entre os gêneros é um dos objetivos da Agenda 2030 e em 2005, o Fórum
Econômico Mundial, comprometido com a melhoria das condições do mundo, finalizou com o
documento “Empoderamento das mulheres – Arena das disposições Globais e de Gênero”.
Dentre as dimensões importantes para o empoderamento consta o empoderamento
político que diz respeito à representação equilibrada de mulheres em estado de tomada de
decisão, formação, informação e ao direito à voz na formulação das políticas que afetam a
sociedade na qual está inserida a ausência de mulheres nas estruturas de governo significando
a falta de participação das mulheres na alocação dos recursos.
A experiência de vida com relação aos homens proporciona compreender as diferenças
das necessidades, preocupações e interesses, sendo princípio estratégico para o combate da
pobreza e mudança nas relações de poder, eis que o reconhecimento valoriza as mulheres e
implica na autonomia, garantindo a igualdade e o processo de empoderamento vinculado ao
processo de participação, favorece o estabelecimento de políticas e pratica de desenvolvimento
que compreende as necessidades das pessoas e por isso vital o recorte de gênero.
Desta forma, as mulheres devem fazer parte de instancias de definição, implantação e
monitoramento de políticas, programas e a cidadania facilitada em projetos para propor
políticas públicas e reconhecer o impacto positivo que tiveram a adoção de cotas para a paridade
eleitoral em alguns países.
Preciso uma abordagem integral que assegure o acesso igualitário de mulheres e homens
de todas as instituições do Estado e organizações políticas e por outro lado, condições para o
exercício pleno e livre de discriminações e violências baseada em gênero.
Cristalino que o poder de escolher, ter autonomia equivale à possibilidade ou não que
as mulheres têm de tomar decisões, enquanto sujeito de direitos, deveres na família, na
sociedade ou comunidade e reconhecer o direito das mulheres no seu processo de procura de
melhores condições de vida para si, para a família e para a sociedade.
A ampliação do empoderamento das capacidades de realização das mulheres e de sua
condição de agentes é transformadora, há conversão em benefícios para as mulheres e toda a
coletividade e se tal ocorre importante que os Estados e demais atores que atuam no âmbito
público considerem as mulheres, levando em conta a sua especificidade, com a consideração
de gênero.

101
A participação plena e efetiva das mulheres na tomada de decisão é fundamental para
que a agenda pública incorpore novas dimensões e perspectivas e que contribua para encerrar
o círculo da discriminação e desigualdade baseada m gênero.
A alta política deve ser responsável por este recorte de gênero e a participação feminina
deve ocorrer desde o âmbito de representação delegando até a formação dos grupos de interesse
ou de pressão, com o avançar da liderança das mulheres que irá possibilitar a plena democracia
paritária.
Para reiterar e finalizar, (REYNOLDS, 1977) defende que as empresas e as pessoas
humanas são atores, dotados de ações e poder para a tomada de decisão e compõe o Sistema, o
que significa reconhecer as mulheres como protagonistas, como atoras, com papel significativo
de liderança para a tomada de decisão, integradas no desenvolvimento, com capacidade de
desempenhar importante papel na estratégia de desenvolvimento.
É desafio a democracia paritária, o empoderamento, a autonomia das mulheres, o
desenvolvimento sustentável e a mudança com transformação que avance na igualdade de
gênero, inclusão, cumprimento das políticas públicas e o cumprimento da Agenda 2030.

REFERÊNCIAS

COMISSÃO ECONOMICA PARA AMERICA LATINA E CARIBE (CEPAL). Autonomia


das Mulheres e igualdade na Agenda de desenvolvimento sustentável, 2015.
COMISSÃO ECONOMICA PARA AMERICA LATINA E CARIBE (CEPAL) Estratégia de
Montevideo para la implementacion de la Agenda Regional de Género em el marco Del
desarrollo sostenible hacia 2030, 2017.
COMISSÃO ECONOMICA PARA AMERICA LATINA E CARIBE (CEPAL). La autonomia
de las mujeres em escenarios econômicos cambiantes. Santiago, 2019.
COSTA, Ana Alice. As donas do Poder. Mulher e Política na Bahia. Salvador: NEIM/UFBA e
Assembleia Legislatica da Bahia, 1998 (Coleção Baianas, vol 2).
DARVIN, Anna. Imperialism and Motherhood. History Workshop Journal, n.5. Spring, 1978,
p. 29.
FÓRUM SOCIAL MUNDIAL. Empoderamento de Mulheres. Avanço das disparidades
Globais de Gênero. Genebra, 2005.
GLOBAL GENDER GAP REPORT. Disponível em:
<https://www.weforum.org/reports/global-gender-gap-report-2021/>.

HALLIDAY, Fred. Repensando as Relações Internacionais. Porto Alegre, Ed da


Universidade/UFRGS, 1999.

102
LEÓN, Magdalena. El Empoderamiento en la Teoria y Práctica del Feminismo. México:
Universidad del Colima, 2002.
Observatório da Igualdade de Gênero da América Latina e Caribe. https://oig.cepal.org/pt
ONU MUJERES. Guia Estratégico: Empoderamento polítco das mulheres, marco para uma
ação estratégica na América Latina e Caribe, 2014.

REINOLDS, P. A. Introduccion AL Estudio de Las Relaciones Internacionales. Madri, Tecnos,


1977.

RITTER, Andréa Marta Vasconcellos. As mulheres como protagonistas, agentes na tomada de


decisão: Uma estratégia em busca da autonomia, desenvolvimento e sustentabilidade. E-Book,
Elas na Advocacia II, Escola Superior de Advocacia/RS, Porto Alegre, 2021.

TASK FORCE INTERAMERICANO SOBRE LIDERAZGO DE LAS MUJERES. Un


Llamado a la Accion para Impulsar el Liderazgo de las mujeres y la democracia paritara em
las Américas. 2022.

103
A TEORIA SISTÊMICA DO DIREITO SOB O PRISMA DE NIKLAS
LUHMANN E GUNTHER TEUBNER

Ariane Faverzani da Luz1


Isabela Bohnen2

RESUMO

O presente trabalho objetivou o estudo da aplicação da teoria dos sistemas autopoiéticos ao


campo jurídico, vislumbrando-se a existência de uma teoria sistêmica do Direito. Dessa forma,
após longo processo evolutivo, a teoria pôde ser aplicada ao Direito, considerado como um
sistema de segundo grau. Nesse contexto, Maturana e Varela - os precursores da teoria sistêmica
- trabalharam a aplicação da autorreprodução circular à biologia, sucedidos por Luhmann, que
permitiu a autonomização entre os sistemas biológico e social e, finalmente, por Gunther, que
elevou a aplicação da teoria luhmanniana ao campo do Direito. Com base nesses fundamentos,
utilizando-se do escopo teórico-bibliográfico e do método hipotético-dedutivo, a pesquisa
revelou que o Direito se apresenta como um subsistema funcional autorreferencial integrante
de uma sociedade repleta de outros subsistemas e que encontrará a sua legitimação dentro do
próprio sistema.

Palavras-chave: Autopoiese. Direito. Teoria Sistêmica.

1 INTRODUÇÃO

O estudo fenomenológico dos sistemas obteve impulso inicial na área da biologia,


especialmente a biologia molecular. Assim, Maturana e Varela foram os precursores do
entendimento de que os sistemas subsistiam por meio da autopoiese, isto é, os seres vivos
possuem um sistema operativo autorreferencial por meio do qual se desenvolvem
autonomamente.
Sucedendo essa teoria, Luhmann utilizou os fundamentos preexistentes, porém
atribuindo-os ao campo social. Isso porque o objetivo do autor era o de promover uma teoria
aplicada à sociedade. Dessa forma, o primeiro passo para tal realização foi reconhecer a
autonomia do sistema social ante o biológico, sendo que o sistema autopoiético social não se
restringe a meras conceituações explicativas, como o último.
Ademais, a comunicação, assim concebida por meio dos atos comunicativos, passaram
a ser os pilares da teoria em detrimento dos indivíduos. Assim, a comunicação representou

1
Mestra em Direito. Especialista em Direito Público, em Ciências Criminais e em Direito Civil e Processo Civil.
Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 97.174. E-mail: arianefaverzani@outlook.com.
2
Mestra em Direito. Advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 119.128. E-mail: isa.bohnennn@gmail.com.
104
primordial característica da sociedade, a qual foi considerada por Luhmann de extrema
complexidade, de modo que o objetivo da reprodução sistêmica diante do seio social passou a
ser a redução da complexidade cuja chave é a produção de mais complexidade.
Nesse contexto, surge a aplicação da teoria sistêmica ao campo do Direito, iniciada por
Luhmann e elevada pelos estudos de Gunther, o qual reconhece ser o Direito um meio de
redução da complexidade social e que possui uma função social - tanto de modo a operar quanto
a se realizar dentro da sociedade. Ou seja, o Direito, ao regular a si mesmo, como sistema
autopoiético, regula também a sociedade.
Dessarte, o que permite ao Direito como sistema autopoiético realizar essa regulação é
a peculiaridade de possuir um código binário diferenciado, do lícito/ilícito, explicitado por meio
de forma a existir um valor positivo, chamado de legal, e um valor negativo, denominado de
ilegal.
Além disso, o sistema do Direito detém autonomia, chamada por Gunther de gradual,
exteriorizada na capacidade de autorregularão de um sistema. Portanto, o sistema do Direito
comporta as mesmas características dos sistemas autopoiéticos, ressaltando-se a
autorregulação, a clausura operacional e a abertura cognitiva, porém, por ser considerado um
sistema de segundo grau, é detentor de maior complexidade, com aspectos de diferenciação
próprios, os quais serão demonstrados no decorrer da pesquisa.
Assim, utilizando-se do escopo teórico-bibliográfico e do método hipotético dedutivo,
em um primeiro momento, o trabalho centra-se em realizar uma breve análise da teoria
sistêmica de Luhmann, apresentando os seus pontos mais relevantes. Em seguida, serão
expostas as contribuições de Gunther Teubner ao revelar o Direito como um sistema
autopoiético. Por fim, demonstrar-se-á a aplicação da teoria sistêmica ao Direito, considerando
os estudos desenvolvidos pelos autores já mencionados.

2 A TEORIA SISTÊMICA DE LUHMANN

Niklas Luhmann considera-se um notório responsável pelo desenvolvimento da teoria


da autopoiese por meio da edificação particularmente própria do pensamento sistêmico. Assim,
para ele, a sociedade - cerne do seu estudo - foi teorizada como um sistema autopoiético.
No entanto, não foi o autor o criador da teoria, já que, na década de setenta, os biólogos
e também filósofos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela se propuseram ao estudo
da fenomenologia dos sistemas, cujo questionamento precípuo era desvendar até que ponto a

105
fenomenologia social poderia ser considerada uma fenomenologia biológica (MARIOTTI,
1999).
Em função disso, a partir do estudo sobre os seres vivos, no âmbito da biologia, os
autores trouxeram conceitos básicos da estruturação dos seus sistemas, como a
autorreferencialidade e a clausura organizacional. Isto é, “tudo o que acontece em e com os
seres vivos tem lugar neles como se operassem como entes auto-referidos” (ROMESÍN;
GARCIA, 1997, p. 12), de tal forma que a análise do seu surgimento nada mais é do que
resultado dessa própria atuação que ocorre autonomamente dentro do sistema.
Em relação à clausura, os autores ressalvam ser errônea a interpretação negativa do
termo, haja vista nada ter a ver com fechamento ou ausência de interação, o que seria um
verdadeiro absurdo (ROMESÍN; GARCIA, 1997, p. 56). Pelo contrário, a clausura está
relacionada com a capacidade de operacionalizar o interior do sistema, constituindo um espaço
de transformações, justificando-se o emprego do termo “clausura operacional”.
Tais aspectos cognitivos irão permitir o desenvolvimento dos seres vivos a partir do
próprio sistema, em operações circulares de transformação que expressam a autopoiese -
revelando uma característica ímpar no desenvolvimento sistêmico: a autonomia. Diante disso,

a utilização da autopoiese por continuidade é outra: trata-se de tomar a sério o fato de


que a. autopoiese procura pôr a autonomia do ser vivo no centro da caracterização da
biologia, e abre ao mesmo tempo a possibilidade de considerar os seres vivos como
dotados de capacidade interpretativa desde sua origem própria. Quer dizer que permite
ver que o fenômeno interpretativo é contínuo desde a origem até sua manifestação
humana (ROMESÍN; GARCIA, 1997, p. 53).

Observa-se, assim, uma nova forma de interseção do sistema mediada pela autonomia
deste. Nesse tocante, o objetivo da teoria autopoiética vislumbra a corrente busca por parte
das ciências biológicas do conceito de vida, de modo que, não apenas o questionamento sobre
o que seria um sistema vivo, mas a característica estrutural deste consistem em perguntas
que nem mesmo a história da filosofia e a ciência encontraram respostas até então
(TEUBNER, 1989, p. 2).

Dessa forma, Maturana e Varela dispuseram que “o que define a vida em cada sistema
vivo individual é a autonomia e a constância de uma determinada organização das relações
entre os elementos constitutivos do mesmo sistema” (TEUBNER, 1989, p. 3). Assim, são
características dessa organização a autorreferencialidade, por haver a interação entre seus
próprios elementos, e autorreprodução, haja vista os referidos elementos serem produzidos a
partir dessa mesma rede de interação circular e recursiva (TEUBNER, 1989, p. 3).
106
Com fulcro nos estudos antecessores, Luhmann prestou-se a continuar o
desenvolvimento da teoria da autopoiese, pormenorizada por meio de sistemas, em meados da
década de oitenta. Insta salientar que tal estudo foi possibilitado graças ao exame da teoria
pelos autores Humberto Maturana e Francisco Varela, os quais, como já mencionado, adotaram
como ponto de partida o domínio das ciências biológicas, especialmente no campo da biologia
molecular.
Porém, Luhmann utilizou os estudos da teoria preexistente apenas como um impulso,
desenvolvendo a sua própria forma de examinar o desenvolvimento sistêmico, e o fez,
primeiramente, transpondo a dinâmica da autorregulação sistêmica até então aplicada aos
seres vivos, ao campo social e, posteriormente, ao Direito.
Insta salientar que a transposição da aplicabilidade da teoria sistêmica, a qual até então
era destinada apenas ao campo das ciências biológicas, significou um legítimo impulso
sociológico, constituindo um relevante traço na evolução científica interdisciplinar.
Dessarte, uma das primeiras contribuições provenientes na aplicação da teoria
autopoiética no domínio das ciências sociais realizada por Luhmann foi a passagem da função
da teoria - que até então era utilizada com fins meramente explicativos - para uma interpretação
do sentido do sistema.
Assim, ultrapassa-se o fornecimento de conceitos explicativos, bem como o
desenvolvimento de teorias conceituais. Isso porque, para o autor, referência e circularidade
constituem o "princípio vital” dos próprios sistemas sociais, não se limitando apenas de células,
sistemas nervosos ou organismos biológicos vegetais ou animais em geral. Pode-se dizer,
portanto, o surgimento de uma autonomia entre os sistemas biológico e social.
Tal autonomia entre os sistemas defendida por Luhmann se justifica na diferença entre
as suas bases reprodutivas. Nesse sentido, a base reprodutiva dos sistemas biológicos é a vida -
constituída pelos indivíduos - enquanto os sistemas sociais possuem como base o sentido,
denominados sistemas noéticos, em que não são os indivíduos que constituem o sistema, mas,
sim, a comunicação. Portanto, a unidade básica de análise no domínio dos fenômenos sociais é
o ato comunicativo (TEUBNER, 1989, p. 12).
A partir dessas considerações é possível verificar o objetivo de Luhmann ao desenvolver
uma teoria sistêmica. Ou seja, o campo social é o objeto de estudo do autor, o qual buscou
desenvolver uma teoria geral da sociedade, encontrando na teoria dos sistemas, haja vista a
complexidade que detém, o objeto de estudo mais apropriado para o domínio social.

107
Ao dar início ao estudo da teoria dos sistemas aplicada à sociedade, Luhmann passou
por algumas fases, até chegar na autopoiese e comunicação, definida como a nova teoria dos
sistemas. Para o autor, o sistema é o mediador entre a extrema complexidade do mundo e a
pequena capacidade do homem em assimilar as múltiplas formas de vivência.
O ponto determinante da teoria desenvolvida por Luhmann é a complexidade, assim
como o meio de reduzi-la. Aqui, trata-se da complexidade da sociedade, a qual, segundo o autor,
somente pode ser reduzida com mais complexidade.
Isto é, “é preciso que uma teoria da sociedade complexa, mas concebida como um
instrumento de redução da complexidade, para dar conta dessa complexidade” (NEVES;
SAMIOS, 1997, p. 15). Em outras palavras, se reduz a complexidade de um ambiente na medida
que se aumenta a complexidade do sistema, haja vista a complexidade nada mais ser do que a
coexistência de várias possibilidades.
Ao falar dos sistemas autopoiéticos em sua relação com os sistemas que compõe o
entorno, Luhmann sustenta que essa interrelação pressupõe a autonomia desse sistema. A
autonomia de um sistema, porém, não se comporta unicamente no plano estrutural, mas também
no operacional, fator esse que se compatibiliza com o conceito de autopoiese (LUHMANN,
2006, p. 46). Em outras palavras, um sistema somente se desenvolve a partir das interações que
realiza no interior do sistema, por meio de seu próprio sistema operacional.
Quando um sistema realiza operações provenientes do próprio sistema,
independentemente de influências externas, tem-se a chamada clausura operativa, constituindo
um sistema autopoieticamente fechado. Assim, é por meio da autorreferencialidade
(TEUBNER, 1989, p. 34) que um sistema é tido como autopoiético, pois, autoconstrói-se por
meio de círculos (LUHMANN, 2006, p. 46).
Outro ponto correlato que Luhmann explora é o das diferenciações. A tese que se
sustenta é a de que as diferenciações existentes nos sistemas ocasionam as diferenciações nos
outros meios. Isso se explica pois todos os recursos operativos das operações em um sistema
produzem consequências não apenas no próprio sistema, mas também no entorno (LUHMANN,
2006, p. 472).
Parte-se, nesta ocasião, para uma melhor análise da comunicação explorada por
Luhmann, tendo em vista o grau de importância que revela, já que subsiste como a unidade
básica do sistema, por meio, é claro, de atos comunicativos.
Notabiliza-se que para Luhmann (2006, p. 472), “a comunicação entre indivíduos funda
a sociedade”. Isso se justifica pois, com o passar do tempo, as estruturas sociais vão se

108
autonomizando a partir de novas formas de comunicação, a exemplo, refere-se o surgimento da
escrita. Ou seja, fundamentalmente, sociedade é comunicação, de forma que tudo o que não for
comunicação, não conceitua sociedade. Ressalta-se, porém, que a identidade comunicativa dos
indivíduos e até mesmo de coisas constituem comunicação, na forma de meios para o
desenvolvimento desta.
A partir dessa análise do que é ou não é comunicação, ou seja, “comunicação” ou “não
comunicação”, estabelece-se um código binário. Apenas a comunicação é passível de
identidade dentro da sociedade, identidade essa que foi conquistada por meio de um ganho
progressivo de autonomia. Daí, surgem os subsistemas sociais: Direito, economia, arte,
educação, religião, entre outros tantos.
No que tange ao campo do Direito, a referência de que o sistema jurídico atual se
considera um sistema autopoiético de segundo grau se justifica em razão de os atos de
comunicação particulares gravitarem em torno da distinção binária do legal/ilegal.
Desse modo, Luhmann (2016, p. 236-237) assinala que o Direito é formado pelo lado
lícito e ilícito, sendo por meio desse código binário que diz que sim ou que não, de forma a
existir um valor positivo, chamado de legal, e um valor negativo, chamado de ilegal:

O valor positivo é empregado quando um fato viola as normas do sistema. O valor


negativo é empregado quando um fato viola as normas do sistema. O que chamamos
“fato’ é construído pelo próprio sistema. O sistema não reconhece nenhuma instância
externa que lhe poderia estipular o que é um fato, ainda que esse termo possa designar
tatos tanto internos ao sistema como externos a ele. A “jurisdição”, que administra a
justiça com o reconhecimento dos valores lícito e ilícito, é um arranjo interno ao
sistema. Fora do direito não existe nenhuma disposição sobre legalidade e ilegalidade.

Ou seja, a decisão do que pode e o que não pode somente é passível de ser tomada pela
teoria dos sistemas do Direito. Portanto, a ideia se resume basicamente na expressão de que
tudo que não se pode caracterizar como ilícito ou lícito não se enquadra dentro do subsistema
jurídico, sendo, porém, objeto de discussão no caráter moral (LUHMANN, 2006).
Adiante, será aprofundada a aplicação da teoria sistêmica no campo do Direito, que, sem
dúvida, teve como impulso crucial a transposição da autopoiese biológica para o meio social
feita por Luhmann. Desta maneira, o estudo aprofundado da teoria sistêmica no campo social e
jurídico foi desempenhado por Teubner Gunther, o qual preconizou a análise do Direito como
sistema autopoiético.

109
3 O DIREITO COMO SISTEMA AUTOPOIÉTICO DE TEUBNER

A partir das teorias sistêmicas preexistentes, especialmente no que se refere às


contribuições de Luhmann para o avanço da teoria autopoiética no campo das ciências sociais,
Gunther Teubner prosseguiu no estudo, trazendo novos conceitos. Dessa forma, sobretudo no
que se refere à obra “o direito como sistema autopoiético”, a teoria desenvolvida por Teubner
revela-se de elevado nível, e, porventura, a mais elaborada na busca de uma específica
autopoiese jurídica.
Assim, supondo-se a verificação da evolução da teoria autopoiética por meio de uma
escada, a fim de clarificar o entendimento do seu progresso, ter-se-ia no primeiro degrau a
autopoiese do biológico, pormenorizada por Maturana e Varela- com viés específico no campo
da biologia. Já o segundo degrau seria ocupado pela autopoiese social, desenvolvida por
Luhmann – em que o cerne de aplicação passou a ser a sociedade e, por fim, no degrau posterior,
a autopoiese jurídica, estudada com maior veemência por Teubner, o qual elevou a teoria social
ao campo do Direito (TEUBNER, 1989, p. 10).
Tal configuração demonstra, primordialmente a conquista progressiva de autonomia dos
sistemas autopoiéticos, que a cada processo evolutivo retificou a noção de que um sistema
autopoiético constitui um sistema autorreferencial. Ou seja, capaz de produzir no interior do
próprio sistema os elementos que precisa, por meio de uma sequencial interação circular e
fechada.
Como analisado na teoria luhmanniana, os atos comunicativos constituem a sociedade,
de forma que a comunicação é o fator central do desenvolvimento dessa. Em função disso,
Gunther (TEUBNER, 1989, p. 21), retomando o pensamento de Luhmann acerca do papel da
comunicação assevera que “as unidades básicas do sistema jurídico não são as normas legais
(como sustentam os juristas), nem as organizações (como defendem os sociólogos), mas as
comunicações”.
Nessa esteira, os atos comunicativos que a compõe geram novos atos de comunicação,
criando circuitos comunicativos específicos a partir de um circuito de comunicação geral,
conferindo aos últimos, “elevado grau de autonomia a ponto de os transformar em sistemas
autopoiéticos de segundo grau” (TEUBNER, 1989, p. 139).
Com base nesses conceitos, Gunther ao tentar responder ao questionamento de o Direito
constituir ou não um sistema autopoiético, não o pôde fazê-lo senão enfatizando a resposta ser
um convicto sim. Porém, não se pode pensar em um sistema autopoiético aplicado ao Direito

110
simplesmente da forma que se aplicava ao sistema biológico, isso porque, ambos se encontram
em patamares evolutivos diferentes.
Nesse ponto, Gunther assevera que o Direito é um sistema autopoiético, porém de
segundo grau - o que se deve ao seu caráter de subsistema social autopoiético de comunicação.
Nota-se que aqui, diferentemente da aplicação da autopoiese biológica, que era baseada
na vida, o Direito irá formar círculos autoreferenciais novos e de diferentes tipos.
Assim, vale constar que quanto à autonomização do Direito do sistema social deve-se
graças à “emergência de um código próprio e diferenciado suficientemente estável para
funcionar como centro de gravidade e princípio energético de um processo de autoprodução
recursiva, fechada e circular de comunicações jurídicas” (TEUBNER, 1989, p. 20). Acerca do
tema:

Por outras palavras, o Direito, tal como a Economia ou a Política, constituem sistemas
autopoiéticos de segundo grau, que adquiriram esse estatuto graças à constituição
autorreferencial dos seus próprios componentes sistêmicos. Além disso, o postulado
autopoiético vem ainda acentuar outras implicações do processo de diferenciação
funcional do sistema social global, sublinhando mormente o caráter descentrado e
pluricontextual da sociedade moderna - nenhum dos vários subsistemas pode
reivindicar supremacia sobre os restantes ou pretender substituir-se lhes nas
respectivas funções específicas, pelo que “a autonomia de cada um é uma necessidade
inevitável”— e o da radical clausura dos seus vários subsistemas - como diz Braten
“apenas o sistema econômico pode definir e mudar a economia, apenas o sistema
jurídico pode definir e mudar o direito (TEUBNER, 1989, p. 9).

Por seu turno, Gunther (1989, p. 22) explica que o Direito, como sistema autopoiético
de segundo grau, mostra-se hiperciclicamente constituído, pois os componentes sistêmicos
autoproduzidos que possui, se encontram articulados entre si no seio de um hiperciclo. Esses
componentes mencionados tratam-se, portanto, de unidades de comunicação autônomas que
são, no que lhes concerne, “autoreprodutivas, gerando os seus próprios elementos, estruturas,
processos e fronteiras, construindo o seu próprio meio envolvente e definindo sua própria
identidade” (GUNTHER, 1989, p. 22)”
Quanto à autonomização do Direito como sistema autopoiético frente a sociedade,
diferentemente de Luhmann, que entente que “os subsistemas sociais perfazem a sua
organização autopoiética pela mera produção de elementos próprios” (GUNTHER, 1989, p.
57), atingindo o sistema jurídico a clausura autorreferencial com a invenção do ato jurídico que
se auto reproduz em novos, Gunther supõe que a autonomia e a autopoiese devem ser entendidas
como conceitos gradativos (GUNTHER, 1989, p. 57).

111
Dessa forma, o processo de “tudo ou nada” como Luhmann conceitua a autopoiese,
caracterizada por uma rigidez inflexível aonde “o direito ou se reproduz ou não se reproduz a
si próprio; não existe algo como uma autopoiesis parcial” (GUNTHER, 1989, p. 57) mostra-se
objeto de indagação por parte de Gunther. Isso porque, o autor amplia a visão da autonomia da
autorreprodução do sistema jurídico, o qual se reproduz ciclicamente, verificando a existência
de graus de autonomia.
Ainda, ao aprofundar-se no estudo da autonomia do Direito como realidade gradativa,
no contexto da autopoiese jurídica, como já apontado- a rigidez com que Luhmann enxergava
a autopoiese gerou inquietações em Gunther. Isso porque, resumir um sistema ao conceito de
que “ou ele é autopoiético ou heteropoiético”, isto é, retomando-se a ideia do tudo ou nada, de
que não há espaço para sistemas parcialmente autopoiéticos, mostra-se uma visão limitadora do
sistema em relação a sua formação gradativa.
E é justamente o processo gradativo, propiciado pelo aumento cumulativo das relações
circulares que caracteriza a autopoiese. Gunther, portanto, pautando suas conclusões de modo
a ampliar a visão sobre a autopoiese entende que a autonomia do sistema é gradual,
exteriorizada na capacidade de autoregulação de um sistema.
Nessa linha, o processo ciclicamente gradativo foi esmiuçado por Gunther em três
momentos: a auto-observação, autoconstituição, e a autoreprodução. Assim, “a existência de
um hiperciclo reprodutivo está dependente da interrelação cíclica dos componentes sistêmicos,
já de si organizados de forma cíclica” (GUNTHER, 1989, p. 68). Explica-se:

De forma mais concisa, diríamos que o grau de autonomia dos subsistemas sociais é
determinado, em primeira linha, pela definição auto referencial dos seus componentes
(auto-observação), adicionalmente pela incorporação e utilização operativa no sistema
dessa auto-observação (auto constituição) e, finalmente, pela articulação hipercíclica
dos componentes sistémicos autogerados, enquanto elementos que se produzem entre
si numa circularidade recíproca autopoiesis) (GUNTHER, 1989, p. 68).

Notabiliza-se que a autonomia mencionada se aplica de mesma forma no campo do


Direito. Isso porque, o sistema jurídico vai ganhando maior autonomia quando o Direito
determina a ele próprio, avaliando quais os pressupostos de relevância jurídica de um fato, da
validade jurídica de uma norma. Trata-se do conceito básico de autonomia, qual seja, a
capacidade de autorregularão de um sistema.
Em função disso, Gunther demonstra que, se aplicada a ideia de hiperciclo ao Direito, a
autonomia jurídica seria desenvolvida em três fases: 1) direito socialmente, difuso, 2) direito
parcialmente autônomo e 3) direito autopoiético (GUNTHER, 1989, p. 77).
112
Por meio dessa articulação hipercíclica se articula o Direito moderno, caracterizada pela
produção recíproca de atos e normas jurídicas. Acerca disso, Gunther (1989, p. 88) assevera
que “doutrina e processo devem ser constituídos de modo a referir-se simultaneamente, a atos
jurídicos, por um lado, e a normas jurídicas, por outro.”
Dessa forma, a autoreprodução do Direito fica a cargo da doutrina e do processo,
considerando-se o caráter de articulações hipercíclicas que possuem, de modo que o sistema só
produzirá a comunicação jurídica quando puder produzir seus próprios componentes. Desse
modo, a mencionada comunicação será gerada “a partir de si mesma, através da rede de
expectativas jurídicas e controlada pela doutrina e processo jurídico.” (GUNTHER, 1989, p.
88).
Prosseguindo, a partir da paradoxal proposição de que “o direito regula a sociedade
regulando-se a si próprio”, Gunther passa a explorar a autonomia do sistema do Direito em
meio a um universo de sistemas autopoiéticos, admitindo, portanto, a existência de outros
sistemas e que, dado o grau de autonomia que possuem, poderão estabelecer relações de
interferência.
Dessa forma, por meio da distinção fundamental entre os conceitos de clausura
normativa e abertura cognitiva, Luhmann explica a coexistência desses ao referir que o sistema
jurídico é aberto porque é fechado e é fechado porque é aberto. De fato, por mais paradoxal que
seja, a expressão resume o resultado da interferência entre sistemas, os quais somente se abrem
a essa relação por serem autônomos (abertura cognitiva), autonomia essa consolidada em um
ambiente normativamente fechado (clausura normativa) (GUNTHER, 1989, p. 22).
Como dito, uma vez admitida a interferência entre sistemas - a denominada interferência
sistêmica -, Gunther sustenta a tese de que será por meio dessa que o contato direto e recíproco
será possibilitado entre os sistemas sociais, os quais não limitados à mera observação
(GUNTHER, 1989, p. 172).
Porém, ressalta-se que apesar do caráter de função evolutiva que os mecanismos
intersistêmicos possuem, tal evolução jamais poderá ser causada, servindo apenas como
estímulo externo, haja vista a lógica do desenvolvimento interno e próprio de cada sistema
(GUNTHER, 1989, p. 116). Trata-se, portanto, do reconhecimento de uma evolução sócio
jurídica por meio da interação endógena e exógena, de forma que “a evolução endógena do
direito é influenciada pelos movimentos exógenos” (GUNTHER, 1989, p. 110).
Ainda, ao tratar da evolução da autopoiese, Gunther ressalta que a capacidade de
adaptação ao meio não supera a manutenção da estrutura cíclica interna do sistema- eis que a

113
última é considerada a característica mais importante da evolução. Assim, a própria manutenção
do sistema em uma auto-organização cíclica ratifica que “apenas sistemas autopoieticamente
organizados são suscetíveis de evolução” (GUNTHER, 1989, p. 113), de modo a se observar
que

Estamos aqui perante uma transposição de mecanismos evolutivos sociais “externos”


para mecanismos jurídicos “internos”, no sentido de que tais mecanismos externos
passam a exercer um mero efeito modelador da evolução jurídica, ao passo que o
protagonismo do processo evolutivo passa a caber a elementos estruturais internos
(GUNTHER, 1989, p. 113).

Por fim, o novo conceito de interferência trazido por Gunther em relação aos
subsistemas sociais, pautado na autonomia gerou o surgimento de estratégias de Direito
reflexivo, que visa a análise processual e organizacional dos sistemas. Para tanto, a
reflexividade no Direito pode significar desde a capacidade de autoidentificação pelo próprio
sistema autopoiético de consequências operacionais, bem como “a análise empírica da posição
histórica atual do Direito no contexto social, e avaliação e seleção normativa” (GUNTHER,
1989, p. 138).

Com base nesses conceitos, parte-se para a abordagem específica da contribuição do


autor, assim como de Luhmann para a formação da teoria sistêmica do Direito e como ela
repercute no cenário social.

4 A TEORIA SISTÊMICA DO DIREITO

Por meio da análise da teoria sistêmica, proveniente dos estudos ainda na esfera
biológica, realizada por Maturana e Varela, posteriormente desenvolvidos por Luhmann, que
aplicou a teoria autopoiética e a sua autoreprodução circular ao campo social, sendo sucedido
por Gunther, o qual elevou ainda mais o estudo, restou possibilitada a aplicação da teoria
sistêmica ao campo do Direito.
Dessa forma, ambos os autores estudados nos itens anteriores perceberam a aplicação da teoria
autopoiética ao Direito, exteriorizando a forma pela qual esse sistema subsiste. Nesse sentido,
Luhmann parte seu estudo atentando para a relação existente entre o sistema social do Direito
e o próprio sistema social.
Assim sendo, haja vista a inexistência de uma teoria da sociedade que determine a sua
definição, o conceito de sociedade adotado é o de que se constitui por um sistema aberto, e que
progride por meio de um processo evolutivo paulatino de adaptação ao ambiente. A partir daí,
114
o Direito funciona como um mecanismo regulador, possibilitando essa adaptação da sociedade
ao ambiente inserido. Porém, ressalta-se que o Direito não se mostra aqui uma função
indispensável, pois a sociedade possui mecanismos próprios de adaptação (exemplo:
empirismo).
Diante disso, “o Direito podo ser então entendido como uma máquina cibernética,
programada para manter constantes determinadas condições” (LUHMANN, 2016, p. 744). Ou
seja, o Direito, cumpre na sociedade uma função social, tanto por operá-la, quanto por nela se
realizar.
Acentua-se que o papel do Direito na sociedade retoma o fator determinante da teoria
sistêmica de Luhmann: a complexidade. Isso porque, por meio aplicação do conceito dos
sistemas autopoiéticos ao Direito, é possível reduzir a complexidade social. Tal redução perfaz-
se, por constituir, o Direito, um subsistema funcional da sociedade, que assim como os demais
sistemas autopoiéticos, possui a comunicação como elemento basilar. Contudo, frisa-se a
necessidade de se diferenciar o Direito da sociedade na qual inserido, sob pena de se dissolver
a comunicação jurídica em meio ao fluxo de comunicação geral da sociedade (GONÇALVES;
VILLAS BOAS FILHO, 2013, p. 69).
Assim, atinente às peculiaridades do subsistema, o Direito se desenvolve por meio da
codificação binária do lícito/ilícito, que lhe permite a construção dinamizada do sistema jurídico
(GUNTHER, 1989, p. 29).
Nesse aspecto, Luhmann (LUHMANN, 2016, p. 358) afirma que o código binário
produz efeitos no sentido de que “o sistema do direito armazena uma semântica de programas
a que se recorre quando demanda de critérios para atribuir valores jurídicos”.
Retoma-se aqui a definição de que o sistema jurídico é aberto porque é fechado e
fechado porque é aberto, haja vista a pertinente menção de que o Direito, como subsistema
funcional autorreferencial integrante de uma sociedade repleta de outros subsistemas encontrará
a sua legitimação dentro do próprio sistema. Isso porque, dada a diferenciação entre sistemas,
o Direito deve encontrar a sua validade na própria instância, não extraindo senão dela os
fundamentos de que precisa, de forma que também não intervirá diretamente nos outros
subsistemas sociais (GONÇALVES; VILLAS BOAS FILHO, 2013, p. 81).
Como consequência lógica, tem-se que a evolução do Direito não é determinada por
fenômenos externos, mas por suas próprias escolhas (GONÇALVES; VILLAS BOAS FILHO,
2013, p. 99). Isso porque, o cenário contingencial, caracterizado pela hipercomplexidade da

115
sociedade gera infinitas possibilidades, diante das quais cada sistema se autodeterminará quanto
a essas, a fim de evoluir.
Ao tratar de evolução, Luhmann esboçou minuciosamente como o Direito evoluiu a
partir de um subsistema socialmente difuso até adquirir o caráter diferenciado. No entanto, a
análise detalhada dessa evolução extrapola a proposta do presente artigo, de modo que não se
entrará no mérito. Porém, cita-se, a seguir, um pequeno trecho resumido por Gonçalves e Villas
Boas Filho (2013, p. 101), acerca da referida evolução para melhor compreensão do assunto:

Num primeiro momento, observar-se-ia uma situação de inexistência de diferenciação


entre moral, direito, costumes e convencionalismo social, na qual, portanto, o
chamado direito arcaico não seria aplicado a partir de procedimentos, mas sim
afirmado expressivamente a partir de ritos. Com o advento do que Luhmann denomina
“altas culturas” (Hochkulturen), o direito se expressaria vinculado a uma moral
religiosa associada a representações sobre a verdade, de onde decorreria sua
imutabilidade. Em seguida, com a introdução da noção de “direito natural” e a
correspondente dicotomia entre “ordem jurídica natural” e “ordem jurídica positiva”
ocorreria a delimitação de um âmbito de mutabilidade para o direito que, entretanto,
ficaria subordinado ao direito natural imutável. Finalmente, com a sua positivação na
sociedade moderna, funcionalmente diferenciada, o direito assumiria um caráter
essencialmente mutável e fundamentado por decisões.

Percebe-se, a partir do excerto o caráter de mutabilidade que o Direito adquire a partir


da positivação, por meio de decisões motivadas. Assim, a positivação consagra o conceito de
Direito reflexivo trazido por Gunther, na medida que o Direito é capaz de autorregular-se,
regrando sua própria criação e mudança.
Nesse momento, evidencia-se a interação de dois mecanismos considerados por
Gunther radicalmente diferentes, e que determinam a regulação social do Direito. São eles a
informação e a interferência. Tais aparatos propiciam a coexistência da clausura operativa do
Direito e a respectiva abertura ao meio envolvente. Assim, enquanto o Direito produz uma
realidade jurídica autônoma- gerando informações contínuas no seu interior, as quais orientarão
o sistema independentemente de contato real com o meio, por outro lado, ele continua ligado
ao meio envolvente através de mecanismos de interferência sistêmica (GUNTHER, 1989, p.
129).
Luhmann possibilita o controle das interferências internas, de modo que o sistema
consiga barrar o que lhe for inconveniente por meio do seu código binário- lícito/ilícito,
estabelecendo o fechamento operativo, porém sem que precise isolar-se do meio. Desse modo,
além de utilizar a observação, a diferenciação entre o sistema e o meio permite ao sistema se
reproduzir em meio as suas próprias estruturas.

116
Relativo ao assunto, assinala-se a observação de Gunther (1989, p. 73), a qual sugere
que, apesar de clara a distinção conceitual entre a circularidade e a independência causal, tais
aspectos podem e são de alguma forma relacionados. Desse modo, “a autonomia jurídica reside
no caráter circular da produção do direito, e não uma mera independência causal relativamente
ao respectivo meio envolvente” (GUNTHER, 1989, p. 73).
Por fim, no que se refere à interação do Direito com os sistemas envolventes, sabendo
que essa só é possível após o processo de clausura – em que o Direito forma suas próprias
estruturas a partir dele mesmo- para posteriormente realizar interações com os outros sistemas,
por meio da abertura, o nome dado a esse processo interativo chama-se acoplamento estrutural.
Brevemente, o acoplamento estrutural pode ser de suas formas, sendo uma delas a
autopoiese, consistindo na “produção de operações do sistema por mediação das operações do
sistema. Já a outra forma reside na simultaneidade que sempre se deve supor entre o sistema e
o ambiente” (LUHMANN, 2016, p. 590).
Segundo Luhmann (2016, p. 592), as formas de acoplamento estrutural são, portanto,
restritivas, de modo a facilitar a influência do ambiente sobre o sistema, assim:

Uma vez que o sistema se encontra determinado por suas próprias estruturas e que só
pode ser digitalizado (especializado) por suas próprias operações, os eventos do
ambiente não podem intervir como inputs, independentemente de seu pertencimento
ao sistema, nem mesmo no âmbito dos acoplamentos estruturais. [...]. Desde modo,
no próprio sistema os acoplamentos estruturais só podem suscitar irritações, surpresas
e perturbações.

Portanto, o Direito e a sociedade interagem por meio do acoplamento estrutural em


uma relação de interdependência recíproca. Assim sendo, o Direito constitui um subsistema
funcional da sociedade essencial para a redução da complexidade dessa, o que o faz, por meio
da estruturação de uma complexidade mais elevada. Ou seja, o Direito é “uma construção de
alta complexidade estruturada” (PAIM, 2014), satisfazendo a necessidade de ordenamento na
sociedade. Isto posto, interligando-se os conceitos de Luhmann e Gunther, o Direito regula a
sociedade regulando-se a si mesmo, ao passo que sem o Direito, não há orientação de condutas
no meio social.

5 CONCLUSÃO

Diante das exposições realizadas, restou evidente a importância do Direito como um


sistema autopoiético no seio social. Isso porque a sociedade sobre a qual Luhmann desenvolveu

117
sua teoria teve como elemento basilar os atos de comunicação, caracterizada por uma
hipercomplexidade.
Nesse sentido, a complexidade sucede-se em função das inúmeras possibilidades
encontradas pelos sistemas, os quais autonomamente determinam o que lhes melhor convém.
No entanto, a partir das interações entre os sistemas existentes no ambiente, por meio da
interferência intersistêmica - possibilitada pela abertura cognitiva - novas formas de redução da
complexidade se impõem necessárias.
Dessa forma, o Direito, por constituir-se um sistema autopoiético de segundo grau,
possui aspectos que possibilitam a regulação da sociedade, e a concretiza ao regular-se a si
mesmo. Ademais, possui um código binário diferenciado que permite o estabelecimento de
normas positivadas que regularão a sociedade- determinando o que é lícito e o que é ilícito.
Por fim, o reforço da relação entre o sistema do Direito e o sistema social ocorre por
meio do acoplamento estrutural, o qual permite a influência do ambiente sobre o sistema,
caracterizando uma interdependência entre os sistemas, que passam a se complementar (uma
vez que já consolidada a autonomia dos sistemas na fase de clausura).
Portanto, muito além do reconhecimento do Direito como um sistema autopoiético, está
a importância que revela na sociedade. Aqui, não se trata de um sistema indispensável, porém
primordial para que se reduza a complexidade a partir da construção de uma ordem social.

REFERÊNCIAS

GONÇALVES, Guilherme Leite; VILLAS BOAS FILHO, Orlando. Teoria dos Sistemas
Sociais: direito e sociedade na obra de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2013.

LUHMANN, Niklas. La Sociedade de la Sociedade. Ciudad de Mexico: Universidad


Iberomericana, 2006.

LUHMANN, Niklas. O Direito da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes – selo Martins, 2016.

MARIOTTI, Humberto. Autopoiese, cultura e sociedade. 1999. Disponível em:


<http://escoladedialogo.com.br/escoladedialogo/index.php/biblioteca/artigos/autopoiese-
cultura-e-sociedade>. Acesso em: 23 jan. 2023.

NEVES, Clarisse Eckert Baeta; SAMIOS, Eva Machado Barbosa. Niklas Luhmann: a nova
teoria dos sistemas. Porto Alegre: ed. da universidade/UFRGS, Goethe Institut-ICBA, 1997.

PAIM, Eline Luque Teixeira. Luhmann: o Direito como sistema autopoiético. Conteúdo
Jurídico, Brasilia-DF: 21 nov. 2014. Disponível

118
em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/41735/luhmann-o-direito-como-
sistema-autopoietico>. Acesso em: 20 fev. 2023.

ROMESÍN, Maturana Humberto; GARCIA, Francisco J. Varela Maturana. De máquinas à


seres vivos: Autopoiese - a organização do vivo. 3. ed. Trad. Juan Acuna Llorens. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1997.

TEUBNER, Gunther. O Direito como Sistema Autopoiético. Ed. Fundação Calouste


Gulbenkian: Lisboa, 1989.

119
IMPLICAÇÕES DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS NO
COMPLIANCE TRABALHISTA

Camila Eliza Zanella Lacerda1

RESUMO

A vida privada e a intimidade do homem são direitos que, devido a sua importância, há longa
data sofrem análises e encontram respaldo no ordenamento jurídico a fim de que sejam evitadas
violações. Contudo, principalmente a partir do advento da internet e da facilidade de
fornecimento de dados que o tráfego digital disponibiliza, há uma nova necessidade no debate
acerca da disciplina. O presente artigo nasceu a partir do questionamento de como as novas
tecnologias impactam o mundo moderno de modo a tornar necessário que fossem positivadas
novas normas asseguradoras do direito à intimidade e à vida privada. Inegavelmente, a ordem
social acompanha o Direito, e este se adapta às novidades da vida cotidiana: nesse sentido, a
elaboração da Lei Geral de Proteção de Dados veio para ressaltar a necessidade de proteger a
privacidade das pessoas, que é hoje direta e constantemente atingida pela tecnologia. No âmbito
do Direito do Trabalho, o já celebrado programa de compliance dentro das empresas é o setor
que tem a tarefa de implementar a referida lei, adequando o funcionamento da empresa à norma.

Palavras-chave: Lei Geral de Proteção de Dados. Compliance trabalhista. Direito do Trabalho.

1 INTRODUÇÃO

Inicialmente, será abordada a necessidade de proteção dos dados atinentes à pessoa


titular, que nada mais são do que qualquer informação que diga respeito à sua identidade, seja
o sujeito identificado ou identificável. Algumas disposições legais que servem como escudo ao
cometimento de arbitrariedades, desde as mais remotas até outras mais recentes.
Ainda, o presente artigo citará breves considerações sobre o início da preocupação
estatal acerca da garantia de tais direitos, a partir da Revolução Industrial, a qual foi deflagrada
com o descontentamento da classe operária ao tratamento degradante a que era submetida em
contraponto aos privilégios em que vivia a classe burguesa. Como consequência, houve o
surgimento do estado do bem-estar social e das garantias consagradas pelos direitos
fundamentais (estes principalmente devendo ser observados no que tange aos hipossuficientes,

1
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). Especialista em Direito do Trabalho,
Processo do Trabalho e Direito da Seguridade Social pela FMP. Advogada trabalhista na sociedade de advogados
Rocha Lacerda & Spillari Costa. OAB/RS113845. E-mail: camila@rlsc.com.br
120
a quem normalmente a regra geral foge), que, de forma atrelada, se conectam à consolidação e
solidificação do Estado Democrático de Direito.
Foram abordados aspectos tangentes à Lei Geral de Proteção de Dados, especificando
conceitos e dando ênfase à necessidade da existência de consentimento livre, informado e
inequívoco do titular para a coleta dos dados, quando autorizados por lei. Ainda, discorre-se
acerca dos fundamentos e princípios elencados para ditar a aplicação da referida Lei,
praticamente todos eles decorrentes da carta constitucional. Há enfoque especial ao princípio
da boa-fé, que deve ser contemplado de modo geral no ordenamento jurídico.
Por fim, trata-se da aplicação da LGPD no setor de compliance trabalhista. É feita
inicialmente uma explanação acerca do programa, que é, resumidamente, a conformidade da
empresa às normas legais e a padrões éticos e morais que beneficiam tanto o empregado quanto
o próprio estabelecimento, na medida em que evita passivos trabalhistas e atrai investidores,
cientes de que ali se seguem princípios de ordem moral. Ainda, há uma breve explicação sobre
os passos a serem seguidos para a adequação do programa de compliance à Lei Geral de
Proteção de Dados.

2 A NECESSIDADE DA PROTEÇÃO DE DADOS

A proteção da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem é assegurada no artigo


5º, X, da Carta Magna. O citado artigo prevê inclusive incidência de danos morais ou materiais
para eventual ofensa em qualquer dessas searas. Nota-se, meramente possuindo essa
informação, que é de longa data que urge assegurar que as pessoas encontrem tal proteção no
ordenamento jurídico. Não menos notável é o uso do habeas data, remédio constitucional
consagrado no art. 5º, LXXII, que se presta ao conhecimento, retificação e complementação de
informações relativas à pessoa do impetrante que se encontrem em bancos de dados públicos
ou privados com caráter público.
Contudo, apenas muito recentemente estuda-se o conceito em uma escala mais
abrangente, em virtude da ampliação das tecnologias de informação e comunicação, bem como
do acesso facilitado à internet, fatores que intensificam o compartilhamento de dados. Com o
advento da sociedade da informação, portanto, contexto em que a velocidade de fornecimento
de dados é exponencialmente maior do que a do século passado, revelou-se um cenário que
solicita estudo e cuidado do ordenamento jurídico. Assim, a tutela já existente no ordenamento
jurídico brasileiro não basta para proporcionar uma tutela efetiva aos dados pessoais na
amplitude que a importância do tema hoje merece (DONEDA, 2019, p. 263).
121
Tanto é significativo tal tema atualmente que, em 10 de fevereiro de 2022, foi
promulgada a Emenda Constitucional nº 115, alterando o texto da Carta Magna para incluir a
proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência
privativa da União para legislar sobre a proteção e o tratamento de dados pessoais. Stefano
Rodotá entende que a proteção de dados

se apresenta como meio necessário para a concretização de um conjunto de valores


fundamentais que, reconhecidos em via de princípio, devam posteriormente
acompanhar a pessoa em qualquer momento de sua vida. Neste sentido, a proteção
dos dados pessoais torna-se um valor em si, sintetiza as prerrogativas da pessoa,
contribui para construir uma nova cidadania e definir as características de um sistema
político-institucional (RODOTÀ, 2008, p. 291-292)

É indiscutível que, no que tange ao Direito do Trabalho, ramo jurídico autônomo, um


dos bens de maior cuidado é a proteção ao trabalhador e à sua dignidade, por vezes cambiada
em prol de sobrevivência mínima. Dessa forma, a necessidade de proteção de dados trabalhistas
encontra-se atrelada à própria necessidade de um direito que defenda os interesses dos
hipossuficientes, tendo em vista que o direito de privacidade nasceu com reputação elitista,
tipicamente burguesa, conforme o autor acima citado.
O tratamento degradante ao qual eram historicamente submetidos os trabalhadores foi
o mais forte fator a deflagrar a Revolução Industrial e a persecução por direitos mínimos para
aqueles que se encontravam subordinados a classes economicamente superiores, cujo fito era
baseado na acumulação de riquezas. Assim, houve um processo de conscientização gradativo
da classe operária, que clamava pelo fim da prática desses abusos contra ela praticados, fato
que culminou na necessidade da intervenção estatal na economia em contraposição ao
liberalismo político, o denominado welfare state. O welfare state – estado do bem estar social
– tem como consequência o fato de que as relações sociais passam a ser regidas por instituições
políticas democráticas – Estado, ao invés de permanecerem independentes da esfera privada
(CASSAR, 2018, p. 22).
Por conseguinte, a importância da proteção de dados é consoante não só à proteção da
pessoa, mas também à higidez do Estado democrático, à liberdade de informação e expressão
(DONEDA, 2021, p. 4), estando já elencado e cada vez mais protegido por normas de direitos
fundamentais. Sendo assim, consolida-se a sua importância para uma sociedade democrática
como pré-requisito fundamental para o exercício de diversas outras liberdades fundamentais
(DONEDA, 2019, p. 31). Ainda, a proteção dos dados pessoais não se limita à direitos
individuais garantidos ao titular (direito subjetivo), mas encontra destinatários que se obrigam

122
a observar a sua aplicação: tanto órgãos estatais quanto particulares (direito objetivo)
(MARTINS, 2020, p. 184).
Com isso em vista, a recente legislação sobre a proteção de dados pessoais encontra seu
fundamento de ser: sua importância se manifesta não apenas na proteção da vida privada e no
direito individual, mas também na salvaguarda do tão caro Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, a multifuncionalidade (observada tanto na dimensão subjetiva quanto objetiva
acima explicada) é adequada para a LGPD, esta que é atualmente instrumento de suma
importância na cada vez mais necessária proteção dos dados pessoais.

2.1 A LGPD e o tratamento de dados pessoais como instrumento de proteção

De acordo com o preconizado na LGPD, tratamento de dados corresponde a qualquer


operação realizada com dados pessoais, abrangendo desde o início do tratamento (no caso
específico das relações trabalhistas, desde a entrevista e seleção) até a sua exclusão (com a saída
do empregado da empresa). São considerados dados pessoais informações pertinentes à pessoa
natural, que serão armazenadas em um banco de dados de pessoa natural ou jurídica (agentes
de tratamento), seja de direito público, seja de direito privado. Os agentes devem anonimizar
os dados que foram livremente informados pelo titular dos dados (com consentimento).
Convém ressaltar a necessidade de consentimento devido à importância de sua
exteriorização para o tratamento de dados e para a garantia dos direitos de seu titular, sendo ele
um dos pontos mais sensíveis de toda a disciplina de proteção de dados pessoais (DONEDA,
2019, p. 296). A LGPD traduz o consentimento como a manifestação livre, informada e
inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma
finalidade determinada.
Dispõe a LGPD, ainda, que ele deve ser concedido em qualquer meio, desde que livre
de vícios e especificada a sua finalidade, podendo o titular a qualquer tempo revogá-lo (art.8º).
O consentimento se alinha em todos os aspectos aos fundamentos e princípios relacionados na
LGPD, os quais serão a seguir brevemente explanados.
A recente norma se preocupa em citar fundamentos e princípios que devem ser seguidos
na disciplina do tratamento, muito embora já sejam eles profusamente necessários e observados
no ordenamento jurídico. Quanto aos fundamentos, o artigo 2º da Lei 13.709/18 elenca:

Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:


I - o respeito à privacidade;
II - a autodeterminação informativa;
III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;

123
IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o
exercício da cidadania pelas pessoas naturais.

Percebe-se da leitura do artigo a preocupação com direitos constitucionalmente


consagrados como a liberdade de informação, de expressão, de comunicação e de opinião e a
inviolabilidade da honra, da vida privada e da imagem, aqui previamente tratada. O
desenvolvimento tecnológico e a inovação também encontram respaldo constitucional a partir
da emenda nº 85/2015, que trouxe para a Carta Magna diversas disposições nesse âmbito.
Ainda, a livre iniciativa, citada no inciso VI, é também um fundamento da República Federativa
do Brasil e, não menos importante, a livre concorrência é princípio da ordem econômica (art.
170, CF).
Quanto aos princípios, que têm grande parte do seu centro gravitacional baseado no ser
humano (DONEDA, 2021 p. 120), o artigo 6º da LGPD traz em seu caput o princípio da boa-
fé. Este é comumente apontado pela doutrina como um princípio jurídico fundamental, isto é,
algo que devemos admitir como premissa de todo ordenamento jurídico, ou ainda um
ingrediente de ordem moral indispensável para o adequado cumprimento do direito. Refere-se
a boa-fé, então, a um comportamento e não a uma simples convicção (PLÁ RODRÍGUEZ,
1978, p. 262-267).
Ademais, esse princípio abrange ambas as partes da esfera contratual, uma vez que
“ambas as partes têm um objetivo em comum (RUPRECHT, 1995, p. 86). De qualquer sorte,
observam-se inúmeras vezes descumprimentos e violações desse dever

desde o do empregador que paga salários inferiores aos mínimos estabelecidos ou


atribui hierarquias inadequadas, até o que faz uso abusivo ou injustificado do jus
variandi, sem esquecer os casos menos frequentes, mas não desconhecidos, daqueles
patrões que obrigam o trabalhador a cumprir horário sem destinar-lhe qualquer tarefa,
para que se sinta moralmente embaraçado e acabe por deixar a empresa (PLÁ
RODRÍGUEZ, 1978, p. 267)

Como bem se verá em seguida, tais atitudes, além de contrárias ao princípio da boa-fé,
são também antagônicas ao esperado de um programa de compliance bem estruturado.
Doutrinariamente (LEITE, 2016, p. 92-94) reconhece-se a existência de dois tipos de boa-fé: a
objetiva (aspecto ético) e a subjetiva (aspecto psicológico). A boa-fé objetiva corresponde ao
modelo ideal de comportamento que a pessoa deve ter em relação a outras pessoas. Por sua vez,
a boa-fé subjetiva possibilita a verificação da intenção das partes na celebração de um contrato,
pois leva em conta a conduta do agente na realização de um negócio jurídico. Este princípio é
124
amplamente aplicado no Direito do Trabalho e no ordenamento jurídico como um todo e não
só no âmbito do estudo em questão.
Já em seus incisos, o artigo 6º da Lei 13.709/18 elenca ainda outros princípios a serem
seguidos para a proteção de dados pessoais, sendo alguns deles: da publicidade ou transparência
(um banco de dados deve ser de conhecimento público); da exatidão ou qualidade dos dados
(pelo qual os dados armazenados devem ser fiéis à realidade, sendo realizadas atualizações
periódicas); da finalidade (propósitos legítimos, fora dos quais haveria abusividade); do livre
acesso (garantia ao titular de obter cópias dos registros e controlá-los); e da segurança física e
lógica (pelo qual os dados devem ser protegidos contra riscos e danos) (DONEDA, 2019).
Nesse contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados, com sua recente regulamentação e
mais recente ainda vigência, atua na proteção dos dados pessoais do titular na medida em que
o tratamento realizado se vê compelido a agir em conformidade não só com as normas previstas
na legislação, mas também com princípios protetivos nela inseridos que são, em verdade,
basilares para o sistema legal como um todo, tal qual o consagrado princípio da boa-fé. Esta
tarefa, dentro de uma empresa, será executada pela equipe de compliance.

3 COMPLIANCE E APLICAÇÃO DA LGPD

O compliance, termo recentemente inserido no cotidiano jurídico brasileiro, deriva do


verbo inglês to comply, que significa, em uma tradução livre, cumprir algo, obedecer, ou ainda,
agir de acordo com a lei. O compliance é um princípio da governança corporativa, modelo de
gestão por meio do qual as empresas procuram, voluntariamente, cumprir as regras e tomar
decisões no interesse comum de longo prazo da organização, com adoção de medidas de
transparência e sustentabilidade financeira, adotando um modelo de autorregulação. A intenção
é uma mudança da cultura corporativa e do clima organizacional (SILVA; PINHEIRO, 2020,
p. 43) que segue a necessidade de se aliar a comportamentos morais, pois

a realidade contemporânea não permite qualquer visão míope em relação à


transparência não só do que é público, mas também do que é privado, sempre que haja
o inevitável componente da repercussão significativa na esfera social (CABETTE;
NAHUR, 2013, p. 76).

Para Carvalho, (2019, p. 38-39), estar em compliance é estar em conformidade com as


regras internas da empresa, de acordo com procedimentos éticos e as normas jurídicas vigentes.
Pode-se afirmar, ainda, que o programa é decorrente da função do Estado Democrático de
Direito, o qual pressupõe a superioridade das leis e das normas em geral, e obedecê-las é uma
função do compliance (SILVA; COVAC, 2015, p. 6).
125
A consagração do programa de compliance funciona também, então, como uma forma
de controlar o poder cada vez maior das atuais empresas e organizações (SILVA; COVAC,
2015, p. 6-7), para que seja observado o respeito às garantias fundamentais dos trabalhadores
com a possibilidade de impor sanções em caso de não conformidade. Por outro lado, atua como
redutor de riscos para o empregador e seu estabelecimento ou como atrativo de investimentos,
já que uma empresa que segue padrões éticos mantém uma boa reputação no ramo em que atua.
Conforme bem explica Selma Carloto,

por meio do compliance a empresa elimina riscos de uma futura responsabilização


civil, administrativa e penal, evitando-se a prática de atos ilícitos, corrupção e fraudes
e ao mesmo tempo tutela os direitos humanos dos trabalhadores e melhora, em
consequência, a produtividade dos seus empregados e o meio ambiente laboral
(CARLOTO, 2020, p. 22).

A partir de determinados comportamentos de gestão estratégica, o compliance bem


estruturado tem ainda o condão de promover a competitividade das organizações, que devem
focar esforços permanentemente na melhoria dos processos e na qualidade dos produtos e
serviços que se presta ao cliente, juntamente com desafios de redução de custos
(GONÇALVES, 2012, p. 22). Ou seja, conforme visto, um programa de compliance bem
estruturado no ambiente empresarial atua tanto para a satisfação do empregado quanto para a
da empresa.
Por conseguinte, sendo o instrumento de adequação à lei e devendo zelar pelas melhores
práticas, a área de compliance trabalhista atuará de forma a defender uma apropriada
implementação da LGPD, já que os agentes de tratamento devem agir em conformidade
(compliance) em termos jurídicos, computacionais e corporativos (MARTINS, 2020, p. 180).
Frisa-se que, embora a LGPD não cite expressamente a sua aplicação nas relações trabalhistas,
o compliance abarca a observância desta lei na medida em que as hipóteses, as normas e os
princípios dos tratamentos de dados devem obrigatoriamente ser observados durante a relação
de emprego, desde o momento de recrutamento até o desligamento do empregado.
Ou seja, o compliance em relação à LGPD deve acontecer em todas as etapas de
referidas relações de trabalho, incluindo as fases pré e pós-contratuais, a fim de evitar-se que a
empresa venha a sofrer sanções por não conformidade” (MARTINS, 2020, p. 184). A Lei
13.709/18, ao tratar sobre as Boas Práticas e Governança assim refere:

Art. 50. Os controladores e operadores, no âmbito de suas competências, pelo


tratamento de dados pessoais, individualmente ou por meio de associações, poderão
formular regras de boas práticas e de governança que estabeleçam as condições de
organização, o regime de funcionamento, os procedimentos, incluindo reclamações e
126
petições de titulares, as normas de segurança, os padrões técnicos, as obrigações
específicas para os diversos envolvidos no tratamento, as ações educativas, os
mecanismos internos de supervisão e de mitigação de riscos e outros aspectos
relacionados ao tratamento de dados pessoais.

Assim, implicitamente, a legislação de certa forma elenca e norteia as ações que devem
ser tomadas pelo controlador da empresa para a efetivação da LGPD no programa de
compliance. Ao citar a adequação a normas de segurança, mecanismos internos de supervisão
e mitigação de riscos, há nítido ponto de toque com o compliance, que se presta justamente a
este papel usando tais ferramentas.
Outrossim, as mencionadas “reclamações e petições de titulares” funcionam como
pilares para a implementação do compliance: os canais de denúncia são ferramentas importantes
para a engrenagem do programa, e devem ser disponibilizados aos funcionários, clientes,
fornecedores e terceiros que possuam alguma relação com a empresa (SILVA; PINHEIRO,
2020, p. 94). Os canais de denúncia podem se utilizar de qualquer forma de recebimento do
colaborador, inclusive anônima, e devem fornecer mecanismos de proteção que impeçam
qualquer espécie de retaliação a quem o utilizar, com o fim de identificar desvios de conduta,
fraudes e outros ilícitos no mundo empresarial (CARLOTO, 2020, p. 58).
Une-se às demais ferramentas do compliance a previsão, na LGPD, de um relatório de
impacto à proteção de dados pessoais, a ser feito pelo controlador dos dados, para observar os
princípios fundamentais constitucionalmente garantidos e alcançar, especialmente, a tão
necessária não discriminação no ambiente laboral. A propósito, um dos princípios elencados no
art. 6º da LGPD é justamente a não discriminação, ou seja, a impossibilidade de realização do
tratamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos.
O relatório de impacto à proteção de dados pessoais é definido na Lei 13.709/18 como
uma documentação que contém a descrição dos processos de tratamento de dados pessoais que
podem gerar riscos às liberdades civis e aos direitos fundamentais, bem como medidas,
salvaguardas e mecanismos de mitigação de risco.
Percebe-se claramente, na parte final do inciso XVII, artigo 5º da LGPD, o trabalho a
ser conduzido pela equipe de compliance, que deverá, além da documentação usual das
atividades de tratamento, elaborar este relatório sempre que houver possibilidade de tais riscos,
o qual consiste em um documento do controlador que tem como escopo mapear e mitigar os
riscos deste mesmo tratamento (CARLOTO, 2020, p. 144).
Ademais, os meios de implementação da LGPD no programa de compliance trabalhista
deve seguir alguns passos (CARLOTO, 2020, p. 196-201), tais como a existência de códigos

127
de ética e de conduta, que especificarão medidas de segurança e punições disciplinares para
eventual descumprimento, bem como treinamentos sobre a Lei Geral de Proteção de Dados
inclusive aos empregados.
Seria importante, ainda, a criação de um Comitê de Lei Geral de Proteção de Dados, que
deve ter um responsável direto, com participação do setor jurídico, do setor de compliance e do
setor de recursos humanos da empresa. O Comitê verificará todos os dados tratados dos
trabalhadores, desde o processo seletivo até seu desligamento, momento em que ocorre sua
eliminação. A coleta de dados deve sempre ser realizada preferencialmente com base legal,
mantidos em registro todos os consentimentos coletados, independente da forma que houver
sido realizado. Ainda, é salutar uma auditoria com terceiros de modo a conferir a adequação,
bem como a constante revisão de contratos, sempre que necessária, incluindo-se cláusulas
específicas de LGPD.
O programa de compliance, bastante relevante para a saúde empresarial, garante a
criação de um ambiente e segurança jurídica e confiança indispensável para a boa tomada de
decisão (CARVALHO, 2019, p. 39). A partir da utilização dos mecanismos próprios do
compliance e com a correta observância da LGPD, diante do cenário de evolução tecnológica
e maior exposição aos dados pessoais e à vida privada, é possível unir as esferas subjetiva e
objetiva, evitando danos ao titular dos dados e, ao mesmo tempo, passivos à empresa.

3 CONCLUSÃO
Através da pesquisa realizada, nota-se que há muito o tema da proteção da vida privada
e da intimidade é latente no meio jurídico, encontrando amplo respaldo legal e doutrinário.
Seriam os diplomas até então em vigor teoricamente suficientes enquanto escudo para excessos,
porém o constante avanço tecnológico abriu uma nova janela de possibilidades no que se refere
ao compartilhamento de informações. Assim, o setor de compliance, que procura adequação da
empresa às normas, agora ganha nova preocupação e a Lei Geral de Proteção de Dados visa
proteger estes direitos no âmbito tecnológico.
Sabe-se que de nada adianta a existência e posterior vigência de uma lei se ela, posta no
meio social, não alcança eficácia. Ainda, o costume, sendo fonte informal do direito, é de grande
importância dentro da vida em sociedade, já que esta pode ser baseada pelo modo de viver das
pessoas que a compõem. Nesse sentido, importante refletir acerca do motivo pelo qual a vida
privada e a intimidade da pessoa natural encontram momentos de violação.
Na prática, são comuns ainda hoje notícias de graves abusividades cometidas contra
direitos humanos, mesmo que sejam eles positivados em enorme gama de normas e inclusive
128
constitucionalmente dispostos. Observa-se a todo o momento na sociedade o descaso para com
a vida alheia, o frequente cometimento de abusos e de episódios de desdém ao disposto na lei,
tal como a lamentável existência de casos de trabalho análogo ao escravo.
Para mais perto da realidade da maioria das pessoas, a vida no ambiente laboral em
muitos casos enfrenta desobediência aos direitos fundamentais e àqueles consagrados na
Consolidação das Leis do Trabalho, além de eventuais cometimentos de abuso do poder diretivo
conferido ao empregador. Não se questiona a validação do empregador de conduzir os trabalhos
dentro de seu estabelecimento; contudo, é grave ainda existirem violações aos direitos básicos
que os empregados historicamente vêm conquistando, como a lacuna na assinatura de CLT e a
falta de pagamento de parcelas devidas ou ainda a dificuldade na concessão do período de férias,
situações “comuns” em diversas relações de trabalho.
Claramente esses casos se refletem na enorme quantia de passivos trabalhistas que
eclodem na Justiça do Trabalho com o fim de dirimir conflitos entre empregador e empregado.
Até que, recentemente, a implementação do programa de compliance começou a ser visto como
uma forma de evitar irregularidades nas companhias de modo a procurar desjudicializar
algumas questões antes que acabassem elas necessitando da intervenção da justiça.
A necessidade real de implementar um programa que se origina do verbo cumprir diz
mais sobre a cultura de alguma sociedade do que se pode imaginar. Nesse diapasão, a
necessidade de sempre frisar que é necessário não só seguir a normas estabelecidas pelo
ordenamento jurídico, mas de agir de acordo com a ética e com a moral são fatores que podem
expressar, mesmo que sutilmente, o quanto esses institutos restaram diminuídos na prática,
muito embora teoricamente protegidos e necessários.
Ainda, é de se notar que recentemente houve a reforma trabalhista, que veio para, entre
outras novidades, flexibilizar algumas normas e inserir a valorização do negociado sobre o
legislado. Essa flexibilização, contudo, não se confunde com desregulamentação ou supressão
de direitos, portanto, mesmo com a preponderância das negociações coletivas, elas ainda não
podem causar desconforto ao empregador, sendo cabível ainda a ação anulatória de norma
coletiva em caso de confronto.
Nesse sentido, a importância de se respeitar normas fundamentais já consagradas, mas
que ainda precisam de avanço e modernização diante dos novos meios de tratamento a que
foram expostas, já que o direito caminha lado a lado com o desenvolvimento social.
Sendo assim, a Lei Geral de Proteção de Dados, a ser conformada dentro do setor de
compliance das empresas, tem o nobre trabalho de assegurar que o sujeito titular dos dados a

129
serem tratados seja amparado através de mais uma seara e tenha protegidos os direitos
fundamentais de liberdade, de privacidade e o livre desenvolvimento da sua personalidade,
segundo a lógica de ações orientadas pela moral e pela ética – que já deveriam ser
ordinariamente comuns e culturalmente implementadas.

REFERÊNCIAS

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trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016.

BRASIL. Lei 13.709/2018. Lei Geral de Proteção de Dados. Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acesso em: 19
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e a ética empresarial: novos desafios do Direito Penal Econômico. Porto Alegre: Nuria Fabris
Ed, 2013.

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CARLOTO, Selma. Compliance Trabalhista. 2 ed. São Paulo: LTR, 2020.

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Lei geral de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

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2021.

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estratégica. São Paulo: Atlas, 2012.

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NAZAR, Nelson. Direito econômico e o contrato de trabalho: com análise do contrato


internacional do trabalho. São Paulo: Atlas, 2007.

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<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2210757>.
Acesso em: 17 jan. 2021.

PLÁ RODRÍGUEZ, Américo. Princípios de direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1978.
130
RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro:
Renovar, 2008.

RUPRECHT, Alfredo J. Os princípios do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1995.

SILVA, Daniel Calvacante; COVAC, José Roberto. Compliance como boa prática de gestão
de ensino superior privado. São Paulo: Saraiva, 2015.

SILVA, Fabrício Lima; PINHEIRO, Iuri. Manual do Compliance Trabalhista: teoria e prática.
Salvador: Editora Juspodvim, 2020.

131
A ATUAÇÃO EFETIVA DO DIREITO: UMA ANÁLISE DOS MEIOS
ADEQUADOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS

Camila Sbalchiero Morello1


Liliane de Oliveira Camargo2
Maira Angélica Dal Conte Tonial3

RESUMO
A presente pesquisa analisa os Meios Adequados de Solução de Conflitos diante da crescente
judicialização de processos. Para tanto, discorre-se sobre a cultura do litígio e a atuação do
direito no enfrentamento da problemática. Na sequência, analisa-se a mediação e a conciliação
como meios eficientes de solução de conflitos. Por fim, prescruta-se os Centros Judiciários de
Solução de Conflitos – CEJUSCS e a importância da atuação dos advogados e magistrados no
incentivo da adoção dos meios adequados de solução de conflitos. Ademais, será realizada
análise crítica da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6324. Utiliza-se o método dedutivo,
a pesquisa bibliográfica e documental. Conclui-se a efetividade dos Meios Adequados de
Solução de Conflitos (MASC), como a conciliação e mediação, ao combate à cultura do litígio
e a crescente judicialização de processos, com soluções céleres e concretização da pacificação
social.
Palavras-chave: Meios adequados de solução de conflitos. Conciliação e mediação. Litígio.
Autocomposição. Judicialização. ADI n. 6324. Incentivo aos meios consensuais de conflitos.

ABSTRATC

This research analyzes the Adequate Means of Conflicts Resolution in the face of the growing
judicialization of processes. To this end, we discuss the culture of litigation and the role of the
law in confronting the problem. Next, mediation and conciliation are analyzed as efficient
means of conflict resolution. Finally, an analysis is made of the Judicial Centers for Conflict
Resolution – CEJUSC and the importance of the performance of lawyers, magistrates,
encouraging the adoption of appropriate means of conflict resolution. In addition, a critical
analysis of the Direct Action of Unconstitutionality will be carried out n.324. The deductive
method and bibliographic and documentary research are used. It concludes the effectiveness of
the Adequate Means of Conflict Resolution, such as conciliation and mediation, to combat the
culture of litigation and the growing judicialization of processes, with quick solutions and the
implementation of social pacification.

Keywords: Adequate means of conflicts resolution; conciliation and mediation; litigation; self-
composition; Judicialization; ADI n. 6324; encouragement of consensual means of conflict.

1
Graduanda de Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Estagiária do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul (TJRS). Endereço eletrônico: camilasmorello@gmail.com ou 183522@upf.br.
2
Graduanda de Direito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Estagiária do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul (TJRS). Endereço eletrônico: lilianecamargo476@gmail.com ou 190308@upf.br.
3
Advogada (OAB/RS 45621). Doutoranda em Ciência Jurídica Univalli/UPF. Mestre em Direito pela
Unisinos, Especialista em Direito Processual Civil e Processo do Trabalho. Docente de Graduação e Pós-
Graduação na Universidade de Passo Fundo - UPF/RS. Coordenadora do Programa de Extensão Balcão do
Trabalhador (Faculdade de Direito – UPF). Endereço eletrônico: mairatonial@upf.br
132
INTRODUÇÃO

A sociedade, desde primórdios, privilegiou a heterocomposição na resolução de litígios.


Por isso, os meios consensuais de solução de conflitos passaram por um período de desprestígio.
Contudo, a intensa demanda de processos judicializados da era contemporânea fez com que
houvesse uma sobrecarga do Poder Judiciário, tornando a resolução dos litígios um processo
lento e nem sempre justo.
A partir dessa premissa, bem como e principalmente pela busca incessante da celeridade
e eficiência, fizeram com que os legisladores criassem alternativas à submissão dos processos
junto ao judiciário. Dentre os diversos métodos, é possível destacar a conciliação e a mediação
que, conquanto possuam características próprias e distintas, em ambas, parte-se da premissa do
estímulo à autocomposição, na busca pela solução mais adequada e amigável do conflito, com
o auxílio de um facilitador imparcial e devidamente habilitado.
Assim, na busca pela pacificação social e a construção de uma cultura de diálogo, a
busca de soluções consensuais tem se mostrado extremamente eficiente na promoção de uma
justiça acessível, bem como na preservação dos relacionamentos, sobretudo porque privilegiam
a comunicação e a cooperação entre as partes.
Contudo, por significar uma verdadeira mudança de paradigmas, sua implementação
ainda encontra várias intempéries, seja pela resistência dos operadores do direito, pela
capacitação de mediadores e conciliadores, e/ou a necessidade de maior conscientização acerca
dos benefícios que os meios de solução de conflitos trazem à sociedade baseada na cultura da
heterocomposição.
Nesse sentido, cumpre analisar a importância do estímulo dos magistrados na
instauração e incentivo à utilização dos centros, bem como e principalmente pelos advogados,
vez que são estes profissionais que detém como responsabilidade a promoção de uma justiça
mais social e igualitária, encargo inerente à profissão, de modo a não servirem como
obstaculizadores do consenso, mas sim, como colaboradores da criação de soluções
mutuamente benéficas e menos litigiosas.
Sobre isso, inclusive, questiona-se a constitucionalidade da faculdade da participação
dos advogados nas audiências de conciliação, que, conquanto ainda não tenha sido julgado,
traduz a tamanha importância da classe na solução amigável dos litígios.
Nesse sentido, o presente artigo analisa a importância dos meios adequados de solução
de conflitos e, porque são compreendidos como alternativas eficazes e justas na resolução de

133
disputas em substituição aos processos judiciais tradicionais. Ademais, visa averiguar a
responsabilidade dos principais atores na busca por uma justiça mais social e menos litigiosa.

1. A CULTURA DA LITIGÂNCIA E A CRESCENTE JUDICIALIZAÇÃO DE


PROCESSOS: O PAPEL DO DIREITO NO ENFRETAMENTO DA PROBLEMÁTICA

O fenômeno mais comum e recorrente de qualquer sociedade é o litígio. O meio social


é formado por indivíduos com ideologias próprias, comportamentos singulares, valores
subjetivos e, atualmente, com um alto grau de individualismo. Fatores esses ensejadores da lide.
Assim, partindo da ideia de que “el hombre es un ser naturalmente sociable”
(ARISTÓTELES, 2020, p. 10)4, o direito surgiu como um meio para resolver os conflitos que
surgem no tecido social, com a criação de normas regulamentadoras das condutas humanas, a
fim de mantar a ordem social. Para o jusnaturalista, o direito traça o caminho de cada indivíduo,
orientando qual deles deve ser seguido, como ordens advindas de um “ser superior”
(CAVALIERI FILHO, 2007, p. 10). Em sentido contrário, a Escola Histórica do Direito
(originária da Alemanha – século XVIII), apresenta uma relação intrínseca entre o direito e a
história. De acordo com Sérgio Cavalieri Filho, o direito é a “consciência coletiva dos povos
[...] formado gradativa e paulatinamente pelas tradições e costumes”. (2006, p. 13), nesse
sentido surge a importância da comunicação e da linguagem.
Portanto, a Escola Histórica trouxe a ideia de caráter social aos fenômenos jurídicos e
um distanciamento dos ideais jusnaturalistas, precedentes da comunicabilidade e razão,
havendo uma aproximação direta com o pensamento de Sócrates e Kant numa prevalência da
razão nas escolhas dos indivíduos, ausente da dominação de fatores externos (REALE;
ANTISERI, 1990, p. 91; KANT, 2000, p. 96).
Nesse viés, também encontra-se a definição de direito na Escola Sociológica. De acordo
com Miguel Reale na obra “Lições Preliminares de Direito” falar em direito é, por conseguinte,
falar em fenômeno social (2002, p. 29). O direito possui a qualidade de ser social, assim como
a natureza do homem (ARISTÓTELES, 2020, p. 10). Uma ciência essencialmente social,
oriunda da sociedade e para sociedade.
Portanto, conclui-se a ligação intrínseca entre o direito e as interações sociais. As
interações sociais são perceptíveis através da cooperação entre os indivíduos, mas também
através da competição.

4
“o homem é um ser naturalmente sociável”. (ARISTÓTELES, 2020, p. 10).
134
Na cooperação as pessoas estão movidas por um mesmo objetivo, conjugam-se os
esforços de ambas. Lado outro, na competição, há uma disputa, uma polaridade entre as partes,
“um ganha e outro perde”. (NADER, 2022, p. 24).
Na sociedade moderna, houve um afastamento do cooperativismo entre as pessoas, para
uma competitividade interminável, ocorrendo de certo modo um afastamento do “ser social”
posto pelo filósofo Aristóteles. Assim, atualmente opera-se “de um lado [...] as leis universais
[...] para todos os indivíduos e de outro, [...] o “sabe com que está falando?” (VIEIRA;
STENGEL, 2012, p. 348).
Essa prevalência do “eu” sobre o “social” surgiu com o liberalismo. Conforme dita
Bobbio (2000, p. 16) “sem individualismo não há liberalismo”. Todavia, esse individualismo
originário estava voltado à questão política organizacional do Estado, sendo que o liberalismo
e o individualismo influenciaram diretamente na formação do Estado do Direito, forjado
inicialmente como Estado Liberal, com a primazia da garantia dos direitos individuais
(STRECK, 2014, p. 72-73).
Atualmente, observa-se que a prevalência do “eu” está mais ligada ao ego do indivíduo,
afastando-se dos ideais iniciais do individualismo. Nesse sentido, que se estabelece o conflito,
quando os interesses em jogo não logram uma solução pelo diálogo e as partes recorrem a lutar
uma contra a outra, afastando-se do cooperativismo e aproximando-se do competitivismo. Ou
seja, ocorre uma dificuldade da relação do “eu” com o “outro”.
Por conseguinte, o conflito gera o litígio, assim surgindo o papel principal do direito de
prevenir – o mais rápido possível – aquele, a fim de evitar esse (CAVALIERI FILHO, 2007, p.
23), principalmente no cenário de complexidade da atual sociedade, em que surge novas formas
de conflito, observando-se que o maior desafio é a convivência entre os indivíduos (NADER,
2022, p. 24).
Todavia, observa-se que hoje – diante da crescente judicialização de processos – se
estabeleceu a ideia do direito e do Judiciário como solucionadores de litígios, e jamais como
solucionadores do conflito. No (in)consciente coletivo inseriu-se o paradigma de que todo e
qualquer conflito necessita ser judicializado, concretizando a lide, sendo essa resolvida sob a
forma de uma solução adjudicada, isto é, fundada na lógica vencedor-perdedor (prevalência do
competitivismo).
Destarte, o ego das partes manifesta-se na expressão “Vou processar você”, não
buscando uma composição voluntária do conflito, demonstrando sobre tudo a necessidade de
um terceiro indicar uma solução à lide com força imperativa (SALLES, 2006, p. 786), indo ao

135
encontro da ideia expressa por Humberto Lima de Lucena Filho “[...] vaidosa necessidade de
imposição de uma decisão (ainda que não seja a mais adequada sob o aspecto da justa
composição do conflito) judicial.” (LUCENA FILHO, 2012, p. 5). Assim, estabelece o
Monopólio Judicial.5 (AGAMBEN, 2007, p. 24).
Nesse sentido, observa-se um sentimento popular de amparo pelo Estado, isso pois,
estabilizou-se no imaginário das pessoas de que nada pode ser resolvido de forma segura sem
a participação ou intervenção estatal. Conseguinte, denota-se traços de uma cultura de litigância
de âmbito jurídico que prevalecem no imaginário dos leigos, mas também como paradigma dos
professores de direito, advogados, magistrados e demais profissionais que analisam a
judicialização como única forma de solução de conflito. (BEZERRA; CHAVES; LIRA, 2022,
p. 1245-1247).
Com efeito, dados do Relatório Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) apontam que, somente em 2021, o Poder Judiciário finalizou o ano com 62 milhões de
ações judiciais. Ainda, foi ressaltado no presente relatório que mesmo que não houvesse
ingresso de novas demandas e fosse mantida a produtividade dos (as) magistrados (as) e dos
(as) servidores (as), seriam necessários aproximadamente 2 anos e 10 meses para somente zerar
o estoque. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022, p. 104-110).
Ocorre que, os tribunais encontram-se afogados em milhares de processos, dos quais,
em grande monta, tratam de vinganças personalíssimas entre as partes “tornando o Poder
Judiciário não apenas de aplicador da lei abstrata e impessoal, mas de palco de rixas pessoais,
[...], quando não uma verdadeira loteria jurídica, ad exemplum a indústria dos danos morais.”
(LUCENA FILHO, 2012, p. 3).
De fato a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXXV, garante o direito de
acesso à justiça, conforme preceitua “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão
ou ameaça a direito.” (BRASIL, 1988), todavia, atualmente esse direito está sendo usado como
meio de judicialização de todo e qualquer conflito/lide (conflito esse que seria solucionado por
outros meios – diálogo entre as partes).
Consequentemente, a sobrecarga de processos impede o Poder Judiciário de proferir
uma decisão rápida as ações realmente complexas, incompossíveis por outras vias, àquelas que
somente podem ser resolvidas através de um terceiro imparcial, impedindo-o de atender aos
princípios constitucionais básicos relativos ao processo, como o da duração razoável expresso

5
Conforme o autor Georgio Agamben, a soberania estatal manifesta-se no monopólio da decisão, já que é buscado
como meio solucionador dos conflitos/lides dos cidadãos. (AGAMBEN, 2007, p. 24).
136
no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). (BEZERRA; CHAVES; LIRA,
2022, p. 12345).
Nesse contexto é que deve prevalecer a função compositiva do direito, de maneira a
incentivar a composição voluntária das partes (mútuo acordo entre as partes em busca da
solução do conflito, respeitando os deveres e direitos legais), e aliviar a sobrecarga do Judiciário
(CAVALIERI FILHO, 2007, p. 25).
Contudo, para que o direito cumpra sua função compositiva, que estará diretamente
interligado com a função social, necessário que faça surgir entre as partes uma postura mais
humana e menos individualista, conforme dito por Vinicius de Moura Xavier (2013, p. 13.107-
13.108):

Destarte para que as partes, em conflito, tenham consciência da visão do outro e


possam, efetivamente, solucionar suas divergências, é preciso entender que não há
uma solução, mas várias, é preciso experimentar as ideias e alternativas criadas e
trazidas pelo outro [...].
Não se trata de individualização, mas […] de desistalação dos conceitos prévios para
que o diálogo seja possível.

Esse objetivo somente será alcançado através da linguagem, pois “el elemento
explicativo último del orden social se va a hallar en el lenguaje, en la comunicación lingüística,
y, concretamente, en los presupuestos universales e inevitables de la misma”. (AMADO, 2003,
p. 177). 6
Através da comunicação – por meio das palavras – que o indivíduo exterioriza seu
pensamento, e consequentemente, as angustias que lhe afligem (NADER, 2022, p. 202). Tal
diligência se torna necessária e imprescindível para diminuir o ajuizamento de demandas,
considerando que a maior parte da sobrecarga de processos atuais no Judiciário ocorre por ações
que congregam motivações de origens variadas e – na maioria das vezes – traz consigo
elementos familiares, políticos e éticos, que seriam possíveis de ser solucionados pelo
restabelecimento da comunicação entre as partes (cooperativismo).
Logo, necessário o estabelecimento de uma Comunicação Não-violenta (CNV), estudo
realizado por Marshall Rosenberg (2006, p. 21-24), que se define no ato de falar e ouvir com o
fim de restabelecer a compaixão natural do ser humano, o ser social já definido por Aristóteles
(2020, p. 10), e a consciência de que o humano é, ao mesmo tempo, indivíduo, mas parte da
sociedade.

6
“O elemento explicativo último da ordem social será encontrado na linguagem, na comunicação linguística e,
especificamente, nos pressupostos universais e inevitáveis do mesmo”. (AMADO, 2003, p. 177).
137
O filósofo alemão Jürgen Habermas (1929), um dos mais importantes pensadores
contemporâneos, também apresenta a importância da comunicação na sua Teoria Discursiva do
Direito, desenvolvida no livro “Direito e democracia: entre facticidade e validade (1992)”. Para
ele, a sociedade moderna tornou-se tão complexa, que a comunicação é situada no âmbito de
uma teoria reconstrutiva da sociedade (HABERMAS, 1997 p. 21). Logo, é apresentado o direito
como instrumento de mediação e integração social. Nesse sentido, busca-se um acordo entre os
participantes da via comunicativa (intersubjetivismo), que somente é alcançado a partir da
pretensão de entender o outro (mecanismo coordenador da ação) por meio da fala.
Conforme ressaltado por Juan Antonio Garcia Amado, na obra La Filosofia Del Derecho
de Habermas Y Luhmanh, devem os cidadãos se reconhecerem reciprocamente, se desejam
regular de modo legítimo suas convivências mediante o direito positivo. (AMADO, 2006, p.
14). Cria-se condições para o diálogo, em que ambas partes devem se reconhecer como
protagonistas/interlocutores nessa comunicação. (MULLER, 2006, p. 56).
Ao assumirem o papel de protagonistas na solução consensual do conflito, abre espaço
para mediações, por exemplo, entre vítima-ofensor e para os cada vez mais conhecidos círculos
restaurativos.
Howard Zehr (2008, p. 90-94), na obra “Trocando as Lentes: um novo foco sobre o
crime e a justiça”, realiza uma análise minuciosa sobre o quanto a reconciliação e a justiça
restaurativa mostram-se positivas no âmbito penal, uma vez que a vítima é escutada e, lado
outro, o ofensor atua como ouvinte.
Em suma, o direito passa a abraçar as necessidades das partes, seja de escutar a vítima,
como de ressocializar o delinquente através, primeiramente, da conscientização do mal
causado, e após, na análise de si mesmo sobre os estereótipos e racionalizações. Portanto, é um
processo que envolve a participação direta dos envolvidos no conflito, em que dotados de uma
responsabilidade coletiva, buscam a reparação de um dano (COSTA, 2012, p. 104-105).
Assim, a Justiça Restaurativa vem sendo um método diverso da heterocomposição, a
qual preza comunicação, já que nesta, as partes atuam ativamente no conflito existente,
buscando um consenso e, por consequência, gerando rapidez e economia processual.
O Brasil conta com a Lei dos Juizados Especiais (Lei nº 9.099/95), no qual, em seus
artigos 21 a 24, há previsão expressa da fase de conciliação, antes mesmo da causa ser
submetida ao julgamento do juiz togado. (BRASIL, 1995). O Código de Processo Civil, no

138
artigo 334, também estabelece uma audiência prévia de conciliação. (BRASIL, 2015).7 Ainda,
há a Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), da qual poderão valer-se todas as pessoas capazes de
contratar para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. A conciliação, a
mediação e a arbitragem, em que pese contarão com a interferência de um terceiro – o
conciliador, mediador ou o árbitro – ainda coloca as partes como protagonistas no processo. A
mediação e conciliação, serão os meios adequados de solução de conflito analisado no capítulo
sequente.
Dito isso, percebe-se que são todos meios que estimulam e valorizam a participação das
partes na composição do conflito, estando de acordo com o art. 3, §3 do Código de Processo
Civil (BRASIL, 2015).8 Surge a ideia do “Tribunal Multiportas” (Multidoor Courthouses), de
origem americana, teoria desenvolvida por Frank Ernest Arnold Sanderi no ano de 1976, em
um documento de sua autoria denominado Varieties of dispute processing (Variedades do
processamento de conflitos), na Global Pound Conference, em que Frank propôs formas
alternativas de resolução de conflito, respeitando a particularidade e exigência de cada caso em
concreto, através de advogados e mediadores/conciliadores devidamente habilitados. Ou seja,
o “Tribunal Multiportas” expressa a ideia de haver várias “portas” a solucionar um conflito,
que não somente a porta do judiciário por meio da heterocomposição.
Nesse sentido, Frank apresentou que para o estabelecimento do Tribunal Multiportas,
era necessário com que as instituições implementassem os meios alternativos de solução de
conflitos, realizasse a escolha adequada dos meios para cada caso em concreto, fosse realizada
a formação de profissionais para a aplicação dos métodos e, ainda, conscientizada a sociedade
sobre os benefícios advindo da adoção de tais meios. (BORGES; RAMIDOFF, 2020, p. 2).
Portanto percebe-se um procedimento, um discurso racionalmente motivado, que
somente ocorre pela comunicação, afinal a própria razão está embutida na ação comunicativa.
Disso se depreende que, apenas, quando não ocorrido o consenso entre as partes nesse
procedimento racional, que surgem as normas jurídicas surgem como meio de segunda ordem
para solucionar o conflito existente. (SILVA, 2007, p. 191-196; LODÉA, 2005, p. 175).
Destarte, inegável a importância de o direito incentivar o restabelecimento da
comunicação entre as partes, permitir com que as próprias partes possam resolver o conflito

7
“Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o
Juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias [...]”.
(BRASIL, 2015).
8
“A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por
juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
(BRASIL, 2015).
139
existente entre elas, a fim de evitar com que esse conflito se torne uma lide processual,
comprovando que não somente pela heterocomposição, por uma sentença heterocompositiva,
que pode ser obtida a justiça.
Para isso, a mediação e a conciliação são meios eficientes de autocomposição na
resolução de conflitos.

2. UMA ANÁLISE DA MEDIAÇÃO E DA CONCILIAÇÃO COMO MEIO


ALTERNATIVO DE SOLUÇÃO DE CONFLITO

Em busca de mecanismos alternativos de solução de conflitos, em razão da crescente


judicialização de processos e da cultura do litígio, surge a mediação e a conciliação como meios
de viabilizar a conjectura dos preceitos fundamentais constitucionais de celeridade, eficiência
e eficácia. Na própria Constituição Federal de 1988, em seu preâmbulo, é ressaltado que se
destina ao Estado assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, fundado na harmonia
social, com a “solução pacífica das controvérsias”. (BRASIL, 1988).
O Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução n. 125, de 29 de novembro de
2010, contribuiu ainda mais com os meios adequados de solução de conflitos, em especial à
mediação e à conciliação, já que fora estabelecido com o intuito de estabelecer uma Política
Judiciária Nacional voltada à possibilidade de se adotar tratamento adequado para cada conflito
existente, o que se interliga com a ideia desenvolvida pelo americano Frank Ernest Arnold
Sanderi, conforme analisado no capítulo anterior.
Nesse contexto foram as considerações justificadoras adotas pelo Conselho Nacional de
Justiça para a implementação da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos
conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário: o crescente número de conflitos de
interesses na sociedade, a necessidade de incentivo permanente a métodos consensuais e a
efetividade da mediação e da conciliação na resolução de litígios. (CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA, 2010).
Desse modo, portanto, supera-se a formalidade do processo em que a decisão é prolatada
pelo Magistrado, oportunizando às próprias partes do conflito decidirem o melhor caminho para
a solução da controvérsia existente entre elas. Nesse viés, inclusive, é dever do próprio
magistrado promover – a qualquer tempo – a autocomposição, seja pela mediação ou pela
conciliação.
Adentro do estudo da mediação e da conciliação, primordial realizar a distinção desses
dois métodos, pois, afinal, ambos são meios de autocomposição e contam com a participação
140
de um terceiro capacitado e imparcial. Desse modo, a análise primeira far-se-á sobre a
mediação.
A mediação é uma conversa realizada entre as partes, contando com a participação de
um terceiro imparcial (mediador) que vai buscar facilitar e organizar a comunicação entre os
envolvidos no conflito, a fim de que eles – por si próprios – possam chegar à solução mais
benéfica (para ambos) ao conflito existente. (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2017,
p. 7; BRASIL, 2015), podendo ser utilizada extrajudicialmente (antes do conflito se tornar lide
judicial/processual) ou judicialmente (quando já ocorrido a lide judicial/processual). (VALLE,
2017. p. 53). Em todo e qualquer caso, enfatiza-se a cooperação entre os partícipes na mediação,
já que ambos são corresponsáveis pela solução do conflito, bem como se enfatiza a
comunicação. Não se busca na mediação a solução imediata ao conflito, mas sim a construção
do diálogo entre as partes, sendo a solução ao certame apenas uma consequência do efetivo
restabelecimento da comunicação entre as partes.
Para isso, fundamental que o terceiro imparcial/mediador tenha competência ao mediar
as sessões, respeitando a liberdade das partes, zelando por uma comunicação não competitiva
e, sobretudo, deixando o poder decisório aos partícipes, ou seja, cumprindo com os princípios
basilares da mediação previstos no art. 2 da Lei 13.140/2015 (BRASIL, 2015).
Assim, inicia-se a efetividade da mediação a partir do momento em que estabelecido um
ambiente seguro e tranquilo para as partes do conflito, exatamente com o intuito de poder
ocorrer a comunicação, e trabalhado a parte interna de cada um, pois – conforme visto no
capítulo anterior – a maior parte das demandas judiciais envolve conflitos familiares, rixas,
conflitos éticos e políticos, enfim, situações oriundas de um conflito que por primeiro era
“interno’’. A partir daí que é possível “extrair informações preciosas, que, na maioria das vezes,
estão obscuras, escondidas sob os pedidos processuais, bem como mudar o estado dos
partícipes”. (MENEZES, 2020, p. 7). Inclusive, trabalhar com o interno das pessoas (o que vai
exigir do mediador um conhecimento interdisciplinar com outras matérias) previne que um
futuro conflito possa ocorrer (NETO, 2021, p. 167). Indubitável que se trata de técnica que
busca ir ao cerne do conflito e, exatamente por isso, torna-se meio efeito de solução ao impasse.
O procedimento da mediação, portanto, é escutar com atenção, interrogar, interromper
quando necessário, utilizando das três ferramentas: escuta ativa, modo afirmativo e modo
interrogativo. (TARTUCE, 2013, p. 48-49). A escuta ativa interliga-se com a reciprocidade
apresentada por Juan Antonio Garcia Amado ao estudar o filósofo Habermas (AMADO, 2006,
p. 14), uma vez que ambas as partes vão ter que participar da escuta reciprocamente, ou seja,

141
enquanto um fala, outro apenas escuta. O modo afirmativo se manifesta ao mediador checar a
compreensão de certas afirmações feitas pelas partes, a fim de ser efetiva a comunicação.
Desse modo, o mediador utiliza das afirmações feitas pelas partes, repetindo-as, com o
objetivo de confirmar com o interlocutor se foi exatamente aquilo que ele queria dizer, evitando
qualquer erro de interpretação. Portanto, o modo afirmativo nada mais são que técnicas de
resumir e parafrasear. Por fim, o modo interrogativo é a técnica mais utilizada pelos
mediadores, em que realizadas perguntas para os mediandos com o objetivo final de que eles
revelem o cerne do conflito, pois sabendo o cerne do conflito são capazes de ver a complexidade
do problema e estimular a criação de uma solução. Contudo, para isso, devem os mediadores
se atentarem aos detalhes das informações prestadas pelas partes, pois muitas vezes – esses
detalhes – demonstram que o conflito existente é menos complexo do que parece ser.
(TARTUCE, 2013, p. 52-53).
Ante o exposto, percebe-se a exigência que é cobrada do mediador, indubitável que sua
qualificação é primordial para uma exitosa sessão de mediação, podendo utilizar-se de técnicas
como as supramencionadas ou de outras, afinal esse todo complexo não pode ser reduzido a
formas fixas e predeterminadas. Por exemplo, os mediadores podem utilizar a Comunicação
Não Violenta (CNV) desenvolvida por Marshall B. Rosenberg, no qual é a busca por uma
comunicação consciente, estimulando a compaixão. (MIKLOS; MIKLOS, 2021, p. 30). Assim,
sabendo da importância da qualificação dos mediadores para o sucesso da mediação, conforme
art. 7º, V, da Resolução n. 125/2010, cabe aos tribunais promover a capacitação. Nesse sentido,
a realização de capacitação pelos tribunais, desde que sejam reconhecidos pela Enfam, na
hipótese de oferta de curso de formação de mediador judicial, se dá sem prejuízo da atuação do
Conselho Nacional de Justiça no desenvolvimento de ações de capacitação, sobretudo na
modalidade de ensino a distância.
Fato é que, a mediação traz resultados positivos, desde que todas partes cooperem
juntas, pois desafoga o Poder Judiciário, por meio da alteração do “modus operandi” de ajuizar
todo e qualquer conflito, em busca de soluções adjudicadas. Ou seja, quebra com o paradigma
da cultura litigiosa, o que consequentemente gera uma prestação jurisdicional célebre, com
diminuição aos custos processuais e, sobretudo, com soluções que na maioria das vezes evita
um conflito futuro e concretiza a pacificação social.
Não somente a mediação mostra-se um meio adequado de solução de conflito, como
também a conciliação. Na conciliação, diferentemente da mediação, vai haver uma influência
mais direta do terceiro (conciliador) sobre as partes, uma vez que vai – inclusive – apresentar

142
propostas à solução do conflito existente, que pode ou não ser aceita por elas. (TARTUCE,
2023, p. 223). Contudo, nesse ponto, cabe ressaltar que isso não afasta a necessidade da
participação ativa das partes do conflito na comunicação, cabendo ao conciliador prezar pela
identificação de soluções mais benéficas para ambas partes, por meio da identificação dos
interesses, e então apresentar soluções para o conflito “somente” quando necessário.
Ainda no que tange à diferenciação da conciliação e da mediação, conforme o Conselho
Nacional de Justiça (2017, p. 7-8), também se encontra no tipo do conflito, sendo aqueles
conflitos mais objetivos, em que inexistente relacionamento duradouro entre as partes, a
conciliação se destaca como método mais adequado, ao passo que conflitos subjetivos, em que
existente relação entre as partes, destaca-se a mediação.
Em aspectos igualitários, assim como a mediação, a conciliação pode ser judicial ou
extrajudicial. Inclusive, conciliação prévia vem sendo estimulada exatamente com o intuito de
não ocorrer o ajuizamento de demandas e finalizar ações sem a necessária participação estatal.
Do mesmo modo, necessário que o conciliador prossiga um procedimento nas sessões
de conciliação, como: participar vivamente da comunicação; estimular a flexibilidade;
colaborar para a identificação de interesses de cada parte e, então; contribuir para elaboração
de soluções criativas ao conflito existente entre as partes, somente se necessário, pois o ideal é
que as próprias partes venham a discernir sobre as soluções ao impasse. (TARTUCE, 2023, p.
224-228).
Por fim, importante destaque sobre “o que não é conciliar?”. Nesse ponto, Fernanda
Tartuce na obra “Negociação, Mediação, Conciliação e Arbitragem” (2023, p. 231-238), deixa
claro que perguntar se um acordo já foi obtido, falar sobre as desvantagens de seguir um
processo judicial, intimidar/pressionar para que as partem conciliem, prejulgar a parcialidade e
“forçar acordo”, certamente não é conciliar.
Ressalta-se assim a importância da capacitação dos conciliadores, a partir do
entendimento de que a conciliação diverge da mediação, em especial nos casos em que melhor
se adéqua “mais adequada quando os conflitos são objetivos/patrimoniais, em que,
preferencialmente não existam vínculos afetivos/familiares entre as partes, não sendo
necessário um aprofundamento maior na discussão”. (CHAVES; MORAIS SALES, 2014, p.
262).
Sabe-se que a estrutura do judiciário passa por enormes problemas que impossibilitam
a concretização do direito fundamental de acesso à justiça com resultado célere, seja pelo
excesso de rigor ou pelo número excessivo de processos os anseios da população não estão

143
sendo atendidos rapidamente, a morosidade tomou conta do judiciário, portanto fazer o máximo
para que os meios adequados de solução de conflitos sejam efetivos é fundamental, pois
combate a cultura do litígio e, consequentemente, a crescente judicialização de processos.

3. A CONCRETIZAÇÃO DA AUTOCOMPOSIÇÃO POR MEIO DOS CEJUSCS E O


PAPEL DO ADVOGADO NA BUSCA DA JUSTIÇA SOCIAL

Como visto até então, busca-se a desconstrução da cultura do litígio, por meio de
métodos consensuais. Contudo, até a primeira década dos anos 2000, conquanto previsto desde
a época de Independência do país, os meios consensuais de solução de conflitos passaram por
período de desprestígio, haja vista que o contexto jurisdicional sempre privilegiou a
heterocomposição como método de solução de antagonismos. É nesse cenário que,
estabelecidos pela Resolução Conselho Nacional de Justiça 125/2010, do Conselho Nacional
de Justiça, foram criados os Centros Judiciários de Solução de Conflitos – CEJUSCS.
Unidades do Poder Judiciário, ambientes nos quais os métodos de conciliação e de
mediação serão desenvolvidos, com o auxílio e supervisão de conciliadores e mediadores
habilitados, no espaço físico dos próprios foros (DIAS, 2018, p. 574), com vistas à facilidade
do acesso e atendimento da comunidade à justiça, bem como para garantia de uma solução
eficiente e célere aos conflitos, já que o objetivo primordial é estabelecer diálogos para a
construção de paz e solução de conflitos consensuais.
O Novo Código de Processo Civil, vigente desde 2015, trouxe, em diversos de seus
dispositivos, verdadeira mudança de protótipo no Poder Judiciário Nacional, o qual idealiza a
promoção da paz, por meio da autocomposição na resolução de controvérsias (KRUGER, 2018,
p. 551). Isso com vista ao estímulo às partes envolvidas para buscarem soluções amigáveis,
mediante acordos, negociações e conciliações, sem que haja litígios prolongados ante o
judiciário.
Nesse sentido, o art. 165 do Código de Processo Civil dispõe que “os tribunais criarão
centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões
e audiências de conciliação e mediação e pelo desenvolvimento de programas destinados a
auxiliar, orientar e estimular a autocomposição” (BRASIL, 2015). Desde então, começaram a
ser instigados e instaurados os centros de conciliação em larga escala, que entre altos e baixos,
demonstram grande crescimento, principalmente nas taxas de efetividade.
Conforme o Relatório Justiça em Números 2022, ano-base 2021, o percentual de
sentenças homologatórias de acordo foi de 11,9%, em comparação com as decisões terminativas
144
proferidas, esse número registra crescimento. Especificamente na fase de execução, as
sentenças homologatórias de acordo corresponderam a 8,1%, curva que demonstra crescimento
ao longo da série histórica, com acréscimo de 4,6 pontos percentuais entre os anos de 2015 e
2021 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2022, p. 201).
A solução de conflitos pela autocomposição, muito embora apresente crescimento a
partir da instauração dos CEJUSCS, por ser uma verdadeira mudança de paradigmas, sua
aplicação ainda encontra várias intempéries na implementação e operação, justamente pela
resistência dos operadores do direito, a capacitação de mediadores e conciliadores, a ampliação
do acesso aos CEJUSCS, bem como e principalmente pela necessidade de maior
conscientização sobre a existência e os benefícios da utilização, haja vista a ideia de justiça
estar quase que inteiramente baseada na cultura da heterocomposição.
Além da realização de mediações e conciliações pré-processuais, são realizadas
mediações e conciliações processuais, já direcionadas ao juízo (ROSSI, 2018, p. 255),
justamente porque, parte das demandas judiciais apresentam possibilidade, ainda que mínima,
de consenso entre as partes.
Nesse sentido, assumem os magistrados especial relevância na instauração e incentivo
à utilização dos centros, enquanto responsáveis por conduzir os processos e tomar decisões
judiciais. Primeiro, porque demonstra verdadeiro compromisso e esforço do Poder Judiciário
com a busca de soluções pacíficas e consensuais das lides, resultando diretamente na maneira
com que a sociedade depreende a resolução dos litígios.
Por outro lado, porque invariáveis vezes as decisões prolatadas pelos juízes não
encontram amparo na solução mais justa a ambas as partes, mas sim, com base em seu
conhecimento técnico, atrelado aos fundamentos e provas realizadas nos autos da demanda.
Desse modo, a decisão nem sempre é tão efetiva quanto se fosse delineada pelos próprios
envolvidos no processo. Isso porque, a composição dos interesses e a autonomia das partes faz
com que todos precisem se posicionar, sem que haja exercício ativo do advogado. Assim,
conquanto contem com o auxílio dos mediadores e conciliadores a fim de eliminar eventuais
disparidades, as partes expõem e defendem seus lados do liame, sem que seja necessário que
um magistrado diga quem está certo ou errado (NOBRE, 2022).
Nos Centros de Solução de Conflitos, para além dos magistrados, mediadores, auxiliares
e as partes, mostra-se notória a figura do advogado que, muito embora sua participação seja
instigada nos CEJUSCs, a Resolução 125/2010 dispõe que “nos Centros poderão atuar
membros do Ministério Público, defensores públicos, procuradores e/ou advogados” (CNJ,

145
2010, art. 11). Isto é, indica a mera faculdade da presença dos profissionais nas audiências, o
que tem gerado grandes críticas, haja vista que a ausência deixa de assegurar expressão prática
ao princípio da isonomia nas sessões.
Nesse sentido, inclusive, no ano de 2020, foi ajuizada pelo Conselho da Ordem dos
Advogados do Brasil, Ação Direta de Inconstitucionalidade – n. 6324, para fins de questionar
a validade do texto do art. 11 da Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça.
Justamente porque são várias as razões para salutar a imprescindibilidade da presença dos
profissionais que a sua importância, que vão de encontro, inclusive, com as atividades inerentes
à profissão.
A advocacia, essencial para a defesa dos direitos individuais e coletivos, detém, como
responsabilidade a promoção da justiça, por meio da construção de uma sociedade mais justa e
igualitária. É nesse sentido que o exercício da profissão transcende às relações processuais e
atividades privadas que lhes compete, são essenciais, impreterivelmente, à administração da
justiça, posta sua indispensabilidade à sociedade e o dinamismo da cidadania (GONZAGA, et.
al., 2021, p. 24).
A justiça social, além de objetivo almejado da advocacia, é um princípio fundamental
na sociedade democrática e o encargo vem disciplinado no Estatuto da OAB (BRASIL, Lei
8.906/1994, art. 2°), bem como está disciplinado constitucionalmente no art. 133 da
Constituição da República Federativa do Brasil, nestas palavras: “Art. 133. O advogado é
indispensável à administração da justiça (...)” (BRASIL, 1988).
Os advogados desempenham um papel vital na garantia da aplicação efetiva das leis e
sua atuação, podendo atuar em litígios estratégicos, advocacia legislativa, educação jurídica e
conscientização pública para promover a igualdade, a inclusão e a transformação social. A
essencialidade, portanto, não concerne apenas à atuação do causídico nos atos do exercício da
jurisdição enquanto procurador das partes. O advogado deve, sobretudo, ministrar suas
atividades em compasso com a função social intrínseca, isto é, em prol do consenso
preponderante sob o interesse particular das partes (LOBO, 2022, p. 48). Esse é o seu múnus
público9.
Por conseguinte, a mediação e a conciliação não possuem o condão de esvaziar a função
do advogado, muito menos de desconstruir o parâmetro funcional do que cotidianamente se

9
“O exercício da advocacia é um múnus público (artigo 2°, § 2°, do EAOAB), isto é, numa obrigação, um encargo
jurídico definido pelas necessidades do interesse da sociedade e do Estado. Mesmo quando o advogado atua
movido por seus interesses privados, age no interesse público, o que inclui a busca de solução favorável a seu
cliente” (MAMEDE, 2014, p. 15).
146
vislumbra da atividade desempenhada pela profissão (FIORELLI, 2008). Diversamente, o
próprio Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil preocupou-se em
incentivar a adoção dos métodos de autocomposição para solucionar consensualmente as
controvérsias entre as partes, dispondo que um dos deveres do advogado é o de “estimular a
conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios”
(Resolução n. 02/2015, art. 2°, parágrafo único, inciso VI).
Nesse viés, desafogar os tribunais, que na atualidade detêm um grande numerário de
processos, com fulcro a uma justiça mais eficaz e célere, faz com que a tendência esteja voltada
à utilização de técnicas de solução de conflitos, contribuindo significativamente à redução da
imensa demanda judiciária e à satisfação de interesses conforme convenção entre as partes
(PINHEIRO, 2015, p. 290), afinal, a eleição do Poder Judiciário não é o único método de
trabalho dos advogados.
Dentre as responsabilidades do advogado, as principais delas são, a de representar e
proteger os direitos e interesses de seus clientes. Desse modo, os profissionais desempenham
papel fundamental em fornecer orientação jurídica de seus outorgantes sobre a viabilidade e
adequação no caso em concreto, ou seja, as probabilidades de êxito. Assim, o advogado que
acredita nos efetivos resultados que a mediação e a conciliação resultam em benefício de seus
clientes, detém o poderio de incentivá-los à escolha do método, via esclarecimentos em relação
às possíveis alternativas, especialmente pela eficiência e celeridade da medida, tornando a
mediação um meio bastante atraente, na medida de suas especificidades (SOUSA, 2021, p. 175-
176), bem como ao esclarecer como as audiências podem ser menos formalistas, mais rápidas
e menos custosas do que um processo judicial tradicional.
Com o reconhecimento dos possíveis resultados e impactos da mediação, ora pela
ponderação dos benefícios, ora pela escolha das melhores alternativas a partir do caso em
concreto, o impulsionamento do profissional na difusão da mediação se mostra eficaz e
imprescindível, posto que é a figura principal de aconselhamento e confiabilidade na resolução
dos conflitos (MARTINS; VALDETARO; SIMÕES, p. 2, 2019).
O comportamento do profissional, quando qualificado para atuar nas demandas postas
à solução de conflitos, ocupa espaço tão importante quanto às postas nos processos judiciais,
contudo, sua postura não é combativa, de convencimento, ou pró-ativa, pelo contrário, atua
colaborativamente, mas nunca ativamente, pois o local possui como fim o restabelecimento da
comunicação entre as partes, para o desfecho ser o da pacificação social (DINIZ, 2017, p. 11-
12). Assim, ao participar de um processo de autocomposição, considerando que o sucesso das

147
sessões está diretamente relacionado às negociações realizadas, a presença do advogado avigora
a importância dos instrumentos, pois, assim como no âmbito judicial, sua presença garante que
os direitos e interesses das partes sejam adequadamente protegidos.
Por essas razões que a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6324 pretende o
questionamento da validade do art. 11 da Resolução, pois a interpretação do artigo não se
compatibiliza com a garantia de defesa técnica, pois, tanto a Lei de Mediação (Lei
13.140/2015), quanto o Código de Processo Civil determina o acompanhamento de advogados
ou defensores públicos em audiência de conciliação. Além disso, e principalmente, porque a
isonomia entre as partes é primordial na autocomposição, haja vista que a faculdade de
assistência legal pode culminar em desequilíbrio jurídico entre as partes em conflito
(MARTINS; VALDETARO; SIMÕES, 2019, p. 9).
Por derradeiro, sua atuação não deve servir como obstaculizador do processo, devendo
assumir uma postura colaborativa em sua intervenção, para criar soluções mutuamente
benéficas e não com o fito de aumentar a litigiosidade (FUOCO, 2015, p. 7). Nesse sentido,
enquanto ainda precoce a temática, certo é que a imprescindibilidade da participação dos
advogados não pode significar uma mera faculdade, haja vista a sua tamanha contribuição
social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os métodos de autocomposição, antes desprivilegiados pela prevalência da


heterocomposição, na última década, tem demonstrado efetivo crescimento na sua utilização.
Isso porque, a resolução dos conflitos pela conciliação e a mediação representam uma valiosa
alternativa, que vai além do tradicional processo judicial. São efetivos meios de solução de
liames que, através da comunicação, cooperação e busca de consenso, têm se mostrado
extremamente eficientes e vantajosas nos mais variados aspectos.
As partes, que até então, manifestaram-se sob o protagonismo dos advogados, têm a
oportunidade de participar ativamente na construção de uma solução que atenda às suas reais
necessidades e interesses, promovendo o diálogo, a fim de encontrar um acordo mutuamente
satisfatório. A autocomposição, enquanto proporciona maior celeridade na resolução dos
conflitos, desobstrui o acesso à justiça e evita a morosidade do processo judicial e, por vezes,
uma solução desacertada. Contudo, a utilização dos institutos não deve servir como escopo para
esvaziamento do Poder Judiciário, diversamente, deve ser utilizado para incrementar as

148
políticas públicas de acesso à Justiça, privilegiando-se a humanização dos conflitos e a busca
de decisões mais justas e efetivas.
A promoção da cultura da conciliação e da mediação é extremamente relevante para o
revigoramento dos métodos consensuais de solução de conflitos. Para isso, o estímulo dos
magistrados, bem como e principalmente pelos advogados, se faz necessário para disseminar
essas práticas e ampliar sua utilização. Isso porque, os operadores do direito são fundamentais
no incentivo aos seus clientes na visão em que os conflitos são tratados.
Ademais, para além de incentivadores, a presença dos advogados é necessária e
indispensável nas sessões de mediação e conciliação, porquanto, são imprescindíveis à
administração da Justiça, conforme preceitua a Constituição da República, na medida de seus
conhecimentos e habilidades inerentes à profissão que, conquanto dissemelhantes de um
tradicional processo, atua como coparticipante na construção da justiça social, respeita,
sobretudo, o protagonismo do outorgado.
Nesse sentido, é imprescindível, de igual modo, que haja qualificação dos estudantes no
curso de direito sobre os meios adequados de solução de conflitos, já que são ensinados, desde
os semestres iniciais, a serem direcionados apenas aos conflitos judiciais e não solucionadores
de conflitos. Ao privilegiar as práticas, constrói-se um sistema jurídico humano, colaborativo e
eficaz, sobretudo em uma sociedade em que busca respostas pacíficas a seus conflitos,
reproduzindo o verdadeiro significado de progresso.
Desse modo, no atual cenário vivenciado pela sociedade, em que a justiça eficiente e
acessível é cada vez mais necessária, os métodos de autocomposição são os meios mais efetivos
na busca da justiça e pacificação social, na medida que preservam os relacionamentos,
constroem uma sociedade harmônica, promovem a equidade, a compreensão mútua e a
satisfação das partes envolvidas.

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154
CONTEXTO DA POLÍTICA NACIONAL DE PRÁTICAS INTEGRATIVAS E
COMPLEMENTARES NO SUS (PNPIC) E A EFICÁCIA COMO
TRATAMENTOS ALTERNATIVOS MENOS CUSTOSOS AO ESTADO
CONTEXT OF THE NATIONAL POLICY ON INTEGRATIVE AND
COMPLEMENTARY PRACTICES IN SUS (PNPIC) AND THE EFFECTIVENESS
AS ALTERNATIVE TREATMENTS LESS COST TO THE STATE

Cristina Dal Sasso1


Daniela Dal Sasso2
RESUMO

As medicinas tradicional e complementar, além de promoverem a redução dos custos, têm se


mostrado eficazes e investido na promoção da saúde e na educação em saúde, contribuindo para
evitar que a doença se instale e que suas consequências sejam muito graves. Nessa seara de
tratamentos alternativos, o SUS inovou, trazendo à população em geral a “Política Nacional de
Práticas Integrativas e Complementares”, a qual vem oportunizando uma maior oportunidade
de economicidade ao erário em relação aos seus gastos públicos com licitações em
medicamentos para serem distribuidos à população que deles necessitam.

Palavras-chave: Políticas públicas. Saúde. SUS. Práticas integrativas e complementares.


Economicidade.

ABSTRACT
Traditional and complementary medicine, in addition to promoting cost reduction, have proven
to be effective and invested in health promotion and health education, helping to prevent the
disease from taking hold and its consequences being very serious. In this area of alternative
treatments, the SUS innovated, bringing to the general population the “National Policy of
Integrative and Complementary Practices, which has been providing a greater opportunity for
economy to the treasury in relation to its public expenses with bidding on medicines to be
distributed to the public. population that need them.

Word-keys: Public politcs. Health. SUS. Integrative and complementary practices. Economy.

1 POLÍTICAS PÚBLICAS DO SUS

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, qualidade de vida é “a percepção do


indivíduo de sua inserção na vida, no contexto da cultura e sistemas de valores nos quais ele
vive e em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações”. Envolve o bem

1
Advogada, Membro da Comissão da Mulher Advogada da OABRS, Membro da Comissão de Direitos Humanos
da OABRS, Moderadora do Grupo de Estudos em Direito Administrativo da OABRS, Pós-Graduada em Direito
do Estado. E-mail: cristinadalsasso@gmail.com.
2
Bacharelanda em Direito, Especialista em Saúde da Secretaria Estadual de Saúde do RS, Pós-Graduada em
Gestão em Saúde.
155
estar espiritual, físico, mental, psicológico e emocional, além de relacionamentos sociais, como
família e amigos e, também, saúde, educação, habitação, saneamento básico e outras
circunstâncias da vida.
Já o Sistema Único de Saúde (SUS) na seara da governance instituiu a Política Nacional
de Práticas Integrativas e Complementares no SUS, as quais consistem em recursos terapêuticos
que buscam a prevenção de doenças e a recuperação da saúde, com ênfase na escuta acolhedora,
no desenvolvimento do vínculo terapêutico e na integração do ser humano com o meio ambiente
e a sociedade. As práticas foram institucionalizadas por meio da Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC).
São elas: Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura, Medicina Antroposófica,
Homeopatia, Plantas Medicinais e Fitoterapia, Termalismo Social/Crenoterapia, Arteterapia,
Ayurveda, Biodança, Dança Circular, Meditação, Musicoterapia, Naturopatia, Osteopatia,
Quiropraxia, Reflexoterapia, Reiki, Shantala, Terapia Comunitária Integrativa, Yoga,
Apiterapia, Aromaterapia, Bioenergética, Constelação familiar, Cromoterapia, Geoterapia,
Hipnoterapia, Imposição de mãos, Ozonioterapia e Terapia de Florais. Nesse contexto
importante ressaltar a relevância do tema no âmbito da conscientização de práticas alternativas
através de busca de tratamento pelos usuários do SUS. Pensando em tratamento sobre o bem-
estar físico e mental, ressalta-se a importância da prática da Yoga no sentido de amenizar os
gastos públicos com medicamentos de uso controlado em relação aos quadros de depressão e
ansiedade.
O yoga é uma tradição indiana que utiliza um conjunto de práticas psicofísicas e seu uso
é aconselhado para os sistemas nacionais de saúde em todos os países membros da Organização
Mundial da Saúde. No Brasil, o yoga foi inserido recentemente no Sistema Único de Saúde
(SUS) por meio da Portaria 719, de 7 de abril de 2011, que criou o Programa da Academia de
Saúde. Nos termos da portaria lê-se em seu artigo 6 que “serão desenvolvidas as seguintes
atividades no âmbito do Programa Academia da Saúde: I - promoção de práticas corporais e
atividades físicas (ginástica, lutas, capoeira, dança, jogos esportivos e populares, yoga, tai chi
chuan, dentre outros)”.
Com relação aos tratamentos de doenças mentais, verifica-se que a medicina integrativa
tem se tornado cada vez mais comum no tratamento adjunto a abordagens médicas
convencionais. Dentre as alternativas, às práticas derivadas do yoga como meditações de atenção
plena, posturas ou exercícios físicos têm sido amplamente pesquisadas para compreender os seus
benefícios (Luberto et al., 2013). A prática do yoga mostrou ser promissora para uma vida

156
saudável, uma vez que, reflete na reeducação alimentar mais saudável, no controle do estresse e
das emoções e na própria sensação do bem estar do indivíduo (Snyderman e Weil, 2002).
A prática de Yoga como condição de Política Nacional de Práticas Integrativas
Complementares no SUS influencia nos níveis de bem-estar dos indivíduos promovendo
melhora nos sintomas psicofisiológicos. Conceituam-se sintomas psicofisiológicos aqueles que
podem ser produzidos por uma excessiva ativação de respostas fisiológicas do órgão ou sistema
que sofre a disfunção como por exemplo: dores de cabeça, nas costas, algumas arritmias
cardíacas, certos tipos de hipertensão arterial, algumas moléstias do sistema digestivo, dentre
outras doenças. Além disso, a eficácia da prática do yoga contribui para o tratamento alternativo
coadjuvante de algumas doenças inserido na Política Nacional de Práticas Integrativas do SUS.
Foi demonstrado em um estudo qualitativo desenvolvido por Ross et al (2014), através
de relatos, que o yoga foi capaz de ampliar o engajamento social dos praticantes. Observou-se
que a prática do yoga levou o praticante a desenvolver melhorias em suas relações pessoais, além
de se mostrarem mais saudáveis, tanto fisica quanto mentalmente, o que aumentou os níveis de
empatia e tornou a convivência em comunidade facilitada. Em um estudo de revisão sistemática,
Cramer e colaboradores (2017) sugerem que o yoga, como terapia complementar no tratamento
da depressão, pode promover diminuição da ruminação de pensamentos e aumento de
sentimentos de compaixão e compreensão dos praticantes, por meio de exercícios respiratórios,
posturais, meditação e atenção plena.
Outra revisão sistemática, de Butterfield e colaboradores (2017), há referências de que a
prática regular do yoga pode influenciar positivamente em parâmetros psicofisiológicos. A
diminuição das frequências cardíaca e respiratória, e a ativação do sistema nervoso
parassimpático com a prática do yoga mostraram-se promissoras para a diminuição dos níveis de
ansiedade de seus praticantes. Em um estudo piloto realizado por Brown e colaboradores (2005),
foi postulado que sequências de exercícios respiratórios específicos presentes no yoga podem:
equilibrar e fortalecer a resposta ao estresse e o sistema nervoso autônomo (estimulando o
sistema nervoso parassimpático e inibindo o simpático), e diminuir a estimulação de áreas
corticais, estimuladas em momentos de preocupação e antecipação. Portanto, práticas
respiratórias foram consideradas como treinamentos para diminuição dos níveis de ansiedade dos
praticantes.
Tendo em vista a crescente necessidade de utilização de tratamento com antidepressivos
no mundo contemporâneo, é importante fazer uma análise de possíveis tratamentos alternativos
para esses usuários. É de conhecimento da área médica a crescente prevalência do transtorno

157
depressivo que inclui inúmeros sintomas psicofisiológicos. Por isso, mais estudos dedicados a
esse tema precisam ser realizados. Além de todos esses fatores, encontramos os fatores
econômicos que regem os princípios da administração pública.
O yoga tem demonstrado ser uma alternativa eficaz como terapia integrativa no
tratamento de doenças mentais e para formar pessoas melhores, dentre várias qualidades. Além
disso, levando-se em consideração que a prevalência de depressão e ansiedade têm aumentado
no mundo inteiro, a presente pesquisa contribuirá com dados para averiguar o potencial de
impacto do yoga como terapia adjunta na redução de sintomas de depressão e ansiedade inserida
no contexto da Política das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS). Em
respeito à vida dos que sofrem das dificuldades discutidas neste estudo, as pesquisas sobre o yoga
tornam-se tão dignas de respeito e importância que justificam-se na busca de tratamento
alternativo complementar para aliviar o sofrimento do ser humano e de tornar sua experiência de
vida, a melhor possível, inserindo-se no contexto da ODS n 03 e na área de atuação da
Biomedicina inserida no contexto das habilitações de n 11 (Docência e Pesquisa na área da
Psicobiologia), na área 13 (Fisiologia do Esporte e da Prática do Exercício Físico), na área 15
(Gestão das Tecnologias em Saúde) e na área 26 (PICS).

2 OS GASTOS PÚBLICOS COM MEDICAÇÃO - TERAPIAS ALTERNATIVAS


SERIAM A SOLUÇÃO

O contexto socioeconômico parece influenciar os empenhos públicos e compras


privadas de antidepressivos. Nos períodos em que as variáveis socioeconômicas estiveram em
seus piores níveis, os volumes e gastos públicos apresentaram tendências decrescentes enquanto
o gasto "do próprio bolso" aumentou. O aumento do uso de antidepressivos pode refletir a carga
da doença decorrente da transição demográfica e epidemiológica do Brasil. A análise do
contexto socioeconômico sugere que a diminuição dos orçamentos governamentais devido à
recessão econômica reflete em cortes no orçamento da saúde, o que possivelmente direciona os
usuários para o setor privado para a aquisição desses medicamentos.
Diante da transição demográfica e epidemiológica pela qual passa o Brasil, e sendo as
doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) cada vez mais importantes no rol da carga de
doença que acomete a população, em especial a depressão, e ainda, considerando o alto desvio
de uso, abuso e tolerância relacionados aos psicofármacos, os estudos sobre esses
medicamentos são importantes e se caracterizam como uma prioridade dentre os EUM (Estudos
de Utilização de Medicamentos). Leite et al (2015), em seu estudo sobre carga de doença,

158
apontam a importância da compreensão dos fenômenos da atualidade, que devem ser estudados
para fornecer o panorama atual das necessidades reais da população, adaptando as políticas
públicas para o novo cenário de transição da saúde que o país vem enfrentando. A recessão
levou o país a uma importante retração econômica com impactos nas finanças públicas e
importante diminuição do financiamento público, sobretudo na saúde e na educação. A crise
financeira resulta em reduções orçamentárias que, por sua vez, são acompanhadas por medidas
austeras e privatização de serviços, gerando impactos na economia (recessão) e nos sistemas de
saúde. Essas medidas causam reflexos como a redução do acesso da população a serviços
preventivos e a medicamentos e, consequentemente, aumento das desigualdades sociais
(Bacigalupe, 2016). Essas podem ser as chamadas consequências de regimento de austeridade
econômica. Em face do exposto, é indicada a realização de estudos de utilização que gerem
hipóteses sobre o consumo de psicofármacos. É possível estudar a utilização a partir de compras
governamentais, a fim de contribuir na elaboração de políticas públicas pertinentes que atendam
às necessidades da maioria da população. Dados secundários de bancos de dados
governamentais e bancos de dados complementares podem ajudar a elucidar mudanças no perfil
de consumo dessas substâncias no Brasil, face ao contexto em mudança.
O portal do Ministério da Saúde (2018) recomenda que o tratamento de transtornos
mentais seja prioridade da Atenção Psico Social, que é a porta de entrada para os problemas
mais comuns da população, e dos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial). Em casos nos quais
o tratamento farmacológico é necessário, o referido portal informa que o SUS disponibiliza
medicamentos que inclui os CID-10 F32, F33, F34.1, F34.8, F34.9, F38, F39, F41.2, F53, na
seção de 28 “Perturbações depressivas”, considera os seguintes diagnósticos: “psicose afetiva;
neurose depressiva; psicose depressiva; misto de ansiedade e depressão; depressão reativa;
depressão pósnatal/puerperal” (Ministério da Saúde, 2013, p. 77).

3 PROJETO COMGÁS/TNT
O Projeto Comgás de 2010 (Consumo e Gasto Federal de Medicamentos no Brasil) foi
na época algo inovador uma vez que o seu objetivo geral de descrever e analisar o cenário das
compras federais de medicamentos no Brasil a partir de 2004 (Osorio-de-Castro, 2017). O
referido projeto tinha por método dar ênfase a medicamentos que possuiam maior relevância
em termos de incorporação tecnológica, considerando-se, principalmente, os gastos
despendidos em sua compra e a regulação da Assistência Farmacêutica no Brasil. O projeto
COMGÁS utilizava-se basicamente de informações públicas de bancos de dados federais e,

159
eventualmente, bancos de dados complementares. Ele se debruçou sobre linhas de pesquisa
estratégicas sobre medicamentos que compõem a Relação Nacional de Medicamentos
Essenciais (RENAME), o Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica (como, por
exemplo, os antirretrovirais - ARV), medicamentos de alto custo ou que são comprados em
grandes volumes (caso dos antidepressivos, causando alto impacto no financiamento do SUS),
e demais classes relevantes. Os dados de aquisição dos medicamentos foram obtidos pelo
Sistema Integrado de Administração de Serviços Gerais (SIASG).
O Projeto TNT (Osorio-de-Castro, 2017) é um desdobramento do Projeto Comgás. Teve
início em 2017, e pesquisa a utilização de medicamentos em doenças transmissíveis (“T”) e
crônicas não transmissíveis (“NT”) no Brasil. Esse projeto é mais direcionado aos
medicamentos mais utilizados em decorrência da carga de doença atual no Brasil. Considerando
a transição demográfica brasileira com aumento do número de idosos (e, consequentemente,
alteração no perfil das DCNT), a mudança do perfil de carga de doença no país, e o grande
impacto dos quadros de depressão para o novo perfil de carga de doença que está se delineando,
entende-se como necessário o estudo dessa classe de medicamentos. EUM como os que são
produzidos pelos projetos Comgás/TNT propõem a compilação e o estudo de dados
quantitativos relacionados a medicamentos, verificando seu comportamento ao longo do tempo.
Essa proposta permite a obtenção de informações precisas de bases de dados extensas e, por
meio de desenho de estudo específico, tornar os dados públicos efetivamente “visíveis” à
comunidade científica, à população e aos gestores, fornecendo, assim, subsídio a decisões
relativas a políticas públicas e observação do que exerce influência sobre esses volumes e
gastos. Adicionalmente, os EUM que se propõem a estudar volumes de compras e gastos
federais possuem um importante papel ao trazer à discussão a sustentabilidade do SUS e a
garantia do acesso aos medicamentos essenciais.

4 SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE PRODUTOS CONTROLADOS


(SNGPC)

A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) é um órgão ligado ao Ministério


da Saúde. O SNGPC (Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados -
SNGPC), mantido pela Anvisa, foi instituído pela Resolução da Diretoria Colegiada nº 27 de
março de 2007. No entanto, esta resolução foi revogada e atualizada pela RDC nº 22, de 29 de
abril de 2014. O SNGPC gerencia os fármacos especificados nas listagens periodicamente
atualizadas da Portaria nº 344 de 1998. Possui como principal objetivo a proteção e promoção
160
da saúde da população por meio do gerenciamento, controle e fiscalização do uso lícito de
substâncias que estão descritas na Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998, ou seja, as
substâncias que estão sujeitas a controle especial. Paralelamente, outro objetivo dessa portaria
é impedir o uso inadequado dessas substâncias (Anvisa, 2018). Até o ano de 2008, o controle
da movimentação dos medicamentos contendo substâncias de controle especial era feito
manualmente em livros de registros. Esses dados permaneciam sob a guarda do
estabelecimento, à disposição do fiscal da Vigilância Sanitária em eventuais fiscalizações. A
partir da implementação do SNGPC, em 2008, tornou-se obrigatória a escrituração
informatizada. Os dados passaram a ser enviados eletronicamente à Anvisa.
Assim, o SNGPC passou a ser um sistema online de alimentação obrigatória por
farmácias e drogarias do âmbito privado no Brasil que comercializam os medicamentos que
contenham as substâncias controladas pela Portaria SVS/MS no. 344, de 12 de maio de 1998.
O sistema faz o monitoramento de todas as movimentações desses medicamentos (compra,
venda, transferências, perdas, dentre outros) (Anvisa, 2018). Esse monitoramento permite a
racionalização dos processos de fiscalização sanitária, melhora o rastreamento dessas
substâncias, permite a geração de relatórios relacionados às mais diversas informações que
podem contribuir com decisões de políticas de saúde, além de coibir a falsificação desses
produtos (Anvisa, 2018).
De acordo com informações da Anvisa há um consenso de que a partir de 2011 fosse
considerado o SNGPC totalmente implementado. Esse estudo contempla os registros de vendas
dos medicamentos de estudo em farmácias e drogarias privadas fornecidos pelo SNGPC a partir
do ano de 2011 até o ano de 2017. De acordo com Vieira (2018) o IPCA - Índice de Preços ao
Consumidor Ampliado é um índice calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). Ele permite a correção de valores absolutos para valores reais, compensando o efeito
de inflação e permitindo que valores sejam comparáveis a despeito do efeito inflacionário
(Garcia et al, 2013). A opção pelo deflacionamento dos gastos verificados utilizando o IPCA
foi tomada de acordo com o que é preconizado na Lei nº. 10.742/2003. Esta lei estabeleceu que
o IPCA deve ser o índice de ajuste dos preços de medicamentos no Brasil.
Conforme a Lei nº 10.742, de 6 de outubro de 2003:

Art. 4: As empresas produtoras de medicamentos deverão observar, para o ajuste e


determinação de seus preços, as regras definidas nessa Lei, a partir de sua publicação,
ficando vedado qualquer ajuste em desacordo com essa Lei.
§ 1º O ajuste de preços de medicamentos será baseado em modelo de teto de preços
calculado com base em um índice, em um fator de produtividade e em um fator de
ajuste de preços relativos intra-setor e entre setores.

161
§ 2º O índice utilizado, para fins do ajuste previsto no § 1º, é o Índice Nacional de
Preços ao Consumidor Amplo - IPCA, calculado pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística - IBGE.”

Elaborado pela American Psychiatric Association, o DSM-5 aborda critérios


diagnósticos e códigos de referência para diversos transtornos de saúde mental, incluindo-se os
transtornos depressivos, atribuindo a eles um CID-10. Em inglês, a sigla é ICD (International
Classification of Diseases/Classificação Internacional de Doenças) e foi estabelecida pela
WHO para padronizar e catalogar as referências às nomenclaturas de doenças e problemas
relacionados à saúde (Ministério da Saúde, 2019). Leite et al (2015) realizaram estudo sobre a
carga de doença no Brasil no ano de 2008, arbitrando os CID-10 F32 (Episódios depressivos)
e F33 (Transtorno depressivo recorrente) como códigos para o diagnóstico do TDM. Da mesma
forma, Figueiredo et al (2014) utilizaram esses mesmos CID-10 para referir-se ao TDM em
estudo que verifica se a seleção de medicamentos essenciais no Brasil segue as recomendações
da OMS e se está condizente com a carga global de doença do Brasil do ano de 2008. Estes
códigos também foram utilizados no presente estudo para orientar a análise dos protocolos e
guidelines que dispunham sobre diagnóstico e tratamento do TDM.
A REBRATS é a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde e possui como
objetivo, mediante atividades participativas com parceiros e colaboradores, a divulgação de
estudos relacionados à Avaliação de Tecnologias em Saúde (ATS). “Inclui-se dentre as ações
a promoção de informação, educação e comunicação em ATS junto a REBRATS nos campos
científico, comunitário e para a tomada de decisão no âmbito do SUS.” (Anvisa, 2018) De
acordo com a OPAS/OMS (2018) as principais atividades dos grupos de trabalho da REBRATS
são: I. Priorização e fomento de estudos no campo de ATS II. Desenvolvimento e avaliação
metodológica em ATS III. Formação Profissional e Educação Continuada IV. Monitoramento
do horizonte tecnológico V. Disseminação e Informação.
A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME) é uma lista, adotada em
nível nacional e amplamente divulgada, de medicamentos selecionados com base em
prioridades nacionais em saúde, eficácia e segurança comprovadas. Pelo fato de os
medicamentos exercerem um grande impacto financeiro no orçamento do SUS e por ser uma
intervenção terapêutica muito utilizada, a incorporação dos medicamentos deve ser realizada
de forma racional, baseando-se em critérios bem definidos. Desta forma, devem ser
disponibilizados para a população medicamentos essenciais que sejam seguros, eficazes e
custo-efetivos ao sistema de saúde. A RENAME constitui-se como um instrumento "técnico-

162
científico que orienta a oferta, a prescrição e a dispensação de medicamentos nos serviços do
SUS" (Portal do Ministério da Saúde, 2018).
Os demais protocolos e guidelines utilizados neste artigo foram a Revisão das diretrizes
da Associação Médica Brasileira para o tratamento da depressão; as recomendações do portal
do Ministério da Saúde (2018), os Cadernos de Atenção Básica em Saúde Mental (Ministério
da Saúde, 2013) que norteiam a AP no manejo da depressão e as recomendações da 20ª e da
21ª edições da Lista de Medicamentos Essenciais da OMS (WHO, 2017; WHO, 2019).

5 CONCLUSÃO

Alguns estudos mostram que a yoga pode ter um efeito antidepressivo e pode ajudar a
diminuir os sintomas da depressão. Isso ocorre porque a yoga é capaz de diminuir os níveis de
cortisol, um hormônio do estresse que influencia os níveis de serotonina, neurotransmissor
frequentemente associado à depressão. Estudos tiveram resultados semelhantes, mostrando uma
associação entre praticar yoga e diminuição dos sintomas de depressão. Com base nesses
resultados, a yoga pode ajudar a combater a depressão, sozinha ou combinada com os métodos
tradicionais de tratamento. Nesse contexto o SUS lançou a Política Nacional de Práticas
Integrativas e Complementares.
A yoga tem um efeito significativo na ansiedade, depressão, dor crônica. Vários estudos
confirmaram os muitos benefícios mentais e físicos da yoga. Incorporar a prática a sua rotina
pode ajudar a melhorar sua saúde, aumentar a força e a flexibilidade e reduzir os sintomas de
estresse, depressão e ansiedade. Encontrar tempo para praticar yoga apenas algumas vezes por
semana pode ser suficiente para uma diferença notável quando se trata da sua saúde – todos
contribuintes comuns para problemas do sono. Um instrutor de Yoga consegue atender por dia
inúmeros discípulos. Veja-se que a economicidade do erários com a utilização da Yoga como
medida complementar de politica pública na prática alternativa para combater a depressão
ocasionaria menos gastos com a compra e licitações em medicamentos, além de possuir efeitos
a longo prazo aos pacientes que se utilizam da técnica.

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167
A HERANÇA DO PATRIARCADO NAS PRISÕES FEMININAS: UMA
ANÁLISE QUANTO ÀS CONDENAÇÕES A PENAS PRIVATIVAS DE
LIBERDADE PELO CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS NO CONTEXTO
RIO-GRANDENSE

Daiane Specht Lemos da Silva1


Marisa Maria Ribeiro de Oliveira2

RESUMO
O presente estudo tem como temática a cultura do patriarcado como sendo reflexo para o
encarceramento do público feminino, delimitando-se em analisar as condenações à pena
privativa de liberdade pelas práticas dos crimes de tráfico de drogas, no contexto dos
estabelecimentos prisionais do Estado do Rio Grande do Sul. Assim, como objetivo geral e
questionamento norteador o seguinte: em que medida a cultura patriarcal pode (ou não)
influenciar para o crescimento do encarceramento feminino pela prática do crime de tráfico de
drogas? Para tanto, o artigo será desenvolvido em dois capítulos, sendo o primeiro uma análise
histórica sobre o patriarcado e sua herança na sociedade contemporânea, e o segundo uma
abordagem quanto às condenações das mulheres pelo crime de tráfico de drogas no Estado e as
possíveis interferências do legado patriarcal no sistema. Por fim, quanto à metodologia
empregou-se o método dedutivo analítico de forma geral, e os modos de abordagem: sócio-
histórico-analítico e sócio-jurídico e analítico.
Palavras-chave: Tráfico de drogas. Encarceramento feminino. Herança patriarcal.
Estabelecimentos prisionais. Rio Grande do Sul.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Muitos são os desafios das mulheres na sociedade, em comparação com o tempo


pretérito, vários direitos foram conquistados, mas o domínio masculino ainda está presente em
situações do cotidiano, fruto da herança patriarcal arraigada e não superada. O preconceito e a
submissão ainda persistem na sociedade, mesmo que o Estado Democrático de Direito mire a
igualdade entre os gêneros. A desigualdade no tratamento entre homens e mulheres é evidente
ao mesmo tempo que censurável, visto tanto na sociedade dos livres, como dentro dos
estabelecimentos prisionais, o tratamento desigual em razão do gênero. Ao tratar da prisão,
normalmente, dá-se maior atenção aos homens presos, tendo em vista que estão em maior

1
Doutoranda e Mestre em Direito pelo PPGD URI Santo Ângelo/RS. Pós-graduada Dir. Penal/Proc. Penal
(FEMA) e Dir. Previdenciário (Legalle). Graduada em Direito, FEMA. Inscrita na OAB/RS 111.882. Endereço
eletrônico: daianespecht@hotmail.com.
2
Graduada em Direito, Faculdades Integradas Machado de Assis (FEMA). Endereço eletrônico
mariribeirooj@gmail.com.
168
número, mas também há mulheres encarceradas, que não podem ser esquecidas no breu das
celas a mercê da própria sorte como vêm ocorrendo.
Assim sendo, a temática do estudo basear-se-á na cultura do patriarcado refletindo nos
encarceramentos femininos, sendo o estudo delimitado em analisar os crimes de tráfico de
drogas no contexto dos estabelecimentos prisionais rio-grandenses. A mulher, não raras as
vezes, é desvalorizada e invisibilizada, situação que intensifica-se quando encarcerada,
colocando-a em situação de abandono pleno. No contexto do encarceramento, pela banalização
da prisão, seletiva e parco, que viola e fere princípios fundamentais, em razão da estrutura cruel
e degradante que possui, percebe-se que não consegue cumprir a função principal, qual seja a
ressocialização. De tal forma, tem-se como pergunta delimitadora e objetivo geral analisar em
que medida a cultura patriarcal pode (ou não) influenciar para o crescimento do encarceramento
feminino pela prática do crime de tráfico de drogas.
A relevância do estudo é demonstrada pelo fato do número de mulheres encarceradas
estar em crescimento vertiginoso, e acabam por enfrentar situação precária e de invisibilidade
no cárcere, podendo o patriarcado ter influência neste categórico abandono. Dividido em dois
segmentos, na tentativa de alcançar uma resposta ao questionamento proposto, o primeiro
capítulo trará uma abordagem quanto ao patriarcado e a herança deixada na sociedade, de
diminuição e inferiorização da mulher que, mesmo não sendo mais aceito, ainda é vivenciado.
Já o segundo capítulo preocupar-se-á em abordar sobre o crime de tráfico de drogas, sendo este
o exponencial para o crescimento dos encarceramentos femininos, buscando-se averiguar se o
patriarcado, ou melhor, a influência do patriarcado sobre as vidas das mulheres pode ser (ou
não) motivo para o crescimento dos encarceramentos, priorizando o cenário rio-grandense.
Em consonância com a temática proposta, temos como metodologia o modo de
raciocínio predominante dedutivo analítico, em razão do mesmo se caracterizar pela lógica de
uma conclusão geral presumidamente verdadeira, a ser deduzida para outras
conclusões/especificidades. O método de abordagem, no primeiro capítulo segue a sócio-
histórica-analítica, enquanto que o segundo capítulo alinha-se à abordagem sócio-jurídica e
analítica, tendo como objetivo findar com possíveis conclusões/respostas ao questionamento
proposto.

169
1 - A HERANÇA DO PATRIARCADO: UMA ANÁLISE QUANTO ÀS PRESAS EM
LIBERDADE E ÀS PRESAS CONDENADAS À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

“A manifestação e institucionalização da dominância masculina sobre as mulheres e


crianças na família é a extensão da dominância masculina sobre as mulheres na sociedade
geral”. (LERNER, 2019).

A sociedade brasileira demonstra ser patriarcal, tendo em vista os inúmeros


comportamentos sociais que refletem na dominação dos corpos das mulheres, na inferiorização
de suas vidas e na ausência de reconhecimento da sua importância. Não raras vezes tais
comportamentos, mesmo que reprováveis e inaceitáveis, são aceitos e transmitidos, em razão
da naturalização dessa cultura patriarcal e machista que prevalece. Irrefletidamente, tem-se
como naturais situações preconceituosas e conservadoras entre os gêneros, pelo pensamento de
hierarquia masculina persistir, apesar do estado democrático de direito repudiar a desigualdade.
Mesmo livres as mulheres estão presas às dominações e imposições sociais, envoltas de
uma violência simbólica que impede o exercício da plena liberdade. Obediência, subordinação
e hierarquia são imperativos presentes na vida contemporânea, sobrevivendo às inúmeras
mudanças sociais. Para a mulher, a ordem soa quase como um instinto de sobrevivência, pois
“desde criança aprende a subverter a ordem, de forma a moldá-la aos ensejos pessoais sem dar
a impressão de rebeldia", desse modo mesmo antes de cometer atos infracionais e serem
submetidas a penas privativas de liberdade, “ainda estariam confinadas ao lar, sem direito a
voto e a ganhar a vida por conta própria”. (VARELA, 2017, p. 13)
Por tais desigualdades, preconceitos e hierarquização persistirem, torna-se mais difícil
superar a exclusão da mulher na sociedade contemporânea, tida como natural e até mesmo
legítima. Inclusive para guerrear suas próprias lutas, os homens fazem a intermediação para as
mulheres, tornando árduo o caminho para aquisição de espaço e voz, o que acaba por refletir
em uma “carência de fontes diretas, ligada a essa mediação perpétua e indiscreta, constitui um
tremendo meio de ocultamento. Mulheres enclausuradas, como chegar até vocês?” (PERRO,
2006, p. 186). Livres ou enclausuradas, o peso de ser mulher continua sendo carregado; quando
condenadas, junto com a sentença penal há a sentença de exclusão, que invisibiliza e abandona
a mulher, em todos os sentidos.
Inegável o fato das muitas lutas e conquistas pelos direitos humanos de forma geral,
buscando-se pela igualdade de gênero, pelo respeito humanizado, pela positivação de normas

170
garantidoras, e prova maior é a nossa constituição que garantiu o direito a igualdade entre
homens e mulheres ao afirmar que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: I – homens
e mulheres são iguais em direitos e obrigações. (BRASIL, 1988).

Mas essa liberdade e igualdade ditada pela constituinte, aparenta estar limitada ao
formalismo, vez que o Estado predominantemente patriarcal ignora muitos dos anseios
femininos. As reivindicações femininas outrora seriam denominadas como histerias e as
interlocutoras condenadas à fogueira, pois as “bruxas” perturbam a ordem. A cultura patriarcal
tida como legítima e transmitida em gerações “cobre o povo como uma carapaça isolante e ao
mesmo tempo protetora. Dissonante em relação ao discurso do progresso, ela é perigosa”.
(PERRO, 2006, p. 208). De fato estão livres, mas ao mesmo tempo estão presas às amarras do
passado, em comportamentos patriarcais que determinam que a mulher deve ser submissa pela
sua fragilidade e deve obediência em razão da sua inferioridade, em comparação com o
masculino.
Enraizadas as barreiras excludentes criadas por grupos que se auto proclamam
superiores, entre eles, há a ideia do rebaixamento social da mulher, da submissão em razão do
gênero, agravado pela obrigação do dever de cuidado da prole

Esta espécie de negação à existência as obriga, muitas vezes, a recorrer, para se impor,
às armas dos fracos, que só reforçam seus estereótipos: o brilho, que acaba sendo visto
como capricho sem justificativa ou exibição imediatamente qualificada de histérica; a
sedução que, na medida em que se baseia em uma forma de reconhecimento da
dominação, vem reforçar a relação estabelecida de dominação simbólica. (BORDIEU,
2002, p. 74)

E esse fato da necessidade de recorrer a estratégias para buscar uma igualdade


minimamente respeitosa, coloca as mulheres em situação de vulnerabilidade em razão do fato
de estarem sempre tendo de provar suas qualificações, tornando-se uma emboscada, pois o fato
da necessidade de provar é por si só um fator de submissão. A mulher precisa, cotidianamente,
provar sua capacidade e exigir respeito, carrega o “drama de quem quer ser reconhecida como
“gente” (SOUZA, 2009, p. 141). Tal ausência de reconhecimento e, também, ausência de
respeito, decorre de
um discurso naturalista, que insiste na existência de duas “espécies” com qualidades
e aptidões particulares. Aos homens, o cérebro (muito mais importante do que o falo),
a inteligência, a razão lúcida, a capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a
sensibilidade. [...] O homem tem sua vida real e substancial no Estado, na ciência ou
em qualquer outra atividade do mesmo tipo. Digamos de modo geral no combate e no
trabalho que o opõem ao mundo exterior e a si mesmo. A mulher pelo contrário, é
feita para a piedade e para o interior. (PERRO, 2006, p. 177 - 178).
171
A hierarquização entre homens e mulheres naturalizou-se, os melhores cargos, os
melhores salários, o maior reconhecimento pertence ao homem. Para as mulheres acaba por
sobrar a culpa e a ânsia em mudar o cenário. Inclusive quando analisado famílias consideradas
pobres, na legítima acepção do termo, os homens que acabam por ganhar maior reconhecimento
e prestígio. Aquelas desprovidas de valores econômicos, mães-solos, que vivem em periferias
urbanas, com baixo grau de escolaridade, negras, sem instrução profissional e que, na maioria
das vezes, provém de famílias desestruturadas, repetindo o ciclo de miséria e precariedade,
possuem maior dificuldade no reconhecimento social. Para as mulheres, neste contexto de
dificuldades e pobreza, serem reconhecidas como “gente”, senão tiverem uma figura masculina
para se ampararem, vão adquirir somente com o trabalho duro “ou então com a tentativa de
consumir os bens, os instrumentos mágicos com os quais as classes médias produzem
eficazmente efeitos de prestígio para si". (SOUZA, 2009, p. 142).
A ideia de submissão da mulher ainda é latente. O sentimento de posse, de coisificar a
mulher, traz ao homem uma falsa ilusão de descarte, e esse descarte é exercido deliberadamente
pelo pai, pelo irmão, pelo companheiro, dando início ao estado de solidão e vulnerabilidade.
Quando não tem mais utilidade, a mulher é facilmente substituída. Uma mulher sozinha, na
sociedade opressora e preconceituosa como exposta, é identificada, pela linguagem popular,
“toco de cachorro mijar”, demonstrando ser figura de extrema vulnerabilidade, tanto pelo abuso
sexual como físico, sendo vista como “um toco, impotente, à mercê de qualquer cachorro”.
(SOUZA, 2009, p. 129). A mulher desprovida de capitais econômicos, neste contexto de
miserabilidade, se submete às vontades do homem, aceitando a submissão em troca de
“proteção”.
Para se sentirem seguras, por obediência às figuras masculinas, por ser a única
alternativa para sustentar os seus filhos ou por ser um caminho mais fácil de conseguir dinheiro,
independente das justificativas, o tráfico de drogas é a razão para o crescente aumento das
prisões de mulheres. Ao analisar os dados referente ao número de encarceramentos femininos,
nota certa relação entre o aumento dos delitos relacionados às drogas com a herança patriarcal
sustentada. Segundo estatísticas de números coletados no ano de 2016, entre as condenações a
penas privativas de liberdade para mulheres, os crimes relacionados aos entorpecentes ilícitos,
corresponde a 62% (sessenta e dois por cento) das incidências penais, o que equivale dizer que
de cada 5 (cinco) mulheres encarceradas, 3 (três) deriva de crime ligado ao tráfico (INFOPEN,
2018). Como se não bastasse a condenação e cumprimento da sentença nas celas gélidas dos

172
estabelecimentos prisionais, em condições precárias e desumanas, as mulheres ainda precisam
conviver com o rompimento dos laços familiares.
O abandono da mulher intensificado com o aprisionamento reproduz um martírio à
parte, pois o homem nesta mesma situação não é obrigado a cumprir a pena da solidão e contará
com a visita da família, da mãe, esposa, namorada; já a mulher é esquecida. Independente do
motivo da pena, “a sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um
parente homem, mas a mulher envergonha a família inteira.” (VARELA, 2017, p. 27). Legado
do patriarcado que insiste nessa visão dicotômica do masculino e feminino, descrevendo o
“homem criador/a mulher conservadora, o homem revoltado/a mulher submissa”. (PERRO, p.
188).
Os homens “não hesitam em abandonar mesmo aquelas que foram presas por ajudá-los,
como no caso das que são flagradas com droga na portaria dos presídios masculinos em dia de
visita.” (VARELLA, 2017, p. 29). Repete-se o ciclo de violência pelo fato de ser mulher.
Quando a mulher é encarcerada, não é aceitável sua entrega ao mundo do crime, não poderia
ser o seu “instinto” e por não terem sido fortes o suficiente, merecem o abandono,
diferentemente do que acontece com os homens, onde o cometimento de crimes, o desrespeito
às regras e, consequentemente, a prisão sempre se justifica.
O abandono reflete ser resquícios da sociedade patriarcal naturalizada. A mulher mesmo
sem qualquer condenação continua presa às imposições sociais que o patriarcado impôs. Dessa
forma, revela ser no encarceramento feminino escancarado a grande diferença entre homens e
mulheres, pois os primeiros não rompem seus laços de afeto enquanto que o segundo é
condenado duplamente: a cumprir a pena e ao abandono. A mulher encarcerada é esquecida
pelo Estado, família e sociedade, pois não cumpriu o seu “papel” feminino, de ser alguém frágil
e impotente além de insubordinada.

2 - MULHERES E O TRÁFICO DE DROGAS: PERQUIRIÇÃO DAS CONDENAÇÕES


À PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE

A maior parte das que aderem à criminalidade o faz pelo caminho do uso de drogas
ilícitas, por relacionamento afetivos com usuários, ladrões e traficantes ou como
parte da estratégia para manter a família ou para fugir da violência doméstica.

(VARELA, 2017)

Considerando a problemática carcerária como um todo, dignificando e priorizando suas


inúmeras dificuldades sociais, financeiras e paradoxais, dá-se ao presente trabalho um olhar

173
especial àquelas que dentro do grande sistema penitenciário são a minoria, enquanto que
analisando-as como tema principal, constata-se o enorme esquecimento de uma grande
população carcerária oprimida e em constante crescimento, a mulher. Enquanto no Brasil são
cerca de 689.036 (seiscentos e oitenta e nove mil e trinta e seis) presos, aproximadamente
42.000 (quarenta e duas mil) são mulheres, e destas, segundo informações da Superintendência
Penitenciária, há atualmente 2.503 (dois mil, quinhentos e três) presas estão lotadas no Estado
do Rio Grande do Sul (SUSEPE, 2023).
No Estado rio-grandense o encarceramento feminino cresce mais da metade comparado
ao masculino. O presidente do Fórum Interinstitucional Carcerário, Desembargador Sérgio
Miguel Achutti Blattes, indagou, no encontro de 2022, esse aumento: “é preciso dar visibilidade
à questão, pois o número de mulheres presas tem aumentado muito”. (OLHA PRA ELAS,
2023). Aliado à preocupação com o número de encarceramentos, está a situação dos
estabelecimentos prisionais, que demonstram-se seletivos e dispostos a concretizar a
vulnerabilidade social dos que o compõem.
Esse aumento vertiginoso não é exclusivo do Estado do Rio Grande do Sul, há no Brasil
uma curva ascendente cuja velocidade aumenta a cada dia (INFOPEN, 2018). O aumento das
condenações a penas privativas de liberdade e consequentemente a população carcerária, se
origina do caráter punitivista Estatal. A prisão deixou de ser a ultima ratio, passou a ser a
primeira alternativa por ser um meio célere de pacificar o clamor social, mesmo que seu ápice
e apogeu ocorreram no mesmo ano de criação, demonstrando-se falha e seletiva, ao abrigar
aqueles que a sociedade quer esquecer (FOUCAULT, 1999).
Não sendo o suficiente a análise dos números dos encarceramentos, mas sim as suas
causas, pelos tipos penais das condenações pode ser detectada a seletividade do sistema
punitivo, principalmente em relação ao público feminino. Dentre as tipificações legais, os
crimes patrimoniais e os crimes relacionados ao tráfico de drogas são os que mais encarceram,
o que prova a seletividade do público a ser encarcerado, pela baixa participação de outros tipos
penais. Como já exposto no primeiro capítulo, mais da metade da população carcerária
feminina, no âmbito nacional, está cumprindo pena privativa de liberdade em razão do
envolvimento com drogas. (INFOPEN, 2018).
Nos presídios do Rio Grande do Sul, a realidade não destoa do contexto nacional,
mesmo inexistindo estatísticas oficiais que especifiquem o tipo penal das condenações, tende a
ser o tráfico de drogas o principal motivo para o aumento desenfreado (INFOPEN, 2018). Por
ser um grupo abandonado quando em situação de cárcere, a situação das mulheres necessita de

174
maior cuidado, pois além do legado de submissão e opressão em decorrência do patriarcado
impregnado no seio social quando em liberdade, muitas vezes entregam seus corpos à
criminalidade em razão desse próprio legado.
Lançado neste ano de 2023, o documentário “OLHA PRA ELAS”, produzido por
Tatiana Sager e Renato Dornelles, traz histórias de mulheres encarceradas no Rio Grande do
Sul e a lamentável reprodução de desestabilidade e falta de estrutura familiar que é latente na
vida de todas elas. São mães, filhas, esposas, companheiras, todas abandonadas e subjugadas
primeiro pelas famílias, depois pelo Estado. São diferentes os motivos que as levam para esse
caminho da criminalidade, mas o crime é predominantemente o mesmo, conforme o
documentário, confirmando os dados governamentais, são mais de 60% (sessenta por cento)
das apenadas no estado encarceradas por envolvimento com o tráfico (OLHA PRA ELAS,
2023).
Grande parte das mulheres não estão privadas de liberdade em razão de crimes violentos,
mas por tráfico de drogas em razão de aliciamento masculino e/ou obrigação do sustento dos
filhos, vez que recai sobre elas tal obrigação, fazendo-se agravar pela vulnerabilidade e falta de
estrutura familiar (ORGANIZAÇÃO MULHERES EM PRISÃO, 2022). O elevado número de
presas em razão dos entorpecentes reflete no abandono, enquanto livres, da inferioridade, da
desvalorização dos corpos femininos. “Enquanto vigorarem as leis atuais de combate às drogas
ilícitas e insistirmos em manter no regime fechado pequenos contraventores que não praticaram
atos violentos [...] transformam nossas cadeias em escolas do crime”. (VARELA, 2017, p. 94).
Quando encarceradas, as mulheres são duplamente punidas, primeiro há a punição do
abandono familiar, da separação da prole, “Pesquisadores estimam que por volta de 85%
(oitenta e cinco por cento) das mulheres encarceradas sejam mães” (QUEIROZ, 2015, p 54),
seguido da punição estatal. E não há como dizer qual as faz sofrer mais. O abandono da mulher
que foi presa é inevitável, pois envergonha toda a família, diferente do que ocorre com o
homem. A mulher que ameaça “largar” do companheiro/cônjuge em situação de cárcere torna-
se alvo de um dos crimes mais odiosos e discricionário: a ameaça de morte (VARELA, 2017).
Tal situação demonstra o quão presente o patriarcado está na sociedade, a mulher sequer tem o
direito de escolha.
Tais dados acerca da prole se fazem fundamentais ao estudo tendo em vista que esse
esquecimento precoce e o fato de recair sobre elas, mães, a obrigação de cuidado e subsistência
dos filhos, são predominantemente os motivos para o envolvimento com o tráfico. A exemplo
disso: a apenada Adelaide, presa no Madre Pelletier, em Porto Alegre, é mãe ‘solo’ de 6 (seis)

175
crianças, sendo que 1 (um) tem síndrome de dawn. (OLHA PRA ELAS, 2023). Sem poder
trabalhar em razão dos cuidados que as crianças careciam, não viu outra saída a não ser entregar-
se ao tráfico.
Quanto ao número de filhos ou do número de companheiros que são pais desses filhos,
enfatiza a Exma. Dra. Patrícia Fraga Martins, Juíza da Vara de Execuções Criminais, a
dificuldade na acomodação das crianças, mas também ressalta que tal situação não é algo que
possamos julgar moralmente, esse julgamento não nos cabe. (OLHA PRA ELAS, 2023). Não
nos cabe o julgamento, contudo nos cabe a análise da herança patriarcal nesta situação, ou seja,
a necessidade ou imposição da prole, a maternidade. Em que pese não seja esta a temática do
estudo, importante dizer que muitos destes filhos não foram planejados, pois não raras as
narrativas da
menina que engravida com quinze anos e abandona a escola para cuidar do bebê
compromete seu futuro, o do filho, e empobrece os pais, obrigados a sustentar mais
uma criança, já que a responsabilidade dos homens com a paternidade indesejada é
próxima de zero [...] outras gestações precoces acontecerão em condições
semelhantes: pobreza, ignorância, habitações precárias e superpovoadas, alcoolismo,
crack, violência doméstica e convívio com marginais da vizinhança (VARELA, 2017,
p. 35).

As histórias acerca da mulher, pobre, vulnerável, mãe, não são inusitadas, não são raras,
não são planejadas, e sim são histórias que se repetem, que vêm de um círculo vicioso, que já
se passaram com suas mães, agora com elas, e suas filhas também estão no meio, vivenciando
o mundo insalubre nas visitas na prisão como algo normal do cotidiano, como cenário diário,
que já não lhes espanta. (OLHA PRA ELAS, 2023). Torna-se situação legítima, tal como
ocorre com os legados patriarcais que colocam a mulher em situação desigual em relação ao
homem.
Neste ponto, merece esclarecer que não se tem aqui a intenção de descriminalizar
o tráfico, ou de reduzir sua contribuição para outros crimes, ou resumi-lo à insignificância, mas
de diagnosticar o motivo de tantas mulheres serem encarceradas pelo mesmo crime, que,
consequentemente, acabam sendo punidas e repetindo ciclos irrefletidamente. As mulheres são
esquecidas pela sociedade, pela família, pelo Estado muito antes do encarceramento. São seres
sem identidade, e essa IDENTIDADE é nosso DNA, é algo que nos representa, que nos
dignifica como seres humanos.
Se você foi destinado à subclasse (porque abandonou a escola, é mãe solteira vivendo
da previdência social, viciado ou ex-viciado em drogas, sem-teto, mendigo ou
membro de outras categorias arbitrariamente excluídas da lista oficial dos que são
considerados adequados e admissíveis), qualquer outra identidade que você possa
ambicionar ou lutar para obter lhe é negada a priori. O significado de “identidade da
subclasse” é a ausência da identidade, a abolição ou negação da individualidade, do
“rosto” [...] (BAUMAN, 2005, p. 45).

176
O caminho das drogas e a ausência de identidade levam as mulheres ao estado de
reificação, e o caminho para a prostituição é o mais obvio, seja pelo domínio masculino, seja
como ferramenta para prover a prole, independente do motivo, é aqui que elas se tornam
objetos. "Não há nada que prejudique tanto as almas como a venda forçada e a compra de
carícias de um ser por outro com que não tem nada em comum.” (KOLONIA, 2011, p. 31). A
objetificação dos corpos das mulheres pela venda, tende a ser mais repugnante e inaceitável do
que o envolvimento com o tráfico de drogas, pois “ser pobre e prostituta, vender o corpo por
dinheiro, como se faz com qualquer mercadoria, repugna a “boa sociedade” por evidenciar a
fragilidade de seus valores mais nobres” (SOUZA, 2009, p. 173).
O Conselho Nacional de Justiça - CNJ, em debate acerca da matéria no II Encontro
Nacional do Encarceramento Feminino, em 2013, manifestou-se:

favoravelmente à aplicação de penas alternativas à prisão em regime fechado para


mulheres presas por tráfico de drogas. Os participantes do encontro promovido [...]
endossaram as conclusões do Grupo de Trabalho Tráfico de Entorpecentes e Penas
Restritivas de Direitos e apoiaram a adoção de penas alternativas para as mulheres
usadas como “mulas” pelo narcotráfico ou vítimas da “coação moral irresistível” de
maridos e familiares encarcerados para entrar com entorpecentes em unidades
prisionais. (BRASIL, 2013).

O que se observa é a preocupação com mulheres que não buscam a criminalidade como
opção de vida, mas que é a única opção que lhes resta. E o mais emblemático é que após serem
pegas, aqueles culpados pelo seu encarceramento, abandonam-as por completo. “De todos os
tormentos do cárcere, o abandono é o que mais aflige as detentas. Cumprem suas penas
esquecidas pelos familiares, amigos, maridos, namorados e até pelos filhos.” (VARELLA,
2017, p. 27).

Nas prisões os homens cumprem as penas e ao serem postos em liberdade, retomam


suas vidas, seja na criminalidade, seja no trabalho honesto; todavia, as mulheres cumprem suas
penas e suas vidas não serão as mesmas. Em debate no Fórum Interinstitucional Carcerário, em
2022, a Diretora da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, Isadora Carlotto Minozzo,
enfatizou que “Hoje não temos um sistema que pensa o encarceramento feminino de forma
específica. As prisões são feitas para homens”. (CAVALHEIRO, 2022). Após a estadia das
mulheres na prisão, jamais terão como esquecer ou superar toda dor e sofrimento vivenciada.
O número de mulheres encarceradas está em ascensão tanto no contexto brasileiro, como
no Rio Grande do Sul e o principal motivo é a prática dos crimes de tráfico de drogas. De
maneira alguma, neste estudo, tende-se a descriminar o tipo penal ou justificar a prática dos

177
delitos, mas sim averiguar a relação existente com a cultura patriarcal impregnada na sociedade.
A maioria das mulheres presas por drogas está em situação de vulnerabilidade latente, tendo
poucas alternativas de sobrevivência. Ocorre que, quando encarceradas recebem junto com a
sentença, a condenação ao abandono, a seguir a vida precária e imoral sozinhas, pois a prisão
envergonha toda a família, o que não é recíproco quando o encarcerado é o homem, que
continua tendo toda uma rede de apoio afetivo/familiar, situação que demonstra um legado
patriarcal de apoiar e majorar a figura masculina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática carcerária é um paradoxo mundial. Pode-se encontrar em cada canto do


mundo uma ideia diferente, algo revolucionário, uma tentativa (frustrada ou não) de amenizar
o encarceramento em massa ou de diminuir a reincidência. O sistema prisional está em colapso
no Brasil, e o Estado do Rio Grande do Sul não se excede dos demais, está em decadência. As
condições das prisões, sejam masculinas, sejam femininas, são deploráveis, inclusive sendo
considerada estado de coisa inconstitucional. Isso, contudo, não traz novidade ao trabalho, o
que acende a luz de alerta é a diferença e a discriminação em razão da mulher, pelo gênero, pela
falta de preparo e preocupação do Estado para as necessidades básicas destas que são, em sua
maioria, encarceradas por crimes que, em que pese sua culpabilidade, só cometeram por questão
de sobrevivência.
Inegável a preocupação do Estado com a superlotação, a reincidência, o respeito com os
direitos humanos em um ambiente subumano; porém, essas preocupações e discussões são
pensadas com foco no encarceramento masculino. Mesmo que o número de homens seja maior
que o de mulheres, inegável o crescente número no cárcere feminino. Assim, é urgente e
pulsante a necessidade desse olhar para essas mulheres. Mulheres abandonadas pela sociedade
e pelo Estado enquanto em liberdade, e quando presas, são massacradas por aqueles, resumidas
ao lixo, como pessoas sem identidades, apenas números.
A partir disso buscou-se analisar até que ponto a herança do patriarcado influencia
diretamente na vida dessas mulheres, mães, pobres, sozinhas e consequentemente vulneráveis.
Essa influência se dá tanto na vida em liberdade, quanto na vida encarcerada. A violação aos
direitos humanos e a submissão da mulher a leva ao desprezo por ela mesma, e à crença de que
sua necessidade pela proteção masculina é inevitável e fundamental em sua vida, não dando
conta sozinha de si mesma e de sua prole. Prole essa que a sociedade a condenou aos cuidados

178
sob qualquer circunstância. Intensifica assim, os comportamentos preconceituosos e desiguais
de uma sociedade inegavelmente patriarcal.
Para tanto, foi feita uma abordagem acerca do patriarcado, da ausência de uma sociedade
consciente e evoluída ao ponto de pensar os problemas com humanização e não com exclusão
social, e como consequência chegou-se ao paradigma submissão feminina. Apesar da
positivação de direitos voltados ao tema, a herança entranhada em cada indivíduo é inerente à
sua personalidade e à sua identidade. Por vezes, nem se quer pensamos, apenas agimos. E esse
agir leva a consequências de abandono, de exclusão, de falta de empatia, que resultarão na
ausência de recursos mínimos para (sobre)viver, repercutindo tais condições de abandono nas
ruas, com a criminalidade e o consequente encarceramento. E começa tudo novamente, como
um círculo viciante.
Em seguida, apresenta-se uma abordagem sobre o encarceramento da mulher em razão
do tráfico de drogas, como forma de subsistência, seja dela, seja dos filhos, ou seja em razão
do aliciamento masculino, voltando aqui à reificação da mulher como meio para chegar a um
fim. Os motivos que levam as mulheres às prisões são prioritariamente o tráfico de drogas. O
primeiro motivo pelo qual elas traficaram circula em torno da subsistência sua e de sua família,
e aqui volta-se à questão do abandono, da necessidade, da submissão ao estado de inferioridade
e dependência. Sem qualquer pretexto de descriminalizar suas condutas, apenas diagnosticando
os fatores para tais consequências. O segundo motivo é o aliciamento masculino, seja pai, filho,
companheiro, marido, amigo, são pessoas que precisaram de sua ajuda, e não foram deixadas
“na mão” por elas, a obediência, ensinada e transmitida pode levar até mesmo ao cárcere, mas
é seguida.
Assim sendo, infere-se do presente trabalho o extremo abandono da mulher. Abandono
esse que chega às suas vidas muito antes do encarceramento, sendo que este faz agravar ainda
mais sua submissão a um sistema precário e pensado por homens para homens. As mulheres
trazem consigo um estigma de abandono desde sempre, e cada uma terá que buscar seu lugar
nessa sociedade preconceituosa, machista e predominantemente patriarcal. Todo esse estigma
as leva para as ruas, para a criminalidade, não restando outra opção a não ser o tráfico de drogas,
eis que, muitas vezes, é considerado um caminho mais valoroso, em comparação a prostituição,
por exemplo. Em sua maioria, não são condenadas por crimes cruéis ou desumanos, são mães,
filhas, esposas dedicadas, que não escolheram, mas que foram escolhidas para uma vida de
miséria e abdicação, (re)vivendo toda a pressão do patriarcado.

179
REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

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Janeiro: BestBoslso, 2002.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em
17 abr. 2023.

_______. Conselho Nacional de Justiça. Encontro apoia penas alternativas à prisão de


mulheres por tráfico de drogas. 23 de agosto de 2013. Disponível em:
<https://www.cnj.jus.br/encontro-apoia-penas-alternativas-a-prisao-de-mulheres-por-trafico-
de-drogas/>. Acesso em: 15 de abr. 2023.

CAVALHEIRO, Patrícia. Situação dos presídios femininos esteve em debate no Fórum


Interinstitucional Carcerário, 09 de nov 2022. Disponível em:
<https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/situacao-dos-presidios-femininos-esteve-em-debate-no-
forum-interinstitucional-carcerario/>. Acesso em: 17 de abr. 2023.

_______, Patrícia. Fórum Interinstitucional carcerário debate APAC e presídios femininos. 24


de agosto de 2022. Disponível em: <https://www.tjrs.jus.br/novo/noticia/forum-
interinstitucional-carcerario-debate-apac-e-presidios-femininos>. Acesso em: 17 de abr. 2023.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete.


Petrópolis, Vozes, 1999.

INFOPEN, 2018. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres.


2ª edição. Brasília, Ministério da Justiça e Segurança Pública, Departamento Penitenciário
Nacional, 2017, 79p. il.color. Disponível em: <https://conectas.org/wp-
content/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf>.

KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular,
2011.

ORGANIZAÇÃO MULHERES EM PRISÃO. Mulheres em prisão. Disponível em:


<http://mulheresemprisao.org.br/>. Acesso em: 14 de abr. 2023.

QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam: a brutal vida das mulheres - tratadas como homens -
nas prisões brasileiras. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

SOUZA, Jessé. Ralé Brasileira: quem é e como vive. Colaboradores: AndreGrillo ... [et. al]
Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009.

SUSEPE. Dados Estatísticos. Disponível em:


<http://www.susepe.rs.gov.br/lista.php?idarea=2>. Acesso em: 14 de abr. 2023.

VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

180
BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA PARA IMIGRANTES E
REFUGIADOS: INVISIBILIDADE E LUTA PELA ASSISTÊNCIA SOCIAL

Dandara Trentin Demiranda1


Nathielen Isquierdo Monteiro2
Vanessa Aguiar Figueiredo3

RESUMO
Em sociedades com grandes desigualdades sociais e econômicas, a Assistência Social figura
como um direito essencial visando garantir o acesso ao mínimo existencial para indivíduos em
situação de vulnerabilidade. No Brasil, a lei n° 8.742/1993 dispõe sobre a organização da
Assistência Social e estabelece critérios para a concessão do Benefício de Prestação
Continuada. A matéria também é regulamentada pelo Decreto n° 6.214/2007, que prevê que o
benefício será devido ao brasileiro, nato ou naturalizado, e às pessoas de nacionalidade
portuguesa. Diante da restrição prevista na legislação, questiona-se acerca da possibilidade da
concessão para imigrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade social e econômica, a
partir de uma abordagem sob a luz do princípio da dignidade humana. O artigo é dividido em
três partes, em que i) será realizado um breve resgate histórico acerca da assistência social no
país, ii) serão feitas considerações acerca do acolhimento de imigrantes e refugiados, e iii) será
realizada análise da legislação e das disposições constitucionais, a fim de verificar a
possibilidade de concessão de benefício assistencial para imigrantes e refugiados. Trata-se de
pesquisa teórica, em que foram empregadas técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.
Quanto aos principais resultados, constatou-se a necessidade e importância de se estender o
BPC para imigrantes e refugiados.

Palavras-chave: Benefício de prestação continuada. Imigrantes. Refugiados. Justiça Social.


Assistência Social.

1 INTRODUÇÃO
A Assistência Social é de extrema importância para garantir o bem-estar social e o
acesso aos direitos dos cidadãos. Prevista na Constituição Federal de 1988 (CF/88) como um
direito social, visa promover a inclusão social, a redução das desigualdades e a proteção social
dos indivíduos e famílias em situação de vulnerabilidade (BAZZA, DE CARVALHO, 2013).

1
Mestranda em Direito e Justiça Social (FURG). Bacharel em Direito (FURG). Pesquisadora do grupo de pesquisa
Cidadania, Direitos e Justiça (CIDIJUS). Bolsista CAPES. Advogada inscrita na OAB/RS sob o número 111.589.
E-mail: dandaratrentin@hotmail.com.
2
Mestra em Direito e Justiça Social (FURG). Bacharel em Direito (FURG). Pesquisadora do grupo de pesquisa
Cidadania, Direitos e Justiça (CIDIJUS). Advogada inscrita na OAB/RS sob o número 115.225. E-mail:
nisquierdo@hotmail.com.
3
Doutoranda em Educação Ambiental (FURG). Mestra em Direito (UFPEL). Bacharel em Direito (FURG).
Pesquisadora do grupo de pesquisa Direito e Educação Ambiental (GPDEA). Bolsista CAPES. Advogada inscrita
na OAB/RS sob o número 112.288. E-mail: vanessafigueiredo2009@hotmail.com.
181
Trata-se, portanto, de um elemento essencial para a garantia dos direitos e da cidadania,
promovendo justiça social e inclusão social dos mais vulneráveis.
Dentre as diversas estratégias previstas e implementadas pela Assistência Social visando
mitigar as desigualdades no Brasil, destacamos o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Trata-se de um benefício previsto na CF/88, de caráter assistencial, ou seja, não exige
contribuição previdenciária por parte do beneficiário para ter direito ao benefício. O benefício
é pago pelo Governo Federal e objetiva garantir a subsistência e a inclusão social de indivíduos
vulneráveis.
De acordo com pesquisa realizada por Neri (2022), no ano de 2021, 29,6% da população
brasileira teve renda domiciliar per capita de até R$ 497,00, e segundo a Rede Brasileira de
Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN, 2022), mais da
metade da população brasileira (125,2 milhões de pessoas) enfrenta algum grau de insegurança
alimentar, e 15,5% dos brasileiros passam fome. Diante de tais dados, a importância da
Assistência Social resta demonstrada, haja vista que parcela significativa da população ficaria
desassistida em caso de ausência de políticas públicas voltadas para os indivíduos em situação
de vulnerabilidade.
Imigrantes4 e refugiados são comumente vistos com desconfiança pela população local
que, baseados muitas vezes em discursos nacionalistas e estereótipos, temem a concorrência
econômica. Trata-se de uma visão pré-concebida, que acaba por gerar a segregação e a
invisibilidade desses indivíduos, que muitas vezes já enfrentam a barreira do idioma, do
desemprego e da ausência de moradia.
O presente trabalho visa discutir a possibilidade de concessão de benefícios
assistenciais, notadamente o BPC, para imigrantes e refugiados residentes no Brasil. Para tanto,
na primeira parte será realizado um breve resgate histórico acerca da Assistência Social no país,
abordando a lei n° 8.742/1993 e os requisitos para a concessão do BPC. Na segunda seção, será
abordada a questão do acolhimento de imigrantes e refugiados, em especial as dificuldades
enfrentadas por tais indivíduos. Ao final, na terceira seção, será feita uma análise acerca da
possibilidade de concessão de BPC para imigrantes e refugiados, a partir das disposições
presentes na legislação e na CF/88. Como metodologia, destacamos que se trata de pesquisa
teórica, em que foram empregadas técnicas de pesquisa bibliográfica e documental.

4
Em razão das alterações promovidas pela lei n° 13.445/2017, utilizaremos o termo “imigrante”, em substituição
ao termo “estrangeiro”, presente no Estatuto do Estrangeiro, já revogado.
182
2 A ASSISTÊNCIA SOCIAL E O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA

As práticas de Assistência Social sempre estiveram presentes na sociedade, todavia tais


atividades costumavam estar ligadas a atividades de caridade, desenvolvidas por instituições
religiosas. Quando a atividade passou a ser exercida pelo Estado, foi regulamentada e passou a
atender um número cada vez maior de indivíduos.
A Poor Law (Inglaterra, 1601) definiu um marco no que hoje entendemos como direitos
assistenciais, ao instituir a arrecadação de impostos e taxas em paróquias para subsidiar os
pobres e necessitados. Em 1834, a Poor Law Reform alterou o sistema anterior, que passou de
uma administração local paroquial para um sistema altamente centralizado (COSTA, 2012;
SCHONS, 2015). Acerca de tais marcos históricos, é interessante apontar que

(...) a lei da Assistência aos pobres de 1601 – basicamente uma Assistência de vizinhos
e “paroquial”, quando o atendimento ao pobre fica sujeito às Casas de Trabalho (Work
houses) e a mendicância é passível de punição – é retomada na Nova Lei dos Pobres
de 1834, embora já sob o prisma de uma Assistência Pública, limitando-se aos que
abdicaram de quaisquer outros direitos. A Assistência desse período tem o estigma de
ser para aqueles que desistiram de lutar, ou seja, é uma Assistência para doentes,
velhos e/ou para preguiçosos (SCHONS, 2015, p. 83-84).

A Assistência Social ganha maior relevância no cenário internacional a partir da década


de 1920, após a Primeira Guerra Mundial, quando a questão social passou a ficar em evidência.
No Brasil, no ano de 1932 foi fundado o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), voltado para
a formação técnica especializada, e nos anos seguintes surgiram as Escolas de Serviço Social –
a primeira em São Paulo, em 1936; a segunda em 1937, na PUC do Rio de Janeiro; e a terceira
em 1940, no Recife (OLIVEIRA; CHAVES, 2017).
Em 1942, no governo Getúlio Vargas, surgiu a primeira instituição federal de
Assistência Social brasileira, a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Tal instituição visava
prestar auxílio às famílias dos pracinhas brasileiros, e posteriormente voltou-se à assistência, à
maternidade e à infância, realizando ações paternalistas e de prestação de auxílios emergenciais
e paliativos à miséria (BOSCARI; SILVA, 2015).
Nos primeiros anos, o assistencialismo realizava-se por meio de ações pontuais, que
acabam por reafirmar a exclusão social do indivíduo. Isso porque,

Na lógica capitalista de acumulação de capital, a ideologia dominante é a prevalência


do trabalho como critério de vida normal e como meio de mobilidade social, fazendo
com que se estigmatizem os “sem trabalho”, estabelecendo diferenças entre os aptos
e os inaptos, os capazes e os incapazes (...). A pobreza é vista como sina e
incapacidade pessoal e como tal deve ser alvo de filantropia e benemerência
(MESTRINER, 2001, p. 50).

183
Em 1969, através do Decreto-Lei n° 593, a LBA foi transformada em fundação e passou
a ser vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência Social. A Assistência Social somente
adquiriu relevância e status de política social com a CF/88, quando passou a compor o sistema
de Seguridade Social.
A Seguridade Social possui capítulo próprio no texto constitucional, e abarca ações
destinadas a assegurar aos cidadãos direitos relativos à Saúde, Previdência e Assistência Social.
A Assistência, conforme tratada na CF/88, deixa de tratar os beneficiários como marginais, e
passa a buscar prestar auxílio para a população em situação de risco e vulnerabilidade social,
não sendo destinada somente a população pobre, buscando proteger a dignidade, a autonomia
e a liberdade de indivíduos vulneráveis (BOSCARI; SILVA, 2015). Ao passar a abranger
também aqueles que não possam prover seu próprio sustento ou condições mínimas de
desenvolvimento pessoal através do mercado de trabalho, a busca pela justiça social, que antes
possuía caráter meramente abstrato, tornou-se efetiva, ganhando viés de política pública
(CHAVES, 2013).
Após muitos debates e negociações entre a sociedade civil, parlamentares e profissionais
da área do serviço social, a Assistência Social foi regulamentada no ano de 1993, através da lei
n° 8.742 – Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Ao tratar a Assistência como um direito
do cidadão e dever do Estado, mediante realização de ações de iniciativa pública e da sociedade,
de forma não contributiva, parcela significativa da população que se encontrava à margem da
sociedade pôde ter acesso a auxílio governamental.
Entre as diversas disposições previstas na LOAS, encontra-se a regulamentação de
benefícios como o BPC e os benefícios eventuais. Conforme dispõe a CF/88, um dos objetivos
da Assistência Social é a garantia de um salário mínimo mensal para pessoas com deficiência e
ao idoso em situação de vulnerabilidade.
Tem direito ao BPC os idosos, a partir dos 65 anos de idade, e pessoas com deficiência,
com impedimento de longo prazo, que não possuam condições de garantir o próprio sustento e
possuam renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo. A mencionada lei também
indica quais indivíduos compõem o grupo familiar para fins de aferição da renda e veda a
acumulação de benefícios pelo mesmo cidadão.
O BPC somente foi implementado a partir de 1° de janeiro de 1996 (BARBOSA;
SILVA, 2009). No entanto, o estrito critério de renda sempre foi muito criticado, pois restringe
em demasia os indivíduos que poderiam ser atendidos, limitando o público-alvo a pessoas em
situação de pobreza quase absoluta (CHAVES, 2013). Conforme mencionam Costa e Costa

184
(2022, p. 51), essa limitação “(...) reforça uma ideia histórica de que a assistência social se
presta somente como auxílio aos miseráveis”.
Inobstante as críticas que possam ser feitas aos critérios de concessão, resta necessário
pontuar que se trata de um benefício de extrema importância para parcela significativa da
população brasileira. Conforme apontam Barbosa e Silva (2009), os beneficiários geralmente
são indivíduos de baixa escolaridade, muitas vezes analfabetos, e com extrema dificuldade de
inserção no mercado de trabalho formal. Tratam-se de indivíduos que, com frequência, ficavam
à margem de direitos considerados básicos, e o benefício, mesmo com valor singelo, consegue
oferecer um pequeno alívio das dificuldades cotidianas. No entanto, é necessário destacar que
os benefícios assistenciais não contributivos, por si só, não resolvem o problema da
vulnerabilidade social, sendo necessário que sejam associados a políticas públicas de inclusão
social.

3 OS DESAFIOS NO ACOLHIMENTO DE IMIGRANTES E REFUGIADOS NO


BRASIL: UM PANORAMA SOCIAL E JURÍDICO

Os deslocamentos humanos são algo comum na História, que abarcam distintas


condições históricas, como questões econômicas ou políticas. Contudo, é na perspectiva do
sujeito imigrante ou refugiado, principalmente nesta mudança de local, que é imprescindível se
atentar, principalmente porque o imigrante é visto como estranho, como não pertencente àquele
local pela população originária, como coloca Bauman:

Estranhos tendem a causar ansiedade por serem “diferentes” – e, assim,


assustadoramente imprevisíveis, ao contrário das pessoas com as quais interagimos
todos os dias e das quais acreditamos saber o que esperar [...] Sobre os estranhos,
porém, sabemos muito pouco para sermos capazes de interpretar seus artifícios e
compor nossas respostas adequadas – adivinhar quais possam ser suas intenções e o
que farão em seguida. E a ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma
situação que não produzimos nem controlamos, é uma importante fonte de ansiedade
e medo (BAUMAN, 2017, pp. 13-14).

Desta forma, o imigrante e o refugiado, na maioria das vezes, são vistos com
desconfiança, como indivíduos que podem atentar contra a normalidade local, e assim vai
ocasionando processos de segregação e invisibilidade. E, na maioria das vezes, essa
consequência está entrelaçada na própria conjuntura de empregar o nacionalismo, mas que é
pautada também em questões xenofóbicas e racistas.
Ademais, cabe pontuar que:

185
As desigualdades que discriminam e excluem têm relação com a vulnerabilidade que
expõe os sujeitos à exclusão. Ser migrante ou refugiado, por si só, não significa ser
vulnerável, mas a migração pode representar uma condição que favorece e até leva a
pessoa a passar por situações de vulnerabilidade, como as que são favorecidas pela
exaltação da especificidade migratória, assim como acontece também onde se verifica
a negação das diversidades que os sujeitos que migram levam consigo (LUSSI, 2015,
p. 136).

Essa desigualdade se acentuou nos tempos atuais, principalmente com a pandemia da


COVID-19 que assolou o mundo nos últimos anos, visto que a pandemia aumentou os
movimentos migratórios de populações de maneira forçada e colocou estes sujeitos ainda mais
expostos a diversas doenças para além da COVID-19, como doenças infecciosas,
precipuamente porque estes não são incluídos como prioridades na agenda da saúde
(RODRIGUES; CAVALCANTE; FAERSTEIN, 2020).
As dificuldades vivenciadas por imigrantes e refugiados adentram em vários outros
campos como o cultural, político e também social, e nesse ínterim, a própria dificuldade em ter
acesso a direitos básicos. Isso porque podem sofrer restrições tanto pela legislação específica
nacional como relativa a direitos políticos ligados à cidadania, até mesmo a falta de
documentação necessária para legalizar sua situação no país.
No Brasil, os direitos fundamentais, prelecionados principalmente no art. 5° da CF/88,
são estendidos aos imigrantes residentes ou de passagem pelo território nacional, conforme
entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), assim como os direitos sociais (TAVARES,
2012). Ainda assim, imigrantes e refugiados encontram vários desafios no tocante ao acesso a
políticas públicas, principalmente as políticas de caráter assistencialista.
Essas dificuldades são interligadas a vários fatores que estão imbricados no próprio
processo imigratório e nas políticas atinentes a esse assunto, como a questão econômica, visto
que há uma ascensão de políticas neoliberais, o que acarreta em desconstrução dos direitos
sociais a partir de perspectivas “reformistas”, o que ocasiona prejuízo a direitos sociais, como
é o caso da Assistência Social. Estas políticas afetam também a população imigrante,
principalmente com relação a normalização da precarização do trabalho e a falta de políticas
sociais colabora para a problemática (NETTO, 2011).
Outro ponto que também dificulta o acesso da população imigrante e refugiada à política
e aos direitos assistenciais diz respeito à situação linguística, pois esta população está exposta
a uma língua por vezes desconhecida. Infelizmente, ainda é escasso o ensino do português como
forma de acolhimento para imigrantes e refugiados, principalmente por ações governamentais.
Isso acarreta no próprio acesso às informações referentes a cadastros, atualizações ou medidas
que são importantes para que eles tenham acesso a direitos assistenciais no país.
186
Também é pertinente pontuar que para usufruir das políticas assistenciais e participação
em programas governamentais deste cunho, o estímulo a integração local deve ser observado:

(...) a integração como via de mão dupla, a qual supõe adaptação não apenas do recém-
chegado como também da sociedade receptora. Isso implica mudança em termos de
valores, normas, comportamentos tanto para os refugiados quanto para os membros
da comunidade local. Ao mesmo tempo, faz-se necessário propiciar o acesso a
serviços e oportunidades de empregos, assim como a aceitação dos refugiados em
termos de interação social, e aquisição de direitos, inclusive políticos. Essa visão se
opõe àquela voltada para a assimilação, mediante a qual se espera que os refugiados
descartem sua cultura, tradição, língua de origem, devendo se integrar na sociedade
receptora sem qualquer acomodação recíproca (MOREIRA, 2014, p. 89).

Nesse sentido, a integração local possibilita que os fatores de desigualdade sejam


analisados numa ótica multidimensional, numa perspectiva de instigar a autonomia destes
atores e buscando alternativas para além da tutela estatal. Também oportuniza que estes sujeitos
participem mais dos processos de debates e das decisões referentes a assuntos de interesse
próprio.
Merece também relevo mencionar os desafios dos fluxos migratórios e de refúgio na
perspectiva interseccional5, precipuamente a questão de gênero. Em uma sociedade marcada
ainda pela estrutura patriarcal e com machismo estrutural, a mulher é mais vulnerável a vários
fatores como a desigualdade e a violência de gênero.
Neste ponto, ser imigrante ou refugiada acentua ainda mais este desafio, pois como
preceitua Pizarro (2003, trad. nossa), as mulheres migrantes experimentam desafios muito
peculiares a sua categoria, que lhe são quase exclusivos, sendo expostas a situações de violência
sexual e de gênero, exploração sexual, tráfico de mulheres, violência cultural e intolerância
religiosa, soma-se a isso as condições laborais precárias. Diante disso, é importante considerar
também na análise dos desafios atinentes a imigrantes e refugiados a perspectiva de gênero.
A partir destas reflexões, é possível vislumbrar que imigrantes e refugiados sofrem
diariamente com uma vasta lista de desafios que adentram desde a perspectiva social como
jurídica. Contudo, essa problemática necessita, para apontar soluções, de um olhar
multidimensional:

A solução é, além da modificação do sistema jurídico, o reforço das políticas públicas


que auxiliem na formação e na produção de capital social. Os recursos devem ser
postos à disposição dos refugiados/estrangeiros, de acordo com suas diversidades
culturais e o acesso às redes sociais devem ser facilitados. Entretanto, tudo isso
somente pode ser concretizado com políticas públicas (re) distributivas, que evitem a
segregação e fortaleçam a autoestima. Somente assim os refugiados/estrangeiros
estarão aptos a quebrar o ciclo negativo de vida em que se encontram, a se aceitarem

5
A interseccionalidade refere-se aos diversos fatores que definem uma pessoa ou alguma situação, como a questão
de gênero, raça e classe.
187
e a aceitarem o outro, o novo, o estranho, que não será mais estranho, pois será seu
novo lar e ele se sentirá, sendo assim considerado, parte desse todo, que o acolhe e
que também deverá aprender a lidar com estes refugiados/estrangeiros (PACIFICO,
2010, p. 391).

Portanto, é importante conceber imigrantes e refugiados como sujeitos de direitos e,


para além disso, atores que necessitam de políticas públicas específicas, dadas as
particularidades dos desafios vivenciados. Por esta razão é que o próximo tópico do trabalho
abordará, de forma específica, a assistência social para imigrantes e refugiados quando da
análise do BPC.

4 PROTEÇÃO ASSISTENCIAL AO IMIGRANTE E AO REFUGIADO SOB A LUZ DO


PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

A política migratória brasileira avançou consideravelmente nos últimos anos. A lei n°


13.445/2017, também chamada de Lei de Migração, revogou a lei n° 6.815/1980, conhecida
popularmente como Estatuto do Estrangeiro, e visou tornar o país mais acolhedor ao imigrante6.
Ao passo que o Estatuto tratava o imigrante como um estranho, podendo sofrer restrições por
motivos de segurança nacional e interesse público, a nova legislação visa a garantia e promoção
de direitos. Nesse sentido,

Diferentemente do estatuto do estrangeiro, a nova Lei de Migração trata o imigrante


como um sujeito de direitos e garante em todo o território nacional, em condição de
igualdade com os nacionais, uma série de direitos que anteriormente não eram
concebidos, a saber: a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade; direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos;
(...) acesso a serviços públicos de saúde e de assistência social e à previdência social,
nos termos da lei, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição
migratória; (...) (GUERRA, 2017, p. 1723).

Contudo, apesar da mudança legislativa, a política brasileira migratória tem oscilações,


variando entre comportamentos de recepção humanitária, mas também o fechamento de
fronteiras. E os desafios se acentuam pelo próprio comportamento da sociedade que trata esta
categoria de maneira egoísta e excludente:

para que o Brasil possa ter mais do que uma lei exemplar para refugiados é preciso
que seja trabalhada a relação do brasileiro para com o refugiado, para que o medo do
nacional em relação à chegada do Outro não seja motivo de contribuição para
comportamentos autoritários de natureza nacionalista. Tal reação temerosa dos
nacionais para com o Outro está relacionada a categorização de pessoas como sendo

6
Apesar de ser considerada um avanço, pois a Lei de Migração superou a lógica da segurança nacional que o
Estatuto do Estrangeiro abarcava, esta lei ainda possui resquícios do conservadorismo e da colonialidade de poder,
principalmente no que diz respeito à questão da mobilidade dos povos originários (BAETA NEVES; RIBEIRO,
2018).
188
menos humanas do que outras, processo visto na história, como se comprova com a
escravização das pessoas negras e indígenas, impactando na forma como são
acolhidos refugiados com essa descendência. Observa-se na sociedade brasileira uma
dificuldade para reconhecer os direitos humanos e os direitos dos refugiados, que
expressa um ódio social (ALVARENGA; PERTILLE; ROSANELI, 2022, p. 325).

No que concerne ao refugiado, tal figura encontra definição na lei n° 9.474/19977.


Tratam-se de indivíduos que estão fugindo de seus países de origem em razão de situação de
perigo. Ocorre que ainda há dificuldades desta categoria e dos imigrantes de terem acesso a
direitos que são concedidos aos seus nacionais, mas que também são estendidos a quem estiver
em solo brasileiro. A CF/88, em seu art. 5°, assegura direitos e garantias fundamentais, estende-
os também aos imigrantes e refugiados, não cabendo discussão quanto a isso. Contudo, na
prática, principalmente no que tange os direitos assistenciais, a dificuldade no acesso surge.
No Brasil, os benefícios assistenciais pertencem à Assistência Social. Trata-se de um
direito, não exigindo nenhuma contraprestação por parte do assistido, também garantido na
CF/88 e que deve ser alcançado por meio de medidas e ações estatais, principalmente por
políticas públicas. O BPC é previsto na LOAS, que determina, em seu art. 20, “a garantia de
um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos
ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la
provida por sua família”.
No que diz respeito a imigrantes e refugiados, não há nenhum impeditivo para que
usufruam deste direito, porém ainda encontram impasses para a efetivação do acesso.
No preâmbulo da CF/88, a igualdade é mencionada como um direito a ser assegurado a
todos. No caput do art. 5°, a igualdade é novamente citada, sem fazer distinção entre nacionais
e imigrantes. O texto constitucional também dispõe, em seu art. 203, acerca da assistência
social, mencionando que será devida a quem dela necessitar.
Deste modo, com base na análise das disposições constitucionais e no disposto na lei n°
8.742/1993, entende-se que inexiste qualquer vedação para a concessão de BPC para imigrantes
e refugiados - pelo contrário, a CF/88 prima pela igualdade entre os indivíduos,
independentemente de sua nacionalidade. De igual modo, a Lei de Migração e a Lei de Refúgio
garantem pleno acesso às políticas públicas e à Seguridade Social.

7
Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:
I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões
políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira
regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade
para buscar refúgio em outro país.
189
O Decreto n° 6.214/2007, ao regulamentar o BPC, dispôs que o benefício somente será
devido aos brasileiros, natos ou naturalizados, e aos indivíduos de nacionalidade portuguesa 8.
O Decreto regulamentador visa reduzir o número de indivíduos elegíveis ao benefício, haja
vista que, considerando a redação atual, indivíduos provenientes de países que não possuam
acordo de reciprocidade com o Brasil não teriam acesso ao BPC. Percebe-se que o referido
Decreto restringiu o escopo de beneficiários, impondo condições não previstas na CF/88 ou na
legislação.
Todavia, entendemos que tal dispositivo é inconstitucional, pois além de violar
frontalmente as disposições presentes na CF/88, em especial o princípio da igualdade, também
fere o princípio da dignidade da pessoa humana, possuindo potencial para gerar desproteção e
injustiça social. Se nem a CF/88 nem a LOAS preveem a nacionalidade como critério para a
concessão, não cabe a um Decreto apresentar tal restrição.
Destacamos que tal restrição também fere as disposições previstas na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de São José da Costa Rica, que foi incorporada ao
ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto n° 678/1992. A Convenção prevê que os
Estados signatários respeitarão os direitos presentes no documento, sem qualquer discriminação
em razão de origem nacional9, e dispõe sobre a igualdade entre as pessoas10.
A dignidade da pessoa humana não possui caráter apenas de princípio, mas também de
fundamento da República Federativa do Brasil. Com base em tal premissa e no princípio da
igualdade, os imigrantes e os refugiados não podem ser discriminados, e sua condição não pode
ser utilizada para colocá-los à margem da sociedade (MAGALHÃES, 2016).
Tal assunto é fonte de inúmeros debates nas esferas administrativa e judicial. A fim de
pacificar a questão, o STF analisou a matéria, em decisão de repercussão geral, e determinou
que
Tema 173 - Concessão de benefício assistencial a estrangeiros residentes no Brasil.
Tese firmada: Os estrangeiros residentes no País são beneficiários da assistência social
prevista no artigo 203, inciso V, da Constituição Federal, uma vez atendidos os
requisitos constitucionais e legais.

8
A inclusão de indivíduos de cidadania portuguesa ocorreu em razão do Acordo Adicional que altera o Acordo de
Seguridade Social ou Segurança Social, firmado entre Brasil e Portugal no ano de 2006.
9
ARTIGO 1 - Obrigação de respeitar os direitos. 1. Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a
respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja
sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões
políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social.
10
ARTIGO 24 - Igualdade perante a lei. Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito,
sem discriminação, a igual proteção da lei.
190
Inobstante a decisão mencione apenas o termo “estrangeiros”, seus efeitos também
devem ser estendidos aos refugiados, com base no princípio da isonomia. A utilização de
interpretação diversa implicaria em grave injustiça social. Deste modo, ao permitir a concessão
BPC para imigrantes e refugiados em situação de vulnerabilidade, encontram-se efetivados

(...) os princípios da universalidade dos direitos fundamentais, da dignidade da pessoa


humana, consagrando as garantias fundamentais mínimas previstas na Constituição
Federal, bem como, a isonomia de direitos aos cidadãos e aos estrangeiros dentro do
território nacional, a fim de conceder vida digna àqueles que se encontra em situação
de refúgio (MAGALHÃES, 2016, p. 22).

O BPC não visa o enriquecimento. Pelo contrário, sua concessão visa garantir o mínimo
existencial para indivíduos incapazes de prover o próprio sustento. Nesse sentido, o benefício
busca dirimir desigualdades sociais e efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana.
A ausência de naturalização de um indivíduo não deve ser motivo para impedi-lo de ter
acesso a políticas públicas e direitos fundamentais. A CF/88 dispõe que a assistência social será
prestada a quem dela necessitar, não impondo nenhuma restrição. Assim, impedir o acesso ao
BPC para indivíduos em situação de vulnerabilidade implicaria em violação às normas
internacionais e as disposições constitucionais, penalizando indivíduos marginalizados e
excluídos socialmente.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um país marcado pela desigualdade social, as políticas assistenciais ganham


centralidade, visando justamente o restabelecimento na equidade para a efetiva participação
social. Contudo, determinadas categorias ainda são invisíveis na ótica de acesso a direitos, como
o direito à Assistência Social, e entre estes encontram-se justamente os refugiados e os
imigrantes.
Como se viu no primeiro tópico desta pesquisa, a perspectiva histórica da Assistência
Social no Brasil esteve ligada primeiramente à caridade para depois adentrar no
assistencialismo prestado pelo Estado. Importante foi a CF/88 para a constituição da Assistência
Social como política social, preconizando assim, que as diferenças sociais e vulnerabilidade
devem ser erradicadas a partir de medidas estatais. Neste ponto, o BPC, a partir da LOAS,
institui um relevante direito no que se refere à política assistencial no Brasil. Apesar das críticas
no que diz respeito ao critério de renda, o BPC é ainda um instrumento importante para diminuir
a vulnerabilidade social.

191
No segundo tópico, a pesquisa objetivou apresentar os principais desafios no que tange
ao acolhimento de imigrantes e refugiados no Brasil, fazendo um panorama social e jurídico.
Constatou-se que imigrantes e refugiados são vistos como estranhos, uma ameaça à soberania
nacional, o que ocasiona a segregação e invisibilidade desta categoria. Ademais,
acontecimentos como a COVID-19 e políticas neoliberais, colaboram para que se acentue esta
desigualdade.
No último item abordado, analisou-se a proteção assistencial ao imigrante e ao refugiado
à luz do corolário da dignidade da pessoa humana. Pontuou-se que a nova Lei de Migração
trouxe vários avanços significativos, principalmente ao estabelecer que imigrantes e refugiados
são sujeitos de direitos, primando pela igualdade entre nacionais e não-nacionais. Contudo,
apesar do avanço legislativo, a política migratória no país ainda passa por várias oscilações,
desde acolhimento até fechamento de fronteiras.
Também, ao se analisar o BPC para imigrantes e refugiados, verificou-se que a CF/88
prima pela igualdade entre os indivíduos e pela efetivação do princípio da dignidade da pessoa
humana. Todos os indivíduos em território nacional são iguais em direitos e deveres. Nesse
sentido, entendemos que a proteção aos desamparados e vulneráveis não pode ser restringida
com base em sua origem nacional.
Cabe ao Estado o papel de promover políticas públicas e assistenciais que assegurem
para a população os meios necessários para prover a subsistência e o mínimo existencial. As
restrições impostas por meio do Decreto n° 6.214/2007 não apenas restringem a efetivação de
direitos, como também geram um grave problema social, relegando a pobreza extrema
indivíduos em situação de vulnerabilidade, sob pena de violação aos fundamentos e princípios
da República Federativa do Brasil.
Por esta razão, é de extrema importância que o BPC seja um benefício também
oportunizado aos imigrantes e refugiados, principalmente pela prerrogativa da CF/88 de primar
pela igualdade e pela dignidade da pessoa humana, além de concretizar os preceitos da política
assistencial no país, colaborando para a equidade desta população que tanto sofre com o estigma
e vulnerabilidade social.

192
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193
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195
MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA NA LEI MARIA DA PENHA: UM
PANORAMA ACERCA DAS ALTERAÇÕES CONTIDAS NA LEI 14.550/2023

Desyrrê Moraes Lemes Mota1


Helena Gil Klein2
Júlia Farias Mertins3

RESUMO

O presente estudo aborda as inovações oriundas da Lei 14.550/2023 no que diz respeito às
medidas protetivas de urgência previstas na Lei 11.340/2006. Para isso, foram analisados
aspectos gerais relacionados à violência de gênero no ambiente doméstico, familiar ou em
relações íntimas de afeto. Em seguida estudou-se as medidas protetivas de urgência existentes,
seguida de uma análise das inovações introduzidas pela nova legislação. O estudo adotou o
método de abordagem dedutivo e é relevante diante das mudanças legislativas e da necessidade
contínua de proteção das vítimas de violência doméstica. Em conclusão, foi possível observar
que as modificações promovidas pela nova lei representaram avanços significativos no âmbito
das medidas protetivas de urgência contidas na Lei Maria da Penha.

Palavras-chave: Violência doméstica. Família. Medidas protetivas.

1 INTRODUÇÃO

A violência de gênero é uma triste realidade presente de forma globalizada. O gênero


feminino, devido a fatores sociais e culturais, é colocado no papel de vítima devido à
persistência da ideologia patriarcal.
Apesar de o Brasil possuir uma das melhores legislações de proteção4, as estatísticas de
violência doméstica são alarmantes e o conjunto de medidas protetivas existentes não tem sido
suficiente para coibir tais comportamentos por parte dos agressores.
Nesse contexto, em 20 de abril de 2023, foi promulgada a Lei 14.550, que incluiu quatro
novos parágrafos no artigo que aborda as medidas protetivas de urgência e modifica parte das

1
Desyrrê Moraes Lemes Mota. Advogada (OAB/GO 63.356). Mestranda em Direito na FMP/RS. Pesquisadora
no Grupo de Pesquisa “Família, Sucessões, Crianças e Adolescentes e Constituição Federal”, vinculado ao PPGD
da FMP/RS. E-mail desyrreadv@gmail.com
2
Helena Gil Klein. Advogada – OAB/RS 108.819. Especialista em Direito de Família em Sucessões pela FMP/RS.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Família, Sucessões, Criança e Adolescente e Constituição Federal, vinculado
ao PPGD da FMP/RS. E-mail helenaklein.adv@gmail.com.
3
Júlia Farias Mertins. Advogada - OAB/RS 116.553. Mestranda em Direito e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
Família, Sucessões, Criança e Adolescente e Constituição Federal, vinculado ao PPGD da FMP/RS. Presidente
da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões e da Comissão da Mulher Advogada, ambas Subseção
de Taquara/RS. E-mail julia@fariasmertinsadvocacia.com.br.
4
Conforme levantamento realizado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, realizado entre
os anos de 2019 e 2021.
196
disposições finais da legislação. Diante dessa alteração, este estudo tem como objetivo
investigar as modificações trazidas pela nova lei no âmbito das medidas protetivas de urgência
e da aplicação da Lei Maria da Penha.
Para isso, o artigo está estruturado em três partes. A primeira busca compreender
aspectos introdutórios sobre a violência de gênero e a Lei 11.340/2006, seguida por um segundo
capítulo que analisa as medidas protetivas de urgência. Na terceira parte, foram estudadas as
inovações trazidas pela modificação legislativa em relação às medidas protetivas de urgência
da lei mencionada e a inclusão do artigo 40-A no âmbito das disposições finais.
Por fim, com base em uma metodologia dedutiva e pesquisa bibliográfica, foram
apresentadas as considerações finais, com o objetivo de responder aos avanços trazidos pela
Lei 14.550/23 no âmbito das medidas protetivas de urgência no contexto da violência doméstica
e familiar.

2. VIOLÊNCIA DE GÊNERO E LEI 11.340/2006: NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Para uma compreensão adequada do cerne da Lei Maria da Penha, é necessário


primeiramente conceituar o termo "gênero". De acordo com BARREDA (2012, p. 101), gênero
pode ser definido como as diferenças anatômicas existentes entre homens e mulheres,
juntamente com as relações, papéis e identidades construídas ao longo da vida pelos indivíduos
dentro da sociedade. A autora argentina explica:

El género puede ser definido como una construcción social e histórica de carácter
relacional, configurada a partir de las significaciones y la simbolización cultural de
diferencias anatómicas entre varones y mujeres. En este sentido, constituye una serie
de asignaciones sociales que van más allá de lo biológico/reproductivo y a partir de
las cuales se adjudican características, funciones, derechos y deberes. Es decir,
“modos de ser” y “actuar” diferenciales para varones y mujeres. Implica el
establecimiento de relaciones, roles e identidades activamente construidas por los
sujetos a lo largo de sus vidas, en nuestras sociedades, históricamente produciendo y
reproduciendo relaciones de desigualdad social y de dominación/subordinación5.
(BARREDA, 2012, p. 101)

Os papéis masculinos são supervalorizados em detrimento dos femininos, com os


homens sendo atribuídos posições de controle e administração, enquanto às mulheres são

5 O gênero pode ser definido como uma construção social e histórica de caráter relacional, configurada a partir das
significações e simbolizações culturais das diferenças anatômicas entre homens e mulheres. Nesse sentido,
constitui uma série de assimilações sociais que vão além do biológico/reprodutivo e a partir das quais se
configuram características, funções, direitos e deveres. Ou seja, "formas de ser" e "agir" diferenciais para homens
e mulheres. Implica o estabelecimento de relações, papéis e identidades construídas ativamente pelos sujeitos ao
longo de suas vidas, em nossas sociedades, produzindo e reproduzindo historicamente relações de desigualdade
social e de dominação/subordinação. (Tradução nossa)
197
destinadas apenas a participação e a submissão às ordens masculinas, resultando em prejuízos
para as mulheres e benefícios para os homens (BIANCHINI; BAZZO; CHAKIAN, 2022, p.
20).
Assim, tais construções sociais e culturais enraizadas na sociedade firmaram, com o
passar do tempo, a divisão dos papeis atribuídos de acordo com o gênero da pessoa, o que revela
“relações assimétricas e hierárquicas entre homens e mulheres em prejuízo dessas últimas”
(BIANCHINI, 2018, p. 21), surgindo a necessidade de medidas que busquem superar tais
diferenças e coibi-las.
Nesse cenário, no ano de 2006 restou promulgada a Lei 11.340/2006, conhecida
popularmente por “Lei Maria da Penha”, como forma de homenagem à própria pela sua luta
por direitos às vítimas de violência no âmbito doméstico, familiar ou em relação íntima de afeto
(BIANCHINI, 2018, p. 20), tendo como fundamental papel proporcionar instrumentos de
proteção das mulheres e de punição dos agressores (PENHA, 2018, p. 4-6).
A legislação possui o objetivo de coibir a violência de gênero e estabelecer de medidas
assistenciais e protetivas às mulheres (COVAS, 2021, p. 13), especialmente considerando a
gravidade eis que ocorre no seio familiar, “local onde deveriam imperar o respeito e o afeto
mútuos” (ANDREUCCI, 2013, p. 237).
A violência de gênero, portanto, pode ser conceituada como sendo qualquer ato de
violência baseado na diferença de gênero e que dele resultem danos físicos, sexuais e/ou
psicológicos da mulher. Inclui-se, aqui, as ameaças, coerção e privação da liberdade (OEA,
1994).
Nesse sentido, importante se faz o destaque das principais características que
diferenciam a violência de gênero dos demais tipos: primeiramente ela decorre de uma relação
de poder e dominação do homem e submissão da mulher, sendo estas características reforçadas
pela ideologia patriarcal, induzindo relações violentas entre os sexos, eis que fundada em uma
hierarquia na qual o homem detém o poder e à mulher compete a submissão. (BIANCHINI;
BAZZO; CHAKIAN, 2022, p. 22).
Outrossim, a violência ultrapassa a relação particular, podendo ser encontrada em
qualquer estrutura que constitua uma relação social. A relação de afeto, por fim, faz com que
as mulheres sejam “ainda mais vulnerabilizadas dentro do sistema de desigualdade de gênero,
quando comparado a outros sistemas de desigualdade (classe, geração, etnia). (BIANCHINI;
BAZZO; CHAKIAN, 2022, p. 22).

198
Assim sendo, para que a violência de gênero seja abrangida pela Lei 11.340/06 ela deve
ter como vítima uma mulher, nos termos dos artigos 1º e 2º. Frisa-se que a legislação não
diferencia o agressor podendo, inclusive, ser outra mulher, no caso de uma relação homoafetiva
feminina, por exemplo, como têm decidido os tribunais brasileiros (DISTRITO FEDERAL E
TERRITÓRIOS, 2020).
É necessário, ainda, que essa violência ocorra no ambiente doméstico (sendo este o
ambiente de convívio de pessoas, sendo que estas não precisam ter nenhum parentesco, nos
termos do art. 5º, I), no âmbito familiar (quando os agentes envolvidos são parentes, por laços
naturais, afinidade ou vontade expressa, conforme art. 5º, II) ou, ainda, nas relações íntimas de
afeto (art. 5º, III), independente de coabitação (Súmula 600 do STJ). Acerca desta última
possibilidade, o STJ explica:

A agressão do namorado contra a namorada, ainda que tenha cessado o


relacionamento, mas que ocorra em decorrência dele, caracteriza violência doméstica.
(...) O alvo da Lei Maria da Penha não se limita à violência praticada por maridos
contra esposas ou companheiros contra companheiras. Decisões do STJ já admitiram
a aplicação da lei entre namorados, mãe e filha, padrasto e enteada, irmãos e casais
homoafetivos femininos. As pessoas envolvidas não têm de morar sob o mesmo teto.
A vítima, contudo, precisa, necessariamente, ser mulher (SUPERIOR TRIBUNAL
DE JUSTIÇA, 2017).

Importante o destaque de que a violência doméstica e familiar contra as mulheres não


ocorre apenas dentro da relação afetiva no âmbito da conjugalidade, podendo ocorrer entre
irmãos, primos, amigos que dividem um apartamento como lar, por exemplo. Da mesma forma,
não afeta apenas mulheres adultas, eis que meninas crianças e adolescentes também podem ser
vítimas. A promotora de justiça Fabíola Covas complementa:

Isso significa que, a partir de uma série de reflexões sobre a realidade dos diferentes
perfis mulheres e das dinâmicas de suas vivências enquanto mulheres em situação de
violência, também é fundamental orientar-se à reflexões que possam contribuir a que
elas saiam desta condição ou que venham a prevenir ou a minimizar os danos a ela
relacionados (COVAS, 2021, p. 13).

A Lei 11.340/2006 é, assim, além de uma via jurídica de punição dos agressores, um
importante instrumento que estabelece o conceito de todos os tipos de violência doméstica e
familiar, insere a criação de políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às vítimas,
além de prever a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher,
instituir as medidas protetivas de urgência e estabelecer a promoção de programas educacionais
com perspectiva de gênero, raça e etnia.

199
Para o presente estudo o foco recairá, especialmente, sobre as medidas protetivas de
urgência, sendo estas restrições que buscam afastar o agressor do convívio com a vítima através
de mecanismos legais que visam a proteção das mulheres em situação de risco, com o objetivo
de cessar a violência. (BRASIL, [2021?])

3 MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA ÀS VÍTIMAS

A Lei Maria da Penha trouxe em seu texto, grandes avanços no que cerne a segurança
e justiça para as mulheres vítimas de violência doméstica através das Medidas Protetivas de
Urgência que objetivam garantir uma proteção imediata a essas mulheres (LUDOVICE;
LORDELLO; ZANELLO, 2023, p. 4).
Outro fator importante é que as medidas protetivas de urgência estão atreladas às
pessoas e não aos processos, o que significa dizer que tais medidas não são preliminares para
uma ação, mas visam assegurar direitos fundamentais ao interromper a violência (FREITAS;
GONÇALVES; SANTOS, 2023, p. 31). Acerca do tema, nos ensina VIEIRA (2022, p. 37):

Nesse aspecto, segundo o que se entende da referida lei, a medida protetiva de


urgência é baseada em uma providência jurisdicional pertinente para que assim seja
assegurado às mulheres todos os direitos e garantias fundamentais que estão
previstos na Constituição Federal, inobstante de orientação sexual, cultura, classe
social, religião, idade e escolaridade.

Assim sendo, as medidas protetivas de urgência buscam dar efetividade ao seu propósito
de assegurar às mulheres uma vida livre de violência (DIAS, 2021, p. 183) e estão contidas
principalmente nos artigos 22 a 24 da Lei 11.340/06, podendo ser divididas em duas principais
espécies: medidas que obrigam o agressor e medidas dirigidas à vítima, sendo estas
subdivididas entre as de caráter pessoal, patrimonial ou nas relações de trabalho (BIANCHINI,
2021, p. 35).
A lei prevê a possibilidade de que a própria autoridade policial tome as providências
que entender cabíveis quando tomar conhecimento de fato que caracterize violência doméstica
(art. 10). A vítima tem direito de receber atendimento por servidoras preferencialmente do sexo
feminino e previamente capacitados6 para o acolhimento (art. 10-A) (BRASIL, 2006).
Após o registro da ocorrência, a autoridade policial poderá, desde logo, afastar o
agressor do lar, domicílio ou local de convivência da ofendida (art. 12-C, II e III) e deverá

6
O termo “capacitados” significa que os policiais (homens ou mulheres) que realizarão os atendimentos das
vítimas de violência doméstica deverão ter treinamento especializado: “que se escolham pessoas que revelem
aptidão para o trato da mulher e sensibilidade para abordagem dos problemas por ela suportados”. (CUNHA;
PINTO, 2022, p. 123).
200
remeter o expediente ao juízo para que este, no prazo máximo de vinte e quatro horas decida
sobre a manutenção ou revogação da medida aplicada (art. 12-C, §1º) (BRASIL, 2006). Nesse
sentido:
A adoção de qualquer providência está condicionada à vontade da vítima. Ainda que
a mulher proceda ao registro da ocorrência, é dela a iniciativa de pedir proteção por
meio de medidas protetivas. Somente nesta hipótese assim é formado o expediente
para deflagrar a concessão de tutela provisional de urgência. No entanto, a partir do
momento em que a vítima requer medidas protetivas, o juiz pode agir de ofício,
adotando medidas outras que entender necessárias para tornar efetiva a proteção que
a lei promete à mulher. (DIAS, 2021, p. 184, grifo do autor).

O caput do artigo 18 e seus incisos preveem que o magistrado, tomando conhecimento


do pedido das medidas protetivas, além de agir de ofício e definir tais medidas, pode determinar
o encaminhamento da vítima ao órgão de assistência judiciária para, se for o caso, ajuizar a
ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união
estável perante o juízo competente, além de comunicar ao Ministério Público para que adote as
providências cabíveis e determinar a apreensão imediata de arma de fogo, caso o agressor esteja
na posse (VIEIRA, 2022, p. 41).
No entanto as medidas protetivas não tinham caráter de punitivo, apenas um caráter
protetivo para as mulheres, como explicam MARQUES e SILVA:

Até 2018, com a promulgação da Lei n. 13.641, não havia previsão legal específica
de consequências para o descumprimento das medidas protetivas. No entanto, com o
intuito de assegurar maior efetivação do instrumento ante a realidade fática de comum
descumprimento, foi inserido no texto legal o tipo de desobediência ao cumprimento
das medidas impostas (art. 24-A), além da possibilidade de o juiz decretar a prisão
preventiva do agressor em qualquer fase da persecução penal (art. 20). (MARQUES;
SILVA, 2023, p. 12).

Este avanço acabou por ampliar o escopo da proteção da mulher vítima de violência
doméstica e familiar, pois antes da promulgação da Lei e dos seus avanços, os casos de menor
gravidade dessas violências poderia ser enquadrados em crimes de menor potencial ofensivo e
por tanto com competência dos Juizados Especiais. Esta forma de enfrentamento acabava por
protelar a oitiva do agressor, o que acabava viabilizando que este não se afastasse da vítima e
por vezes a ludibriasse para retirada da queixa. Além do mais, em diversos casos a sentença
definia uma pena tão pequena que por vezes era convertida em pena restritiva de direitos e
prestação pecuniária, causando a sensação de impunidade (MARQUES, 2023, p. 10).
Vale salientar que as medidas protetivas de urgência possuem um rol exemplificativo,
não esgotando a possiblidade de outras medidas a serem definidas, conforme disposto no caput

201
dos artigos 22, 23 e 24. Assim, o juizado pode adotar outras providências que entender
necessárias para proteger e garantir a segurança da vítima (MELLO; PAIVA, 2022, p. 294).
Quanto às medidas protetivas de urgência previstas na lei, pode-se verificar a existência
de três tipos: as medidas protetivas que obrigam o agressor (artigo 22); as medias protetivas
dirigidas à vítima de caráter pessoal (artigo 23), e as medidas protetivas dirigidas à vítima de
caráter patrimonial (artigo 24) (MELLO; PAIVA, 2022, p. 294).
Acerca das medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor (art. 22) incluem-se
a suspensão ou restrição do porte de armas (inciso I), afastamento do lar (inciso II), proibição
de aproximação da vítima, seus familiares e testemunhas, por qualquer meio de comunicação,
frequentação de determinados lugares (inciso III), restrição ou suspensão da convivência
paterno-filial, se houver (inciso IV), prestação de alimentos (inciso V), comparecimento a
programas de recuperação e reeducação7 (inciso VI) e acompanhamento psicossocial (VII).
(BRASIL, 2006)
A lei 13.104/2015 inseriu o inciso VI ao §2 e os §2º-A do art. 121 do Código Penal,
passando a punir o feminicídio como qualificadora. Sobre ela, podem incidir as majorantes
estabelecidas no §7º do referido código, podendo aumentar a pena de um terço à metade se o
crime for cometido quando a vítima estiver gestante, for criança ou adolescente com menos de
14 anos ou maior de sessenta anos, com deficiência ou vulnerável. É majorada, ainda, se
realizada na presença física ou virtual de ascendente ou descendente da vítima ou em
descumprimento das medidas protetivas de urgência fundamentadas na Lei 11.340/2006.
(BRASIL, 1940).
Em relação as medidas protetivas de urgência à vítima, a legislação prevê no art. 23 o
encaminhamento da ofendida e sua prole a programa oficial ou comunitário de proteção ou
atendimento (inciso I), recondução ou afastamento da vítima à residência (incisos II e III),
determinação da separação de corpos (inciso IV) e matrícula ou transferência dos dependentes
em instituição de educação básica próximo ao domicílio (inciso V) (BRASIL, 2006).
Necessário o destaque de que as medidas protetivas independem de inquérito ou
processo penal, podendo tais medidas serem concedidas inclusive perante a vara cível,
conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1.419.421/GO.
No capítulo que trata das medidas protetivas de urgência a Lei 11.340/2006 prevê, ainda,
atos que busquem a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou particulares da

7
A título exemplificativo, indica-se a existência do projeto dos Grupos Reflexivos de Gênero, realizados junto ao
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Para mais informações acesse: https://www.tjrs.jus.br/novo/violencia-
domestica/projetos/grupos-reflexivos-de-genero/
202
vítima (art. 24), podendo o juiz determinar liminarmente a restituição à ofendida, dos bens
indevidamente subtraídos pelo agressor (inciso I), a proibição temporária para celebrar
contratos de compra, venda e locação (inciso II), suspensão de eventuais procurações que
tenham sido outorgadas pela vítima ao agressor (inciso III) ou, ainda, a prestação de caução
provisória pelo agressor através de depósito judicial, a fim de assegurar eventuais perdas e
danos decorrentes da violência (inciso IV).
No que diz respeito ao prazo de vigência das medidas protetivas, a lei silenciou a
respeito do prazo de duração ou eficácia. Assim, o entendimento majoritário na doutrina e
jurisprudência é o de que, em razão do seu caráter excepcional, devem vigorar enquanto houver
situação de risco para a mulher (TRIBUNAL DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS,
2022), mas não ad eternum (CUNHA; PINTO, 2022, p. 295).
A violência patrimonial, prevista no artigo 24 merece atenção especial, pois
normalmente essa espécie de violência atua em conjunto com as demais violências já previstas
na lei. Entretanto, a violência psicológica marca este aspecto patrimonial, o que dificulta sua
identificação e acaba por não receber o tratamento adequado pelos magistrados. A violência
patrimonial atinge principalmente a possibilidade de recomeço de vida das vítimas, e as
medidas protetivas neste sentido visam restituir a situação financeira dessas mulheres (MELLO;
PAIVA, 2022, p. 312).

4 INOVAÇÕES TRAZIDAS PELA LEI 14.550/2023

Como já discorrido até aqui, a Lei Maria da Penha surgiu com intuito de trazer garantias
e proteções às mulheres que, no seio familiar, muitas vezes se encontravam e ainda se
encontram em situação de violência, por acabar assumindo uma posição de submissão em
relação ao homem. Nesta perspectiva, vários estudos e discussões permearam os anos, a fim de
discutir e ampliar a efetividade das medidas protetivas de urgência já definidas na Lei
11.340/2006.
Em que pese a Lei Maria da Penha represente inúmeras mudanças nos cenários de
violência doméstica e familiar contra mulher, a Lei propriamente dita não impede a violência
(FREITAS; GONÇALVES; SANTOS, 2023, p. 28). Porém, é diante do impacto social que a
referida norma possui que o legislativo busca, desde a sua primeira edição, em 2006, aprimorar

203
o seu texto legal, com o intuito de, cada vez mais, coibir a violência doméstica e amparar as
suas vítimas.
A reedição da Lei Maria da Penha segue o escopo inicial: a proteção ampla e integral
da mulher que venha a sofrer violência nas relações domésticas, familiares e íntimas de afeto.
Trazendo, agora, especial atenção ao fato de que a proteção é relativa a todas as mulheres dentro
destas relações, não importando se a violência sofrida foi baseada no gênero ou que a
vulnerabilidade da ofendida seja decorrente da sua condição de mulher. Isso significa dizer que,
com a promulgação da Lei nº 14.550/2023, não há falar na categoria “violência baseada no
gênero” como requisito ensejador da sua aplicação.
Conforme se depreende da exposição de motivos do Projeto de Lei 1604 de 2022, com
justificativa apresentada pela Senadora Simone Tebet, que motivou a aprovação da Lei nº
14.550/2023, o pressuposto político da Lei Maria da Penha é o de se antepor à violência baseada
no gênero de uma sociedade machista, a qual advém do poder desigual de gênero de longa
duração, pautado, inclusive, pelo Direito (BRASIL, 2022).
As mudanças legislativas fundamentam-se na ausência de aplicação da Lei Maria da
Penha pelos tribunais superiores, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça sedimentou
entendimento no sentido de que os juízes deveriam analisar se a violência ocorrida havia sido
motivada com base no seu gênero, conforme se verifica nas seguintes decisões:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL.


COMPETÊNCIA. RELAÇÃO FAMILIAR. APLICABILIDADE DA LEI MARIA
DA PENHA. CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO NO SENTIDO DA AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO DA MOTIVAÇÃO DE GÊNERO NA PRÁTICA DO DELITO.
REVISÃO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE.
INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. A jurisprudência da Terceira Seção deste
Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de que, para a aplicação da Lei
11.340/2006, não é suficiente que a violência seja praticada contra a mulher e numa
relação familiar, doméstica ou de afetividade, mas também há necessidade de
demonstração da sua situação de vulnerabilidade ou hipossuficiência, numa
perspectiva de gênero. 2. A análise das peculiaridades do caso concreto, de modo a se
reformar o acórdão que concluiu pela não incidência da Lei Maria da Penha,
demandaria o reexame de matéria fático-probatória, o que é inviável nesta instância
extraordinária. Incidência da Súmula 7/STJ. 3. Agravo regimental improvido.
(SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2015)

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AMEAÇA.


LESÃO CORPORAL. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/06. AUSÊNCIA DE
VIOLÊNCIA DE GÊNERO. INCIDÊNCIA SÚMULA N. 7/STJ. AGRAVO
REGIMENTAL DESPROVIDO. I - A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça
orienta-se no sentido de que, para que a competência dos Juizados Especiais de
Violência Doméstica seja firmada, não basta que o crime seja praticado contra mulher
no âmbito doméstico ou familiar, exigindo-se que a motivação do acusado seja de
gênero, ou que a vulnerabilidade da ofendida seja decorrente da sua condição de

204
mulher. II - Na presente hipótese, a instância de origem decidiu que no caso dos autos
não se verificou que a motivação do réu se baseou no gênero da vítima e, assim, não
se enquadra em qualquer das hipóteses elencadas na Lei Maria da Penha, uma vez que
referida lei não trata de mera violência contra mulher que integra o círculo familiar do
agressor. A desconstituição de tal entendimento demandaria revolvimento de matéria
fático-probatória, providência que é vedada na via eleita por atrair o óbice ao
enunciado n. 7 da Súmula do STJ. Agravo regimental desprovido. (SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2021)

Diante do entendimento do STJ, diversos tribunais restringiram a aplicação da Lei Maria


da Penha, de tal maneira que, conforme relata a Senadora Simone Tebet (BRASIL, 2022),
diversos tem sido os motivos que afastam a aplicação da LMP, desde conflitos familiares a
prática concomitante de violência contra o homem, esvaindo-se, sobremaneira, a ação
afirmativa da Lei - a proteção de todas as mulheres.

Tudo tem sido motivo para não aplicar a LMP: conflitos familiares ou domésticos,
conflitos de visitação aos filhos, conflitos patrimoniais, uso de álcool ou drogas pelo
ofensor ou vítima, suposta ausência de vulnerabilidade ou hipossuficiência da vítima,
transtornos mentais, deficiência, ausência de coabitação, dependência financeira ou
hierárquica, idade jovem ou avançada da vítima, ou prática concomitante de violência
contra o homem, entre outros. (BRASIL, 2020, p. 4)

Merece atenção, ainda, o fato de que muitas vezes juízes e promotores se queixam das
poucas informações presentes nos inquéritos policiais e a dificuldade de articular as ações para
que possam ser produzidas provas robustas e forneçam, ao fim e ao cabo, a segurança necessária
para as vítimas (PASINATO, 2015, p. 420). Neste sentido é a preocupação em buscar que as
medidas protetivas sejam cada vez mais efetivas em seus objetivos (FREITAS; GONÇALVES;
SANTOS, 2023, p. 28).
A falta de informações sólidas e completas nos inquéritos policiais vai de encontro à
previsão constitucional de que os direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata8,
especialmente em razão de que o poder público possui obrigação de fomento a circunstâncias
indispensáveis para o cumprimento efetivo das medias protetivas estabelecidas na Maria da
Penha. Essas ações elencadas com o objetivo da Lei 11.340/2006 é que acabam por concretizar

8
“Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: § 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação
imediata.” (Constituição Federal, 1988).
205
a garantia dos direitos fundamentais concernentes à mulher (FREITAS; GONÇALVES;
SANTOS, 2023, p. 32).
Entendendo a necessidade de reforçar o escopo protetivo para as mulheres, a Lei
14.550/2023 trouxe alterações significativas às medidas protetivas de urgência, inserindo no
art. 19 da Lei 11.340 os seguintes parágrafos:

§ 4º. As medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição


sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da
apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas no caso de avaliação
pela autoridade de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual,
patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.
§ 5º. As medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da
tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de
inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.
§ 6º. As medidas protetivas de urgência vigorarão enquanto persistir risco à
integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus
dependentes (BRASIL, 2023).

As alterações legislativas promulgadas reforçaram o caráter preventivo das medidas


protetivas no sentido de que não há necessidade de um correspondente penal. Esta afirmação
demonstra que não há condicionamento da concessão das medidas protetivas de urgência a um
registro prévio de ocorrência, podendo o requerimento ser feito de forma autônoma pela vítima
com base em uma declaração escrita. Agora o fumus boni iuris e o periculum in mora, que
atendem os requisitos legais para as decisões do juízo de cognição sumária, inerente às tutelas
de urgência (artigo 300 do CPC), irão compor os aspectos probatórios para a concessão das
medidas protetivas de urgência, estando atrelado à palavra da ofendida (DUTRA, 2023).
Assim não mais que se falar em indeferimento das medidas protetivas de urgência com
a argumentação de que o requerimento foi realizado apenas com base na palavra da vítima,
atendendo ainda o protocolo de julgamento com perspectiva de gênero presente na Resolução
CNJ nº 492/2023, evitando então a reprodução de estereótipos de desqualificação da palavra da
mulher, próprios de uma sociedade estruturalmente machista (DUTRA, 2023).
Outra alteração importante é que o ônus da avaliação do risco que o ofensor oferece a
vítima passa a ser do julgador, onde ele deverá apontar a inexistência do risco e em caso de
dúvidas, o objetivo fixa-se em manter a proteção da mulher. Além disso, as medidas passam a
ser mantidas a depender do perigo/risco e não mais do tempo do procedimento, o que resolve
uma lacuna a respeito do período em que as medidas deveriam ser mantidas. Existindo perigo,
há pertinência para a manutenção das medidas de proteção (FERNANDES; CUNHA, 2023).
Inegável torna-se que esta alteração legislativa se deu em decorrência do contato e da
conexão entre os fatos da vida real e o direito, posicionando a mulher como figura central nos

206
estudos e políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica e familiar. Somente por
este contato, é que foi possível fomentar respostas jurídicas mais eficientes e mais adequadas
(MARQUES; SILVA, 2023, p. 10), como por exemplo com essa alteração.
Frisa-se que a alteração legislativa descrita na Lei 14.550/2023 não abarcou toda a
proposta textual presente no Projeto de Lei 1.604/2022, o que não era esperado, entretanto,
acredita-se que o cuidado devido não foi suficiente, e poderia ter abraçado mais evoluções
(COSTA; ANDRADE; REZENDE, 2023).
Portanto, apesar de as alterações preverem algo que parecia lógico, trata-se de mais um
avanço legislativo com o intuito de proteger mulheres da violência doméstica e familiar, dando
mais clareza e objetividade para o coibir os atos de violência e mais efetividade para aplicação
das medidas protetivas de urgência.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Infelizmente o ambiente familiar acaba sendo um lugar que propicia a violência


doméstica contra as mulheres, tanto pela convivência quanto a facilidade de acesso à vítima, e
justamente por este motivo a Lei Maria da Penha trouxe em seu espoco a possiblidade de
proteção e de segurança para essas mulheres e essas famílias, e ainda objetivou a coibição dessa
violência.
Mesmo com o advento da Lei 11.340/2006, a violência doméstica e familiar continuou
presente na vida de muitas mulheres, e as medidas protetivas de urgência ali implementadas,
não foram de imediato suficientes para proteger, assegurar e coibir a violência existente ali nos
contextos familiares.
Como este tudo buscou investigar quais as modificações trazidas pela nova lei no que
se refere às medidas protetivas de urgência, foi possível concluir que tais modificações foram
importantes no que tange o escopo de proteção e segurança das mulheres vítimas de violência
doméstica e familiar.
A importância dada à palavra da mulher, sem dúvida possibilita que as medias cabíeis
sejam tomadas em tempo hábil para se atingir com eficácia o objetivo central da Lei Maria da
Penha, além de mostrar que o Direito tem se desvencilhado da ideia primitiva de servir o
patriarcado e se aproximado de proteger vulnerabilidades sem discriminação de gênero.
Permitir também que as medidas protetivas de urgência tenham tempo indeterminado,
independente do tempo do processo, fornece a proteção necessária às vítimas, uma vez que se
sabe que nem sempre a violência cessa com o fim processual.

207
No mais, reconhece-se que muitas evoluções ainda são necessárias para proteger e coibir
a violência doméstica e familiar. Entretanto não se pode negar que cada passo dado ao objetivo
da Lei Maria da Penha, é também um passo dado em favor das vítimas.

REFERÊNCIAS

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Maria da Penha. In: FERRAZ, Carolina Valença; et al. (Coord.). Manual dos direitos da
mulher: linha direito, diversidade e cidadania - Série IDP. São Paulo: Saraiva, 2013. E-book.
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em: 03 mai. 2023.

BARREDA, Victoria. Género y travestismo em el debate. In: OPIELA, Carolina Von. (Coord).
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Disponível em: <https://www.fundacionhenrydunant.org/images/stories/biblioteca/derechos-
personas-
lgtbi/Ley%20Derecho%20a%20la%20Identidad%20de%20G%C3%A9nero.Argentina.pdf.pd
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BIANCHINI, Alice. Lei Maria da Penha: aspectos criminais e políticas públicas de


enfrentamento à violência de gênero. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021.

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criminais da violência de gênero. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 1604, de 2022.
Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para dispor sobre as
medidas protetivas de urgência e estabelecer que a causa ou a motivação dos atos de violência
e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem a aplicação da lei. Autoria: Senadora
Simone Tebet. Brasília, DF: Senado Federal, [2022]. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/153558>. Acesso em: 06 jun.
2023.

_______. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 06
mai. 2023.

_______. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Cartilha Informativa sobre
Medidas Protetivas - Salve Uma Mulher. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-
br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/publicacoes-
1/MEDIDAS_PROTETIVAS_SALVE_MULHER.pdf>. Acesso em: 04 mai. 2023.

_______. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal,
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras

208
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 04 mai. 2023.

_______. Lei nº 14.550 de 19 de abril de 2023. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006
(Lei Maria da Penha), para dispor sobre as medidas protetivas de urgência e estabelecer que a
causa ou a motivação dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem
a aplicação da Lei. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-
2026/2023/lei/L14550.htm>. Acesso em: 03 mai. 2023.

_______. Superior Tribunal de Justiça (4. Turma). Recurso Especial nº 1.419.421/GO.


DIREITO PROCESSUAL CIVIL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER.
MEDIDAS PROTETIVAS DA LEI N. 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA).
INCIDÊNCIA NO ÂMBITO CÍVEL. NATUREZA JURÍDICA. DESNECESSIDADE DE
INQUÉRITO POLICIAL, PROCESSO PENAL OU CIVIL EM CURSO.1. As medidas
protetivas previstas na Lei n. 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a
concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de
acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência,
presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor.2. Nessa
hipótese, as medidas de urgência pleiteadas terão natureza de cautelar cível satisfativa, não se
exigindo instrumentalidade a outro processo cível ou criminal, haja vista que não se busca
necessariamente garantir a eficácia prática da tutela principal. "O fim das medidas protetivas é
proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a
favorecem. Não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Não visam
processos, mas pessoas" (DIAS. Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça. 3 ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012).3. Recurso especial não provido. Recorrente: C A
S Recorrido: Y S Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, 11 de fevereiro de 2014.Disponível
em:
<https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ATC?seq=33743165&tipo=91&nreg=2
01303555858&SeqCgrmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20140407&formato=PDF&salvar=f
alse>. Acesso em: 06 mai. 2023.

_______, Superior Tribunal de Justiça (5ª Turma). Agravo Regimental no Recurso Especial nº
1900484/GO. PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. AMEAÇA.
LESÃO CORPORAL. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/06. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA
DE GÊNERO. INCIDÊNCIA SÚMULA N. 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL
DESPROVIDO. I - A jurisprudência desta Corte Superior de Justiça orienta-se no sentido de
que, para que a competência dos Juizados Especiais de Violência Doméstica seja firmada, não
basta que o crime seja praticado contra mulher no âmbito doméstico ou familiar, exigindo-se
que a motivação do acusado seja de gênero, ou que a vulnerabilidade da ofendida seja
decorrente da sua condição de mulher. II - Na presente hipótese, a instância de origem decidiu
que no caso dos autos não se verificou que a motivação do réu se baseou no gênero da vítima
e, assim, não se enquadra em qualquer das hipóteses elencadas na Lei Maria da Penha, uma vez
que referida lei não trata de mera violência contra mulher que integra o círculo familiar do
agressor. A desconstituição de tal entendimento demandaria revolvimento de matéria fático-
probatória, providência que é vedada na via eleita por atrair o óbice ao enunciado n. 7 da Súmula
do STJ. Agravo regimental desprovido. Agravante: Ministério Público Federal. Agravado:
Aélio Flávio Vieira. Relator: Ministro Felix Fischer, 02 de fevereiro de 2021. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em: 06. jun. 2023.

209
_______, Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental no Recurso Especial nº
1430724/RJ. AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL.
COMPETÊNCIA. RELAÇÃO FAMILIAR. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA
PENHA. CONCLUSÃO DO ACÓRDÃO NO SENTIDO DA AUSÊNCIA DE
DEMONSTRAÇÃO DA MOTIVAÇÃO DE GÊNERO NA PRÁTICA DO DELITO.
REVISÃO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. INCIDÊNCIA
DA SÚMULA 7/STJ. 1. A jurisprudência da Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça
consolidou-se no sentido de que, para a aplicação da Lei 11.340/2006, não é suficiente que a
violência seja praticada contra a mulher e numa relação familiar, doméstica ou de afetividade,
mas também há necessidade de demonstração da sua situação de vulnerabilidade ou
hipossuficiência, numa perspectiva de gênero. 2. A análise das peculiaridades do caso concreto,
de modo a se reformar o acórdão que concluiu pela não incidência da Lei Maria da Penha,
demandaria o reexame de matéria fático-probatória, o que é inviável nesta instância
extraordinária. Incidência da Súmula 7/STJ. 3. Agravo regimental improvido. Agravante:
Ministério Público Federal. Agravado: José Ronaldo Nascimento de Seixas. Relatora: Maria
Thereza de Assis Moura, 17 de março de 2015. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp>. Acesso em: 06. jun. 2023.

COSTA, Adriano Sousa; ANDRADE, Ana Scarpelli de; REZENDE, Mayana. Lei 14.550:
conceito de violência de gênero e indeferimento de medida protetiva. Consultor Jurídico -
CONJUR, 2023. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2023-abr-25/academia-policia-
lei-1455023-violencia-genero-indeferimento-medida-
protetiva#:~:text=14.550%2F2023%20menciona%20expressamente%20%22independenteme
nte,que%20n%C3%A3o%20o%20foi%20feito>. Acesso em: 4 de mai. 2023.

COVAS, Fabíola Sucasas Negrão. A vida, a saúde e a segurança das mulheres: como entender
a violência e saber se proteger. São Paulo, Benvirá, 2021. E-book. Disponível em:
<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786558100706/>. Acesso em: 03 mai.
2023.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da
Penha – 11.340/2006 - Comentada artigo por artigo. 12. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora
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DIAS, Maria Berenice. A lei Maria da penha na Justiça. 7. ed. rev. atual. Salvador: Editora
JusPodivm, 2021.

DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. Tribunal de Justiça. Recurso em Sentido Estrito nº


0723211-09.2020.8.07.0016. PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO
ESTRITO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. RELAÇÃO
ÍNTIMA DE AFETO ENTRE MULHERES. NÃO ACEITAÇÃO DO FIM DO
RELACIONAMENTO. PERSEGUIÇÃO, INTIMIDAÇÃO E CONTROLE.
OBJETALIZAÇÃO. VULNERABILIDADE CONFIGURADA. VIOLÊNCIA MOTIVADA
PELO GÊNERO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESPECIALIZADO. RECURSO PROVIDO.
1. É possível a incidência dos preceitos da Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) na hipótese
de violência praticada contra mulher no seio de relação íntima de afeto homossexual, acaso
caracterizada a hipossuficiência e/ou a vulnerabilidade da vítima. 2. Na hipótese, após breve
namoro, com coabitação de uma semana, a ré demonstrou intensa perseguicao, intimidação e

210
controle sobre a vitima por nao aceitar o termino da relacao afetiva, tratando a ex-parceira como
sua propriedade sexual, em verdadeira situação de objetalização. Nesse contexto, a fim de sair
desse ciclo de violência, a ofendida, após buscar efetivo auxílio das autoridades públicas,
alterou sua residência, seu trabalho e seu automóvel, para evitar que a ré, conhecedora de toda
a sua rotina, a encontra-se novamente. 3. Com efeito, apesar da alegada independência
financeira e emocional da ofendida, ou da constatação de porte físico assemelhado entre as
envolvidas, denota-se, claramente, a repercussão psíquica da violência na vítima, tratada como
objeto no seio da relação afetiva em questão, ante o sentimento de posse contra ela nutrido, tudo
a evidenciar, sem qualquer dúvida, sua fragilidade e vulnerabilidade dada a condição de mulher,
dentro da relação de poder e controle a que submetida. 4. Presentes todos os requisitos exigidos
para configuração de delito cometido em contexto de violência doméstica contra a mulher,
aplicam-se as regras da Lei n.º 11.340/2006 (art. 5º, III e parágrafo único, c/c art. 7º, II), sendo
o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra mulher de Brasília competente para
processar e julgar o feito. 5. Recurso conhecido e provido. 1ª Turma Criminal. Recorrente:
Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios. Recorrido: Julia De Souza Ferreira.
Relator: Desembargador Cruz Macedo, 19 de novembro de 2020. Disponível em:
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211
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_______. Prazo de duração das medidas protetivas de urgência. 2022. Disponível em:
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urgencia>. Acesso em: 05 mai. 2023.

VIEIRA, Thiego Monthiere Carneiro Borges. A responsabilidade internacional do estado


brasileiro: violência doméstica e o caso Maria da Penha. Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Ciências Jurídicos Políticas apresentado em
forma pública da Universidade Portucalense – UPT. 87 f. 2022. Disponível em:
<http://repositorio.uportu.pt:8080/bitstream/11328/4676/1/exemplar_2735.pdf>. Acesso em 4
mai. 2023.

212
A IMPORTÂNCIA SOCIAL DO ADVOGADO FAMILISTA EM AÇÕES QUE
ENVOLVEM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Elisângela Teixeira1
Natalia Mascarelo2

“O passado não é uma bagagem que se possa jogar fora.”


Emily Elizabeth Dickinson, poetisa americana 1830 -1886.

RESUMO
O presente artigo objetiva realizar uma reflexão sobre a importância do advogado que atua em
processos que envolvem crianças e adolescentes no direito de família, visto que, não raras
vezes, os relacionamentos terminam com desgaste emocional e financeiro que reflete
diretamente nesses dois grupos vulneráveis, mesmo que seja de forma subliminar, pois os
clientes não percebem que não estão tendo um comportamento adequado para tratar desse
momento difícil. Por fim, este estudo apresenta algumas contribuições de métodos e técnicas
que estão sendo utilizadas para contribuir com o advogado e com o cliente, mostrando o que
vem ser mais harmônico para contribuir com o bem-estar das crianças e adolescentes.

1. INTRODUÇÃO

Debater, nos cursos de graduação em direito ou de pós-graduação em direito de família,


quais são os direitos e deveres dos pais / responsáveis em relação à família e aos filhos é
importante, mas também é de suma importância discutir, destacar a postura dos futuros
operadores do direito e dos advogados que pretendem atuar nessa área diante da proteção às
crianças e adolescentes. Assim, depreendemos o seguinte questionamento: qual a importância
social do advogado que atua em direito de família?
A motivação para escrever o presente artigo nasceu das aulas ministradas pelo Prof. Dr.
Paulino da Rosa e por diversos outros professores do curso da Fundação do Ministério Público,
inclusive, mais especificamente, no módulo práticas no direito de família para o qual foi
produzido o presente trabalho. Diante da instigação e consequente motivação, o presente artigo
tem como objetivo expor a importância do papel que os advogados exercem na família dos
clientes que atendem e os reflexos desses atendimentos perante a própria sociedade.

1
Advogada, OAB/RS 88.542. Mestre em Direito pela Universidade de Passo Fundo - RS. Especialista em Direito
de Família e Sucessões pela Fundação do Ministério Público RS. Membro do IBDFAM. Conselheira da Subseção
Passo Fundo Gestão 2022-2024. E-mail: elisangelateixeira.adv@gmail.com.
2
Natalia Mascarelo, estudante do 10º nível da Faculdade de Direito da Attitus Educação.
213
A pesquisa tem como objetivo expor as normas que impõem ao advogado o
comportamento proativo em relação às crianças, assim como expor alguns métodos que já estão
sendo utilizados para contribuir com essa visão sistêmica do direito de família.

2. DESENVOLVIMENTO

Sabemos que praticamente todos os cursos de direito ensinam aos estudantes a função
social da advocacia, o que significa dizer que a advocacia possui como finalidade zelar pela
garantia dos cidadãos, com vistas a uma sociedade mais justa e igualitária. Essa importância
vem estabelecida no art. 133 da Constituição Federal e confirmada também pelo art. 2º, §1º do
Estatuto da OAB que pontua: “(...) O advogado é indispensável à administração da justiça. § 1º
No seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social.” Além
disso, os advogados possuem como linha estrutural para sua conduta ética toda a matéria
estabelecida no Código de Ética e Disciplina de 2015.
Adentrando no direito de família, é importante ter consciência da importância do papel
social que o advogado exerce, principalmente, em casos que envolvem crianças e adolescentes.
Observar, avaliar e expressar opiniões que venham a contribuir da melhor forma com esses
seres humanos vulneráveis é essencial para contribuir com um mundo mais justo e solidário.
Algumas famílias conseguem resolver diversas questões e problemas do dia a dia sem
precisar da ajuda de psicólogos, advogados, juízes, mediadores etc. Outras famílias, contudo,
se engalfinham-se em problemas e acabam necessitando da ajuda de profissionais. Pessoas
envolvidas em problemas familiares buscam ajuda, porque, além do problema estar
prejudicando-as, também está prejudicando os outros membros da família (apesar de, muitas
vezes, os clientes enxergarem apenas a si como vítimas e nunca os filhos).
A família é uma instituição básica da sociedade civil e a atuação de seus membros causa
mudanças sociais, culturais, econômicas, tanto dentro da família quanto fora dela, segundo
Rocha et.al.:
O papel da família é extremamente importante, pois ela é o ponto de encontro de uma
gama de tendências que afetam a sociedade como um todo, como igualdade crescente
entre os sexos, o ingresso generalizado de mulheres na força de trabalho, as mudanças
no comportamento e nas expectativas sexuais e as mudanças na relação entre casa e
trabalho.3

3
ROCHA, Leonal Severo. SCHERBAUM, Júlia Francieli N. O. OLIVERIA, Bianca Neves. Afetividade no direito
de família. Curitiba: Juruá, 2018, p. 28.
214
Ao longo da história, a família sempre exerceu um papel de extrema importância no
desenvolvimento do ser humano, adaptando-se, submetendo-se a momentos históricos e
culturais diferentes, mas também sendo epicentro dessas mudanças.
Ainda que se conclua que socialmente vivamos a “modernidade líquida”, podendo
dizer-se que o matrimônio é dissolúvel em um piscar de olhos, a duração das relações é relativa
e a construção de novos modelos dessas relações sejam diversos, não podemos olvidar que
nesses núcleos estão inseridas as crianças e os adolescentes. Essas duas fases da vida não devem
ser “líquidas”, elas devem ser vividas dentro de um tempo de maturação biológica e psicológica
que, se não forem vistas com um olhar de amor, compreensão e segurança, correm o risco de
não serem tão bem vividas e, quiçá, gerar inúmeras consequências futuras.
Dentro dessa perspectiva, exige-se do profissional que atua na área de Direito de Família
e Sucessões uma visão humanizada e sistêmica. Marlise Lech afirma que nós não nascemos
humanos, mas nos tornamos humanos pela via da educação: “O desenvolvimento de uma
consciência mais lúcida, crítica e humana deverá ser o pilar fundamental das ações de todos os
educadores, seja na família, na escola ou na sociedade em geral”4. Apesar da autora falar para
educadores de crianças e adolescentes, essa visão serve também para os advogados de família.
Afinal, ao envolver-se em casos jurídicos que incluem crianças e adolescentes, o
advogado fará parte daquela família por um espaço de tempo e, como profissionais
independentes, podemos ter uma atuação ativa e não mecânica diante dessa história que se
apresentará.
Segundo Paulo Lobo: “(...) A independência é um dos mais caros pressupostos da
advocacia. Sem ela não há rigorosamente advocacia”5, ora, essa independência não só deve ser
exercida perante o poder estatal, econômico ou político, como também perante o cliente.
Significa dizer que o direito de família exige-nos assertividade.
Isso é explicado na prática pelo Professor Conrrado Paulino, quando expressa uma frase
que fica a martelar-nos após assistir às suas aulas ou palestras: “Eu não sou advogado dela ou
dele, sou advogado da criança”, ademais, afirma que, em seus contratos, sempre há uma
cláusula que diz que o cliente deve seguir suas orientações, caso contrário, haverá a renúncia
do caso. Ele vai além, pergunta-nos: “quando eu vou ao médico eu digo o meu diagnóstico e o
remédio que devo tomar? “

4
LECH, Marilise in: ZILIO, Marisa Ponties (organizadora). Uma nova criança para um novo mundo. Passo Fundo,
RS: Editora Meritos, 2014, p. 134.
5
LOBO, Paulo. Ética na advocacia. São Paulo: GEN Jurídico Disponível em:
http://genjuridico.com.br/2018/03/22/etica-da-advocacia/ Acesso em: 21 de maio de 2021.
215
Assim, ter consciência da participação temporária na vida daquela família aliado ao fato
de que devemos exercer a advocacia com independência e com vistas de que essa profissão
exige uma visão, social, justa e igualitária, que são premissas sociais importantes para dizer-se
“advogado de direito de família”.
Sabemos que muitas vezes os clientes usam os filhos como objeto de vingança, de
retaliação, de ganhos financeiros, é um verdadeiro abuso com as crianças e adolescentes e trata-
se de comportamentos, os quais nós, advogados, temos obrigação de observar, de sentir e, acima
de tudo, termos a coragem de falar sobre.
Podemos citar alguns exemplos práticos para servir como uma amostragem: Pai procura
o advogado para promover defesa em ação execução de alimentos. Cliente (pai) conta o quanto
ele é um bom pai, relata em detalhes que cuida do filho aos sábados e, toda vez que a exequente
(mãe) precisa de alguma coisa, ele fornece (comida, frutas, alguma roupa de vez em quando).
Orgulhosamente, fala que basta ela telefonar que ele atende (famosos alimentos in natura).
Novamente questionado se não deposita todos os meses para que a mãe administre os valores,
o cliente afirma com muito orgulho que há muito tempo atende quando “ela precisa”.
Considera-se um ótimo pai e revela-nos que ela é péssima mãe porque bate no filho (mostra
fotos das lesões que ele tirou após uma agressão que ela fez ao filho). Questionado sobre qual
atitude ele teve após a reclamação do filho de seis anos ter sido agredido pela mãe, ele responde
que nada fez, apenas teve uma conversa com ela para que pare de fazer isso ao filho. Na verdade,
após algum tempo de conversa, percebe-se que o casal viveu faz um pacto que está implícito
no comportamento: eu te perdoo por bater em nosso filho e você me perdoa por não pagar
pensão em pecúnica mensalmente (ninguém comunica a justiça). Passado algum tempo, ela
“cessou” as agressões e ingressou na justiça contra ele cobrando as pensões alimentícias.
Afinal, quem é agressor neste caso? Seria o cliente que nos procurou menos violento
que a esposa? A violência é só física ou ela também está nos atos de indiferença, de subjugação
do outro? Ambos estão errados! O cliente precisa ouvir que há uma necessidade urgente de
maior proteção a essa criança. É preciso explicar que o comportamento dele é tão agressor
quanto o da mãe, mesmo que correndo o risco de perder o cliente. Adentrar num processo de
conscientização, utilizando palavras certas e que impactem de alguma forma o cliente é nosso
dever como advogados! Advogados de família são essenciais para promover a conscientização
para mudanças de comportamento (mesmo que seja um trabalho de formiga). Não podemos
deixar apenas para os juízes darem sermões em audiências!

216
Outro exemplo refere-se a um pai que chega no escritório com a atual esposa desejando
uma ação de revisão de alimentos para diminuir a pensão do filho que reside com a ex-esposa
(mãe). A atual esposa não só foi a pessoa que marcou a consulta com o advogado como também
é a que explica o porquê a pensão deve ser reduzida. Após longas explicações, contata-se que
ele já paga um valor irrisório, um percentual mínimo determinando em lei para o filho, ou seja,
o pai da criança não tem coragem de dizer para a atual companheira que não quer reduzir a
pensão dada ao filho, passando, claramente, ao advogado essa função.
Outro exemplo que é muito comum diz respeito aos pais que nos questionam sobre a
possibilidade de exigir prestação de contas, porque entendem ser impossível a criança estar
utilizando todo o valor que ele está pagando. No entanto, ao analisarmos o valor, percebemos
que são valores completamente compatíveis com gastos e que a vida que a criança merece viver
considerando a vida profissional e financeira daquele pai e daquela mãe.
Para não dizer que os exemplos apenas envolvem os homens, também é possível citar
exemplos envolvendo mulheres. Cliente mulher procura-nos para defesa. O pai da criança
ingressou com ação de guarda e, por consequência, a isenção e pagamento da pensão. Ela, a
princípio, chora e diz que acha um absurdo, que é uma boa mãe, que trabalha em prol dos dois
filhos etc. Em audiência de tentativa de conciliação, percebemos que o pai pediu a guarda
porque a mãe passa vinte dias em São Paulo (fato omitido por ela ao advogado), a criança fica
sendo cuidada pela vizinha (que recebe valores da mãe para ficar no cuidado). O pai relata que,
diversas vezes, foi ao bairro e encontrou o filho brincando na rua com outras crianças e acredita
que ele “anda solto”, sem cuidados e, logo, poderá será vítima dos infortúnios sociais. O pai,
que reside em uma casa no mesmo terreno onde sua mãe também tem casa (avó do menino),
conta que, ao lado de sua casa, tem uma excelente escola municipal, além disso, a avó cuida do
menino de bom grado e quer ajudar a cuidá-lo durante o dia. A verdade do processo era visível,
o melhor para o menino era residir com o pai sob a ajuda dos cuidados da avó durante o dia.
Conscientização delicada a ser exposta para a mãe e que não queria perder a guarda, sendo que
a guarda poderia ser compartilhada, mas residência fixa na casa do pai. Todavia, o problema
era a pensão, ela precisava da pensão!
Outro exemplo a considerar é as questões do número de ações envolvendo a mesma
família e a mesma criança, ingressar com diversas ações é inadequado tanto para os clientes
quanto para proteger os interesses da criança. Conforme artigo 55, §3º, do CPC: “Serão reunidos
para julgamento conjunto os processos que possam gerar risco de prolação de decisões
conflitantes ou contraditórias caso decididos separadamente, mesmo sem conexão entre eles.”

217
É importante destacar que há um juízo universal para as questões de família e, por isso, pode-
se reunir ações que sejam conexas ou que não sejam conexas para evitar o risco de decisões
contraditórias. Neste sentido, pode haver uma ação que contenha vários pedidos ou distribuição
por dependência em caso de outra ação que venha a ser necessária, tal como já reconhecido no
RESP 1413016/RJ (a doutrina trata de excepcionalidade e em mesmo grau de jurisdição).
Os exemplos são diversos, sem ao menos ter-se adentrado nas questões de alienação
parental6 que podem ser praticadas por ambos os responsáveis e os exemplos seriam os mais
diversos. Segundo a professora Fernanda Molinari7, a criança continua amando o pai ou a mãe
genitor que faz alienação parental, mas essa relação torna-se extremamente nociva, porque ele
(o alienador) projeta na criança as frustrações dele. Segundo ela, a criança passará a ter os
mesmos sentimentos que o(a) genitor(a) alienador(a), ou seja, passa a ter um modelo
identificatório que, embora não tenha nascido de forma espontânea nela, é um sentimento que
está presente. Esse sentimento pode romper com o vínculo familiar. O vínculo da criança com
o pai ou mãe deve ser incentivado pelos operadores do direito independente de que lado ele
esteja, obviamente, ressalvados os casos de abuso.
Fernanda Molinari explica ainda que dificilmente o vínculo da criança romperá apenas
com o genitor, rompe com a família, porque acaba envolvendo avós, tios e outros parentes que
poderiam fazer parte da vida da criança.
Por isso, podemos afirmar que o olhar do advogado deve ser multidisciplinar, pois, se
necessário for, é preciso falar sobre a necessidade de acompanhamento psicológico ou de outras
áreas (multidisciplinariedade elencada na própria lei de alienação parental art. 5º e, quando
necessário, em casos graves deve haver a comunicação ao Conselho Tutelar).
Não raras vezes, os clientes buscam o poder judiciário para obter justiça, mas poucos
sabem que um processo pode durar anos e a expectativa de uma sentença favorável ao cliente
como salvação dos problemas que envolvem os pais, crianças e ou adolescentes envolvidos no
processo é uma ilusão. Financeiramente talvez, para alguns casos, a decisão resolverá, mas ela
não solucionará a consciência de um atendimento participativo para a solução de um conflito.

6
O art. 2º, da Lei 12.318/2010, considera alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou
do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao
estabelecimento ou a manutenção de vínculo com este.
7
MOLINARI, Fernanda (Unidade 2, Práticas em Direito de Família, U2, vídeo aula 2, tempo: 3min. à 4min., aula
ministrada no curso de Direito de Família e Sucessões da FMP).
218
Por outro lado, não é incomum encontrar colegas que não possuem a consciência de
uma advocacia colaborativa, não expõem ao cliente a real situação do processo e contribuem
para a falta de diálogo e a duração infinita do processo. Neste sentido, explica Conrado Paulino:

Devido à morosidade que experimentamos atualmente, se antes tínhamos como ditado


popular a célebre frase de “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”, passamos para o
estágio de “aos amigos tudo, aos inimigos, o Poder Judiciário”. Em um país em que
se encontram, atualmente, em tramitação cerca de 90 milhões de processos, que a cada
ano somam-se mais de 22 milhões, é imperiosa a criação de novas alternativas para o
tratamento de litígios familiares, até como forma de concretização da “razoável
duração do processo”, inserida pela Emenda Constitucional nº 45/04, incluindo o
inciso LXXVIII ao art. 5º da Constituição Federal, e, também, como forma de resposta
quantitativa e qualitativa aos conflitos apresentados ao Judiciário.8

É hialina a incapacidade do judiciário em dar soluções aos desentendimentos entre as


pessoas, é preciso criar oportunidades para que os clientes percebam que podem resolver muitos
problemas de forma mais autônoma e sem precisar aguardar uma sentença imposta.

2.1 Métodos adequados ao tratamento do conflito em busca da melhora da percepção dos


pais sobre os cuidados às crianças e adolescentes

Existe, no Brasil, uma política nacional de resolução de conflitos, basta observar que os
legisladores brasileiros andaram bem ao longo dos últimos anos proporcionado incentivos à
negociação direta ou resolução de conflitos que não passem necessariamente pelo poder
judiciário. Podemos citar como exemplo: Lei dos juizados especiais, Lei de arbitragem
9307/096, a Resolução 125/2010 do CNJ, a Lei de mediação 13.104/15, a nova Lei de
arbitragem 13.129/15, e vários artigos do CPC 13.105/15.
Para atuar no Direito de Família é necessário ter consciência das práticas colaborativas
que podem ser utilizadas por advogados, profissionais da saúde mental, especialistas em
crianças, contabilistas etc. Todos os envolvidos no processo podem introjetar para de si a
importância desse diálogo transparente, de boa fé e de assertividade.
No direito de família, na maioria dos casos, a lei é clara quanto ao direito das partes, é
preciso ter assertividade para dizer ao cliente o que pode acontecer, é dever do advogado, assim
como estar aberto a uma negociação, mediação ou diálogo, o que constitui um caminho para
uma resolução mais harmônica e menos impositiva tal como seria uma sentença.

8
ROSA, Conrrado Paulino da. A justiça que tarda, falha: a mediação como nova alternativa no tratamento dos
conflitos familiares. Revista da Faculdade de Direito UniRitter. Porto Alegre: 2010.
219
2.1.1 Conscientizar o(a) cliente através de diálogo assertivo durante os primeiros atendimentos

Os primeiros contatos com o(a) cliente devem iniciar com transparência e assertividade,
obviamente, dando um tempo de desenvolvimento da relação, procurando compreender as
necessidades dele ou dela.
Marshall Rosenberg9 afirma que por trás de todo comportamento existe uma
necessidade. Os clientes procuram os advogados de família porque estão com necessidades que
precisam ser, sob a ótica deles, resolvidas. Muitas vezes, não percebem as necessidades dos
filhos porque estão engolfados por sentimentos que os cegam.
A comunicação não violenta, proposta por Marshall Rosenberg, ensina que devemos
passar por algumas fases para aprimorar o diálogo com o outro, em resumo: observar,
reconhecer os sentimentos, as necessidades e os pedidos que precisam ser realizados. Estudar
a CNV e aprimorar-se no sentido de como expressar-se melhor e poder ajudar os clientes para
além da produção petições e processos, afinal, a cooperação é algo importante para
convivermos bem.
Obviamente, seria impossível resumir toda a técnica proposta por Marshal Rosenberg
apenas em algumas linhas, mas o que podemos afirmar é que existem formas de aprimoramento
na comunicação.
Outra questão importante é incentivar o uso de tecnologia para aproximar pais e filhos,
o acesso aos pais não precisa ficar restrito somente aos dias de visita. As tecnologias podem ser
utilizadas para essa aproximação. Incentivar a cultura do diálogo, fugir da lógica de imposição,
isso estimula a ouvir a criança e o adolescente, assim como incentivar o convívio e a guarda
compartilhada.
E, acima de tudo, dizer ao cliente que o pode judiciário não soluciona os problemas
humanos, a sentença imposta não virá como um passe de mágica que proporcionará vingança
ou solução de sentimentos que só as partes podem resolver. É preciso desenvolver a autonomia
da vontade.

2.2.2 Negociação e advocacia colaborativa

Antes da primeira audiência de conciliação, é possível que os advogados das partes


dialoguem sobre possíveis acordos, autocomposição e muitas questões já podem ir para a
audiência resolvidas. A negociação faz parte da vida, os advogados devem, ou ao menos

9
ROSENBERG, Marshall B. Comunicação não violenta. Técnica para aprimorar relacionamentos pessoais e
profissionais. São Paulo: Editora Ágora, 2006.
220
deveriam, estar abertos a conversar e negociar. Não raras vezes, vemos colegas não
colaborativos.

2.1.3 Conciliação

A conciliação pode ser presidida pelo juiz ou por um terceiro, nos termos do artigo 165,
6§2º, do CPC, e terá como objetivo atingir o acordo, de uma forma mais objetiva. Ela pode ser
mais utilizada quando as pessoas não têm um vínculo anterior, assim como para situações de
menor complexidade. O conciliador pode sugerir soluções. A conciliação na vara de família,
geralmente, é tentada pelo Juiz e, na maioria das vezes, conciliam-se questões incontroversas.
Neste momento, dificilmente, há uma abordagem em relação ao relacionamento de pais e filhos,
mas é a oportunidade para reforçar o pedido de mediação.

2.1.4 Mediação

Outra forma que contribuiu muito para a consciência de melhorar o relacionamento


entre pais e filhos é a mediação. A Resolução nº 125/20120 do CNJ produziu as primeiras
políticas públicas no tratamento de conflitos no nosso sistema jurídico, em seguida, o código
de processos civil de 2015 veio incentivando fortemente os atores do processo para uma atitude
proativa no sentido de promover a mediação de conflitos.
Em uma sessão de mediação, o mediador é neutro e imparcial, mas atua como um
auxiliar da justiça nos termos do art. 149, do CPC, o art. 166, do CPC e elenca os princípios os
quais o mediador deve atuar: independência, imparcialidade, autonomia da vontade,
confidencialidade, oralidade, informalidade e decisão informada. Diferentemente da
conciliação, o mediador não pode sugerir soluções.
O objetivo é chegar a um consenso minimizando disputas, o que pode favorecer a
resolutibilidade dos problemas, levando em consideração que pode ser feita mais de uma sessão,
pois as percepções podem variar no decorrer do processo e os sentimentos e emoções podem
se acomodar.
A mediação pode ser feita fora do Poder Judiciário, determinando-se um número
mínimo de encontros. O que for acordado deve ser levado à escritura pública ou ao judiciário
(caso haja filhos menores). Inclusive o mediador pode ser escolhido pelas partes, nos termos do
art. 168.
Podem ser mediados direitos disponíveis e indisponíveis, no todo ou em parte (art. 698,
CPC), desde que sejam levados a um acordo judicial, parcial ou total, com vistas ao Ministério

221
Público, inclusive o art. 694, do CPC, afirma que é possível parar o processo para poder mediar,
para poder fazer as partes entenderem-se ou para terapia.
Professor Conrado Paulino ensina-nos uma atitude prática e que pode ser aplicada pelos
advogados, trata-se de colocar em seu contrato de honorários o valor de mediação, a ser
realizada por mediador profissional, em até três encontros, além, obviamente, dos honorários
do próprio advogado.
Muitos diriam que isso aumentaria o custo para o cliente. Mas vejamos qual o custo
emocional do processo de cinco, seis ou sete anos? E até mesmo o custo material, não seria
melhor, a depender do caso, resolver de imediato alguma questão? Levando em consideração a
desvalorização imobiliária, levando em consideração juros etc.? Claro, cada caso é um caso,
mas esse exemplo dado pelo professor representa uma imensa mudança de comportamento a
qual, segundo, ele deve ser buscada sempre que possível.10
Logo, é possível a mediação privada antes da petição inicial, art. 3º, da Lei 3.140, Lei
de Mediação afirma que todos os direitos indisponíveis podem ser tratados na mediação, seja
no todo ou em parte, desde que esse acordo seja levado à homologação do juiz e fiscalizado
pelo Ministério Público.
É preciso deixar claro que a lei proíbe que o advogado cumule funções, ele não pode ser
advogado e mediador, é preciso contratar um mediador de fora do escritório.

2.1.5 Constelação

Relevantes para alguns e criticadas por outros, existe a possibilidade de utilização da


constelação para aprimoramento das relações familiares.
Sobre a ótica dos que a consideram um bom método, podemos afirmar que a constelação
sistêmica, desenvolvida por Bert Hellinger, tem sido abordada por inúmeros profissionais como
mais um meio de solução de conflitos. Basicamente, fundamentam o seu uso no art. 139, do
CPC, que preconiza a possibilidade de “(...) outros modos de resolução de conflitos”, e assim
justificam que a Constelação é bem vinda a contribuir nos conflitos de família. Segundo
Lizandra Cericatto, Juíza de Direito, “(...) sob o ponto de vista da análise sistêmica, já se sabe

10
ROSA, Conrado Paulino da. Módulo Práticas em direito de família, Vídeo aula 3, em tempo: 7min-7min37seg.
Curso de Pós Graduação em direito de família e sucessões, Fundação do Ministério Público (FMP): Porto Alegre
– RS.
222
que o conflito sempre está ligado a um fator emocional, em especial aqueles relativos a questões
que envolvem inter-relações pessoais”11 A autora ressalta que:

Importante salientar que existe uma dinâmica oculta no que se refere às motivações
inconscientes das partes; as constelações visam garantir que cada pessoa tenha a
prerrogativa de ser vista em seus direitos e seja ajudada a reconhecer seus deveres. (p.
39).

As pessoas possuem um comportamento padronizado movido pelas próprias emoções


e, muitas vezes, reagindo às emoções que recebem do outro. As constelações ajudam nesse
aprimoramento, aprender a reagir sabendo diferenciar sentimentos e aprendendo a ver a
autorresponsabilidade.
A técnica da constelação exige formação e conhecimento, o que se quer mostrar aqui é
uma das possibilidades para aprimorar os relacionamentos humanos, principalmente os que
envolvem crianças e adolescentes.
Por outro lado, alguns consideram a teoria desenvolvida por Bert Helinger como
pseudociência e, por isso, é preciso esclarecer que o Conselho Federal de Psicologia publicou
a Nota Técnica CFP n. 1º/202312, dia 01/03/2023, declarando seu posicionamento sobre o uso
da Constelação Familiar pela categoria. A nota técnica buscou responder as demandas recebidas
pelos Conselhos Regionais quanto às incompatibilidades éticas entre a Constelação Familiar e
o exercício profissional da Psicologia. Concluiu que os psicólogos não podem mais trabalhar
com essa prática, considerando essa técnica incompatível com o exercício da psicologia, pois
conclui que há inconsistência científica nos estudos relacionados à constelação familiar e
porque há incompatibilidade com o Código de Ética dos Psicólogos e legislações profissionais.
O psicólogo só pode usar técnicas reconhecidas não regulamentadas ou práticas reconhecidas
pela profissão. Assim, o psicólogo não pode oferecer constelação familiar como terapia a seus
pacientes, mas, ao mesmo tempo, o próprio conselho parece contradizer-se na nota quando,
logo em seguida, afirma que não tem uma lista das práticas reconhecidas, mas que essas práticas
são advindas da ciência que é desenvolvida na academia ou em pesquisas.

Não é finalidade do presente artigo definir se a constelação é ou não adequada para ser
utilizada nos conflitos de direito de família, isso demandaria um estudo a parte e com certeza
intenso debate. O objetivo deste artigo é apresentar as possibilidades de técnicas que estão

11
CERICATO, Lizandra. p. 13 CERICATO, Lizandra. Justiça Sistêmica. Ressignificando a aplicação do Direito
a serviço da Vida na Nova Era, p. 13.
12
Nota Técnica nº 1/2023, Visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar, também
denominada Constelações Familiares Sistêmicas. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-
content/uploads/2023/03/Nota-Tecnica_Constelacao-familiar-03-03-23.pdf Publicada em: 01/03/2023.
223
sendo utilizadas e podem a vir contribuir no dia a dia do advogado familista, mas sobre a
constelação, é preciso dizer que ela é criticada por uns e ao mesmo tempo amada por outros.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

É hialino que existem, em nosso ordenamento jurídico, diversas leis que


possibilitam um campo fértil voltado à busca de soluções que discutam apenas vencedores e
vencidos, mas que podem contribuir para amenizar os ambientes conturbados que vivem as
crianças e os adolescentes. Não basta ser fiel ao Estatuto da OAB ou fazer as melhores petições,
visto que, na advocacia familista, é preciso ir além, é preciso ser assertivo, utilizando técnicas
para adaptá-las aos casos concretos que surgem nos escritórios.
A advocacia familista não se resume apenas em receber o cliente, perguntar seu objetivo,
cobrar os honorários e usar de todos os meios jurídicos legais para tentar conseguir fazer com
que o cliente sinta-se feliz, satisfeito e saia dos escritórios de advocacia com a ilusão de que, ao
lado dele, terá um grande guerreiro que buscará a justiça acima de tudo.
Pelo contrário, as crianças e os adolescentes necessitam e exigem-nos uma mudança
cultural e social com vistas a priorizá-las. É dever do advogado familista ser assertivo e chamar
o cliente para a realidade, mostrando que ele tem necessidades, mas que os filhos também têm
e são prioridade. É essencial focar no aprimoramento da relação familiar.
Esta pesquisa não conclui que o diálogo com o(a) cliente que está em conflito interno
com o companheiro ou com os filhos é fácil, muito pelo contrário, sabemos que, na prática, isso
é um desafio.
Por isso, é necessário, primeiramente, senso crítico sobre si mesmo e consciência da
importância do ônus que exerce como advogado familista, depois, é necessário o advogado
investir em educação continuada, transitar em leituras dentro do direito de família e da
psicologia, estudar técnicas de abordagem não violenta e técnicas de fala assertiva para
conseguir conversar de forma transparente, falar com o(a) cliente sobre a necessidade desse
olhar mais humano e solidário voltado para as crianças e para os adolescentes.

224
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CERICATO, Lizandra. Justiça Sistêmica. Ressignificando a aplicação do Direito a serviço da


Vida na Nova Era. Disponível em:
https://l.instagram.com/?u=https%3A%2F%2Flinktr.ee%2Flizandracericato&e=ATONgyS2O
XYEXCUlLkS13BAJkQ2up8onNfh4a6YgfF5hDA9CNyp4aYfEetqdqqyPUJb-
4YIDR4Qv_L3ZrFr6pA&s=1 Acesso em: 24 de maio de 2021.

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Nota Técnica nº 1/2023, Visa a orientar


psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar, também denominada
Constelações Familiares Sistêmicas. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-
content/uploads/2023/03/Nota-Tecnica_Constelacao-familiar-03-03-23.pdf Publicada em:
01/03/2023.

DA ROSA, Conrado Paulino. A justiça que tarda, falha: a mediação como nova alternativa no
tratamento dos conflitos familiares. Porto Alegre: Revista da faculdade de direito da Uniritter,
nº 11, 2010, p. 61 à 71.

D`ANSEMBOURG, Thomas. Deixe de ser bonzinho e seja você mesmo. Como se relacionar
bem com os outros sendo você mesmo. Rio de Janeiro: Ed. Sextante.

ESTROUGO, Mônica Guazzelli. Direito de família: quando a família vai ao tribunal. Capítulo
17, p. 203 à 215. In: ZIMMERMAN, David. COLTRO, Antônio Carlos Mathias.
Organizadores. Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. Campinas: ed. Milennium, 2002.

LECH, Marilise in: ZILIO, Marisa Ponties (organizadora). Uma nova criança para um novo
mundo. Passo Fundo, RS: Editora Meritos, 2014, p. 133-148.

LOBO, Paulo. Ética na advocacia. São Paulo: GEN Jurídico Disponível em:
http://genjuridico.com.br/2018/03/22/etica-da-advocacia/ Acesso em: 21 de maio de 2021.

ROCHA, Leonal Severo. SCHERBAUM, Júlia Francieli N. O. OLIVERIA, Bianca Neves.


Afetividade no direito de família. Curitiba: Juruá, 2018.

ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo. 4. ed. Salvador:
Juspodivm, 2018. Disponível em: www.editora.juspodivm.com.br

ROSEMBERG, Marshall B. Comunicação não violenta: técnicas para aprimorar


relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

PRE0NTISS, Chris. As leis do amor: crie relacionamento dos seus sonhos. São Paulo: Editora
Gente, 2013.

225
PARTICIPAÇÃO FEMININA NA POLITICA BRASILEIRA: DOS
ESTERÓTIPOS DE GÊNERO A VIOLÊNCIA POLÍTICA

Felipa Ferronato dos Santos1

RESUMO

O Estado Democrático de Direito pressupõe a participação de todos e todas nos processos


decisórios. A participação das mulheres na política é de sub-representação em todas as esferas
da politica institucional. Os estereótipos de gênero impostos pela sociedade patriarcal
imprimem aos gêneros o que se espera de cada um, seja pelo comportamento, seja pelo local de
atuação. As condições naturalizadas neste sentido causam prejuízos às mulheres também na
esfera política, seja pela condição de subalternidade, seja pela ausência de tempo para o
desempenho. Ás eleitas ainda são reservadas condições de violência que parecem ter o objetivo
de afasta-las do local. As situações de violência política de gênero promovem a invisibilidade,
o afastamento, a violação de direitos das mulheres e causam impactos para além do próprio
alvo.
Palavras-chave: Mulheres. Gênero. Violência política.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo busca analisar a condição da mulher brasileira na ocupação dos cargos
políticos institucionais. No Brasil 52% do eleitorado são do gênero feminino, porém a
representatividade das mulheres na política instrucional é mínima: “De acordo com o TSE, em
2020, por exemplo, foram eleitas 661 prefeitas, o que corresponde a 12,08% e 9.138 vereadoras,
representando 16,04%” (ZSCHIESCHANG, 2022, p. 62), e, nas eleições gerais de 2022, 18%
dos candidatos eleitos para o Poder Legislativo são mulheres.
O pequeno espaço ocupado pelas mulheres nos cargos políticos é resultado do sistema
patriarcal que delimita a atuação das meninas e mulheres, estabelecendo desde muito cedo o
espaço e a forma de viver que se espera dos gêneros. À mulher, historicamente é reservado o
espaço doméstico, privado, enquanto que para o homem, é construída uma imagem, já
naturalizada, de que lhe pertencem os ambientes públicos de decisão.
O problema de pesquisa surge então da analise destas situações, buscando demonstrar
que, às mulheres são impostos muitos desafios na vida quotidiana, decorrentes dos estereótipos
de gênero. Estes desafios lhes oferecem enorme dificuldades em termos de condições de

1
Advogada; graduada em Direito pela ULBRA; pós graduada em Direito Previdenciário; mestranda do Curso de
Direito da IMED. Lattes: E-mail: felipafs@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/5061881140091433.

226
igualdade de direitos e de oportunidades que refletem também no ambiente político. Conforme
será demonstrado ainda, os desafios perpassam para além dos impasses relativos a participação
feminina, sendo que, às eleitas são expostas a condições de violência política que parecem ser
desestimulantes do exercício da vida pública. Atenta-se ainda ao fato de que, a histórica
exclusão das mulheres dos espaços institucionais é um aspecto que corresponde a violência
política gênero
Sendo assim, em um primeiro momento serão analisados estereótipos impostos pela
sociedade brasileira, decorrentes do sistema patriarcal e machista, que reforçam a ideia de que
a política não seja ambiente para mulheres e produzem uma série de desvantagens às mulheres.
As regulamentações da vida em sociedade são produzidas e analisadas, sob a ótica da maioria
dos eleitos – homens.
Essa situação não combina em um Estado Democrático de Direito, principalmente com
os princípios basilares da igualdade entre os gêneros e do pluralismo político. Portanto, estes
paradigmas merecem ser quebrados para que o exercício da cidadania se dê de forma plena e a
democracia seja fortalecida.
Em um segundo momento, apresenta-se os conceitos relativos a violência política de
gênero, suas formas e seu objetivo, de acordo com a Doutrina acerca do tema e ainda com base
em algumas declarações emitidas por mulheres que ocupam cargos políticos institucionais.
Coleciona-se posicionamentos de mulheres acerca das situações de violência de gênero
cotidianamente vivenciados nos espaços que ocupam.
O presente estudo possui grande relevância na vida em sociedade, ao passo que, envolve
discussão importante aos temas do direito, da democracia, do feminismo e gênero e ainda,
acerca da inclusão social.
O Estado Democrático de Direito pressupõe a participação de todos e todas nos
processos decisórios. A exclusão das mulheres destes espaços, bem como, a invisibilidade e a
exposição a situações violentas em razão do gênero, são condições consolidadas que merecem
analise e combate. O direito representa um importante instrumento de concretização das
garantias previstas na Constituição Federal, motivo pelo qual o debate sobre o tema se faz
necessário a todos aqueles que acreditam no direito como instrumento de transformação social.

2 OS ESTERIÓTIPOS DE GÊNERO

Conforme Thais Zschieschang (2022, p. 27), o machismo, fundador da desigualdade de


gênero, e o sistema patriarcal são condicionantes de estruturação de todas as bases institucionais
227
e promovem uma falsa simetria na relação entre homens e mulheres. É sob essa ótica que se
pretende demonstrar as imposições de gênero promovidas e o quanto essas situações acabam
influenciando no comportamento de homens e mulheres.
De acordo com Ruth Manus (2022, p. 18), quando falamos que estamos inseridos em
uma sociedade patriarcal, não se trata de uma opinião, mas sim de um fato. Estudos nesse
sentido revelam que o patriarcado existe cerca de três mil anos antes de Cristo. Essa estrutura,
existente há tantos anos, faz com que as mulheres acabem cooperando com a manutenção desse
sistema, sem maiores questionamentos acerca do lugar que devam ocupar. Há um
convencimento diário acerca da posição de inferioridade.
As posições de opressão, de submissão e de violência impostas às mulheres, bem como
a situação de força e poder impostas ao homem, não decorrem de um processo natural que possa
ter nascido juntamente com o gênero.

A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes
para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao
mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes
são todas sexuadas), em todo mundo social e, em estado incorporado, nos corpos e
nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de
pensamento e de ação. (BORDIEU, 2012, p. 17)

Bordieu (2012, p. 18) complementa salientando que, a ordem social funciona como uma
imensa maquina simbólica que ratifica a dominação masculina se alicerçando nos seguintes
aspectos: divisão social do trabalho, distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada
um dos sexos, de seu local, seu momento, seus instrumentos; e a estrutura do espaço, opondo o
lugar de assembleia ou de mercado, reservado aos homens e o ambiente da casa, reservado as
mulheres.
Os maiores exemplos da condição imposta a mulher quanto ao espaço doméstico é a
forma com que se tratam as meninas desde o seu nascimento. Os espaços do lar e do cuidado
com os filhos é determinado desde os primeiros brinquedos. Para uma menina, são apresentadas
as bonecas, cozinhas, panelas, ferro de passar roupas, e todos os instrumentos necessários para
o cuidado de um lar. Para um menino, os brinquedos compreendem carros, pistas de corridas,
super-heróis, astronautas, e vários outros brinquedos que possibilitam o empoderamento fora
do ambiente doméstico. Intrinsicamente é delimitado o espaço e a forma de agir que se esperam
dos gêneros.
Além disso, a atribuição das cores azul e rosa, denota claramente a quem os brinquedos
devem servir. Os brinquedos relativos ao cuidado do lar são rosas e por isso, trazem a mensagem
de que somente um dos gêneros que deve brincar.
228
Nesse sentido, muito bem analisa Heleith Saffioti (2011) quando afirma que nessa
situação de poder atribuído aos homens, as mulheres são “amputadas”, sobretudo, no
desenvolvimento do uso da razão e no exercício do poder, sendo socializadas para desenvolver
comportamentos dóceis, cordados e apaziguadores. A autora acrescenta, ainda, que para os
homens o estimulo é contrário, sendo estimulados a desenvolver condutas agressivas, perigosas,
que revelem força e coragem (SAFFIOTI, 2011, p. 35).
Carole Patman (2021 p. 13) faz uma importante reflexão em sua obra denominada de O
contrato sexual, trazendo a ideia de que a história do contrato sexual que estabelece o
patriarcado como forma de vida, também trata a gênese do direito político e explica por que o
exercício desse direito é legitimado; porém, essa história trata o direito político como um direito
patriarcal ou instancia do sexual – o poder que os homens exercem sobre as mulheres.
Todas essas características são construções sociais que acabam por pormenorizar o
gênero feminino, dando-lhe atribuições que ficam alheias ao exercício do poder. A divisão
binaria dos sexos tenta (e consegue) atribuir as características ao gênero: “[...] ela legitima uma
relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria,
uma construção social naturalizada.” (BORDIEU, 2012, p. 33)
São estes estereótipos os fatores determinantes para que a política seja atribuído como
um espaço para o homem. “Não é um acaso, mas resultado de um processo cultural articulado
para manter as instituições políticas sem a presença feminina, mesmo no período em que foram
conquistados formalmente direitos civis igualitários” (D’ÁVILA, 2021, p. 139).
É preciso considerar ainda que, em aspectos práticos, no sentido além das situações de
empoderamento e espaço, às mulheres frente ao espaço político é a imposta ainda a dificuldade
acerca do tempo de disposição a participação nos partidos políticos e outros ambientes de
discussões. Os papeis da vida doméstica, especialmente relativos a maternidade promove, nas
palavras de Thaís Zschieschang (2022, p. 33) uma desvantagem social naturalizada, situação
que faz com que exista uma maior aceitação na política de mulheres com posturas próximas a
de homens.
Nesse sentido, vale salientar as palavras de Jô Moraes, atualmente ativista do PCdoB,
mulher que já exerceu os cargos de vereadora, deputada estadual e federal: “Aparentemente,
pode-se pensar que os fatos da vida privada nada têm a ver com a atividade pública. Mas eles
são parte dos obstáculos que as mulheres enfrentam para exercer suas atividades políticas”
(D’ÁVILA, 2021, p. 110).

229
Manuela D’avila (2019, p. 25) menciona que segundo a UNICEF (Fundo das Nações
Unidas para a Infância) em 2017 somente 32,7% das crianças até três anos frequentavam a
creche. A autora então indaga: Quem será que fica com essas crianças? São mulheres, mães e
avós que dedicam parte da vida para a criação dos filhos e netos em detrimento de dedicação
para outras situações, como é o caso da vida política. Atualmente, “conforme o IBGE o índice
aumentou, sendo que, em 2021 são 35,6% as crianças de zero a três anos matriculados em
creches” (GÊNCIA DE NOTICIAS DOS DIREITOS DA INFANCIA, 2021).
Feitas estas considerações acerca dos estereótipos de gêneros impostos, percebe-se que
a invisibilidade das mulheres aos espaços do poder possui forte relação com a forma patriarcal
e machista enraizada na sociedade brasileira. Percebe-se ainda que, a quebra de paradigmas que
encorajem meninas e mulheres a atuar nos espaços de decisões emerge das lutas desencadeadas
pelo feminismo:
As lutas feministas contra o patriarcado aconteceram em diversas partes do mundo,
por séculos os países de centro mantiveram uma ordem androcêntrica, a resistência
então era contra essa ordem pré-estabelecida. No Brasil, igualmente, a heterodoxia
era aparente, a luta também foi contra o patriarcalismo opressor (que na realidade do
país estava enraizado desde o período colonial); dessa forma, analisar o feminismo
nos moldes Brasileiros implica enxergar a luta de mulheres contra uma cultura
machista de acordo com a sua própria realidade histórica, política e social (TERRA,
Org, 2022, p. 217)

Embora o feminismo tenha muitas concepções teóricas é suficiente neste espaço que se
delimite como uma teoria que busca a igualdade de direitos entre os gêneros. Conforme Flavia
Biroli (2018, p. 175), os movimentos feministas no Brasil tiveram grande protagonismo em
momentos importantes da história contemporânea, como por exemplo, no processo de transição
da ditadura para o regime democrático. Desde então, a atuação sistemática do feminismo tem
imprimido perspectivas de gênero a instituições políticas sendo interpretado como um processo
de despatriarcalização do Estado. Nesse sentido, entende-se indissociáveis as pautas relativas a
igualdade de gênero, a quebra de estereótipos e a participação feminina na política, do
feminismo.
Diante disso, tão importante quanto a busca de uma paridade democrática é a análise
das diferenças e o fomento das políticas protetivas no sentido de possibilitar que as mulheres
possam exercer com liberdade seus direitos, especialmente, a participação na política
institucional, ocupando os cargos de poder sem as restrições que lhe são impostas
violentamente, passa-se a analise então, na próxima seção, do tema da violência política de
gênero.

230
3 VIOLÊNCIA POLÍTICA DE GÊNERO

Percebe-se que a invisibilidade da mulher dos espaços políticos de poder decorre de um


processo cultural naturalizado, cujas raízes estão intimamente ligados ao sistema patriarcal e ao
machismo. A exclusão das mulheres do ambiente de decisão que é a política institucional, pode
ser caracterizada como primeiro aspecto relativo a violência política de gênero.

As discussões acerca do tema da violência política de gênero são recentes no Brasil.


Não significa que pratica das situações violentas sejam recentes. É o termo, o nome da
violência, que lhe trouxe visibilidade. Benedita da Silva, mulher negra que ocupa cargos
políticos desde 1983 quando foi eleita vereadora do Rio de Janeiro, representa prova viva de
que as condições violentas na política contra as mulheres não é uma novidade:

Imaginem, em 1982, em plena ditadura, eu, mulher negra e favelada, torne-me a


primeira vereadora do Rio de Janeiro, Claro que não foi nada fácil. Aqueles homens
bem-nascidos não gostavam de uma mulher por lá, ainda mais negra e que morava na
favela. Houve campanha de difamação, agressão por palavras e gestos. Episódios de
racismo velado e também escancarado (D’ÁVILA, 2021, P. 35)

Recentemente, em 2021 foi promulgada Lei relativa ao tema, número 14.192/2021 onde
é conceituada a violência, estabelece normas de prevenção, e, inclusive fixa pena de reclusão
para os casos de violência política de gênero. A legislação é resultado da luta das mulheres
eleitas que, denunciam, principalmente, a impunidade comum nas situações vivenciadas.
As autoras Mona Lena Krook e Juliana Restrepo Sanín (2016) apresentam estudo que
conta com conceitos, debates e soluções relativas à violência política de gênero na América
Latina. Para as autoras, a violência política de gênero de apresenta com as seguintes formas:
física, psicológica, econômica e simbólica, sendo que, as formas podem se inter-relacionar-se
entre si.
A violência física é classificada como toda a violência que afeta integridade corporal de
uma mulher. Conforme as autoras, (2016, p. 139) essa definição abrange a violência sexual,
embora esta esteja em alguns estudos, analisada de forma separada. As evidencias empíricas
indicam que a violência física pode ser perpetrada por pessoas de fora do espaço político, como
ativistas de outros partidos, mas também pode ser infligida por rivais dentro do próprio partido
de uma mulher. “Distingue-se de outros casos de violência física na política por seu objetivo de
impedir a participação de uma mulher como mulher, não como individuo ou membro do partido
por si só (KROOK; SANÍN, 2016, p. 139).
A violência psicológica, de acordo com as autoras mencionadas Krook e Sanín (2016,
p. 139), trata-se de situação que inflige o estado mental ou ao bem estar emocional da vítima,
231
criando ansiedade, depressão e estresse. Nesta categoria estão incluídas as ameaças e todos os
atos destinados a prejudicar socialmente a mulher em questão, sendo que, se incluem os atos de
acusações injustas, como por exemplo, má esposa, mãe ou filha, situações que podem ser
devastadoras em pequenas comunidades locais. Soma-se ainda, o exemplo das falsas acusações
de corrupção que podem manter na memória coletiva a ideia, afetando carreiras políticas das
mulheres.
A violência econômica pode ser definida “como atos que buscam controlar o acesso ou
o comportamento das mulheres no domínio político, restringindo sistematicamente o acesso a
recursos econômicos que, de outra forma, estão disponíveis para homens” (KROOK; SANÍN,
2016, p. 140). Conforme as pesquisadoras, o objetivo da pratica dessa violência é tornar o
trabalho político tão difícil e frustrante que as mulheres sejam levadas a se retirar ou a reduzir
as chances de que as mulheres possam fazer o seu trabalho de maneira eficaz. Salienta-se que,
a falta de apoio financeiro pode representar maiores barreiras paras as mulheres do que os
homens na política.
[...] estudos mostram que o controle coercitivo – uma marca registrada da violência
econômica – pode parecer pior do que a violência física para muitas mulheres. O
controle coercitivo inclui esforços para “machucar, humilhar, intimidar, explorar,
isolar e dominar” as vítimas, uma estratégia essencial sendo a negação ou a
apropriação de recursos econômicos. (KROOK; SANIN, 2016, p. 141)

Percebe-se que, é comum que as situações de violência econômica se iniciem antes


mesmo da candidatura, posto que, na fase de pré candidaturas há analise de distribuição de
fundo partidário e outros apoios financeiros. Ainda, “depois de ganharem cargos políticos, as
mulheres podem enfrentar desafios econômicos adicionais, sendo a mais dramática e onerosa a
negação de seus salários e reinvindicações de despesas” (KROOK; SANIN, 2016, p. 142).
Por fim, o tipo de violência que parece ser mais presente na vida das mulheres que
ocupam os cargos institucionais de poder, a violência simbólica. “A violência simbólica opera
no nível de representação, buscando apagar ou anular a presença das mulheres no cargo
político” (KROOK; SANÍN, 2016, p. 143). Para as autoras, esse tipo de violência procura
deslegitimar através do gênero, negando competência as mulheres na esfera política.
Diagnosticados os tipos de violência, realiza-se brevemente um apanhado de
constatações emitidas por mulheres que exercem cargos políticos institucionais. A partir dos
posicionamentos, percebe-se que, para a mulher brasileira que exerce cargo político, a violência
política de gênero possui objetivo claros objetivos.
Aurea Carolina é Deputada Federal pelo PSOL de Minas Gerais:

232
Acredito que a maioria das mulheres na política, senão todas, sofrem com comentários
sexistas e outras formas de violência por parte de colegas homens. É um dispositivo
capaz de eliminar a nossa presença dos espaços de poder. (D´AVILA, 2021, p. 29)

Isa Penna, deputada Estadual pelo PSOL, foi vítima de violência política de gênero na
sua forma física, mais especificamente, um abuso sexual cometido pelo colega Fernando Cury,
na Assembleia Legislativa de São Paulo, denunciado pela parlamentar em 2020: “Bom, o
momento em si do assedio todos puderam acompanhar. A encoxada e a mão do deputado, que
foi rapidamente removida por mim, trouxeram-me aquela conhecida sensação” (D’ÁVILA,
2021, p. 84).
Jô Moraes, mulher que já ocupou cargos políticos institucionais, é enfática ao dispor
acerca das violências sofridas no ambiente político: “São muitas as facetas da violência que
sofremos enquanto mulheres. Talvez por isso demoremos a compreender como elas são
naturalizadas em nosso cotidiano, invisíveis para nós mesmas” (D’ÁVILA, 2021, p. 116). Jô
afirma ainda que (2021, p. 120), embora alguns dirão que as violências suportadas são pequenas
indelicadezas, as práticas individuais causam a exclusão coletiva das mulheres nos espaços de
poder.
Maria do Rosário é Deputada Federal pelo PT. É parlamentar conhecida quando o
assunto é violência política de gênero em razão de que foi vitima em 2017, na Câmara Federal,
no episódio em que Jair Bolsonaro afirmou que ela não merecia ser estuprada. Esse caso tomou
grandes repercussões junto a mídia brasileira e culminou com a condenação do agressor ao
pagamento de indenização por dano moral. Maria do Rosário é enfática acerca do tema da
violência política de gênero e o seu objetivo: “quem utiliza a violência política de gênero busca
silenciar a mulher, ainda que ela exerça um mandato para qual ela foi eleita” (D’AVILA, 2021,
p. 141).
O núcleo central da violência política de gênero, seja qual for o seu veículo, é
desvalorizar a mulher, destruir sua imagem pública, minar a confiança que inspira nos
demais, marcar publicamente sua vida familiar e sua existência com valores que
rivalizam com grupos determinados e mesmo com o senso comum sobre os papeis
que ela “deva” exercer como mulher. (D’AVILA, 2021, p. 142)

Por fim, cabe ressaltar o caso de violência política ocorrido em 14 de março de 2018,
relativo ao assassinato da vereadora do Estado do Rio de Janeiro, Marielle Franco2. Segundo a
pesquisa Violência Política de gênero e raça no Brasil 2021, a execução de uma parlamentar,
mulher negra, bissexual e defensora de Direitos Humanos marcou a história política do Brasil

2
Vereadora eleita no Rio de Janeiro, com mais de 45 mil votos, assassinada em 14 de março de 2018.

233
e do mundo. O episódio merece destaque quando se faz a análise do tema, demonstrando que o
assunto possui a seriedade necessária de que, além da invisibilidade, da exclusão das mulheres
dos espaços e das violações atinentes a dignidade das parlamentares, os episódio de violência
política ceifa vidas, como foi o caso de Marielle.

Os anos que se seguiram revelaram demonstrações da árdua luta por justiça que se
faria desde então. A elucidação desse caso deveria ter sido encarada como um
compromisso das autoridades brasileiras como nosso estado democrático; um marco
para a justiça brasileira no que tange a defesa de Direitos Humanos e a proteção de
defensoras e ativistas engajadas na política institucional. (INSTITUTO MARIELLE
FRANCO, 2021, p. 16)

Os posicionamentos analisados demonstram que o assunto da violência política de


gênero é conhecido, enfrentado e combatido pelas mulheres que ocupam os cargos políticos
institucionais. Percebe-se que, os casos vivenciados causam prejuízos na vida das
parlamentares, oportunizando que as mulheres experimentem da política de forma
demasiadamente diferente do que se aplica aos homens.
Pinho (2020, p. 5) é enfática ao afirmar que a violência política contra mulheres possui
impacto que vai além das mulheres que sofrem a agressão direta, dado que cumpre o duplo
papel de buscar alijar aquela que é alvo das agressões da política e diminuir o alcance de seu
trabalho, bem como, tem o intuito de passar uma mensagem para todas as outras mulheres no
sentido de que, a esfera pública não é o seu lugar e, caso insistam em disputa-lo, sofrerão
sanções por tal comportamento.
A Lei nº 14.192/2021 representa um passo importante no combate desse tipo de
violência, porém, percebe-se que, para que ambiente político deixe de ser hostil às mulheres é
preciso a quebra de paradigmas culturalmente estabelecidos. Conforme concluem as autoras
Archenti e Albaine (2018, p. 20), as normas que defendem a igualdade na participação política
entre os sexos não bastam para o estabelecimento de uma democracia paritária substancial.
Conforme as autoras, a constituição da democracia paritária substancial requer profundas
mudanças estruturais que causem a transformação e práticas comuns na estrutura político-
institucional com o proposto de autuar contra a violência política de gênero em todas as suas
formas e níveis.

4 CONCLUSÃO

O levantamento teórico realizado acerca da participação feminina na política


institucional brasileira, bem como em relação aos estereótipos de gênero impostos pelo modelo
patriarcal e a violência política de gênero demonstram que, há uma construção enraizada na
234
sociedade brasileira que não só autoriza que o espaço político seja delimitado aos homens, mas
que também, fortalece uma vida cotidiana marcada pela relação de dominação do homem sobre
a mulher.
Percebe-se que, desde muito cedo há uma construção social que repassa características
do que é ser mulher e do que é ser homem, imprimindo características de feminilidade e
masculinidade resultantes do lugar de cada um dos gêneros.

Se repetirmos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com
frequência, ela se torna normal. Se só os meninos são escolhidos como monitores da
classe, então em algum momento nós todos vamos achar, mesmo que
inconscientemente, que só um menino pode ser o monitor da classe. Se só os homens
ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar “normal” que esses cargos
de chefia só sejam ocupados por homens. (Adichie, 2014, p. 14)

No campo político a dicotomia é bastante presente, sendo que, embora existam


ferramentas legislativas no sentido de reafirmar a importância e a necessidade de que o espaço
fosse disponibilizado às mulheres, é possível diagnosticar que uma maior presença de mulheres
na política não foi atingida. Apesar do gênero feminino ser maioria da população eleitoral, as
mulheres representam parcela ínfima nos espaços políticos de poder.
A condição de subalternidade, onde às mulheres é atribuído o espaço doméstico e aos
homens o espaço público, oportuniza que no ambiente político se perpetuem condições de
violência que dificultam o exercício e afastam as mulheres dos espaços públicos de decisão.
Essa situação é comprovada pelo baixo número de mulheres que ocupam os cargos políticos e
o alto número de relatos de violência vivenciados nesses espaços.
A partir dos relatos de mulheres que ocupam cargos políticos institucionais, percebe-se
que a violência política de gênero é presente no cotidiano de cada uma, marcando o espaço de
não pertencimento do gênero feminino aquele ambiente. A reflexão sobre o tema tem
importância extrema no combate da violência política, sendo sinalado o estudo das autoras
Mona Lena Krook e Juliana Restrepo Sanín (2016) que apresentam estudo que conta com
conceitos, debates e soluções relativas à violência política de gênero na América Latina,
diagnosticando e conceituando a pratica da violência nas formas física, psicológica, econômica
e simbólica, sendo que, as formas podem se inter-relacionar-se entre si.
Ressalta-se ainda que, a Lei 14.192/2021 representa importante ferramenta no combate
às violências praticadas, para que o exercício dos cargos políticos possam ser realizados com
plenitude, sendo que, a punição dos agressores parece ser medida educativa e necessária nesse
sentido.
A partir das análises é possível diagnosticar que às mulheres além da exclusão histórica
dos espaços de poder, lhes é reservado um ambiente extremamente violento na vida cotidiana
do exercício de suas funções institucionais. A exposição a situações de violência, conforme
235
seus relatos, possuem os objetivos claros de afastamento e invisibilidade dos ambientes
políticos de decisão.
Marlise Matos (D’ÁVILA, 2021, p. 221) apresenta conclusão acerca do tema, afirmando
que, as manifestações de violência possuem o intuito de fazer as mulheres abandonar a política,
pressionando-as a desistir, primeiro, como candidatas, e depois de eleitas, permanece a pressão
para força-as a abandonaram o cargo político especifico.
Dessa forma, para que uma sociedade seja justa, cujos moldes são democráticos,
amparada pelos princípios da igualdade e do pluralismo político, é preciso que sejam superados
os paradigmas impostos aos gêneros que, menosprezam a capacidade das mulheres, bem como,
lhes colocam em patamar de grande disparidade em relação tanto ao empoderamento para que
exerçam cargos de poder quanto ao tempo dedicado a essas atividades já que o ambiente
doméstico lhes foi atribuído totalmente. Essa superação é medida necessária para que se possa
alcançar a paridade democrática consolidada formalmente, bem como, para que haja o exercício
pleno da cidadania em relação as eleitas e em relação a população representada.

REFERÊNCIAS

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2014.
ANDI, Agência de Notícias dos direitos da infância. Brasil aumenta o número de crianças em
creches e na pré escola, mas segue distante da meta, diz IBGE, disponível em:
<https://andi.org.br/infancia_midia/brasil-aumenta-o-numero-de-criancas-em-creches-e-na-
pre-escola-mas-segue-distante-da-meta-diz-
ibge/#:~:text=De%202016%20a%202019%2C%20a,Geografia%20e%20Estat%C3%ADstica
%20(IBGE)>. Acesso em: 07 de ago. 2022.

ARCHETI, Nélida; ALBAINE, Laura. O feminismo na política. Paridade e violência política


de gênero na America Latina. Cadernos Adenauer XIX, nº 01, 2018.

BORDIEU, Pierre. A dominação Masculina. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2012.

BRASIL, Lei nº 4.121 de 1962. Disponível em:


<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4121-27-agosto-1962-353846-
norma-pl.html>. Acesso em: 06 de ago. 2022.

D’ÁVILA, Manuela. Porque lutamos? Um livro sobre amor e liberdade. São Paulo: Planeta do
Brasil, 2019.

_____. Manuela (Org). Sempre foi sobre nós: relatos da violência política de gênero no Brasil.
Porto Alegre: Instituto e se fosse você, 2021.

INSTITO MARILLE FRANCO. Pesquisa: Violência Política de Gênero e raça no Brasil 2021.
Rio de Janeiro, 2021.
236
KROOK, Mona Lena; SANÍN, Juliana Restrepo. “Gender and political violence in Latin
America”. Política y gobierno, v. 23, n. 1, p. 125-157, 2016.

MANUS, Ruth. Guia prático anti machismo para pessoas de todos os gêneros. Rio de Janeiro-
RJ: Sextante, 2022.

PATEMANN, CAROLE. O contrato sexual. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021.

PINHO, Tássia Rabelo de. Debaixo do Tapete: a violência política de gênero e o silencia do
conselho de Ética da Câmara dos Deputados. 2020. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/ref/a/3L8QwtCMJYN7xktYqSQsbXJ/?lang=pt>.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero Patriarcado, violência. 1ºed. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.

TERRA, Bibiana; Diotto, Nariel; Goularte, Roana Funke, (ORG). Diálogos de gênero:
perspectivas contemporâneas. Cruz Alta: Ilustração, 2021.

ZIECHIESCHANG, Thaís. Mulheres e Política no Brasil: um manual prático de enfrentamento


à desigualdade de gênero. São Paulo: Editora Diáletica, 2022.

237
ANÁLISE DE TIPIFICAÇÃO PENAL EM CRIME DE TRANSFOBIA
LESÃO CORPORAL OU TENTATIVA DE FEMINICÍDIO EM ESTEIO/RS

Flávia Giovana Ferreira Pereira1


Priscila Francielle dos Santos Knoop2
Francieli Raupp Corrêa3

RESUMO
O problema de pesquisa do presente estudo é a análise da tipificação criminal no caso concreto
de LGBTfobia, mais especificamente transfobia, ocorrido no município de Esteio/RS. No caso
de agressão sofrida por uma mulher trans, questiona-se o entendimento do Ministério Público
ao enquadrar o caso concreto como crime de lesão corporal leve por misoginia, nos termos do
artigo 129, § 13, que possui pena de reclusão de 4 a 6 anos, ao invés de enquadrar o caso em
tentativa de feminicídio qualificada, que possui pena mais severa, em decorrência das lesões,
intenção dos agentes e contexto delitivo. A metodologia utilizada para a realização da presente
pesquisa é a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial. Em um primeiro momento, são abordados
conceitos e especificidades da comunidade LGBTQIAPN+, bem como o impacto da
Constituição Federal de 1988 nos direitos dessa comunidade e um breve histórico equiparação
dos crimes de homofobia e transfobia aos previstos na Lei de Racismo. Em seguida, são
analisadas as estatísticas de violência contra pessoas trans e LGBTQIAPN+ no geral, a fim de
demonstrar a vulnerabilidade dessa parcela da população. Por fim, parte-se para o estudo do
caso concreto de transfobia ocorrido em Esteio/RS, sendo realizada uma análise da tipificação
penal dos fatos delituosos, comparativamente à casos ocorridos em outros locais do país.

Palavras-chave: LGBT. Crime de transfobia. Crime de LGBTfobia. Comunidade LGBT.

1 INTRODUÇÃO

Atualmente o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo pesquisa
da organização não governamental Transgender Europe (TGEU, 2022), sendo que as mortes e
agressões em regra são realizadas em locais públicos. Assim, verifica-se que as pessoas
transgêneros acabam sendo vítimas de estigmas e violências provenientes da cultura patriarcal

1
Advogada, OAB/RS 124019, Bacharel em Direito pela Universidade Ritter dos Reis, Canoas/RS. Endereço de
email:giovanaferreira.fvf@gmail.com.
2
Advogada, OAB/RS 126.046, Bacharel em Direito pela Ulbra Canoas/RS. Especialista em Psicologia Forense e
Jurídica pela Unyleya e Pós-Graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela FMP - Fundação Escola Superior
do Ministério Público. Endereço de email:priscilaknoop.adv@gmail.com
3
Advogada, OAB/RS 126.789, Bacharel em Direito pela Ulbra Canoas/RS. Especialista em Direito Penal e
Processo Penal pela FMP - Fundação Escola Superior do Ministério Público e Especialista em Direito Tributário
pelo Damásio. Endereço de e-mail: francielicorrea.adv@gmail.com
238
e heteronormativa em nosso país, cenário que se repetiu recentemente em um município do Rio
Grande do Sul, Esteio/RS.
O município de Esteio está localizado na região metropolitana de Porto Alegre, e
recentemente vivenciou um caso de extrema violência que gerou repercussão e repulsa nacional
após um ato de transfobia em março de 2023, havendo a notícia do crime repercutido pelas
maiores redes de mídia brasileira, tais como Globo, SBT, Record, RBS, entre outras.
O questionamento jurídico no caso concreto ascende a partir do entendimento do
Ministério público acerca da tipificação penal do crime cometido, eis que o entendimento do
órgão foi por enquadrar o caso em apreço como lesão corporal contra a mulher e ameaça,
mesmo que os acusados tenham utilizados materiais para lesionar a vítima que claramente
assumiam o risco de matar, bem como os indivíduos apenas tenham cessado as agressões em
decorrência da intervenção de terceiros. Por fim, cabe mencionar casos semelhantes cometidos
em desfavor de mulheres trans em que o entendimento jurisprudencial é diverso.
Apresenta-se, a seguir, o resultado da pesquisa bibliográfica levada a efeito, a qual, sem
a pretensão de esgotar o debate, visa prestar uma contribuição ao estudo da problemática em
apreço. Em um primeiro momento, são abordados conceitos e especificidades da comunidade
LGBTQIAPN+, bem como o impacto da Constituição Federal de 1988 nos direitos dessa
comunidade e um breve histórico equiparação dos crimes de homofobia e transfobia aos
previstos na Lei de Racismo. Em seguida, são analisadas as estatísticas de violência contra
pessoas trans e LGBTQIAPN+ no geral, a fim de demonstrar a vulnerabilidade dessa parcela
da população. Por fim, parte-se para o estudo do caso concreto de transfobia ocorrido em
Esteio/RS, sendo realizada uma análise da tipificação penal dos fatos delituosos,
comparativamente à casos ocorridos em outros locais do país.

2 CONCEITOS E ESPECIFICIDADES

Inicialmente, é importante referir que a sigla LGBTQIAPN+, é reconhecida em debates


nacionais e internacionais sobre a questão da diversidade sexual e de gênero, sendo utilizada
para designar orientação sexual ou identidade de gênero, conceitos que passaremos a abordar,
bem como o cenário de violência vivenciado por este grupo social.

2.1 Comunidade LGBTQIAPN+

No Brasil, a expressão LGBT atingiu ampla aceitação pública e consenso nacional em


08/06/2008, na I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais
239
(convocada por meio do decreto presidencial de 28 de novembro de 2007), sendo presidida pelo
Secretário Especial dos Direitos Humanos da época que desenvolveu seus trabalhos em torno
da seguinte temática: “Direitos Humanos e Políticas Públicas: O caminho para garantir a
cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais”, evento de grande relevância
nacional que é utilizada como marco para a utilização nacional do termo LGBT.
O termo adquiriu no âmbito da defesa dos direitos humanos e do combate à
discriminação, um papel de grande relevância e reconhecimento, bem como vem em crescente
evolução no reconhecimento de outras siglas a fim de incluir, em sua definição, as pessoas que
se identificam como “queer” (LGBTQ), as pessoas intersexuais (LGBTQI), as pessoas
assexuais (LGBTQIA), pansexuais (LGBTQIAP), não-binarie (LGBTQIAPN) e todas as
demais pessoas representadas por sua orientação sexual ou identidade de gênero
(LGBTQIAPN+) (MANUAL DE COMUNICAÇÃO LGBTI+).
Observa-se que, a complexidade das relações e identidade dos indivíduos no ramo da
sexualidade e identidade de gênero nos permite perceber que a identidade do indivíduo
ultrapassa a perspectiva estritamente biológica. Logo, à mera verificação de fatores genéticos
(cromossomos femininos ou masculinos), gônadas (ovários ou testículos), genitais (pênis ou
vagina) ou morfológicos (aspectos físicos externos gerais) não são suficientes para identificar
a individualidade de cada ser humano, sendo necessária a aferição do gênero, orientação sexual
e posterior sexo biológico.
Em um primeiro momento, devemos observar a expressão de gênero que se trata da
maneira que cada pessoa entende ser em relação ao gênero masculino e feminino, frisando-se
que nem todas as pessoas se enquadram, e nem desejam se enquadrar, na noção binária de
homem/mulher, como no caso de pessoas agênero e queer, por exemplo (MANUAL DE
COMUNICAÇÃO LGBTI+).
Posteriormente, podemos observar a orientação sexual do sujeito, que se trata de um
sentimento involuntário em sentir atração sexual, afetiva e emocional por indivíduos de gênero
diferente, de mais de um gênero ou do mesmo gênero, podendo se manifestar de diferentes
formas, como por exemplo, a homossexualidade, bissexualidade, pansexualidade, dentre outros
seguimentos (MANUAL DE COMUNICAÇÃO LGBTI+, 2018).
Cabe enfatizar, neste ponto, que as designações de gênero e a orientação sexual
constituem elementos essenciais da identidade da pessoa humana, integrando uma das mais
íntimas e profundas dimensões de sua personalidade, colaborando diretamente para a dignidade

240
humana do ser em sociedade, questão que vai além do entendimento ultrapassado dos papéis
sociais do gênero feminino e masculino.
Por fim, podemos mencionar os devidos sexos biológicos, órgãos, hormônios e
cromossomos, sendo o Feminino, composto por vagina, ovários, cromossomos e o Masculino,
composto por pênis, testículos, cromossomos xy,e ainda, cabe mencionar a existência das
pessoas intersexuais que combinam ambos os sexos biológicos (MANUAL DE
COMUNICAÇÃO LGBTI+, 2018).
Neste sentido, nos casos pessoas trans ou transgêneros, estamos diante de pessoas que
possuem uma identidade de gênero diferente do sexo biológico, podendo ser homens ou
mulheres, que procuram se adequar à expressão de gênero que se reconhecem, muitas vezes
recorrendo a tratamentos médicos, terapia hormonal e cirurgia de redesignação sexual. Nestes
casos utilizamos as expressões homem trans e mulher trans (CADERNO, 2017).

2.2 Constituição Federal e pessoas LGBTQIAPN+

Encerrado o longo período autoritário instituído pelo golpe militar em 1964 surge, em
meio a redemocratização do país, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada
na Câmara dos Deputados, em Brasília, pelo Presidente da Assembleia Nacional Constituinte,
o Deputado Ulysses Guimarães, em 5 de outubro de 1988.
Batizada como “Constituição cidadã”, devido ao vasto catálogo de direitos
fundamentais, espelhou a luta de movimentos sociais que buscavam transportar questões da
esfera privada para a pública, trazendo em alguns casos a expressa transformação no corpo do
Texto Maior, como no que diz respeito à igualdade de gênero e banimento das discriminações
de sexo, raça, cor, dentre outras. (SEMINÁRIO, 2008).
A Constituição da República apresenta em seu preâmbulo o objetivo de assegurar os
direitos sociais e individuais, tais como os direitos à igualdade, elencando no artigo 5º da Carta
Magna, os direitos e deveres individuais e coletivos, no caput já afirmando de forma clara que,
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”,
observamos que a Carta Maior contemplou uma perspectiva formal para o princípio da
isonomia, devendo assim o poder legislativo elaborar legislação criminal que venha a punir atos
que venham a implicar a inferiorização de um grupo social em detrimento de outro, o que
acontece com os casos de racismos.

241
Ademais, para evitar a discriminação de gênero, raça e orientação sexual o constituinte
inseriu outros dispositivos constitucionais tais como o art. 3º, que elenca os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, tais como construir uma sociedade livre, justa
e solidária e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação. Em outro momento, o texto maior menciona em seu
art. 5º XLI que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais, devendo o poder legislativo elaborar dispositivos que punam e se mostrem aptos
a coibir ato de racismo e de LGBTfobia.
No art. 5º XLI e XLII o imperativo da criminalização específica de condutas
LGBTfóbicas baseada na tipificação criminal específica do racismo, já que a conduta
preconceituosa com base na sexualidade e gênero do indivíduo se enquadra no conceito
ontológico- constitucional do racismo. Cabe referir, no ponto, em face de sua inquestionável
atualidade, a autorizada lição de PONTES DE MIRANDA, cujo magistério contém grave
advertência, que por ninguém pode ser ignorada:

“Nada mais perigoso do que fazer-se Constituição sem o propósito de cumpri-la. Ou


de só se cumprir nos princípios de que se precisa, ou se entende devam ser cumpridos
– o que é pior (…). No momento, sob a Constituição que, bem ou mal, está feita, o
que nos incumbe, a nós, dirigentes, juízes e intérpretes, é cumpri-la. Só assim
saberemos a que serviu e a que não serviu, nem serve. Se a nada serviu em alguns
pontos, que se emende, se reveja. Se em algum ponto a nada serve – que se corte nesse
pedaço inútil. Se a algum bem público desserve, que pronto se elimine. Mas, sem a
cumprir, nada saberemos. Nada sabendo, nada poderemos fazer que mereça crédito.
Não a cumprir é estrangulá-la ao nascer” (PONTES DE MIRANDA, 1970).

2.3 Equiparação da transfobia de acordo com a Lei de Racismo

Com o advento da Constituição Cidadã e da previsão expressa do Princípio da Igualdade


como um direito fundamental disposto no artigo 5º da Constituição Federal, a legislação contra
o racismo também passou por alterações. A Lei nº 7.716/89, sancionada no ano seguinte à
promulgação do Texto Constituinte, prevê a pena máxima de 5 (cinco) anos para as práticas de
racismo no Brasil, em contraponto à lei anterior, em que se considerava esses atos apenas como
contravenção penal (BRASIL, 2023). Ademais, no ano de 2003 o Supremo Tribunal Federal,
no julgamento do HC 82.424-2 RS/DF, decidiu que o racismo é crime imprescritível e
inafiançável, dando-se mais severidade para a punição desses crimes e seguindo-se assim o
preceito disposto na Carta Magna.
Contudo, o mesmo não ocorreu para a comunidade LGBTQIAPN+, haja vista que a
proposta de criminalização da homofobia, que visava a criminalização dos preconceitos

242
motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero, equiparando-os aos demais
preconceitos que já eram objetos da Lei 7716/89, foi arquivada. O PL 5003/2001, que tramitou
no Senado como o PL 122/2006 e visava criminalizar a homofobia no país, foi arquivado após
passar oito anos no Senado sem aprovação.
À vista disso, diante dessa omissão legislativa foi proposta a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão nº 26 pelo Partido Popular Socialista (PPS). As teses
principais dispostas na petição inicial tinham como objetivo “obter a criminalização específica
de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente (mas não exclusivamente) das
ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões, ameaças e discriminações
motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta, da vida (BRASIL,
2020). Nesse sentido, destaca-se a fala do autor sobre a inércia legislativa em tratar da questão:

O Autor da ação alega que o Congresso Nacional “pura e simplesmente” se recusava


a votar o Projeto de Lei que tramitava na casa desde 2001, tendo inclusive usado uma
manobra para procrastinar sua votação, quando o referido projeto foi apensado no
Projeto do Novo Código Penal (PL 236/2012)125, sabido que a deliberação de um
novo código demoraria anos. Aduz que existe “Má vontade institucional”126 e que
se fazia necessário a atuação da Corte Constitucional, em sua função
contramajoritária, para declarar a inconstitucionalidade por omissão impondo ao
Congresso Nacional a criminalização específica (BARROS, 2020, pág. 29-30).

Nesse sentido, a base constitucional da tese principal se trata do art. 5º, inciso XLII, da
Constituição Federal de 1988, que traz um mandamento de criminalização do racismo, e
subsidiariamente o art. 5º, inciso XLI, da CF/88, que determina que “a lei punirá qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Ademais, cita-se ainda o art.
5º, inciso LIV, da CF/88, que trata do “princípio da proporcionalidade na acepção de proibição
de proteção deficiente”.
À vista disso, em suporte à tese principal considerou-se ainda que o racismo teria o
conceito ligado a qualquer ideologia que pregue a superioridade de um grupo, inferiorizando
outros grupos, firmada pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do Habeas
Corpus nº 82.424/RS, que ficou conhecido como caso Ellwanger (BRASIL, 2020).
Nesse viés, de acordo com o autor, a homofobia e a transfobia estariam abarcadas pelo
conceito de racismo baseado no comportamento de inferiorização da população LGBT por
pessoas heterossexuais cisgêneros. À vista desse contexto, a situação obrigaria o
reconhecimento dessas condutas como forma de racismo, enquadrando-as no tipo penal já
existente, em razão da proteção deficiente à população LGBTQIAPN+.

243
Tendo em conta essas considerações, em junho de 2019 o Plenário do Supremo Tribunal
Federal (STF) entendeu que de fato houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por
não ter editado até o momento uma legislação que criminaliza atos de homofobia e de
transfobia, ficando efetivamente definido na decisão da ADO nº 26 uma interpretação conforme
à constituição do conceito de raça previsto no tipo penal do crime de racismo, na Lei nº
7.716/89.
Dessa forma, se reconheceu a tipicidade de condutas homofóbicas e transfóbicas que se
enquadram em uma tipificação já existente (crime de Racismo), compreendendo-se o conceito
de racismo em sua dimensão social, enquanto uma construção histórico-cultural motivada para
justificar a desigualdade entre aqueles que integram algum grupo vulnerável, neste caso a
comunidade LGBTQIA+ (BARROS, 2020).
Assim, ao reconhecer a omissão legislativa, o STF equiparou os crimes de homofobia e
transfobia, de forma genérica, aos crimes previstos na Lei 7.716, até que o Congresso Nacional
edite lei específica, inclusive determinando que, no caso de homicídio doloso, há circunstância
que o qualifica, por configurar motivo torpe. Conforme a decisão da Corte, ficou decidido que
“praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” em razão da orientação sexual da
pessoa poderá ser considerado crime, sendo a pena de um a três anos, além de multa, ficando
determinando ainda que se houver divulgação ampla de ato homofóbico em meios de
comunicação, como publicação em rede social, a pena será de dois a cinco anos, além de multa.
Por equiparação, o crime de homofobia e transfobia também é inafiançável e imprescritível.

3 ESTATÍSTICAS DE VIOLÊNCIA CONTRA PESSOAS TRANS E LGBTQIAPN+

Atualmente, as palavras homofobia, transfobia e LGBTfobia costumam ser empregadas


para designar aversão, raiva, desprezo, ódio, desconforto e medo – com relação aos membros
da comunidade LGBTI+, podendo ser a violência física ou psicológica contra uma pessoa,
respectivamente em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero,
manifestando-se em agressões, ofensas e atos discriminatórios (STF, MANDADO DE
INJUNÇÃO, 2019 apud JUNQUEIRA, 2007, p. 60-61).
Neste cenário de violências, dados de 2022 apontam que a fração de pessoas transgênero
e mulheres transexuais têm sido alvo preferencial de ataques, sendo 58,24% dos casos (159
mortes), principalmente em espaços públicos, identificando que em 49,82% dos casos de
transfobia acontecem em espaços como as ruas, comércios, academias, dentre outros locais

244
públicos (DOSSIÊ ANTRA, 2022). Inclusive, cabe citar o aumento da violência contra
transexuais brasileiras recentemente:
Segundo o “Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais
brasileiras em 2020”, elaborado a pedido da ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS DO BRASIL - ANTRA, em 2020 houve um
aumento de 43% dos assassinatos contra travestis e transexuais em relação à média da
série histórica de 2009 a 2020. Ou seja, enquanto essa média era de 122,5
assassinatos/ano no referido intervalo de doze anos, os valores absolutos em 2020
alcançaram 175 assassinatos. E, se comparado ao ano de 2008, quando ocorreram 58
homicídios, o percentual de aumento dos homicídios em 2020 chega a 201%
(ROCHA, TEIXEIRA & FERNANDES, 2020, p. 72).

Ainda com o intuito de demonstrar a violência contra LGBT’s, vale advertir que,
cotidianamente, a imprensa veicula notícias relacionadas ao tema, reveladoras do inegável
comportamento misógino, transfóbico e preconceituoso dirigido, com clara motivação de ódio.
Nesse sentido, menciona-se algumas notícias veiculadas de fevereiro à maio de 2023:

a) Fevereiro 2023: A mulher trans é espancada após ser expulsa de boate. De acordo
com a vítima, o suspeito teria se incomodado ao vê-la dançar durante uma festa no
estabelecimento e começou a xingá-la. Logo depois, quando ambos foram colocados
para fora do local, ocorreram as agressões físicas.A vítima ficou com os dentes
quebrados e sofreu fraturas no crânio. Franca-SP (Portal do G1, 2023);
b) Março 2023: Mulher trans foi agredida após ter sido insultada em academia de
Esteio- RS. Investigados foram presos e indiciados por transfobia, injúria, lesão
corporal contra a mulher e ameaça. A vítima sofreu ferimentos no rosto, pernas, mãos
e foi agredida com marteladas e pedradas. Esteio -RS (Portal do G1, 2023);
c) Abril 2023: Uma indígena transexual foi estuprada e agredida. A Polícia Civil segue
em busca do autor do crime, que também é um indígena.A indígena foi agredida a
pauladas, estuprada e teve o rosto desfigurado. Maranhão - MA(Portal do G1, 2023);
d) Maio 2023: Mulher e amiga trans, foram atacadas enquanto estavam a caminho de
uma cavalgada. Inquérito foi aberto e agressores já foram identificados, segundo a
polícia que investiga o caso como tentativa de homicídio; As vítimas sofreram
ferimentos no rosto, pernas, mãos e uma delas chegou a desmaiar. Piratininga (SP)
(Portal do G1, 2023).

Em termos quantitativos, as duas causas mais frequentes das mortes foram: armas de
fogo, com a morte de 74 pessoas (27,11%), e esfaqueamento, com 48 mortes (17,58%). Em
seguida, foram registrados 15 óbitos por espancamento (5,49%), 10 mortes por apedrejamento
(3,66%), 9 assassinatos por objetos perfurocortantes (3,30%) e 8 por estrangulamento (2,93%).
Ressaltamos também que não obtivemos informações sobre a causa mortis de 43 casos
(15,75%) (DOSSIÊ ANTRA 2022).
Salienta-se ainda o alcance pleno da qualificadora de feminicídio às mulheres
transexuais, haja vista que há uma interpretação extensiva da norma penal, porquanto a
expressão “razões da condição do sexo feminino”, contida no artigo 121, §2º, inciso VI, do

245
Código Penal, deve ser interpretada extensivamente aos casos de pessoas transgêneros,
sobretudo considerando-se a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, observa-se que:

Especificamente no que se refere à violência contra mulheres transgênero,


compreende-se que parte é motivada pelo machismo existente em nossa sociedade, e
outra parte é motivada pela transfobia. Ambos os fatores se alimentam e permanecem
vivos por meio de estruturas arcaicas de dominação que utilizam valores, padrões
"adequados" de comportamento, sistemas dominantes de comunicação,
cotidianamente enaltecidos em espaços públicos e privados (ROCHA, TEIXEIRA &
FERNANDES, 2020, p. 77).

Sendo assim, o homicídio qualificado pelo feminicídio não se restringe somente às


pessoas que nasceram com o sexo biológico feminino, abrangendo todas as pessoas
condicionadas ao sexo feminino, haja vista que, nos casos de mulheres transexuais, na maioria
dos crimes cometidos há o claro menosprezo e a discriminação à condição de mulher. Inclusive,
na decisão do STF da ADO 26 e Mandado de Injunção 4733 de 13/06/2019, constou que quando
existe tentativa de feminicídio por transfobia cabe ainda a caracterização do motivo torpe.
Contudo, cabe ressaltar que o relatório apenas demonstra as mortes, que muitas vezes
não são qualificadas como motivadas pela transfobia, ou ainda, deixam de ter a informação no
banco de dados de forma correta acerca do gênero e sexualidade da vítima. Assim, não foi
referido todos os casos de violência.
Neste sentido, salienta-se ainda que a LGBTfobia ultrapassa a discriminação e a
violência contra pessoas LGBTQIAPN+ e associa-se a pensamentos e estruturas relativas a
padrões relacionais e identitários de gênero, reafirmando o entendimento do padrão
heteronormativo como o único socialmente e culturalmente plenamente aceito. Assim, verifica-
se que a violência contra esta parcela da população se configura como um problema social e
político, sendo a LGBTfobia um conceito genérico, relacionado ao preconceito, discriminação
e violência contra pessoas LGBTQIAPN+.
Portanto, o grupo social de pessoas transgêneros hoje no Brasil, infelizmente, é o grupo
que mais sofre violência e morre em locais públicos no país, questão que carece de respaldo
legal (vez que hoje temos apenas entendimentos dos tribunais superiores) a fim organizar e
mobilizar grupos, atitudes, ações e políticas em favor dos direitos das pessoas trans e travestis,
condição que contribui, por ação e/ou por omissão, para o processo de vulnerabilização e
precarização dessa população.

246
4 CASO CONCRETO DE TRANSFOBIA EM ESTEIO/RS

O município de Esteio é um município brasileiro do estado do Rio Grande do Sul,


localizado na região metropolitana de Porto Alegre, com mais de 80 mil habitantes e 120
advogados inscritos na subseção da Ordem dos Advogados Local. Acerca das políticas
municipais voltadas para a comunidade LGBT, destaca-se que o município possui um
ambulatório para atender a população LGBTQIAPN+ da cidade.
Ocorre que, recentemente o município vivenciou um caso de extrema violência que
gerou repercussão e repulsa nacional após um ato de transfobia em março de 2023, havendo a
notícia do crime repercutido pelas maiores redes de mídia brasileira, tais como Globo, SBT,
Record, RBS, entre outras. À vista disso, passa-se à análise minuciosa do caso criminoso e da
sua tipificação legal.

4.1 Do crime ao oferecimento da denúncia pelo Ministério Público

No dia 23 de março de 2023, por volta das 16h20min, em Esteio/RS, um homem, em


comunhão de vontades e conjugação de esforços com um adolescente, em razão de
discriminação e preconceito contra mulher transgênero, injuriou, ofendendo a sua dignidade e
decoro, bem como ameaçou a vítima de causar-lhe mal injusto e grave, qual seja, de agressão.
Na oportunidade, a vítima e sua amiga estavam treinando em uma Academia em Esteio,
quando o denunciado, que ocupava o equipamento situado em frente à vítima que realizava seu
exercício, referiu aos amigos frase de cunho transfóbico contra a dignidade da vítima, passando
a "encará-la”, visando intimidá-la.
Na sequência, a amiga afirmou em voz alta que homofobia era crime, tendo a vítima
saído da academia, incomodada diante da discriminação sofrida, pois é mulher trans. Em razão
das ofensas, das ameaças e das condutas discriminatórias à identidade de gênero da vítima, ela
e sua amiga noticiaram aos funcionários da Academia o ocorrido, pedindo providências e o
dinheiro da matrícula de volta, o que não foi atendido. A vítima então deixou o estabelecimento
junto com sua amiga, dirigindo-se a uma sorveteria e, posteriormente, ao Parque Galvany
Guedes.
Em seguida,, por volta das 16h45min, no Parque Galvany Guedes, localizado no
município de Esteio/RS, o denunciado, conjuntamente com um adolescente, induziu e incitou
outros três denunciados a com eles praticarem atos discriminatórios em relação à comunidade
LGBTQIA+, condutas consistentes na perseguição à vítima e nas agressões físicas contra ela
perpetradas, tudo no contexto decorrente do preconceito à sua condição de mulher transgênero,
247
com golpes de martelo e pedradas. Ainda, utilizaram-se de chutes, socos e pontapés, cessando
as agressões apenas após a vítima fugir do parque e os cidadãos que frequentavam um
supermercado na frente do ato criminoso chamarem a polícia.
O ato criminoso espantoso tomou conta das redes sociais da cidade, em especial o
Facebook, rede em que a irmã da vítima denunciou o ato bárbaro e a falta de preparo dos
profissionais da academia, eis que o ato de transfobia havia iniciado no momento em que o
indivíduo passou ofendendo a dignidade e decoro da vítima. Assim, a irmã da vítima destacou
que a empresa deveria ter convocado a Polícia a partir deste momento, podendo assim ter
evitado as agressões físicas posteriores.
Ante a grande repercussão, a Ordem dos Advogados do Brasil de Esteio foi marcada
nas postagens e prontamente manifestou-se acerca do ato, através da Comissão de Diversidade
Sexual e Gênero da OAB Esteio/RS, vez que é uma entidade de serviço público. Assim,
possuindo como principal objetivo a defesa da Constituição, a ordem jurídica do Estado
democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, bem como pugnar pela boa
aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das
instituições jurídicas.
À vista disso, a referida Comissão entrou em contato com a vítima, a fim de colaborar
com as instruções jurídicas, eis que a vítima, em um primeiro momento, estava
desacompanhada de um advogado. Assim, se dirigiu para a delegacia de Canoas/RS, mais
próxima da cidade, para efetuar o registro através do Boletim de Ocorrência.
Paralelamente ao inquérito policial, em caráter de urgência a seccional do Rio Grande
do Sul, subseção de Esteio/RS, para além do amparo legal proposto pela comissão, realizou a
proposta de um anteprojeto de lei municipal a fim de proporcionar qualificação dos
profissionais de academias, local extremamente heteronormativo, para identificação e atuação
de casos de LGBTQIA+fobias nas dependências de Academias de Educação Física, comércio
crescente no município.
Cabe ressaltar que este caso se trata apenas de um dos casos locais de LGBTQI+fobia
que chegou a público através das mídias sociais e contato direto da vítima com a Comissão de
Diversidade Sexual e Gênero da OAB de Esteio/RS, consolidando localmente o fato de que o
Brasil é um dos países que mais assassina pessoas transexuais, devendo assim a gestão
municipal promover os instrumentos legais disponíveis visando qualificar a mão de obra e os
serviços desses profissionais de grande valia para a atual sociedade.

248
No projeto, em breve síntese, a OAB Esteio/RS propôs à Câmara de Vereadores a
criação colaborativa de um selo entre OAB local e município, que será concedido apenas após
o curso de capacitação. Ainda, propôs a criação de cartilha LGBTQIAPN+ e a criação de
cartazes nos estabelecimentos com orientações em casos de violência, contendo informações
como disques denúncias e quem procurar no próprio local em casos de LGBTfobia.
Assim, a Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da OAB de Esteio/RS se colocou
como instrumento de defesa dos direitos LGBTQIAPN+, principalmente em um município
interiorano que ainda debate e luta firmemente por representações no poder legislativo. Neste
momento a lei depende de aprovação e instrumentalização pelo poder executivo municipal.

No inquérito policial, os envolvidos no fato delituoso foram identificados e presos. No


viés judiciário, a denúncia foi recebida e a ação penal teve início. Contudo, houve a revisão da
prisão preventiva dos réus. Atualmente, todos os denunciados estão em liberdade, sob condição
de manterem a distância mínima de 100m (cem metros) da vítima.

4.2 Análise da tipificação penal do caso concreto

Na denúncia, já recebida pelo Poder Judiciário, o Ministério Público entendeu que o


fato típico enquadrava-se nas seguintes sanções: artigo 2º-A, parágrafo único, da Lei n.º
7.716/89 (injúria discriminatória); artigo 147, caput, do Código Penal (ameaça); artigo 20,
caput, na forma do artigo 20-C, da Lei n.º 7.716/89 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade
por Omissão n.º 26 - Distrito Federal, do STF (prática de atos discriminatórios); artigo 129, §
13, na forma do inciso II do 2º-A do art. 121, ambos do Código Penal, duas vezes (lesão corporal
contra a mulher, em razão de discriminação e preconceito contra mulher transgênero); e do
artigo 244-B, da Lei n.º 8.069 /90, cinco vezes (corrupção de menor de 18 anos).
À vista disso, salienta-se que a agressão sofrida pela vítima, mulher trans, no caso
concreto, foi enquadrada no artigo 129, § 13, na forma do inciso II do 2º-A do art. 121, ambos
do Código Penal. Nesse sentido, destaca-se que a Lei 14.188/21 incluiu um § 13, no artigo 129,
CP, criando uma nova qualificadora quando “a lesão for praticada contra mulher, por razões da
condição do sexo feminino”, com pena cominada de “reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos”.
Conforme deixa claro o artigo 1º. da Lei 14.188/21 essa qualificadora se aplica apenas
aos casos de lesões corporais leves, já que para lesões graves, gravíssimas ou seguidas de morte
já existem punições mais rigorosas. Dessa forma, no presente caso analisado considerou-se os
atos de agressão contra a vítima apenas como lesão corporal, do tipo leve, em razão de
discriminação e preconceito contra mulher transgênero.

249
Contudo, é imperioso destacar as especificidades do caso concreto, que demonstram
que seria possível a denúncia por fato mais gravoso do que a tipificação realizada,
possibilitando assim uma maior sanção penal e diminuindo a impunidade em um caso de
tamanha violência.
Nesse sentido, é necessário observar que a vítima foi agredida com chutes, socos,
marteladas e pedradas, sendo perseguida pelo parque até conseguir por fim correr até a saída,
momento em que as agressões pararam devido ao clamor popular. Salienta-se que os minutos
finais da agressão foram gravados por uma câmera de segurança, em que é possível observar
claramente que um dos suspeitos desferiu golpes de martelo contra a vítima, com tamanha
violência que em determinado momento do vídeo das câmeras de segurança é possível observar
que o martelo voa, devido a força empregada na agressão.
Ainda, é imperioso destacar que as câmeras mostram apenas os segundos finais da
perseguição, haja vista que em momento anterior também houve a agressão com pedras
enormes desferidas contra a cabeça da vítima, que ocasionaram que ela necessitasse de 3 (três)
pontos na cabeça. Nesse sentido, salienta-se ainda a dinâmica dos fatos relatados pela vítima,
bem como as ameaças iniciadas ainda na academia, que reforçam o animus necandi.
Não obstante, há de se considerar que quem agride uma pessoa com um martelo e com
pedras dessa magnitude, assume o risco de matar, ainda mais considerando-se que as pedradas
na cabeça da vítima muito facilmente poderiam tê-la levado à óbito, bem como as marteladas
sem controle. Ademais, é imperioso destacar o fato de que os réus apenas cessaram a agressão
quando a vítima conseguiu fugir do parque e foi socorrida por populares, evidenciando a clara
tentativa de homicídio, que não se consumou apenas por fatos alheios às suas vontades.
Nesse sentido, a doutrina pátria claramente traz a diferenciação entre a tentativa de
homicídio e a lesão corporal através do dolo na conduta, ou seja, a diferença consiste no
elemento subjetivo, haja vista que na lesão corporal o agente tem a intenção de apenas ferir a
vítima (animus laedendi), causando-lhe uma lesão corporal. Entretanto, na tentativa de
homicídio a intenção, ou elemento subjetivo, é matar a vítima (animus necandi), mas por
circunstâncias alheias a sua vontade não consegue consumar o crime de homicídio. Para Júlio
Fabbrini Mirabete, considera-se ainda o risco do resultado:

O dolo do crime de lesões corporais é a vontade de produzir um dano ao corpo ou à


saúde de outrem ou, pelo menos, de assumir o risco desse resultado. É o denominado
animus laedendi ou nocendi, que diferencia o delito de lesão corporal da tentativa de
homicídio, em que existe a vontade de matar (animus necandi) (MIRABETE, 2012,
p. 72).

250
Portanto, é imperioso considerar que as agressões sofridas pela vítima, na cidade de
Esteio/RS, poderiam ter sido enquadradas pelas autoridades de forma mais severa,
considerando-se as ameaças sofridas pela vítima e ainda, todo o contexto delituoso. Nesse
sentido, seria possível o enquadramento em tentativa de homicídio qualificado pelo feminicídio,
bem como por motivo torpe e pela dificuldade de defesa da vítima, haja vista que os três agentes
utilizaram da emboscada para pegar vítima sem condições de defesa e em meio a luz do dia
agrediram-na com socos, chutes, pedradas e marteladas.
Para a vítima, conforme entrevista à Gaúcha ZH, não havia dúvidas do objetivo dos
agressores em tirar a sua vida. Nesse sentido, a vítima falou sobre o seu medo de morrer e do
que sentiu quando foi agredida:

— Eu fazendo meu exercício, ele começou a me xingar. Para os amigos dele, ele dizia:
“esse *****. A hora que eu sair daqui eu vou quebrar a cara dele”. Nós acabamos
discutindo dentro da academia — lembra.
Nervosa, xxxxxx foi embora da academia, mas acabou abordada pelo grupo liderado
pelo homem que a insultou na academia. Um deles segurou a amiga da vítima a
autônoma, que a acompanhava. Os homens atacaram a mulher trans pelas costas.
— Socos, chutes, marteladas, pedradas. Com certeza, eu temi por morrer — desabafa
a vítima.
As agressões cessaram porque pessoas que estavam em um mercado próximo
começaram a gritar e pedir que o grupo parasse (MARTINS, 2023).

Salienta-se ainda que as agressões cessaram graças à intervenção e clamor social, haja
vista que os consumidores do mercado próximo ao parque viram a vítima sendo agredida,
pediram para pararem as agressões e chamaram as autoridades. Todavia, ainda que neste
episódio o que restaram foram lesões físicas leves e danos psicológicos graves, é possível
imaginar que se não houvesse populares a vítima poderia muito bem ser apenas mais uma
estatística entre as centenas de mortes de transexuais no país. A própria vítima, em entrevista à
Globo, destacou o fato: "Tem que denunciar, porque a justiça vai ser feita. Não pode se calar.
Se nós nos calarmos, vai continuar acontecendo, acontecendo e acontecendo. A gente só vai
virar estatística" (CAMPOS, 2023).

4.2 Análise comparativa da tipificação

Em casos análogos ao abordado no presente artigo, é possível observar situações em


que houve uma tipificação mais severa pelos órgãos ministeriais, inclusive aceitas pelo Poder
Judiciário. Primeiramente, passa-se à análise do caso de Jéssica Oliveira da Silva, ocorrido no
ano de 2018, em que a mulher transexual foi agredida mediante chutes e socos, além de
utilizarem uma cadeira e uma pedra para ferir a vítima, causando-lhe lesões.

251
O caso foi tratado como tentativa de feminicídio pelo TDJFT, no qual o tribunal proferiu
decisão unânime mantendo o crime como tentativa de feminicídio contra a vítima transexual.
Sobre a tipificação, o desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior disse que “a imputação do
feminicídio se deveu ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher trans da ofendida”
(SANT’ANA, 2019).
Ademais, a Delegada Chefe da DECRIN, Gláucia Cristina da Silva, relatou que as
agressões apenas cessaram depois da intervenção de um terceiro e que a tipificação do crime se
deveu aos instrumentos utilizados para provocar lesões: pedra e cadeira. Desse modo,
considerando-se os indícios de autoria contra os réus em crime doloso contra a vida, a delegada
considerou fundamental preservar a competência do órgão constitucionalmente competente
para a apreciação dos fatos e o seu julgamento (BRASIL, 2019).
O Ministério Público do Distrito Federal (MPDFT) denunciou os acusados pelo crime
de tentativa de feminicídio e a acusação foi aceita pela Justiça. Os agressores recorreram da
decisão, argumentando que não poderiam ser acusados de tentativa de feminicídio, já que a
vítima não é "biologicamente do sexo feminino". Contudo, o MP argumentou pela manutenção
da denúncia, já que “o crime foi praticado contra mulher por razões da condição de sexo
feminino, em menosprezo e discriminação à condição de mulher”. (SANT’ANA, 2019).
Nesse sentido, resta cristalina a aplicação da qualificadora do feminicídio às mulheres
trans. Por fim, no julgado supracitado, conforme exposto ao longo do presente trabalho, a
presença do dolo demonstrou-se essencial para a diferenciação entre a tentativa de homicídio e
a lesão corporal.
Nesse sentido, o magistrado responsável pelo caso considerou que os elementos de
prova produzidos eram suficientes para amparar o juízo de pronúncia, não sendo o caso de
desclassificação para o crime de lesão corporal leve. Assim, não estando afastada de modo
inequívoco a vontade homicida dos agressores, considerou-se que a tese deveria ser submetida
ao conselho de sentença. Conforme é possível observar:

A desclassificação para crime diverso do doloso contra a vida somente seria possível
caso fosse constatada, de plano e sem quaisquer digressões ou conjecturas, a ausência
da intenção de matar ou ao menos da assunção do risco de matar. Na espécie, de
pronto, não é possível descartar o animus necandi, pois há relatos de que, durante as
agressões físicas, os acusados verbalizavam a intenção de matar JÉSSICA e utilizaram
instrumentos hábeis para assim fazê-lo. A propósito, o laudo de perícia criminal n.
14285/2018 concluiu que o fragmento de concreto arremessado contra a vítima é
"eficiente para produzir lesões contusas" (fls. 227-229). No presente caso, os
elementos que compõem o acervo probatório não afastam, de modo inequívoco, a
vontade homicida dos recorrentes, motivo pelo qual a tese deve ser submetida ao juízo
natural da causa - Conselho de Sentença (BRASIL, 2019).

252
À vista disso, é possível afirmar que o principal elemento de diferenciação entre as
práticas criminosas objetos deste estudo, tais quais a lesão corporal contra a mulher e a tentativa
de homicídio, é a análise do dolo, diante da existência do animus necandi, para que seja
configurada qual foi a conduta praticada pelo agente. Contudo, havendo indícios da vontade
homicida, a tese entre lesão corporal e homicídio tentado deve ser julgada pelo órgão
competente, e não de forma preliminar pelo órgão ministerial na forma de omissão na denúncia.
Observa-se que no caso de Jéssica, a vítima também foi agredida a chutes e pontapés,
bem como com pedras e uma cadeira, o que conjuntamente com as ameaças sofridas restaram
suficientes para determinar a tentativa de feminicídio. Contudo, observa-se o comparativo no
caso concreto ocorrido em Esteio/RS: apesar da vítima ter sido agredida por três indivíduos,
também com chutes e pontapés, bem como com um martelo e pedras de grande magnitude, que
causaram lacerações em sua cabeça, suas agressões foram consideradas apenas como lesões
corporais leves. Destaca-se novamente que os agentes não desistiram voluntariamente da
empreitada criminosa, mas cessaram as agressões por razões alheias às suas vontades.
Ademais, destaca-se ainda o caso recente ocorrido no dia 7 (sete) deste mês de maio de
2023, em que duas mulheres transexuais foram atacadas enquanto estavam a caminho de uma
cavalgada em Piratininga, em São Paulo. As vítimas foram agredidas com socos, chutes e
garrafadas na cabeça. Inicialmente, o delegado responsável pelo caso, Dinair José da Silva,
informou que um inquérito de lesão corporal havia sido aberto, contudo, a tipificação do caso
foi rapidamente alterada para tentativa de homicídio e transfobia (BONORA, 2023).

5 CONCLUSÃO

Portanto, ao longo do presente trabalho foram analisados conceitos e especificidades da


comunidade LGBTQIAPN+, bem como um breve histórico da legislação que rege os crimes de
homofobia e transfobia atualmente. Ademais, também foram analisadas as estatísticas de
violência contra pessoas trans e LGBTQIAPN+, bem como o caso concreto de transfobia
ocorrido em Esteio/RS, sendo realizada uma análise da tipificação penal dos fatos delituosos,
comparativamente à casos ocorridos em outros locais do país.
Em relação a análise do caso concreto, é imperioso considerar que as agressões sofridas
pela vítima poderiam ter sido enquadradas pelas autoridades de forma mais severa,
considerando-se as ameaças sofridas pela vítima e ainda, todo o contexto delituoso. A agressão,
enquadrada pelo Ministério Público artigo 129, § 13, na forma do inciso II do 2º-A do art. 121,
ambos do Código Penal, ou seja, como lesão corporal leve contra a mulher, poderia ter sido
253
tipificada como tentativa de homicídio qualificado pelo feminicídio, pela dificuldade de defesa
da vítima e motivo torpe, haja vista que as agressões com socos, chutes, pedradas e martelada
poderiam facilmente ter causado a morte da vítima caso não houvesse a intervenção de
populares.
Inclusive, destaca-se outros casos correlatos em estados brasileiros com vítimas
mulheres trans, em que se considerou a tentativa de feminicídio, inclusive sendo ofertada e
aceita a denúncia pelo Poder Judiciário nesses termos. Com essa análise, é possível concluir
que os elementos de prova produzidos no caso concreto eram suficientes para amparar o juízo
de pronúncia, não sendo o caso de desclassificação para o crime de lesão corporal leve. Ocorre
que, não estando afastada de modo inequívoco a vontade homicida dos agressores, a tese entre
tentativa de homicídio e lesão corporal deveria ter sido submetida ao conselho de sentença,
órgão competente para julgar a questão. Contudo, apesar dos indícios de autoria contra os réus
em crime doloso contra a vida, não houve a preservação da competência do órgão
constitucionalmente competente para a apreciação dos fatos e o seu julgamento.
À vista disso, o ocorreu no caso concreto foi o julgamento preliminar pelos órgãos
policiais e ministeriais, que acabaram por antecipar esse juízo. Dessa forma, o caso já adentrou
no judiciário sendo julgado de forma mais branda do que deveria. Assim questiona-se se o caso
não seria tratado com mais severidade pelo juízo competente para realizar esse juízo de valor,
evitando-se a impunidade e a liberdade antecipada dos réus.

REFERÊNCIAS

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Acesso em: 20 mai. 2023.

256
CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL CONTRA VÍTIMAS DIVERSAS E
A PROBLEMÁTICA DO CONCURSO DE CRIMES

Francine de Carvalho Machado1


Josiane Petry Faria2

1 INTRODUÇÃO

O capítulo tem como tema o questionamento da possibilidade de aplicação da regra de


continuidade delitiva nos crimes de estupro de vulnerável, praticado contra crianças e
adolescentes e quando ocorrer contra mais de uma vítima, diante de uma possível relativização
do dano psicológico gerado à vítima pelo evento traumático e uma injusta aplicação da regra
nestas situações, onde será feita a análise de decisões com entendimentos diferentes,
entendendo alguns tribunais à luz da regra da continuidade delitiva e outros utilizando o
concurso material na dosimetria da pena, quando o crime for praticado contra vítimas diversas.
Desta forma, o presente estudo iniciou diante da busca por decisões judiciais sobre os crimes
de estupro de vulnerável cometidos contra mais de uma vítima em um mesmo contexto fático,
analisando essas ocorrências extrai-se o entendimento de que não há uma decisão pacificada
nos tribunais em como proceder no julgamento desses casos, onde em algumas decisões se
considera a continuidade delitiva, em outras se considera o concurso material, portanto,
pretende-se analisar os requisitos caracterizadores da continuidade delitiva nestes casos.
Utilizou-se para tanto a pesquisa no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e Superior
Tribunal de Justiça, de decisões durante cinco anos, entre os anos de 2017 e 2022.
Diante disso, buscou discutir sobre os posicionamentos existentes acerca da
aplicabilidade do crime continuado diferenciando da aplicação do concurso material nos crimes
de estupro de vulnerável, utilizando os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta,
e a relativização do dano causado à vítima, analisando o dano psicológico para análise do caso
e fixação da pena.
Deste modo, enseja a discussão sobre a temática, de modo que a aplicação da
continuidade delitiva nos crimes de estupro de vulnerável contra mais de uma vítima pode gerar

1
Francine de Carvalho Machado, graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Passo Fundo –
UPF, advogada inscrita na OAB/RS 131.504, integrante do GT de Produção Científica da CMA da OAB/RS. E-
mail: francinedecarvalhomachado@gmail.com
2
Doutora em Direito, com Pós-doutoramento pela Universidade Federal de Rio Grande, professora permanente
do PPGDireito – UPF, Coordenadora do GT de Produção Científica da CMA da OAB/RS, advogada inscrita na
OAB/RS 50.138; jfaria@upf.br.
257
uma injustiça no julgamento, pela possível relativização do dano psicológico gerado a essa
criança e adolescente, para posteriormente concluir qual a maneira adequada de aplicação e o
porquê de aplicar, ou não, alguma das regras da maneira que é utilizada atualmente pelos
Tribunais. Sendo assim, veremos os princípios de proteção à criança e adolescente, as
definições de estupro de vulnerável, crime continuado e concurso material, como também a
pesquisa sobre como se pode caracterizar esses institutos penais, a relativização do dano
psicológico e a análise da possível injustiça em decisões judiciais.

2 DO ESTUPRO DE VULNERÁVEL: RELAÇÃO ENTRE A VULNERABILIDADE E


AS DOUTRINAS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

A vulnerabilidade pode ser definida como uma condição de fragilidade diante de


determinadas circunstâncias, sendo assim, a criação do conceito de estupro de vulnerável
trazido pela lei, sendo ele um critério jurídico, que possibilita especificar uma categoria de
vítimas, as quais apresentam condições diferenciadas, possuindo um potencial reduzido de
defesa à ataques contra sua liberdade e dignidade sexual, ensejando consequências mais
gravosas diante destas violações, tanto físicas, ou de caráter psicológico (BUSATO, 2017). A
tipificação trazida relacionada a vulnerabilidade informa que ela pode ser em razão de idade,
estado ou condição da pessoa, versando sobre sua capacidade de reagir a intervenção de
terceiros na sua sexualidade, sendo caracterizado como vulnerável, aquela pessoa que esteja
mais suscetível à ação de quem pretende causar lesão à sua liberdade sexual (PRADO, 2021).
Diante desta definição de vulnerável, existem princípios norteadores dessa proteção à
criança e ao adolescente que necessitam ser explanados, pois são de suma importância para a
caracterização desta tutela. Os princípios estão presentes a muito tempo dentro do nosso
ordenamento jurídico, sendo eles os que norteiam a sociedade, a criação de normas e a proteção
dos indivíduos, o que não se mostra diferente aqui, onde existem dois relevantes princípios –
os quais derivam diretamente de um dos maiores princípios existente no âmbito nacional e
internacional, o Princípio da Dignidade da pessoa Humana – sendo eles, o Princípio da Proteção
Integral e o Princípio da Prioridade Absoluta.
O sistema de proteção integral foi adotado pelo Brasil, após aderir a Convenção,
normatizando a Constituição Federal de 1988, como também o Estatuto da Criança e
Adolescente, pela Lei N.º 8.069, entrando em vigor no dia 12 de outubro de 1990, com os
direitos estabelecidos na Carta Magna e no Estatuto da Criança e do Adolescente, determinou-

258
se a proteção da criança contra qualquer forma de exploração e abuso sexual (TAQUARY,
2018).
A Doutrina da Proteção Integral foi introduzida ao nosso ordenamento jurídico somente
com o advento da Constituição Federal de 1988, garantindo às crianças e aos adolescentes a
prioridade absoluta, assegurando a eles direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, dentre
outros, os quais são dever de proteção da família, da sociedade e do Estado (ANDREUCCI,
2021). Como podemos observar no artigo 227 da Constituição Federal, colocando-os a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O princípio da proteção integral consiste na consideração de crianças e adolescentes


como pessoas em peculiar condição de desenvolvimento, a quem se atribui a
qualidade de sujeitos de Direito, independentemente de exposição a situação de risco
ou de eventual conflito com a lei. Esta qualidade os torna titulares de direitos tais
como a vida, a liberdade, a segurança, a saúde, a educação e todos os outros direitos
fundamentais individuais e sociais, como todas as demais pessoas (ZAPATER, 2019,
p. 72.).

Para uma efetivação da proteção integral à criança e ao adolescente, está a necessidade


de serem ouvidos, mas não somente que sejam ouvidos, e sim que estejam em condições para
isso. Deste modo, deve ser levado em consideração o processo de socialização e os diferentes
contextos socioeconômicos, culturais e familiares, mesmo que a probabilidade da violação de
direitos se dê em situações socioeconômicas mais baixas, não se pode deixar de observar que é
possível ocorrer com crianças e adolescentes dentro de um contexto econômico melhor,
necessitando que também possuam uma efetiva proteção (FERREIRA; AZAMBUJA, 2011).
Segundo o que leciona Maciel:

Pela primeira vez foi adotada, em caráter obrigatório, a doutrina da proteção integral,
marcada por três fundamentos: 1) reconhecimento da peculiar condição da criança e
do jovem como sujeito de direito, como pessoa em desenvolvimento e titular de
proteção especial; 2) crianças e jovens têm direito à convivência familiar; 3) as Nações
subscritoras obrigam-se a assegurar os direitos insculpidos na Convenção com
absoluta prioridade (MACIEL, 2021, p. 62).

Ademais, para assegurar os direitos fundamentais e reconhecendo a condição de pessoa


humana, como já visto em Convenções Internacionais, tratando-os como sujeitos de direito, o
Estatuto da Criança e do Adolescente integrou ao seu ordenamento o Princípio da Prioridade
Absoluta, reconhecendo-o como direito à prioridade absoluta em vários aspectos, que foram
mencionados em seu artigo 4º, quais sejam a primazia de receber proteção e socorro em
quaisquer circunstâncias, como também a precedência de atendimento nos serviços públicos ou
de relevância pública. Ainda refere no mesmo artigo que terão preferência na formulação e

259
execução de políticas sociais públicas, além disso, a destinação privilegiada de recursos
públicos em áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Diante da peculiar situação de pessoa em desenvolvimento, existe a necessidade de
modos diferenciados de atendimento, os colocando em prioridade, obtendo as garantias
concedidas a todas as pessoas, mas também assegurar direitos especiais, os quais devem ser
feitos pela família, pelo Estado e pela sociedade.
Desse modo, entrando na seara do vulnerável e sua proteção contra os crimes sexuais,
a Lei N.º 12.015 de 07 de agosto de 2009, trouxe significativas mudanças no Capítulo II do
Código Penal Brasileiro, onde se instituiu o título “Dos Crimes Sexuais contra Vulnerável”
revogando este capítulo que tinha como título “Da sedução e da corrupção de menores”,
contemplando alguns delitos e, principalmente criando o artigo 217-A, que trouxe o tipo penal
do estupro de vulnerável, deixando este de integrar o artigo 213 do Código Penal.
A tutela trazida neste delito visa a preservação da dignidade sexual e a integridade sexual
das pessoas vulneráveis, sendo que estes não gozam de discernimento suficiente para consentir
a prática do ato sexual, estando elencados no artigo 217-A do Código Penal, são os menores de
14 anos, ou aqueles que por enfermidade ou deficiência mental, ou por outra causa não podem
oferecer resistência. (PRADO, 2021). Trata-se de crime comum, ou seja, pode ser praticado por
qualquer pessoa, homem ou mulher, e pode ser vítima, qualquer pessoa, seja do sexo masculino
ou feminino, menor de 14 (quatorze) anos, ou quem, por enfermidade ou deficiência mental
não tenha discernimento necessário para a prática do ato, ou não possa opor resistência.

Nesse sentido, inclusive, o disposto na Súmula 593 do Superior Tribunal de Justiça:


“O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de
ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da
vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de
relacionamento amoroso com o agente”. (ANDREUCCI, 2019, p. 429).

O tipo penal trazido com a alteração da lei, conforme o artigo citado acima, para que
seja configurado este delito, necessita que haja conjunção carnal ou a prática de outro ato
libidinoso, com menor de 14 anos ou com pessoas relacionadas em seu § 1º, não tendo
importância a forma que se realizou o delito, como também não se analisa se houve
consentimento ou não para o ato sexual, demonstrando também que a pena para quem comete
este tipo de crime, é mais severa em relação ao crime de estupro, que está elencado no artigo
213 do Código Penal, tendo a pena de reclusão, de 6 a 10 anos, de modo que a pena para o
crime de estupro de vulnerável é de reclusão, de 8 a 15 anos.

260
Diante as qualificadoras elencadas nos parágrafos 3º e 4º do artigo 217-A, tem-se quanto
ao resultado preterdoloso, que quando resultar lesão corporal de natureza grave, a pena será de
reclusão, de 10 a 20 anos, ou se da conduta resultar morte, será de reclusão, de 12 a 30 anos,
tendo uma equiparação a pena do homicídio qualificado. Outrossim, em se tratando da lesão
corporal de natureza leve, há a absorção dentro da conduta do agente (ANDREUCCI, 2019).
No que tange à prática do crime por ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão,
cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima, podemos verificar
uma condição especial da relação entre a vítima e o autor, diante da alta reprovabilidade do
crime, o qual afeta a relação familiar ou a responsabilidade do autor, se constitui uma causa de
aumento de pena, o qual está disposto no artigo 226, inciso II do Código Penal, sendo assim,
aumentada de metade, se o crime for cometido com relação a alguma dessas características
(BUSATO, 2017).
Como também, outras causas de aumento de pena estão elencadas no artigo 234-A do
Código Penal, onde traz no seu inciso III, a pena será aumentada de metade a 2/3 se o crime
resulta gravidez, e no inciso IV, de 1/3 a 2/3 se o agente transmite à vítima doença sexualmente
transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador, ou sendo a vítima idosa ou pessoa com
deficiência.
Em seu regime inicial de cumprimento e progressão de regime, se verifica a hediondez
do crime de estupro de vulnerável, onde a pena será cumprida inicialmente em regime fechado,
a progressão neste crime ocorrerá após dois quintos, se o condenado for réu primário, e em três
quintos, quando reincidente. Quanto a concessão de livramento condicional, deve-se cumprir
mais de dois terços da pena, e será concedido desde que não seja reincidente específico em
crimes hediondos, sendo vedado anistia, graça, indulto e fiança. O elemento subjetivo deste
crime se caracteriza no dolo da prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, desta forma
não se admite a modalidade culposa.
Portanto, o bem jurídico protegido é o direito ao desenvolvimento sexual normal. Há
uma presunção de violência absoluta, devendo ser levado em consideração os efeitos danosos
que resultam da prática deste crime contra as pessoas que se caracterizam como vulneráveis,
possibilitando que esses efeitos nocivos influam no caráter, formação da personalidade e
equilíbrio psicológico relacionado ao ato sexual. A proteção a liberdade sexual, não se trata de
que possa exercer livremente sua sexualidade, mas alcançar o sentido de que tenha a
oportunidade de desenvolvê-la normalmente, sem que haja violações ou interferências físicas e
morais (BUSATO, 2017).

261
Portanto, após a análise restou demonstrado à condição especial da criança e do
adolescente, de modo que as doutrinas ensejadoras desta proteção buscam colocá-los a salvo de
qualquer exploração e abuso sexual, os classificando também como vulneráveis, constatado
uma reprimenda mais grave quanto aos crimes sexuais praticados contra crianças e
adolescentes, justamente por serem consideradas pessoas em desenvolvimento. Diante disso, o
próximo tópico abordará uma análise quanto ao crime continuado e concurso material, as duas
definições e como é sua forma de aplicação.

3 CONCURSO DE CRIMES: UMA ANÁLISE DO CRIME CONTINUADO E DO


CONCURSO MATERIAL

O concurso material, o qual é estabelecido no art. 69 do Código Penal, ocorrerá quando


o agente praticar, duas ou mais ações ou omissões, obtendo dois ou mais resultados, de maneira
idêntica ou não, que podem ser distinguidos em uma mesma oportunidade, aplicando-se, então,
cumulativamente, as penas privativas de liberdade dos respectivos delitos. Este instituto
desmembra-se em dois tipos, quais sejam o homogêneo, quando o agente, mediante mais de
uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes idênticos, e heterogêneo que se caracteriza
pela prática de crimes não idênticos (NUCCI, 2021). Deste modo, a punição pela prática desses
crimes, denomina-se como sistema do cúmulo material, o qual se dará pela soma das penas da
sanção em que incorre o agente.
Esta espécie de concurso será caracterizada pela pluralidade de condutas e de crimes.
Cabe ressaltar que não necessita de relação de dependência ou de afinidade entre os crimes,
como se o agente tivesse praticado delitos independentes, mas o que define o tratamento como
concurso material é que a apreciação destes se dê em um mesmo processo (PACELLI, 2020).
No que se refere ao crime continuado, nos termos do art. 71 do Código Penal, este não
se caracteriza pelas ações envolvidas, mas sim estabelece que será crime continuado quando o
agente mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie,
ou seja, que atentem contra o mesmo bem jurídico, considerando as condições de tempo, lugar
e maneira de execução, para que seja classificado como continuação do primeiro. Além disso,
um dos requisitos que deve ser debatido é quanto a unidade de desígnios, o que sugestiona, que
para o reconhecimento do crime continuado, deverá ser observado no agente a unidade de
propósito, a qual levou o agente a cometer várias ações ocasionando vários resultados, do qual
diante desta questão existem três teorias (NUCCI, 2021).

262
As teorias existentes são a teoria subjetiva, a qual exige apenas a unidade de desígnio
para que caracterize o crime continuado, sendo a teoria menos utilizada pela doutrina, pois
necessita demonstrar que o agente desde o início da prática do seu crime tenha um único
propósito; a teoria objetiva, sendo que esta não exige a demonstração da unidade de desígnio,
mas somente que sejam apresentados os requisitos objetivos para sua caracterização, com a
prática de crimes da mesma espécie, que foram cometidos em condições de lugar, tempo e
modo de execução, semelhantes; por fim se tem a teoria objetivo-subjetiva, exigindo a prova
da unidade de desígnio como também sejam demonstrados os requisitos objetivos para a
caracterização, sendo esta a teoria mais utilizada para reconhecer o crime continuado (NUCCI,
2021).
Quando se verifica o crime continuado, deve ser aplicado o aumento de um sexto a dois
terços à pena mais grave, quando forem penas diferentes, ou a que corresponde a um dos delitos,
quando forem idênticas. Diante desta decisão um pouco mais discricionária do julgador, ele terá
que analisar o caso concreto e decidir se estão caracterizados os requisitos legais, como também
pode utilizar a existência de unidade de desígnios, ou seja, a intenção de praticar vários crimes.
Ademais, este instituto pode ser utilizado em crimes contra pessoas, conforme o artigo
71 do Código Penal, pois o legislador permitiu que fosse aplicado o aumento de pena até o
triplo em alguns casos, desde que não ultrapasse a pena que seria aplicada caso utilizasse o
concurso material. Observa-se uma importante consideração quanto a continuidade delitiva nos
crimes dolosos contra a vida, cometidos contra vítimas diferentes, com violência ou grave
ameaça, o juiz considerando a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade
do agente, como também os motivos e circunstâncias, poderá aumentar a pena de um só dos
crimes, sendo essas idênticas, ou aumentar a mais grave, se diversas, até o triplo, observando
as regras dispostas no artigo 70, parágrafo único e do artigo 75 do Código Penal (PACELLI,
2020). Desta forma, esta possibilidade por vezes, pode gerar injustiças na aplicação da
continuidade delitiva em crimes contra pessoas, dada a desproporcionalidade deste aumento
quando se tem crimes cometidos contra mais de uma vítima (PASCHOAL, 2015).
A continuidade delitiva ainda se divide em duas espécies, a continuidade delitiva
comum, a qual está estabelecida no artigo 71 do Código Penal, e a específica, situada no artigo
71, parágrafo único, do Código Penal. Na continuidade delitiva comum requer-se que estejam
presentes alguns requisitos, sendo eles a pluralidade de condutas, circunstâncias semelhantes,
como também que os crimes sejam da mesma espécie. Por outro lado, a continuidade delitiva
específica exige os requisitos da comum, acrescentando os requisitos de que o crime cometido

263
seja doloso contra pessoa, haja pluralidade de vítimas e cometidos com violência ou grave
ameaça (NUCCI, 2021).
Em relação à aplicação da pena no crime continuado, é denominado como sistema da
exasperação, no caso da continuidade delitiva comum aumenta-se a pena do crime mais grave,
de um sexto até dois terços, ou de um deles caso idênticos, e quando for o caso de crime
continuado específico, aumenta-se a pena de um sexto até o triplo, deste modo, em inúmeros
casos se demonstra que o agente terá a pena mais branda (ESTEFAM, 2021). Ainda assim,
poderá o juiz, caso verifique que no sistema da exasperação a pena se tornaria superior quando
da aplicação do cúmulo material, utilizar-se da regra do concurso material, percebendo, assim,
que ambas as inovações legais, adotariam penas mais tênues ao sentenciado (GESSER, 2010).
Diante das alterações trazidas pela Lei 12.015/09, aparentemente buscaram reprimir
mais gravosamente as condutas que causam lesão à dignidade sexual, mas, tem se percebido
que, na prática, em muitos casos há um certo abrandamento da punição, especialmente quando
é reconhecido a continuidade delitiva (BASSO, 2012).
Observando as decisões das Turmas dos Tribunais Superiores, analisa-se que existem
diversas maneiras de entendimento, de forma que algumas decisões trazem a continuidade
delitiva e outras o cúmulo material, como o exposto a seguir:

APELAÇÃO. DELITOS CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPROS DE


VULNERÁVEL, EM CONTINUIDADE DELITIVA. ATENTADOS VIOLENTOS
AO PUDOR CONTRA VULNERÁVEL, EM CONTINUIDADE DELITIVA.
CONCURSO MATERIAL ENTRE AS SÉRIAS
DELITIVAS.RECLASSIFICAÇÃO. Considerando as alterações trazidas pela Lei nº
12.015/09 e inexistindo atualmente a tipificação contida na denúncia, vai
reclassificada, de ofício, a conduta do acusado para os lindes do artigo 213, várias
vezes, c/c o artigo 226, inciso II, na forma do artigo 71, caput, (item I); artigo 213,
duas vezes, c/c o artigo 226, inciso II, na forma do artigo 71, caput, (item II); e, artigo
213, duas vezes, c/c o artigo 226, inciso II, na forma do artigo 71, caput, (item III),
todos do Código Penal, tudo em concurso material. MÉRITO. [...]Presente, para todos
os itens descritos da denúncia, a majorante do artigo 226, inciso II, do Código Penal,
na medida em que o acusado é pai das vítimas e, portanto, exercia autoridade sobre
elas. CONTINUIDADE DELITIVA. Mantido o crime continuado, pois demonstrado
que o réu estuprou as vítimas por várias vezes, de forma que as subsequentes devem
ser havidas como continuação da primeira. CONCURSO MATERIAL. Considerando
que os delitos narrados nos itens I e II da denúncia foram praticados nas mesmas
circunstâncias de tempo e local, mas contra vítimas diferentes, deve ser afastado o
concurso material e reconhecida a figura da continuidade delitiva específica, prevista
no artigo 71, parágrafo único, do Código Penal. Segue mantido, todavia, o cúmulo
material entre as infrações penais descritas nos itens I/II da denúncia com o item III,
dada que, nessa última série delitiva, o modus operandi do acusado foi diverso das
demais, já que envolveu duas vítimas em situação integrada de violação da dignidade
sexual. DOSIMETRIA DA PENA. Penas-bases mantidas. Ausentes agravantes e
atenuantes. Readequação da fração de aumento da continuidade delitiva relativa ao
item II. Pena final estabelecida em 35 (trinta e cinco) anos e 03 (três) meses de

264
reclusão, em regime inicial fechado. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA,
POR MAIORIA. (TJ-RS - ACR: XXXXX RS, Relator: Vanderlei Teresinha Tremeia
Kubiak, Data de Julgamento: 13/12/2016, Sexta Câmara Criminal, Data de
Publicação: 16/12/2016).

Diante desta decisão, se têm que foi reconhecido a continuidade delitiva quanto ao
número de estupros praticados contra as vítimas, ante a impossibilidade de quantificar com
exatidão quantas vezes ocorreram, por outro lado utilizou-se também o cúmulo material, de
modo que os delitos foram praticados em mesmas circunstâncias de tempo e local, mas
praticados contra vítimas diferentes, observando a ressalva reconhecendo que deveria ser
aplicado a continuidade delitiva específica, mas seguiu-se mantido o concurso material, com
pena de 35 anos e 03 meses de reclusão, após analisado outra circunstância do crime, da qual
o modus operandi foi diverso das demais.
Outro exemplo, é a decisão proferida pelo STJ em Habeas Corpus nº 483468 GO
2018/0330567-9, pela Quinta Turma, sendo o relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca,
data de julgamento 05/02/2019:

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. INADEQUAÇÃO


DA VIA ELEITA. ESTUPROS DE VULNERÁVEL EM CONTINUIDADE
DELITIVA. PLEITO DE APLICAÇÃO DO ART. 215-A, DO CP. NOVATIO
LEGIS IN MELLIUS. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA. PEDIDO DE
AFASTAMENTO DA CONTINUIDADE DELITIVA ESPECÍFICA.
PROCEDÊNCIA. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA REAL. QUANTUM DE
AUMENTO PELA CONTINUIDADE DELITIVA COMUM. NÚMERO DE
DELITOS. FRAÇÃO DE 2/3. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM
CONCEDIDA, DE OFÍCIO.

A referida decisão apresenta o entendimento de que os crimes praticados contra vítimas


vulneráveis foram desprovidos de violência real, contando apenas com a presunção de
violência, de maneira que não deve ser reconhecida a continuidade delitiva específica,
compreendendo que o aumento é determinado pela quantidade de delitos cometidos, onde neste
caso foram cometidos crimes de estupro de vulnerável, com violência presumida, contra oito
vítimas diferentes, incide a continuidade delitiva simples, devendo ser aplicado o aumento de
dois terços, o que resultou na pena definitiva de 13 anos e quatro meses de reclusão. Analisando
este caso infere-se que mesmo o crime sendo praticado contra várias vítimas, ainda assim
reconheceu a continuidade delitiva simples, somente por não restar comprovado a violência
real, deixando de lado o fato de que a pena mínima para o crime é de oito anos e que foi
efetivamente praticado contra inúmeras vítimas. Neste sentido, percebe-se que não é
considerada a questão do dano psicológico de cada vítima, como também a questão de que são
pessoas distintas e consequentemente se tornam casos diferentes.
265
Diante do exposto anteriormente, há casos em que há relativização do dano psicológico
gerado às vítimas, do qual deveria ser considerado para efeitos de dosimetria da pena e decisão
quanto à utilização da continuidade delitiva, de modo que serão discutidos a seguir os danos
que a violência sexual causa às crianças e aos adolescentes.

4 O DANO PSICOLÓGICO E A AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO DOGMÁTICA


PENAL

De certo modo, crianças e adolescentes que são vítimas de abuso sexual tem um risco
aumentado no desenvolvimento de transtornos psicológicos, do qual outros da mesma idade
não tenham, afetando vários aspectos da vida, como nos relacionamentos interpessoais e
posteriormente sexuais e no desenvolvimento da sua liberdade sexual. Se observa que casos de
depressão, transtornos alimentares, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, crises de
ansiedade, muitas vezes surgem de violências sexuais que sofreram (SILVA; ROSSATO;
LÉPORE; et al. 2012).
Quando da ocorrência de uma violação do desenvolvimento sexual, as sequelas que
permeiam esse fato dependem de como foi praticado, o tipo de abuso sexual, menos ou mais
gravoso, como nos casos em que há penetração, do lapso temporal em que permaneceu a pratica,
como também da idade da vítima e de que espécie de relação possuía com o agressor
(AZAMBUJA; FERREIRA, 2010). Cabe ressaltar, que em alguns casos os danos psíquicos,
podem ser inclusive, mais gravosos que os danos físicos, a partir do episódio de violência
sexual. Conforme leciona Habigzang e Koller “A violência sexual contra crianças e
adolescentes constitui-se como um fenômeno complexo, que apresenta altos índices de
incidência e que pode ocasionar sérias alterações cognitivas, comportamentais e emocionais na
vítima.” (HABIGZANG; KOLLER, 2012). Analisa-se os dados disponibilizados pelo
Infográfico “Notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes no Rio Grande do
Sul, 2012 a 2021” elaborado pelo Comitê Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual contra
Crianças e Adolescentes (CEEVSCA/RS):

266
Foram delimitados como crianças os indivíduos com idade entre 0 e 9 anos e como
adolescentes aqueles entre 10 e 19 anos, conforme a convenção elaborada pela Organização
Mundial da Saúde. Utilizar-se-á os dados de 2017 a 2021, considerando as notificações de
violência sexual tem-se no ano de 2017, 1830 notificações, em 2018 apresenta um significativo
aumento das notificações, que se eleva ao patamar de 2237 casos, no ano de 2019 continua em
elevação chegando ao número de 2540 notificações, em 2020 percebe-se uma redução nestes
números, que chegam a 1961, mas o estudo não traz considerações sobre se esta redução estaria
relacionada à pandemia e uma possível cifra oculta, já em 2021, observa-se um aumento
novamente, estando em 2164 notificações. Dentro destes casos observa-se que na faixa etária
de 0 a 9 anos 73,3% dos casos são de indivíduos do sexo feminino, e na faixa etária de 10 a 19
anos este número eleva, chegando a 89,7% dos casos praticados contra o sexo feminino (CEVS,
2022).
Quanto ao local de ocorrência destas violências sexuais, a informação pela faixa etária
de 0 a 9 anos é de que 78,1% dos casos ocorreram na residência, como também informado pela
faixa etária de 10 a 19 anos, onde 68,3% dos casos ocorreram neste mesmo local. Outro dado
foi quanto ao tipo de violência sexual, sendo o estupro o mais frequente, 65,8% em crianças de
0 a 9 anos e 68,7% em adolescentes de 10 a 19 anos. (CEVS, 2022).
Analisou-se também quanto ao provável autor da agressão, na faixa etária de 0 a 9 anos,
a prevalência se deu em 43% praticado por familiares, 21,9% amigos ou conhecidos, 30,8%
267
outros e 4,3% desconhecidos. Em relação aos adolescentes, 10 a 19 anos, praticado por
familiares foram 31,3% dos casos, por amigos ou conhecidos foram 26,8% dos casos, 27,5%
por outros e 14,3% por desconhecidos, como também quanto ao sexo do agressor, a prevalência
foi o sexo masculino. (CEVS, 2022).
Com estes dados, no Estado do Rio Grande do Sul percebe-se que o tipo penal mais
frequente foi o estupro, um dos mais gravosos, inclusive considerado hediondo; quanto ao local
mais recorrente é a residência, como também prevaleceu a violência praticada por familiares na
maioria dos casos, além disso, o total de notificações de 2017 a 2021 é de 10.732 casos, um
número já elevado, mas que ainda assim provavelmente bem menor do que a realidade, dado
os casos que não são denunciados e não vêm a conhecimento das autoridades competentes.
Segundo Maria Helena M. Ferreira e Maria Regina Fay de Azambuja “a violência intrafamiliar,
ou seja, aquela que ocorre dentro do lar, geralmente apresenta mais dificuldades quanto à
condução do caso, sendo a responsável por danos que podem seguir a vida toda, atingindo não
somente a saúde psicológica como também aspectos sociais e físicos” (AZAMBUJA;
FERREIRA, 2010), tanto para aquele que sofreu o abuso como para os demais familiares.
Sendo assim, a mais comumente violência praticada, a intrafamiliar, podem gerar danos
de difícil enfrentamento no sistema de saúde e no sistema de justiça, de forma que necessita
adentrar no caso, fazer atendimento especializado, principalmente quanto à revitimização,
utilizar-se do Depoimento Sem Dano e Escuta Especializada, por profissional capacitado para
tanto, evitando que haja um abalo psicológico e físico maior do que já ocorreu, atendendo os
princípios constitucionais de Proteção Integral e da Prioridade Absoluta.
Levando em consideração a situação traumática em que aquela criança ou
adolescente viveu diante do abuso sexual, precisa-se evitar a revitimização, não expor aquela
vítima a reviver aquele momento. O processo de cura e superação, conjuntamente com o de
responsabilização do agressor, é vagaroso, mas pode ter redução de danos, quando se utiliza de
maneiras corretas no manejo destes casos, especialmente, quando o caso envolve um agressor
do convívio, por exemplo, um pai, padrasto, avô. Para que isso ocorra, observando os princípios
de proteção às crianças e adolescentes, necessita a cooperação de diversas áreas, um
procedimento interdisciplinar, que integra o sistema judiciário, juntamente com psicólogos,
psiquiatras, assistentes sociais, formando a rede de proteção para assegurar a integridade física
e psicológica desta vítima de violência sexual.
Além desse procedimento bem estruturado, soma-se a resposta adequada a esse crime,
com a consequente condenação deste agressor, conforme expõe Beatrice M. Paulo: “O trabalho

268
da rede de proteção deve estar em sintonia com o sistema de justiça e punição do agressor, pois
um depende do outro para a garantia da proteção integral.” (PAULO, 2012). As normas
jurídicas existentes hoje, o Código Penal, Estatuto da Criança e do Adolescente e a Constituição
Federal, os quais asseguram os direitos dessas crianças e adolescentes, como também a
punibilidade de tais crimes, estão presentes para proteger os valores e a liberdade de
desenvolvimento sexual destes sujeitos, diante disso, a condenação criminal do agressor é a
resposta adequada e que demonstra a reprovabilidade da conduta.
Um julgamento adequado do crime de estupro de vulnerável, analisando todas as
circunstâncias em face dos danos que pode ter causado para as vítimas, é extremamente
necessário, uma vez que se observa um crescimento da notificação dos crimes de estupro de
vulnerável em âmbito nacional, conforme os dados trazidos pelo Anuário Brasileiro de
Segurança Pública do ano de 2022. No último ano 66.020 boletins de ocorrência foram
registrados pelos crimes de estupro e estupro de vulnerável, tendo um crescimento de 4,2% em
relação ao ano anterior, a incidência do crime de estupro de vulnerável é 75,5% dos casos em
relação ao estupro, considerados uma questão de saúde pública muito agravada.
Analisou também que 79,6% dos casos foram de autoria de conhecidos, tornando a
denúncia mais difícil para as vítimas, em relação à faixa etária o grupo que tem percentual maior
é o de 10 a 13 anos, seguindo da faixa etária de 5 a 9 anos, conforme gráfico abaixo:

Considerando o explanado até o momento, uma das preocupações que foram relatadas
no documento é que além dos danos psicológicos, existem efeitos físicos que causam grandes
impactos como a gravidez decorrente do estupro, lesões físicas e doenças sexualmente
transmissíveis. Deste modo, o grau de reprovabilidade desta conduta é elevado e deve ser

269
considerado para fins de análise processual, trazendo uma penalização que se possa equiparar
ao dano gerado.

Observando algumas decisões judiciais exaradas no Tribunal de Justiça do Rio Grande


do Sul, para aferição das consequências do crime, utilizou-se do dano causado a vítima,
informando que uma das vítimas, necessitou de tratamento psicológico e psiquiátrico, passando
a fazer uso de medicação, como também obtiveram notícias de que tenha se automutilado,
perfazendo adequada a aferição negativa.
Mas em outras, apesar da utilização de mecanismo como o Depoimento Sem Dano, do
qual demonstra o sofrimento psicológico em relação àquele evento, efetivamente realizado por
psicólogos e assistentes sociais, buscando diminuir o constrangimento, angústia e medo, para
reduzir os efeitos negativos de revivência deste trauma, não se leva em consideração, os vetores
de prejuízo psicológico, físico e social dessas crianças e adolescentes, como ressaltado no
parágrafo anterior, muitas vezes advindo notícias de depressão, de isolamento social e demais
situações que foram geradas pelo trauma, essas que podem ser curadas em certo prazo, como
também nunca superadas pelas vítimas.
Dito isso, considerando todo o anteriormente explanado, é imprescindível que não haja
relativização do dano gerado pelo evento traumático, de forma que o artigo 59 do Código Penal
dispõe que sejam analisadas as consequências do crime para uma dosimetria de pena adequada,
e quando se refere às vítimas diversas, deve ter uma análise ainda mais minuciosa, pois são
mais de uma pessoa, que reage diferente à violência sofrida, mas ainda assim não pode existir
a descaracterização do dano de uma das vítimas, como se fossem somente um caso.
Sendo assim, é importante que em casos de estupro de vulnerável, sejam analisadas as
circunstâncias e consequências deste crime, que espécie de dano trouxe para a vítima,
especialmente quando se trata de várias vítimas e um agressor, para que de certa forma possa
impedir que se caracterize como uma habitualidade criminosa, como inúmeras vezes ocorre
com essa relativização e unificação pela consideração da continuidade delitiva.

5 DECISÕES NÃO PACIFICADAS E O RECONHECIMENTO DA


CONTINUIDADE DELITIVA EM CRIMES COMETIDOS CONTRA VÍTIMAS
DIFERENTES

Imperioso considerar a não pacificação das decisões judiciais, no âmbito de Tribunal e


Superior Tribunal de Justiça, diante do julgamento do crime de estupro de vulnerável com

270
utilização da regra do concurso material ou da continuidade delitiva, ainda sobre a possível
injustiça na aplicação deste instituto para processos em que exista mais de uma vítima.
Hoje, observa-se a luta pelo combate ao abuso sexual de crianças e adolescentes, com
alinhamentos de sociedade, profissionais da área da saúde, Conselho Tutelar, Delegacias de
Polícia, sendo imprescindível que o judiciário também busque por um tratamento e julgamento
adequado destes casos, pensando nos princípios de proteção que norteiam os direitos das
crianças e dos adolescentes, considerados vulneráveis.
Como se vê, não só a caracterização do crime continuado, como sua apenação, ficam
entregues à discricionariedade do magistrado, o que, aliás, não poderia deixar de ser,
como medida de política criminal que é, para ajustar e individualizar a pena ao que se
revela necessário e suficiente à retribuição e prevenção (REALE JR., 2020, p. 329).

Ao analisar as decisões judiciais, se denota que a maioria dos casos são praticados no
âmbito familiar, ou seja, pelos pais. avôs, tios, irmãos, primos, o que primeiramente dificulta a
denúncia, muitas vezes por medo, tanto de ameaças, desconstituição familiar e de uma questão
recorrente, a descredibilização da palavra das vítimas, que em inúmeros casos é somente a prova
que se tem deste crime. Desta forma, se faz necessário o uso de mecanismos que possibilitam
o diagnóstico desta violência, como o Depoimento Sem Dano ou Escuta Especializada, onde
profissionais da psicologia e assistência social buscam trazer um ambiente favorável e
confortável para que aquelas vítimas revelem de diversas formas o que ocorreu, diminuindo os
danos que poderia gerar uma oitiva na presença de outras pessoas, inclusive do agressor,
evitando os casos de revitimização. Além do depoimento especial, podem ser realizados outros
exames que possibilitam a busca pela verdade, a prova testemunhal, Exame de Corpo de Delito
direito ou indireto, realizado por meio do Exame de Sexologia Forense feito por um Perito
Médico-Legista, como também, se recente o crime, por coleta de material genético.
Esses dados, são costumeiramente encontrados nas decisões judiciais para que seja
comprovado à materialidade e autoria do crime, analisa-se também em relação à quantidade de
crimes praticados contra cada vítima, de modo que seja caracterizada a continuidade delitiva
simples ou interna, onde em certo lapso temporal não se pode precisar quantos crimes foram
praticados, utilização de um sexto a dois terços, adotando as basilares estabelecidas pelo
Superior Tribunal de Justiça, em julgamento de Habeas Corpus N.º 442.316/SP, aplicando-se
um sexto pela prática de duas infrações; um quinto para três infrações; um quarto para 4
infrações; um terço para 5 infrações; um meio para 6 infrações; e dois terços para 7 ou mais
infrações.

271
Analisando um caso de estupro de vulnerável, com decisão exarada pelo Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, praticado contra três vítimas, meninas de 6 anos e 10 anos de
idade ao tempo da ocorrência dos fatos, verifica-se que estas foram ouvidas na fase policial por
psicóloga que prestou atendimento, confeccionando relatórios de avaliações psicológicas; que
o crime foi praticado por um vizinho das famílias; que o crime ocorria na casa do réu quando
as meninas iam ajudar a tratar os animais; quanto ao lapso temporal de ocorrência dos fatos
tem-se que ocorreram todos os dias por pelo menos 3 meses.
Relatado pelos pais que uma das meninas apresentou quadro de depressão, como
também outra apresentou fortes sintomas pós-traumáticos, o que evidencia a dificuldade das
vítimas em rememorar as situações que lhe causaram sofrimento. Diante de toda a averiguação
processual, ressaltou que restou configurado o dolo, de modo que o réu buscou sua satisfação
sexual praticando o crime contra as meninas. A magistrada entendeu pelo alto grau de
reprovabilidade da conduta, afirmando que excedeu o ordinário, uma vez que envolveu uma
criança de seis anos de idade, as penas base foram fixadas em 8 anos e 6 meses de reclusão, em
relação a cada uma das vítimas, como também operou-se o aumento de pena pela continuidade
delitiva, devido a quantidade incerta de vezes que foi cometido o abuso sexual contra cada uma
das vítimas, sendo de dois terços em relação à primeira, e um sexto em relação à segunda e
terceira, utilizando o sistema do cúmulo material, com a soma das penas, a definitiva foi de 33
anos e 11 meses de reclusão.
Observa-se que esta decisão foi analisada o concurso material de crimes,
individualizando a pena de cada vítima, analisando os danos psicológicos e consequências da
violência sexual na vida de cada uma, como também em relação à quantidade de crimes, que
ocorreram quase todos os dias pelo período de 3 meses, do qual não se pode precisar exatamente
quantas vezes este ocorreu, perfazendo correta a utilização das majorantes, somando-se as penas
de cada uma para fixação da pena definitiva, diante disso, resta demonstrado a efetiva
individualização da pena, de modo que foram analisadas as circunstâncias que ocorreram em
cada um dos crimes, não deixando de lado a utilização dos fatores de grau de reprovabilidade
da conduta, como da consideração do dano psicológico gerado nas vítimas.
De outro lado analisou-se decisão em Apelação Criminal, exarada pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, onde foi reconhecida a continuidade delitiva entre
crimes contra vítimas diferentes, se aprovou a oitiva feita no juízo da instrução criminal por
meio do mecanismo do Depoimento Sem Dano, do qual visou proteger a integridade
psicológica e dignidade da criança e do adolescente, se reconheceu a autoria e materialidade,

272
como também afirmou-se que em duas ocasiões o acusado praticou o delito de estupro de
vulnerável contra as vítimas, crianças de 10 e 11 anos de idade à época dos fatos. Confirmou-
se também que foram consumados pelo réu os atos libidinosos diversos da conjunção carnal.
Na fase da dosimetria, a pena do 1º fato foi exasperada em 06 meses em razão das
circunstâncias, e a pena do 2º fato foi aumentada em 01 ano em razão das circunstâncias e
consequências do delito. Deste modo, a pena definitiva foi fixada em 10 anos e 06 meses de
reclusão.
Examinando esta decisão, resta demonstrado que o magistrado utilizou das
circunstâncias e consequências do delito para majorá-lo, como também buscou a proteção das
crianças por meio de depoimento menos danoso, assim como reconheceu a autoria e
materialidade do delito, além de confirmar que houve prática de dois delitos com duas vítimas
diferentes. Ao que se percebe não foram analisados os requisitos para o reconhecimento da
continuidade delitiva específica, ou seja, o lugar, tempo, modo de execução e a unidade de
desígnios, pressupostos necessários para que haja o reconhecimento deste benefício penal,
definindo a pena em 10 anos e 06 meses de reclusão, considerando que a pena mínima para este
crime é de oito anos, examina-se que de fato foi praticamente descaracterizado o crime
praticado contra uma das vítimas, realizando somente a majoração em relação ao outro crime.
Evidencia-se, portanto, que mesmo com a análise feita sobre os danos gerados às vítimas
e que não se tratava de uma simples perturbação à vida das crianças, operou-se a aplicação deste
benefício penal, como se um dos crimes não existisse, uma das vítimas não existisse e não
tivesse gerado um dano psicológico.
Diante destas divergências em decisões, fora realizado uma estatística do número de
decisões exaradas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de
Justiça, visando demonstrar esta incongruência na análise dos processos.
Para isso, foi utilizada a ferramenta de pesquisa jurisprudencial dos Tribunais, filtrando
as que efetivamente possuíam alterações ou que mantiveram as decisões em Tribunais a quo,
pelo período de cinco anos, de 2017 a 2022, extraindo desta estatística os dados que seguem:

273
Julgados dos anos de 2017 a 2022
Concurso Material Crime continuado

9
TJRS
7

8
STJ
12

0 2 4 6 8 10 12 14

Das decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, totalizaram 16
acórdãos, onde 9 casos foram julgados utilizando o concurso material de crimes, de outro lado
em continuidade delitiva, obteve o total de 7 decisões. Já em relação aos julgados do Superior
Tribunal de Justiça, totalizou 20 acórdãos, dos quais 8 foram julgados utilizando o concurso
material e em 12 casos aplicou-se a regra do crime continuado.
Considerando a isso, resta demonstrado que não há um entendimento majoritário entre
os tribunais estaduais e superiores, de qual seria a forma mais adequada para julgar estes casos,
de certa forma observa-se uma tendência para reconhecimento do concurso material em
decisões no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, e a utilização da regra da continuidade
delitiva pelo Superior Tribunal de Justiça. Mas, conforme o explanado até o momento, há muito
tempo busca-se uma proteção superior às crianças e adolescentes em vários aspectos, sendo o
combate ao abuso sexual infantil de extrema importância, visto o crescimento dos casos de
ocorrência de estupro de vulnerável no Brasil, o que aponta uma necessidade de efetividade das
normas de um crime que é classificado como hediondo, possui um grau de reprovabilidade
maior, e ainda assim, por diversas vezes é minorado.
Assim sendo, é imprescindível que políticas públicas sejam criadas para prevenção
destes crimes (FARIA, 2017), como também é de extrema importância uma resposta do
judiciário quanto à interpretação e individualização das penas, utilizando os basilares do artigo
59 do Código Penal, especialmente as consequências do delito para uma dosimetria adequada,
considerando o dano psicológico do momento do crime e da vida após a violência sexual, pois
ainda que sejam crimes praticados em dias diferentes, mas em um mesmo local e modus
operandi igual, não é um crime individual, não se pode esquecer a existência de uma vítima,

274
em detrimento de uma ficção jurídica, um benefício penal, somente considerando o intuito de
praticar diversos delitos, do qual inúmeras vezes não resta caracterizado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de toda a pesquisa, observou-se uma busca por reconhecimento das crianças e
adolescentes como sujeitos de direito, iniciada há muitos anos, sendo reconhecido
primeiramente com a Convenção sobre os Direitos das Crianças, no ano de 1989. Ratificado
pelo Brasil em 1990, posteriormente adentrando à nossa Constituição Federal e ao Estatuto da
Criança e do Adolescente, dos quais se extraiu os Princípios da Proteção Integral e da Prioridade
Absoluta, trazendo importantes avanços na busca pelos direitos deste público.
Por fim, analisaram-se as questões das decisões não pacificadas, sendo estas do Superior
Tribunal de Justiça e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, limitadas aos anos de 2017 a
2022, das quais se extraiu decisões divergentes, algumas examinadas utilizando o concurso
material e outras a continuidade delitiva, destacando que algumas possuíam a utilização do dano
psicológico gerado às vítimas para exame das circunstâncias e consequências do crime, além
de outras que não utilizaram estes dados. Diante disso, demonstrando uma injustiça na aplicação
da regra da continuidade delitiva, uma vez que é desconsiderado os demais crimes, utilizando
somente a pena de um se idênticos ou do mais gravoso se diferentes, realizando a majoração
em relação a pena somente daquele fato, o que de certa forma se caracteriza um benefício penal,
diferente do que se realiza quando opera pelos vetores do concurso material, onde se analisa
em separado cada caso e ao final somam-se as penas.
Conclui-se que é necessário a análise de cada caso, de modo que possa haver a
individualização adequada da pena a cada fato, por se tratarem de vidas diferentes,
circunstâncias e consequências diferentes dentre cada delito, para que se possa realizar um
julgamento justo, considerando todo o sofrimento que aquelas pequenas vítimas
experimentaram, ademais, não se pode esquecer que são consideradas pessoas em
desenvolvimento, de modo que torna este crime tão reprovável, dito isso, reflexiona que o
concurso material de crimes se mostra adequado quando da análise dos casos em vítimas
diversas, utilizando o crime continuado somente nos casos em que não puder precisar quantas
vezes houve a prática do ilícito.

275
REFERÊNCIAS

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nov. 2022.

277
COMPLIANCE CRIMINAL ESTRATÉGIAS PARA PREVENIR CRIMES
CORPORATIVOS E OS IMPACTOS DA LEI ANTICR

Ingrid Fagundes Ziebell1


Carolina Höhn Falcão2
Cinthia Bubolz Heidemann3

RESUMO

Em 2023 a Lei Anticorrupção, Lei n.º 12.846/2013 completa dez anos em vigor. Conhecida por
ter sido, nacionalmente, a primeira lei voltada apenas para a ação contra atos de corrupção,
estipulando responsabilização objetiva à pessoa jurídica pela prática de atos ilícitos contra a
administração pública, é com o aniversário desta legislação e com a também importante Lei
Anticrime – Lei n.º 13.964/2019 – que surgiram inquietações culminando na criação deste
artigo. Ao tempo em que a Lei Anticorrupção acirrou e nacionalizou o debate sobre os
patamares mínimos necessários para a criação de um programa de conformidade – o que antes
era realizado com base em normas estrangeiras – a Lei Anticrime passa a descrever
minuciosamente as etapas da cadeia de custódia que devem ser seguidas para que sejam
preservadas as características originais dos vestígios de um delito desde o seu reconhecimento
até o seu descarte. Neste trabalho, portanto, serão exploradas as melhores práticas de
compliance criminal e discutidas estratégias eficazes para prevenir, detectar e lidar com crimes
corporativos, incluindo corrupção, lavagem de dinheiro e fraudes, além de ser realizada a
discussão sobre qual foi o impacto da Lei Anticrime nos programas de compliance criminal.

Palavras-chave: Criminal compliance. Processo penal. Cadeia de custódia. Crimes


corporativos. Criminal.

1 INTRODUÇÃO

À medida que a Lei Anticorrupção, Lei n.º 12.846/2013, comemora uma década em
vigor em 2023, é imprescindível refletir sobre o impacto significativo que essa legislação
pioneira teve no cenário nacional. Como a primeira lei brasileira voltada exclusivamente para
o combate à corrupção, a Lei Anticorrupção introduziu uma abordagem inovadora,
estabelecendo a responsabilização objetiva das pessoas jurídicas por atos ilícitos praticados
contra a administração pública.

1
Advogada Criminalista. Mestranda em Políticas Sociais e Direitos Humanos pela UCPel. Especialista em
Processo Penal, Investigação Criminal e Neuropsicologia Jurídica. Membro CMA Subseção de Pelotas/RS.
OAB/RS 107.443. Ingrid@ziebelladvocacia.com.br
2
Advogada, Mestre em Direitos Sociais pela Universidade Federal de Pelotas, OAB/RS 115.979.
chfalcao.adv@gmail.com.
3
Graduanda em direito pela Universidade Católica de Pelotas. E-mail: contato@ziebelladvocacia.com.br.
278
O aniversário dessa legislação emblemática coincide proximamente com outro marco
importante: a promulgação da Lei Anticrime – Lei n.º 13.964/2019 –, que trouxe importantes
modificações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal brasileiros. Essa nova legislação
estabeleceu, entre outras medidas, diretrizes mais precisas e detalhadas para as etapas da cadeia
de custódia, visando preservar integralmente as características originais das evidências de um
delito, desde o seu reconhecimento até o seu descarte.
Esse contexto, marcado pela interseção entre a Lei Anticorrupção e a Lei Anticrime,
despertou uma série de indagações e inquietações no âmbito jurídico e empresarial, culminando
na motivação para a criação deste artigo. É, portanto, através desta discussão que se busca
chegar às melhores práticas de compliance criminal e discutir estratégias eficazes para prevenir,
detectar e enfrentar crimes corporativos, incluindo a corrupção, lavagem de dinheiro e fraudes.
Um dos principais resultados da Lei Anticorrupção foi acirrar o debate sobre os
patamares mínimos necessários para o estabelecimento de programas de conformidade efetivos
nas empresas. Anteriormente, normas internacionais bastante rígidas, como o Foreign Corrupt
Practices Act (FCPA) dos Estados Unidos, e o UK Bribery Act, do Reino Unido, eram
frequentemente utilizadas como referência para tais programas.
Otavio Venturini e André Castro (2018) definem o objetivo do FCPA da seguinte
forma:
O objetivo da aprovação do FCPA era minimizar esses efeitos nocivos e as
ramificações da política externa de suborno transnacional, por meio de mudanças no
modelo de responsabilização cível e criminal de empresas e pessoas físicas envolvidas
em atividades ilícitas dessa natureza.

Com o advento da Lei Anticorrupção, esses padrões mínimos foram estabelecidos


nacionalmente, promovendo uma maior consciência sobre a necessidade de boas práticas de
governança corporativa e ética.
Por outro lado, a Lei Anticrime trouxe uma contribuição crucial ao detalhar os
procedimentos específicos da cadeia de custódia que devem ser rigorosamente seguidos para
garantir a preservação das características originais das provas. A cadeia de custódia
desempenha um papel fundamental na integridade e admissibilidade das evidências em um
processo penal, e a nova legislação trouxe maior clareza e especificidade a respeito dessas
etapas.
Ao longo deste artigo, será realizado o exame das implicações dessas legislações
relevantes para os programas de compliance criminal, assim como para a prevenção e detecção
de crimes corporativos. Serão apresentadas e discutidas as melhores práticas e estratégias

279
eficazes para fortalecer a conformidade com as leis e combater atos ilícitos no ambiente
corporativo.
Ademais, será explorado o impacto da Lei Anticrime na estruturação e implementação
dos programas de compliance criminal, bem como na gestão da cadeia de custódia das
evidências em casos de crimes corporativos. Por meio dessa análise, pretende-se contribuir para
a compreensão aprofundada dessas legislações e para o aprimoramento das práticas
empresariais, promovendo a ética, a transparência e a responsabilidade nas relações entre as
organizações e a administração pública.

2 COMPLIANCE CRIMINAL

Primeiramente é importante trazer o conceito de compliance criminal, através da


abordagem do seu significado e da importância do compliance na prevenção e detecção de
crimes corporativos. Além disso, com base na interseção entre o cumprimento das leis e a ética
empresarial, torna-se relevante a discussão sobre os principais riscos e impactos associados à
não conformidade com a legislação criminal, enfatizando a necessidade de estratégias eficazes
de compliance.
De acordo com Bertoccelli, (2018) compliance “é uma instrução interna, um comando
ou uma conduta ética, ou seja, estar em compliance é estar em conformidade com as regras
internas da empresa de acordo com procedimentos éticos e as normas vigentes”.
Observa-se, portanto, que o compliance vem ganhando notoriedade no mundo inteiro
nos últimos anos (MENDES E CARVALHO, 2017) e, especificamente, desde 2013, com a Lei
Anticorrupção, também no Brasil.
O combate à impunidade tem sido um dos principais fins do Direito Penal de extrema
importância na modificação do alcance dos princípios e políticas criminais clássicos
(SÁNCHEZ, 2007).
O compliance criminal corrobora no sentido do combate à impunidade uma vez que
trabalha na esfera da prevenção, indo além da mera obediência às leis. Trata-se de um conjunto
de práticas e medidas proativas adotadas pelas organizações para assegurar que todas as
atividades empresariais sejam conduzidas em conformidade com os preceitos legais e éticos. O
compliance criminal visa criar uma cultura corporativa sólida, baseada na integridade,
transparência e responsabilidade, com o objetivo de prevenir a ocorrência de atos ilícitos e
garantir a detecção precoce caso eles ocorram.

280
Dentro desse contexto, é natural o questionamento acerca dos principais riscos e
impactos associados à não conformidade com a legislação criminal.
A omissão em estabelecer e implementar programas de compliance eficazes pode expor
as empresas a uma série de consequências adversas, tais como sanções legais, danos à
reputação, perda de confiança dos stakeholders e impactos financeiros significativos. A não
conformidade com a legislação criminal pode resultar em investigações, processos judiciais e
penalidades severas, com implicações que vão além do aspecto financeiro, afetando a
continuidade dos negócios e a sustentabilidade da organização.
Nesse contexto, enfatiza-se a importância crucial de estratégias eficazes de compliance,
sendo as principais características destas a criação e implementação de um código de conduta
ética, a realização de treinamentos e conscientização dos colaboradores, a adoção de controles
internos adequados, a implementação de medidas de monitoramento e auditoria, além da
comunicação aberta e transparente entre todas as partes interessadas.
Nesse mesmo sentido é perceptível a importância da liderança e do comprometimento
da alta administração na promoção de uma cultura de compliance efetiva. As empresas devem
demonstrar um compromisso inabalável com a conformidade legal e ética, envolvendo todos
os níveis hierárquicos na disseminação dos princípios de compliance e na adoção de práticas
responsáveis.
Além disso, deve-se atentar para as melhores práticas de compliance criminal, baseadas
em normas e diretrizes internacionais reconhecidas. Essas práticas incluem a análise de riscos,
a adaptação das políticas e procedimentos às especificidades do negócio, a implementação de
mecanismos de denúncia eficazes, a colaboração com as autoridades regulatórias e a atualização
constante das práticas de compliance à medida que novas regulamentações e ameaças emergem.

3 ESTRUTURANDO PROGRAMAS DE COMPLIANCE CRIMINAL

Ao estruturar um programa de compliance criminal, deve-se atentar para os elementos


fundamentais de um programa efetivo de compliance, incluindo a definição de políticas e
procedimentos, a designação de responsabilidades, a realização de treinamentos, a
implementação de mecanismos de monitoramento e a aplicação de medidas disciplinares.
Relevante, portanto, estabelecer quais são as etapas-chave que as organizações devem
seguir para criar uma cultura de conformidade sólida e sustentável.
Inicialmente, deve haver uma abordagem holística na estruturação de programas de
compliance. A criação de políticas e procedimentos claros é um primeiro passo fundamental.

281
Essas diretrizes devem refletir os valores e princípios éticos da organização, abordando
especificamente as áreas de risco, como corrupção, lavagem de dinheiro e fraudes. Além disso,
é importante que haja a adaptação dessas políticas e procedimentos à realidade e às necessidades
específicas de cada empresa.
Outro elemento essencial em um programa de compliance efetivo é a designação clara
de responsabilidades. Identificar os responsáveis pela implementação, monitoramento e
execução do programa é fundamental para garantir a responsabilidade e a prestação de contas.
A alta administração deve demonstrar um comprometimento ativo e fornecer os recursos
necessários para a estruturação adequada do programa, envolvendo todos os níveis hierárquicos
da organização.
O treinamento é uma peça-chave na construção de uma cultura de compliance, devendo
haver contínuos e regulares acompanhamento para os funcionários, abordando questões éticas,
requisitos legais, identificação de riscos e procedimentos internos. Além disso, caso seja
necessário, devem ser criados também treinamentos específicos para áreas críticas como
vendas, contratos e finanças, a fim de fortalecer a compreensão dos riscos específicos
enfrentados por cada função.
Um programa de compliance efetivo também necessita incluir mecanismos de
monitoramento ininterrupto e, para isso, deve-se contar com as melhores práticas para o
estabelecimento de um sistema de monitoramento que permita a identificação e avaliação de
potenciais violações, bem como a detecção de comportamentos inadequados ou suspeitos.
Certamente o uso de tecnologias e ferramentas adequadas é o mais indicado para facilitar a
análise de dados e a identificação de padrões suspeitos.
Sabe-se que uma parte fundamental em programas de risco é a aplicação de medidas
disciplinares consistentes para casos de não conformidade. Assim, deve-se estabelecer um
processo justo e transparente para lidar com violações de políticas e procedimentos, bem como
a implementação de medidas disciplinares apropriadas, que podem incluir advertências,
suspensões ou até mesmo demissões em casos mais graves. A aplicação consistente de medidas
disciplinares transmite uma mensagem clara de que a empresa leva a conformidade a sério e
está comprometida em garantir a integridade de suas operações.
Para Ribeiro e Diniz (2015), o lugar de destaque no mercado é mais fácil de ser ocupado
pelas empresas que adotam de forma adequada o sistema de compliance e geram mais lucro de
forma sustentável, além de melhorar sua credibilidade, beneficiando tanto a organização
quantos seus colaboradores e sociedade.

282
Ao compreender os elementos essenciais e as melhores práticas envolvidas na criação
de um programa efetivo, as organizações estarão mais bem preparadas para prevenir, detectar
e lidar com crimes corporativos, promovendo a ética, a transparência e a responsabilidade em
todas as suas atividades.

4 PREVENÇÃO E DETECÇÃO DE CRIMES CORPORATIVOS

Diante do estabelecimento e criação das estruturas de compliance criminal, é importante


deliberar acerca de estratégias específicas para prevenir e detectar crimes corporativos por meio
do compliance.
Galain Palermo (2015) manifesta que os pilares do programa de compliance são
“prevenção, reconhecimento e reação. A empresa cria seus próprios deveres e regras de
comportamento que transmite a seus empregados, em uma de mudanças que começa no Estado
e termina nos trabalhadores.”. (tradução nossa)4
Silveira (2015) aponta que o Direito Penal, que até então salvaguardava direitos através
da repressão de danos ex post, passa por um processo de mudança que busca prevenir o dano
ex ante, ou seja, parte de um Direito Penal repressivo e caminha na direção de um Direito Penal
preventivo.
Dessa forma, faz-se necessária a análise dos mecanismos aliados para a implementação
do compliance.

4.1 Due Diligence na seleção de parceiros de negócios

Ao estabelecer relações comerciais com terceiros, como fornecedores, clientes e


parceiros comerciais, realiza-se a análise minuciosa de aspectos como reputação, histórico de
conformidade, estrutura organizacional e comprometimento com as leis e regulamentos
aplicáveis.
Da mesma forma, também podem ser incluídas cláusulas de conformidade nos contratos
e acordos com os parceiros, visando mitigar riscos e garantir a aderência aos padrões éticos e
legais.

4
Prevención, reconocimiento y reacción. La empresa crea sus propios deberes y reglas de comportamiento que
traslada a sus empleados, en una cadena de traslaciones que comienza en el Estado y termina en los trabajadores.
283
4.2 Controles internos

A implementação de controles internos é vista como uma estratégia-chave para prevenir


e detectar crimes corporativos. Isso inclui a segregação de funções, a autorização e registro de
transações, políticas de aprovação e revisão, e a reconciliação periódica de registros financeiros.
Resta evidente, portanto, a importância de estabelecer políticas e procedimentos claros
relacionados ao uso de recursos da empresa, conflitos de interesse, presentes e entretenimento,
garantindo a transparência e a responsabilidade nas operações diárias.

4.3 Investigação interna

Investigações internas desempenham um papel crucial na detecção de irregularidades e


crimes corporativos.
Dentre as etapas fundamentais de uma investigação interna, encontram-se a coleta de
evidências, entrevistas, análise de dados e elaboração de relatórios. Tais investigações devem
ser conduzidas sempre de forma imparcial e independente, garantindo a confidencialidade e a
proteção dos envolvidos.
Da mesma forma, mostra-se relevante a aplicação de medidas disciplinares apropriadas,
quando necessário.

4.4 Canais de denúncia

Para que se tenha um ambiente seguro e confiável, é de suma importância a


implementação dos canais de denúncia para a comunicação de irregularidades.
Entre as melhores práticas para a criação de canais de denúncia eficazes, encontram-se
linhas telefônicas dedicadas, caixas de correio eletrônico seguras e plataformas online.
Naturalmente que a existência isolada dos canais de denúncia se torna inútil caso não
aconteça e seja promovida uma cultura organizacional que encoraje a denúncia de forma
confidencial e proteja os denunciantes de retaliação.

4.5 Auditorias de compliance

As auditorias de compliance podem ser exploradas como ferramentas essenciais para


avaliar a eficácia dos programas de conformidade. É necessária a discussão a respeito das
práticas recomendadas para realizar auditorias de compliance, incluindo a definição de escopo,
o desenvolvimento de planos de auditoria, a execução de testes e a elaboração de relatórios.

284
Também se enfatiza a importância de adotar uma abordagem proativa, realizando auditorias
regulares e identificando áreas de melhoria contínua.

4.6 Uso de técnicas avançadas

Também se destaca a importância de garantir a conformidade com as regulamentações


de privacidade e proteção de dados ao utilizar essas técnicas, especificamente quanto aos delitos
de lavagem de dinheiro e outros crimes corporativos, melhorando a eficiência e a precisão na
identificação de potenciais violações
Assim, é abordado o uso de técnicas avançadas, como inteligência artificial e análise de
dados, como uma estratégia promissora para a detecção de crimes corporativos. Discute-se,
dessa maneira, como essas ferramentas podem ser aplicadas na análise de grandes volumes de
dados, identificação de padrões e comportamentos suspeitos, e na geração de insights para a
tomada de decisões estratégicas.

5 LEI ANTICRIME E A CADEIA DE CUSTÓDIA: PRESERVANDO A


INTEGRIDADE DAS PROVAS EM CRIMES CORPORATIVOS

5.1 Conceito e importância da cadeia de custódia

A cadeia de custódia, no âmbito criminal, refere-se ao registro documentado e


meticuloso de todos os eventos e pessoas envolvidas na coleta, armazenamento, transporte e
análise das evidências que são cruciais para a investigação e processo judicial. Essa cadeia de
custódia é fundamental para assegurar a integridade e admissibilidade dessas evidências em
juízo, conferindo confiança ao sistema jurídico e garantindo que a busca pela verdade seja
conduzida de forma justa e precisa.
Ao longo de um processo criminal, a cadeia de custódia desempenha um papel crítico
na proteção e preservação das evidências, garantindo que não sejam adulteradas, corrompidas
ou comprometidas de qualquer maneira. Ela estabelece uma trilha ininterrupta e confiável, que
documenta minuciosamente o controle e a custódia das evidências desde o momento em que
são coletadas até seu eventual descarte. Esse registro detalhado é essencial para provar a
autenticidade e a integridade das evidências, bem como para fornecer uma base sólida para as
decisões judiciais.
No contexto dos crimes corporativos, a cadeia de custódia assume um papel ainda mais
relevante. A corrupção, a lavagem de dinheiro e outras formas de fraude corporativa geralmente

285
envolvem evidências complexas, como registros financeiros, documentos corporativos,
comunicações eletrônicas e testemunhos de funcionários. A coleta, o manuseio e a preservação
adequados dessas evidências são cruciais para estabelecer a responsabilidade criminal e civil,
bem como para fornecer uma base sólida para a aplicação da lei e o combate à impunidade.
Além disso, a cadeia de custódia também desempenha um papel crucial na garantia dos
direitos fundamentais dos acusados. Ao manter um registro cuidadoso de todas as etapas e
pessoas envolvidas na manipulação das evidências, a cadeia de custódia fornece uma
salvaguarda contra a possibilidade de manipulação ou fabricação de provas. Ela assegura que a
defesa possa contestar a autenticidade, a confiabilidade ou a integridade das evidências
apresentadas, garantindo um julgamento justo e equitativo.

5.2 Procedimentos e melhores práticas na cadeia de custódia

Faz-se necessária a compreensão de quais são os procedimentos e práticas relacionados


à cadeia de custódia em casos de crimes corporativos. Dessa forma, é importante a discussão
de tópicos como a correta identificação e rotulagem das evidências, o uso de recipientes
adequados, a manutenção de registros detalhados, a prevenção de contaminação, a garantia da
segurança física e digital das evidências, entre outros aspectos relevantes.
Dessa forma, mergulha-se nos procedimentos e nas melhores práticas essenciais
relacionadas à cadeia de custódia em casos de crimes corporativos, de forma a abordar uma
série de tópicos cruciais que garantem a integridade, a confiabilidade e a admissibilidade das
evidências ao longo do processo investigativo e judicial.
Um dos primeiros passos fundamentais é a correta identificação e rotulagem das
evidências. Cada item coletado deve ser devidamente identificado, rotulado e descrito
detalhadamente. Isso inclui informações como data, hora, local da coleta, descrição do item,
nome do responsável pela coleta e qualquer outra informação relevante. A identificação e
rotulagem adequadas garantem que cada peça de evidência seja única e facilmente rastreável
durante todo o processo.
Outro aspecto crucial é o uso de recipientes adequados para o armazenamento das
evidências. É essencial escolher recipientes que protejam as evidências de danos,
contaminação, deterioração ou qualquer outra interferência externa. Por exemplo, evidências
biológicas devem ser armazenadas em recipientes herméticos e estéreis, enquanto evidências
digitais devem ser preservadas em dispositivos seguros e à prova de adulterações.

286
A manutenção de registros detalhados é outro ponto crítico na cadeia de custódia. É
necessário documentar todas as etapas relevantes, incluindo a coleta, o armazenamento, o
transporte, a transferência e qualquer manipulação subsequente das evidências. Esses registros
devem ser precisos, completos e devidamente assinados e datados por todas as pessoas
envolvidas na cadeia de custódia. Além disso, é importante manter uma trilha de auditoria clara
que permita a reconstrução de todas as atividades relacionadas à evidência.
A prevenção de contaminação é um aspecto crucial na cadeia de custódia. Medidas
devem ser tomadas para evitar a contaminação cruzada entre as evidências, bem como para
proteger as evidências de qualquer tipo de contaminação externa. Isso inclui o uso de
equipamentos de proteção individual adequados, como luvas, máscaras e roupas de proteção,
além de garantir a limpeza e esterilização adequadas dos equipamentos utilizados.
A segurança física e digital das evidências também deve ser uma preocupação central.
Evidências físicas devem ser armazenadas em locais seguros, com controle de acesso restrito e
monitoramento adequado. Já as evidências digitais requerem medidas adicionais para garantir
a integridade e a autenticidade dos dados. Isso pode envolver o uso de criptografia, proteção
contra violações de segurança e o armazenamento em sistemas confiáveis e à prova de
adulterações.
Além disso, é essencial que as evidências sejam adequadamente preservadas durante
todo o processo, garantindo sua estabilidade e integridade. Isso envolve o controle de condições
ambientais, como temperatura, umidade e exposição à luz, que possam comprometer as
evidências. É importante seguir diretrizes específicas para cada tipo de evidência, como
amostras biológicas, documentos, dispositivos eletrônicos, entre outros.
Ao explorar esses procedimentos e melhores práticas relacionados à cadeia de custódia
em casos de crimes corporativos, buscam-se estabelecer uma base sólida para a preservação e
admissibilidade das evidências. A implementação rigorosa dessas diretrizes assegura que as
evidências sejam tratadas de forma adequada, minimizando qualquer risco de
comprometimento ou contestação de sua autenticidade. Dessa forma, fortalece-se a confiança
no sistema jurídico, contribuindo para a busca pela verdade e justiça em casos de crimes
corporativos.

5.3 Desafios e Soluções na Cadeia de Custódia em Crimes Corporativos

Não são poucos os desafios que atravessam a gestão da cadeia de custodia em casos de
crimes corporativos, de forma que se faz necessário explorá-los, aliados a soluções para superar

287
esses desafios. Assim, é preciso abordar aspectos como a complexidade das evidências digitais,
a necessidade de envolvimento de diferentes partes interessadas, a coordenação de equipes
multidisciplinares, o cumprimento de prazos e a proteção da privacidade dos envolvidos.
Compreender e lidar com esses desafios é fundamental para garantir a integridade e a
admissibilidade das evidências, bem como para promover uma investigação e um processo
judicial eficazes.
Um dos principais desafios encontrados é a complexidade das evidências digitais. Em
um cenário corporativo, é comum que crimes envolvam o uso de sistemas eletrônicos,
dispositivos móveis, servidores e redes digitais. Coletar, preservar e analisar adequadamente
essas evidências requer conhecimento técnico especializado e ferramentas forenses avançadas.
Além disso, as evidências digitais estão sujeitas a riscos de adulteração e violação de segurança.
Superar esses desafios exige investimentos em tecnologia e capacitação de profissionais
especializados em investigações digitais.
Para Gustavo Badaró (2017), a cadeia de custódia da prova não se limita à coleta de
elementos materiais coletados no local do crime – a sua aplicação também deve ser estendida a
elementos “imateriais” registrados eletronicamente, como o conteúdo de e-mails, mensagens
de texto e conversas telefônicas.
Outro desafio significativo é a necessidade de envolvimento de diferentes partes
interessadas. Em casos de crimes corporativos, é comum que haja múltiplas partes envolvidas,
como a empresa afetada, autoridades policiais, peritos forenses, advogados, auditores e outros
profissionais especializados. Coordenar essas diversas partes interessadas, garantindo uma
colaboração eficaz, troca de informações adequada e alinhamento de objetivos, é essencial para
a gestão adequada da cadeia de custódia. A criação de protocolos claros de comunicação e
cooperação entre as partes envolvidas pode contribuir para superar esse desafio.
Além disso, a coordenação de equipes multidisciplinares também pode ser um desafio.
A gestão da cadeia de custódia em casos de crimes corporativos requer a colaboração de
profissionais de diferentes áreas, como especialistas em compliance, investigadores, peritos
forenses, profissionais de TI, advogados e especialistas em proteção de dados. Cada membro
da equipe tem conhecimentos e perspectivas distintas, o que pode levar a desafios de
comunicação, coordenação e tomada de decisão. Estabelecer uma estrutura de equipe clara,
definir papéis e responsabilidades e promover uma cultura de colaboração são passos essenciais
para superar esse desafio.

288
O cumprimento de prazos é outra questão crítica na gestão da cadeia de custódia em
casos corporativos. O tempo é um fator crucial na coleta, preservação e análise das evidências,
pois atrasos podem comprometer a sua integridade e admissibilidade. É necessário estabelecer
processos eficientes e claros para garantir que as etapas da cadeia de custódia sejam realizadas
de forma oportuna, sem comprometer a qualidade e a precisão das evidências. Isso envolve o
estabelecimento de procedimentos bem definidos, a alocação adequada de recursos e o uso de
tecnologias que agilizem o processo.

Por fim, a proteção da privacidade dos envolvidos é um desafio importante a ser


considerado. Em casos corporativos, as investigações podem envolver a coleta e o
processamento de informações pessoais sensíveis dos funcionários, executivos e terceiros
relacionados à empresa. É essencial garantir que todas as atividades relacionadas à cadeia de
custódia sejam conduzidas de acordo com as leis de proteção de dados e privacidade,
respeitando os direitos e a confidencialidade das pessoas envolvidas. Isso requer a
implementação de medidas de segurança adequadas, como a anonimização dos dados, o
controle de acesso e a aplicação de políticas claras de privacidade.
Ao abordar esses desafios específicos, é crucial buscar soluções que promovam a
eficácia e a integridade da cadeia de custódia em casos de crimes corporativos. Essas soluções
envolvem investimentos em tecnologia, capacitação de profissionais, estabelecimento de
protocolos de colaboração, adoção de processos eficientes, cumprimento de prazos e garantia
da conformidade com as leis de proteção de dados e privacidade. Somente através de uma
abordagem abrangente e estratégica será possível superar esses desafios e promover uma gestão
eficaz da cadeia de custódia em casos de crimes corporativos.

6 CONCLUSÃO

Da análise dos contextos explorados, resta evidente que a interseção entre a Lei
Anticorrupção e a Lei Anticrime, desperta ainda uma série de indagações e inquietações nos
âmbitos jurídico e empresarial. Assim, se busca chegar às melhores práticas de compliance
criminal, de forma a discutir estratégias eficazes para prevenir, detectar e enfrentar crimes
corporativos.
Ainda são muitos os desafios que atravessam a temática, como restou evidenciado ao
longo deste artigo, sendo indispensável a cooperação entre os envolvidos e o alinhamento
estratégico em cada caso particular.

289
Os crimes corporativos muitas vezes envolvem evidências digitais, como documentos
eletrônicos, registros de comunicação, dados armazenados em servidores, entre outros. O
desafio está na coleta, preservação e análise adequadas dessas evidências sem comprometer sua
integridade. Dessa forma, é essencial contar com especialistas em investigação forense digital,
capazes de coletar e preservar as evidências de forma forense, seguindo as melhores práticas
para garantir sua autenticidade e admissibilidade em juízo.
Também se faz necessário recordar que a cooperação entre diferentes partes
interessadas, como a equipe jurídica interna da empresa, investigadores externos, autoridades
governamentais e consultores de compliance pode gerar dificuldades. Cada parte pode ter
diferentes prioridades e objetivos, de forma que É necessário estabelecer canais de comunicação
eficientes e garantir a colaboração entre todas as partes interessadas, estabelecendo protocolos
claros para a troca de informações e coordenando esforços para preservar a cadeia de custódia
das evidências.
Não podemos esquecer que, em se tratando de casos de crimes corporativos, é comum
que as evidências envolvam informações confidenciais e dados pessoais de indivíduos
envolvidos. A proteção adequada da privacidade é essencial para evitar violações e garantir a
conformidade com as leis de proteção de dados. Se faz, pois, necessário implementar medidas
de segurança robustas para proteger as evidências e as informações pessoais envolvidas, como
criptografia, restrições de acesso e políticas de confidencialidade. Além disso, é importante
garantir que todas as etapas da cadeia de custódia sejam realizadas de acordo com as
regulamentações de proteção de dados aplicáveis.
Por fim, a garantia da integridade das evidências é fundamental para sua admissibilidade
em juízo. No entanto, durante a coleta, armazenamento ou transporte, as evidências podem ser
contaminadas, alteradas ou comprometidas de alguma forma, o que pode prejudicar sua
validade. Resta, nessa seara, evidente a urgência em treinar e conscientizar os profissionais
envolvidos na cadeia de custódia sobre a importância da preservação adequada das evidências.
Isso inclui o uso de técnicas de embalagem adequadas, etiquetagem correta, armazenamento
em ambientes controlados, rastreamento das movimentações das evidências e documentação
detalhada de todos os eventos relacionados à cadeia de custódia.
Esses são apenas alguns exemplos de desafios e soluções na cadeia de custódia em casos
de crimes corporativos. Cada caso pode apresentar particularidades, mas é essencial ter em
mente a importância de seguir as melhores práticas, envolver especialistas quando necessário e

290
estabelecer protocolos claros para garantir a integridade das evidências ao longo de toda a
cadeia de custódia.
Nesse sentido, é essencial que as empresas adotem uma abordagem proativa e eficiente
para mitigar riscos, estabelecer uma cultura de conformidade e manter um ambiente de negócios
ético e íntegro.

REFERÊNCIAS

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A Cadeia de Custódia e sua Relevância para a
Prova Penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra (Org). Temas Atuais da
Investigação Preliminar no Processo Penal. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2017, p. 522.
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Editora, 2018.
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13964.htm#art3>. Acesso
em 10 jul. 2023.
_______. Decreto-lei n.º 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponível em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm>. Acesso em 10 jul. 2023.
GALAIN PALERMO, Pablo. Lavado de activos en Uruguay: una visión criminológica. In:
AMBOS Kai; CORIA, Dino Carlos Caro; MALARINO, Ezequiel. Lavado de activos y
compliance: perspectiva internacional y derecho comparado. Lima: Jurista Editores E.I.R.L.,
2015. p. 324.
MASSON, Cleber e MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 4. ed., rev., atual. e ampl. Rio de
Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018.
MENDES, Francisco Schertel e CARVALHO, Vinicius Marques de. Compliance:
Concorrência e Combate a Corrupção. São Paulo: Trevisan, 2017. p. 11
RIBEIRO, Marcia Carla Pereira e DINIZ, Patrícia Dittrich Ferreira. Compliance e a Lei
Anticorrupção nas empresas, Revista de informação legislativa, Brasília, v. 205, jan/mar. 2015,
p. 87-105.
SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. ¿Nullum crimen sine poena? Sobre las doctrinas penales de la
“lucha contra la impunidad” y del “derecho de la víctima al castigo del autor” In: PUIG,
Santiago Mir (Dir.). Derecho del siglo XXI. Cuadernos de Derecho Judicial VIII. Barcelona,
2007. p. 330.
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge e SAAD-DINIS, Eduardo. Compliance, Direito Penal e Lei
Anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 26.
VENTURINI, Otavio. Compliance. In: CARVALHO, André Castro; et al (org). Manual de
compliance. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 188-189.

291
A PARIDADE DE GÊNERO NA FORMAÇÃO DAS LISTAS SÊXTUPLAS
PARA INDICAÇÃO DOS COMPONENTES DO QUINTO
CONSTITUCIONAL

Jane Mara Spessatto1

RESUMO
Os avanços no combate à desigualdade em razão do gênero é tema importante e sempre atual,
as dificuldades impostas às mulheres ao longo dos séculos marcados pelo patriarcado
continuam vivas e demandam ações efetivas para que sejam atingidos padrões de mínima
isonomia entre os gêneros. Demonstrar-se-á nesse trabalho que a ausência de diversidade
enfraquece a democracia, fato que atinge a todos, sejam as próprias integrantes das instituições,
corporações e da esfera privada, assim como aqueles que se submetem as ações ou decisões
provenientes dessas esferas de poder. Entre avanços e retrocessos, busca-se abordar a
necessidade de seguir com a inclusão de ações afirmativas na política de paridade de gênero.
No presente trabalho serão elencados os resultados já obtidos com a implantação da paridade
de gênero e das cotas nas eleições da Ordem dos Advogados do Brasil e a importância de
expansão dessas políticas como forma de reparação histórica de quase um século de
desigualdade de gênero.

Palavras-chave: Representatividade. Igualdade. Democracia. Paridade. Gênero.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Durante séculos praticamente a metade da população mundial teve sua participação


excluída dos estudos científicos, dos avanços sociais e das oportunidades de trabalho pelo fato
de pertencerem ao gênero feminino. Somente a partir do século XIX é que a mulher ousou
participar mais efetivamente das questões políticas e científicas, há, portanto, um apagamento
histórico onde inexistem dados ou estudos científicos acerca das mulheres, da saúde, do corpo,
das suas aspirações, das suas posições políticas e econômicas e tudo isso gerou como
consequências a supressão de uma importante parte da história mundial.
Os resultados de tantos anos de menosprezo é a formação de uma cultura machista e
patriarcal, cujos atos e ações encontram-se enraizadas na própria identidade dos povos. Assim
sendo, como objetivo geral do trabalho busca-se analisar as recentes conquistas das mulheres
junto a Ordem dos Advogados do Brasil. Especificamente os objetivos do trabalho se traduzem

1
Advogada inscrita na OAB/RS sob nº 68.938. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Direito da Faculdade Atitus Educacional (PPGD/Atitus). Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Rede
LFG. E-mail: jane_spessatto@hotmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/7846873771677572.
292
na análise da necessidade de avançar ainda mais, com a implantação da paridade de gênero na
formação das listas sêxtuplas do quinto constitucional.
Por essa razão a elaboração do artigo mostra-se pertinente a fim de promover o debate
e o surgimento de ideias que contribuam para a redução da desigualdade e inclusão social dessa
parcela da população como forma de fomentar a representatividade e fortalecer a democracia.
Quanto à metodologia, a natureza da investigação retratou pesquisa pura, iniciada na
questão do gênero, associada ao Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil e os resultados
das eleições nacionais e do Estado do Rio Grande Do Sul. No que se refere à abordagem do
problema, a proposição é de um estudo qualitativo, pois foi decisiva a abordagem e utilização
de conceitos pontuais para obtenção dos objetivos da pesquisa. Quanto à natureza a pesquisa é
básica e de objetivo exploratório. A pesquisa bibliográfica, através do método indutivo,
utilizou-se de livros, artigos e legislações para alcançar o seu objetivo final. Os resultados
obtidos foram expostos exclusivamente em forma de textos.

2 OS AVANÇOS OBTIDOS COM A IMPLEMENTAÇÃO DA POLÍTICA DE COTAS


E PARIDADE DE GÊNERO PELA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL

A expressão contida na Constituição Federal “todos são iguais perante a lei” representa
para os brasileiros uma aspiração de tornar-se um país desenvolvido, é um dos princípios
basilares da Justiça e do Estado democrático de Direito. Contudo, teoria e prática nem sempre
andam juntos diante da complexa sociedade moderna.
Isso justifica a existência de tratamentos distintos, os quais podem estar em consonância
com a Constituição, “é que a igualdade implica o tratamento desigual das situações de vida
desiguais, na medida de sua desigualação (TAVARES, 2023, p. 449).
Através dos séculos, o gênero tem sido utilizado como um marcador de papéis sociais,
desempenhando um viés discriminatório contra a participação das mulheres nas esferas públicas
de poder. (MEDINA, 2022)
No ambiente jurídico a situação da mulher não é diferente do corporativo, muito embora
no Brasil, existam mais advogadas do gênero feminino do que os homens, ainda assim a
ocupação dos espaços de poder dentro da Ordem dos Advogados do Brasil é reduzida.
Durante os quase noventa anos da entidade, trinta e sete advogados assumiram a
presidência do Conselho Federal e desde a sua criação a Ordem dos Advogados do Brasil nunca
foi presidida por uma mulher, porém na última eleição, ocorrida no final de 2021, entrou em

293
vigor a Resolução 5/2020, a qual determina a obrigatoriedade da paridade de gênero (50%) e a
implementação da política de cotas para advogados negros e pardos no percentual de 30%.
Com isso o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB passou a dispor
sobre as candidaturas as eleições:

Art. 131. São admitidas a registro apenas chapas completas, que deverão atender ao
percentual de 50% para candidaturas de cada gênero e, ao mínimo, de 30% (trinta por
cento) de advogados negros e de advogadas negras, assim considerados os(as)
inscritos(as) na Ordem dos Advogados do Brasil que se classificam (autodeclaração)
como negros(as), ou seja, pretos(as) ou pardos(as), ou definição análoga (critérios
subsidiários de heteroidentificação).
§ 1º No registro das chapas deverá haver a indicação dos(as) candidatos(as) aos
cargos de diretoria do Conselho Federal, do Conselho Seccional, da Caixa de
Assistência dos(as) Advogados(as) e das Subseções, dos(as) conselheiros(as) federais,
dos(as) conselheiros(as) seccionais e dos(as) conselheiros(as) subseccionais, sendo
vedadas candidaturas isoladas ou que integrem mais de uma chapa.
§ 2º O percentual relacionado à candidaturas de cada gênero, previsto no caput deste
artigo, aplicar-se-à quanto às Diretorias do Conselho Federal, dos Conselhos
Seccionais, das Subseções e das Caixas de Assistência e deverá incidir sobre os cargos
de titulares e suplentes, se houver, salvo se o número for ímpar, quando se aplicará o
percentual mais próximo a 50% na composição de cada gênero.
§ 3º Em relação ao registro das vagas ao Conselho Federal, o percentual referido no
caput deste artigo, relacionado à candidaturas *de cada gênero, levará em
consideração a soma entre os titulares e suplentes, devendo a chapa garantir pelo
menos uma vaga de titularidade para cada gênero. O percentual das cotas raciais
previsto no caput deste artigo será aplicado levando-se em conta o total dos cargos da
chapa, e não por órgãos como previsto para as candidaturas de cada gênero.
§ 5º As regras deste artigo aplicam-se também às chapas das Subseções;
§ 6º Fica delegada à Comissão Eleitoral, de cada Seccional, analisar e deliberar os
casos onde as chapas das Subseções informarem a inexistência ou insuficiência de
advogados negros (pretos e pardos) e advogadas negras (pretas e pardas), com
condições de elegibilidade a concorrer nas chapas, no percentual aprovado em 30%
(trinta por cento) referido no caput deste artigo.

Como resultado da introdução da paridade de gênero ocorreu a eleição de cinco


mulheres para os cargos de Presidente das Seccionais Estaduais, o que representa considerável
avanço visto que nos noventa anos da criação da entidade apenas dez mulheres assumiram a
presidência de seccionais estaduais. Destaca-se o mapa com a participação das mulheres na
eleição da Ordem dos Advogados do Brasil, realizada em novembro de 2021.

294
Figura 1 Mapa da participação das mulheres na eleição da OAB Nacional:

(Fonte: Migalhas, 2022)

Percebe-se que a participação das mulheres nos cargos de candidatas a vice-presidência


obteve um crescimento ainda maior, vejamos:

Figura 2. Panorama da participação feminina e masculina nas eleições da OAB Nacional:

(Fonte: Migalhas, 2022)

No cenário estadual, até a eleição realizada em novembro/2021, a situação não era


diferente, das 107 (cento e sete) subseções que compõem a Ordem dos Advogados do Rio
Grande do Sul, 75,70% dos cargos de presidência pertenciam a advogados homens e 24,30%
dos cargos de presidência eram ocupados por advogadas mulheres.

295
Além disso, chama a atenção a pequena quantidade de mulheres ocupantes de cargos de
vice-presidentes, apenas 36,44% pertenciam às advogadas enquanto 63,55% dos cargos de
vice-presidência pertenciam a advogados homens.
Contudo na última eleição, realizada para o triênio 2022-2024, após a entrada em vigor
da alteração do estatuto da ordem dos advogados, a qual estabeleceu a paridade de gênero nas
candidaturas, o cenário nacional e gaúcho passou por modificações no que diz respeito ao
número de mulheres eleitas, verifica-se a ocorrência de aumento em torno de 10% na
participação das advogadas eleitas para os cargos de presidência.
As mulheres advogadas foram eleitas para 33,64% dos cargos de presidência ao passo
que os homens advogados ficaram com 66,35% dos cargos de presidência.
No que tange a ocupação das vice-presidências, 61,68% dos cargos foram ocupados por
advogados homens e as mulheres advogadas ficaram com 38,32% dos cargos de vice-
presidência.
Pode-se observar um forte aumento na participação feminina na região das missões, de
dois cargos ocupados na gestão de 2019-2021, as mulheres passaram a ocupar a presidência de
seis subseções para a gestão 2022-2024.
Também chama a atenção o fato de que mulheres advogadas foram eleitas para
comandar as subseções de cidades gaúchas com maior número de habitantes e de advogados
como Caxias do Sul, Cachoeirinha, Canoas, Santa Maria, Ijuí, Santa Rosa e Santo Ângelo.
Na região metropolitana do Estado, das 14 (quatorze) subseções, 12 (doze) delas são
presididas por homens e apenas 2 (duas) são presididas por advogadas mulheres. Já com relação
a vice-presidência as advogadas figuram nesse cargo em sete subseções. Apenas na subseção
de Sapucaia do Sul foram eleitas mulheres para o cargo tanto de presidente como de vice-
presidente. Na região do litoral gaúcho, são 5 (cinco) subseções, das quais duas são presididas
por mulheres e conta apenas com uma vice-presidente.
Os advogados da serra gaúcha são representados nas suas 15 (quinze) subseções por 11
(onze) presidentes homens e apenas 4 (quatro) advogadas mulheres presidem, sendo esse o
mesmo número de vice-presidente das subseções da região da serra gaúcha.
A região do planalto, composta por 16 (dezesseis) subseções possui a seguinte
composição: 14 (quatorze) subseções são presididas por homens e apenas duas mulheres
assumiram a presidência de subseções nessa região. Chama a atenção também o baixo número
de vice-presidentes mulheres, apenas quatro.

296
A iniciativa de implementação das mudanças foi implementada pelo ex-presidente da OAB
Nacional, Felipe Santa Cruz, cujo mantado se encerrou em 01 de fevereiro de 2022, ele ressalta
que “A advocacia compreendeu a necessidade de adotar políticas transformadoras”, e refere:
“São duas mudanças históricas para a OAB. As cotas raciais e a paridade de gênero são mais
do que uma necessária e indispensável política de reparação e de inclusão. É o caminho para
fortalecer a OAB como grande organização que é”. (BRASIL, 2022)
No cenário estadual cabe destacar que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, vem
sendo dirigido pela presidente eleita, a Desembargadora Iris Helena Medeiros Nogueira,
primeira mulher a chefiar o Poder Judiciário Gaúcho. (TJRS, 2022)
Além do Tribunal Gaúcho, as mais altas cortes judiciárias do país atualmente são
presididas por mulheres, o Supremo Tribunal Federal, pela Ministra Rosa Weber e o Superior
Tribunal de Justiça, pela Ministra Maria Thereza Rocha de Assis Moura.
Daí a importância da indicação de mulheres advogadas para que integrem a lista
sêxtupla de indicações de nomes para exercerem o cargo de desembargadora dos Tribunais
Brasileiros.
O artigo 94 da Constituição Federal dispõe sobre o tema:

Art. 94. Um quinto dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos
Estados, e do Distrito Federal e Territórios será composto de membros, do Ministério
Público, com mais de dez anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e
de reputação ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional, indicados
em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes.

Os indicados deverão contar com 10 anos de exercício profissional, além de reputação


ilibada e notório saber jurídico. A partir da lista sêxtupla enviada com os nomes indicados pelos
representantes da OAB e do MP, o Tribunal formará a lista tríplice e a encaminhará ao chefe
do Poder Executivo, a quem cabe a decisão final.
Em regra, as listas são compostas majoritariamente por homens e em relação as
mulheres esse número geralmente não atinge 50% dos indicados.
A boa notícia é que as advogadas já se mobilizam para mudar essa realidade e buscam
alterar os regulamentos a fim de que as indicações na formação das listas sêxtuplas também
observem a paridade de gênero.
Referido movimento já apresenta resultados importantes, em julho de 2022, Minas
Gerais foi a primeira Seccional da OAB a formar lista sêxtupla com paridade de gênero para
indicação ao quinto constitucional do Tribunal Regional Federal da 6ª Região. Na mesma toada
outras Seccionais adotaram a obrigação de paridade através de previsão regimental, como, por

297
exemplo, a Seccional da Bahia, do Maranhão, Mato Grosso do Sul e Pernambuco. (Conjur,
2023).
É de suma importância que essa previsão se torne de cumprimento obrigatório em todas
as Seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, isso porque os Desembargadores escolhidos
pelo quinto constitucional possuem uma importância simbólica ainda maior pois representam
toda a classe dos advogados e advogadas brasileiros.
O número de advogadas mulheres inscritas na Ordem dos Advogados do Brasil já é
maior do que o de advogados homens, incluir a paridade de gênero na formação das listas
sêxtuplas trata-se de uma ação afirmativa moderna que contribui a formação de maior
diversidade nos Tribunais sejam estaduais ou federais. Um dos aspectos do que significa a
representatividade é a confiança institucional, de acordo com a 3ª Presidente da Suprema Corte
do Reino Unido Lady Brenda Hale (2017-2020), “o povo deve sentir que as cortes são as suas
cortes e que o direito está sendo produzido por pessoas como eles”. (MEDINA, 2022)
Portanto, constata-se que aos poucos, apesar do grande atraso e das muitas batalhas, a
mulher vem ocupando os espaços de poder, percebe-se os avanços dignos de destaque a
exemplo das cinco advogadas eleitas para presidirem seccionais estaduais da Ordem dos
Advogados do Brasil, também cabe citar o protagonismo da Desembargadora Iris Helena
Medeiros Nogueira, primeira presidente do Tribunal de Justiça Estadual gaúcho e das ministras
presidentes das mais altas cortes do Poder Judiciário Brasileiro. Tais exemplos indicam uma
evolução dos órgãos ligados à justiça e entidades de classe como a OAB, às quais vem buscando
estabelecer maior igualdade e diversidade entre seus gestores, promovendo com isso
aprimoramento e fortalecimento das instituições.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história revela os caminhos trilhados pela humanidade passando pela racionalidade,


iluminismo e por fim cientificismo, capitalismo e (neo)liberalismo. Durante praticamente todos
esses períodos históricos utilizou-se da mão-de-obra feminina, mas excluiu-se o gênero
feminino dos cargos de maior destaque, da tomada de decisões, da discussão de projetos,
mesmo sendo essa expressiva parcela da sociedade.
A diversidade é um dos importantes pilares das boas práticas corporativas, seja nos entes
públicos, organizações de classe ou na iniciativa privada. Práticas como as previstas na
legislação eleitoral e na Lei Maria da Penha, essa considerada uma das melhores do mundo em
termos de proteção à mulher são ações afirmativas que deram certo e vão sendo aperfeiçoadas

298
para melhor atender essas questões com o respeito merecido por todos. Se já estamos perdendo
o bônus demográfico urge que se coloque em prática ações e iniciativas que promovam a
inclusão de pessoas de diferentes idades, gêneros, culturas, condição física e intelectual, estilo
e pensamento nos ambientes de trabalho.
O estudo pôs em evidência a prática adotada pela Ordem dos Advogados do Brasil, com
a implantação da política de paridade de gênero e os resultados já começaram a surgir na
primeira eleição com a norma em vigor.
A eleição de cinco advogadas para os mais altos cargos da instituição representa um
salto na representatividade feminina na Ordem dos Advogados do Brasil e no cenário gaúcho
não foi diferente, o aumento de 10% de advogadas eleitas para comandar as subseções no
interior do Estado também representam uma importante conquista, ressaltando ainda o fato de
que mulheres advogadas foram eleitas para comandar a entidade nas maiores cidades do Estado
do Rio Grande do Sul.
Apesar dos avanços não se pode deixar de pontuar a necessidade de regulamentar a
obrigatoriedade de inclusão da paridade de gênero na formação das listas sêxtuplas para a
escolha dos componentes do quinto constitucional. Algumas seccionais já implantaram a
política de paridade, enquanto a Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do
Sul deixou passar a oportunidade de ser protagonista de mais esse importante avanço dentre
outros tantos feitos em prol da advocacia gaúcha.
A implantação da paridade de gênero é um processo de reparação histórica e uma
política afirmativa de inclusão que reforça o estado democrático de direito, pois a diversidade
confere desenvolvimento ao país e as suas instituições tendo como finalidade básica o bem-
estar social da população brasileira e o desenvolvimento de uma nação mais justa e igualitária.

REFERÊNCIAS

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feminino. In: ITABORAI, N. R.; RICOLDI, A. M. (Org.). Até onde caminhou a revolução de
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<https://www.oab.org.br/publicacoes/AbrirPDF?LivroId=0000002837>. Acesso em: 01 fev.
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299
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301
DA EFETIVIDADE PRÁTICA DA LEI N. 14.181/2021: UTOPIA OU
REALIDADE?

Jordana Schaedler1

O superendividamento do consumidor pessoa natural é como uma “doença


socioeconômica”, é um risco individual e coletivo, estrutural e sistêmico que atinge
toda a sociedade e o mercado e que merece um “tratamento (RODRIGUES; DOLCI
2023).

RESUMO

O presente artigo busca apresentar uma análise acerca dos principais elementos da Lei n.
14.181/2021, bem como da existência de óbices ao tratamento do superendividamento e à
efetividade prática da legislação. A problemática advém justamente dos mecanismos criados
pela norma que, para além de deixar algumas lacunas no texto legal, instituiu regras que poderão
se mostrar ineficazes ao serem aplicadas. Necessário analisar, portanto, institutos que trazem
uma compreensão adequada do tema, como a definição de superendividamento, seus
pressupostos, as principais inovações advindas com a lei e seus paradigmas. Por fim, far-se-á o
exame dos possíveis obstáculos a serem enfrentados na prática, que podem dar azo à
ineficiência do procedimento projetado pelo legislador.

Palavras-chave: Superendividamento. Lei n. 14.181/2021. Consumidor. Dívida. Mínimo


existencial.

1 INTRODUÇÃO

A Lei n. 14.181/2021 é um verdadeiro marco histórico no âmbito do direito


consumerista. Suas inovações representam não só um relevante avanço no que tange à proteção
do consumidor hipossuficiente, como também um tratamento à problemática social do
superendividamento (BRASIL, 2021).
Com o advento da legislação, converte-se a cultura da dívida na cultura do pagamento,
retirando os consumidores de uma condição de efetiva exclusão social, ao mesmo tempo em
que lhes garante a preservação do mínimo existencial ao seu sustento. Outrossim, estabelecem-
se normas inibitórias de condutas abusivas – incluindo o abuso na concessão de crédito -, bem
como as respectivas sanções àqueles que optarem por burlá-las.
Contudo, mesmo que o progresso advindo com a criação da Lei n. 14.181/2021 seja
verdadeiramente positivo, verificam-se lacunas no texto legal e normas que, na forma como
instituídas, podem se mostrar ineficazes quando da sua aplicação prática.

1
Advogada graduada na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-graduada em Direito Civil e
Processo Civil na Verbo Jurídico. Inscrita na OAB/RS 102.135. E-mail: jordanaschaedler@gmail.com.
302
Aliado a isso, tem-se o paradoxo fomentado pela própria lei ao estabelecer,
simultaneamente, a garantia do mínimo existencial ao consumidor, a garantia do pagamento do
valor principal, acrescido de correção monetária, aos credores, e o prazo máximo de 5 anos para
parcelamento da dívida. Em alguns casos, esses três elementos não poderão ser conciliados,
sendo necessária a relativização de ao menos um, sob pena de frustração do procedimento.
Assim, o objetivo do presente trabalho é justamente trazer à baila alguns dos óbices
depreendidos na tentativa de aplicação prática do texto legal, a fim de que se reflita a respeito
das adequações que se fazem prementes.
No primeiro capítulo, será abordado o conceito de superendividamento, com o
esclarecimento a respeito de seu significado e dos pressupostos necessários para a sua
configuração.
O segundo capítulo tratará da repercussão jurídica da Lei n. 14.181/2021, explicando as
principais alterações provocadas no Código de Defesa do Consumidor, bem como alguns dos
principais paradigmas.
Por fim, no último capítulo será tratado o cerne deste trabalho: os óbices ao tratamento
do superendividamento e à efetividade prática da lei. Faz-se imprescindível, neste momento,
elencar algumas das lacunas verificadas e das normas que podem ser ineficazes quando da sua
aplicação.
É inegável que a criação desta lei é de extrema importância para o ordenamento jurídico
brasileiro, mas não se pode perder de vista a necessidade contínua de aprimoramento para o
pleno alcance do intento do legislador: a proteção do consumidor superendividado. À vista disso
e dada sua relevância social, resta demonstrada a necessidade do presente estudo.

2 O SUPERENDIVIDAMENTO DO CONSUMIDOR: SIGNIFICADO E


PRESSUPOSTOS

Do modelo social do capitalismo decorre um fenômeno chamado de


superendividamento, cuja compreensão é de suma importância para o alcance da discussão
perquirida neste artigo. Diante disso, faz-se necessário adentrar não só à sua conceituação, como
também aos pressupostos necessários à sua configuração.

303
2.1 Significado

O superendividamento do consumidor pode ser compreendido como a impossibilidade


de o devedor – pessoa física e de boa-fé – adimplir com todos os seus débitos de consumo,
vencidos e vincendos, sem comprometer o mínimo existencial ou a sua sobrevivência
(MARQUES; CAVALLAZZI 2006). Definição similar está disposta também no § 1º do art.
54-A do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990), o qual passou a integrar a norma
após o advento da nova Lei n. 14.181/2021.
Disso depreende-se que a legislação não fornece amparo jurídico a todo e qualquer
indivíduo em situação de mero endividamento; em verdade, o endividamento é um fato presente
na sociedade de consumo, já que para adquirir produtos e serviços os consumidores endividam-
se frequentemente. O superendividamento, por outro lado, relaciona-se a indivíduos que não
possuem condições de adimplir com o seu passivo sem prejudicar o mínimo existencial, ou seja,
sem comprometer condições básicas e essenciais para o seu sustento.
Em suma, a simples impossibilidade de pagamento temporária não é suficiente para
caracterizar o superendividamento do consumidor. Para tanto, é necessário que o devedor se
encontre impossibilitado, de modo duradouro e estrutural, de quitar uma ou mais dívidas
(SCHMIDT, 2009).
Existem diversas causas hábeis a acarretar o superendividamento, tais como a facilitação
e o abuso na concessão do crédito pelas instituições financeiras, a ausência de informações
claras a respeito dos encargos incidentes e do detalhamento contratual, o marketing agressivo,
dentre outras (FILOMENO, 2012). Fato é que, como será visto nos próximos capítulos, os
fornecedores de produtos e/ou serviços bancários são um dos maiores – senão os maiores –
causadores da situação de superendividamento dos consumidores.
Por fim, embora a questão tenha sido positivada recentemente na legislação, a doutrina
brasileira sofreu forte influência do Code de la Consommation (FRANÇA, 1993), que define o
fenômeno do superendividamento, em seu art. L-711-1, de forma semelhante àquela exposta no
CDC. As principais diferenças estão no fato de que a legislação francesa nada menciona a
respeito do mínimo existencial, bem como inclui elementos, como a caução e garantias, além
de dispor expressamente acerca da possibilidade de o devedor ter bens disponíveis, desde que
para a moradia (BENJAMIN; MARQUES; LIMA 2021).
Esclarecida a origem, assim como o significado da expressão, adentra-se aos seus
pressupostos, que são classificados em subjetivos, objetivos e finalísticos.

304
2.2 Pressupostos

Entende-se que há 3 (três) tipos de elementos inerentes à conceituação de


superendividamento do consumidor. São eles: elementos subjetivos (ratio personae), objetivos
(ratio materiae) e finalísticos (BENJAMIN; MARQUES; LIMA 2021).
Os elementos subjetivos estão relacionados à noção de que a lei somente é aplicável a
pessoas naturais e que estejam de boa-fé.
Note-se, o intuito do legislador ao criar tal procedimento era, nitidamente, conceder
amparo legal ao consumidor pessoa física (destinatário final, conforme art. 2 do CDC, ou por
equiparação, com fulcro no § do art. 2 do CDC), notadamente porque as pessoas jurídicas já
possuem seu próprio sistema de recuperação judicial ou de falência, que serve justamente para
as amparar em caso de crise ou de insolvência.
Outrossim, exige-se o pressuposto da boa-fé, a qual é objetiva e presumida para todos
os consumidores, sendo necessária prova em contrário da fraude, má-fé subjetiva ou dolo para
o afastamento da proteção legal (BENJAMIN; MARQUES; LIMA 2021).
Os elementos objetivos, por sua vez, dizem respeito à aplicação da lei somente nos casos
que envolvem dívidas de consumo, exigíveis ou vincendas, e quando se verificar
impossibilidade manifesta de pagar a totalidade dos débitos.
Do primeiro pressuposto, entende-se que as dívidas devem decorrer necessariamente de
uma relação de consumo, de modo que estão excluídos do texto legal débitos alimentares ou
tributários (fiscais e parafiscais). No entanto, importante dizer que, ainda que tais débitos não
possam ser renegociados no processo de superendividamento, serão considerados quando do
cálculo do mínimo existencial, já que influem diretamente na condição econômica do
consumidor.
Ademais, o § 1º do art. 104-A do CDC exclui do processo de repactuação dívidas
advindas de contratos de crédito com garantia real, dos financiamentos imobiliários e de crédito
rural (BRASIL, 1990). Estes débitos, da mesma forma, serão contabilizados para a definição
do mínimo existencial, mas não serão repactuados ou incluídos no plano de pagamento.
O segundo elemento objetivo, relacionado à impossibilidade manifesta de pagar a
totalidade das dívidas de consumo, revela a necessidade de se verificar a efetiva incapacidade
de o consumidor adimplir o conjunto de suas dívidas vencidas e vincendas, levando em
consideração a remuneração mensal, a garantia do mínimo existencial, eventual situação de
desemprego ou doença, dentre outros.

305
Por fim, tem-se o elemento finalístico, que se relaciona ao intento de preservar o
mínimo existencial. Tal requisito é, de fato, um elemento fundamental para aferição do efetivo
superendividamento, sendo citado pelo legislador em diversas passagens do texto legal, o que
denota a sua importância como novo paradigma do CDC.
Vale dizer que a sua razão de existir vai ao encontro do princípio da dignidade da pessoa
humana (art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988), da proteção especial e ativa do
consumidor (art. 5º, XXXII, da Constituição Federal de 1988) e cumpre a finalidade da ordem
constitucional econômica de assegurar a todos uma existência digna (art. 170 da Constituição
Federal de 1988). Isso porque garante ao devedor, na repactuação de dívidas e na concessão de
crédito, uma quantia mínima destinada à manutenção das despesas mensais razoáveis de
sobrevivência, tais como água, luz, alimentação, saúde e moradia, dentre outras.
Trata-se, então, de uma das mais importantes inovações para o Código de Defesa do
Consumidor, de forma que será um dos principais pilares capazes de evitar e prevenir o
superendividamento de consumidores.

3 REPERCURSSÃO JURÍDICA DO SUPERENDIVIDAMENTO: DO ADVENTO DA


LEI N. 14.181/2021

Acredita-se que a Lei n. 14.181/2021 seja uma espécie de divisor de águas, já que
enaltece o microssistema do Código de Defesa do Consumidor em tempos de propagação da
liberdade econômica e de crise global (BENJAMIN; MARQUES; LIMA 2021). Com o advento
dos novos dispositivos que passaram a integrar a lei protecionista, foi sistematizado muito mais
do que um mero procedimento destinado ao soerguimento dos consumidores superendividados:
em verdade, foram estabelecidos novos paradigmas de informação, de concessão responsável
de crédito, de observância e cautela com o mínimo existencial e de prevenção da situação de
superendividamento.

3.1 Principais alterações no código de defesa do consumidor

De todas as modificações promovidas pela Lei n.14.181/2021, há cinco delas que


merecem destaque, senão vejamos.
A primeira alteração de relevância notória diz respeito à inclusão de regras relacionadas
à prática de crédito responsável, que detêm o nítido intuito de prevenir o superendividamento
dos consumidores. A exemplo, cita-se o disposto nos artigos 54-B, 54-C e 54-D, todos do CDC
(BRASIL, 1990), os quais dispõem acerca da obrigatoriedade do prévio fornecimento de
306
informações, do necessário controle da publicidade - a fim de que não dificulte a compreensão
dos contratantes acerca dos riscos na pactuação do crédito - e do combate ao assédio de
consumo.
Em suma, tais normas buscam proteger os consumidores de práticas abusivas
comumente utilizadas pelos fornecedores, que acabam por colaborar com o
superendividamento da parte hipossuficiente da relação.
A segunda modificação substancial está relacionada ao incentivo da atuação leal e de
boa-fé na concessão e na cobrança de dívidas. A entrega voluntária de cópia do contrato aos
consumidores, por exemplo, é um tipo de conduta voltado a este viés, em que se valoriza o
dever de transparência e de informação.
Garantir a proteção do mínimo existencial na repactuação de dívidas e na concessão
de crédito é a terceira grande mudança promovida pela Lei n. 14.181/2021 e especificada,
especialmente, no art. 54-A, § 1º, do CDC. Com efeito, a noção de mínimo existencial passou
a ser a grande “razão de existir” do superendividamento, já que se tem como primazia a
conservação de um valor mínimo destinado à sobrevivência e à dignidade do consumidor
pessoa natural.
Note-se que não se trata do resguardo desta garantia somente durante o trâmite do
processo, mas sim desde a concessão de crédito pelas instituições financeiras, as quais devem
realizar uma análise detida das efetivas condições econômicas do contratante, sem fornecer
crédito superior à sua capacidade financeira.
A quarta alteração está consubstanciada na garantia do tratamento do
superendividamento por meio da revisão e da repactuação de dívidas na forma de uma
conciliação em bloco – que pode ser realizada pelos PROCONS ou demais órgãos públicos do
Sistema Nacional de Defesa do Consumidor - e da elaboração de um plano de pagamento. Trata-
se, então, da chamada “exceção de ruína”, embasada no dever anexo de boa-fé de cooperar com
o devedor (art. 6, XI e XII e art. 104-A, ambos do CDC).
Por fim, a quinta inovação advinda da lei diz respeito à criação de novos mecanismos
de tratamento judicial do superendividamento, bem como de núcleos de conciliação e mediação.
Há, inclusive, a designação de um juiz que, em caso de ausência de conciliação prévia, imporá
um plano de pagamento judicial compulsório às partes (art. 104-B do CDC).
Tendo sido apontadas, resumidamente, as principais inovações da Lei n. 14.181/2021,
importa explicar alguns dos principais paradigmas que nortearam estas mudanças.

307
3.2 CINCO PARADIGMAS DA LEI

3.2.1 O paradigma do mínimo existencial (ou da essencialidade)

Como referido anteriormente, a preservação do mínimo existencial é o elemento


finalístico da definição de superendividamento e está relacionado à dignidade da pessoa
humana. Ou seja, é um direito fundamental relativo ao resguardo do mínimo de existência digna
de um indivíduo.
Alguns doutrinadores o chamam de “paradigma da essencialidade”, segundo o qual a
classificação dos direitos deve se dar de acordo com a sua essencialidade: em direitos essenciais
ou úteis ou supérfluos (NEGREIROS, 2006). Quanto maior for o grau de essencialidade do
direito, maior deve ser a sua intervenção.
Tal definição encontra conformidade em uma das premissas básicas do
superendividamento, exposta no § 3º do art. 54-A do CDC (BRASIL, 1990), que dispõe acerca
da vedação da interferência estatal em caso de superendividamento decorrente da aquisição de
produtos de luxo de alto valor, por exemplo. Com isso, entende-se que as prerrogativas
preventivas e protecionistas não são aplicáveis a todo e qualquer compromisso financeiro
provindo de relação de consumo: há limitações de acordo com a essencialidade dos direitos
envolvidos.
Por fim, vale destacar que este paradigma é fundado, especialmente, nas disposições
expressas dos arts. 1º, III, e 170, ambos da Constituição Federal (BRASIL, 1988), e nos arts.
6º, XI e XV, 54-A, § 1º, 104-A, caput, e 104-C, § 1º, todos do CDC (BRASIL, 1990).

3.2.2 O paradigma do crédito responsável, do esclarecimento ao consumidor e da informação


obrigatória

Este dogma denota a reverência à lealdade e à transparência no mercado de crédito de


consumo.
A concessão de crédito de forma responsável impõe às instituições financeiras a
obrigatoriedade de avaliar, previamente, a condição financeira do consumidor, com o intuito de
que não colaborem para com a situação de seu superendividamento. A propósito, é desde este
momento que deve ser observado o paradigma tratado no tópico anterior, na medida em que o
próprio fornecimento de crédito deve se ater à preservação do mínimo existencial do indivíduo.

308
Aliado a isso, a lei ordena que seja prestada informação clara e precisa a respeito da
modalidade creditícia contratada, do custo efetivo total, dos encargos incidentes, bem como de
todas as demais imposições expostas nos arts. 52 e 54-B do CDC. Inclusive, o art. 54-G, II e §
2º, do mesmo diploma legal, que estabelece o dever de entrega de cópia do instrumento
contratual, denota o dever de transparência e de lealdade com a parte hipossuficiente da relação.

3.2.3 O paradigma da sanção pelo descumprimento dos deveres de informação e de boa-fé

A Lei n. 14.181/2021 não só ampliou a proteção antes dada ao consumidor, como


também fixou sanções para aqueles que descumprirem as regras expostas no CDC.
Um exemplo disso é o teor do parágrafo único do art. 54-D do CDC (BRASIL, 1990),
que dispõe a respeito da possibilidade de revisão judicial dos juros e demais encargos, bem
como da hipótese de dilação do prazo de pagamento firmado no contrato originário. De acordo
com a gravidade da conduta do fornecedor, o magistrado pode avaliar quais penas entende
cabíveis no caso, sem prejuízo de o consumidor buscar, ainda, reparação por perdas e danos,
danos patrimoniais e morais.
Tais determinações têm o fito de possibilitar o cumprimento eficaz das regras, inibindo
eventuais condutas abusivas e ilegais.

3.2.4 O paradigma do combate ao “assédio de consumo” e à falta de reflexão

O inciso IV do art. 54-C do CDC veda o assédio ao consumidor para contratar produto,
serviço ou crédito, especialmente quando se tratar de indivíduo analfabeto, idoso ou com
vulnerabilidade agravada (BRASIL, 1990). Trata-se da proteção da parte hipossuficiente que,
por vezes, cede à oferta deliberada de crédito e acaba por se superendividar em razão da
proposta aparentemente atrativa.
Além disso, o novo conjunto normativo acabou por reforçar a hipótese referente ao
direito de arrependimento, por meio do disposto no § 1º do art. 54-F do CDC (BRASIL, 1990),
que prevê a possibilidade de a parte se arrepender do contrato de crédito e, com isso, resolver
de pleno direito eventual pacto que seja conexo.
Não obstante, o art. 54-B do CDC determina, em seu inciso III, que as ofertas de crédito
devem durar, no mínimo, dois dias (BRASIL, 1990). Note-se que esta norma decorre
justamente da necessidade de se conceder prazo razoável ao cliente para que reflita a respeito
da proposta, sem se sentir pressionado a aceitá-la de pronto de forma impensada.
309
3.2.5 O paradigma da justiça e da correção dos erros

A Lei n. 14.181/2021 estabelece um novo paradigma de correção de erros ao buscar


efetivar o direito de “charge back” do consumidor (art. 54-G do CDC) e ao estabelecer novas
normas para a realização da cobrança de dívidas (art. 54-B, § 1º e § 3º, e art. 54-C, ambos do
CDC).
É consabido que os erros nas operações de crédito – seja por fraude, por mero engano
ou por falha sistêmica – são inerentes a qualquer relação de consumo, especialmente diante da
amplitude e da alta complexidade envolvida no mercado atual. Em razão disso, é imprescindível
o uso de mecanismos hábeis a corrigir as máculas rapidamente, a fim de mitigar qualquer dano
que possa atingir o consumidor.

4 DOS ÓBICES AO TRATAMENTO DO SUPERENDIVIDAMENTO E À


EFETIVIDADE DA LEI

É inegável que o advento da Lei n. 14.181/2021 trouxe importantes avanços ao


ordenamento jurídico ao substituir a antiquada cultura da dívida e da exclusão social do
consumidor superendividado pela nova cultura do pagamento (BENJAMIN; MARQUES;
LIMA 2021). Aliado a isso, impôs importantes sanções aos fornecedores que praticam condutas
ilegais, abusando da concessão de crédito e, consequentemente, contribuindo para com a
situação de superendividamento de seus clientes.
No entanto, embora todas as modificações tenham representado um verdadeiro
progresso no caminho que visa à proteção do hipossuficiente, há situações fáticas que,
infelizmente, não foram abarcadas pela lei, além de novas normas que, possivelmente, não
alcançarão a sua plena efetividade, senão vejamos.
Primordialmente, vale repisar que o art. 104-A, § 1º, do CDC exclui do procedimento
de “repactuação” contratos de crédito com garantia real, financiamentos imobiliários e créditos
rurais. Ou seja, dívidas provindas de financiamentos imobiliários relacionados ao Sistema
Financeiro de Habilitação - ou a programas similares - ou garantidas por cédulas de crédito
rural não poderão ser renegociadas ou incluídas no plano de pagamento. Em verdade, débitos
de tais espécies apenas serão levados em consideração no cálculo do mínimo existencial.
Diante disso, a norma instituída afeta a possibilidade de os agricultores, por exemplo,
participarem desse processo de composição de dívidas, o que se mostra lastimável, já que,
conforme recente informação fornecida pelo Banco Central, as dívidas com crédito rural acima
310
de noventa dias somavam R$ 2,624 bilhões em fevereiro de 2022, uma alta de 103% em
comparação aos R$ 1,292 bilhão de dívidas no mesmo mês de 2021 (MARZOCHI, 2022).
De qualquer modo, cabe destacar que esta limitação não prejudica o direito dos
agricultores, como pessoas naturais, de receberem o amparo instituído pelo capítulo VI-A, que
trata da prevenção do superendividamento.
No que diz respeito ao estabelecimento de normas que poderão se mostrar ineficazes
quanto ao seu efeito prático, vale destacar, em primeiro lugar, o procedimento legal previsto
para a realização de audiência conciliatória.
Com efeito, a lei não faz menção à necessidade de participação de advogados nos
dispositivos que regulam a audiência de conciliação em bloco (art. 104 e seguintes do CDC).
Ainda que se compreenda o motivo da prescindibilidade de procuradores, é importante observar
que, dificilmente, o consumidor leigo terá condições de identificar a incidência de encargos
abusivos para recalcular, adequadamente, o valor devido após o expurgo das rubricas ilegais
(BENJAMIN; MARQUES; LIMA 2021).
A propósito, é improvável que o consumidor logre êxito em apresentar proposta de plano
de pagamento, com ou sem advogado, já que raramente as instituições financeiras fornecem,
previamente, o demonstrativo de evolução da dívida, com os encargos aplicáveis e o
detalhamento a respeito de toda a cadeia contratual existente (em caso de refinanciamentos). E
tal óbice se verifica não apenas no âmbito administrativo, como também no judicial (inclusive,
após intimação expressa do juízo para que o banco apresente toda a documentação atrelada
àquela relação de consumo).
Ou seja, no caso da audiência conciliatória, prévia ao processo de superendividamento,
o indivíduo, dificilmente, tem conhecimento do valor atualizado do débito aportado, motivo
pelo qual se apresenta, no dia da solenidade, sem uma proposta de plano de pagamento. É a
partir dessa oportunidade que passa a ter ciência do montante total que é, supostamente, devido.
Diante disso, são duas as possibilidades: i) que o consumidor, leigo e hipossuficiente,
ceda às ofertas realizadas no dia da audiência, sem qualquer preparação e estudo prévio a
respeito do débito cobrado e dos encargos envolvidos; ii) que o consumidor opte por dar
seguimento ao processo de superendividamento, de modo que, remotamente, terá êxito a
tentativa conciliatória, tratando-se de etapa inócua.
No mais, destaca-se o paradoxo instaurado pela própria legislação ao, simultaneamente,
estabelecer i) a garantia de um mínimo existencial ao consumidor (art. 104-A, caput, do CDC),
ii) a garantia do valor principal da dívida, acrescido de correção monetária, aos credores (art.

311
104-B, § 4º, do CDC); e iii) o prazo máximo de 5 (cinco) anos para repactuação das dívidas
(art. 104-B, § 4º, do CDC).
Indubitável que as garantias estabelecidas detêm notória importância para a preservação
das relações de consumo e da segurança jurídica dos negócios entabulados. Contudo, não
raramente estas três condições podem entrar em conflito, de forma que alguma delas precisará
ser relativizada em detrimento das demais, a fim de possibilitar a instituição de um plano de
pagamento compulsório.
É comum a oferta de crédito ao consumidor em valor exponencialmente superior àquele
cabível em seu orçamento (CARPENA; CAVALLAZZI 2005). Em razão disso, ainda que se
garanta a preservação das condições básicas e essenciais para o sustento do indivíduo, o valor
da dívida, corrigido monetariamente, costuma ser estratosférico, de modo que a parcela advinda
da diluição do pagamento no prazo de 5 anos poderá permanecer com valor muito acima do que
a capacidade econômico-financeira do contratante.
Ou seja, é impossível, em algumas situações, conciliar os três elementos exigidos pela
legislação, o que acarretará na futura impossibilidade de cumprimento do plano compulsório
ou na desistência do processo pelo proponente antes mesmo da homologação do plano.
Disso, depreende-se possíveis problemáticas que surgirão na prática e que exigirão da
teoria, ou melhor, da lei, atualização contínua, com o fito de tornar a proteção do consumidor
superendividado uma regra absoluta, e não relativa.

5 CONCLUSÃO

Da análise das principais alterações instituídas pela Lei n. 14.181/2021, verifica-se que
o seu advento representa um imenso progresso no caminho que visa à proteção do direito do
consumidor.
Suas inovações não apenas positivaram novos direitos fundamentais, tal qual a
preservação do mínimo existencial, como também precisaram, com clareza, algumas práticas
costumeiras e extremamente abusivas dos fornecedores de crédito, estabelecendo sanções
robustas para aqueles que as cometerem.
A própria estipulação de um sistema binário – extrajudicial e judicial – para o tratamento
do superendividamento se revelou uma concepção magnífica, projetada de forma detalhada para
uma fase preventiva – que prevê uma conciliação em bloco – e uma fase judicial, caso a
tentativa conciliatória reste inexitosa. Fato é que nunca se buscou tanto reconhecer o

312
superendividamento como um fator de exclusão social e um problema coletivo de política
econômica e também jurídico.
Contudo, como toda e qualquer lei nova, faz-se necessário refletir a respeito da
aplicação prática da regra, sob a égide do intento do legislador, a fim de se verificar se a teoria,
de fato, está cumprindo o seu papel quando posta em prática.
Os óbices mencionados são apenas alguns dos que possivelmente existem, e necessitam
de premente tratamento, já que se revelam como um problema para o correto prosseguimento
do procedimento previsto em lei. O consumidor, hipossuficiente e leigo, necessita do amparo
legal para superar a situação econômica em que se encontra, especialmente em razão de sua
posição de extrema fragilidade perante os fornecedores de crédito que, não raramente, negam-
se a fornecer cópia do instrumento contratual e informações precisas acerca do que compõem
o débito aportado.
No mais, o paradoxo instituído pela própria norma ao estabelecer a garantia de
preservação do mínimo existencial ao consumidor, a garantia de pagamento do valor principal,
corrigido, ao credor e o prazo máximo de 5 (cinco) anos para parcelamento da dívida, é uma
problemática a ser revista. Entende-se o intuito do legislativo ao estabelecer tais regras, mas
fato é que não poderão ser conciliadas em muitos casos.
Devido ao abuso na concessão do crédito, o próprio valor originário da dívida mostra-
se infinitamente superior à capacidade econômico-financeira do indivíduo, o qual, muitas
vezes, não conseguirá realizar o pagamento no prazo máximo estabelecido pela lei, sem
prejuízo das despesas básicas e essenciais ao seu sustento. Diante disso, certamente, a norma
precisará prever, futuramente, uma hipótese legal que abarque este tipo de situação, a fim de
alcançar a plena proteção a todo e qualquer consumidor superendividado.
A respeito disso, é possível avaliar o próprio instituto de “perdão de dívida” como sendo
uma hipótese resolutiva para tais situações, a depender das peculiaridades do caso em concreto.
Destarte, é inquestionável a importância da legislação, que trouxe a oportunidade de
reversão da condição de superendividamento para aqueles que necessitam. No entanto, deve-se
observar a sua aplicação prática, com vistas a verificar em que ponto residem as suas
fragilidades, as quais devem ser supridas para o correto tratamento da problemática envolvida.
Sendo a figura do consumidor uma das mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro,
faz-se essencial o seu resguardo, conferindo a maior proteção possível para aqueles que
necessitam de amparo jurídico.

313
REFERÊNCIAS

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Sophia Martini. Comentários à Lei n. 14.181/2021: a atualização do CDC em matéria de
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_____. Lei n. 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990
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SCHMIDT NETO, André Perin. Superendividamento do Consumidor: conceito, pressupostos


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314
OS DESAFIOS DA PROTEÇÃO DE DADOS DO CONSUMIDOR NO
COMÉRCIO ELETRÔNICO EM FACE DA PUBLICIDADE
COMPORTAMENTAL

Jovana De Cezaro1
Nadya Regina Gusella Tonial2

RESUMO

A presente pesquisa visa analisar os desafios decorrentes do comércio eletrônico e a proteção


dos dados dos consumidores em face da publicidade comportamental. Justifica-se a importância
do tema, pois as transformações tecnológicas que deram origem à internet, possibilitaram novas
formas de comercialização de bens e serviços, por meio do e-commerce, revolucionaram as
práticas de publicidade e valorizaram a coleta de dados. Objetiva-se entender a vulnerabilidade
do consumidor no comércio eletrônico, bem como investigar a publicidade comportamental e
a proteção dos dados do consumidor no ambiente virtual. Constata-se que, o consumidor possui
sua vulnerabilidade agravada nas plataformas de comércio eletrônico, por se tratar de um
universo dinâmico e complexo. Assim, a criação de perfil, pela coleta e tratamento de dados
dos consumidores, para uso na publicidade comportamental não pode ser direcionada aos
usuários da internet sem que haja consciência e anuência deste direcionamento, sob pena de
violar sua privacidade. O consentimento é imprescindível para tutelar a vida privada do
consumidor, no que tange aos seus dados, bem como para promover a proteção dos demais
direitos previstos no diploma consumerista.

Palavras-chave: Comércio eletrônico. Consumidor. Internet. Proteção de dados. Publicidade


comportamental.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo busca analisar os desafios da sociedade de informação, em especial,


no que tange ao comércio eletrônico e a consequente proteção dos dados dos consumidores, em
face da publicidade comportamental.
Justifica-se a importância do tema, tendo em vista que, as incessantes mudanças nos
meios de informação e de comunicação provocaram o surgimento de uma nova realidade
denominada, virtual. Esse avanço tecnológico, mormente pela internet, criou uma nova forma
de venda e aquisição de produtos e ou serviços, por meio do comércio eletrônico, que, por sua

1
Mestra em Direito pela Universidade de Passo Fundo - UPF. Especialista em Advocacia Cível pela FMP.
Advogada – OAB/RS 120.665. Endereço de e-mail: jovanadc@hotmail.com.
2
Doutora em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí-UNIVALI. Mestra em Direito pela UNISINOS.
Professora Titular I da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo - UPF. Advogada – OAB/RS 26.911.
Endereço de e-mail: nadyatonial@gmail.com.
315
vez, revolucionou as práticas de publicidade e valorizou a coleta e utilização de dados, o que
traz inúmeros desafios na proteção dos direitos do consumidor.
Com isso, o problema a investigar assenta-se na seguinte indagação: a utilização de
dados pessoais para a publicidade comportamental, a chamada criação de perfil, no comércio
eletrônico, pode configurar uma violação do direito à privacidade do consumidor? Para
responder a problemática jurídica, o método de abordagem utilizado foi o hermenêutico,
buscando a interpretação e a compreensão dos sentidos dos institutos investigados, e a técnica
de pesquisa usada foi a bibliográfica.
Desse modo, objetiva-se compreender o impacto das novas tecnologias nas relações de
consumo e, nessa seara, examinar a vulnerabilidade do consumidor nas contratações
realizadas no comércio eletrônico. Analisar a algoritmização no comércio eletrônico, por meio
da formação de perfis dos consumidores com a coleta de dados. A par disso, entender a
publicidade comportamental e suas consequências para o consumidor virtual e, por fim,
estudar os limites à publicidade comportamental e a proteção dos dados do consumidor, no
ambiente virtual.

2 A (HIPER)VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR NO COMÉRCIO


ELETRÔNICO

A sociedade sofre constantes e complexas mudanças, principalmente, no que concerne


à tecnologia e aos meios de comunicação. Com o avanço tecnológico, a humanidade presenciou
incessantes e profundas transformações na vida pessoal, no trabalho e no próprio contato social
das pessoas. Um dos principais mecanismos que estabeleceu essas alterações foi a internet, que
trouxe comunicação e informação instantâneas e, no campo dos negócios, propiciou o
surgimento do comércio eletrônico.
Assim, as mídias sociais e a difusão da internet apresentam-se como “cenários para uma
sociedade hiperconectada”, bem como “possibilitam o acesso à informação e promovem a
comunicação de forma instantânea” (BARBOSA; SILVA; BRITO, 2019, p. 09). Tal conexão
relativiza as noções de tempo, permitindo comunicação direta entre pessoas ausentes, e de
espaço, visto que rompe o conceito de território e de distância física.
Essa sociedade hiperconectada promoveu a transformação dos meios pelos quais as
pessoas se comunicam, trouxe profundas mudanças nos hábitos de consumo e, por sua vez, na
forma “como as empresas comercializam e divulgam seus produtos e serviços” (CALISTRO,

316
2020, p. 166). Entre as inúmeras alterações, destaca-se a internet e com ela o surgimento do e-
commerce, também, chamado de comércio eletrônico.
Desse modo, o comércio eletrônico3 consiste “[…] na compra e venda de produtos,
independentemente da sua natureza física ou virtual, ou a prestação de serviços, realizados por
intermédio dos meios eletrônicos de transmissão de dados, envolvendo ainda as formas de
pagamento eletrônico atualmente disponíveis” (ALMEIDA, 2002, p. 89).
Verifica-se que, a internet passou a ser rotina e instrumento indispensável no dia a dia
das pessoas e das empresas. Assim, “anunciar nesse meio digital passou igualmente a ser tarefa
obrigatória das empresas que buscam diferenciar sua marca, bem como promover produtos ou
serviços com maior acuracidade, direcionando-os para públicos-alvo específicos” (DIAS, 2018,
p. 332).
Com isso, observam-se três características marcantes que qualificam o comércio
eletrônico: “a oferta deve constar de uma rede de telecomunicações ou de um serviço
telemático; a proposta deve expressar-se de modo audiovisual; deve haver interatividade entre
profissional e cliente” (GREGO; MARTINS, 2001, p. 18).
Nesse contexto, o grande crescimento do comércio eletrônico de consumo é dado pelas
“facilidades que permite, como a possibilidade de adquirir produtos e serviços sem ter que
deslocar-se até o estabelecimento físico do fornecedor, ou a comparação de preços entre
diferentes fornecedores” (MIRAGEM, 2021, p. 311), além do forte investimento em
publicidade.
A fim de incentivar esse consumo, o e-commerce utiliza, cada vez mais, técnicas
sofisticadas de marketing, por meio de uma publicidade ostensiva e persuasiva, que fazem o
papel de impulsionar as vendas e divulgar novos produtos, criando desejos. A publicidade, na
concepção de Santos, tem dois objetivos: um de trazer informações e outro que busca convencer
(2015, p. 39).4
A difusão da publicidade deve se dar por meio de informações claras e corretas, que
objetivam responsabilizar quem a veicula e responsabilizar os fornecedores, exigindo-se a boa-

3
Para Teixeira, o comércio eletrônico “representa parte do presente e do futuro do comércio. Existem várias
oportunidades de negócios espalhadas pela internet, além de muitas que são criadas em todo momento. É bem
provável que uma pesquisa de preços na internet traga não só́ o menor preço, como também melhores opções de
bens. E, apesar do gargalo representado pelo “analfabetismo digital” de uma grande parcela da população, o e-
commerce já́ desponta junto a uma geração que nasceu com o computador “no colo” ou “nas mãos”. O crescimento
do número de internautas na última década é espantoso (2015, p. 19).
4
Marques define a publicidade como [...] toda informação ou comunicação difundida com o fim direto ou indireto
de promover junto aos consumidores a aquisição de um produto ou a utilização de um serviço, qualquer que seja
o local ou meio de comunicação utilizado. [...] sendo assim, o elemento caracterizador da publicidade é a sua
finalidade consumista (MARQUES, 2005, p. 801).
317
fé entre fornecedor e consumidor e buscando assegurar maior transparência nas relações de
consumo (MARQUES, 2005, p. 800).
Ocorre que, em grande parte dos casos, o excesso de informações acaba por gerar a
desinformação, ampliando a vulnerabilidade do consumidor. Assim, diante do avanço
tecnológico e da complexidade de informações referentes aos produtos e serviços ofertados no
mercado, o consumidor, que já é considerado parte presumidamente mais fraca da relação de
consumo, se torna cada vez mais frágil (LIMA, 2006, p. 45).
A vulnerabilidade é o princípio básico, o qual justifica a existência e a aplicação do
Direito do Consumidor e está disposto no artigo 4º, inciso I do Código de Defesa do
Consumidor. A partir dele o sistema jurídico reconhece a qualidade de polo mais fraco na
relação de consumo, sendo que essa vulnerabilidade pode ser entendida sob diferentes óticas.
Na concepção de Marques quatro são as principais: vulnerabilidade fática ou socioeconômica,
vulnerabilidade técnica, vulnerabilidade jurídica ou científica e a vulnerabilidade informacional
(MARQUES, 2016, p. 339).
Ainda, Verbicaro e Vieira sustentam que, atualmente, existe mais uma espécie, a
vulnerabilidade algorítmica, que decorre das relações de consumo efetivadas no meio virtual.
Explicam que o fundamento dessa vulnerabilidade reside na “reconfiguração da noção de
privacidade diante de tais mecanismos de vigilância e controle, a impossibilidade de agir de
maneira diversa do estabelecido pelos termos de adesão dos aplicativos e sites, a dependência
do novo modelo de negócio, [...]” (2021, p. 06).
A vulnerabilidade algorítmica apresenta-se pela “captação, tratamento e difusão
indevidos dos dados pessoais do consumidor, às vezes por intermédio de dispositivos dotados
de inteligência artificial, em franca violação aos direitos da personalidade, como a privacidade
e intimidade, por exemplo.” (VERBICARO; VIEIRA, 2021, p. 06). Observa-se, também, que

essa nova espécie de vulnerabilidade decorre da insuficiência tecno-normativa do


Direito para a adequada tutela da hiperconfiança do consumidor nesse admirável e
igualmente perigoso mundo virtual, desestabilizando o senso de realidade e de perigo
aos riscos a que está exposto. Em outras palavras, a insuficiência normativa, o
abstencionismo estatal e o protagonismo das grandes plataformas virtuais criam as
condições ideais para a concretização dos danos no ciberespaço (VERBICARO;
VIEIRA, 2021, p. 06).

Ressalta-se que, a vulnerabilidade do consumidor é agravada, em face das contratações


eletrônicas. Nestas hipóteses, principalmente em razão da falta de informação, a parte mais
frágil do negócio encontra-se obrigada em concordar com a celebração de um negócio em
condições que, normalmente, não seriam aceitas (KLEE, 2012, p. 416).
318
Nesse contexto, o comércio eletrônico não proporciona aos consumidores apenas
vantagens e benefícios. A efetivação de transações pelo meio virtual promove, também,
inúmeras formas de abuso por parte dos fornecedores, tendo em vista seu domínio técnico,
econômico e tecnológico sobre o meio. Logo, Miragem afirma que existe uma “vulnerabilidade
inerente a forma de contratação, tanto para efeito de acesso à informação sobre o contrato,
controle dos meios de pagamento e a própria localização geográfica do fornecedor” (2021, p.
312).
Assim, denota-se que a nova forma de consumo proporcionada pela tecnologia
intensifica a vulnerabilidade do consumidor, fazendo surgir mais problemas e fragilidades na
proteção dos direitos consumeristas no comércio eletrônico. Com isso, a vulnerabilidade do
consumidor é agravada, momento que ele pode ser considerado hipervulnerável.
Essa vulnerabilidade agravada ganha mais destaque, diante das inovações introduzidas
no comércio eletrônico, no que tange à coleta dos dados pessoais dos consumidores e sua
utilização, fazendo surgir a preocupação com a proteção de dados dos consumidores no meio
virtual.

3 A FORMAÇÃO DE PERFIS DO CONSUMIDOR

Nas últimas décadas o consumo foi fortemente acelerado em função da economia


globalizada e do acesso à internet que, direta ou indiretamente, permitiram o monitoramento
dos consumidores e fez com que as possibilidades de obter informações sobre os mesmos
aumentassem.
A sistematização de grandes volumes de informações tornou-se possível com o advento
do processamento automatizado, por meio de bancos de dados. Na sociedade de consumo os
arquivos ou bancos de dados de consumo assumem uma importância fundamental para o êxito
do comércio eletrônico.
Os bancos de dados representam o conjunto de informações relativas a pessoa,
estruturadas de acordo com uma determinada lógica e armazenados com a finalidade de
subsidiar a concessão de crédito, a realização de vendas ou de outras transações comerciais e
empresariais. A Lei Geral de Proteção de Dados, no artigo 5º, inciso IV, define banco de dados
como o “conjunto estruturado de dados pessoais, estabelecido em um ou em vários locais, em
suporte eletrônico ou físico”.
Benjamin afirma que

319
o vocábulo banco de dados carreia a ideia de informações organizadas, arquivadas de
maneira permanente em estabelecimento outro que não o do fornecedor que
diretamente lida com o consumidor; ali ficam, de modo latente, à espera de utilização.
A abertura do arquivo no banco de dados nunca decorre de solicitação do consumidor.
Muito ao revés, é inteiramente feita à sua revelia (1997, p. 359).

Essa coleta de dados pode se dar tanto por meios diretos, quanto indiretos. Os primeiros
“consistem nos questionários e nos cadastros de consumidores, realizados no momento da
obtenção de algum produto ou serviço, mediante sorteios, ou por meio de pesquisas de mercado
e de estilo de vida” (MACHADO; RUARO, 2017, p. 428-429). Já, os meios indiretos são
aqueles em que “a obtenção de dados não é feita por arguição direta ao consumidor, dentre eles
destacam-se a coleta de dados por meio de transações comerciais e cartões de fidelidade; de
informações constantes em registros públicos e censos; e pelo uso da internet” (MACHADO;
RUARO, 2017, p. 428-429).
Esse cenário demonstra a assimetria que existe entre consumidor e fornecedor, quanto
ao acesso de dados, no meio virtual. O primeiro tem informações sobre o produto ou serviço,
disponibilizadas nos sites ou aplicativos e, também, pode procurar comentários de
consumidores relatando sua experiência, ou consultar sites de reputação. Enquanto, o
fornecedor consegue ter as mais completas informações, pois “capta dados do consumidor não
só ao solicitar informações diretamente, mas a partir do dia a dia do indivíduo, a cada vez que
ele acessa a internet ou que realiza alguma compra” (MACHADO; RUARO, 2021, p. 427).
No contexto da sociedade informacional, é cediço que “o poder econômico se mede pela
capacidade de coletar e armazenar informações que identificam ou possam identificar pessoas,
que são utilizadas de maneira muito criativa com evidente geração de lucros” (MARQUES;
LIMA, 2022, p. 58).
Logo, com o propósito de atingir maiores vendas, as empresas se valem dessas
informações que possuem em seus bancos de dados sobre os consumidores para traçar o perfil
digital do usuário através do seu comportamento e, consequentemente, determinar as
preferências de cada indivíduo, para personalizar anúncios específicos a esses usuários
(MACHADO; RUARO, 2021, p. 422). Tal conduta é denominada de publicidade
comportamental.
A publicidade comportamental é uma ferramenta publicitária destinada a aumentar a
eficiência das mensagens veiculadas ao preestabelecer um público alvo destinatário da
mensagem. Doneda afirma que a publicidade comportamental “representa a fronteira na qual
se desenvolvem as novas tecnologias de abordagem do consumidor a partir da utilização

320
intensiva de informações pessoais a seu respeito”. Essa publicidade se utiliza “de informações
sobre o comportamento de uma pessoa para que lhe seja especificado o tipo de abordagem que
seria o mais adequado” (2010, p. 63), para promover a venda do produto ou do serviço.
A Federal Trade Commission, norte-americana, conceitua a publicidade
comportamental on-line, afirmando que “means the tracking of a consumer’s activities online
– including the searches the consumer has conducted, the web pages visited, and the content
viewed – in order to deliver advertising targeted to the individual consumer’s interests” (2023,
p. 02).5
Assim, a coleta e agregação de informações sobre consumidores e o seu enquadramento
em um certo perfil são condições preliminares para a publicidade comportamental. A partir da
formação de um perfil, o consumidor é exposto a uma mensagem publicitária específica, em
que são direcionados apenas produtos compatíveis com ele, cuja chance de se enquadrar em
seus interesses é consideravelmente maior. Ao se estabelecer esse profiling, ou criação de perfil,
faz-se com que o consumidor seja individualizado e caracterizado a partir de seus hábitos e atos
(DONEDA, 2010, p. 63-64).
Atualmente, as grandes empresas constroem sua estratégia de mercado a partir da
análise da renda, das preferências e do comportamento de seus clientes, determinando como e
aonde alocarão seus recursos, utilizando tais informações desde o desenvolvimento de produtos
até a locação de pontos de venda (MACHADO; RUARO, 2017, p. 428).
Nesse sentido, Faleiros Júnior e Patz destacam que

O assédio de consumo passa a emanar, enfim, da malversação informacional e, no


contexto da publicidade digital, passa a ocorrer a partir da exploração de
vulnerabilidades, tornando-se inegavelmente ilícito quando categoriza e discrimina a
pessoa, tornando-a como um “perfil” com maior ou menor propensão ao consumo de
determinado bem ou serviço que se lhe pretenda oferecer (2023, p. 222).

Dessa forma, levando em conta os “comportamentos observados em históricos de


compras anteriores, produtos visualizados e outros dados pessoais disponíveis, estabelece-se
uma presunção de quais seriam os seus interesses” do consumidor (DONEDA, 2010, p. 64).
Com isso, verifica-se que, os dados importam na medida em que podem ser convertidos em
informações necessárias ou úteis para a atividade econômica. Assim, a chamada perfilização,
ou seja, construção do perfil de um consumidor, permite aos fornecedores atingir indivíduos

5
Significa o rastreamento das atividades on-line de um consumidor - incluindo as pesquisas que o consumidor
realizou, as páginas da web visitadas e o conteúdo visualizado - a fim de fornecer publicidade direcionada aos
interesses individuais do consumidor. Tradução nossa.
321
por meio de anúncios ou posicionamento de produtos e serviços específicos, visando,
evidentemente, a atividade econômica (FRAZÃO; TEPEDINO; OLIVA, 2019).
Nesse cenário Bushi et al. afirmam que os perfis “are often fed with personal data
provided by the users themselves, but the automated inferences drawn from existing, “non-
sensitive,” or voluntarily disclosed information can stray substantially from any human
judgment or possible inferences imagined by the user who provided their data” (2020, p. 03).6
Ainda, os autores definem perfil, no meio virtual, como “the systematic and purposeful
recording and classification of data related to individuals—a profile is thus a compilation of
data referring to an individual” (2020, p. 03)7.
Logo, na sociedade de informação e do consumo, os “perfis comportamentais são
formados a partir de informações disponibilizadas pela pessoa, além das que são recolhidas pela
pegada digital, típica da era da hiperconexão” (PALMEIRA, 2022, p. 162). Ou seja, o profiling
pode ser compreendido como uma “atividade que busca gerar novas informações a partir de um
conjunto de dados iniciais” (MARTINS, 2022, p. 77-78).
Na criação de perfil, os dados pessoais “são coletados, cruzados, classificados,
formando um detalhado registro de hábitos, preferências, e até mesmo intenções individuais”.
Todo esse processo ocorre muitas vezes “à revelia do titular dos dados, que desconhece possuir
uma identidade fora de sua esfera de controle” (PALMEIRA, 2022, p. 162). Com base no
cruzamento dos mais variados dados pessoais e das mais variadas fontes é possível chegar a
conclusões que posicionem ou categorizem pessoas, por exemplo, em relação ao seu perfil de
consumo (TAMER, 2021, p. 189).
O perfil do consumidor tornou-se o grande foco dos conglomerados varejistas, pois a
obtenção de informações sobre os gostos pessoais do consumidor é um ativo indispensável para
a produção de publicidade (ROTUNDO, 2017, p. 02). Os dados pessoais, portanto, surgem
como um importante ativo econômico, visto que sua utilização aumenta as vendas, pois facilita
a experiência do usuário (BEZERRA, 2021, p. 337).
Enfatiza-se que a formação de perfis não identifica apenas de forma positiva o
consumidor, mas serve, também, como forma de seleção de pessoas a partir de seu potencial de
consumo. “Uma das facetas do tratamento de dados pessoais dos consumidores é a sua

6
A perfilização costuma ser formada por dados pessoais fornecidos pelos próprios usuários, ou de inferências
automatizadas extraídas de informações existentes, "não confidenciais" ou divulgadas voluntariamente, entretanto,
a forma como os dados são utilizados desvia substancialmente de qualquer compreensão que os usuários poderiam
fazer diretamente acerca do fornecimento. Tradução nossa.
7
A criação de perfil é definida aqui como o registro sistemático e proposital e a classificação de dados relacionados
a indivíduos - um perfil é, portanto, uma compilação de dados referentes a um indivíduo. Tradução nossa.
322
utilização como mecanismo discriminatório ao selecionar apenas aqueles consumidores com
um potencial de gerar lucro” (MACHADO; RUARO, 2021, p. 430).
Com a utilização dos bancos de dados e dos perfis de consumo é possível dar maior
celeridade e segurança às relações de consumo. Ainda, a personalização da publicidade “pode
servir tanto ao consumidor, que terá acesso a um conteúdo que lhe seja, provavelmente, mais
útil e pertinente, como ao fornecedor que poderá empregar melhor seus recursos para fins de
publicidade” (MACHADO; RUARO, 2021, p. 431).
No que tange à regulamentação dessa criação de perfil, a Lei Geral de Proteção de Dados
não apresenta nenhuma definição de profiling. No entanto, em seus artigos 12, § 2º8, e 209,
caput, essa atividade é mencionada, e de certo modo, disciplinada.
Assim, os arquivos de consumo auxiliam no desenvolvimento econômico, fazendo
chegar aos consumidores produtos e serviços de acordo com suas necessidades e preferências.
Todavia, quaisquer manipulações ou comercialização desses dados, afrontam diretamente os
direitos fundamentais dos usuários da internet, seja na condição de consumidores ou não. Dessa
forma, a necessidade de proteção dos dados pessoais se apresenta imprescindível nesse cenário
trazido pela realidade virtual, em especial, como forma de disciplinar os abusos cometidos
contra a esfera privada dos cidadãos.

4 LIMITES À PUBLICIDADE COMPORTAMENTAL E A PROTEÇÃO DE DADOS


PESSOAIS DO CONSUMIDOR

O advento da tecnologia e sua maior participação no cotidiano importa, também, em


uma maior análise sobre seus impactos. No contexto atual, com a exposição das vidas pessoais
e coletas, lícitas ou não, de informações privadas visando a posterior publicidade
comportamental, urge a necessidade de refletir um direito à privacidade mais efetivo, sobretudo
tutelado pela proteção a dados pessoais dos consumidores.
O tratamento de dados pessoais, em particular por processos automatizados, é uma
atividade de risco que se concretiza na possibilidade de exposição e utilização indevida ou

8
Art. 12 da Lei Geral de Proteção de Dados: “Os dados anonimizados não serão considerados dados pessoais para
os fins desta Lei, salvo quando o processo de anonimização ao qual foram submetidos for revertido, utilizando
exclusivamente meios próprios, ou quando, com esforços razoáveis, puder ser revertido. [...] § 2º Poderão ser
igualmente considerados como dados pessoais, para os fins desta Lei, aqueles utilizados para formação do perfil
comportamental de determinada pessoa natural, se identificada”.
9
Art. 20 da Lei Geral de Proteção de Dados: “O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de decisões
tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas
as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua
personalidade”.
323
abusiva de dados pessoais, o que afronta diretamente os direitos fundamentais dos usuários
(DONEDA, 2010, p. 39).
Em uma sociedade de informação, os dados, cada vez mais, “são processados e
valorados economicamente, sendo considerados o principal insumo da sociedade
contemporânea e equiparados ao petróleo de outros tempos” (PINHEIRO; BOMFIM, 2022, p.
35).
A proteção dos dados pessoais parte do pressuposto da vulnerabilidade dos seus
titulares, pois estão sujeitos às atividades de tratamento de dados realizadas pelos controladores
e operadores (MARQUES; LIMA; 2022, p. 57). Sarlet destaca que, a proteção de dados
pessoais

alcançou uma dimensão sem precedentes no âmbito da assim chamada sociedade


tecnológica, notadamente a partir da introdução do uso da tecnologia da informática
e da ampla digitalização que já assumiu um caráter onipresente e afeta todas as esferas
da vida social, econômica, política, cultural contemporânea no mundo (SARLET,
2022, p. 21).

Dessa forma, a necessidade de proteção dos dados pessoais se apresenta como forma de
disciplinar os abusos cometidos contra a esfera privada dos cidadãos. Por este motivo a
“proteção de dados pessoais é tida em diversos ordenamentos jurídicos como um instrumento
essencial para a proteção da pessoa humana e é considerada como um direito fundamental”
(DONEDA, 2010, p. 39).
A proteção de dados pessoais é uma maneira indireta de atingir um objetivo último, que
é a proteção da pessoa. Quanto a proteção de dados, no contexto brasileiro, pode-se destacar o
artigo 5º da Constituição Federal, que prevê em seu inciso X como “invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação”. No mesmo sentido, o inciso XII estende tais
medidas aos também invioláveis sigilos de correspondência e comunicações, além de dados e
comunicações telefônicas, embora excetue possibilidades de interferência judicial nesse
sentido, desde que justificáveis. E, ainda, o inciso LXXIX, do mencionado artigo, em que “é
assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios
digitais”.
No âmbito do direito do consumidor, o Código de Defesa do Consumidor surgiu para
tutelar os direitos dos vulneráveis da relação de consumo, não apenas com relação a garantias
e boa prestação de serviços, mas também com relação às informações. O artigo 43 do Código

324
estabelece uma série de direitos e garantias para o consumidor em relação às suas informações
pessoais presentes em “bancos de dados e cadastros”.
O Marco Civil da Internet, dispõe de regras para a proteção de dados pessoais
essencialmente calcadas no consentimento, na transparência, na proteção contra a
discriminação, na comunicação em caso de vazamento, na segurança das informações e dos
sistemas. Destes, pode-se dizer que a inovação mais relevante é a adoção do conceito de que o
acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, o que teria motivado o novo tratamento
dispensado à proteção de dados neste contexto específico.
A evolução legislativa culminou na edição da Lei n. 13.709/2018, conhecida como Lei
Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Esta lei surgiu para regulamentar as atividades
de tratamento de dados pessoais10 e se fundamenta nos princípios do respeito à privacidade, à
autodeterminação informativa, à liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de
opinião, protegendo ainda a intimidade, a honra e a imagem.
O objetivo principal da Lei Geral de Proteção de Dados encontra-se estampada em seu
artigo 1º e visa “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre
desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”. Ainda, Mendes, Cierco e Santana
resumem a razão de ser da Lei Geral de Proteção de Dados em três objetivos:

Ela visa dar mais poder ao indivíduo em relação ao controle de seus dados pessoais,
conhecido como o direito da autodeterminação informativa. Previsto no artigo 2º,
inciso II, da LGPD. Ela almeja fomentar a cultura de proteção à informação,
colocando o assunto na agenda dos executivos. Como estimulado no artigo 50 caput.
Também tem o objetivo de frear o uso indiscriminado das informações pessoais, que
se tornou cada vez mais comum. Como materializado nos princípios do artigo 6º
(2022, p. 35).

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais visa “equacionar e equilibrar os interesses


em jogo: de um lado, a busca de lucro pelos agentes de tratamento de dados pessoais; de outro,
a proteção à autodeterminação informativa (MARQUES; LIMA, 2022, p. 58). Assim, a captura
e utilização de dados pessoais precisa respeitar as barreiras impostas pelo direito à privacidade.

10
A Lei Geral de Proteção de Dados, em seu artigo 5º, inciso X, define o tratamento de dados como “toda operação
realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização,
acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação,
avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração. Também, o
artigo 5º, inciso I, define dado pessoal como “informação relacionada a pessoa natural identificada ou
identificável”. E os dados pessoais sensíveis como aqueles sobre “origem racial ou étnica, convicção religiosa,
opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à
saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural”.
325
Observa-se que, tentar estabelecer regulamentos, em matéria de dados pessoais,
voltados a um país específico não é suficiente, visto que essa matéria é de interesse mundial,
logo carece de um tratamento com maior abrangência (CRIVILIM; GUIMARÃES;
ESPOLADOR, 2022, p. 190). Neste diapasão, é de se citar dois importantes mecanismos
internacionais.
A Convenção 108 do Conselho da Europa para a Proteção das Pessoas Singulares no
que tange ao Tratamento Automatizado de Dados Pessoais, de 28 de janeiro de 1981, que foi o
primeiro instrumento internacional juridicamente vinculativo adotado no domínio da proteção
de dados. Em 2018, foi proposta a modernização dessa Convenção, sob a justificativa da
adaptação do texto original às novas tecnologias de informação e comunicação (CRIVILIM;
GUIMARÃES; ESPOLADOR, 2022, p. 190).
Cita-se, ainda, o Regulamento Geral de Proteção de Dados Pessoais Europeu n.
679/2016, ou apenas GDPR, relativo à proteção das pessoas singulares, quanto ao tratamento
de dados pessoais e à livre circulação desses dados. No Brasil, a LGPD muito se aproxima da
GDPR, momento em que ambas possuem como base os direitos fundamentais e a tutela da
dignidade da pessoa humana (TEIXEIRA; ARMELIN, 2020, p. 21-24).
Verifica-se, dessa forma, que seja no panorama nacional ou internacional, há um
consenso sobre a necessária proteção de dados, dada a fundamentalidade deste direito. Isso
porque, “problemas coletivos – potencializados em decorrência da globalização – pressupõem
um agir comunitário, de forma a favorecer a proteção dos titulares de dados pessoais de todos
os países signatários dos regramentos internacionais”, dando efetividade transnacional às
disposições constantes no Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de
Dados (CRIVILIM; GUIMARÃES; ESPOLADOR, 2022, p. 191). Logo,

a necessidade de se garantir a tutela do consumidor, enquanto titular de dados


pessoais, se acentua na medida em que os dados coletados por meio da utilização da
Internet das coisas e do metaverso podem ser armazenados e tratados em outros países,
o que traria entraves burocráticos para o cumprimento de medidas judiciais ou
administrativas, e que não ocorreria se o outro país fosse signatário do mesmo
Tratado, facilitando a aplicação de suas disposições para a proteção dos dados
pessoais, que em última análise é a própria proteção do consumidor [...] Portanto,
sendo o tráfego de dados rápido e desconhecendo limites e barreiras físicas, as
soluções para a proteção dos dados pessoais devem ser tão céleres e amplas quanto
possível, incluindo as normas de proteção ao consumidor e de proteção de dados
combinada com regulamentos internacionais (CRIVILIM; GUIMARÃES;
ESPOLADOR, 2022, p. 191).

Ainda, no que se refere à proteção do consumidor, há uma grande relação entre a LGPD
e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) tendo em vista que ambos se preocupam com a
326
tutela, no que concerne à divulgação dos dados. Assim, o tratamento de dados realizados com
a finalidade direta ou indireta de fomentar a atividade econômica do fornecedor no mercado de
consumo, submete-se à incidência, em comum, do CDC e da LGPD (MIRAGEM, 2019, p. 04).
Com o tratamento dos dados e com a formação do perfil do consumidor é possível a
elaboração de conteúdo publicitário individualizado para cada usuário. É importante entender
que essa prática pode ir contra as garantias constitucionais e os fundamentos previstos na
legislação esparsa, em especial na Lei Geral de Proteção de Dados (BARROS; MARANHÃO,
2022, p. 3).
Verifica-se que, a publicidade comportamental é capaz de “engessar” as oportunidades
de consumo dos indivíduos, a partir do momento em que possibilita às empresas determinar o
que será exposto ou ofertado para cada usuário ou grupo, dificultando o exercício da liberdade
de escolha dos consumidores (BARROS; MARANHÃO, 2022, p. 3). Atenta-se ao fato de que
a LGPD não visa coibir a prática da publicidade comportamental, mas, sim, criar mecanismos
regulatórios para que essa modalidade não se torne ilícita. Dessa maneira, visa propiciar maior
segurança e transparência no tratamento dos dados (BARROS; MARANHÃO, 2022, p. 4).
No caso específico da publicidade comportamental, a questão regulatória centra-se
principalmente em aspectos como o livre consentimento do consumidor, a proteção da
privacidade, a transparência da atividade publicitária e a possibilidade de recusa (DONEDA,
2010, p. 69-70). Com relação ao livre consentimento do consumidor “desdobra-se numa relação
de dependência com o princípio da identificação. Para se obter um livre consentimento é
preciso, primeiramente, que o consumidor possa identificar, de pronto, que está diante de uma
mensagem publicitária” (MACHADO; RUARO, 2021, p. 43).
Outro requisito imprescindível ao livre consentimento atrela-se ao princípio da
informação, referente a transparência da atividade publicitária (MACHADO; RUARO, 2021,
p. 43). Assim, a possibilidade de recusa seria algo posterior ao consentimento. Nesse sentido,
não só a possibilidade de revogação do consentimento deve estar sempre presente, como esta
possibilidade deve ser disponibilizada de forma ostensiva e facilitada (DONEDA, 2010, p. 97).
O consentimento é um fator essencial à publicidade comportamental, desde que o titular
consinta, não há óbices legais para o tratamento dos dados. A definição de consentimento
trazida pela LGPD está disposta no artigo 5º, inciso XII. Nos termos da lei, consentimento é
uma “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento
de seus dados pessoais para uma finalidade determinada”.

327
Neste sentido, denota-se que a proteção dos dados pessoais, deve se dar como tutela do
próprio consumidor, enquanto direito fundamental e da personalidade. Logo, sendo os dados
pessoais, aqueles dados que individualizam a pessoa, é correto associar tal termo à ideia dos
direitos da personalidade, considerando-se a necessária proteção a estes, seja no plano nacional,
seja no internacional (BIONI, 2021, p. 55).
O intento de se adequar a legislação sobre a matéria de proteção de dados pessoais é um
esforço intermitente diante das inovações tecnológicas e dos diferentes contextos sociais nos
quais se insere. Mais do que isso, é importante que se discuta a pertinência da proteção de dados
pessoais no contexto global de uma sociedade interconectada que demanda esforço contínuo
para que sejam concretizadas suas pretensões.

5 CONCLUSÃO

Verifica-se que, o consumidor que já possui uma vulnerabilidade presumida, seja


informacional, técnica, jurídica ou econômica, tem sua fragilidade agravada no comércio
eletrônico. Essa hipervulnerabilidade pode ser entendida em face das especificidades das
contratações na seara virtual, mormente, pela sua dinamicidade e complexidade. Assim,
observa-se que o ambiente, desterritorializado, despersonalizado e desmaterializado, do
comércio eletrônico, além de intensificar a fragilidade do consumidor, também, cria uma nova
espécie denominada de vulnerabilidade algorítmica.
Nesse sentido, o comércio eletrônico é uma realidade decorrente das inovações
tecnológicas, que traz inúmeras vantagens ao consumidor, mas, também, reporta a inúmeros
desafios. Dentre eles, apresenta-se a sistematização das informações por meio do
processamento automatizado de dados. Tais bancos coletam dados, através das pesquisas do
consumidor no ambiente virtual, e promovem uma criação de perfil para o mesmo.
Desse modo, os consumidores passam a ter um perfil e receber publicidade,
denominada de comportamental, com anúncios de produtos e serviços que guardam relação
com as pesquisas que fizeram. Logo, passa a existir uma compilação de dados do consumidor
que pode agravar sua vulnerabilidade, provocar discriminação, violar direitos consumeristas
e, até mesmo, invadir sua privacidade.
Com isso, apresenta-se a necessidade da proteção dos dados, que diante da
globalização econômica e da era informacional possuem altíssimo valor econômico, visto que
direcionam as ações de publicidade e as vendas. No Brasil, a proteção de dados foi positivada
na Constituição Federal, como direito fundamental e regulada pela Lei 13.709/18, a LGPD.

328
Portanto, em resposta à problemática, constata-se que a criação do perfil do
consumidor, pela coleta e o tratamento de dados para uso na publicidade comportamental, não
pode ser direcionada aos usuários da internet sem que haja consciência deste direcionamento,
sob pena de violar o direito fundamental à privacidade. Desse modo, deve haver o
consentimento, tendo em vista que traz riscos aos direitos da personalidade do consumidor, em
especial, a vida privada e a intimidade, bem como às demais normas protetivas do diploma
consumerista.

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332
A APLICABILIDADE DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA MÉDICA EM
SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

Juliana Nicolini de Melo1

RESUMO
A aplicabilidade da objeção de consciência em serviços públicos de saúde, quando motivada
por decisões morais - religiosas, filosóficas ou políticas - que contrariam o posicionamento laico
do Estado é, muitas vezes, questionada. Porém, diante da constatada inexistência de diferenças
na aplicação deste instituto na Medicina Privada e na Medicina Pública, o presente artigo
pretende demonstrar que para os médicos, enquanto atuantes como servidores públicos, para o
cumprimento do dever prestacional de saúde do Estado, fixado pela Constituição Federal,
aplicam-se as mesmas regras e benefícios admissíveis na seara privada, por tratar-se de um
postulado ético-profissional e, sobretudo, de um direito individual fundamental. Com base em
investigação doutrinária, legislativa e jurisprudencial, demostra-se o atual posicionamento
adotado no País, que não exclui o direito de objetar dos servidores públicos, pelo contrário,
defende os direitos de ambos os polos da relação médico-paciente, tornando exigível dos
médicos postura contrária aos preceitos de suas consciências apenas para assegurar, quando não
houver outra alternativa, interesses de maior relevância.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais. Objeção de consciência médica. Serviço público de
saúde. Ponderação.

INTRODUÇÃO

A Medicina vem experimentando algumas importantes transformações: antes


paternalista, tem aberto cada vez mais espaço para a participação do paciente em decisões que
dizem respeito a seu corpo e sua vida, atribuindo a essa participação a devida relevância e, por
consequência, garantindo ao paciente sua dignidade e autonomia enquanto parte da relação
médico-paciente. Ocorre que, em função disso, profissionais de saúde, especialmente médicos,
deparam-se mais corriqueiramente com situações que os colocam divididos entre a obediência
à lei e a observância aos ditames profissionais e o respeito a suas motivações morais que, por
vezes, conflitam com o posicionamento e as escolhas dos pacientes. Em alguns casos, os
profissionais buscam, amparados pelo instituto da objeção de consciência, eximir-se de certas
obrigações, não por contrariedade a um dever de ofício, mas pela ofensa que a prática desse
dever representa a padrões morais próprios. Trata-se de obrigações que, embora lícitas, vão de
encontro aos ditames da consciência.

1
Advogada Especialista em Direito Médico e em Direito Aplicado aos Serviços de Saúde. Graduanda em Saúde
Coletiva. OAB/RS 123.030. E-mail: juliana.ndemelo@gmail.com.
333
Da mesma forma como a relação médico-paciente busca a defesa dos direitos dos
pacientes (antes interpretados como a parte “vulnerável” da relação), deve buscar também a
garantia dos direitos pessoais dos médicos, que encontram respaldo principalmente nos Direitos
Fundamentais. É pacífico o entendimento de que a objeção de consciência é aplicável a médicos
atuantes na esfera privada. Em relação à esfera pública, tomando por base o objetivo maior da
Medicina e o direito universal à saúde, ainda que possa parecer, a priori, que um médico deva
salvaguardar tal direito, por atuar em nome do Estado, é imprescindível perceber que o médico,
enquanto agente estatal, antes de mais nada, também é um sujeito de direitos, mais
especificamente, um destinatário do direito de objetar certas ações por um imperativo de sua
consciência, sendo o dever prestacional do Estado um dever só deste, e não um encargo pessoal
do profissional.
No presente artigo, serão apresentados o conceito de objeção de consciência, sua
essência e seus fundamentos, e o vínculo que tal instituto mantém com a prática da Medicina.
Pela exposição das teses doutrinárias existentes – quais sejam, incompatibilidade, integralidade,
compromisso e justificação –, bem como das normas legais e entendimentos jurisprudenciais
atinentes ao tema, deseja-se argumentar favoravelmente ao direito à objeção de consciência dos
médicos em serviços públicos de saúde, tornando sua aplicabilidade, nesse contexto, irrefutável,
assim como já se verifica nas práticas privadas.

1 A OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA
1.1 Caracterização e especificidades

O direito à objeção de consciência é o direito subjetivo de contrapor-se a determinadas


normas do ordenamento jurídico por razões de crença e de consciência, religiosas, filosóficas
ou políticas; por escolhas fundamentadas na axiologia, ou seja, em um juízo particular de bem
e de mal. Objetar representa parte da própria existência do agente objetor enquanto indivíduo
livre: trata-se de opção individual por desatender à lei humana para ser fiel a um imperativo
moral; configura a desobediência ao direito “que obriga” em obediência a normas morais que o
contrariam.
Historicamente, a objeção de consciência é derivada de crenças religiosas discordantes
da posição do Estado, intensificadas ao longo do tempo na medida em que, ao se
desenvolverem, tornaram-se independentes do poder Estatal. Posteriormente, passou a ser uma
questão de ordem política, na medida em que seu objetivo maior passou a ser a defesa dos
direitos individuais e liberdades públicas, bem ilustradas, inclusive, pela Declaração Universal
334
dos Direitos Humanos, de 1948, que, embora não se trate de um documento vinculante, prevê
a todo homem liberdade de pensamento (cujo objeto são suas ideias, conceitos e juízo sobre a
realidade do mundo e da vida), liberdade de consciência (que se refere a seu juízo de moralidade
e a suas ações) e liberdade religiosa (relativa à fé e à prática, ensino, culto e/ou rito de uma
religião ou convicção). Tais liberdades carregam consigo uma estreita relação com a verdade,
mas seu exercício encontra-se, no entanto, limitado quando contrário à ordem pública ou aos
direitos das demais pessoas.
A objeção de consciência é a previsão normativa de escusa ao cumprimento de uma
norma por motivos de foro íntimo, sem pretensão de modificar a lei ou a política de governo
com a qual não se concorda, mas de simplesmente agir conforme seu “código moral”,
diferentemente do que ocorre na desobediência civil, que é forma de protesto (portanto, ilegal
e desautorizada) contra possíveis injustiças decorrentes da lei ou de atos do Poder Público e que
visa, por meio de incentivo ao descumprimento de ordens, revogá-los ou modificá-los.
Apesar de ambas estarem indexadas pela Constituição Federal como espécies do direito
de resistência, não podem ser confundidas entre si. A objeção de consciência encontra sua
matriz na reprovação de uma lei, por considerá-la injusta com base em uma ordem moral,
superior e justa. Isso significa dizer que ela dá ao objetor a possibilidade de se abster de ações
com as quais pessoalmente não concorda, muito embora sejam científica e legalmente
apropriadas.
Três elementos constitutivos podem ser identificados na objeção de consciência: 1) o
elemento objetivo, no qual, funcionando como uma espécie de cláusula de justificação, isenta
o indivíduo de sansões pelo incumprimento de deveres jurídicos específicos; 2) o elemento
teleológico, em que o objetor pondera suas ações conforme sua avaliação entre o agir bem e o
agir mal, optando pelo que lhe é eticamente aceitável; e 3) o elemento formal, que determina o
caráter individual (e não de grupos ou de entidades coletivas), pacífico (sem que se faça o uso
de força física ou sem que se conteste a autoridade instituída) e privado (íntimo) do exercício
do direito. Há, no entanto, dois grupos de decisões que não comportam análise segundo
fundamentos da própria consciência, quais sejam as normas jurídicas de caráter técnico, nas
quais não há possibilidades de decisões de consciência; e as normas sobre as quais a consciência
ainda não tenha formado juízo, embora se trate de tema moralmente relevante.
De outra forma, pode-se dizer que o tema apresenta duas dimensões distintas: a
dimensão defensiva, na medida em que escusa o objetor do cumprimento de sanções caso
descumpra um dever legal, e a prestacional, que estabelece uma organização e um procedimento

335
para que a objeção produza os efeitos jurídicos pretendidos, o que não significa que a objeção
de consciência subordina-se unicamente ao interesse do legislador, mas que, a pretexto da opção
primeira da lei, cabe ao próprio indivíduo a decisão, consideradas as possibilidades. Enquanto
Instituto Jurídico, a manifestação da objeção de consciência requer um trâmite específico; um
método razoável para que a atuação (ou recusa) do agente implique decisão justa para todos os
envolvidos, fazendo a intersecção entre a ética (de alta repercussão moral) e a política (de baixa
intensidade; negação parcial às leis) através de um critério “destinado a resolver um conflito
que surge entre uma lei política que requer a obediência e os valores sem os quais a pessoa
individual considera que a sua vida perde a sua dignidade ética” (RENAUD, 2010, p. 1). Trata-
se, portanto, de uma reivindicação pontual dentro da norma.
O instituto da objeção de consciência, reconhecido como Direito Fundamental pela
Constituição de 1988, busca afastar a ocorrência de danos desiguais entre as pessoas, bem como
de benefícios especiais para uns em detrimento de outros, determinando ao objetor (como
imposição, e não como possibilidade) uma prestação alternativa, que pode ou não ser mais
custosa que a prestação principal, como forma de evitar abusos na utilização do instituto. O
Estado, pela evidente impossibilidade de adequar o direito às regras morais e éticas de cada um
de seus indivíduos, deve reconhecer o pluralismo como parte integrante de sua organização -
para tanto, sem ditar ou impor atos abstratamente válidos, deve evitar ou, ao menos, reduzir
danos, tornando viável a objeção de consciência em casos específicos (art. 1º, CF).
Essencialmente, objetar de consciência reflete uma “recusa em realizar um
comportamento prescrito, por força de convicções seriamente arraigadas no indivíduo, de tal
sorte que, se o indivíduo atendesse ao comando normativo, sofreria grave tormento moral”
(MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 499); uma pretensão de isenção de cumprimento
de um dever geral, apto a gerar insuportável violência psicológica. Assim, os titulares do direito
à objeção de consciência coincidem com os titulares de liberdade de consciência (art. 5º, VI,
CF), que é decorrente do princípio da dignidade da pessoa humana e carrega em si a
característica individual e personalíssima de sua natureza.
Apesar da existência de argumentos no sentido de que a objeção de consciência culmina
em um privilégio para uma minoria (pelo que estaria ferindo o princípio da isonomia), entende-
se que a pretensão da Constituição foi a de proteger certas garantias individuais pelo
estabelecimento de privações e limites (norma especial) ao princípio da igualdade (norma
geral), justamente para efetivá-las, sem regalias. Cada vez mais o direito das minorias (aqui
entendidas como um grupo de indivíduos em menor número e/ou em desvantagem por questões

336
étnicas ou raciais, sociais, religiosas e/ou linguísticas) se torna mais visível na sociedade, para
corroborar com a construção de uma sociedade cada vez mais plural.
Em tese, a alegação de objeção de consciência restringe-se a pessoas físicas, na medida
em que as pessoas jurídicas nada mais são que abstrações, de caráter ficcional, que não dispõem
características humanas capazes de formar convicções próprias; diversas das de seus titulares.
Porém, quando a pessoa jurídica tiver por objeto a promoção de ideias e convicções e o auxílio
na efetivação da liberdade de consciência, ou seja, quando for formada por pessoas físicas que
se alinhem na mesma convicção e, em razão disso, se identifiquem como membros do mesmo
grupo, também a ela será garantido o direito à objeção de consciência, pois, nesses casos, “negar
a tutela da liberdade de consciência às pessoas jurídicas é impedir que seus membros fruam dela
integralmente” (PIRES, 2019, p. 8).
Percebe-se a heterogeneidade ética das organizações de saúde, que assumem distintas
identidades por meio de declarações de sua missão e de suas práticas políticas organizacionais:
se por um lado existe as que exercem atividades comerciais comuns, análogas à consciência
humana (que são as chamadas entidades instrumentais ou não expressivas, como, por exemplo,
as redes de farmácia), por outro, existem as expressivas, ou seja, aquelas que viabilizam o
exercício das liberdades de seus membros. (WICCLAIR, 2011, p. 34, apud MCCULLOUGH,
2012).
O entendimento majoritário defende que hospitais (públicos ou privados) e operadoras
de planos de saúde, por classificarem-se como entidades expressivas, podem constituir um
“sujeito moral coletivo” que integre tensões internas e externas, formando um “credo moral”
que rejeite práticas como o aborto ou qualquer outra que promova desacordo com sua
“atmosfera moral interna”. Quanto mais a finalidade principal de uma pessoa jurídica religiosa
ou expressiva for afetada por deveres legais, maior será o peso da objeção de consciência. Pires
(2019, p. 12) argumenta que o Estado estaria violando a independência e a liberdade de
organização interna das associações ideológicas “se não considerasse a forma como essas
associações se veem quando interpretando a atividade religiosa resultante de uma confissão ou
credo específico”.
Hoje a objeção de consciência se encontra legalizada em muitos países, porém regrada
de forma específica conforme as características de cada Estado. No Brasil, conforme adiante se
verá, o direito de exercer a objeção não é absoluto e irrestrito; seu exercício pode (e deve) ser
regulado pelo Estado, pela determinação de critérios que a orientem, bem como defendido, tanto
na esfera pública quanto privada, em alusão ao texto Constitucional.

337
1.2 Teses doutrinárias

A relação médico-paciente sugestiona vários vieses – entre eles está o viés social, que
busca a humanização do atendimento e a horizontalização dessa relação, e orienta-se por
experiências anteriores, bem como pelo presente e pelas expectativas de condutas futuras,
considerando contextos, valores, conhecimentos e crenças dos envolvidos em uma espécie de
“negociação da realidade”, em que o diálogo (informativo, terapêutico e decisório) exerce papel
fundamental e possibilita que, tanto médico, quando paciente, transitem no papel de objetor do
todo ou de apenas uma parte dessa negociação.
Em relação à objeção de consciência médica, apesar da grande lacuna existente na
doutrina Bioética e Biomédica sobre o tema, surgiram algumas teses na tentativa de elucidar
eventuais conflitos oriundos da relação médico-paciente, em que, pelo paciente, tem-se a
procura por serviços e tratamentos de saúde que socorram suas necessidades em saúde, e pelo
médico, ainda que a ação pretendida pelo paciente seja legalmente aceita, tem-se a tentativa de
manutenção da saúde do paciente através da adoção de atitude condizente com sua própria
moral.
A primeira delas é a chamada tese da incompatibilidade. Ela sustenta a impossibilidade
de conciliar a prática da objeção de consciência com a missão médica de prestar assistência em
saúde, pelo que aos médicos não seria permitido serem objetores. Trata-se de uma tese
paternalista, aplicável sobretudo em alguns países possuidores de sistema público de saúde, pela
necessidade de postura ativa por parte do Estado no que diz respeito à garantia da efetividade
de Direitos Fundamentais (o qual inclui a objeção de consciência). Nessa teoria, sendo o direito
à objeção de consciência individual e absoluto, em detrimento do querer dos profissionais
envolvidos e/ou do Estado, leva-se em conta exclusivamente a vontade do titular do direito à
vida, em respeito aos princípios bioéticos da não maleficência, da beneficência e da autonomia
da vontade dos pacientes.
Em extremo oposto à tese da incompatibilidade, a tese da integridade defende a objeção
de consciência como um direito absoluto de omissão de atos profissionais por motivos de ordem
pessoal. Nesse viés, o médico nunca seria obrigado a agir em desconformidade com sua
consciência; a participar, de forma direta ou indireta, da prestação ou a facilitar o acesso do
paciente em uma demanda de assistência (através do fornecimento de informações e
orientações, por exemplo), sendo possível sobrepor integralmente o agente moral ao
profissional de saúde. Tal teoria é majoritariamente justificada por seus defensores pelo fato de
que a mera indicação ao paciente de meios de acesso a serviços de saúde configuraria uma

338
forma de cumplicidade com o serviço; já seria uma ruptura com os preceitos particulares do
médico.
Bradley (2009) acredita que a tese da integridade é uma potencial solução para os
impasses com os quais a objeção de consciência se depara, desde que trate do que foi chamado
por ele de “política de referência médica”, em que o médico, desconfortável em proceder
conforme o desejo (legal) do paciente e respeitando os princípios bioéticos da não maleficência
e da autonomia do paciente, o encaminha para outro profissional capaz de atender à demanda.
Contudo, alerta para a possibilidade de o consentimento informado restar prejudicado, na
medida em que o médico poderá não apresentar ao paciente todas as opções disponíveis,
especialmente se algumas dessas opções não estiverem de acordo com sua moral e expectativa,
ou, ainda, engendrar ou reter dados para induzir o paciente a decidir de uma forma mais
aceitável para o médico em prejuízo ao desejo do próprio paciente.
A tese do compromisso (Compromisse thesis), proposta por Mark R. Wicclair, busca o
meio-termo entre as teses anteriormente referidas, estabelecendo parâmetros mínimos de ação
para que se atinja o equilíbrio entre o direito à objeção de consciência do médico e o direito de
acesso à saúde do paciente, quais sejam 1) a observância da dignidade do paciente e o repúdio
a práticas discriminatórias; 2) a busca pela saúde e bem-estar do paciente e 3) o respeito à
autonomia de ambas as partes.
Nesse sentido, a tese do compromisso não aceita, por exemplo, a recusa a atendimento
por alegação de valores racistas ou de atitudes violentas, vez que se trata de uma justificativa
ilegal e não condizente com os direitos humanos: discriminação; danos e encargos ao paciente;
divulgação de opções; encaminhamento e/ou facilitação de transferência; e notificação
antecipada são os cinco pontos que, segundo o autor, comportam restrições ao direito de objeção
de consciência por médicos. Wicclair defende que, por razões de consciência, poderia o
profissional negar-se a prestar determinado serviço, mas que, nesses casos, a indicação de outros
meios de alcançá-lo não reflete conivência, e sim mero respeito à autonomia do paciente, além
de ser um dever profissional.
Diante disso, surgiu, no contexto brasileiro, a tese da justificação, que prevê que a
integridade moral do médico seja avaliada antes de sua designação a determinado cargo ou
serviço. Débora Diniz, autora dessa tese, ao referir que “a aposta na sinceridade moral do objetor
não é suficiente para subsumir Direitos Fundamentais [...] à integridade moral do médico”
(DINIZ, 2011, p. 4), sugere que cabe ao médico objetor justificar sua decisão pela apresentação
de critérios de validade condizentes com aqueles estabelecidos pelo Estado, que devem ser

339
avaliados pela Unidade de Saúde à qual o médico é vinculado pois, embora a objeção de
consciência seja um direito inalienável, nem todas as justificações são plausíveis e adequadas
em um Estado laico. Se, por um lado, a tese da integridade não analisa a relevância da crença
alegada para embasar a objeção de consciência; a tese da justificação, contudo, requer mais que
um simples argumento moral para legitimar a prática da objeção da consciência, na tentativa de
salvaguardar os direitos dos pacientes.
Em regra, a objeção de consciência deve ser manifestada pelo médico de forma
antecedente à sua participação nos serviços de saúde, especialmente quando públicos, pois
orienta-se no sentido de refutar ações, e não pessoas. Isso faz com que sua prática seja genuína;
expressa por convicção, e não somente diante de casos concretos (dita “objeção seletiva de
consciência”).
Vistas as teses e suas respectivas justificativas, nota-se que o tema dá margem para
grandes discussões, sobretudo quando se trata de deveres e direitos oriundos da relação entre
pacientes e profissionais, e da individualidade de cada um desses atores ao lidarem com
questões de vida e saúde.

3 A APLICABILIDADE DA OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA MÉDICA EM


SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE

3.1 Legislação pertinente e projetos de lei em trâmite

A objeção de consciência é contemplada, em primeiro lugar, por uma proteção global,


através de tratados de Direito Internacional que, uma vez ratificados, colocam os Estados em
posição de assunção de compromissos sobre temas de relevância para a sociedade. A
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada pela Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, embora originalmente não apresentasse
natureza de Tratado Internacional (sendo considerada apenas como norma consuetudinária
internacional, de efeito não vinculante), adquiriu tal relevância, em sentido lato, por versar sobre
liberdades fundamentais e Direitos Humanos. Tal declaração, tendo em vista, entre outros
aspectos, “que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana
e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo” (ONU, 1948, preâmbulo), afirma que:
Artigo 18°: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de
religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim
como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto
em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos. (ONU,
1948).
340
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969),
concretiza uma das bases do sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos pois,
com o objetivo de estabelecer um acordo entre os países-membros da Organização de Estados
Americanos (OEA), instituiu o respeito aos Direitos Humanos Fundamentais, como liberdade
pessoal e justiça social. Tal documento foi ratificado pelo Brasil somente algum tempo depois,
em 25 de setembro de 1992, e passou a ter validade no ordenamento jurídico interno por meio
do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.
Sendo a objeção de consciência uma espécie da liberdade, para além da exigência de
compatibilidade entre normas e de um ato normativo nacional para internalizar o direito
internacional, ela compreende também um viés de proteção constitucional (positivada nas
Constituições brasileiras desde a de 18912), que a contempla como um Direito Fundamental e
alicerça o Estado Democrático de Direito até os dias atuais.
O Código de Ética Médica vigente (Resolução CFM n. 2.217, de 27 de setembro de
2018) trata do tema da objeção de consciência por seus profissionais em dois momentos. O
Capítulo I, relativo aos princípios fundamentais, determina que o médico exercerá sua profissão
com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços a quem não deseje ou desconformes aos
ditames de sua consciência, exceto em casos de urgência ou emergência; na ausência de outro
médico ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde ou à vida do paciente. No processo
decisório, ele deve aceitar as escolhas dos pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e
terapêuticos sempre que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. O Capítulo II, por
sua vez, trata sobre os direitos do médico, e assegura ao profissional a possibilidade de “recusar-
se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua
consciência” (CFM, 2018, p. 22).
A Resolução CFM n. 2.232, de 17 de julho de 2019, que trata especificamente da
objeção de consciência pelo profissional diante da recusa terapêutica do paciente, reconhece o
direito à objeção pelo médico, estatuindo um limite para sua manifestação:

Art. 10. Na ausência de outro médico, em casos de urgência e emergência e quando a


recusa terapêutica trouxer danos previsíveis à saúde do paciente, a relação com ele
não pode ser interrompida por objeção de consciência, devendo o médico adotar o
tratamento indicado, independentemente da recusa terapêutica do paciente. (CFM,
2019).

2
“Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: § 28 - Por motivo de crença
ou de função religiosa, nenhum cidadão brasileiro poderá ser privado de seus direitos civis e políticos nem eximir-
se do cumprimento de qualquer dever cívico”.
341
Ademais dos diplomas já apresentados, existem, ainda alguns projetos de lei em trâmite.
Apresentado em novembro de 2009 por Gonzaga Patriota, o Projeto de Lei n. 6.335 dispõe
sobre o direito à objeção de consciência como escusa ao princípio da legalidade (art. 5º, II, CF),
autorizando que ela ocorra no campo do exercício profissional por quaisquer motivos que
agridam os princípios e o foro íntimo do objetor.

Todos os seres humanos têm direitos e liberdades fundamentais inerentes à condição


humana, e toda nação tem a obrigação de respeitar os direitos fundamentais de seus
cidadãos. Nada mais antidemocrático e antiliberal do que obrigar o cidadão a praticar
uma ação que sua consciência condena. Este é um direito previsto na Constituição
brasileira e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é
signatário. Caso alguma atividade não esteja de acordo com a consciência do
indivíduo e não seja obrigatória por lei, este pode objetar-se. (BRASIL, 2009, p. 2).

O Projeto de Lei do Senado n. 149, de 2018, pretendeu, em seu texto original, assegurar
não apenas aos médicos, mas a todos os profissionais de saúde, o direito à objeção de
consciência diante de Diretivas Antecipadas de Vontade, devendo, para tanto, constar em
prontuário as razões da objeção e garantir ao paciente a adequada assistência à saúde, pela
intervenção de outro profissional, nos exatos termos do que dispõe o atual Código de Ética
Médica. Em momento posterior, foi apresentado voto favorável ao Projeto, juntamente com
texto substitutivo que, no que concerne à objeção de consciência, afastou a necessidade de
apresentação de razões para a objeção em prontuário.
Por fim, o Projeto de Lei n. 6.238/2019, da Câmara dos Deputados, pretende, pela
instituição da Lei Nacional da Liberdade Religiosa, garantir ao objetor o direito de reservar-se
quanto ao cumprimento de deveres legais que contrariem os ditames impreteríveis de sua
consciência, assim entendidos todos aqueles em que outro comportamento seja inexigível por
implicarem ofensa grave à integridade moral do indivíduo, sem que disso decorra qualquer
prejuízo ou discriminação. Vê-se, portanto, que a legislação brasileira propende para a defesa
do direito dos médicos à objeção de consciência, com diminuta relativização de sua autonomia.
Considerando que o objetivo maior da Medicina é a saúde, diante de uma objeção de
consciência, mantém-se soberano o dever profissional de assistência mínima.

3.2 O estado laico e a atuação médica em serviços públicos de saúde

O Brasil é um Estado não confessional; laico. Procedimentos como cuidados paliativos


na fase terminal da vida, tratamentos com células-tronco, o cuidado dos agravantes relacionados
ao uso de drogas, transplante de órgãos e doações de sangue, a medicina reprodutiva (sobretudo

342
interrupção da gravidez - abortamento, contracepção, rastreamento de malformações congênitas
e técnicas de fertilização assistida), além da observância das Diretivas Antecipadas de Vontade
dos pacientes, têm sido objeto de recusa por médicos, sobretudo amparados por argumentos de
cunho religioso.
A Constituição Federal protege o direito do médico de atuar profissionalmente de
acordo com suas convicções particulares, por meio dos Direitos Fundamentais, cuja limitação
e relatividade, em caso de conflitos, são explicadas por meio de duas teorias: a teoria interna é
aquela em que o Direito estabelece contornos aos Direitos Fundamentais; em que dialoga
apenas com seus próprios limites e determinações para avaliar o exercício desses direitos,
tornando desnecessária a utilização do princípio da ponderação para solucionar eventuais
conflitos, dada sua categorização com norma de validade estrita, com aplicação do raciocínio
“tudo ou nada”. Em contrapartida, a teoria externa depara-se com o conteúdo do direito,
previamente estabelecido, e com a análise de um conteúdo externo, que estabelece restrições ao
sopesá-lo com outros direitos constitucionalmente assegurados – sem afetar o conteúdo do
direito, mas tão somente seu exercício, tem-se que os Direitos Fundamentais são “mandamentos
de otimização” que contemplam em si, concomitantemente, normas e princípios, e que,
diferentemente das normas (às quais se aplica a teoria interna), são determinações qualitativas,
que requerem a máxima aproximação possível, aplicando-se a técnica da ponderação.

Como é sabido, não há falar em direitos fundamentais absolutos, tanto mais quando
estamos diante de princípios. Estes, diferentemente das regras, ostentam caráter
abstrato, devendo ser sopesados no caso concreto. Como mandamentos de otimização
que são, os princípios poderão ser observados em graus variados, valendo-se [...] da
ponderação para guiar a argumentação em um determinado sentido. Várias podem ser
as respostas que satisfaçam as exigências de otimização. Quanto maior o número de
variáveis - e de direitos - envolvidos em um caso concreto, maior tenderá a ser a
quantidade de respostas que satisfaçam o critério de otimização. As regras, por sua
vez, sendo mandamentos de determinação, de forma a se aplicar, em eventual choque
entre si, o critério do tudo ou nada (all or nothing). (STJ, 2020, p. 4).

É inegável que a sacralidade da vida exerce influência tamanha que acaba por interferir
social e moralmente sobre o Estado, mormente em termos de saúde. Considerando a
inexistência de direitos fundamentais absolutos, ao contrapesar a doutrina da liberdade e da
qualidade de vida dos profissionais médicos e o direito universal à saúde, o direito médico à
objeção de consciência torna-se uma realidade inquietante, sendo indispensável avaliar se, de
fato, os valores morais aplicáveis à Medicina pública e à Medicina privada têm diferentes
prerrogativas.

343
Enquanto à atuação de um médico na esfera particular, para além da Constituição
Federal, aplica-se tão somente os ditames do Conselho Federal de Medicina, ao médico servidor
público, assim como ao médico privado conveniado ao SUS, aplica-se também, de forma
complementar, a Lei 8.112/1990, que em seu art. 239 dispõe que o servidor não poderá ser
privado de quaisquer dos seus direitos nem sofrer discriminação em sua vida funcional por
motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política (BRASIL, 1990b), e a Lei
8.080/1990, que aduz como princípio a igualdade na assistência à saúde, sem preconceitos ou
privilégios de qualquer espécie. (BRASIL, 1990a).
Tratando-se especificamente do serviço público de saúde em um Estado laico, diz-se
que o médico, enquanto agente estatal, é o instrumento de atuação do Estado, estando sujeito a
regras especiais, sobre as quais deve pautar suas decisões, no interesse da coletividade. Nesse
sentido, há quem defenda que o direito de objeção de consciência não deve atingir os titulares
de cargos públicos, vez que não houve investidura forçada ao cargo; que de antemão já era
possível tomar conhecimento das funções às quais estavam se comprometendo; e,
principalmente, por preservarem, a todo momento, a possibilidade de renúncia ao cargo que
ocupam em prol de sua consciência.
Savulescu afirma que a consciência médica deve assumir pouco (ou nenhum) espaço
em serviços de saúde modernos, cabendo apenas à lei e à ciência médica a definição do que é
ou não indicado aos pacientes. É adepto de que médicos devem estar preparados para prestar
atendimento legal, eficiente e benéfico aos pacientes, ainda que estejam em conflito com seus
valores, caso contrário, não devem ser médicos; nunca devem oferecer serviços médicos
parciais ou cumprir parcialmente suas obrigações para com seus pacientes; entende a saúde
como um “bem social” e defende, veementemente, que médicos não devem atuar (seja em
caráter público ou privado) movidos por seu próprio interesse, mas apenas em prol desse bem.
Afirma não haverem evidências de que os religiosos são médicos melhores do que os não
religiosos - além de conhecimentos e habilidades puramente técnicas, empatia e compaixão são
qualidades importantes aos médicos, mas estas não são exclusivas das pessoas religiosas, e nem
todas as pessoas religiosas as possuem.
Em 2016, juntamente com outros 15 (quinze) bioeticistas e filósofos dedicados ao tema,
o autor assinou um documento chamado “Declaração de Consenso sobre Objeção de
Consciência em Saúde”. Nele, os signatários propõem diretrizes éticas, enumeradas em 10 (dez)
tópicos, para servirem como guias às leis e políticas institucionais de saúde, entre as quais está
a seguinte: “Quando o bem-estar do paciente (ou melhor interesse, ou saúde) está em jogo, as

344
obrigações ocupacionais dos profissionais de saúde devem normalmente ter prioridade sobre
suas opiniões pessoais morais ou religiosas” (CONSENSUS, 2016, tradução nossa).
Em outra perspectiva, Smith reconhece que muitos dos atores do meio médico querem
expulsar os cristãos ortodoxos e outros crentes da fé, junto com os pró-vida, das profissões
médicas. Afirma que os profissionais médicos estão sendo manipulados para atuar em uma
espécie de “martírio médico”, no qual são forçados a optar por sofrer sansões de ordem moral
(por cometerem o que moralmente consideram um pecado grave) ou de ordem ético-disciplinar,
sujeitando-se, inclusive, à perda da licença profissional para atuação. (SMITH, 2016).
A individualidade das decisões, em conjunto com a possibilidade de objetar de
consciência (e, inclusive, de contestar o próprio Estado), encontram na liberdade seu núcleo
político-jurídico: liberdade de crença e de pensamento (interna), e também liberdade de
exteriorização de suas convicções (externa), em imprescindível consonância. Ainda, é possível
incluir aqui a liberdade para posicionar-se externamente conforme suas convicções individuais,
sem a obrigação de contrariá-las ou contradizê-las, em que estaria inserido o direito à objeção
de consciência.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse particular, utilizado
pela Administração Pública, entende que o interesse público é indisponível, porém, por existir
em função da Constituição, assim como os Direitos Fundamentais, deve a eles absoluto respeito,
sendo, portanto, uma condição de sua garantia. A liberdade constitucionalmente garantida
impõe ao Estado tanto uma perspectiva positiva, permitindo o exercício pleno dos Direitos
Fundamentais, quanto negativa, por meio de normas que imponham certas omissões aos poderes
públicos.
No âmbito da Administração Pública, insta lembrar da exigência de observância de
deveres estatais e do princípio da impessoalidade administrativa, em que os médicos agem em
nome do Estado, pelo interesse indisponível deste, mas sem esquecer que por trás do agente
estatal, existe um agente moral, privado, cujos Direitos Fundamentais devem permanecer
preservados. Não pode a Constituição Federal ser interpretada a partir de textos legais,
excluindo por inteiro o direito à objeção de consciência dos médicos servidores públicos,
tampouco se pode determinar que diante de uma objeção referente à prestação de serviços de
saúde ficaria o paciente desassistido em seu direito à saúde.
O médico atuante no sistema de saúde público deve acolher a moral estatal, o que não
indica que suas crenças e convicções devam ser negligenciadas, mas apenas que deve haver um
ajuste entre ambas as intenções, permitindo que se mantenham, para o médico, os direitos

345
constitucionalmente assegurados à liberdade de consciência e de crença, bem como sua
projeção ao meio externo. O Estado deve proteger a diversidade de crenças e de consciências,
afastando-se da ideia de que a laicidade estatal implica abstenção diante dessas questões e
defendendo fundamentos constitucionais de liberdade e de autonomia, bem como sua
autoridade em relação à exigência e cumprimento de deveres.

[...] para que o direito à objeção de consciência não se converta em um instrumento


de opressão moral é preciso que se reconheça o caráter moralmente neutro do SUS;
ou seja, apesar de seus profissionais professarem crenças particulares, estão inseridos
em uma instituição laica, à qual se pauta e responde a um ordenamento maior. Isso
não implica afirmar que médicos ou enfermeiras serão forçados a atender pacientes
em desrespeito a suas crenças, mas que é preciso reconhecer que o serviço de saúde
deve - sempre - garantir o serviço a despeito das crenças de seus funcionários. (DINIZ,
2008, p. 4).

O art. 5º, VIII, da Constituição3, que acolhe a objeção de consciência, admite que por
lei seja estabelecida prestação alternativa que se adapte às convicções do indivíduo, sendo sua
fixação um dever imperativo em havendo a possibilidade de que o descumprimento da lei geral
represente vantagem ao objetor. Quanto ao descumprimento das prestações alternativas, a
aplicação de sanções depende de alguns fatores cumulativos: 1) o dever deve ser geral e previsto
em lei, em conformidade ao art. 5º, II, da Constituição; 2) deve haver previsão também em lei
de serviço alternativo; 3) a alternativa não pode ser incompatível com a convicção do cidadão;
e 4) não houver, de forma injustificada, a prestação pelo objetor. (PIRES, 2019).
Para que a objeção de consciência seja mantida como um direito excepcional, o direito
de objetar não pode ser efetivado mediante mera alegação pelo objetor, mas sim pelo exame da
autenticidade dos motivos alegados, caso contrário se tornaria, em vez de uma escapatória aos
objetores, um direito de escolha inclusive aos não objetores. Pela difícil averiguação desses
motivos, especialmente nos casos em que o objetor não pertença a nenhuma organização
institucionalizada, e também pelo alto custo que isso geraria ao Estado, considera-se válido
cogitar a hipótese de estabelecimento de prestações alternativas mais rígidas quando
comparadas às prestações gerais (e não a imposição de dificuldades desnecessárias aos
objetores), justamente para que se tornem opção somente para aqueles indivíduos de sólida
convicção.
A lei poderá fixar sanções para os casos de descumprimento das prestações alternativas,
porém, a omissão legislativa não pode tolher o exercício de Direitos Fundamentais. Em havendo

3
“Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se
as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada
em lei.”
346
legislação que estabeleça prestações alternativas em caso de objeção de consciência, estas
devem ser efetivadas, caso contrário, mantém-se, da mesma forma, o direito de abstenção de
ações por motivos de consciência. Veja-se o seguinte julgado:

CONSTITUCIONAL. DIREITO FUNDAMENTAL. LIBERDADE RELIGIOSA.


OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA. DEVER DO ADMINISTRADOR DE OFERECER
OBRIGAÇÃO ALTERNATIVA PARA CUMPRIMENTO DE DEVERES
FUNCIONAIS. RECURSO PROVIDO. 1. O princípio da laicidade não se confunde
com laicismo. A separação entre Igreja e Estado não pode, portanto, implicar o
isolamento daqueles que guardam uma religião à sua esfera privada. A
neutralidade estatal não se confunde com indiferença religiosa. A indiferença gera
posição antirreligiosa contrária à posição do pluralismo religioso típica de um Estado
Laico. 2. O princípio da laicidade estatal deve ser interpretado de forma a coadunarse
com o dispositivo constitucional que assegura a liberdade religiosa, constante do art.
5º, VI, da Constituição Federal. 3. O direito à liberdade religiosa e o princípio da
laicidade estatal são efetivados na medida em que seu âmbito de proteção
abarque a realização da objeção de consciência. A privação de direito por motivos
religiosos é vedada por previsão expressa na constituição. Diante da impossibilidade
de cumprir obrigação legal imposta a todos, a restrição de direitos só é
autorizada pela Carta diante de recusa ao cumprimento de obrigação
alternativa. 4. A não existência de lei que preveja obrigações alternativas não exime
o administrador da obrigação de ofertá-las quando necessário para o exercício da
liberdade religiosa, pois, caso contrário, estaria configurado o cerceamento de direito
fundamental, em virtude de uma omissão legislativa inconstitucional. 5. Tese
aprovada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal: “Nos termos do art. 5º, VIII, da
CRFB, é possível a Administração Pública, inclusive em estágio probatório,
estabelecer critérios alternativos para o regular exercício dos deveres funcionais
inerentes aos cargos públicos, em face de servidores que invocam escusa de
consciência por motivos de crença religiosa, desde que presente a razoabilidade da
alteração, não se caracterize o desvirtuamento no exercício de suas funções e não
acarrete ônus desproporcional à Administração Pública, que deverá decidir de maneira
fundamentada". 6. Recurso extraordinário provido para conceder a segurança. (STF,
2021b, grifo nosso).

Entende-se incongruente exigir do agente público que seja desleal consigo mesmo; com
suas convicções pessoais, mas que seja fiel à ética estatal. “Constranger a pessoa de modo a
levá-la à renúncia de sua fé representa desrespeito à diversidade de ideias e à própria diversidade
espiritual” (STF, 2021a), ao passo que reconhecer que o Poder Público é inteiramente
dependente dos indivíduos (e de suas convicções éticas) para a execução de suas decisões é
ignorar o princípio da impessoalidade da Administração Pública; é abrir a possibilidade de
desvirtuamento das políticas e tornar o Estado inoperante.
Conforme visto, a neutralidade estatal implica o acolhimento da diversidade religiosa, e
não o isolamento daqueles que seguem alguma crença ou religião. É justamente por isso que se
reconhece plausível a aplicabilidade da objeção de consciência em serviços públicos de saúde,
posto que não se pode desconsiderar o direito de recusa do médico em praticar determinados
procedimentos por motivos de foro íntimo, havendo, porém, a necessidade de fidelidade à

347
regulamentação estatal, em termos razoáveis, para a garantia da ordem pública e do direito à
saúde – universal, integral e equitativo.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito fundamental à saúde é derivado da própria natureza humana: é um direito


inerente à personalidade e à dignidade humana que, diferentemente de muitos outros direitos,
que são criados pelo homem, é apenas reconhecido, tendo em vista que garante condições
mínimas de vida e de desenvolvimento, pela prestação em medidas equitativas compatíveis com
a subjetividade e necessidade de cada indivíduo. A satisfação desse direito recai sobre o Estado,
que deve atendê-lo observando o princípio da “reserva do possível”, ou seja, sujeitando-o a
variáveis capazes de limitar, em certa medida, as possibilidades de fato; a existência de recursos
públicos – materiais e/ou jurídicos – disponíveis, o que exclui o caráter absoluto e irrestrito do
direito à saúde.
Da mesma forma que esse direito não é absoluto, também não o é o serviço público e as
determinações impostas a seus agentes: os direitos fundamentais impõem limites ao Estado, por
possuírem atributos que asseguram o princípio da dignidade humana através da defesa da
liberdade, sua proteção perante terceiros e a determinação de não discriminação. Conforme
demostrado, o posicionamento Estatal laico não comporta desrespeito à autonomia e a liberdade
dos médicos, tampouco discriminação em relação a crenças religiosas, cabíveis, inclusive,
quando assumem responsabilidades profissionais em nome do Estado. Da mesma forma,
impedir que um médico participe da seara pública sob o argumento de que suas liberdades
encontram espaço apenas na esfera privada seria ato contrário ao que estipulam a lei e os
princípios constitucionais, portanto, inaceitável.
Por ser o direito à saúde um dever prestacional social, os beneficiários desse direito são,
em verdade, credores do Estado, e não diretamente dos médicos servidores. Estes, por sua vez,
também têm um importante direito perante o Estado: o direito à objeção de consciência,
garantido pela Constituição Federal a todos os médicos, em igual medida, e reafirmado por leis
específicas, protetivas desses direitos aos servidores públicos. Ponderoso, ainda, reconhecer que
aos médicos, para além do direito de objetar a eles garantido enquanto profissionais, existe
ainda, enquanto indivíduos, o mesmo direito à saúde que é assegurado aos pacientes, que,
conforme o conceito da OMS, compreende o completo bem-estar físico, mental e social. Se até
mesmo uma pessoa jurídica, adotando para a si a moral de seus membros, pode objetar de
consciência, por coerência, deve-se admitir que as ações de um médico, em qualquer esfera,

348
coincidam com suas convicções pessoais, vez que é livre para tê-las e segui-las; passando de
“anônimo” para “autônomo” diante daquilo que sente e acredita.
Optar pela tese da justificação nos casos de objeção de consciência, seja de profissionais
privados, seja nos casos em que o médico atua como servidor público, parece a melhor
alternativa. Por meio dessa tese, com a qual a atual jurisprudência brasileira concorda, não há
óbice nem ao direito dos médicos, nem ao direito dos pacientes que, em última análise, são
destinatários do direito à saúde não por obrigação pessoal dos profissionais ora objetores, mas
estatal.
Embora não pareça correto que o dever de análise da relevância da justificativa dos
médicos para objetar recaia sobre as unidades de saúde às quais estão eles vinculados, por
oportunizar, de certa forma, a análise subjetiva da situação e dissonância entre as decisões de
uma e de outra unidade, concorda-se com a manifestação de convicções morais de forma
antecedente à investidura em cargos e funções, evitando-se, assim, a objeção seletiva, e
permitindo, quem sabe, a fixação de um “sistema de cotas” que assegure um percentual mínimo
de médicos não objetores que garantam o direito à saúde sem negativas por interferências
morais, políticas ou religiosas. Ainda que se saiba da escassez de médicos no País, não é correto
imputar a eles responsabilidades que não lhes correspondem, sobretudo quando seria necessário
renunciar a direitos de sua própria personalidade.
Objetar de consciência não consiste em desrespeitar uma norma ou ir de encontro à
liberdade alheia, mas puramente respeitar a própria consciência. O direito dos pacientes é
protegido pelos limites à objeção de consciência estabelecidos pelo Código de Ética Médica a
todos os médicos, sendo ela cabível em qualquer caso que não configure desamparo à saúde, ou
seja, exceto quando tratar-se de urgência ou emergência; quando ausente outro profissional que
assuma o caso ou quando sua recusa possa ocasionar danos ou risco de morte ao paciente.
Diante de todo o exposto, vê-se a necessidade de adoção da melhor técnica para que se
possa enfrentar o tema de forma clara e aprofundada, superando as atuais controvérsias e
regulando, inclusive, a eventual exigência de prestações alternativas, de modo a compensar as
demais pessoas pelo descumprimento de uma lei geral, que também ao objetor se destina.
Garantir o direito de objeção de consciência aos médicos em serviços públicos de saúde é
confirmar liberdades sem cercear quaisquer direitos.

349
REFERÊNCIAS

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350
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351
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em: 06 mai. 2023.

352
APONTAMENTOS SOBRE A SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA NA
RESPONSABILIDADE CIVIL PARA FINS DE REPARAÇÃO DE DANO À
VÍTIMA

Roberta Eggert Poll1

RESUMO

O presente artigo visa responder a seguinte indagação: quais as pretensões indenizatórias


poderão ser exercidas pela vítima de um crime? O tema do artigo recai sobre os interesses da
vítima e/ou de seus sucessores em obter a reparação de danos diante da ocorrência de uma
infração penal. A hipótese de pesquisa gira em torno da questão relativa aos sistemas legais de
reparação de danos à vítima no sistema jurídico brasileiro. O método de abordagem será o
hipotético-dedutivo, adotando-se como procedimento o bibliográfico. Estruturalmente o texto
se divide da seguinte forma: em primeiro, propõe uma leitura sobre a sentença penal
condenatória e ação civil ex delicto para, ao depois, analisar a indenização mínima na sentença
penal condenatória; ao final serão tecidas as considerações finais da pesquisa.

Palavras-chave: Crime. Reparação à vítima. Indenização. Ação civil ex delicto.

1 INTRODUÇÃO

Por conta de uma mesma infração penal, cuja prática é atribuída a determinada pessoa
(física ou jurídica), duas pretensões surgem: de um lado, a chamada pretensão punitiva, isto é,
a pretensão do Estado em impor adequada pena, anteriormente, cominada em lei; do outro lado,
a pretensão à reparação do dano que a suposta infração penal possa ter causado a determinado
indivíduo, cuja doutrina costuma denominar de vítima.
Se conjeturarmos a prática de um crime de apropriação indébita, por exemplo, (art. 168,
do Código Penal – “apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou a detenção”),
para além da deflagração da persecutio criminis, cujo objetivo será, em última análise, a
imposição da pena prevista no Código Penal – de 01 (um) a 04 (quatro) anos, e multa – daí
também poderá sobressair o interesse da vítima e/ou seus sucessores em obter a reparação dos
danos causados por este delito.2
Em Direito Civil, por outro lado, existe um dever legal de não lesar, a que corresponde
a obrigação de indenizar sempre que de um comportamento contrário ao disposto no artigo 186,
do Código Civil “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,

1
Doutora em Direito pela PUC/RS. Mestre em Ciências Criminais pela PUC/RS. Advogada Criminalista –
OAB/RS nº 92.658B. Professora de Direito Penal e Criminologia na Faculdade Dom Alberto. E-mail:
roberta@poll.adv.br.
2
O Código de Processo Penal informa que são sucessores da vítima o cônjuge, ascendente, descendente ou irmão
– art. 31.
353
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, surta
algum prejuízo a outrem, seja moral seja material. Na mesma esteira, por força do art. 927, do
Código Civil “aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019, p. 58-59), impõe-se um dever de
compensação pelos prejuízos advindos de uma conduta lesiva a esfera individual alheia.
Como se vê, o convívio social demanda posições de não ataque a bens e direitos que
constituem o patrimônio indisponível tutelado pela ordem jurídica; é, portanto, direito do ser
humano, se manter livre de ataques ou moléstias, assim como preservar a incolumidade de sua
personalidade. Existe, portanto, uma relação natural e evidente entre a configuração de um
ilícito penal e o possível prejuízo patrimonial que dele poderá advir à vítima, facultando-lhe o
direito à reparação. Não por outro motivo, que ao tratar dos efeitos automáticos da condenação,
o próprio Código Penal assegura que um deles é o de tornar certa a obrigação de indenizar o
dano causado pelo crime (art. 91, inciso I).
Nesse passo, o presente estudo pretende abordar a temática dos efeitos da condenação
criminal na esfera da responsabilidade civil, seja por meio da ação de execução ajuizada pelo
ofendido, na esfera cível, para a obtenção da indenização anteriormente imposta pelo
magistrado, via sentença penal condenatória, (art. 387, inciso IV, do CPP), denominada de ação
civil ex delicto, seja via da ação de responsabilidade civil própria, a fim de apurar efetivamente
os danos causados pela infração penal – art. 927, do CC (TARTUCE, 2018, p. 986).
Embora não seja obrigatório e, na prática, referencial teórico e metodologia, às vezes,
contradizem-se ou nem se cumprimentam, o presente trabalho buscará unir de forma lógica o
seu referencial teórico com a sua metodologia. Por se tratar de um trabalho interdisciplinar e
adotar a visão moderna de ciência, em que se busca explicar um fenômeno a partir de uma visão
circular de seu conhecimento, utilizou-se como técnica de pesquisa a revisão bibliográfica, e,
como método, empregou-se dedutivo e, no mesmo talante, o hipotético, consistente na
construção de conjecturas, isto é, premissas com alta probabilidade, cuja construção seja
similar, baseada nas hipóteses, ou seja, caso as hipóteses sejam verdadeiras, as conjecturas
também o serão.
Pretendeu-se, com o texto, responder ao seguinte problema de pesquisa: quais as
pretensões indenizatórias poderão ser exercidas pela vítima de um crime? O tema do artigo
recaiu, portanto, sobre os interesses da vítima e/ou de seus sucessores em obter a reparação de
danos diante da ocorrência de uma infração penal. A hipótese de pesquisa girou em torno da

354
questão relativa aos sistemas legais de reparação de danos à vítima no sistema jurídico
brasileiro.
Com base nessas considerações, aponta-se que o texto enfrentará o tema lançado em
dois tópicos, partindo-se, inicialmente da sentença penal condenatória e da ação civil ex delicto
para, ao depois, analisar a indenização mínima que poderá ser concedida pelo juízo da
condenação criminal. Ao fim se trará as conclusões da pesquisa.

2 REPARAÇÃO MÍNIMA DE DANOS, SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA E


AÇÃO CIVIL EX DELICTO: NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

São quatro os sistemas que dispõe sobre a relação entre a ação civil para a reparação dos
danos e a ação penal para a punição do autor do crime: sistema da confusão, sistema da
solidariedade, sistema da livre escolha e sistema da independência.
O sistema da confusão atribuía a própria vítima a busca pela reparação civil e punição
do autor do delito, sendo aplicado na antiguidade [fase de vingança privada]; pelo sistema da
solidariedade, recairia sobre o ofendido a obrigação de ajuizar perante o juízo criminal uma
ação de natureza penal e outra de natureza civil na busca de suas pretensões; o sistema da livre
escolha, por sua vez, assegura à vítima um poder de escolha, ou seja, poderá ou não promover
a ação de reparação dos prejuízos na esfera civil, devendo, no entanto, o processo cível
permanecer suspenso até a decisão final do juízo criminal, evitando-se, desta forma, decisões
conflitantes (TARTUCE, 2018, p. 986-987).
Por força do art. 63, do CPP o ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema da
independência das instâncias; isto significa dizer que o ofendido poderá ajuizar ação civil, que
verse sobre questão de direito privado, em face do suposto autor do crime, ao mesmo tempo em
que o Ministério Público (titular da ação penal pública – art. 129, inciso I, da CF) oferece
denúncia em face do mesmo indivíduo (LIMA, 2017, p. 314). Note-se, neste sentido e
corroborando as disposições do Código de Processo Penal, o disposto no art. 935, do Código
Civil: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais
sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal”.3

3
Como primeira e principal explicação doutrinária sobre o sentido da norma, o Enunciado nº 45 da I Jornada de
Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2002, estabelece que, “no caso do art. 935,
não mais se poderá questionar sobre a existência do fato ou sobre quem seja o seu autor se estas questões se
acharem categoricamente decididas no juízo criminal”.
355
Não obstante, o § único do art. 63, do CPP prevê que uma vez transitada em julgado a
sentença penal condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do
inciso IV, do caput, do art. 387, do CPP, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano
efetivamente sofrido. De seu turno, a redação do art. 387, assegura que, por ocasião da prolação
da sentença penal condenatória, deverá o juiz fixar valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pela vítima (REIS; GONÇALVES,
2018, p. 125-126). Ou seja, o Código de Processo Penal prevê que a sentença penal
condenatória servirá de título executivo líquido, permitindo à vítima ou seus sucessores
procederem, de imediato, à execução por quantia certa, sem prejuízo de ulterior liquidação para
apuração do dano efetivamente suportado. Para tanto, deverá o ofendido ingressar com a ação
de execução ex delicto no juízo cível, exigindo do réu condenado o pagamento do quantum
arbitrado na sentença penal (AVENA, 2018, p. 380).
Esse arbitramento do quantum indenizatório realizado na esfera penal, obviamente, não
impede a vítima de apurar, no juízo cível, o prejuízo efetivamente suportado por ocasião da
infração penal (REIS; GONÇALVES, 2018, p. 125). Á título de ilustração, considere-se que,
em condenação definitiva, tenha o juiz criminal arbitrado, como indenização mínima à vítima,
o valor de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil Reais) a ser pago pelo réu condenado. Nesse
contexto, poderá o ofendido ajuizar, desde logo, no juízo cível, a ação de execução ex delicto
em relação ao montante fixado na sentença criminal e, simultaneamente, deduzir, também no
juízo cível, a liquidação da sentença penal condenatória para quantificar o prejuízo efetivamente
sofrido com a prática criminosa.
Imaginando-se que, em decisão da liquidação cível, o prejuízo total seja calculado em
R$ 50.000,00 (cinquenta mil Reais), poderá a vítima, agora, exigir a diferença entre o valor
apurado na sentença penal como indenização mínima (já objeto de execução) e o valor total do
que foi apurado em liquidação civil. Nesse caso, a nova execução será movida em relação aos
R$ 25.000,00 (vinte e cindo mil Reais) remanescentes.
Evidentemente, nada impede que a vítima, em vez de executar imediatamente o valor
arbitrado na condenação criminal, opte por liquidar a sentença penal na esfera cível e, após,
ingressar com uma só execução em relação ao valor total do prejuízo (REIS; GONÇALVES,
2018, p. 125).
Veja-se, portanto, que por força do regramento constante nos arts. 63 e 64 do CPP a
vítima tem duas formas alternativas e independentes de buscar o ressarcimento do dano causado
pela infração penal: a) ação de execução ex delicto, com fundamento no art. 63, do CPP, esta

356
ação de natureza executória, pressupõe a existência de título executivo, consubstanciado na
sentença penal condenatória com trânsito em julgado; b) Ação civil ex delicto, por força do art.
64, do CPP, independentemente do oferecimento da denúncia em face do suposto autor do fato
delituoso ou da fase em que se encontrar eventual processo penal. Neste caso, a vítima, seu
representante legal ou sucessores podem promover, no âmbito cível, uma ação de natureza
cognitiva, objetivando a formação de um título executivo cível consubstanciado em sentença
condenatória cível transitada em julgado (TAVORA; ALENCAR, 2017, p. 342).
O Código Penal ainda complementa, asseverando no art. 91, inc. I, que um dos efeitos
da condenação é tomar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo delito. Cuida-se,
portanto, de efeito extrapenal obrigatório (ou genérico), aplicável por força de lei,
independentemente de expressa declaração por parte da autoridade jurisdicional, uma vez que
é inerente à condenação, qualquer que seja a pena imposta – privativa de liberdade, restritiva
de direitos ou multa – (NUCCI, 2016, p. 227).
Na verdade, a única condição para o implemento deste efeito é o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória e, evidentemente, a constatação de que o delito tenha efetivamente
gerado um dano a ser indenizado em favor de determinada pessoa. Afinal, há delitos que não
acarretam qualquer prejuízo ao ofendido, daí por que seria inviável a incidência desse efeito
como, por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo (crime de perigo abstrato) (LIMA, 2017, p.
320).
Desta feita, caso o juiz não tenha elementos suficientes para fixação desse montante,
sequer em seu mínimo legal, poderá deixar de fazê-lo, devendo constar da sentença
condenatória fundamentação expressa quanto aos motivos que o impossibilitaram de fixar o
valor mínimo a título de indenização como, por exemplo, a complexidade da causa, a ausência
de provas em relação ao dano, entre outros (LIMA, 2017, p. 324).
A despeito de a sentença condenatória transitada em julgado reconhecer o an debeatur
(CP, art. 91, I), ou seja, a obrigação de indenizar, resta ainda definir o quantum debeatur, é
dizer, o valor da indenização devida. Isto porque, se os valores íntimos da personalidade são
tutelados pela ordem jurídica, haverá, necessariamente, de munir-se o titular de mecanismos
adequados de defesa contra as agressões injustas que, eventualmente, possa sofrer no plano
subjetivo ou moral. Pode-se, em suma, afirmar, que o objetivo da teoria da responsabilidade
civil pelos danos morais não é apagar os efeitos da lesão, mas reparar os danos da “melhor
forma possível”.

357
Como observa a literatura especializada, a menção a um "valor mínimo" e a
possibilidade de se buscar, no âmbito cível, a complementação deste montante, não significam
dizer que o juiz deva arbitrar um valor meramente simbólico, como efeito da sentença
condenatória por ele proferida. Na verdade, incumbe ao juiz averiguar o alcance do prejuízo
causado à vítima para, a partir daí, arbitrar um valor que mais se aproxime do devido,
propiciando, assim, uma reparação que seja satisfatória e que, ao mesmo tempo, desestimule a
propositura de liquidação no cível, com toda demora e dissabores que lhe são peculiares
(GOMES; CUNHA; PINTO, 2008, p. 315).
Em Direito Civil, quanto à extensão da reparação do dano (seja patrimonial ou moral) o
regime é o da reparação integral (art. 944), ou seja, o valor deve proporcionar à vítima a
recolocação em situação equivalente a em que se encontrava antes de ocorrer o fato danoso.
Em tese, essa reposição pode ocorrer de duas maneiras: (i) in natura, mediante recomposição
do mesmo bem no patrimônio do lesado ou por sua substituição por coisa similar; ou (ii) por
reparação pecuniária, consistente em pagamento de soma equivalente aos prejuízos do lesado.
Ocorre que, para que esse montante seja fixado pelo juízo criminal, devem constar dos
autos elementos probatórios comprovando o prejuízo sofrido pela vítima e a relação desse dano
com a conduta imputada ao acusado na peça acusatória (LIMA, 2017, p. 325). Em fiel
observância à garantia da razoável duração do processo, o ideal é que a fixação do valor mínimo
referente a indenização dos danos causados pelo delito seja objeto de capítulo próprio da
sentença penal condenatória. Nesse caso, na hipótese de o réu e a vítima entenderem ser
indevido o montante arbitrado pelo juízo criminal, poderão recorrer apenas contra este capítulo
da sentença. Isso significa dizer que, transitando em julgado o capítulo da sentença que versa
sobre a pena, será possível a expedição imediata de guia definitiva da execução, com o
subsequente início do cumprimento da pena. Lado outro, caso o capítulo referente à condenação
seja impugnado em eventual recurso de apelação, não será possível a imediata execução do
quantum fixado pelo juízo a título de indenização. Isso porque a execução desse montante está
condicionada ao trânsito em julgado da sentença condenatória (LIMA, 2017, p. 325-326).
No entanto, em que pese a notável evolução trazida pelo legislador em matéria de
responsabilidade civil no âmbito criminal, nenhum procedimento foi previsto para a apuração
dos danos, nem o seu grau de abrangência (moral ou material); nada se mencionou acerca da
legitimidade ativa para pleitear a reparação dos danos: somente a vítima ou também o
Ministério Público, atuando em seu nome? Ou ainda, poderia o juiz agir ex ofício? Qual a
solução a ser conferida no caso de a vítima, ou quem de direito, já ter interposto a ação civil

358
reparatória no juízo cível (art. 64 do CPP) antes da fixação do valor mínimo de reparação no
âmbito penal?
É necessário estabelecer ao réu a garantia do contraditório como condição para o
reconhecimento do dano provocado pela infração penal e para a quantificação de seu valor na
sentença penal condenatória? Todas estas questões poderiam ter sido esclarecidas pelo bem do
novo instituto, no entanto, padecem de resposta legislativa, encontrando somente na doutrina o
amparo necessário.
Tais temáticas, pela importância e particularidades, serão abordadas no próximo
capítulo.

3 PRINCIPAIS QUESTIONAMENTOS NO TOCANTE A INDENIZAÇÃO MÍNIMA


NA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA

Ao dispor que na sentença penal condenatória o magistrado fixará o valor mínimo para
reparação dos danos causados pelo crime, considerando os prejuízos sofridos pela vítima o art.
387, inc. IV, do CPP não restringiu essa indenização tão somente aos danos patrimoniais,
referindo-se, ao contrário e genericamente, à “reparação dos danos”. Nesse contexto, não há
razão para excluir do juízo penal a possibilidade de arbitrar valor destinado à reparação,
também, de danos de ordem moral, eventualmente causados pela infração penal (TARTUCE,
2018, p. 991). Afinal, não há dúvidas de que o legislador, permitindo ao juízo criminal, por
ocasião da sentença condenatória, estabelecer indenização mínima devida à vítima, objetivou
possibilitar a esta ter satisfeito o prejuízo que lhe foi causado pela conduta criminosa com maior
prontidão, sem a necessidade de aguardar as delongas de uma fase liquidatória prévia ao
ajuizamento da ação executória. Tal arbitramento, então, apenas visa antecipar, em parâmetros
mínimos, o valor que, em liquidação de sentença, seria apurado no juízo cível. E, no juízo cível,
pela exegese do art. 186 do Código Civil, fica evidente que tanto o dano moral quanto o
patrimonial sujeitam-se à reparação.
Trilhando a mesma orientação – possibilidade de arbitramento de indenização mínima
a título de dano moral –, deliberou o STJ que:

“o juiz que se sentir apto, diante de um caso concreto, a quantificar, ao menos o


mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, não poderá ser impedido de fazê-
lo”, sem embargo de advertir que “ao fixar o valor mínimo de indenização previsto
no art. 387, IV, do CPP, o juiz deverá fundamentar minimamente a opção, indicando
o quantum que refere-se ao dano moral” (REsp 1.585.684/DF, Relatoria Ministra
Maria Thereza de Assis Moura. Sexta Turma. DJe 24.08.2016).

359
Desta forma, o entendimento é no sentido de que a indenização arbitrada na sentença
penal poderá sim abarcar essas duas ordens de prejuízos – moral e patrimonial. E, no tocante à
quantificação, na decisão condenatória, do valor mínimo devido à título de dano moral, entende-
se que deve ser realizada a partir de um critério de proporcionalidade, detectável com base nas
circunstâncias do caso concreto.
Ademais, não há que se falar na possibilidade de ser conflitante a sentença penal
condenatória que fixar a indenização mínima a título de dano moral e a decisão eventualmente
proferida em futuro processo cível de indenização, porque, de acordo com o art. 91, inc. I, do
CP, a decisão penal condenatória faz coisa julgada na esfera cível quanto à obrigação de
indenizar. Logo, se, no âmbito penal, for estabelecida indenização mínima em decisão
transitada em julgado, isso não poderá, mais tarde, ser questionado na órbita civil. Em outras
palavras, estará vinculado o juízo cível ao dano reconhecido em sede de condenação criminal,
cabendo-lhe, então, no máximo, considerar suficiente o valor imposto ao acusado no juízo
penal, mas não isentá-lo de tal obrigação ou quantificar o dano em montante inferior ao que foi
decidido na esfera criminal (LIMA, 2017, p. 332-333).
Quanto à legitimidade ativa para pleitear a reparação dos danos: somente a vítima ou
também o Ministério Público, atuando em seu nome; ou ainda, o juiz agindo ex ofício, parece-
nos que somente a vítima poderia solicitar a indenização e o juiz não teria condições de fixá-la
de ofício, sem nenhum pedido. Afinal, não tendo havido requerimento expresso, inexistiria
discussão nos autos em relação ao valor, motivo pelo qual seria incabível a fixação de um
montante qualquer, que não foi objeto de debate entre as partes interessadas (NUCCI, 2016, p.
227-228). Há posição em contrário, nos seguintes termos:

entendemos que não há necessidade que este pedido venha expresso na denúncia ou
queixa, pois o dever de reparar é um dos efeitos da sentença, de modo que o juiz está
autorizado na sentença condenatória a estipular o valor mínimo da reparação,
bastando para tal que, ao fundamentar a sua decisão, demonstre os elementos
objetivos que o levaram ao valor da condenação. (SANTOS, 2008, p. 299).

Sobre tal entendimento, duas considerações básicas: a) o pedido não poderia vir
expresso na denúncia, oferecida pelo Ministério Público, pois inexiste legitimidade para o
Parquet se manifestar em nome da vítima com fundamento em interesse puramente civil, como
é a indenização pleiteada; b) o dever de reparar o dano, em virtude do crime, é consagrado pelo
art. 91, inc. I, do CP; porém, o montante da indenização sempre foi discutido sob o crivo do
contraditório, permitindo-se a ampla defesa.

360
Se o juiz da condenação, sem prévio debate das partes, simplesmente, fixar um valor
qualquer, ter-se-á rompido o tradicional e indeclinável devido processo legal (LOPES Jr., 2014,
p. 302). Nesse sentido, muito bem decidiu o STJ no REsp 1.185.542/RS, Relatoria do Ministro
Gilson Dipp. Quinta Turma. DJe 16/05/2011.
Igualmente, qual seria a solução a ser conferida no caso de a vítima ou quem de direito
já tivesse interposto a ação civil reparatória no juízo cível (art. 64 do CPP) antes da fixação do
valor mínimo de reparação no âmbito penal? Se por ocasião da sentença condenatória, já houver
decisão definitiva proferida no juízo cível, estabelecendo no âmbito de ação ordinária de
indenização o quantum devido pelo autor da infração penal à vítima, restará prejudicada a
aplicação, no juízo penal, do art. 387, inc. IV, do CPP.
Contudo, se naquela sede (civil) ainda não houver decisão definitiva, a superveniência
do trânsito em julgado da sentença penal condenatória não obstará, necessariamente, o
prosseguimento da demanda cível, o que pode se justificar, por exemplo, na hipótese de o seu
autor (a vítima do crime), na petição inicial, ter postulado a condenação do réu ao pagamento
de quantia certa, superior à fixada na condenação penal a título de valor indenizatório mínimo.
Agora, se a inicial da ação cível limitou-se a pleitear a condenação do réu ao pagamento
de indenização, relegando para uma fase liquidatória posterior a quantificação do dano a ser
reparado, nesse caso, efetivamente, não haverá a menor razão para o prosseguimento da
demanda cível, que poderá ser extinta ou prosseguir apenas em relação a eventuais
corresponsáveis civis que não tenham sido condenados criminalmente. Isso porque, por meio
da sentença penal, logrou o ofendido alcançar, em relação ao condenado, o título executivo
judicial que estava buscando obter na esfera civil (AVENA, 2018, p. 385).
E, por fim, quanto à temática da necessidade de estabelecer ao réu a garantia do
contraditório como condição para o reconhecimento do dano provocado pela infração penal e
para a quantificação de seu valor na sentença penal condenatória, o tema é objeto de
controvérsias, subsistindo duas correntes: para uma parcela da doutrina é necessário que se
instaure contraditório específico, facultando-se ao réu o insurgimento quanto à existência de
um dano indenizável e a sua quantificação. Adepto deste entendimento, Nucci assevera que o
interessado no estabelecimento da indenização:

precisa indicar valores e provas suficientes a sustá-los. A partir daí, deve se


proporcionar ao réu a possibilidade de se defender e produzir contraprova, de modo a
indicar valor diverso ou mesmo a apontar que inexistiu prejuízo material ou moral a
ser reparado. Se não houver formal pedido e instrução específica para apurar o valor
mínimo para o dano, é defeso ao julgador optar por qualquer cifra, pois seria nítida
infringência ao princípio da ampla defesa. (NUCCI, 2016, p. 227-228).

361
Outra parcela da doutrina entende que diante do que dispõe o inc. IV do art. 387, do
CPP, a verificação quanto à existência de um dano indenizável e a quantificação de seu valor
mínimo deverá ocorrer a partir da instrução normal do processo penal, independente da
instauração de contraditório voltado especificamente a esse fim. Portanto, o contraditório
facultado ao réu em relação a tais aspectos é o mesmo que lhe é inerente em relação às demais
provas do processo, mesmo porque o art. 387, inc. IV, do CPP, estabelece a fixação da
indenização como parte integrante da sentença condenatória, vale dizer, um de seus requisitos
(AVENA, 2018, p. 384).
Apesar de reconhecermos que a tendência da jurisprudência é aderir a primeira corrente,
concordamos com a segunda orientação. Compreendemos que a partir da redação determinada
ao art. 387 do CPP pela Lei nº 11.719/2008, o reconhecimento da existência do dano e a
quantificação mínima da indenização devida à vítima constituem parte da sentença
condenatória. Logo, sabedor da possibilidade desta fixação, cabe ao réu, no decorrer da
instrução processual, independentemente de uma provocação específica neste sentido, produzir
as provas necessárias, buscando, por exemplo, convencer o juiz de que, ainda que seja
condenado, inexiste um dano a ser indenizado. E mais: Se, condenado o réu, não se conformar
ele com a indenização fixada, poderá insurgir-se por meio de apelação lastrada no art. 593, inc.
I, do CPP, visando modificar a sentença.
Observe-se, por fim, que não é a primeira vez que a previsão de indenização no âmbito
de sentença penal condenatória aparece no ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, na lei
dos crimes ambientais (Lei nº 9.605/1998), o art. 20 preceitua que “a sentença penal
condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para a reparação dos danos causados
pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente”. E,
neste enfoque, compreende-se que a fixação de valor mínimo destinado à reparação, sempre
que possível, deverá ser interpretada como uma regra a ser observada pelo magistrado, enquanto
a não fixação seria uma exceção, uma vez que a responsabilidade civil, em matéria ambiental,
possui um enfoque bem mais amplo que a noção a ela atribuída na esfera do direito civil,
constituindo, na realidade, um importante corolário da tutela constitucional à vida e à qualidade
de vida, conforme disposto no art. 225 da CF.
Por tal razão, ao estipular um valor pecuniário destinado à reparação, o juízo criminal
não esgota a discussão em torno da responsabilidade civil, mas, tão somente, garante a
efetivação dos primeiros passos tendentes à reparação do dano ambiental. Ora, a nosso ver,
idêntico raciocínio deve ser aplicado em matéria penal, já que também, nesta órbita, a legislação

362
é taxativa ao dispor que a sentença penal transitada em julgado importa em reconhecimento
irrefutável da obrigação de indenizar de parte do réu, conforme se infere dos arts. 91, inc. I, do
CP; 515, inc. VI, do CPC; e 63 do CPP.

4 CONCLUSÃO

Como visto, a condenação penal irrecorrível produz efeitos principais e secundários. O


efeito principal é a imposição da sanção privativa de liberdade (reclusão, detenção ou prisão
simples), restritiva de direitos ou de multa, no caso de condenação. Dentre os efeitos
secundários, no que toca ao dever de reparar o dano causado pela infração penal, o art. 91, inc.
I, do CP estabelece que a sentença penal condenatória torna certa a obrigação de indenizar o
dano. Isso não significa, por si só, que haja um título executivo cível. Especificamente no
tocante ao conteúdo civil, na sentença penal condenatória há uma mera declaração do dever de
reparar o dano, sem que haja a imposição de uma sanção civil. Tal dispositivo, porém, é
complementado pelo art. 63 do CPP e pelo art. 784, inc. XII, do CPC, que atribuem à sentença
penal condenatória transitada em julgado a natureza de título executivo judicial.
Verificou-se que existe independência entre as instâncias penal e civil, desta forma o
autor de um dano poderá ser responsabilizado, cumulativamente, na jurisdição civil e penal. No
entanto, o juízo penal poderá fixar um valor mínimo para reparação dos danos na sentença
condenatória, que após o trânsito em julgado, constituirá título executivo judicial na esfera
cível, de maneira que a parte interessada (vítima, seu representante legal ou sucessores) poderá
ajuizar ação de execução na jurisdição cível – denominada de ação de execução ex delicto (art.
63, do CPP). Poderá, no entanto, a vítima proceder a uma ação ordinária de indenização, movida
na esfera cível e que, no âmbito penal, recebe a nomenclatura de ação civil ex delicto. Tal
modalidade reparatória encontra guarida no art. 64, do CPP. Neste último caso a vítima não
precisará aguardar o desiderato do processo crime, propondo imediatamente a ação ordinária
de indenização para a obtenção de um titulo executivo civil. Todavia, o magistrado da vara
cível poderá suspender o curso desta ação até o julgamento definitivo daquela.
Em suma, não há qualquer reflexo dos efeitos penais e dos efeitos extrapenais
específicos com a obrigação de indenizar o dano causado pelo réu à vítima, em razão da prática
criminosa. O que releva neste aspecto é tão somente o efeito extrapenal genérico previsto no
art. 91, inc. I, do CP, ao estabelecer que a condenação criminal torna certa a obrigação de
indenizar o dano causado pelo crime. Em decorrência das regras incorporadas aos precitados
dispositivos, é possível concluir que, uma vez condenado por sentença penal imutável, estará o

363
acusado obrigado a indenizar o dano provocado pelo crime, não podendo se esquivar desta
obrigação.

REFERÊNCIAS

AVENA, Norberto. Processo penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2018.

BRASIL, Enunciado n. 45 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça


Federal, 2002.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.185.542/RS, Relatoria do Ministro Gilson Dipp.
Quinta Turma. DJe 16/05/2011.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.585.684/DF, Relatoria Ministra Maria Thereza
de Assis Moura. Sexta Turma. DJe 24/08/2016.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol.
3. Responsabilidade civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às
reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

REIS, Alexandre Cebrian Araújo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito processual
penal esquematizado. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

SANTOS, Leandro Galluzzi dos. As reformas no Processo Penal. In: MOURA, Maria Thereza
Rocha de Assis. (coord). As Reformas no Processo Penal - As novas Leis de 2008 e os Projetos
de Reforma: Júri (Lei 11.689/2008), Provas (Lei 11.690/2008), Procedimentos (Lei
11.719/2008), Recursos (Projeto de Lei 4.206/2001), Medidas Cautelares (Projeto de Lei
111/2008). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

TARTUCE, Flávio. Manual de responsabilidade civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2018.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12. ed.
Salvador: JusPodivm, 2017.

364
“SER MULHER” E A ADVOCACIA: A MULHER ADVOGADA E A
DISCRIMINAÇÃO EM RAZÃO DO GÊNERO

Eduarda Fernandes1
Rowana Camargo2

RESUMO
Este ensaio busca investigar se a mulher advogada ainda nos tempos atuais sofre discriminação
em razão do gênero no exercício da sua profissão. Algumas perguntas norteiam a pesquisa:
como é ser uma mulher advogada? A questão de gênero (ainda) é determinante na atuação da
mulher advogada? Mulheres advogadas são submetidas a situações machistas e misóginas?
Quais ações e práticas podem ser realizadas para reduzir essas violências e repará-las? Além da
pesquisa bibliográfica e exploratória, a análise quali-quantitativa foi aplicada para analisar um
questionário aplicado a quinze mulheres brancas e quinze mulheres negras, pesquisa chamada:
“A mulher advogada e a discriminação de gênero”. A hipótese inicial que a mulher advogada é
discriminada em razão do gênero confirmou-se com as entrevistas realizadas e demais análises
a partir da bibliografia e dos casos concretos ocorridos com mulheres advogadas, que são
explorados ao longo do texto.

Palavras-chave: Desigualdade de gênero. Discriminação em razão do gênero. Empoderamento


feminino. Mulher advogada. Patriarcado.

INTRODUÇÃO

A desigualdade de gênero se dá, sobretudo, em razão do patriarcado estrutural que,


embora já superado em alguns aspectos, ainda dita as regras da organização social.
Formalmente estamos amparadas por importantes legislações como, por exemplo, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos (1948), Convenção de Belém do Pará (1994), Recomendação
n. 19 (1992) do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher, e, também, pela
Constituição Federal de 1988 que em seu artigo 5º, parágrafo 1º, inciso I, prevê que homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações.
Ao longo da Constituição Federal outros direitos são garantidos às mulheres, como o
direito à licença maternidade de 120 dias, o direito à posse da terra ao homem e à mulher, a
igualdade jurídica, atendendo, em alguns casos, especificidades em razão do gênero, e em

1
Bacharelanda de Direito, Pesquisadora de ciências criminais e escritora de artigos científicos.
2
Doutoranda em Ciências Criminais PUCRS. Mestra em Ciências Humanas UFFS. Cofundadora e Diretora de
Ensino acadêmico da Sociedade Brasileira de Direito Antidiscriminatório. Advogada, OAB/RS 83.603.
rowanacamargo@gmail.com

365
decorrência da luta das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, o
chamado “Lobby do Batom”. As 26 mulheres eleitas para a Constituinte foi o resultado de
muito trabalho, uma intensa campanha nacional articulada com movimentos sociais,
movimentos feministas, associações, promovida pelo Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher (CNDM), criado dois anos antes (AGÊNCIA DO SENADO, 2018), história que não
tem o seu devido reconhecimento.
O processo de apagamento do trabalho e da luta dessas mulheres imprescindíveis na
Constituinte é reflexo de uma sociedade patriarcal, machista e misógina, que tem como
referência o estereótipo de sucesso atrelado ao masculino, heterossexual, branco e cristão. Não
se trata de desqualificar os homens que compõem esse grupo, mas sim de colocar em debate os
papéis e lugares que supostamente devem ser ocupados em razão do gênero, os reflexos dessas
racionalidades e a violência por elas gerada.
Os feminismos3 muito nos têm ensinado. A histórica luta das mulheres por igualdade
revela que, na prática, ainda temos muito que avançar. As vitórias devem ser celebradas, mas
não podemos deixar que nublem o caminho que ainda precisa ser percorrido. Inobstante o
direito à igualdade salarial entre homens e mulheres, ainda há disparidade, mesmo quando
ocupados os mesmos cargos (IBGE, 2019). Ainda, é preciso dizer que outras questões também
são determinantes, como raça, classe e orientação sexual, de acordo com pesquisas do Dieese
(Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos)4.
A partir disso, alguns questionamentos parecem importantes quanto à mulher advogada:
como é ser uma mulher advogada? A questão de gênero (ainda) é determinante na atuação da
mulher advogada? Mulheres advogadas são submetidas a situações machistas e/ou misóginas?
Quais ações e práticas podem ser realizadas para reduzir essas violências e repará-las?
Neste ensaio utilizaremos a pesquisa bibliográfica e exploratória, além da análise quali-
quantitativa a ser aplicada em uma pesquisa realizada com trinta mulheres advogadas – quinze
mulheres brancas e quinze mulheres negras – que responderam quatro perguntas de um
questionário sobre o exercício da advocacia, ambiente de trabalho e percepções sobre as
discriminações em razão do gênero. O trabalho está dividido em duas partes. Na primeira

3
Para este trabalho, nos valeremos da seguinte compreensão de feminismo: “movimento teórico, social e político
que possui por objetivo criticar a forma de organização social pautada no patriarcado, que gera discriminação
contra as mulheres, e, por meio de propostas, lutar pela modificação da realidade social com a criação de condições
de igualdade entre os gêneros” (LEGALE; OLIVEIRA, 2021, p. 49).
4
Por exemplo, a análise “Mulheres no mercado de trabalho brasileiro: velhas desigualdades e mais precarização”,
publicada em 07/03/2022, apresenta o cenário de desemprego e salários mais baixos das mulheres, em relação aos
homens (DIEESE, 2022).
366
apresentaremos uma abordagem acerca da relação entre o “ser mulher” e a advocacia, e, na
segunda, a análise da pesquisa realizada, em discussão com a bibliografia.

1 O “SER MULHER” E A ADVOCACIA

No dia 25 de novembro de 2022, o Conselho Pleno da OAB Nacional reconheceu


Esperança Garcia como a primeira advogada brasileira. A OAB-PI já havia a reconhecido como
a primeira advogada do Estado em 2017. Mulher negra e escravizada, em 1770 escreveu uma
carta que foi considerada uma petição, um ato de advocacia, dirigida ao governador da província
em que morava, denunciando os maus-tratos que ela, seus filhos e companheiros estavam
sofrendo, assim como a separação do marido e a impossibilidade de batizar os seus filhos em
razão das práticas e condições a que eram submetidos.
O reconhecimento nacional deu-se, em grande medida, em razão da articulação
Comissão Nacional da Mulher Advogada e a Comissão Nacional de Promoção da Igualdade do
Conselho Federal da OAB, à época, 2020, presidida pelas advogadas Daniela Borges, Silvia
Cerqueira e Isabella Paranaguá, que demonstra “o quão importante é termos uma advocacia
com representatividade feminina nos Conselhos Seccionais e Federal da OAB, em
constituirmos mulheres líderes, que buscam o fortalecimento de pautas feministas e
antirracistas” (OAB-PI, 2022).
Myrthes Gomes de Campos foi a primeira brasileira matriculada no curso de direito e a
exercer a advocacia devidamente inscrita nos quadros de advogados, o que conseguiu apenas
em 1906, quando ingressou no quadro de sócios efetivos Instituto dos Advogados do Brasil
(IAB), depois de sete anos em busca do reconhecimento profissional, já que formou-se em
1898, contando com a Comissão de Justiça, Legislação e Jurisprudência que se pronunciou a
favor de Myrthes, por meio da Revista da IOAB, pois não havia nenhuma lei que impedisse a
mulher de exercer o ofício.
A história de outras mulheres como Maria Augusta Saraiva, Maria Immaculada Xavier
da Silveira, Romy Medeiros da Fonseca e tantas mais que ao longo do século XX lutaram contra
a discriminação e o preconceito pelo simples fato de serem mulheres, demonstra a dificuldade
das advogadas que nos antecederam e precisaram conquistar um espaço que era impensável
para a época e que ainda é alvo de disputa.
Inobstante os avanços já conquistados, ainda há muito pelo que se lutar. O “Protocolo
para Julgamento com Perspectiva de Gênero” implementado pelo Conselho Nacional de

367
Justiça, e que em março de 2023 passou a ser obrigatório, é o reconhecimento pelo Poder
Judiciário de que o “ser mulher” é determinante, em razão do patriarcado que nos estrutura. No
prefácio consta que o protocolo é um instrumento, um guia, para que “o exercício da função
jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não
perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de
discriminação e de preconceitos”.
Casos como o da Mariana Ferrer, que foi alvo de violência de gênero quando era ouvida
na condição de vítima em um processo que acusava um homem de tê-la estuprado, ao se
tornarem midiáticos trazem à tona práticas machistas e misóginas que muitas vezes ficam
restritas às salas de audiência. O caso repercutiu tanto que resultou na Lei n. 14.245, de 22 de
novembro de 2021, que alterou o Código Penal, Processo Penal e a Lei n. 9099/95, para coibir
a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa
de aumento de pena no crime de coação no curso do processo5.
Evidentemente que as violações de direitos das mulheres se estendem às demais
integrantes do sistema de justiça, aqui no nosso estudo concentrando-se na mulher advogada. É
preciso dizer, também, que não se desconhece o agravamento das violações em razão de raça,
etnia, cor, territorialidade e orientação sexual. Por isso, a pesquisa realizada entrevistou 15
mulheres brancas e 15 mulheres negras sobre percepções acerca do preconceito e discriminação
eventualmente sofridos em razão do “ser mulher”, e pretende-se aprofundar o estudo em futuras
pesquisas.
Uma das autoras deste ensaio é advogada há mais de dez anos e já experenciou algumas
situações em que “ser mulher” foi um obstáculo. Já houve o caso de um cliente que disse não
confiar em uma mulher advogada criminalista, que isso era “coisa de homem”, exigindo ser
atendido pelo colega advogado. Em outro caso, em uma audiência, o juiz a interrompeu
sistematicamente enquanto fazia um requerimento afirmando que era descabido, mas já havia
deferido pedido similar a um advogado no mesmo ato, de modo que não houve alternativa a
não ser concedê-lo também.
Embora escrito há vinte anos, a análise de Saffioti sobre o patriarcado ainda se mantém:
“[...] as brasileiras têm razões de sobra para se opor ao machismo reinante em todas as
instituições sociais, pois o patriarcado não abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade
como um todo” (2015, p. 49). O patriarcado se adapta às mudanças sociais e, inobstante

5
No dia 23 de maio de 2023, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça decidiu pela abertura de Procedimento
Administrativo em face do juiz que conduziu a audiência (CNJ, 2023).
368
diversos avanços, fato é que mulheres ainda são assassinadas, assediadas, recebem salários mais
baixos, simplesmente por serem mulheres, o que denota a importância da discussão sobre a
temática em todos os âmbitos.
A violação das prerrogativas da advocacia deve ser avaliada de acordo com o caso em
concreto, para compreender se há atravessamentos que a agravam e que às vezes são
determinantes para que ocorra, como gênero, raça, cor etc., sendo que em alguns casos
constituem crime, como no caso do racismo, por exemplo. O desagravo público é um
instrumento importante que a OAB utiliza, sem prejuízo, é claro, de outras medidas de cunho
reparatório.
Recentemente, no dia 20 de abril de 2023, o Conselho Seccional da OAB-CE aprovou
Ato de Desagravo Público em favor de seis advogadas constrangidas e assediadas por um
policial penal, sendo importunadas nas redes sociais com ligações e mensagens de cunho
sexual, inclusive com exposição do órgão genital por meio de fotografias. De acordo com o
processo instaurado pelo Tribunal de Defesa de Prerrogativas da OAB Ceará, ficou evidenciado
que tiveram seu exercício profissional desvalorizado (OAB-CE, 2023).
O Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Mato Grosso do
Sul, concedeu desagravo público em 2021, contra uma servidora que proibiu a entrada de
advogada em estabelecimento prisional em razão da sua vestimenta. A advogada Valéria
Loureiro Velasques foi ao Presídio Máximo Romero para atendimento a um cliente e foi
impedida de entrar pela agente em razão da sua vestimenta, vivenciando uma experiência
vexatória. No local, a agente de segurança disse que o vestido era “muito justo”, impedindo seu
ingresso e impondo como condição para acesso da advogada fosse vestir um casaco, para que
então pudesse adentrar ao estabelecimento, imposição a qual ela se submeteu (OAB-MS, 2021).
Nos dois casos podemos notar que não se trata somente de violação do exercício da
advocacia, mas também pela condição de mulher. No primeiro, qual a probabilidade de um
homem ser assediado daquela forma? Quais as razões que levam um homem, servidor público,
a pensar estar autorizado a enviar fotos do seu órgão genital a seis advogadas? No segundo, se
um advogado estivesse vestido informalmente, ou com uma “roupa justa”, seria impedido de
entrar no presídio? Qual roupa seria considerada inadequada? Nesse ponto:
Pode- se dizer que essas situações ocorrem por causa do patriarcado, ou melhor
dizendo, pelo machismo institucional intrínseco na sociedade patriarcal brasileira,
pode soar simplório, mas ao entender como esta estrutura social funciona, passamos
a compreender como e por quê se dão as situações vexatórias ou até mesmo de desdém
em face aos direitos das mulheres (IBAÑEZ, 2021).

369
Historicamente o corpo feminino é demonizado (FEDERICI, 2017) e embora questões
atreladas à inferioridade biológica tenham sido superadas, o imaginário coletivo, em grande
medida, ainda opera guiado pelas concepções do que tradicionalmente é esperado para um
comportamento feminino e a forma como pode ser tratado o corpo feminino. Soraia Mendes
(2017) apresenta importantes análises sobre a mulher e a criminologia, resultando em uma
criminologia feminista, resgatando eventos históricos que ainda reverberam no pensamento
hoje. A autora aponta a caça às bruxas como um elemento marcante enquanto prática misógina
de perseguição (MENDES, 2017, p. 28), o que se revela importante diante da construção
cultural do feminino e do masculino através dos processos de socialização que formam os
sujeitos, demonstrando que a opressão tinha (e ainda tem) como raiz uma causa social, e não
biológica ou natural (MENDES, 2017, p. 86)
O rompimento dessa racionalidade organizacional social se dá com o enfrentamento das
violências dela resultante, mas, antes disso, da tomada de consciência de que são violências.
Isso porque, se somos todos socializados a partir das mesmas premissas, é possível que sequer
entendamos certas limitações e impedimentos como direitos violados, pois muitas das práticas
fazem parte do nosso dia a dia desde a infância. O exemplo mais didático e claro é que uma
menina, em qualquer idade, usando vestido, precisa se comportar, tomar cuidado para que o
vestidinho não suba e sua calcinha apareça; “tenho modos, seja uma mocinha”, dizem. Aos
meninos não há vedação de comportamentos nesse sentido, porque normalmente seus corpos
não são sexualizados desde criança, como acontece com as mulheres.
Esse exemplo “não tão acadêmico” pode até ser considerado destoante de uma pesquisa
científica, mas, na verdade, ilustra muito bem como somos capazes de reproduzir
comportamentos e julgamentos sem muitas vezes refletir sobre o que significam. É por isso que
mulheres podem reproduzir comportamentos machistas e violências contra outras mulheres,
assim como se viu no caso do desagravo público feito pela OAB da Seccional de Mato Grosso
do Sul, citado anteriormente. Aliás, o rompimento de laços de solidariedade é uma característica
importante do patriarcado, afinal, o enfraquecimento da união enquanto movimento feminino é
o que permite a perpetuação e renovação desse sistema social de controle.
Claro que há outros mecanismos importantes que a todo momento são reproduzidos
perpetuando a lógica hierarquizante do patriarcado. Rebecca Solnit é autora da obra: “Os
Homens explicam tudo para mim”, e promove um debate sobre o termo mansplaining,
fenômeno machista que implica na ideia de que o homem possui mais conhecimento sobre um
tema do que as mulheres, independentemente do assunto, insistindo na explicação, quando

370
muitas vezes a mulher tem mais domínio que o próprio homem. Solnit parte da narrativa de um
episódio cômico: um homem passou uma festa inteira falando de um livro que "ela deveria ler",
sem lhe dar chance de dizer que, na verdade, ela era a autora.
O manterrupting significa o ato de um homem que interrompe uma mulher enquanto
ela fala. Esta ação ganhou ainda mais destaque no meio jurídico depois que a ministra Cármen
Lucia, do Supremo Tribunal Federal, no dia 08 de agosto de 2022, durante uma sessão, tentava
pautar um processo que não estava previsto na pauta de julgamentos e foi interrompida diversas
vezes por vários ministros, e apenas conseguiu retomar a palavra mais de vinte minutos depois,
quando pode finalmente fazer a leitura do relatório e do voto. A ministra Rosa Weber percebeu
o que estava ocorrendo e disse: "Eu não posso me furtar ao registro de que finalmente eu
consegui o que eu tanto queria, que era ouvir o voto da eminente relatora na questão de ordem".
A desigualdade estrutural em razão do gênero é percebida em outros tantos casos. Em
agosto de 2022 a advogada Malu Borges foi constrangida durante uma sessão de julgamento
por videoconferência no Tribunal de Justiça do Amazonas. Advogada e mãe em home office,
assim como outras tantas brasileiras, foi advertida por um Desembargador que os “barulhos”
que seu filho estava fazendo atrapalhavam a sessão e que a advogada devia, inclusive, atentar
para a ética profissional. O caso repercutiu e a advogada se manifestou:

"Nós mulheres só queremos que nossa voz seja ouvida, que nos respeitem no nosso
ambiente de trabalho e na sociedade. Que nossa ética profissional não seja questionada
por estarmos exercendo dupla/ tripla jornada sem qualquer tipo de apoio. A minha
realidade é a de milhões de brasileiras - trabalhadora e mãe" (G1, 2022).

A advogada completou: "Minha ética poderia ser questionada somente se eu deixasse


de cumprir prazos e realizar atos, o que não é o caso. Não sou antiética por trabalhar em home
office com a minha filha no colo". Em contrapartida, no mesmo mês, um pai compareceu a uma
sessão presencial no Superior Tribunal de Justiça com o filho de 1 ano no colo, pois era seu dia
de cuidar da criança, teve seu julgamento antecipado e foi motivo de admiração a forma como
aquele pai cuidava do seu filho, pois não quis desistir de estar na companhia da criança. Mais
uma vez estamos diante de um machismo estrutural que considera comportamentos iguais, a
partir da lente de gênero, diversos.
O “ser mulher” é determinante na atuação da mulher advogada. A luta pelo respeito às
prerrogativas não são as mesmas entre homens e mulheres, porque as especificidades atreladas
ao gênero ensejam o combate à discriminação e ao preconceito em razão do “ser mulher”, já

371
que as violações das prerrogativas das mulheres adentram o seu espaço privado, íntimo, violam
os seus papéis de mãe, a sua sexualidade, os seus corpos.

2 Os números não mentem: a mulher advogada e a discriminação em razão do gênero.

Entre os dias 10 de abril de 2023 e 23 de maio de 2023 foi realizada a pesquisa “Mulher
Advogada e a discriminação de gênero”, por intermédio da plataforma Survio. O site permite a
criação de um questionário, que gera um link de acesso, por meio do qual a entrevista é
realizada. Não foi requerida a identificação das participantes. A entrevista ocorreu de forma
direcionada, com o envio do link da pesquisa diretamente para as participantes convidadas. A
pesquisa foi realizada com 30 mulheres que já foram advogadas ou que advogam, 15 mulheres
brancas e 15 mulheres negras.
As perguntas foram objetivas e de múltipla escolha: 1) Você é advogada ou já advogou?
Opções: a) sim, sou advogada; b) não sou advogada atualmente, mas já advoguei; 2) Na sua
profissão como advogada ou quando advogava, alguma vez já ouviu comentários
discriminatórios por ser mulher, de colegas, magistrados e/ou demais juristas? Opções: a) sim,
já lidei com piadas, comentários e/ou brincadeiras discriminatórias quando ao meu gênero; b)
não, nunca passei por alguma situação parecida; 3) Com seus clientes, já sofreu algum tipo de
discriminação por ser uma mulher advogada? Exemplos: o cliente prefere ser atendido por um
homem, prefere dirigir a palavra apenas para o advogado e/ou acredita que o advogado será
mais capaz. Opções: a) sim, já sofri situações semelhantes ou idênticas às citadas como
exemplo; b) não, nunca ocorreram situações semelhantes e/ou idênticas às citadas; 4) Você
conhece alguma colega advogada que já tenha sofrido ou sofre discriminação como as citadas
acima ou semelhantes, na sua atuação, por conta do seu gênero? Opções: a) sim, conheço mais
de uma colega; b) sim, conheço uma colega; c) não conheço.
Das advogadas negras, todas as participantes são advogadas. Quanto à segunda
pergunta, todas as advogadas disseram já ter sido vítima de comentários, piadas e/ou
brincadeiras discriminatórias em razão do gênero. Em relação à discriminação cometida por
clientes, terceira pergunta, 8 disseram já ter sofrido situações similares ou idênticas ao exemplo
citado e 7 disseram nunca ter enfrentado tais violências. Na quarta pergunta, 11 advogadas
responderam conhecer mais de uma colega que já tenha sofrido ou sofre discriminação em razão
do gênero e 4 disseram conhecer uma colega.

372
Em relação às advogadas brancas, 12 são advogadas atualmente e 3 já advogaram. Do
total, na segunda pergunta, 11 disseram já ter ouvido comentários discriminatórios por ser
mulher. Quanto aos clientes, 8 mulheres disseram já ter sofrido algum tipo de discriminação.
Na última pergunta, 7 mulheres responderam que conhecem mais de uma colega que já tenha
sofrido ou sofre discriminação, 6 mulheres disseram conhecer uma colega e 2 não conhecem.
Importante dizer que embora não tenham sido realizadas perguntas sobre a questão
étnico-racial, os dados foram coletados separadamente para que fosse possível comparar os
resultados obtidos a partir da experiência de advogadas brancas e advogadas negras. Isso porque
o racismo, em suas mais diversas facetas – individual, estrutural, individual (ALMEIDA, 2019)
– compõe o cenário das violências sofridas em razão do “ser mulher”. Não se aprofundará o
debate sobre o racismo ante o exíguo espaço deste ensaio, mas os estudos prosseguirão e o
intuito é que outra pesquisa seja realizada, de modo a nos permitir analisar o entrecruzamento
entre violência de gênero e racismo, ante as experiências vividas pelas advogadas negras.
De todo modo, a comparação entre os resultados nos dá algumas pistas iniciais que
justificam o prosseguimento do estudo quanto à questão racial, somada à discriminação de
gênero. Quanto à segunda pergunta, todas as advogadas negras responderam positivamente, ou
seja, que já foram alvo de discriminação por colegas, magistrados ou demais juristas, enquanto
das mulheres brancas, 11 disseram sim. Quanto à terceira pergunta, o resultado foi idêntico, 8
mulheres responderam que sim: já sofreram discriminação por parte de clientes. Na quarta
pergunta, apenas 2 entrevistadas brancas não conheciam nenhuma mulher que tenha sofrido ou
sofre discriminação.
De um modo geral, 26 das 30 entrevistadas já sofreram discriminação na sua atuação
por parte de colegas, magistrados e/ou demais juristas, simplesmente por “serem mulheres”.
Este diagnóstico revela que tais violências ocorrem mesmo em ambientes em que o grau de
instrução é elevado, em que as leis são de conhecidas, ou seja, é inerente ao meio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A hipótese deste breve ensaio foi confirmada a partir da pesquisa realizada com as 30
advogadas, assim como dos casos concretos expostos ao longo do texto, de que a mulher
advogada sofre discriminação em razão do gênero, por “ser mulher”. Evidentemente que já
houve muitos avanços, inclusive legislativos, que devem ser celebrados, entretanto, ainda há
muito pelo que se lutar. A OAB vem contribuindo de diversas formas com esta luta que é de
todos e todas.
373
Na simbólica data de 8 de março, neste ano, 2023, a OAB do Estado do Rio Grande do
Sul (OAB/RS) lançou o PAMA – Programa de Apoio à Mulher Advogada que, segundo a
presidente da Comissão da Mulher Advogada, Márcia Schwantes, “o PAMA é um conjunto de
ações que são anseios da Comissão e, portanto, fruto da construção coletiva. Teremos uma
CMA mais atuante, sempre com o comprometimento de oferecer o apoio e trabalhar pela
valorização das mulheres, advogadas e cidadãs” (OAB-RS, 2023a).
Na mesma oportunidade foi lançado o “Observatório de Combate à Violência contra a
mulher”, para monitorar os dados acerca da violência contra a mulher advogada, em razão da
campanha do Conselho Federal da OAB “Advocacia sem Assédio”. O Observatório foi criado
com a finalidade de acompanhar pesquisas e monitoramento de dados, desenvolver ações de
conscientização, estudos e proposições aos poderes estatais, de políticas públicas de
enfrentamento e combate à violência contra a mulher (OAB-RS, 2023a).
A Ouvidoria da Mulher é um canal importante de comunicação e tem como função
receber dúvidas, problemas, dificuldades com acolhimento e atenção necessária às mulheres,
em especial, às advogadas6. A “Sala de Acolhimento Pérola” se tornará realidade, cujo objetivo
é acolher as advogadas vítimas de violência doméstica, cruel realidade brasileira (OAB-RS,
2023b).
Partindo da análise de Saffioti (2015, p. 49), de que “as brasileiras têm razões de sobra
para se opor ao machismo reinante em todas as instituições sociais, pois o patriarcado não
abrange apenas a família, mas atravessa a sociedade como um todo”, e de que o machismo
também é estrutural7, é preciso estar permanentemente atentos e atentas às violências cometidas
em razão do “ser mulher”, pois o seu combate depende do empoderamento da mulher (neste
estudo tratado como a capacidade da mulher de se opor a atos machistas e misóginos, consciente
dos seus direitos e de que tais violações não decorrem naturalmente, que são produtos culturais)
assim como dos homens, que sim, devem ser nossos aliados.
A luta deve ser composta também por aqueles que fazem parte do grupo opressor. O
patriarcado é uma estrutura complexa, do qual decorre o discurso da falaciosa superioridade
masculina que é perpetuada diariamente em diversas ações, desde a desvalorização do trabalho

7
Conforme Luciana Sant’ana e Carolina Gomes de Paula (2022, p. 7556), “machismo estrutural [é] a conjuntura
patriarcal sistêmica que constitui nossa sociedade. A expressão cunhada aqui tem paralelo com a noção de “racismo
estrutural”, uma vez que, tanto quanto o racismo, o machismo e as desigualdades de classe se encontram no cerne
de nossa sociedade, sedimentada no que Saffiotti, Davis, Hooks e outras pesquisadoras têm estudado
historicamente, pelo nó de intersecção gênero-raça-classe”.
374
da mulher advogada simplesmente por ser mulher, até o assédio, a violação da sua intimidade,
seja por toques, “brincadeiras” e até mesmo o envio de fotos íntimas.
O Estado do Rio Grande do Sul é reconhecidamente machista e a luta não é e nem será
fácil, mas percebe-se, ante as diversas ações que a OAB vem implementando, principalmente
a OAB/RS, que o combate à discriminação em razão do gênero vem ganhando espaço, e o que
mais desejamos é que cada vez mais as mulheres ocupem lugares relevantes, ainda
costumeiramente destinados aos homens, para que nossas demandas sejam atendidas e, assim,
a advocacia brasileira seja menos misógina, machista e racista.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: Lobby do Batom: marco histórico no combate à discriminações — Senado
Notícias. Último acesso em: 19 maio 2023.

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CNJ. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, fev. 2021. Disponível em:
<https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf>.
Acesso em: 19 mai. 2023.

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Disponível em Aberto PAD para investigar suposta omissão de juiz do caso Mariana Ferrer -
Portal CNJ. Acesso em: 28 mai. 2023.

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precarização, 2022. Disponível em:
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FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Trad. Coletivo
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repercute nas redes sociais. Ago. 2022. Disponível em:
<https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2022/08/23/desembargador-do-am-repreende-
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IBAÑEZ, Clarice de Camargo. Traços do Patriarcado na Sociedade Brasileira. In: Mulheres


na Advocacia e a Importância da Igualdade de Gênero, 2021. Disponível em: Mulheres na
Advocacia e a Importância da Igualdade de Gênero - Advocacia - Barioni e Macedo. Acesso
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Nacional por Amostra de Domicílios, 2019. Disponível em: Divulgação anual | IBGE. Acesso
em: 19 mai. 2023.
375
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PIOVESAN, Flávia; LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raisa. Feminismo interamericano:
exposição e análise crítica dos casos de Gênero da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
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da OAB/RS empossa primeira ouvidora da Mulher da entidade (oabrs.org.br). Acesso em: 24
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PARANAGUÁ, Isabella; CARQUEIRA, Silvia. O reconhecimento de Esperança Garcia como


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376
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SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. Trad. de Isa Mara Lando. São Paulo:
Editora Cultrix, 2017.

SOUZA, Eduarda Fernandes de; CAMARGO, Rowana. Pesquisa: Mulher Advogada e a


discriminação. Porto Alegre/RS, abr. 2023. Disponível em:
<https://www.survio.com/survey/d/K2S9U8Q1O2J4K9K1X>. Acesso em: 21 mai. 2023.

377
A AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE E O SUPREMO

Sara Daniela Silva de Souza1

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo o estudo da polêmica ação declaratória de


constitucionalidade a partir de como ela tem sido aplicada pelo Supremo Tribunal Federal e
como ela tem sido vista pela doutrina brasileira. Serão discutidos tópicos como a legitimidade,
a causa de pedir aberta, a possibilidade de medida cautelar e o seu prazo, o caráter dúplice da
ação, bem como os efeitos da decisão e a possibilidade de modulação de efeitos. A metodologia
da pesquisa consiste no estudo de caso e na pesquisa bibliográfica, as conclusões obtidas pela
pesquisa são de que ação declaratória não é somente uma ação declaratória de
inconstitucionalidade com o sinal trocado, além disso, com base nas decisões do Supremo
veremos que é possível a concessão de medida cautelar e que inclusive o seu prazo pode ser
aumentado por decisão fundamentada, ademais, é possível a modulação dos efeitos da decisão.
Assim, veremos que a ação declaratória é constitucional e que não viola os princípios da Carta
Magna.

Palavras-chave: Processo Constitucional. Modulação de efeitos. Ação direta de


constitucionalidade. Medida Cautelar. Controle concentrado de constitucionalidade.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo o estudo das decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal em sede de ação declaratória de constitucionalidade com relação a
legitimidade daqueles que podem propor a ação, do caráter dúplice da ação, da possibilidade de
medida cautelar, da causa de pedir que é aberta na ADC e dos efeitos das decisões.
Serão analisadas as decisões da Suprema Corte além do entendimento da doutrina e
como vem sido desenvolvida a ação declaratória ao longo dos anos desde a sua criação em
1993. Além disso, será exposta a problemática da constitucionalidade da ação declaratória,
tendo em vista que alguns autores entendem que a ADC seria uma ADI com o sinal trocado, ou
até mesmo que a ação viola princípios constitucionais tais como a separação de poderes, o
contraditório, etc.
Ademais, será estudada a questão do prazo da medida cautelar na ADC, já que a Lei cita
um prazo determinado sob pena de ineficácia da ação, sendo assim, veremos o que o Supremo
Tribunal Federal tem decidido sobre o assunto e como a doutrina se posiciona acerca disso.

1
Pós-graduada em direito penal e criminologia pela PUCRS, em advocacia extrajudicial pela Legale/SP, em direito
público pela Legale/SP, e em direito civil e processo civil pela FMP/RS. Bacharela em direito pela PUCRS.
Advogada OAB/RS 115.219 e professora. E-mail: sarasouzaadvocacia@gmail.com.
378
2 DA AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE

A ação declaratória foi introduzida pela Emenda Constitucional nº 3 em 1993, está


disposta na Constituição Federal artigos 102, inciso I, alínea a, e artigo 103, e é regulamentada
pela Lei nº 9.868/1999.
No início a ADC recebeu inúmeras críticas que diziam que a ADC era inconstitucional
por violar os princípios do contraditório e da ampla defesa, pois não há obrigatoriedade de
manifestação do advogado geral da união para defender o ato, além disso, havia argumentos
que aduziam que a ADC violaria a autonomia dos juízes e violaria a independência do poder
judiciário em razão do efeito vinculante da ADC que produz efeitos em todos os tribunais e
juízes de primeiro grau. (ARAÚJO; JÚNIOR, 2015).
Com o julgamento da ADC nº 1 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a
constitucionalidade da ação rejeitando todos os argumentos de que a ADC era inconstitucional.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 1993).
Assim, podemos ver que na decisão da ADC n°1 é citado que a ação declaratória foi
instituída para evitar decisões contraditórias e que prejudicassem os jurisdicionados, pois em
questões de grande controvérsia jurídica é necessário um instrumento capaz de fornecer
segurança jurídica assegurando a todos decisões jurídicas igualitárias para todos os casos
semelhantes. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 1993).
Por isso, a importância da ação declaratória é fornecer uma resposta ao jurisdicionado
que seja vinculante em todo o poder judiciário e poder executivo, garantindo-se assim segurança
jurídica no ordenamento jurídico.
Diante disso, muitos autores ainda criticam a ADC citando que ela nem sequer pode ser
considerada uma ação, visto que não há partes. Além disso, Walber Agra cita que a ação
declaratória violaria o princípio da separação dos poderes, visto que sua decisão é vinculante
aos membros do poder judiciário e do poder executivo, também haveria a quebra no
contraditório, já que o STF pode decidir sem que haja uma posição em sentido contrário. O
autor ainda aduz que na ADI há o contraditório e a ampla defesa e, portanto, há um processo
democrático, já na ADC não há. (AGRA, 2012).
José Roberto Pimenta Oliveira também afirma que a ADC seria inconstitucional, tendo
em vista que o STF exerceria função legislativa positiva por meio de aprovação abstrata de Lei
ou ato normativo exarado dos poderes executivo e legislativo ocasionando um desequilíbrio
entre os três poderes. (OLIVEIRA, 1998).

379
Com relação ao argumento de que a ADC violaria o princípio da separação dos poderes
entendemos que não há esta violação e que assim como a ADC possui o efeito vinculante a ADI
também possui, e neste caso se houvesse violação a este princípio ambas as ações declaratórias
deveriam ser consideradas inconstitucionais.
Clémerson Merlin Cléve aduz que o fato de não haver réu na ADC não configuraria
vício, já que na ação declaratória de inconstitucionalidade também não há réu, visto que ambas
as ações tratam de processo objetivo. (CLÉVE, 2011).
Ademais, os processos de controle de constitucionalidade se destinam a eliminar a
incerteza jurídica sobre determinada lei ou ato normativo, portanto, não há partes, e podem ser
instaurados independentemente de interesse jurídico específico, já que os impetrantes buscam
a preservação da segurança jurídica e não um interesse próprio. (HARGER, 1998).
Dessa forma, vemos que até hoje a função da ADC parece ser negligenciada por parte
da doutrina que cita que a ADC seria nada mais do que uma Ação Declaratória de
Inconstitucionalidade com o sinal trocado.
Desse modo, a ação declaratória de constitucionalidade tem por objetivo declarar lei ou
ato normativo federal compatível com a Constituição Federal. Todavia, para que possa ser
interposta é necessário que haja incerteza e controvérsia relevante sobre a aplicação da lei objeto
da discussão, para garantir a isonomia e segurança jurídica do ordenamento jurídico brasileiro.
Sendo assim, são objetos da ação declaratória somente Lei ou ato normativo federal
como portarias, decretos, medidas provisórias, emendas constitucionais. Atos normativos que
sejam secundários não podem ser objeto de ação declaratória de constitucionalidade, como
normas que estejam revogadas ou normas pré-constitucionais. (SARLET; MARINONI;
MITIDIERO, 2017).
Diante disso, na decisão da ação declaratória de constitucionalidade nº 22, proposta por
uma entidade sem fins lucrativos de âmbito nacional, foi indeferida liminarmente o pedido de
procedência de justiça gratuita para as entidades sociais com a finalidade do exercício da
cidadania, disposto no artigo 5º, inciso LXXVII da Constituição Federal, visto que a ação
declaratória tem por objeto declarar constitucional lei ou ato normativo federal e não normas
da própria constituição. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2009).
Marcelo Novelino afirma que a ADC possui limites temporais e espaciais. A limitação
temporal seria que somente por ser objeto de ação de constitucionalidade as leis que tenham sio
introduzidas após a promulgação da Constituição Federal ou de norma constitucional que tenha
sido alterada por meio de Emenda Constitucional; portanto, é possível que haja o cabimento da

380
ação para discutir a constitucionalidade de Lei Federal antes mesmo da criação da ADC. Já o
limite espacial seria que somente Lei ou ato normativo de esfera federal que pode ser discutido
por meio da ADC. (NOVELINO, 2014).
A ação declaratória de constitucionalidade possui causa de pedir aberta, isto é, o STF
pode valer-se de outros fundamentos para verificar a constitucionalidade ou não da norma, em
razão disso não está restrito aos fundamentos trazidos pelo autor da ação. (AGRA, 2012).
A causa de pedir aberta na ação declaratória também tem por função inibir a propositura
de uma nova ADC que possua outros fundamentos. Sendo assim, no controle abstrato não pode
ter o distanciamento dos fatos, pois se admite que sejam produzidas provas; em razão disso, na
ação declaratória não deve ter apenas o confronto da norma com a Constituição, mas, sim, deve
se dar sentido ao texto a partir dos fatos. Logo, a Lei 9.868/1999 em seu artigo 20, parágrafos
1º e 2º permite que o relator solicite informação aos tribunais, designe perito, etc. (SARLET;
MARINONI; MITIDIERO, 2017).
Após o trânsito em julgado da ADC todos os demais fundamentos que não foram
suscitados estariam preclusos. Cabe destacar que não cabe ação rescisória de ADC, cabe
somente o recurso de embargos de declaração. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017).
Um dos requisitos da petição inicial da ADC é a demonstração da controvérsia jurídica
relevante conforme artigo 14, inciso III da Lei 9.868/1999; nas palavras de Ingo Sarlet, Luiz
Marinoni e Daniel Mitieiro:

Controvérsia judicial relevante não significa desacordo entre os tribunais acerca da


aplicação da norma. Isso porque a justificativa da ação declaratória está na existência
de dúvida sobre a constitucionalidade da norma. A dúvida sobre a aplicação da norma
é dúvida sobre a sua constitucionalidade. O pressuposto da declaração de
constitucionalidade não está na divergência entre os tribunais, mas na divergência
entre o Judiciário e o Legislativo. (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017, p.
1151).

A controvérsia judicial seria o requisito para a procedência do pedido da ADC, ou seja,


a declaração de constitucionalidade da norma. Logo, a controvérsia judicial seria o mérito da
ação e não o interesse de agir, já que não é uma condição da ação. (SARLET; MARINONI;
MITIDIERO, 2017).
Saul Taurino Leal afirma que a controvérsia jurídica sobre a legitimidade da norma deve
ser concreta e constante no judiciário. Dessa forma, não caberia ADC no caso de controvérsias
sobre discussões doutrinárias acerca da constitucionalidade da Lei. (LEAL, 2021).

381
Na ADC n° 40, o STF decidiu que não caracteriza controvérsia jurídica relevante o
ingresso de apenas uma ação judicial, visto que para caracterizar a controvérsia jurídica é
necessário que haja um dissídio judicial de grandes proporções que gerasse um estado de
incerteza quanto à constitucionalidade de uma Lei federal. (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal, 2018).
Fábio Carvalho Leite afirma que a causa de pedir aberta faz com que o STF ultrapasse
os limites do que foi decidido pelas instâncias ordinárias, discutindo dispositivos
constitucionais que ainda não foram postos em discussão com a lei federal retratada na ADC,
assim, o STF ao julgar a ADC colocaria fim a controvérsias que ainda não existiram, atribuindo
o requisito da controvérsia judicial relevante um caráter meramente formal. (LEITE, 2014).
Diante disso, não se pode considerar que ADC é uma ADI com o sinal trocado, visto
que a improcedência da Ação declaratória de inconstitucionalidade não equivale a uma ação
declaratória de constitucionalidade, já que não encerra uma controvérsia judicial. (LEITE,
2014).

3 DA LEGITIMIDADE

Os legitimados para propor a ação declaratória eram inicialmente o presidente da


república, a mesa da câmara dos deputados, a mesa do senado federal, e o procurador geral da
república. Com o advento da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 este rol foi ampliado, visto
que os legitimados para ingressarem com a ação são os mesmos da ação direta de
inconstitucionalidade, e estão dispostos no artigo 103 da Carta Magna. Vejamos: (BRASIL.
Constituição Federal, art. 103).

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória


de constitucionalidade:
I - o Presidente da República;
II - a Mesa do Senado Federal;
III - a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI - o Procurador-Geral da República;
VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII - partido político com representação no Congresso Nacional;
IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Nesse sentido, a ação declaratória de constitucionalidade nº 34 proposta pelo conselho


federal de corretores de imóveis foi julgada improcedente, devido à ilegitimidade ativa da parte,
visto que o rol dos legitimados para propor a ação declaratória, previsto no artigo 103 da

382
Constituição Federal, é taxativo. Os conselhos profissionais não se enquadram na definição de
entidade de classe de âmbito nacional. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2015).

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NA AÇÃO DECLARATÓRIA


DE CONSTITUCIONALIDADE. AÇÃO PROPOSTA PELO
CONSELHO FEDERAL DE CORRETORES DE IMÓVEIS – COFECI.
ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO PROPONENTE, POR
NÃO SE CARACTERIZAR COMO ENTIDADE DE CLASSE, MAS
COMO CONSELHO PROFISSIONAL. AÇÃO QUE NÃO MERECE
SER CONHECIDA. PRECEDENTES. AGRAVO A QUE SE NEGA
PROVIMENTO.
1. A jurisprudência deste Tribunal se consolidou no sentido de que o
rol de legitimados ativos à propositura das ações de controle concentrado
de constitucionalidade é taxativo (art. 103 da C/88), não alcançando os
conselhos profissionais.
2. In casu, a ação foi proposta pelo Conselho Federal de Corretores
de Imóveis – COFECI, que, como os outros conselhos profissionais, não se
caracteriza como entidade de classe de âmbito nacional (art. 103, IX, da
CF/88), pelo que resta caracterizada sua ilegitimidade ad causam, o que
implica o não conhecimento da presente ação declaratória de
constitucionalidade.
3. Agravo regimental a que se nega provimento. (grifou-se).

Assim, na ação declaratória de constitucionalidade há os legitimados universais e os


especiais. Os legitimados universais são a mesa da câmara dos deputados, a mesa do senado, o
presidente da república, o procurador geral da república, o conselho federal da OAB e os
partidos políticos. Já os legitimados especiais que são a mesa da assembleia legislativa e a mesa
da câmara legislativa do Distrito Federal, a confederação sindical, os governadores dos estados
e do DF, e as entidades de classe. Estes somente poderão ingressar com a ação declaratória
desde que comprovem a pertinência temática. (NOVELINO, 2014).
Nas palavras de Saul Taurino Leal:

Para o STF, a pertinência temática é verdadeira projeção do interesse de agir no


processo objetivo, que se traduz na necessidade de que exista uma estreita relação
entre o objeto do controle e os direitos da classe representada pela entidade requerente.
(LEAL, 2021, p. 314).

Nesse diapasão, no julgamento da ação declaratória nº 12 foi reconhecida a legitimidade


da associação dos magistrados do Brasil (AMB), por se tratar de entidade de classe de âmbito
nacional e também porque foi evidenciado o vínculo objetivo entre as finalidades da associação
e o conteúdo do ato normativo que impugnado pela instituição por meio da ADC, portanto,
demonstrando o requisito de pertinência temática. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2006).

383
4 DA MEDIDA CAUTELAR

Um dos pressupostos para interposição da ação declaratória é a existência de relevante


controvérsia jurídica sobre Lei ou ato normativo federal, que cause insegurança jurídica. Na
ação declaratória de constitucionalidade, os ministros do Supremo Tribunal Federal poderão
por maioria absoluta conceder medida cautelar em ação declaratória de constitucionalidade. A
medida cautelar pode ser requerida quando preenchidos alguns pressupostos como: uma tese
jurídica crível (fumus boni iuris), e a probabilidade de prejuízo em razão da demora no
julgamento (pericullum in mora).
A medida cautelar em sede de ADC se destina a conceder uma medida que possa
garantir a eficácia do provimento final da Corte Constitucional para tanto esta medida poderá,
por exemplo, suspender o curso dos processos administrativos e judiciais que estejam em
andamento ou pode consistir na suspensão da prolação destas decisões que tenham como
parâmetro a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da Lei objeto da ação declaratória de
constitucionalidade. (FERNANDES, 2009).
Na ação declaratória de constitucionalidade nº 4 foi concedida a medida cautelar para
suspender a tutela antecipada contra a fazenda pública, concedendo a eficácia vinculante ao
poder executivo e aos demais órgãos do poder judiciário e conferindo o efeito ex nunc, até que
haja a decisão final do julgamento.
No presente caso, havia os pressupostos da concessão da liminar como: a tese jurídica
plausível que era o pedido de declaração de constitucionalidade da Lei Federal 9.494 de 1997
que regula a antecipação da tutela contra a fazenda pública; e o prejuízo da demora, devido aos
acréscimos ao vencimento dos servidores públicos e aos atrasos no pagamento. Mesmo não
havendo previsão constitucional expressa sobre a medida cautelar na ação declaratória de
constitucionalidade, ela é cabível, visto que é inerente ao exercício da atividade jurisdicional.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2008a).

E M E N T A: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE –


processo objetivo de controle normativo abstrato – natureza dúplice desse
instrumento de fiscalização concentrada de constitucionalidade – possibilidade
jurídico-processual de concessão de medida cautelar em sede de ação
declaratória de constitucionalidade – inerência do poder geral de cautela em
relação à atividade jurisdicional – caráter instrumental do provimento cautelar
cuja função básica consiste em conferir utilidade e assegurar efetividade ao
julgamento final a ser ulteriormente proferido no processo de controle
normativo abstrato – importância do controle jurisdicional da razoabilidade das leis
restritivas do poder cautelar deferido aos juízes e tribunais – inocorrência de qualquer
ofensa, por parte da lei nº 9.494/97 (art. 1º), aos postulados da proporcionalidade e da

384
razoabilidade – legitimidade das restrições estabelecidas em referida norma legal e
justificadas por razões de interesse público – ausência de vulneração à plenitude da
jurisdição e à cláusula de proteção judicial efetiva – garantia de pleno acesso à
jurisdição do estado não comprometida pela cláusula restritiva inscrita no preceito
legal disciplinador da tutela antecipatória em processos contra a fazenda pública –
outorga de definitividade ao provimento cautelar que se deferiu, liminarmente, na
presente causa – ação declaratória de constitucionalidade julgada procedente para
confirmar, com efeito vinculante e eficácia geral e “ex tunc”, a inteira validade
jurídico-constitucional do art. 1º da lei 9.494, de 10/09/1997, que “disciplina a
aplicação da tutela antecipada contra a fazenda pública”. (grifou-se).

Umas das grandes problemáticas da medida cautelar na ADC é que a Lei 9.868/1999
que regulamenta a ADC cita em seu artigo 21 que a medida cautelar terá a validade de 180 dias,
ou seja, após este prazo sem que haja o julgamento a ação perde a sua eficácia. É possível que
haja a prorrogação do prazo segundo os autores Ingo Sarlet, Daniel Mitidiero e Luiz Marinoni.
(SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2017).
No entanto, entendemos que este prazo não poderá ser prorrogado indefinidamente sob
pena de haver a ineficácia da medida cautelar. Na ação declaratória de constitucionalidade nº
18 foi prorrogado o prazo da medida cautelar por várias vezes e o STF entendeu que é possível
prorrogar o prazo desde que seja por decisão fundamentada. (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal, 2008b).
Saul Torino Leal entende que a prorrogação do prazo da medida cautelar por várias
vezes daria ensejo a violação da cláusula de reserva de plenário disposto na Súmula Vinculante
nº 10 do STF, além de violar o artigo 21 da Lei 9.868/1999. (LEAL, 2012).
Embora a medida cautelar deva ser concedida por maioria absoluta dos ministros,
Marcelo Novelino aduz que pode, por analogia, ser concedida a cautelar por meio de decisão
monocrática do relator com base no artigo 10 da Lei 9.868/1999 e o artigo 21, V do Regimento
Interno do Supremo Tribunal Federal quando houver caso de urgência que gere o estado de
incerteza. (NOVELINO, 2014).

5 DO CARATER DÚPLICE

A decisão da ação declaratória de constitucionalidade pode apresentar o caráter dúplice,


ou seja, na decisão que julga o pedido improcedente, está declarando a inconstitucionalidade
da lei federal, o que corresponde a matéria objeto da ação direta de inconstitucionalidade.
Na ADC nº 33 que foi proposta pela mesa do senado federal foi julgada por medida
cautelar juntamente com as ações diretas de inconstitucionalidade, pois fazem parte de um
mesmo conjunto de leis, que estavam em análise. O pedido do senado federal foi o de declarar

385
constitucional o Decreto Legislativo nº 424 de 2013 que suspendia a eficácia da Resolução nº
23.839 de 2013 do Tribunal Superior Eleitoral que regulamenta a Lei Complementar 78 de
1993, pois havia a discussão de que a Resolução teria extrapolado o limite de representantes na
câmara dos deputados e nas assembleias legislativas estaduais. Quando interposta a ação
declaratória já havia a propositura de três ações diretas de inconstitucionalidade pedindo a
declaração de inconstitucionalidade da Lei Complementar e da Resolução.
Portanto, foi julgada improcedente a ação declaratória declarando a
inconstitucionalidade do decreto legislativo, visto que ele não pode alterar Lei Complementar
e que ele não tem previsão constitucional; e foram julgadas improcedentes as ações diretas de
inconstitucionalidade declarando constitucional a Lei Complementar e a Resolução do TSE.
(BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2014).

AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA


CAUTELAR.
2.Julgamento conjunto com as ADIs 4.947, 5.020 e 5.028.
3. Relação de dependência lógica entre os objetos das ações julgadas em conjunto. Lei
Complementar 78/1993, Resolução/TSE 23.389/2013 e Decreto Legislativo
424/2013, este último objeto da ação em epígrafe.
4. O Plenário considerou que a presente ADC poderia beneficiar-se da instrução
levada a efeito nas ADIs e transformou o exame da medida cautelar em
julgamento de mérito.
5. Impossibilidade de alterar-se os termos de lei complementar, no caso, a LC
78/1993, pela via do decreto legislativo.
6.Ausência de previsão constitucional para a edição de decretos legislativos que visem
a sustar atos emanados do Poder Judiciário. Violação à separação dos poderes.
7. O DL 424/2013 foi editado no mês de dezembro de 2013, portanto, há menos de 1
(um) ano das eleições gerais de 2014. Violação ao princípio da anterioridade eleitoral,
nos termos do art. 16 da CF/88.
8. Inconstitucionalidade formal e material do Decreto Legislativo 424/2013.
Ação Declaratória de Constitucionalidade julgada improcedente. (grifou-se).

É possível a cumulação de uma ação declaratória de constitucionalidade e de uma ação


direta de inconstitucionalidade numa mesma ação, devido ao seu caráter dúplice. Como
podemos ver no julgamento da ADI nº 5.316 que julgou juntamente uma ADC por aplicação
subsidiária do artigo 292 do antigo Código de Processo Civil2. (BRASIL. Supremo Tribunal
Federal, 2015).

EMENTA: MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE


INCONSTITUCIONALIDADE. emenda constitucional nº 88/2015. cumulação de
ações em processo objetivo. possibilidade. art. 292 do código de processo civil.
aplicação subsidiária. mérito. aposentadoria compulsória aos 75 anos de idade de
membros dos tribunais superiores e do tribunal de contas da união. necessidade de

2
Correspondente ao artigo 387 do atual Código de Processo Civil.
386
nova sabatina perante o senado federal (crfb, art. 52). violação à separação dos poderes
(crfb, art. 60, §4º, iii). ultraje à independência e à imparcialidade do poder judiciário.
inconstitucionalidade da expressão “nas condições do art. 52 da constituição federal”
do artigo 100 do adct. sentido da expressão “lei complementar” na nova redação do
art. 40, §1º, ii, crfb. discussão restrita aos membros do poder judiciário. art. 93, vi, da
crfb. necessidade de lei complementar nacional de iniciativa do stf. invalidade de leis
estaduais que disponham sobre aposentadoria de magistrados. existência de regra de
aposentadoria específica para membros de tribunal superior. princípios da isonomia e
da unidade do poder judiciário. alegada violação. não ocorrência. pedido cautelar
deferido.
6. A cumulação simples de pedidos típicos de ADI e de ADC é processualmente
cabível em uma única demanda de controle concentrado de constitucionalidade,
desde que satisfeitos os requisitos previstos na legislação processual civil (CPC,
art. 292). (grifou-se).

6 DOS EFEITOS DA DECISÃO

O procedimento da ação declaratória de constitucionalidade é o mesmo da ação direta


de inconstitucionalidade, mas com algumas particularidades próprias da ADC. É necessário que
o requerente instrua com a petição inicial da ADC os documentos relativos ao processo
legislativo da lei que é objeto da ação, além disso é necessário demonstrar a controvérsia
jurídica relevante. (HERGER, 1998).
Cabe ressaltar que não há a atuação do advogado geral da união, visto que a norma
possui presunção de constitucionalidade. Já o procurador geral da república deve atuar como
fiscal da ordem jurídica, mesmo quando for o requerente da ADC.
Com relação ao julgamento da ação observa-se a disciplina da ADI com quórum de oito
ministros para tomar a decisão e a maioria absoluta (seis ministros) para declarar a procedência
ou não da ADC. A decisão faz coisa julgada material e formal. Ademais, a ação declara um
estado preexistente. (HERGER, 1998).
O controle de constitucionalidade da ação declaratória é abstrato, possui efeito erga
omnes e tem eficácia vinculante aos órgãos do poder judiciário e ao poder executivo, além disso,
possui o efeito ex tunc, ou seja, retroage a época em que a lei entrou em vigor; salvo quando o
Supremo Tribunal federal estabelecer qual será o momento em que a decisão terá eficácia.
Segundo André Brawerman:
O poder vinculante obriga, portanto, a dois Poderes - Executivo e Judiciário. Por óbvio
que o Poder Legislativo não está incluso na abrangência dos efeitos da ação
declaratória. Nada impede que o legislativo inove o ordenamento jurídico, trazendo
ao mundo norma que disponha de forma totalmente oposta ao entendimento do STF.
Mas, retomando, para o Poder Executivo e Judiciário a decisão do STF passa a ter
força de lei. Deve ser obedecido obrigatoriamente. (BRAWERMAN, 1997, 312).

387
José Roberto Pimenta Oliveira afirma que a decisão do STF em sede de ADC pode ser
pela procedência da ação, declarando constitucional a Lei discutida, porém, ele afirma que a
situação jurídica da norma não se alteraria, o que seria o maior motivo da inutilidade da ação
declaratória de constitucionalidade; ou também a Corte Suprema pode julgar improcedente a
ação declaratória o que acarretaria na inconstitucionalidade da norma. (OLIVEIRA, 1998).
Walber Agra cita que com a procedência da ação declaratória, as normas estaduais
paralelas, isto é, as normas que apresentam o mesmo conteúdo, também serão declaradas
compatíveis com a Constituição Federal. (AGRA, 2012).
De modo geral a ação declaratória de constitucionalidade não necessita da modulação
dos efeitos da decisão, mas é seria cabível nos casos em que o STF declare uma Lei
constitucional por meio da ADC e depois acabe declarando a mesma norma inconstitucional.
Para assegurar segurança jurídica para aqueles que agiram conforme a Lei que antes era
constitucional, o STF pode modular os efeitos da decisão que tornou inconstitucional a Lei.
Preservando assim, a boa fé e a confiança do particular que confiou na constitucionalidade
daquela Lei. (RODOVALHO, 2015).
Assim, o STF poderá modular os efeitos da decisão proferida em sede de ação
declaratória de constitucionalidade mediante dois terços dos votos dos ministros por razões de
segurança jurídica ou excepcional interesse social, nos termos do artigo 27 da Lei 9.868/1999.
De acordo com Thiago Rodovalo:

A segurança jurídica é, nesse contexto, uma verdadeira necessidade humana, sendo,


por isso mesmo, um direito fundamental do cidadão, que precisa dela para conduzir-
se e planejar autônoma e responsavelmente a vida, e cuja preservação pelo Estado
assegura a própria liberdade e justiça. (RODOVALO, 2015, p. 1002).

Já a expressão excepcional interesse jurídico denota o interesse da maioria da sociedade,


ou seja, o que se entende por bem comum para a comunidade como um todo tutelando valores
que sejam elevados para todos. Assim, deve ser observada a realidade social e as possíveis
consequências dos efeitos da decisão proferida na ação declaratória de constitucionalidade.
(OLIVEIRA, 2008).
Destarte, o Supremo Tribunal Federal pode declarar a norma constitucional e depois
mudar a sua jurisprudência declarando a mesma norma inconstitucional, tendo em vista que o
direito é mutável. (RODOVALHO, 2015).
Conforme Clémerson Merlin Cléve: “É necessário, na ação de constitucionalidade, do
mesmo modo como ocorre com a ação direta de inconstitucionalidade, interpretar a coisa
julgada e a eficácia erga omnes cum grano salis”. (CLÉVE, 2011, p. 914). Assim, a ADC não
388
impede a propositura de ação de inconstitucionalidade quando presentes novos fatos ou
circunstâncias que alterem a realidade normativa, pois a Lei que é constitucional hoje pode não
ser amanhã.
Da mesma forma, quando não for observada pelos órgãos do poder judiciário uma
decisão do STF em sede de ADC é cabível o instituto da reclamação; portanto, a reclamação
trata-se de uma ação e não de um recurso. (AGRA, 2012).

7 CONCLUSÃO

A ação declaratória de constitucionalidade surgiu com a Emenda Constitucional n°


3/1993. Logo com o advento da ADC, já houve inúmeras críticas por parte da doutrina que
acreditava que a ação era inconstitucional por violar o princípio do contraditório, já que não há
a obrigação de manifestação do advogado geral da união; por violar o princípio da separação
dos poderes, visto que a decisão em sede de ADC produz efeito vinculante aos órgãos do poder
judiciário e do executivo, além de violar a autonomia dos juízes e tribunais.
Muitos autores ainda afirmaram que a ADC não poderia nem ser considerada como uma
ação, já que não há partes e que não haveria razão de existir da ação declaratória, tendo em vista
que a Leis possuem presunção de constitucionalidade. Destarte, ainda hoje muitos
doutrinadores citam que a ADC seria uma ADI com o sinal trocado.
Assim, na primeira ADC julgada pelo STF, a corte constitucional declarou a
constitucionalidade da ação declaratória, visto que se trata de processo objetivo no qual se busca
a segurança jurídica da decisão e não um interesse próprio. Deste modo, tanto na ADC quanto
na ADI não há réu, já que não se trata de processo subjetivo, isto é, não se discute direitos
subjetivos.
A finalidade da ADC é buscar clareza e quanto à incerteza jurídica que paira sobre a
constitucionalidade da norma com o fim de evitar decisões contraditórias, alcançando a
segurança jurídica.
Diante disso, não há violação a separação de poderes, pois a ADC e a ADI possuem
efeito vinculante, ademais, conforme entendimento da Corte Suprema não há
inconstitucionalidade da ADC.
A ADC pode ser interposta perante o STF para se discutir a constitucionalidade de Lei
ou ato normativo federal, incluído portarias, decretos, medidas provisórias e emendas
constitucionais. Não é cabível para a análise de normas pré-constitucionais ou para normas
revogadas.
389
Cabe destacar que o STF decidiu na ADC nº 22 que não cabe ação declaratória para
declarar a constitucionalidade de normas da própria Constituição Federal. Assim, a ADC possui
limites temporais, isto é, só podem ser objeto da ação Leis promulgadas após a Constituição
Federal; normas que tenham sido alteradas por Emenda Constitucional ou normas anteriores a
criação da ADC; já os limites espaciais seriam as Leis ou atos normativos federais.
A ADC possui causa de pedir aberta que possibilita que a Corte Constitucional se utilize
de outros argumentos que não tenham sido trazidos pelo autor da demanda. Além disso, a
função da causa de pedir aberta é impedir que haja novas ações declaratórias que tenham outros
fundamentos. A Lei nº 9.868/1999 ainda permite que sejam solicitadas informações a tribunais,
peritos, e que possa ter amicus curiae, etc.
A causa de pedir aberta gera controvérsias na doutrina que entende que se o STF
ultrapassa os limites daquilo que foi decidido pelas instâncias inferiores, discutindo dispositivos
constitucionais que ainda não foram confrontados em face da Lei federal discutida em ADC, o
STF colocaria fim a controvérsias jurídicas que ainda nem sequer foram discutidas, dando aos
requisitos da controvérsia judicial um caráter meramente formal.
Um dos requisitos da ADC é demonstração de controvérsia jurídica relevante que seria
uma divergência entre o judiciário e o legislativo quando a constitucionalidade da norma. Na
ADC nº 40, o STF esclareceu que não basta apenas uma ação judicial para se comprovar a
controvérsia jurídica relevante, mas, sim, que haja um dissídio judicial de grandes proporções
que gere um estado de incerteza quanto à constitucionalidade da norma em questão.
Destarte, a ADC não pode ser considerada com uma ADI com o sinal trocado, tendo em
vista que a improcedência da ADI não encerra uma controvérsia judicial relevante. Assim, a
controvérsia jurídica relevante se situa no mérito da ADC.
Com relação aos legitimados que podem interpor uma ADC há os legitimados
universais: mesa da câmara dos deputados, mesa do senado federal, presidente da república,
procurados geral da república, conselho federal da OAB e partidos políticos, já os legitimados
especiais seriam: mesa da assembleia legislativa, mesa da câmara legislativa do Distrito
Federal, governador do Estado e Distrito Federal, entidade de classe de âmbito nacional.
Os legitimados especiais devem comprovar pertinência temática para que possam
ajuizar a ADC. O STF decidiu que se trata de rol taxativo e que conselhos profissionais não se
enquadram no conceito de entidade de classe de âmbito nacional conforme ADC n° 34.
A ADC possui caráter dúplice, isto é, se declarada improcedente declara a
inconstitucionalidade da norma objeto da ADI. Em razão do caráter súplice é possível a

390
cumulação da ADC e da ADI em uma mesma ação conforme decisão do STF na ADC nº 33 e
na ADI nº 5.316.
É cabível a concessão de medida cautelar em ADC que será julgada por maioria absoluta
dos ministros do STF, quando estiverem presentes os requisitos do fumus boni iuris e
pericullum in mora.
Contudo, a validade da medida cautelar é de 180 dias, conforme dispõe a Lei nº
9.868/1999. O STF na ADC nº 18 entendeu que é possível prorrogar este prazo inúmeras vezes
desde que a decisão seja fundamentada. No entanto, entendemos que pode haver a prorrogação
desde que seja de maneira proporcional e não seja prorrogado indefinidamente sob pena de
ineficácia da medida.
Ademais, também seria possível com base no regimento interno do STF, por analogia,
que o relator proferisse decisão monocrática concedendo a medida cautelar a ADC desde fosse
em caso de urgência que gere um estado de incerteza.
Com relação à decisão na ADC se trata de controle abstrato de constitucionalidade com
eficácia erga omnes, ou seja, para todos, com efeito ex tunc, isto é, retroativo, e eficácia
vinculante a todos os órgãos do poder judiciário e do executivo, não cabe efeito vinculante ao
poder legislativo que pode criar lei com entendimento diverso do que foi decidido pelo STF;
além disso, é possível que o STF depois possa mudar o seu entendimento, tendo em vista que
o direito é mutável, também é possível que haja após o julgamento da ADC a interposição de
ADI que possua novos fatos que posam alteram a realidade normativa.
O quórum de instalação para decisão em ADC deve ser de no mínimo 8 (oito) ministros,
já quórum de votação deve ser por maioria absoluta, ou seja, 6 (seis) ministros. A decisão em
ADC declara um estado preexistente, gera coisa julgada material e formal.
Poderá haver a modulação de efeitos na decisão em sede de ADC quando, por exemplo,
o STF declara a norma constitucional e depois vem a declara-la inconstitucional, podendo
modular os efeitos da decisão para decidir quando ela produzirá os seus efeitos a fim de proteger
aqueles que agiram conforme a norma e confiaram na constitucionalidade da Lei.
Diante disso, normas estaduais paralelas que possuam o mesmo conteúdo da lei
declarada constitucional também serão declaradas compatíveis com a Constituição Federal.
Portanto, a ADC é constitucional conforme já declarado pelo STF e embora possua o
mesmo procedimento da ADI, a ADC possui algumas características diferentes já que necessita
da comprovação da controvérsia judicial relevante, além de ser utilizada apenas para declarar a

391
constitucionalidade de Leis e atos normativos federais. Destarte, a ADC não deve ser vista como
uma ADI com sinal trocado.

REFERÊNCIAS

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392
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2016.

393
VIOLÊNCIA CONTRA A PESSOA IDOSA: ATO ATENTATÓRIO CONTRA
OS DIREITOS HUMANOS

Simone Rossini1

1 INTRODUÇÃO

A abordagem desse tema justifica-se pela escassez de informação proporcionada à


população em geral, referente aos temas de abandono, de dificuldades e de violências sofridas
pelas pessoas idosas no Brasil, cujos reflexos traduzem numa ausência de valores e de firmes
propósitos da nossa atual sociedade.
Infelizmente os dados de registro da violência contra a pessoa idosa cresceram
assustadoramente nas últimas décadas. Importante referir que os estudos tem mostrado que o
aumento da violência nos ambientes privados e públicos acompanha o próprio movimento da
sociedade com o aumento do número de pessoas idosas, o não reconhecimento dos direitos e
mesmo falta de condições para os familiares cuidarem de seus idosos.
Os estudos revelam que a pessoa idosa vítima de violência se sente segregada nas casas
de abrigo, porquanto não pode fazer uso de celular e nem mesmo pode entrar em contato com
os familiares em virtude de sua própria segurança. Então só lhe resta retornar ao ambiente
familiar violento, perpetuando, assim, o ciclo de violência e prejudicando o bem-estar, a
integridade física e psicológica da pessoa idosa.
A violência contra a pessoa idosa constitui um dos maiores obstáculos para a plena
realização de um estado democrático, qual seja: a igualdade de direitos. Assim, tem-se que essa
violência se qualifica como um ato atentatório contra os direitos humanos.
Faz-se necessário compreender as razões que permeiam a violência contra a pessoa
idosa, analisando-se o contexto das relações sociais, bem como onde essas relações são
produzidas.
A população idosa merece ser tratada com dignidade e respeito, princípios consagrados
na Constituição Federal Brasileira e no Estatuto do Idoso. A violência contra a pessoa idosa,
nas suas diversas formas, constitui prática social de violação de direitos a que esse grupo social
faz jus.

1
Pós-graduada em Direitos da Mulher e a Advocacia Feminista, pela Faculdade Legale/SP. Engenheira Civil e
Advogada, inscrita na OAB/RS nº 114.163. advsimone.rossini@gmail.com.

394
2 ANÁLISE DA VIOLÊNCIA CONTRA A POPULAÇÃO IDOSA

O envelhecimento humano é um fato social inegável. Igualmente é indiscutível que a


maioria das culturas tende a relegar os velhos, a favor da juventude e da população adulta.
Na nossa cultura ocidental não há se pensar que no passado as pessoas idosas foram
muito melhor acolhidas e tratadas do que nos tempos contemporâneos. O abandono social e
familiar das pessoas idosas, sobretudo dos pobres e doentes, historicamente, pode ser contado
nas histórias dos “asilos” e das casas de longa permanência, que há muitas décadas os acolhem
por caridade.
A questão da velhice passou a fazer parte das pautas políticas dos países muito
recentemente. A Organização das Nações Unidades a colocou na agenda a partir de 1956, sem
lhe dar grande atenção. E em 1982 promoveu a “I Assembleia Mundial sobre Envelhecimento”
na cidade de Viena. Foi um fórum global intergovernamental que marcou a discussão
internacional de políticas públicas a favor da população idosa.
Nesse evento foi definido (a) o marco de 60 anos para se considerar uma pessoa como
idosa nos países em desenvolvimento e de 65 anos, nos países desenvolvidos; (b) e um plano
de ação que garantisse segurança econômica e social e identificasse oportunidades para a
integração dos idosos no processo de desenvolvimento dos países.
Em 1992 foi aprovada a “Proclamação sobre o Envelhecimento” e em 1999 foi
escolhido como Ano Internacional dos Idosos com o slogan “Uma sociedade para todas as
idades”. O conceito expresso no slogan invocou a interdependência do ciclo de vida e focalizou
o envelhecimento saudável em quatro dimensões: situação diferenciada da população idosa; seu
desenvolvimento individual continuado; relações multigeracionais e inter-relação entre
envelhecimento e desenvolvimento social.
Nessa mesma década, o tema passou a ser tratado em outros Fóruns das Nações Unidas,
substituindo gradualmente a visão desse grupo social como vulnerável e dependente,
ressaltando-o como uma população ativa e atuante na construção de suas sociedades.
No Brasil, a partir dos anos 1960, foram realizadas alterações legislativas em favor do
reconhecimento do direito aos benefícios sociais e aposentadorias à Política Nacional do Idoso,
Estatuto do Idoso e legislações nas políticas sociais específicas.
A política pública de atenção ao idoso se relaciona com o desenvolvimento
socioeconômico e cultural e com a ação reivindicatória dos movimentos sociais.

395
Um marco importante dessa trajetória no Brasil foi a Constituição Federal de 1988, que
introduziu em suas disposições o conceito de Seguridade Social, fazendo com que a rede de
proteção social alterasse o seu enfoque estritamente assistencialista, passando a ter uma
conotação ampliada de cidadania, dando margem à legislação brasileira adequar-se a tal
orientação (BRAGA et al., 2016)2.
No ano de 2003, no Brasil, entra em vigor a Lei nº 10.741, que aprova o Estatuto do
Idoso destinado a regular os direitos assegurados aos idosos. Esse é um dos principais
instrumentos de direito da pessoa idosa. Sua aprovação representou um passo importante da
legislação brasileira no contexto de sua adequação às orientações do Plano de Madri.
Em 2006, é realizada a I Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, na qual
foram aprovadas diversas deliberações, divididas em eixos temáticos, que visou garantir e
ampliar os direitos da pessoa idosa e construir a Rede Nacional de Proteção e Defesa da Pessoa
Idosa – RENADI.
Os Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) aprovaram no dia
15 de Junho de 2015, a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das
Pessoas Idosas, sendo o Brasil um dos países que subscreveram junto com Argentina, Chile,
Costa Rica e Uruguai. De acordo com o Itamaraty, este é o primeiro instrumento internacional
juridicamente vinculante voltado para a proteção e a promoção dos direitos das pessoas idosas3.
Por fim, tem-se que o objetivo da Convenção é justamente o reconhecimento de que
todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais existentes se aplicam às pessoas idosas,
e que devem gozar plenamente deles em igualdade de condições com os demais.
Devemos, por conseguinte, reconhecer, que a pessoa, à medida que envelhece, deve
seguir desfrutando de uma vida plena, independente e autônoma, com saúde, segurança,
integração e participação ativa nas esferas familiar, econômica, social, cultural e política de
suas sociedades.

3 SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA
Os especialistas no tema definem que existem violências visíveis contra a pessoa idosa
que seriam as mortes e as lesões, ao passo que as invisíveis seriam aquelas que ocorrem sem
machucar o corpo, mas provocam sofrimento, desesperança, depressão e medo.

2
Obra citada: Proteção Social: Programa Integrado de Educomunicação / vários autores; organizado por Ana
Lourdes Maia Leitão; vários ilustradores. - Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2021, p. 138.
3
Fonte: Secretaria de Direitos Humanos, Agência Brasil e AMPID. Marília Berzins – Presidente do Obervatório
da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe) e membro colaborador do Portal do Envelhecimento.
396
A Organização Mundial de Saúde define assim a violência contra a pessoa idosa:

São ações ou omissões cometidas uma vez ou muitas vezes, prejudicando a


integridade física e emocional da pessoa idosa, impedindo o desempenho de seu papel
social. A violência acontece como uma quebra de expectativa positiva por parte das
pessoas que a cercam, sobretudo dos filhos, dos cônjuges, dos parentes, dos
cuidadores, da comunidade e da sociedade em geral.

Portanto, tem-se que a violência é a ação de um ser humano contra o outro provocada
pelo abuso da força e do poder, ou a omissão de socorro quando esse outro pede ou precisa dele.
No entanto, há estudos sobre as causas externas que ajudam a entender os resultados das
várias expressões de violência, principalmente a compreensão dos grupos que estão em situação
de maior risco e vulnerabilidade.
A natureza da violência contra a pessoa idosa pode se manifestar de várias formas, tais
como: abuso físico, psicológico, sexual, abandono, negligência, abusos financeiros e
autonegligência, que podem provocar lesões graves físicas, emocionais e morte.
Nesse contexto, considerando o parecer do Manual de Enfrentamento à Violência
Contra a Pessoa Idosa4, transcrevemos a seguir as diversas formas de violência contra a pessoa
idosa:
a) Abusos físicos: Constituem a forma de violência mais visível e costumam acontecer
por meio de empurrões, beliscões, tapas, ou por outros meios mais letais como agressões com
cintos, objetos caseiros, armas brancas e armas de fogo. O lugar onde há mais violência física
contra a pessoa idosa é sua própria casa ou a casa da sua família, vindo a seguir, as ruas e as
instituições de prestação de serviços como as de saúde, de assistência social e residências de
longa permanência.
Segundo relatado, o abuso físico resulta em lesões e traumas que levam à internação
hospitalar ou produzem como resultado a morte da pessoa e, em outras vezes, ele é constante,
não deixa marcas e é quase invisível, sendo reconhecido apenas por pessoas que têm um olhar
sensível e atento e por profissionais acostumados a diagnosticá-lo.
Frequentemente a pessoa idosa se cala sobre os abusos físicos que sofre e se isola para
que outros não tomem conhecimento desse tipo de violência, prejudicando assim sua saúde
mental e sua qualidade de vida.
b) Abuso psicológico: Corresponde a todas as formas de menosprezo, de desprezo e de
preconceito e discriminação que trazem como consequência tristeza, isolamento, solidão,
sofrimento mental e, frequentemente, depressão. Ocorre, por exemplo, quando dizemos à

4
Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/pessoa-idosa/manual-de-enfrentamento-a-
violencia-contra-a-pessoa-idosa/view>. Acesso em 19 dez. 2021.
397
pessoa idosa expressões como estas: “você já não serve para nada”; “você já deveria ter
morrido mesmo”; “você só dá trabalho” ou coisas semelhantes. Muitas vezes, as pessoas nem
dizem, mas o idoso ou a idosa sente.
Estudos mostram que o sofrimento mental provocado por esse tipo de maltrato contribui
para processos depressivos e autodestrutivos, por vezes levando à ideação, tentativas de suicídio
ou mesmo ao suicídio consumado (Minayo & Cavalcante, 2010). Ressalta-se que os muito
pobres e os que têm dependência financeira, física e mental em grau elevado são os que mais
sofrem. No caso dos doentes, porque eles não podem dominar seu corpo ou sua mente; e no
caso dos muito pobres, porque não têm dinheiro para se sustentar, sendo considerados como
um peso para muitas famílias ou instituições.
c) Violência sexual: Geralmente esta violência ocorre nas relações hétero ou
homossexuais e visa a estimular a vítima ou utilizá-la para obter excitação sexual e práticas
eróticas e pornográficas impostas por meio de aliciamento, violência física ou ameaças. Vítimas
de abuso sexual costumam sofrer também violência física, psicológica e negligências. Tendem
a sentir muita culpa e a ter baixa autoestima e a pensar mais em cometer suicídio que pessoas
que não passaram por essa cruel experiência.
Uma forma pouco comentada é a violência dos filhos contra seus pais e mães idosos
para que eles não namorem ou não tenham relações sexuais. Esse tipo de violência ocorre
também em instituições de longa permanência. Há uma ideia muito comum na população de
que os velhos são ou deveriam ser assexuados, o que é comprovado preconceito social e abuso
de poder. Muitas vezes, atitudes repressivas dos filhos impedem seus pais de terem uma vida
afetiva saudável na velhice.
Segundo estudos internacionais (Teaster et al 2003; Roberto e Teaster, 2005) e nacionais
(Melo et al 2006), referidos no Manual de Enfrentamento a Violência Contra a População Idosa,
esse tipo de violência ocorre com menos de 1% das pessoas idosas.
No entanto, consta desses estudos, que desse total, um décimo ocorre em casa e os
abusos são cometidos por pessoas da família e o restante em residências geriátricas. A maioria
(cerca de 95%) envolve mulheres com problemas em pelo menos dois de três domínios
cognitivos, (tempo, espaço, e nível pessoal), que vivem em instituições de longa permanência
e, são agredidas, com mais frequência, por outros residentes. As mulheres com maior
dificuldade de andar são ainda mais vulneráveis. Os principais tipos de abuso cometidos são
beijos forçados, atos sexuais não consentidos e bulinação do corpo da mulher.

398
d) Abandono: Consta ainda no referido Manual, que o abandono é uma das maneiras
mais perversas de violência contra a pessoa idosa e apresenta várias facetas, sendo que as mais
comuns que vêm sendo constatadas por cuidadores e órgãos públicos que notificam as queixas
são retirá-la da sua casa contra sua vontade; trocar seu lugar na residência a favor dos mais
jovens, como por exemplo, colocá-la num quartinho nos fundos da casa privando-a do convívio
com outros membros da família e das relações familiares; conduzi-la a uma instituição de longa
permanência contra a sua vontade, para se livrar da sua presença na casa, deixando a essas
entidades o domínio sobre sua vida, sua vontade, sua saúde e seu direito de ir e vir; deixá-la
sem assistência quando dela necessita, permitindo que passe fome, se desidrate e seja privada
de medicamentos e outras necessidades básicas, antecipando sua imobilidade, aniquilando sua
personalidade ou promovendo seu lento adoecimento e morte.
e) Negligência: Negligência significa atitudes de menosprezo e de abandono de pessoas
idosas. Conforme citado no referido Manual de Enfrentamento, na área da saúde, esse tipo de
violência caracteriza-se pelo desleixo e a inoperância dos órgãos de vigilância sanitária em
relação aos abrigos e clínicas, porquanto não há fiscalização suficiente, permitindo que
situações de violência institucional se instalem e se perpetuem. Os casos mais comuns
demonstrados são de inadequação das instalações, do isolamento das pessoas idosas em seus
aposentos, da falta ou precariedade de assistência à sua saúde.
Inclusive é mencionado a tragédia que aconteceu em 1996, no Rio de Janeiro, na Casa
de Saúde Santa Genoveva e acabou virando símbolo da sinergia de vários tipos de negligência
poderiam ser evitadas. No citado caso, depois do evento fatídico, consta que pesquisadores e
fiscais verificaram que aquela situação vinha se repetindo há quase 10 anos e só se tornou
escândalo quando foram constatadas mortes de mais de 100 idosos e idosas num curto espaço
de tempo, ao passo que “os que sobreviveram ofereceram à sociedade um espetáculo triste e
cruel de desnutrição, magreza, tristeza, solidão e abandono por parte dos familiares”5.
Há vários tipos de negligências que ocorrem cotidianamente no atendimento dos
serviços de saúde, tais como as longas filas de espera para consultas e exames; a demora na
concessão dos benefícios previdenciários, além do descaso e indiferença com que são tratados
nos postos. Já nas famílias, conforme o Manual de Enfrentamento, consta a inadequação das
casas às necessidades dos idosos, como, por exemplo, a existência de pisos escorregadios, de

5
Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/pessoa-idosa/manual-de-enfrentamento-a-
violencia-contra-a-pessoa-idosa/view>. Acesso em: 19 dez. 2021.
399
escadas sem corrimão, de banheiros sem proteção para que possam se sentar e se levantar com
segurança.
f) Abuso econômico, financeiro e patrimonial: Nesse caso, o Manual de
Enfrentamento cita que o termo abuso econômico-financeiro e patrimonial se refere,
principalmente, às disputas de familiares pela posse dos bens ou a ações delituosas cometidas
por órgãos públicos e privados em relação às pensões, aposentadorias e outros bens da pessoa
idosa. Os familiares tentam forçar procurações para tutelar a pessoa idosa, para retirar seu
acesso aos bens patrimoniais e para vender seus bens e imóveis sem o seu consentimento. Há
ainda familiares que expulsam a pessoa idosa do espaço físico e social no qual viveu até então,
e até mesmo há o seu confinamento em algum aposento mínimo na residência que por direito
lhe pertence, dentre outras formas de coação.
Ressalta-se que, geralmente, as queixas de abuso econômico e financeiro se associam
com várias formas de maus tratos físicos e psicológicos que produzem lesões, traumas ou até a
morte. Essa violência é vista também nos trâmites de aposentadorias e pensões e, sobretudo,
nas demoras de concessão ou correção de benefícios devidos pelo INSS, mesmo quando, a Lei
8.842 lhes garante prioridade no atendimento em órgãos públicos e privados e em instituições
prestadoras de serviços.
Segundo consta no Manual de Enfrentamento, diferentes formas de violência econômica
e financeira, combinadas com discriminações e maus-tratos são praticados também por
empresas, sobretudo, por bancos e lojas. Destaca-se, ainda, que os idosos são vítimas de
estelionatários e de várias modalidades de abusos financeiros cometidos por criminosos que
tripudiam sobre sua vulnerabilidade física e mental, impingindo-lhes créditos consignados (com
o conluio de parentes) ou são vítimas de roubos e furtos nas agências bancárias, nos caixas
eletrônicas, nas lojas, nas ruas, nas travessias ou nos transportes.
g) Violência autoinfligida e autonegligência: Essa modalidade de violência, segundo
consta no Manual de Enfrentamento, pode conduzir à morte lenta de uma pessoa idosa em casos
em que ela própria se autonegligência, ou manifestar-se como ideações, tentativas de suicídio
e suicídio consumado. Deve-se atenção especial aos sinais de autonegligência, que é a atitude
de se isolar, de não sair de casa e de se recusar a tomar banho, de não se alimentar direito e de
não tomar os medicamentos, manifestando clara ou indiretamente a vontade de morrer.

400
Vários autores (Minayo & Cavalcante, 2010; Menehgel et al 2012; Cavalcante e
Minayo, 2012)6 ressaltam que, frequentemente atitudes de autodestruição estão associadas a
processos de desvalorização que a pessoa idosa sofre negligências, abandono e maus tratos de
que é vítima. Estudos realizados mostram que os suicídios das pessoas idosas estão associados
ao abandono familiar, à solidão, ao sofrimento insuportável provocando doenças degenerativas,
ao medo de tornar-se dependente, à perda do gosto pela vida, e a processos depressivos de maior
ou menor gravidade, cujas situações se manifestam de forma combinada.
Em síntese, os estudos revelam que as expressões de violência contra a pessoa idosa
quase sempre se manifestam de modo cumulativo, combinando a discriminação por idade com
os abusos físicos, psicológicos, econômico-financeiros, negligências e autonegligências.

4 ESTATÍSTICA DAS VIOLÊNCIAS CONTRA A PESSOA IDOSA

Conforme consta no Painel de Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos7, do


Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, até a data de 15/12/2021, foram
registradas 76.311 denúncias de violência contra idosos pelo canal Disque 100, além de 314.542
violações.
Destacamos que, segundo os dados noticiados pela Assessoria de Comunicação do
IBDFAM8, as denúncias de violência contra pessoas idosas representavam, em 2020, 77.180
casos; em 2019, somava em torno de 48.500 registros. Em 2018, o serviço recebeu 37.400
denúncias de crimes contra idosos.
Os dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, revelam que os
relatos da violência contra a pessoa idosa são maiores na faixa etária de 70 a 74 anos, atingindo
predominantemente a prática de violações contra a integridade física (60.568 casos) e psíquica
(61. 825 casos) das vítimas. Na maioria dos casos, a violência é praticada dentro de casa, por
membros da própria família.
Conforme noticiado pela Agência Brasil9, o número de denúncias feitas por meio do
Disque 100 pode não corresponder inteiramente à verdade, na medida em muitos idosos não

6
Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/pessoa-idosa/manual-de-enfrentamento-a-
violencia-contra-a-pessoa-idosa/view>. Acesso em 19 dez. 2021.
7
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401
denunciam a violência sofrida por medo ou por vergonha, porquanto as agressões ocorrem já
há bastante tempo e dentro do próprio domicílio.
Considerando o isolamento social decorrente da pandemia de Covid-19, o número
observado em 2019 aumentou 53% em relação ao ano de 2021, conforme tema debatido em
audiência pública da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa da Câmara10, na data de
16/12/2021, de que as denúncias de violência física e psicológica, de negligência e de abuso
financeiro contra idosos, inclusive em instituições de acolhimento, aumentaram durante a
pandemia.
Há uma preocupação do poder legislativo em relação aos casos de denúncias de
violações aos direitos das pessoas idosas residentes nas instituições de acolhimento particulares
e do estado, já que a assistência a essa população cabe ao Estado por meio de instituições de
acolhimento próprias ou pelo financiamento por meio de subsídios a conveniadas.
Ressaltamos o apontamento de Maercia Mello11, promotora de Justiça no Distrito
Federal e Coordenadora da Central do Idoso, quanto à existência de instituições clandestinas
como um problema a ser solucionado, afirmando que “a população procura instituições mais
baratas porque não consegue arcar com os custos das instituições e também não se enquadra
nos requisitos para conseguir instituições conveniadas”.
De acordo com o Relatório de 2019 – Disque Direitos Humanos12, foi apresentado o
Balanço do Disque Direitos Humanos – Disque 100, referente ao ano de 2019. Nesse relatório,
consta que as denúncias de violações de direitos humanos contra o grupo Pessoas Idosas
ocuparam a segunda maior demanda do Disque Direitos Humanos - Disque 100, representando
30% do total de denúncias registradas.
As violações contra as pessoas idosas estão distribuídas em todos os estados brasileiros,
com uma concentração expressiva nos três estados do Brasil com maior população - São Paulo,
Minas Gerais e Rio de Janeiro. Segundo o IBGE13 - dados da estimativa da população de 2019,
São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro juntos representam 40% da população. Esses estados
representam 52% de todas as violações contra pessoas idosas registradas na Ouvidoria Nacional
de Direitos Humanos (25.190 denúncias), sendo que 24% ocorreram em São Paulo.

10
Disponível em: <https://www.camara.leg.br/radio/radioagencia/840079-violencia-contra-idosos-em-
instituicoes-de-acolhimento-aumenta-na-pandemia-e-preocupa-autoridades/>. Acesso em 06 jan. 2022.
11
Disponível em: <https://www.camara.leg.br/radio/radioagencia/840079-violencia-contra-idosos-em-
instituicoes-de-acolhimento-aumenta-na-pandemia-e-preocupa-autoridades/>. Acesso em 07 jan. 2022
12
Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/disque-100/relatorio-2019_disque-
100.pdf>. Acesso em 07 jan. 2022
13
Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/>. Acesso em 07 jan. 2022
402
Considerando os dados apresentados no Relatório de 2019, a Negligência consiste na
violação com maior volume para o Grupo Pessoa Idosa, com 62.019 registros, representando
41% do total de violações registradas para este grupo.
Além da negligência, foi observado que as principais violações sofridas por pessoas
idosas são a Violência Psicológica (24%); Abuso Financeiro (20%); Violência Física (12%); e
Violência Institucional (2%).
Referido Relatório registra que as violações de Negligência e Violência Psicológica
somam 65% daquelas sofridas por pessoas idosas, destacando que a negligência é caracterizada
pela falta de cuidado quanto a necessidades básicas (seja de alimentação, moradia, etc.). Por
sua vez, a violência psicológica caracteriza-se por ações ou omissões que resulte em um dano
emocional (seja por meio de comportamentos, constrangimentos, humilhação, isolamento,
dentre outras situações que venham causar prejuízo à saúde psicológica à vítima).
No tocante ao local da violação contra a pessoa idosa, o Relatório de 2019 aponta que
essa ocorre, em sua maioria, na casa da vítima (81% das ocorrências). A violação ocorre na
casa do suspeito em 4% dos casos, enquanto que o registro em locais diversos (como rua, escola,
entre outros) ocorre em 15% dos episódios de violação.
Referente ao perfil da vítima e do suspeito da violação, o Relatório demonstra que a
maioria das violências são realizadas por pessoas do convívio familiar ou próxima à vítima. Em
termos percentuais, aponta-se que 65% dos suspeitos são filhos da vítima, enquanto 9% dos
suspeitos são netos, 5% são genros ou noras e 4% são sobrinhos.
Quanto ao sexo, consta no Relatório de 2019, que as vítimas do sexo feminino
representam 66% das ocorrências e as vítimas do sexo masculino representam 34% dos casos.
Já, tratando do sexo do suspeito, a distribuição ocorre de maneira uniforme para o sexo feminino
(51%) e o sexo masculino (49%).
No que diz respeito à faixa etária do suspeito e da vítima, os suspeitos são adultos, entre
18 e 59 anos, ao passo que as vítimas com faixa etária entre 60 e 79 anos computaram a maioria
dos registros. Há referências no Relatório de 2019, que as vítimas (seja do sexo feminino ou do
sexo masculino) são mais afetadas na quando atingem a faixa etária entre 76 a 80 anos.
Em relação à escolaridade da vítima, há evidências que 67% vítimas apresentam pouca
instrução (35% possuem o nível fundamental incompleto e 32% são analfabetos). Em relação
escolaridade do suspeito, verificou-se que 49% dos suspeitos detêm um bom nível de instrução
(ensino médio completo – 29%, ensino superior completo – 16% e ensino superior incompleto

403
– 4%). Os suspeitos analfabetos aparecem apenas em 5% das ocorrências, enquanto aqueles
com o ensino fundamental incompleto estão em 29% das violações.
Concernente ao critério etnia das vítimas, o Relatório de 2019 aponta que a maioria das
vítimas são de cor branca (52% das denúncias, o que representa 23.190 registros), seguidas
pelas de cor parda (34% das denúncias, o que representa 14.824 registros) e as vítimas de cor
preta (13% das denúncias, o que representa 5.719 dos registros). A Raça ou cor do suspeito
mostra que sob o mesmo enfoque de etnia o suspeito guarda uma similitude com as vítimas,
sendo que o suspeito também da cor branca (49%), enquanto 38% são da cor parda, seguido
pelos suspeitos de cor preta (com 12% dos registros).
Finalizando, o Relatório de 2019, lastreado apenas em números, definiu o perfil da
vítima idosa com sendo uma pessoa do sexo feminino, de cor branca, com idade entre 76 e 80
anos, e com o ensino fundamental incompleto. A seu turno, o suspeito é uma pessoa do sexo
feminino, de cor branca, com idade entre 41 e 60 anos, com o nível fundamental incompleto.
Importante registrar que, segundo os dados colhidos no Relatório de 2019, a Negligência
e a Violência Física são cometidas na casa da vítima ou na casa do suspeito em 86% e 87% das
ocorrências respectivamente para cada tipo de violação. Quanto a relação existente entre a
vítima e o suspeito, verifica-se semelhanças entre os tipos de violação, porquanto ambas as
violações, o(a) filho(a) figura como suspeito em 69% e 57% das denúncias, respectivamente.
Outro fator interessante refere-se ao comparativo do sexo das vítimas, tendo sido
observado um grande desequilíbrio entre as vítimas do sexo feminino, representando
aproximadamente 66% das ocorrências. Na análise do perfil do suspeito, observou-se que a
Negligência tem, em sua maioria, o suspeito do sexo feminino. A Violência Física tem pequena
variação, com o sexo masculino à frente do sexo feminino. Contudo, ambas violações
apresentam uma distribuição de sexo equivalente à proporção populacional da PNAD Contínua
201914.
Destacamos que no Relatório de 2019 consta que o perfil do suspeito se concentra na
faixa etária adulta (entre 25 a 59 anos), com maior quantitativo para aqueles entre 41 a 59 anos.
Todavia, essa distribuição aponta uma característica típica para a faixa etária apontada,
consideravelmente superior à proporção populacional por idade, constante da PNAD Contínua
2019.

14
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 4T 2019, consolidado de primeiras
entrevistas, IBGE. Tabela 6706. Feminino, com 51,8%, e Masculino, com 48,2%. Disponível em ibge.gov.br.
Acesso em 07/01/2022.
404
Conforme a análise dos principais elementos de caracterização dos tipos de violações e
da vítima e do suspeito, tem-se que a Negligência e a Violência Física possuem características
bastante assemelhadas nos perfis da vítima e do suspeito. A vítima é do sexo feminino, com
distribuição uniforme entre as faixas etárias da pessoa idosa. O suspeito tem equilíbrio entre os
sexos, com pequena superioridade do sexo masculino na Violência Física, e concentração
inequívoca na idade adulta entre 25 a 59 anos.
Finalizando, verifica-se que os estudos demonstram que o aumento da violência nos
ambientes privados e públicos acompanha o próprio movimento da sociedade com o aumento
do número de pessoas idosas, o não reconhecimento dos direitos e mesmo falta de condições
para os familiares cuidarem de seus idosos.
Devemos relembrar que, na maioria dos casos, mesmo depois de muitos anos de trabalho
e contribuição para o desenvolvimento da economia do país, as condições de renda conquistadas
através da aposentadoria da pessoa idosa e de suas famílias não são suficientes para uma vida
digna, razão pela qual se faz necessário constituir políticas públicas eficientes a fim de combater
a violência contra a pessoa idosa.

5 CONCLUSÃO

A complexidade dessas questões apontadas aliada com a urgência de tomada de medidas


e atitudes não só do Estado Brasileiro bem como de todos nós cidadãos brasileiros, para reverter
o quadro desolador que se vislumbra, justificaram a escolha do presente tema. Pois certo, será
necessário um enorme esforço para a identificação dos tipos de violência contra a população
idosa para a criação de soluções factíveis, sustentáveis, consistentes e eficazes.
Os estudos revelaram que as pessoas idosas vítimas de violência tendem a minimizar a
gravidade dos maus-tratos e a se mostrarem leais a seu agressor, negando os fatos. Longe de se
tratar de escolha no sentido de quererem conviver com os maus tratos, mas sim de dependência
das pessoas idosas em relação ao agressor, seja física e até mesmo psicológica.
O medo de possíveis represálias ou recrudescimento da violência, sentimento de culpa,
vergonha, medo de chantagem emocional, déficit cognitivo, isolamento social, dependência do
cuidador e a crença na normalidade da violência para com os idosos são as principais
dificuldades apontadas pelas pessoas idosas para manifestarem quanto ao fato de estarem sendo
violentadas.
Os estudos demonstram, ainda, que o aumento do número de famílias que dependem da
renda da pessoa idosa reflete diretamente o contexto atual com o aumento do desemprego entre

405
jovens e adultos. Mais uma questão que dificulta a tomada de decisão da pessoa idosa em
situação de violência em denunciar os maus tratos sofridos dentro de seu ambiente familiar.
Devemos atentar que os fatores que mais protegem as pessoas idosas contra o suicídio
é fazer com que elas estejam ativas, com ampliação de relacionamentos, tendo apoio familiar e
de amigos, envolvendo elos afetivos, amparo social, encontros de sociabilidade e lazer, dentre
outros.
A fase do envelhecimento é parte do direito à vida e tem de se ter proteção, atenção e
cuidado para aqueles que chegam à idade cronológica considerados idosos. Portanto, o cuidado
de todos, principalmente daqueles mais vulneráveis, deve ser compreendido como o eixo da
essência humana.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Agência Senado. Disponível em:


<https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/04/19/idosos-podeao-contar-com-
medidas-protetivas-de-urgencia-contra-agressores>.

_______. Estatuto do Idoso. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.

_______. Manual de Enfrentamento à Violência Contra a Pessoa Idosa. É possível prevenir. É


necessário superar / Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Brasília,
2014.

_______. Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Brasil: manual de


enfrentamento à violência contra a pessoa idosa. É possível prevenir. É necessário superar. /
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República; Texto de Maria Cecília de Souza
Minayo — Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2014.
Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/pessoa-idosa/manual-de-
enfrentamento-a-violencia-contra-a-pessoa-idosa/view>.

_______. Secretaria de Direitos Humanos. Marília Berzins – Presidente do Observatório da


Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe) e membro colaborador do Portal do
Envelhecimento. Disponível em: <https://olhe.org.br/quem-somos/>.

INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. IBDFAM. Disponível em:


<https://ibdfam.org.br/noticias/8583/Viol%C3%AAncia+contra+a+pessoa+idosa%3A+mais+
de+33%2C6+mil+den%C3%BAncias+foram+registradas+no+Brasil+em+2021>.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. IBGE. Disponível em:


<https://www.ibge.gov.br/pt/inicio.html>.

MINAS GERAIS. Governo do Estado. Direitos humanos [recurso eletrônico] / Governo do


Estado, Lucas Costa dos Anjos, Tayara Talita Lemos e Thelma Yanagisawa Shimomura (org.).-

406
Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 2018. 48p.; il. - (Coleção direitos humanos e
ditadura; v. 1).

PROTEÇÃO SOCIAL. Programa Integrado de Educomunicação / vários autores; organizado


por Ana Lourdes Maia Leitão; vários ilustradores. - Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha,
2021.

ROSSINI, Simone. Trabalho de Conclusão do Curso de Pós-graduação em Direitos da Mulher


e a Advocacia Feminista. Faculdade Legale/SP. Não publicado, 2022.

SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS, Agência Brasil e AMPID. Marília Berzins –


Presidente do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe) e membro
colaborador do Portal do Envelhecimento. Disponível em:
<https://www.portaldoenvelhecimento.com.br/aprovada-convencao-interamericana-sobre-
protecao-dos-direitos-humanos-das-pessoas-idosas/>.

UNESP. Guia prático de direitos da pessoa idosa. Pró-Reitoria de Extensão Universitária –


São Paulo UNESP, PROEX, 2013.

OPAS. Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível em:


<https://www.paho.org/pt/decada-do-envelhecimento-saudavel-2021-2030>.

407
EVOLUÇÃO LEGISLATIVA DOS DIREITOS DAS MULHERES

Vanessa de Donati Feijó1

RESUMO

Este artigo tem por objetivo traçar um apanhado evolutivo e histórico sobre as legislações que
tratam especificamente sobre os direitos das mulheres, bem como demonstrar as mudanças das
legislações ao longo dos tempos até os dias atuais. Procurou-se enfocar as legislações brasileiras
federais, com apoio de convenções internacionais e legislação estadual, que trouxeram, pela
primeira vez, a palavra “mulher” no texto legislativo. Com o passar dos anos, diversas novas
leis foram implementadas no nosso ordenamento jurídico e se pode observar que, por traz de
uma legislação feminista, sempre houve uma mulher que sofreu algum tipo de desigualdade
social, que precisou ser regulada pelo Poder Judiciário.

Palavras-chave: Gênero. Direito das Mulheres. Constituições Federais. Código Civil.

1 INTRODUÇÃO

Para o presente artigo, restou desenvolvida pesquisa, especialmente na legislação


brasileira, a fim de traçar um apanhado histórico-evolutivo das legislações referentes aos
direitos das mulheres, sem pretender exaurir o tema em questão, posto a sua amplitude e
maleabilidade de transformações.
A primeira parte do artigo faz referência ao movimento feminista, como marco inicial
para as mudanças legislativas, juntamente com a própria evolução do direito em geral,
fornecendo a base para o direito feminino codificado. Portanto, este artigo inicia seus estudos
no Código Civil de 1916, que trouxe a primeira referência da palavra “mulher”, quando
menciona a relativa capacidade civil da mulher casada.
A partir de então, pesquisa aborda, brevemente, o surgimento do “princípio do salário
igual, para trabalho igual”, na esfera internacional e menciona a primeira legislação estadual
que tratou sobre a mulher gestante, no Estado de São Paulo. Transcorrer-se-á sobre as
Constituições Federais Brasileiras, a partir de 1894, os Decretos-Leis sobre direitos trabalhistas,

1
Graduada em Direito pela Unisinos, em São Leopoldo/RS, turma de 2005/2. Pós-graduada em Direito
Previdenciário e do Trabalho pela Unicnec, em Osório/RS, turma de 2015. Atuou como Secretária-geral Adjunta,
na OAB Subseção de Tramandaí/RS, na gestão 2016/2018. Atuou como Membra da Comissão da Mulher
Advogada, na OAB Subseção de Tramandaí/RS, em 2020. Atuou como Julgadora da 11ª Turma do Tribunal de
Ética e Disciplina da OAB Seccional do Rio Grande do Sul, em 2021. Pós-graduada em Direito das Mulheres, pela
Unittá, em Santos/SP, turma de 2022.
408
passando pelo Estatuto da Mulher Casada, pela Lei do Divórcio e finalizado no Novo Código
Civil Brasileiro, de 2002.
A segunda parte abarca as legislações contemporâneas, sempre advindas da luta de
mulheres que sofreram algum tipo de desigualdade em relação ao gênero. Como foi o caso da
Lei Maria da Penha, arcabouço legislativo mais revolucionário, quanto aos direitos das
mulheres, que tipifica os tipos de violência e garante proteção às vítimas. Da mesma forma, a
Lei do Feminicídio e demais crimes contra as mulheres passaram a constar no Código Penal
Brasileiro, para ampliar a proteção em relação ao gênero, seja dentro ou fora de casa, no
ambiente real ou virtual (informático).
Por fim, será possível observar a Lei de Planejamento Familiar, criada em 1996 e suas
falhas e especificidades em detrimento das mulheres, que foram corrigidas pela Nova Lei de
Planejamento Familiar, que entrou em vigor no início de 2023, trazendo mudanças substanciais
sobre os corpos femininos.

2 A ORIGEM DOS DIREITOS DAS MULHERES:

Durante a graduação em ciências jurídicas, iniciou-se o meu interesse pelos dos direitos
das mulheres, em meados do ano de 1998. Na ocasião, eram escassos os livros e artigos que
versassem, especificamente, sobre os direitos advindos das lutas das mulheres. Por este motivo,
a busca pela história e a trajetória destes direitos se tornou o meu tema favorito, em diversos
trabalhos acadêmicos.
Tanto que culminou na elaboração do meu trabalho de conclusão de curso, onde foi
desenvolvido estudo para fazer uma abordagem jurídica sobre o movimento feminista, visto
que os direitos das mulheres se constituem em direitos humanos. Na ocasião, foi organizado
um apanhado evolutivo acerca dos direitos brasileiros e convenções internacionais, específicos
ou prioritariamente, criados para defender as mulheres e/ou as relações de gênero. Dito trabalho
foi usado como base ao presente artigo.
Conforme restou demonstrado na referida monografia, a partir do momento em que a
mulheres passaram a integrar a economia, através de sua força de trabalho, durante o período
de industrialização do Brasil, surgiu a necessidade de reconhecer as mulheres como sujeitas de
direito, gerando uma extrema reformulação no sistema jurídico brasileiro.

409
Os movimentos sociais feministas trouxeram as primeiras mudanças legislativas,
juntamente com a própria evolução do direito em geral, sobretudo em relação às instituições da
família, das relações de trabalho e do meio social, fornecendo a base para o direito feminino
codificado. Embora a lei escrita não signifique garantia de mudança, é indispensável a sua
existência para respaldar, de forma concreta, a efetiva mudança da condição social feminina.
Ainda que a primeira Constituição Federal do Brasil tenha ocorrido em 1824, durante o
Brasil Império, trazendo preceitos de cidadania e de igualdade, não alcançou as mulheres
brasileiras, que sequer foram mencionadas na referida Carta Magna.
Já o Código Civil Brasileiro de 1916, elaborado por Clóvis Beviláqua, que veio para
substituir as leis esparsas até então utilizadas, menciona exclusivamente as mulheres casadas,
quando as classificou como relativamente incapazes, ao lado dos impúberes, silvícolas e
pródigos, mantendo a filosofia patriarcal do Código Napoleônico, que confinava as mulheres
ao lar conjugal.
No campo internacional, a primeira formalização pelos direitos das mulheres ocorre no
ano de 1919, durante a 1ª Conferência do Conselho Feminino da Organização Internacional do
Trabalho – OIT, que veio para responder às reivindicações dos movimentos sindicais. Na
ocasião, a OIT adotou 06 (seis) convenções, uma delas refere-se à proteção da maternidade, à
definição da idade mínima de 14 (quatorze) anos para o trabalho na indústria e à proibição do
trabalho noturno de mulheres e menores de 18 (dezoito) anos. Neste momento, surgiu, no
mundo jurídico internacional, o “princípio do salário igual, para trabalho igual”.
No direito brasileiro, a primeira referência legislativa sobre os direitos das mulheres
ocorreu 02 (dois) anos antes, através da Lei Estatual Paulista nº. 1.596, de 29/12/1917,
conhecida como Código Sanitário Estatual, que descrevia, em poucas disposições, sobre o
trabalho da mulher gestante. Tal legislação foi um instrumento proibitivo, pois vedava a
gestante trabalhadora de ingressar nas indústrias durante o último mês da gestação e no primeiro
mês seguinte ao parto. Posteriormente, este artigo abriu caminhos para o instituto da Licença
Maternidade.
No âmbito federal, somente no ano de 1932, com a promulgação do Decreto nº. 21.417-
A, que nasceu o primeiro conjunto de normas brasileiro disciplinando as relações de trabalho
das mulheres, que tentou impedir discriminação entre os gêneros, devidas às condições
biológicas, morais e sociais das mulheres brasileiras. Em seus 17 artigos, restou instituído, à
mulher gestante, o direito a um auxílio correspondente à metade dos seus salários (pago pelas
Caixas criadas pelo Instituto de Seguro Social e, na falta destas, pelo empregador) e a reversão

410
ao lugar que ocupava, de forma singela e precursora da licença maternidade e da garantia de
manutenção do emprego.
No mesmo ano de 1932, foi instituído o Código Eleitoral Provisório, resultado da luta
do movimento sufragista do século 19 e de organizações de movimentos feministas do início
do século 20, juntamente com a criação do 1º partido político feminista, o Partido Republicano
Feminista – PRF, que reivindicou o direito ao voto e à emancipação feminina. O código,
verdadeiramente, assegurou o direito ao voto feminino, mas com ressalvas: para as mulheres
solteiras e viúvas, somente poderiam votar aquelas que possuíssem renda própria: e para as
mulheres casadas, somente com autorização expressa do marido. Ademais, era proibido o voto
de analfabetos, o que acabou excluindo muitas mulheres.
O direito ao voto feminino foi incorporado, posteriormente, à Constituição Federal de
1934, que incluiu, ainda, o Princípio da Isonomia: igualdade entre os sexos, equiparação salarial
entre homens e mulheres e regularização do trabalho feminino.
Cabe destacar que a Constituição Federal de 1934 foi revogada com o advento da
Constituição Federal de 1937, outorgada pelo presidente Getúlio Vargas, no período do Estado
Novo, que excluiu o Princípio da Isonomia, havendo um retrocesso no avanço democrático
brasileiro, que gerou estagnação no país e revolta das mulheres que perderam os seus direitos
políticos, seguindo a mistificação das relações de gênero.
Ainda no governo Getúlio Vargas, houve a aprovação da Consolidação das Leis
Trabalhistas - CLT, promulgada através do Decreto-Lei nº. 5.452 de 1943, que unificou toda a
legislação trabalhista até então existente no país e inseriu, de forma definitiva, os direitos
trabalhistas na legislação brasileira, beneficiando muitos trabalhadores, inclusive as mulheres.
Entre os benefícios trabalhistas referentes aos direitos das mulheres, advindos da CLT,
consta, no texto original, o Capítulo III – Da proteção do trabalho da Mulher, os artigos 372 a
401, que consistem na ampliação dos direitos já definidos no Decreto de 1932, acrescentando,
de forma detalhada, os preceitos que regulam o trabalho feminino; as horas extras (somente
com autorização médica) e o seu percentual; a vedação de trabalho noturno, com ressalvas de
acordo com o tipo de atividade laboral e o período de descanso.
Mas os direitos das mulheres somente readquiriram expressão com a promulgação da
Constituição Federal de 1946, mais liberalizante e democrática, ressurgindo o direito ao voto
feminino, desta vez de forma expressa e obrigatória para ambos os sexos.

411
Cabe destacar que a situação desigual da mulher brasileira, no campo civil, permaneceu
até a promulgação do Estatuto da Mulher Casada, na Lei nº. 4.121, de 1962. A lei, de autoria
da primeira deputada federal paulista Carlota Pereira de Queiroz, uma das principais pioneiras
do movimento organizado de mulheres, trazia inovações e veio para corrigir “erros” das
legislações anteriores, quanto aos direitos das mulheres, tais como: o fim da capacidade relativa
da mulher casada; a eliminação do conceito de “chefe” da sociedade conjugal, que recaia sobre
o homem; a autonomia econômica da mulher casada trabalhadora; e o direito da mãe na guarda
dos filhos menores.
Quanto ao casamento, era um instituto considerado “indissolúvel”, conforme constava
na Emenda Constitucional nº. 09, mesmo com a existência da separação judicial pelo desquite,
pois se resumia a uma separação de corpos e bens, em uma única oportunidade, mas que
mantinha o vínculo conjugal. No entanto, a partir de 1977, foi instituída a Lei do Divórcio,
através da Lei nº. 6.515, revolucionando a separação judicial, extinguindo o vínculo
matrimonial de forma definitiva e permitindo ambas as partes de contrair novo matrimônio.
Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que as mulheres,
finalmente, atingem a igualdade jurídica constitucional, que derrogou, parcialmente, vários
dispositivos da Código Civil de 1916. Desta forma, houve a preocupação de formular um
instrumento civil mais condizente com a realidade para corrigir aberrações legislativas e abarcar
a efetiva igualdade entre os gêneros.
Então, no ano de 2002, foi instituído o Novo Código Civil, com a Lei nº. 10.406, fruto
da constitucionalização do Direito Civil. A primeira modificação, e talvez uma das mais
importantes, ocorreu no artigo 1º, que substituiu a palavra “homem”, que representava o gênero
humano, pela palavra “pessoa”, tornando o Código muito mais democrático e igualitário, dada
as relações de gênero e a inferioridade que as mulheres sempre enfrentaram diante das
expressões masculinas.
Notoriamente, o Novo Código Civil veio para efetivar a igualdade entre homens e
mulheres, já abarcada pela Constituição Federal de 1988. Mas ainda resta um questionamento:
Até este momento histórico, podemos dizer que as mulheres estão totalmente protegidas em
seus direitos pessoais? Obviamente que não! E é por isso que as legislações estão em constante
modificação/elaboração.

412
3 AS INOVAÇÕES LEGISLATIVAS APÓS O ADVENTO DO NOVO CÓDIGO CIVIL:

Como se verificou, até o advento do Novo Código Civil, em 2002, as mulheres


brasileiras adquiriram a igualdade de direitos, na forma da lei. No entanto, as mulheres ainda
enfrentam muitos obstáculos para desenvolver, de forma efetiva, essa igualdade, uma vez que
o gênero feminino possui peculiaridades que as legislações civil e constitucional não
conseguiram abarcar.
Desta forma, novos regulamentos legislativos vieram para garantir o exercício da
igualdade entre homens e mulheres, bem como para proteger as mulheres de situações que
fogem do arcabouço legislativo já existente, mas que dizem respeito exclusivo às questões de
gênero e/ou que foram elaboradas através de experiências vividas por mulheres.
Como é o caso da Lei Maria da Penha, promulgada através da Lei nº. 11.340, de 2006,
que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Esta lei teve
origem na violência sofrida pela farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, do seu marido,
que atentou contra a sua vida, deixando-a paraplégica. O caso ganhou repercussão
internacional, pelo descaso no julgamento do agressor, onde o Brasil foi condenado a criar uma
legislação para proteger as mulheres de agressões físicas, morais, psicológicas, financeiras e
sexuais, no ambiente familiar.
A legislação foi revolucionária. Porém, não tratou especificamente sobre o assassinato
de mulheres resultante de violência doméstica ou discriminação de gênero. Então, através da
Lei nº. 13.104, de 2015, foi criada a Lei do Feminicídio, a partir de uma recomendação da CPMI
que investigou a violência contra as mulheres nos Estados brasileiros, de março de 2012 a julho
de 2013, que alterou o art. 121, do Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio e para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Na linha dos crimes sexuais, a Lei nº. 12.015, de 2009, deu nova redação ao art. 215, do
Código Penal, que uniu, em um só tipo, os antigos crimes de posse sexual mediante fraude (art.
215, CP) e atentado ao pudor mediante fraude (art. 216, CP), gerando o crime de violência
sexual mediante fraude, que veio para enquadrar o crime de “Stealthing”, quando ocorre a
retirada do preservativo, durante o ato sexual, sem o consentimento da parceira ou o uso de
bebidas e drogas mediante fraude, para a prática de relação sexual.

413
Em 2012, foi criada a primeira tipificação criminal para os delitos informáticos, a Lei
nº. 12.737, conhecida como Lei Carolina Dieckmann. A atriz teve sua intimidade violada após
um grupo de hackers invadir seu computador pessoal e baixar suas imagens íntimas. Após o
grupo fazer ameaças e extorsões, as imagens foram divulgadas nas redes sociais. A lei incluiu
o art. 154-A, no Código Penal tipificando a invasão de dispositivos informáticos com o fim de
obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do
proprietário.
A punição pelos sexuais passou a ser tipificado no Código Penal. Todavia, as mulheres
precisavam de acolhimento após a ocorrência do delito, como forma de preservar sua saúde.
Por tal razão, foi criada a Lei nº. 12.845, de 2013, que dispõe sobre o atendimento obrigatório
e integral de pessoas em situação de violência sexual, chamada de Lei do Minuto Seguinte. A
inovação legislativa trouxe atendimento emergencial e gratuito pelo Sistema Único de Saúde –
SUS, com atendimento multidisciplinar de controle e de tratamento aos agravos físicos e
psíquicos sofridos pela vítima.
Com a ampliação dos direitos das mulheres e maior liberdade profissional, educacional
e pessoal, tornou-se necessária a preservação do corpo feminino, para casos que vão além do
crime de estupro. Desta forma, através do projeto de lei de autoria da senadora Vanessa
Grazziotin, do Amazonas, surgiu a Lei nº. 13.718, de 2018, ao incluir o art. 215-A, no Código
Penal, tipificou os crimes de importunação sexual, ou seja, a prática de ato libidinoso sem
anuência. Campanhas com o tema “não é não” são frequentes, com o intuito de divulgar a lei e
de combater os crimes de importunação sexual.
A mesma Lei nº. 13.718, de 2018, incluiu o art. 218-C, abrangendo o crime de
divulgação de cena de sexo, nudez ou pornografia, sem o consentimento da vítima, por qualquer
meio de comunicação. Posteriormente, a Lei nº. 13.772, de 2018, veio complementar o artigo
anterior, para reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica
e familiar e criminalizar o registro não autorizado da intimidade sexual. O marco para a criação
da referida lei ocorreu a partir da violência sofrida pela jornalista Rose Leonel, que teve imagens
íntimas vazadas pelo ex-parceiro, após o fim do relacionamento, na chamada “pornografia de
vingança”, uma forma de ridicularizar a vítima perante a sociedade.
Como se pode observar, a violência contra a mulher persiste, mesmo após o fim do
relacionamento. Por isso, a proteção à mulher está em constante ampliação. O projeto de lei de
autoria da senadora Leila Barros, do Distrito Federal, deu origem a Lei nº. 14.132, de 2021, que
acrescenta o art. 147-A, ao Código Penal, para prever o crime de perseguição, conhecido como

414
“Stalking”. A lei revoga o art. 65, do Decreto-Lei nº. 3.688, de 1941, que constava “molestar
alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade”, trazendo a novação legislativa para constar a
perseguição reiterada, sob ameaça à integridade física ou psicológica, restrição da capacidade
de locomoção, invasão e perturbação de sua liberdade ou privacidade.
Não obstante que, até março de 2021, os réus em crimes de violência doméstica e
familiar utilizavam a tese defensiva da “legítima defesa da honra”, como uma forma de
justificar a punição aplicada pelos homens às suas esposas adulteras, como forma de “limpar”
a sua imagem perante a sociedade. A tese não excluía excessos, visto que a punição aplicada
pelos homens, por diversas vezes, excedia o simples “caráter educativo”, causando a morte da
esposa. Em plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, que a tese
da “legítima defesa da honra” contraria os princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana e da proteção à vida e da igualdade de gênero. Por isso, ela não pode ser usada em
nenhuma fase do processo penal nem durante o julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena
de nulidade.

Nota-se que os anseios e as necessidades das mulheres foram mudando, ao longo do


tempo. Desta forma, a legislação também teve de acompanhar as alterações da sociedade, para
que houvesse uma melhor adequação com a atualidade. Por esta razão, tornou-se urgente a
realização de mudanças na Lei de Planejamento Familiar, sancionada em 1996, através da Lei
nº. 9.263. Com o sancionamento da nova Lei nº. 14.443, em 2022, alguns termos foram
alterados, trazendo grandes inovações:

1. A estipulação de prazo máximo de 30 (trinta) dias para a disponibilização de


qualquer método ou técnica contraceptiva (inclusão do §2º, no art. 9º);
2. A idade mínima, em homens e mulheres com capacidade civil, para a realização da
esterilização, passou de 24 (vinte e quatro) anos para 21 (vinte e um) anos (alteração
do inciso I, do art. 10);
3. A retirada da proibição de esterilização cirúrgica da mulher, durante o período de
parto (alteração do §2º, do art. 10);
4. A desnecessidade de consentimento expresso de ambos os cônjuges, para a
realização da cirurgia de esterilização (revogação do §5º, do art. 10).

Por fim, a equiparação salarial entre homens e mulheres ainda não clara no ordenamento
jurídico brasileiro. No entanto, de relatoria da Deputada Federal Jack Rocha, do Espírito Santo,
o recente Projeto Lei nº 1.085/2023, dispõe sobre a igualdade salarial e remuneratória entre
415
mulheres e homens e altera a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. Dentre as novações,
consta a ampliação da multa, em caso de descumprimento; o relatório de transparência; o plano
de ação e de fiscalização; e a instituição de medidas para a garantia da igualdade salarial. O
projeto de lei foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 04/05/2023 e segue para análise e
votação pelo Senado Nacional. Se aprovado, seguirá para sanção presidencial.
Depois de toda a pesquisa e a descrição de inúmeras legislações protetivas e garantidoras
de direitos individuais e pessoais das mulheres brasileiras, ainda não há previsão legal que
possibilite a mudança de comportamento da coletividade. A cultura patriarcal e machista ainda
é latente. Por isso, se deve manter atenção e em constante cuidado, estudo e comprometimento,
para sempre lutar por mudanças legislativas que garantam uma livre vivência em sociedade,
entre homens e mulheres.

3 CONCLUSÃO

Como se pode observar, os direitos das mulheres estão em constante modificação e,


certamente, não será exaurido. É fato que os movimentos sociais e as desigualdades pessoais,
sofridas por mulheres vítimas de um sistema patriarcal e machista, resultaram em vários
benefícios para a sociedade como um todo.
Pode-se dizer que a sociedade está em evolução. Com muitas dificuldades e com
transformações que demoram longos anos para acontecer, os direitos das mulheres tornaram-se
tema de muitas leis federais e se encontra latente no contexto internacional. As mulheres,
revolucionárias ou não, esgotam esforços para alcançar a dignidade humana e serem
reconhecidas como cidadãs.
A maior vitória, refletida em todas as legislações que o Brasil já promulgou, certamente
é o direito da mulher ter um tratamento digno e compatível com a condição humana, cuidando
de cada indivíduo em suas peculiaridades, tratando de forma diferente, os desiguais.
Porém, a legislação brasileira, atual e contemporânea, não consegue alterar a realidade
social, ainda mais em um país tão extenso, repleto de dificuldades e, ainda, muito enraizado na
cultura patriarcal, que subjuga as mulheres por sua condição biológica e diversa. Homens e
mulheres, legisladores e juristas, devem se unir para atingir o verdadeiro bem comum da
sociedade, para extinguir as diferenças culturais entre os sexos e alcançar a harmonia social nas
relações de gênero.

416
REFERÊNCIAS

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mulheres nos estabelecimentos industriais e comerciais. Rio de Janeiro. [1932] Descrição
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Acesso em 24 mai. 2023.

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doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal,
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Brasília. [2006] Disponível em:
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_______. Lei Nº 12.015, de 7 de Agosto de 2009. Altera o Título VI da Parte Especial do


Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, e o art. 1o da Lei no 8.072,
de 25 de julho de 1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do inciso XLIII do
art. 5o da Constituição Federal e revoga a Lei no 2.252, de 1o de julho de 1954, que trata de
corrupção de menores. Brasília. [2009] Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm>. Acesso em: 24
mai. 2023.

_______. Lei Nº 12.737, de 30 de Novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de


delitos informáticos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal;
e dá outras providências. Brasília. [2012] Disponível em:
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_______. Lei Nº 12.845, de 1º de Agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e


integral de pessoas em situação de violência sexual. Brasília. [2013] Disponível em:
417
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_______. Lei Nº 13.104, de 9 de Março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de
7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Brasília. [2015] em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm>. Acesso em: 24
mai. 2023.

_______. Lei Nº 13.718, de 24 de Setembro de 2018. Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de


dezembro de 1940 (Código Penal), para tipificar os crimes de importunação sexual e de
divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos
crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de
aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo
e o estupro corretivo; e revoga dispositivo do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941
(Lei das Contravenções Penais). Brasília. [2018] Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm>. Acesso em: 24
mai. 2023.

_______. Lei Nº 13.772, de 19 de Dezembro de 2018. Altera a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de


2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),
para reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e
familiar e para criminalizar o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato
sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado. Brasília. [2006] Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13772.htm>. Acesso em: 24
mai. 2023.

_______. Lei Nº 14.132, de 31 de Março de 2021. Acrescenta o art. 147-A ao Decreto-Lei nº


2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de perseguição; e revoga
o art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais).
Brasília. [2021] Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2021/lei/l14132.htm>. Acesso em: 24 mai. 2023.

_______. Lei Nº 14.443, de 2 de Setembro de 2022. Altera a Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de


1996, para determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas e
disciplinar condições para esterilização no âmbito do planejamento familiar. Brasília. [2022]
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
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em: 24 mai. 2023.

419
LEI DE DROGAS E SELETIVIDADE PENAL O REALISMO JURÍDICO
COMO ÁLIBI

Vanessa Silva Moro1

RESUMO

A pesquisa objetiva investigar se o as decisões sobre acusações de tráfico de drogas podem ser
interpretadas sob a ótica do realismo jurídico. A hipótese levantada é de que a interpretação
aberta do diploma legal e a discricionariedade atribuída ao magistrado sobre o que pode ou não
ser considerado porte de droga para consumo pessoal, podem facilitar arbitrariedades
travestidas com a roupagem do realismo jurídico, implicando em seletividade penal. A pesquisa
se dará pela investigação bibliográfica, sobre o realismo jurídico, e documental, acerca das
decisões judiciais. Concluiu-se que o problema central é a ganância estatal pela punição, e que
nessa altura da história, é irrelevante o movimento jurídico que o judiciário adote. O que não
pode ser adotado é um sistema que tenha como característica a seletividade penal, o preconceito
e as ilegalidades como protagonistas das decisões judiciais.

Palavras-chave: Realismo jurídico. Lei de drogas. Seletividade penal. Arbitrariedade.

1 INTRODUÇÃO

A discussão sobre drogas ilícitas sempre foi um tabu e, consequentemente, um problema


na sociedade brasileira. Há quem considere o assunto uma questão de direito penal, há quem
considere uma questão de saúde pública, e há também o senso comum que, apesar de não
contribuir diretamente para o debate, pode influenciar algumas decisões jurídico-políticas.
A criação da Lei 11.343/2006, conhecida popularmente com a Lei de Drogas, se deu
com o intuito de prevenir o uso indevido, reinserir socialmente os usuários e dependentes,
repreender a produção e a comercialização de drogas ilícitas e, por fim, definir crimes
(BRASIL, 2006).
A intenção era instituir uma política pública sobre drogas e, justamente por integrar o
sistema nacional de políticas públicas, a criminalização seria ultima ratio, assim como as
questões envolvendo o direito penal.
Contudo, na prática ocorre o contrário. De acordo com o juiz de execuções penais Luís
Carlos Valois (2016), só em 2015, por exemplo, mais de 70% das prisões ocorridas nas

1
Mestranda em Direito pela ATITUS Educação (Passo Fundo). Graduada em Direito pela Faculdade Meridional
– IMED (Passo Fundo). Advogada OAB/RS 126.485. E-mail: vanessamoroadvocacia@gmail.com
420
principais capitais brasileiras se deram sob a justificativa da ocorrência de tráfico de drogas,
tendo como única testemunha o policial que realizou a prisão.
Tal fato não envolve isoladamente a falta de comprovação de dolo do indivíduo flagrado
com a droga, nem a ausência de testemunhas civis, o que já seria suficiente para relaxamento
da prisão. Mas trata também de violação de legislação federal, bem como afronta a princípios
constitucionais.
O modo como as prisões e os processos são conduzidos quando o crime investigado é o
tráfico de drogas, e a morosidade do Supremo Tribunal Federal, em julgar o Recurso
Extraordinário (RE) 635.659, que discute a constitucionalidade da criminalização da conduta
prevista no artigo 28 da Lei 11.343/2006, irão direcionar os rumos do presente artigo, a fim de
responder a questão norteadora: as decisões sobre acusações de tráfico de drogas podem ser
interpretadas sob a ótica do realismo jurídico?
Para tanto, será realizada uma breve análise sobre o judiciário brasileiro, a fim de
identificar traços do realismo jurídico. Em seguida, serão analisados casos recentes de tráfico
de drogas julgados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
A hipótese levantada é de que a interpretação aberta do diploma legal e a
discricionariedade atribuída ao magistrado sobre o que pode ou não ser considerado porte de
droga para consumo pessoal, uma vez que a Lei 11.343/2006 não prevê quantidade mínima
para uso, podem facilitar arbitrariedades travestidas com a roupagem do realismo jurídico,
implicando em seletividade penal.
A pesquisa se dará pela investigação bibliográfica, sobre o realismo jurídico, e
documental, acerca das decisões judiciais.

2 O REALISMO JURÍDICO NO BRASIL

Como se sabe, o realismo jurídico é um movimento cuja fundamentação se dá pela


crença de que o Direito não se resume a regras, precedentes e princípios, mas é fruto de
experiências, e não da lógica, como afirma Oliver Wendell Holmes, precursor do movimento.
Para os realistas, os julgadores não devem atuar como mero aplicadores de leis, pois as
contendas judiciais estão sujeitas não somente a interpretações de fatores provenientes do
Direito, mas também da experiência de vida do julgador.
É nesse sentido que Holmes, defende que o direito é aquilo que os juízes dizem que deve
ser (MALLMANN; ZAMBAM, 2020, p. 10).

421
Apesar de ter raiz norte-americana, o movimento realista conquistou seguidores pelo
mundo, e no Brasil não seria diferente. Em que pese não seja uma prática defendida abertamente
pelos juízes brasileiros, há inúmeras decisões polêmicas, senão contraditórias, que dão indícios
de traços do realismo.
Um exemplo emblemático foi o julgamento conjunto das ações declaratórias de
constitucionalidade 43, 44 e 54. As ADCs tinham como discussão a constitucionalidade do
artigo 283 do Código de Processo Penal, cuja redação compartilha do teor constitucional acerca
da presunção de inocência, declarando que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito
ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade competente, devido a prisão cautelar, ou
condenação criminal transitada em julgado.” (BRASIL, 2019 [1941])
Mesmo o texto constitucional vedando tal possibilidade, o entendimento da corte oscila
de tempos em tempos. Até o ano de 2009, o Supremo Tribunal Federal seguia o entendimento
constitucional, considerando inconstitucional a execução antecipada da pena.
Contudo, em 2016 a corte alterou a jurisprudência, decidindo pela possibilidade do
cumprimento de pena antes do trânsito em julgado, mais especificamente, quando houvesse
condenação em segunda instância.
A nova decisão teve efeito até o ano de 2019, quando, depois de muitas sessões, a corte
mudou o entendimento mais uma vez, retornando ao status quo constitucional. Desde então,
ficou vedada a execução antecipada da pena (CONJUR, 2020).
Uma exceção a essa regra é a condenação pelo Tribunal do Júri a pena superior a 15
anos. Está em discussão no STF, via Tema 1.068, a constitucionalidade do artigo 492, inciso I,
alínea “e” do Código de Processo Penal, cuja redação se deu por meio da Lei 13.964/2019.
De acordo com Paulino (2022, online), a principal discussão do Tema 1.068, refere-se
ao limite da incidência da decisão do Tribunal do Júri, pois as decisões deste tribunal
representam o espírito da sociedade no combate à criminalidade de sangue, visto que o bem
jurídico protegido é a vida.
O que se extrai dessa discussão é o quanto o legislador e, em especial, o STF está
preocupado com a opinião da sociedade. Uma vez que a execução antecipada da pena nos casos
julgados pelo Tribunal do Júri faria diminuir o sentimento de impunidade.
Desse modo, questiona-se: é esse o papel do STF, satisfazer os anseios da sociedade?
Em regra, entende-se que não. Há um consenso de que a corte destina-se a guardar, proteger,
zelar pela Constituição.

422
Contudo, o que se observa, há mais de uma década, é a adequação de entendimento
conforme os movimentos político-sociais relevantes à época. E é nesse sentido que o judiciário
brasileiro parece flertar com o realismo jurídico. O que na prática, Lênio Streck (2016), chama
de realismo à brasileira.
Isso porque, com a expansão do movimento realista, surgiu também a necessidade de
investigação dos motivos externos ao Direito que levam os juízes a tomarem certas decisões.
Jerome Frank, outro importante realista, afirma que “a maneira pela qual o juiz obtém
seus palpites é a chave para entender o mecanismo judicial.” E ainda, que “os estímulos à
tomada de decisões estariam muito mais relacionados à personalidade do juiz do que à ordem
jurídica.” (FRANK, 2009 [1930], p. 112 apud OSTINI; NOJIRI, 2019, p. 141)
Desse modo, a olho nu, os juízes do STF estariam aplicando fidedignamente o que rege
o movimento realista. Os votos e as manifestações ocorrem tal qual suas personalidades e seus
palpites.
Ocorre que, em relação ao texto constitucional, a imparcialidade da corte é – ou deveria
ser – inegociável, e ao que parece, o realismo jurídico não tem essa característica como
premissa.

2.2 Implicações dos artigos 28 e 33 da Lei 11.343/2006 e o julgamento do recurso


extraordinário 635.659

Há sete anos se aguarda o julgamento do Recurso Extraordinário 635.659, sob regime


de repercussão geral, tema 506, que discute a tipicidade do porte de drogas para consumo
pessoal.
O julgamento começou no ano de 2015, tendo como relator o ministro Gilmar Mendes.
Votaram em seguida os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. O ministro Teori
Zavascki pediu vista, e até o seu falecimento em 2017, o julgamento ainda não havia sido
retomado. Após a morte do ministro, tomou posse Alexandre de Moraes, que devolveu o
processo para julgamento apenas no final de 2018. Desde então o julgamento é incluído e
excluído das pautas de decisão (AKUTSU; AMATO, 2021). Em 24 de maio de 2023 o tema
voltou a ser adicionado à pauta para julgamento, e novamente excluído, sendo adiado para 01
de junho de 2023.
Ao menos o problema relacionado ao pedido de vista e a demora na devolução parece
ter sido sanado com a recente decisão do próprio STF, alterando regimento interno. Na decisão
a corte impõe prazo de noventa dias para que os pedidos de vista sejam devolvidos para
julgamento.
423
Passado o prazo, os autos estarão automaticamente liberados para análise dos demais
ministros. Em relação a temas de repercussão geral, a corte também determinou que cada
ministro deve se manifestar em até seis dias, após a manifestação do relator. (STF, 2022)
E por que esse julgamento é tão importante? Porque enquanto não é declarada e
constitucionalidade ou inconstitucionalidade do referido artigo, pessoas abordadas e flagradas
com ínfimas quantidade de drogas, são denunciadas e, muitas vezes, presas sob a acusação de
tráfico de drogas.
Isso porque a Lei 11.343/2006, que surgiu como uma política pública, não prevê
quantidade mínima para distinguir posse de tráfico. Porém tem um parágrafo exclusivo,
determinando que o juiz é quem definirá se, a natureza, a quantidade de substância apreendida,
o local e as circunstâncias em que ocorreu o fato, bem como, as circunstâncias pessoais, sociais,
a conduta e os antecedentes do agente, podem ser consideradas criminosas. (BRASIL, 2006)
Ocorre que a redação dos artigos 28, referente ao porte para consumo pessoal, e 33,
referente ao tráfico, compartilha cinco verbos: adquirir, guardar, ter em depósito, transportar e
trazer consigo. Desse modo, além da brecha para interpretação do magistrado, há uma indução
à substituição da acusação de atos do artigo 28 para o artigo 33, já que os textos coincidem.
O RE 635.659 questiona a legitimidade constitucional do Estado para criminalizar a
posse de drogas para consumo pessoal. O argumento é de que portar drogas para uso pessoal
diz respeito à privacidade e individualidade de cada cidadão, por isso a criminalização desta
prática violaria dispositivo constitucional, especificamente artigo 5º, inciso X, CF/88.
Contudo, em um país racista, classista e extremamente punitivista, não é difícil perceber
quais indivíduos são acusados de porte para uso pessoal e quais são considerados traficantes da
mais alta periculosidade, mesmo quando flagrados com pouquíssima quantidade de drogas.
O último levantamento de Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em 2016,
demonstra que já nesta época, dez anos após a criação da Lei 11.343/2006, havia 151.782
pessoas presas por tráfico de drogas, sendo 134.676 homens e 17.106 mulheres.
De acordo com Campos (2018), a Lei de Drogas aumentou o índice de incriminação por
tráfico. No último trimestre de 2009, na cidade de São Paulo, havia 87,5% pessoas acusadas
com base no artigo 33 da Lei 11.343/2006, contra 12,5% apontadas como usuárias, artigo 28.
Esse resultado é fruto da rejeição pelo sistema de justiça criminal, da inovação
representada pela incorporação da dimensão médico-sanitária ao novo dispositivo de drogas
(CAMPOS, 2018, p. 5).

424
Ou seja, uma legislação que surgiu com o intuito de servir como política pública, mas
teve sua finalidade desviada em favor do punitivismo estatal.
Se a liberdade é a regra e a prisão é exceção, já que o Direito Penal é ultima ratio, e o
que rege a constituição é o princípio da presunção da inocência, o que se tem presenciado nesses
anos todos, a partir das informações do aumento das incriminações e prisões em virtude da Lei
de Drogas, é a inversão da regra.
De modo que, a prisão passou a ser regra, enquanto a liberdade uma exceção.
Especialmente quando o ato que culminou na prisão do indivíduo já começa viciado.
De acordo com Jesus (2011), a maioria das abordagens feitas pela polícia de São Paulo
foi porque o cidadão tinha uma atitude suspeita. Para os policiais entrevistados na pesquisa da
autora, a atitude suspeita é identificada por conta da experiência adquirida em anos de trabalho
ostensivo (JESUS, 2011, p. 98).
No entanto, na ocorrência os condutores (policiais) informam de maneira genérica a
situação suspeita, sem descrever o que indica tal comportamento, alegando apenas que o
conduzido parecia preocupado ou nervoso.
Qualquer cidadão se sente nervoso ou preocupado ao ser perseguido por uma viatura
policial, especialmente quando se encontra longe de testemunhas, como ocorre na maioria das
abordagens.
De acordo com Valois (2016), ao analisar flagrantes em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Porto Alegre e Brasília, 74% dos autos tinham como únicas testemunhas os policiais
que fizeram a abordagem.
O artigo 304, §2º do Código de Processo Penal, autoriza a prisão em flagrante mesmo
sem testemunhas da infração. Ocorre que a palavra do agente, muitas vezes, é a única prova,
tanto no flagrante, quanto na instrução criminal.
E a partir desse ponto inicia-se a discussão sobre a personalidade do juiz ao decidir sobre
uma questão tão controversa. O artigo 155 do CPP veda a fundamentação da decisão
exclusivamente sobre elementos informativos colhidos na investigação. Contudo não é o que
se observa na prática.
Ao observar dois julgados do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, decisões
recentes chamam a atenção justamente pela fragilidade e superficialidade das provas obtidas.
Ambos os casos datam de 2021. O primeiro, apelação criminal nº 5058342-
22.2021.8.21.0001/RS, ocorreu em 26 de março de 2021, dia em que o denunciado foi flagrado
com 60 gramas de maconha, 20 gramas de cocaína e 6 gramas de crack. Na ocorrência constam

425
as informações de que os policiais estavam em patrulhamento e avistaram o acusado em “atitude
suspeita”, carregando uma sacola na mão, motivo pelo qual decidiram realizar a abordagem,
encontrando as drogas mencionadas, R$ 225,00 em espécie e um celular.
Nota-se que, assim como na pesquisa realizada em 2011 por Maria Gorete Marques de
Jesus, os policias dessa ocorrência não se preocuparam em detalhar a atitude suspeita do
acusado, indicaram genericamente.
O acusado então foi processado e condenado com base no artigo 33, §4º da Lei
11.343/2006, mesmo a quantidade de drogas encontrada sendo mínima.
A defesa ainda postulou pela desclassificação da conduta para o artigo 28, alegando o
porte para consumo pessoal, uma vez que, além de quantidade mínima de droga apreendida, o
acusado não tinha antecedentes criminais, e não havia informações sobre sua conduta social e
personalidade, justamente por não ser conhecido da justiça.
Mas o pedido foi improcedente, restando a condenação de 03 anos e 04 meses de
reclusão, regime inicial aberto, tendo pena privativa de liberdade substituída por duas restritivas
de direito por igual tempo.
Em que pese o acusado não tenha perdido a liberdade, visto que teve a pena de reclusão
substituída, o crime imputado a ele será uma mácula em sua história. A vida desse indivíduo
nunca mais será a mesma.
No segundo caso, apelação criminal nº 5002883-95.2021.8.21.0078/RS, o acusado foi
preso por conta de 52,76 gramas de cocaína. O flagrante ocorreu após abordagem em uma
rodovia. Na ocasião os policiais deram ordem de parada ao acusado, que obedeceu prontamente.
E em busca veicular, os agentes encontraram a referida droga.
Após regular trâmite processual, o acusado restou absolvido, com fulcro no artigo 386,
inciso VII do CPP, ou seja não havia provas suficientes para a condenação.
Contudo, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, a fim de reformar a decisão,
alegando ser expressiva a quantidade de droga apreendida e que o acusado já era investigado
por outros delitos da mesma espécie.
O recurso foi parcialmente provido, sendo reformada a decisão que absolveu o réu em
primeiro momento, passando agora a ser condenado pela prática do crime previsto no artigo 33,
§4º da Lei 11.343/2006. A pena privativa de liberdade também foi substituída por duas
restritivas de direito, como no primeiro caso apresentado.

426
Sobre este acusado, apesar de ser alvo de outras investigações, o próprio tribunal
reconheceu que o réu não possuía maus antecedentes, e que a conduta social e personalidade
não apresentavam elementos para aferição.
O que se extrai dos julgados recentes e da pesquisa realizada em 2011 é que, de fato, a
Lei 11.343/2006 aumentou a quantidade de condenações por tráfico de drogas, isso porque, não
há investigação, na maioria das vezes, especialmente em relação às pequenas quantias
apreendidas.
No relato dos casos da pesquisa de 2011, ao serem interrogados, os acusados se
defenderam, ou alegando porte para consumo, ou justificando que a droga não era deles.
Contudo, essas questões não foram investigadas. Bastou a palavra do policial para o livre
convencimento do juiz.
Situação semelhante aconteceu com mulheres flagradas com droga ao serem revistadas
no presídio. Mulheres presas sob acusação de tráfico de drogas dentro do presídio alegaram
levar a droga para o marido preso, porque este estava sendo ameaçado dentro da penitenciária.
Contudo essas denúncias não foram investigadas, bastando a palavra da agente que encontrou
a droga (JESUS, 2011, p. 66).
Outras duas importantes questões sobre a aplicação da lei de drogas são a econômica e
a social. Primeiro porque não são apenas pessoas pobres que acabam por se envolver em tráfico
de drogas; segundo porque o modo como as abordagens policiais ocorrem nas periferias é
totalmente diferente do modo como ocorrem em bairros nobres.
Em 2017, durante uma entrevista para um portal de notícias, o comandante das Rondas
Ostensivas Tobias de Aguiar (ROTA), declarou que os policiais devem ter posturas diferentes
a depender do local da abordagem. “É outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por
lá. Se ele for abordar uma pessoa da mesma forma que aborda aqui nos Jardins, vai ter
dificuldade.” (EXAME, 2017, online).
Ou seja, na favela é permitido atirar primeiro e perguntar depois, quebrar a porta do
barraco, dar tapa na cara do indivíduo em atitude suspeita. Enquanto que no Jardins, deve-se
respeitar as regras constitucionais.
É nesse sentido que, conforme já apontado, os processos iniciados por flagrantes
oriundos de abordagens policiais aleatórias, já iniciam viciados, e o vício não é sanado durante
a instrução processual, dando brecha para arbitrariedades e ilegalidades.
Contudo, não é adequado nomear essa prática discricionária do judiciário brasileiro de
realismo jurídico. Uma vez que, ao que parece, nestes casos em que se decide entre tráfico ou

427
porte, nos quais a única prova é a palavra do policial e sua “expertise” para identificar traficantes
e usuários, o juiz não tem informações suficientes para dar o seu palpite.
Do mesmo modo, por não haver investigação detalhada sobre essas situações, e o juiz
não estar nas ruas para ter uma experiência empírica, a decisão será sempre a partir da
experimentação do outro. Ao que parece, isso não pode ser chamado de realismo jurídico.
Ademais, o movimento realista, apesar de defender que o direito é experiência e não
lógica, não exclui a letra da lei. O julgador não substitui a legislação, pelo contrário, se socorre
dela para embasar suas decisões (OSTINI; NOJIRI, 2019, p. 142).
Portanto, confirma-se a hipótese de que a interpretação aberta do diploma legal e a
discricionariedade atribuída ao magistrado, sobre o que pode ou não ser considerado porte de
droga para consumo pessoal, podem facilitar arbitrariedades travestidas com a roupagem do
realismo jurídico, implicando em seletividade penal.
Isso porque nos casos apresentados, não se observou prática de experiências vividas
pelo julgador somadas à legislação, mas sim, aplicação precária de legislação, somada à
arbitrariedade e à omissão.

3 CONCLUSÃO

Os temas tratados são sensíveis e inesgotáveis. Primeiro porque o Direito é dinâmico, e


para acompanhá-lo, seus operadores também precisam ser. Segundo porque tratam da vida e da
liberdade dos indivíduos, em especial a temática sobre drogas.
Nesse sentido, entende-se que, ainda que seja considerada atípica a conduta de portar de
drogas para consumo pessoal, o problema central ainda é a ganância que o Estado tem pela
punição.
Se a legislação continuar concentrada em repreender, deixando de lado a prevenção e a
inserção social – verbos que constam no cabeçalho de instituição da norma – o número de
condenações continuará a crescer, a população carcerária continuará aumentando e o judiciário
continuará chancelando arbitrariedades.
Responder a um processo criminal já é um fardo, mediante acusação leviana ou
superficial é ainda mais penoso, visto que a possibilidade de defesa plena fica prejudicada,
considerando que os procedimentos que levaram ao processo encontravam-se eivados de vícios
e nulidades, e ainda assim surtiram efeito de uma condenação.

428
Desse modo, nessa altura da história é irrelevante o movimento jurídico que o judiciário
adote. O que não pode ser adotado é um sistema que tenha como característica a seletividade
penal, o preconceito e as ilegalidades como protagonistas das decisões judiciais.

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reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à
produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências.
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