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Karla Meura
Rochele Oliveira Silva
Evelin Ferreira
Organizadoras:
Karla Meura
Rochele Oliveira Silva
Evelin Ferreira
Capa:
Carlos Pivetta
T248
CDU 929
CONSELHO PEDAGÓGICO
CORREGEDORIA
Corregedores Adjuntos
Maria Ercília Hostyn Gralha,
Josana Rosolen Rivoli,
Regina Pereira Soares
OABPrev
COOABCred-RS
PREFÁCIO
É com grande satisfação que vemos ser entregue à sociedade gaúcha mais uma contribuição
envolvendo as Trajetórias da Advocacia Negra. Os relatos trazidos neste e-book realizado pela
Comissão Especial de Igualdade Racial (CEIR) da OAB/RS são fundamentais para termos a dimensão
das dificuldades encontradas por advogados e advogadas negras em suas caminhadas
profissionais. Ao mesmo tempo, registram trajetórias de superação e inspiração para novas
gerações.
A obra 'Trajetórias da Advocacia Negra' amplia o horizonte dos perfis trazidos no primeiro livro
publicado pela CEIR OABRS, intitulado '(Re) conhecendo Histórias Negras', onde foram registradas
52 figuras influentes em cinco áreas de atuação: direito, ciências, literatura, processo abolicionista
e política. Desta vez, são 18 advogados e advogadas que dão seu testemunho e enriquecem a
bibliografia da contribuição da advocacia negra no Rio Grande do Sul.
A leitura das histórias de vida emociona e, ao mesmo tempo, provoca a reflexão da permanente
necessidade de se assegurar espaços em busca da igualdade racial. Seja com colegas de Porto
Alegre ou do interior do Estado, é possível perceber traços de similaridade na superação de
obstáculos que existem em razão da questão racial. A questão do preconceito racial é um tema da
atualidade, basta ver a repetição de casos envolvendo negros na sociedade. Enfrentar e jogar luzes
sobre essa situação é papel fundamental exercido pela OAB/RS
São esses testemunhos verdadeiros e objetivos que reforçam a importância de termos dentro da
nossa Ordem a Comissão Especial de Igualdade Racial (CEIR). Embora relativamente nova, é uma
comissão com um grande protagonismo e propositora de grandes eventos e distinções dentro da
nossa instituição.
Em nome das organizadoras do e-book, Karla Meura, Rochele Oliveira e Evelin Ferreira e da
Diretora da Escola Superior da Advocacia da OAB/RS (ESA/RS), reconheço a valiosa contribuição de
mais esta obra. É preciso seguir abrindo espaços e enaltecer aqueles que contribuem e fazem a
diferença em suas áreas de atuação.
Ricardo Breier
Presidente da OAB/RS
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APRESENTAÇÃO
Meu nome é Ada Elise, tenho 36 anos, nasci e cresci em Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul, sou estudante do curso de Direito, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul – PUCRS.
A minha trajetória acadêmica teve início em 2003, quando ingressei no curso de
Pedagogia, na Uniritter, mas devido às circunstâncias e das escolhas da vida o sonho de
concluir o curso superior ficou para trás.
Diante da busca por uma profissão e colocação no mercado de trabalho, decidi fazer
um curso técnico em enfermagem, concluí em 2011 e no mesmo ano fui contratada para
ocupar o cargo técnico na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. No decorrer do
exercício da minha profissão refleti sobre a minha capacidade para dar continuidade aos
estudos e pensei na graduação de Enfermagem, mas percebi que a área da saúde não era
a minha paixão.
Em 2012, ingressei no curso de Licenciatura em Ciências Sociais na PUCRS, porque
acreditava que a sociologia era a minha vocação, porém, no percurso do primeiro semestre
constatei que não. Diante dessa análise e reflexão, decidi solicitar a transferência interna
para outro curso e escolhi o Direito.
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Muitas vezes, casos de pessoas negras que enfrentam grandes dificuldades para
obter um diploma ou passar em um concurso público são romantizados.
Entretanto, ainda que seja bastante admirável que pessoas consigam superar
grandes obstáculos, naturalizar essas violências e usá-las como exemplos que
justifiquem estruturas desiguais é não só cruel, como também uma inversão de
valores. Não deveria ser normal que, para conquistar um diploma, uma pessoa
precise caminhar quinze quilômetros para chegar à escola, estude com material
didático achado no lixo ou que tenha que abrir mão de almoçar para pagar um
transporte.
1
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 47-48.
2
Artigo extraído como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, na Escola de Direito
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, sob a orientação da Prof. Dra. Caroline Vaz.
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Obtive ótimo resultado, o trabalho de conclusão do curso foi nota DEZ e o artigo foi
indicado à publicação. Foi um dia inesquecível e muito especial, pois recebei o apoio dos
meus familiares e de pessoas amigas, que estavam presentes naquele momento.
Naquele dia, eu pude compreender de fato o verdadeiro significado da palavra
RESISTÊNCIA, falar sobre a nossa história reafirma a luta e a força que vem da nossa
ancestralidade.
Entretanto, precisamos reforçar cada vez mais a importância da abordagem sobre
os temas raciais dentro da academia, o racismo não pode ser tratado como tema
secundário, ele precisa ser debatido constantemente e com urgência, principalmente no
cenário atual em relação à pandemia de COVID-19, que acentuou o racismo no Brasil e em
outros países no mundo.
Nesse seguimento, aproveita-se dos ensinamentos de Silvio Almeida3 que expõe:
[...] o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do
modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas,
jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um
desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos
individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade
cujo racismo é regra e não exceção.
3
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. p. 50.
4
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011. p. 103.
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ENSAIOS
ENSAIOS
Mas nem tudo são flores, existem os espinhos... O fato de sermos negros e por
atuarmos numa profissão predominantemente branca, nos deparamos com o Racismo
dentro do Poder Judiciário. E que nos aborda desde o momento em que entramos nos foros
ou tribunais, até o momento em que somos atendidos nos cartórios ou secretarias. O Poder
Judiciário não sabe lidar com advogados negros, e nisso se incluem estagiários,
terceirizados, funcionários, juízes e desembargadores. Necessário se faz um treinamento
educacional de combate ao racismo para membros e funcionários do Judiciário.
Em relação ao nosso Órgão de Classe, eu não me sentia acolhido pela Casa da
Cidadania. Não via na OAB/RS, um catalisador da Advocacia Negra. Porém esta visão
mudou em 2018, quando o Presidente Ricardo Breier criou a Comissão Especial de
Igualdade Racial, que tem como primeira Presidente a Dra. Karla Meura.
No primeiro semestre de 2019, após conversar com a Dra. Karla, eu fui conhecer a
Comissão, de forma totalmente despretensiosa, e hoje estou vice-presidente, e pude ter a
oportunidade de conhecer colegas maravilhosos, e que me acolheram de forma muito
afável. E começamos a desenvolver um trabalho de forma promissora, em perdermos a
consciência de que estamos no começo e que muito ainda deve ser feito.
A partir do momento em que começamos a nos tornar visíveis dentro da OAB/RS,
sendo que o processo ainda não está completo, mas estamos caminhando para concluí-lo.
Penso que este pode ser o começo do nosso reconhecimento como profissionais do direito,
consequentemente como advogados negros dentro da comunidade da advocacia, e
perante nossa sociedade.
É uma porta que se abre, porém ainda temos um caminho a fazer para que este
conhecimento seja pleno. Acredito que ele estará completo quando formos visíveis e
reconhecidos pelos outros elementos formadores do Poder Judiciário, como juízes,
promotores, e outras autoridades.
Ou seja, quando formos efetivamente reconhecidos como advogados e respeitados
como tal independente da corda pele e do sexo.
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ENSAIOS
Nasci numa família de trabalhadores: meu pai era operário e minha mãe
eratrabalhadora doméstica. Com o esforço do trabalho, eles oportunizaram estudos para
suas duas filhas, uma formou-se emDireito, a outra, em História. Poucas mulheres negras
da minha geração tiveram a chance de estudar eexercer a advocacia. Assim, minha ação
política se focou na defesa dos/dasexcluídos/das.
Ao longo da vida, tive a oportunidade de trabalhar em organizações sociais eem
órgãos governamentais. Trabalhei no Sindicato das Trabalhadoras Domésticas,onde
prestei assessoria jurídica por sete anos.
Na organização feminista Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, euacolhia
e ajuizava ações de mulheres em situação de violência doméstica,moradoras da periferia
de Porto Alegre. Nessa instituição não governamental, também participei do programa
de formação das Promotoras Legais Populares (PLPs). Essas lideranças comunitárias
femininas, mulheres pobres e mestiças,recebem formação em Direito para a qualificação
do ativismo social e a atuação em redede solidariedade.
Minha prática advocatícia foi sendo direcionada para a defesa das trabalhadoras
19
ENSAIOS
ENSAIOS
Daniela da Rosa
OAB/RS 71.236
Sou Daniela da Rosa, filha de Eloir Oscar da Rosa e Vera Maria da Rosa, a caçula entre
quatro irmãos, e talvez por isso, a única que pode escolher fazer um curso de nível superior,
pais de profissão pedreiro e empregada doméstica, com pouca escolaridade, mesmo com
as dificuldades financeiras que enfrentaram sempre acreditaram e apoiaram o meu sonho.
Com muito esforço cursei graduação na Unisinos ingressando no ano 2000, colando
grau em 2006/2, regressei a minha cidade em Capão da Canoa e no ano de 2009 montei
meu próprio escritório na casa de meus pais, de forma muito simples, mas com muita
coragem empreendi em carreira solo na profissão da advocacia, vencendo todos os
obstáculos financeiros, preconceitos raciais e sociais.
A cada vitória processual, a cada novo cliente sentia que honrava a minha
ancestralidade pois muitos deram a sua vida na formação da nossa sociedade brasileira e
que até hoje ainda é negado a nossa história e o reconhecimento da nossa fundamental
participação na construção do nosso país.
No ano de 2015, desejando ampliar a área de atuação fui buscar parceria em outros
escritórios, oportunidade em que fui trabalhar com o colega Miguel Glashorester Severo,
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5
Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e cor, outorgando a pele e a cor o
estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do negro e da
raça duas versões de uma única e mesma figura։ a da loucura codificada. (Miriam Eliav-Feldon, Benjamin Isaac
e Joseph Ziegler, The Original of Racism in the West, Cambridge University Press, Cambridge, 2009. (Grifei).
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ENSAIOS
Toda história tem um início, um porque, como diz Mano Braw, tudo começa com
"um motivo para". Eu posso dizer que meu motivo foi descoberto com 12 anos, enquanto
fazia a 6º série do ensino fundamental.
Até então, eu era a única filha mulher, da família negra, pobre, periférica, sem
qualquer histórico de estudo ou diplomas. Meu pai pedreiro sempre trabalhou
incansavelmente para dar o melhor para os três filhos, mesmo não tendo tudo que
desejamos tínhamos o suficiente para viver. Minha mãe dividia o tempo das faxinas com a
educação dos filhos.
Sempre frequentei escola pública e posso dizer que gostava de me dedicar aos
estudos. Com 11 anos comecei a trabalhar como baba e auxiliar a mãe nas faxinas,
enquanto meus irmãos já estavam puxando carrinho nas obras junto com o pai. O estudo
sempre foi prioridade lá em casa.
Com 12 anos, uma professora de chegou pra mim e perguntou que profissão
gostaria de seguir, eu fiquei sem resposta, porque até aquele momento, pra minha
realidade, não tinha essa história de profissão, o importante era trabalhar para sobreviver.
Depois de plantar essa sementinha, a mesma professora começou a me incentivar
de várias formas. Descobri então a facilidade na escrita, na fala e na comunicação, que me
levou a objetivar a profissão de repórter. A partir daí, meu sonho estava direcionado para
o Jornalismo, mesmo sem ter qualquer noção do caminho a ser percorrido.
28
ENSAIOS
Não há como reconhecer quem sou hoje sem observar quem fui no passado. Meu
nome é Dorival Sebastião Ipe da Silva, nascido no dia 08.11.1953, em Linha Capão - Distrito
de Vila Tereza - Santa Cruz do Sul, hoje município de Vera Cruz. Sou filho de pessoas
admiráveis que não tinham estudo nem "letramento", mas tinham muita sabedoria.
Até vir para a capital do Estado, não havia completado o Ensino Fundamental
(antigamente conhecido como primário). Até aquele momento, trabalhei na lavoura, na
roça, plantando e colhendo fumo, milho, mandioca, etc. Trabalhei como jardineiro e
fazendo hortas até os anos de 1967/68. Depois, como servente de obras (construção civil),
bem como em uma funilaria como auxiliar. Em janeiro de 1971 passei a servir o Exército,
onde permaneci pelo período de dois anos e quatro meses.
Durante aquele tempo, aprendi lições importantíssimas para minha vida,
principalmente pela base firme, elogiável e destemida recebida do meu pai, um analfabeto
no sentido literal, mas um "doutor" de fato, um homem inteligente, agregador,
aconselhador, uma verdadeira autoridade, que encontrou no MOBRAL uma forma de me
motivar a estudar ao frequentá-lo.
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A verdade é que se eu estou solitário, então somente a minha presença nos espaços
não basta. Aceito ouvir frases como “o Ipe foi o primeiro presidente negro da Subseção de
Cachoeirinha”, mas não quero mais ouvir que sou o único.
Tenho orgulho da minha trajetória, pois sei o quão difícil foi chegar até onde estou.
Fico feliz de saber que garanti às minhas filhas melhores condições para alcançarem os seus
sonhos de forma menos sofrida e tardia. Emociono-me ao ouvir que inspiro pessoas, e que
querem me ouvir.
Porém, não estou satisfeito. Quero que os advogados negros da nova geração não
precisem se arrumar mais que os advogados brancos para que não sejam confundidos com
os réus dos processos. Quero que sejam igualmente ouvidos e considerados, como
profissionais e como pessoas. Não quero que se sintam solitários nos espaços.
Apesar de tudo, meu prognóstico é positivo. A juventude negra está se fazendo
ouvir, e está adentrando nos espaços. Com as cotas, creio que ganharão o tempo que eu
não tive. Vejo uma advocacia negra no futuro mais forte que a atual, o que me faz sentir
esperança. O momento que vivemos hoje me dá substrato para pensar assim.
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TRAJETÓRIA INSTITUCIONAL
Meu primeiro contato com a instituição OAB/RS foi através de um estágio que
realizei no Tribunal de Ética e Disciplina durante o período de 16/07/2012 a 04/06/2013.
No estágio desempenhei muitas atividades, mas a que mais gostava era secretariar as
audiências de instrução para adentrar nos detalhes de cada caso. Foi um período de muito
aprendizado, no qual pude aprofundar meu conhecimento sobre o código de ética e
estatuto da OAB, infelizmente, precisei interromper o estágio para cursar estágio
obrigatório da faculdade durante período integral no Foro da Restinga.
Recebi minha carteira pelas mãos do Presidente, Dr. Ricardo Breier na primeira
prestação de compromisso da gestão 2016/2018, no dia 25/01/2016.
era uma das palestrantes, lembro bem de quando ela disse que as portas da CMA estavam
abertas à todas advogadas que quisessem participar, então fiz contato e manifestei
interesse via e-mail e recebi convite para a primeira reunião ordinária realizada no dia
24/05/2018. Ao chegar na reunião já fui recepcionada pela Dra. Beatriz com um PIN das
Mulheres de Ordem e achei o máximo, nunca mais esqueci de usá-lo nas reuniões
seguintes.
Obrigada Dra. Miria, por ter começado antes, com certeza, abrira caminhos para
nós, é invisível para alguns colegas, a trajetória da Dra. Miria, mas para nós negras
advogadas não.
Certa feita, por coincidência, uma advogada chamada Dra. Miria, no exercício de
sua atividade profissional, chegara no Cartório Criminal, do Foro Regional do Partenon, e a
pergunta dirigida a ela fora: A Sra. É esposa de presidiário? Irmã? Mãe?
Ela é todas nós, quantos advogados negros temos a final no registro da OAB/RS?
Têm nosso cadastro, eu tenho esperança.
Quantas constrangimentos passamos nos cartórios todos os dias, há
aproximadamente cem anos, eu sei dizer, todos os constrangimentos. Tudo bem, entendi,
sem vitimismo. Vitimismo será?
Meu querido, fiel, revolucionário, conhecedor de nossas angustias, nossas dores,
nossos gritos silenciosos, ter sido homenageada pela Comenda que leva teu nome Dr.
Osvaldo Ferreira dos Reis, me dá sim, esperanças.
Lembra das nossas resenhas, a OAB/RS não sabe de nós.
Não sabe, que não temos grandes escritórios nos esperando, com grandes
aparelhamentos, nossos pais tem sobrenome Silva Santos.
Nossos pais têm as mãos calejadas, somos heróis da advocacia gaúcha, sozinhos,
quase únicos nas salas de aula, vencemos, há se não fossem nossas esperanças e o olhar
de crença de nossos pais.
Eu espero, investimentos, para que possamos ter esperanças, Vavá meu amigo, que
nossos jovens, saiam das faculdades, e tenham um lugar parecido com Quilombo, podendo
todos terem o direito de se prepararem para a prova da ordem, nas mesmas condições de
igualdade.
Ah, ia esquecendo, no momento atual, talvez o Sr. Presidente não saiba, somos com
certeza a maioria dos que não estão “usufruindo” dos serviços na sala da OAB/RS, por quê?
Não estamos em dia com a anuidade, pode chamar de vitimismo, juro não compreendo Sr.
Presidente, para que tantas salas? Se não podemos entrar na casa grande.
Esperança Sr. Presidente, é acreditar na possibilidade para pessoas de baixa renda,
que saem dos cursos de direito e possam prestar as provas da Ordem, eu ouso dizer, que a
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maioria, com raras exceções, são pretos, podres de periferias, que não estão conseguindo
passar na prova da Ordem. Vitimismo? Queremos a lição do Quilombo.
Obrigada Dra. Miria e Dr. Osvaldo Reis. Vocês são nossas esperanças.
Esperança: Sentimento de quem vê como possível a realização daquilo que deseja;
confiança em coisa boa; fé.
CURRICULO
VOU TRANSCREVER O TEXTO QUE UMA ESTAGIÁRIA DE JORNALISMO FEZ, ACHO QUE
DEFINE MEU CURRICULO
O DIREITO ME ESCOLHEU
ADVOGADA HÁ 28 ANOS, GEÍSA CARMO DA SILVA ENCONTROU NO DIREITO UMA FORMA
DE AJUDAR OS SEUS. MULHER, NEGRA E DA PERIFERIA, DESDE PEQUENA OUVIA DE SUA
MÃE, QUE ERA DOMÉSTICA, QUE O ESTUDO ERA SUA ÚNICA SAÍDA. SUA MÃE NÃO QUERIA
QUE ELA E SEUS OUTROS DOIS IRMÃO TIVESSEM A MESMA VIDA QUE A DELA.
GEÍSA TEM 53 ANOS E ESTE É O TEMPO EM QUE ELA MORA NA RUA JUVENAL CRUZ, NA
VILA BRASÍLIA, COMUNIDADE DA ZONA LESTE DE PORTO ALEGRE. “ NÃO EXISTE FELICIDDAE
MAIOR QUE PERTENCER A ESSE LUGAR”.
RESPEITADA PELOS MORADORES DA BRASÍLIA OU “DISTRITO FEDERAL”, COMO O CHAMA,
A ADVOGADA NÃO SE IMAGINA VIVENDO EM OUTRO LUGAR MESMO DEPOIS DE TER
CONSEGUIDO ASCENSÃO. “EU NÃO SAIO DA BRASÍLIA E ELA NÃO SAI DE MIM”.
MESMO SENDO ADVOGADA, ENTENDE A JUSTIÇA COMO NÃO SENDO JUSTA PARA TODOS.
“ PARA QUEM TEM DINHEIRO É UMA, PARA QUEM NÃO TEM É OUTRA. QUESTIONADA DE
O PORQUÊ TER ESCOLHIDO O DIREITO, RESPONDE O “ DIREITO ME ESCOLHEU”.
NO LUGAR ONDE VIVO, SEMPRE SENTI NECESSIDADE DE DIALOGAR, DE DEFENDER E DE
DEBATER. VI NO DIREITO A POSSIBILIDADE DE FAZER ISSO. EU PRECISO ADVOGAR.
GEISA TÊM DUAS PAIXÕES: CARNAVAL BAMBAS DA ORGIA E INTERNACIONAL.COLORADA,
PORQUE O TIME SEGUNDA ELA COMBINA COM SEU PERFIL POPULAR E O CARNAVAL FAZ
PARTE DE MIM, DIZ ELA, QUE DEFENDE COM UNHAS E DENTES A MANIFESTAÇÃO
POPULAR.
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ENSAIOS
É com imenso prazer que saúdo a Comissão Especial da Igualdade Racial OAB/RS na
pessoa da sua Presidente, Digníssima Sr.ª Dr.ª Karla Meura e, estendo aos demais colegas,
Nobres Juristas, minhas saudações. Não poderia me furtar de atender ao convite de narrar
minha trajetória como profissional apaixonada, pertencente ao universo jurídico
oficialmente desde o dia 22 de dezembro do ano de 1989, quando jurei honrar a advocacia
e me fazer útil a todos de quem dela necessitasse e, é dessa prorrogativa que comungo até
os dias atuais.
Minha história se confunde com a de muitos colegas: Sou oriunda de uma família
humilde, formada por trabalhadores incansáveis e honestos que fizeram dos valores morais
dos quais eram convictos, base para solidificar a estrada para que seus descendentes
pudessem trilhar na busca pelo conhecimento. Quando decidi que seria Advogada
entreguei-me de forma desmedida aos estudos, ação esta que se tornara uma constante
em minha vida. Recordo que eram tempos onde era grande a concorrência para frequentar
uma Faculdade de Direito, sendo motivo de orgulho para quem ingressava na Universidade
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e também para os familiares, que ostentavam a conquista dos seus. No decorrer do curso
o empenho era redobrado para estar entre os primeiros da classe, pois esses após colarem
grau seriam privilegiados na busca por um espaço no mercado de trabalho. Eram poucos
os Negros que ocupavam a academia, em razão da condição socioeconômica, ou por falta
de motivação, uma vez que muitos dos algozes segregadores disseminavam a errônea ideia
que nós possuíamos baixa capacidade intelectual. Aprendi que para galgar degraus cada
vez mais altos eu deveria estar em constante aprendizado, sendo assim segui na busca pelo
saber, absorvendo todas as qualificações que me foram proporcionadas. Após conquistar
o direito à advogar, atuei na Área Trabalhista por longos anos para um conceituado banco.
Posteriormente disponibilizei meu ofício à uma empresa igualmente bem vista na área da
saúde e, concomitantemente prestava trabalho em meu próprio escritório que hoje
encontra-se inabilitado em virtude de ter sido acometida por um acidente vascular
cerebral. Superando as limitações que a vida me impôs, voltei a advogar como servidora
do município de Jacuizinho e militar nas causas políticas na região.
Sou a primeira integrante da minha família a possuir formação de nível superior e
acredito que fiz desse marco a motivação para impulsionar que os meus também se
sentissem capazes de repetir esse feito. Em toda a sua simplicidade, minha base familiar
sempre conscientizou minha irmã e a mim do nosso papel na sociedade e, nos segmentos
sociais e culturais os quais transitávamos, capturávamos todos os elementos que ajudaram
a construir nossa identidade. Ao trilhar as vias da evolução confirmei a sensação de
pertencimento cultivada pelos meus mentores, fazendo valer todos os nossos esforços.
Entendi que como cidadã, como mulher negra, eu deveria dar continuidade às
responsabilidades social e afetiva plantadas pela minha família. A partir de então todos os
espaços conquistados foram vitórias coletivas, todas as ações vencidas passaram a ser
êxitos nossos. Com base nos alicerces herdados, construí dia após dia degraus para que a
nossa continuidade também pudesse ascender. Sem pretensão alguma tornei-me
responsável pelo desenvolvimento intelectual não somente de membros da minha família,
mas também de tantas outras pessoas que apostaram em minha vida e que me permitiram
instigar suas aptidões. Quando dei-me por conta havia me tornado referência e abrigo para
aqueles que o destino havia levado ao meu encontro.
40
BREVE BIOGRAFIA:
de então abriu seu próprio escritório, prestando assessoria jurídica para empresas e
defendendo causas nas áreas civil e trabalhista.
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Eu sou Karla Meura, filha da Regina Helena Meura e do Carlos Roberto da Silva. Irmã
mais velha de Douglas Meura, do Diego, da Kelly e da Áure. Sou uma mulher negra
Advogada, formada em 2008/2, pelo Centro Universitário Metodista-IPA, em Porto
Alegre/RS, através do Programa de Ações Afirmativas pactuado entre o IPA e o Centro
Ecumênico de Cultura Negra-CECUNE, que garantiu bolsa integral para alunos
afrodescendentes. No Trabalho de Conclusão da Graduação pesquisei sobre Ações
Afirmativas e o Princípio da Dignidade Humana no Estado Democrático de Direito, onde
estudei os obstáculos da inclusão da população negra no acesso aos direitos sociais e
mercado de trabalho. A referida Pesquisa que foi aprofundada no Curso de Pós-Graduação
em Direito Penal e Processo Penal, concluído em 2016/2, cujo Trabalho de conclusão teve
como título: Direito Fundamental de Acesso à saúde no Sistema Prisional do RS. Minha
segunda Pós-Graduação foi no Curso de Direitos Humanos e Contemporaneidade,
realizado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – UFBA.
Após esta breve apresentação de parte da minha caminhada profissional, penso que
devo compartilhar também a participação na política institucional do nosso órgão de
classe. Me tornei oficialmente advogada em 18 de julho de 2011, no mesmo dia de
aniversário de meu pai. Recebi a Cartei da OAB das mãos do Presidente Cláudio Lamachia.
Os primeiros quatro anos da advocacia dediquei exclusivamente à organização e atuação
do meu escritório de Advocacia na verdade, do nosso escritório, pois na época eu trabalha
em parceria com a Dra. Viviane Santos e o Dr. Carlos Antônio Carvalho dos Santos, colegas
pelos quais tenho admiração e gratidão imensa.
Promoção da Igualdade Racial”, ideia que foi imediatamente aceita pelo presidente Ricardo
Breier e o seminário realizado pela ESA em março de 2017.
Junto com a conquista da criação da CEIR OABRS veio o convite para compor o
Conselho Seccional da OABRS na gestão 2019/2021. Minha reação foi perguntar: por que
eu? As colegas que construíram esta trajetória ao meu lado, não me deixaram titubear e
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responderam que este era o meu momento e que em breve estaríamos ampliando a
participação da Advocacia Negra nos espaços decisórios. Aceitei o desafio e hoje sou uma
das vozes negras no Conselho Seccional, a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira no
Conselho Pleno da Seccional RS, mas como sempre destaco, sou a ‘única por enquanto’.
Estou imensamente grata por compartilhar esta construção com vocês. Todas as
ações aqui referidas foram pensadas estratégica e coletivamente, e digo isso sem
demagogia. Somos muito mais producentes quando nós reconhecemos que tem espaço
para ‘todo mundo’, porque tem trabalho para todo mundo! Somos muit@s, somos
divers@as e tod@s nós temos legitimidade.
Eu sei que uma mulher negra quando chega em um espaço nunca chega sozinha. E é
fortalecedor saber que não estamos sozinhas. Continuemos construindo nossas trajetórias
negras, fortalecendo a advocacia negra e oportunizando a ampliação dos espaços para que
possamos exercer nossas potencialidades num movimento que honra a oportunidade que
recebemos da nossa ancestralidade.
47
ENSAIOS
Lucia Helena dos Santos
no movimento social negro. Naquela época, na última década da ditadura militar, minha
organização política sofria muitas baixas, ou seja, volta e meia um militante era preso ou
mesmo qualquer cidadão negro. Não tínhamos com quem contar de forma imediata, para
enfrentar e conter abusos, seja nas instituições policiais, ou mesmo no judiciário. Tudo era
muito difícil. Ainda mais, para quem lutava contra o sistema. Éramos considerados
subversivos e perigosos!
Diante destas mesmas dificuldades, fui desafiado pelos meus “camaradas”, do
movimento social negro, a ser um defensor da causa, atuando nos tribunais e na sociedade
em geral, na defesa da comunidade e da democracia. Aceitei o desafio e ingressei na
universidade, no curso de Direito. Nesse período, desenvolvia a profissão de bancário e, na
categoria, militava no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre. Como bancário, permaneci
até concluir o curso de direito.
Tão logo recebi minha carteira da OAB/RS, saí da categoria bancária para iniciar
minha carreira profissional na advocacia. Não faltaram convites de grandes escritórios,
para eu trabalhar. Mas, sempre tive a convicção de que poderia ser dono dos rumos da
minha carreira e do meu próprio negócio. Nesse pensamento e prática, fui conquistando
minha autonomia profissional.
Durante toda a minha trajetória profissional, além dos processos do meu escritório
de advocacia, atuei em muitos casos judiciais na defesa dos direitos humanos e,
especificamente, contra a violência racial e doméstica. Assessorei, na condição de
advogado, uma série de associações de moradores, entidades culturais e do movimento
social negro. Contribui na elaboração de políticas públicas que incidiram diretamente na
vida das pessoas, v.g., a criminalização do racismo no Brasil. Tudo isso como forma de
contribuição às lutas pela liberdade, igualdade e fraternidade. Sem nenhum tipo de
assistencialismo ou clientelismo. Mas, sim, com puro compromisso social.
Sobre a questão da criminalização do racismo no Brasil, dedico esse parágrafo ao
amigo e político Senador Paulo Renato Paim, que, com sua generosidade, demandou e se
comprometeu a apresentar projeto de criminalização do racismo. Sendo, que, me coube a
articulação e criação de um grupo de advogados negros, para confecção do projeto de Lei
que, com suporte da militância negra, foi possível materializar, o qual foi apresentado e
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aprovado na Câmara Federal. Esse momento foi histórico, devido à sua relevância no
mundo jurídico.
Na minha trajetória jurídica e de compromisso social, também nunca deixei de abrir
espaços em meu escritório aos advogados negros. Digo isso, porque, por aqueles que lá
passaram consegui cultivar profundo respeito, amizade e agradecimento. Entre estes,
destaco aqui, in memorian, o grande colega e advogado, que estagiou no escritório,
OSVALDO FEREIRA DOS REIS, que empresta seu nome à homenagem que, eu, e vários
outros advogados negros receberam, através da Comissão Especial da Igualdade Racial da
Ordem dos Advogados do Brasil- Seccional do Rio Grande do Sul. Não poderia deixar de
destacar, também, a pessoa do advogado e grande amigo Artêmio Prado da Silva, vice-
presidente dessa seleta Comissão Especial da Igualdade Racial da OAB/RS, com quem tive
a honra de contar com a colaboração no escritório. São tantos colegas, que peço vênia por
não tê-los citado.
Posso, ainda, afirmar que a linha de atuação jurídica que escolhi, representa a chave
para compreender o funcionamento de uma sociedade de classes e racista como é a
brasileira. Ao mesmo tempo, tenho certeza de pertencer a uma geração – como àquelas
que me antecederam - que abriu muitos caminhos, para que as novas gerações pudessem
colher os frutos de uma série de políticas públicas, que infelizmente começam a sofrer
retrocessos.
Por derradeiro, todos os resultados da minha trajetória profissional, na área do
direito, que passa pelo escritório particular e, instituições públicas que tive a honra de
atuar, me ensinaram que a meritocracia é uma falácia. E, que tudo que nos propomos a
realizar depende das oportunidades, apoio, solidariedade e espírito de equipe. E, que, os
problemas da desigualdade racial não serão resolvidos fora da política e, nem pela mão
generosa de quem concentra os privilégios nesta mesma sociedade de classes. Isso serve
também ao conjunto da sociedade.
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Luiz Alves
Data de nascimento: 01/09/1949 Filho de: Marina Alves e Luiz
Gomes. Natural de: Bagé/RS
vamos achar teu pai “ partimos em direção a cidade (a pé). Após muito caminhar sob um
sol escaldante, chegamos em um bar, onde meu pai estava tomando um copo de leite com
bolinho, com outros amigos e mulheres, todos sentados em torno de uma mesa.
Houve um terrível bate-boca, minha mãe se atracou em meu pai, virou a mesa,
deixou ele quase sem roupas e voltamos para casa.
Chegando em casa pegou minhas poucas roupas, fez uma trouxinha, pegou-me pela
mão e levou-me para uma chácara, onde residia uma família de sabatistas, cuja filha queria
ser minha madrinha.
Pediu para me deixar ali por uns dias, até ela arrumar uma casa para residir. Fiquei
ali 4 anos, não era maltratado, mas comia o que sobrava e usava roupas deixada pelos
outros.
Por duas vezes, meu pai foi até o local e pediu para me levar a passear com ele; nas
duas vezes se emborrachou e esqueceu de mim nas ruas da cidade.
Quando completei 8 anos, minha mãe foi até a chácara, agradeceu e disse que havia
alugado uma casa e que eu retornaria a morar com ela. Era um chalé muito velho, sendo
que a cozinha não tinha portas, mas para mim era um castelo, pois ali eu iria morar com a
minha rainha (mãe).
Minha mãe estava solteira, trabalhava pela manhã como cozinheira, pela tarde
alguns dias fazia faxinas, em outras lavados de roupas de família e muitos lavados de roupas
de militares, sendo que passava e engomava as fardas pela noite, até alta madrugada. (com
ferro de brasa)
Estava com 8 anos de idade, quando minha mãe que só sabia escrever o nome,
começou meu processo de alfabetização, comprando uma cartilha de segunda mão.
Quando aprendi o alfabeto, passou a economizar mais e talvez trabalhar mais para
pagar uma professora particular para mim.
Minha irmã mais velha, foi morar com uma família de condições econômica melhor
e nunca mais voltou.
Passei a ser o responsável pela casa, limpando, fazendo comida e cuidando de uma
irmã mais nova.
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Com 10 anos, quando não estava fazendo as obrigações de casa e nem na escola,
andava pela rua vendendo de balaio, pastéis, verduras ou frutas, para auxiliar na despesa
da casa.
Tinha 10 anos, quando minha mãe conheceu uma pessoa que viria a ser meu
padrasto e o pai que eu não tive. Ele se chamava Benedito Madruga Farias, pessoa humilde,
mas com uma fortuna em retidão, honestidade e educação, incutiu em mim, todos os
princípios de civilidade que um ser humano deve ter.
No início do relacionamento dele com minha mãe, ele trabalhava como pintor de
casas. Mas em pouco tempo, arranjou uma vaga na Viação Férrea, onde iniciou a atividade
de artífice de linha. (tuco)
A vida melhorou um pouco, mas minha mãe continuava trabalhando muito.
Aos 13 anos, deixei de vender verdura, engraxar ou entregar jornal, fui trabalhar em
um armazém, para realizar limpeza e entregar mercadorias, depois, fui trabalhar em uma
lavanderia de roupas e posteriormente em uma carpintaria.
Quando tinha 14 anos, fomos residir em um núcleo ferroviário, em uma casa de
madeira, porém, com aspecto de casa, tinha luz elétrica e até banheiro, o que era um luxo.
Com 16 anos fui trabalhar em um escritório de contabilidade, primeiro, para
recolher as notas fiscais emitidas diariamente nos armazéns, posteriormente, aprendi a
fazer lançamentos e escrituração. Nesta atividade, privei diariamente, com um advogado e
dois contadores, sem contar os clientes do escritório. O contato com essas pessoas foi de
grande valia para minha formação.
Neste escritório, laborei até ir para o exército, sempre estudando a noite.
Incorporei no exército em janeiro de 1969 e pedi exclusão em dezembro do mesmo
ano. Com 4 meses de quartel, fui aprovado em 1º lugar no curso de cabo, promoveram
pessoas que ficaram com a segunda e terceira colocação, para mim não tinha vaga.
Mesmo sem ser promovido a cabo, ingressei no curso de sargento, sendo aprovado
em 3º lugar; as promessas de promoção continuavam.
Ao final do ano de 1969, o comandante insistiu para que eu engajasse como soldado
a espera de uma vaga, estava desgostoso com a situação e não concordei, embora a pouca
idade, sentia que minha cor tinha impedido minha ascensão na carreira militar.
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Naquela época (1969) filho ou enteado de ferroviário, tinha vaga garantida na Rede
Ferroviária, fui admitido na rede como artífice de comunicações, onde trabalhei por um
ano. Em 1971, fiz concurso para Maquinista, fui aprovado com louvor, sendo um dos
maquinistas mais jovem da Rede Ferroviária (21 anos).
Casei e logo veio a primeira filha. Quando fui para o exército, faltava um ano para
concluir o ginásio; muito embora minha mãe não soubesse ler, conseguiu incutir em mim
o gosto pela leitura, assim, embora não estivesse frequentando escola, nunca estava
afastado dos livros.
Quando veio o segundo filho, 6 anos após a primeira, resolvi que era hora de voltar
a estudar, havia ameaças de privatização da Rede Ferroviária, eu entendia que Maquinista
não era profissão e que necessitava alçar outros voos, até mesmo para dar um futuro
melhor para os filhos.
Foi necessário fazer Supletivo. Em 1981, prestei vestibular para o Curso de Direito,
como maquinista, cursava a faculdade de modo infrequente, sempre carregando a bolsa
com os livros, sendo que por inúmeras vezes, descia da locomotiva e partia para a
faculdade com a roupa de trabalho.
Faculdade particular (paga) esposa sem trabalho fora do lar, dois filhos em escola
privada, foram momentos de muita dificuldade econômica.
Passei a desenvolver atividades junto a um incipiente movimento sindical
ferroviário, que resultou em perseguição dos chefes imediatos.
No início do 4º ano de Direito, inscrevi-me na Ordem dos Advogados na condição
de Estagiário (carteira verde).
Chefes mais próximos, quase todos semianalfabetos, entendiam que eu não
poderia ser maquinista e cursar direito, apregoavam que meu curso não teria utilidade na
empresa. Quando perceberam que eu não desistiria do curso, fizeram uma proposta de
transferência, que eu poderia escolher a cidade, desde que não tivesse faculdade. Sem
outra escolha e com o amor próprio ferido, pedi demissão da empresa.
Com o dinheiro da rescisão, coloquei em nossa casa uma mercearia, que seria para
a esposa atender, estava disposto a iniciar a carreira de advogado.
A mercearia não se manteve por um ano, se fez necessário sobreviver de outra
forma.
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Como estagiário, fui convidado pelo saudoso Dr. Davi Pegas, para estagiar
em seu escritório. Não havia salário, recebia um percentual das ações que
canalizasse para o escritório.
Formei-me em junho de 1986, na forma retratada nos versos da música Pequeno
Burguês do Martinho da Vila:
“Mas da minha formatura, não cheguei participar Faltou dinheiro pra beca e
também pro meu anel Nem o diretor careca entregou o meu papel”
Advoguei por muitos anos, com a carteira de estagiário, visto faltar dinheiro para
pagar a inscrição definitiva.
No ano de 1984, após sair da Rede Ferroviária, reiniciei a militância política que
tivera na Juventude do MDB, só que agora nas fileiras do PDT e atuando fortemente no
Movimento Negro.
No ano de 1986, o PDT assumiu a Prefeitura de Bagé, fui convidado para ocupar um
cargo de confiança (CC) na Secretaria de Desenvolvimento e posteriormente, fui
requisitado para a Procuradoria Jurídica do Município.
No mesmo ano, montei escritório próprio em sociedade com a Dra. Zaida Alice, que
era funcionária da Prefeitura.
Na segunda administração do PDT (ano de 1992) desempenhei atividades na
Procuradoria Jurídica e posteriormente, no Gabinete do Prefeito.
Em 1996, veio a separação, formatura da filha mais velha em direito. Nova vida com
a atual companheira, pessoa ligada a área de educação (orientadora pedagógica) militante
política e sindicalista.
No ano de 2001, os Partidos dos Trabalhadores, juntamente com o PDT, assumem
a Prefeitura de Bagé. Durante a campanha eleitoral, elaborei projetos direcionados à área
do turismo. Por serem inovadores, fui convidado para exercer a atividade de Coordenador
de Turismo. Cargo que exerci por 2 anos e posteriormente, fui convidado a exercer a o
cargo de Assessor Direto do Prefeito Mainardi.
No ano de 2006, fui convidado para lecionar Direito, na Escola Técnica GETECO,
onde fiquei por mais de três anos.
Nos últimos anos, por duas legislaturas, ocupei o cargo de Procurador Jurídico da
Câmara de Vereadores do Município de Hulha Negra.
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Por volta do ano de 2.003, passei a fazer parte do Conselho da Subseção de Bagé,
estando Conselheiro, há mais de 15 anos.
Representação da trajetória:
Com as devidas vênias, aos organizadores da obra, mas pedir para um profissional
fazer uma análise representativa de sua trajetória profissional, é como pedir para o
carancho falar sobre o seu ninho; na verdade é muito difícil para o ser humano falar de
forma subjetiva, de maneira isenta e sem supervalorizar seus feitos.
Reiterando, eu tenho origem em uma família negra muito pobre, segundo minha
mãe, quando nasci não tinha uma fralda, saíram comigo da Sta. Casa de Caridade, enrolado
em uma camisa do meu pai.
Filho de pai e mãe semianalfabetos, cujos parentes mais próximos também eram
semianalfabetos ou analfabetos.
Não conheci nenhum parente que tivesse completado o ginásio, portanto, eu sou o
primeiro de três famílias (pai, mãe e padrasto) que logrou concluir um Curso Superior e
mais, em advocacia.
No que pese a minha mãe incentivar a leitura, cobrar estudos, com o argumento
que sem estudos uma pessoa não seria nada, nem em seus maiores devaneios imaginou
ter um filho (a) advogado (a).
Tanto é verdade, que em minha adolescência, matriculava-me em todos os cursos
profissionalizantes que surgiam. E sempre que se proporcionava, ou passava comigo pela
frente de alguma oficina cujo proprietário estava bem estabelecido, mostrava como
exemplo.
Costumo dizer que não enriqueci como advogado, porém, logrei com o trabalho de
advogado, constituir uma família, adquirir casa, veículo, escritório próprio e o mais
importante, ver dois filhos com Curso Superior e ambos no Direito. Sinto orgulho da
profissão, para mim, a posse de uma carteira vermelha da OAB, é motivo de muito orgulho
e responsabilidade. Formatura em um Curso Superior e inscrição na Ordem dos Advogados,
são para mim os louros de uma batalha.
Mas a o sentimento de ter vencido a guerra, se concretiza, quando alguém chega
no escritório procurando a Dra. Patrícia Alves. Ali eu vejo a coragem, a força de vontade e
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a dedicação de três gerações dos Alves, que não se entregaram para as condições adversas,
que está sociedade ingrata e hipócrita coloca no caminho do povo negro deste País.
Nessa trajetória profissional, não sou um desbravador, visto que outros negros me
antecederam e por certo enfrentaram mais dificuldades que eu; mas me considero um
caminhante nesta luta, um aplainador de caminho para os que virão.
Assim entendo que a trajetória de advogado negro, para mim, foi de muita luta,
muitas conquistas e muito sentimento de gratidão para com todos aqueles de uma forma
ou outra, me ampararam ou até me carregaram nos momentos de fraqueza.
Eu costumo dizer em roda de amigos ou até mesmo em palestras, que a história de
vida do negro brasileiro, segue sempre o mesmo script, devido a hipocrisia da Lei Áurea,
depois de quase 4 século de serviços prestados na construção deste imenso País, aquele
povo, que adubou o crescimento deste gigante, com seu sangue e sua carne, ter que iniciar
sua vida, do zero, enquanto o imigrante europeu que aportou aqui quando já estava quase
tudo feito pela mão de obra dos escravizados, recebeu terras, ferramentas e dinheiro, já
o povo negro recebeu apenas a estrada pra trilhar sem calçado e só com a roupa do corpo.
Existe uma máxima maldosa que diz: “ negro não gosta de negro” Pode até que
exista algum sentimento de inveja, daqueles negros que ainda não chegaram lá, o que é
normal no ser humano independente da raça. Mas via de regra, a comunidade negra, sente
orgulho, de ver um negro (a) galgar postos pretensamente destinados aos não
afrodescendentes. No meu caso, eu percebo, que a comunidade negra de Bagé e até de
outros municípios, onde atuo no Tribunal do Júri, demonstram orgulho de pertencerem a
raça deste profissional.
Quanto a sociedade, esta é constituída de pessoas de várias raças, a hipocrisia
brasileira com relação aos afrodescendentes, apregoa que não existe racismo e nem
preconceito de cor. Mas mesmo que o cidadão não reconheça, ele traz introjetado em seu
subconsciente o conceito que o trabalho de um profissional negro, está sempre aquém do
trabalho apresentado por um profissional branco.
Na cidade de Bagé, tivemos um grande advogado, tribuno emérito, o Dr. Catalino
Brasil Machado, que do alto dos seus 50 anos de profissão, declarava que sofria
preconceito de possíveis clientes; que só chegavam nele, quando a causa já estava quase
perdida.
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Nos meus 36 anos de profissão, no que pese ter clientes de várias etnias, como
caucasianos, japoneses, libaneses e até ciganos, continuo na mesma senda do Dr. Catalino.
Ou seja, ações grandes ou de empresas de médio porte quando chegam ao escritório, já
vem de segunda mão.
Na realidade, a sociedade atual, ainda não está preparada para ver o profissional
negro em pé de igualdade com o profissional não afrodescendente.
Futuro da advocacia para o profissional negro.
A advocacia é uma profissão madrasta, quando se está longe dela, ela acena com
benesses, quando se passa a conviver com ela, vêm os maus tratos.
É uma profissão que se vive de aparência, os membros do judiciário juiz (a)
promotor (a) defensor (a)) tem bons salário (e fixos).
Pela solenidade e liturgia dos atos que praticam em suas atividades, se apresentam
sempre bem vestidos.
Por consequência, essas pessoas e até mesmo os clientes, esperam que o advogado
se apresente bem vestido e com bons hábitos de higiene.
Como disse alhures, o script dos afro-brasileiros, é o mesmo para todos, origem
humilde, família impossibilitada de lhe garantir os primeiros anos de profissão e via de
regra, reiniciaram os estudos, após constituírem família.
A classe social que esse profissional do direito transita, não lhe trará grandes causas;
por outro lado, a mesma estratificação social, não lhe permite interagir (ter amizades) com
grandes empreendedores que via de regra, contratam grandes escritórios, administrados
por advogados que tem origem em famílias abastadas.
Em suma, o profissional negro, mesmo que já tenha um primeiro degrau para
colocar o pé, como escritório de familiares, vai sempre ter que matar um leão por dia.
Mas tal situação fática, não é motivo para desanimo, devemos lembrar que a
colonização do Brasil, iniciou há 520 anos, que a libertação do povo escravizado, deu- se
há 132 anos.
Que muito embora a Educação Pública no Brasil tenha iniciado no ano de 1.772,
através das Aulas Régias, aos escravos era proibida a educação. No que pese ter
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transcorrido 132 anos da Lei Áurea, até a década de quarenta, metade da população
brasileira não sabia ler e os negros, em sua maioria, eram analfabetos.
Hoje, já temos algumas famílias negras, que já estão na terceira ou quarta geração
de esclarecidos, e com muito esforço, vêm conseguindo proporcionar um curso superior
aos filhos.
Como todas as profissões, a advocacia não deixa de sofrer a influência do pontapé
inicial, assim, o (a) jovem advogado (a) que já tiver onde se estabelecer após a inscrição na
Ordem dos Advogados, tem mais chance de ter sucesso na profissão.
Mas respeitando as demais opiniões, embora seja um apaixonado pela advocacia,
entendo que os negros hoje estudantes de direito, devem fazer um esforço maior e se
prepararem para exercerem atividades no MP, Defensoria e principalmente, na
Magistratura.
Pois é vendo uma “cara preta” ocupando um cargo de Juiz, que muitos jovens
negros (a) poderão dizer yes we can “ sim, nós podemos”.
É através do bom exemplo, que poderemos incentivar os jovens negros a estudarem
e serem bons e honestos profissionais.
Vivemos templos nublados, os dirigentes maiores deste País, se arvoraram no
direito de soltarem seus demônios, nunca o preconceito foi tão difundido em nossa pátria.
Existe um entendimento, que agressões raciais, são delitos de menor poder
ofensivo, tanto que em nossa cidade em ação que patrocinamos, por preconceito racial
contra um senegalês, o inquérito após recebido, dormiu quase um ano em carga com o MP.
Quando procurei falar com a MD. Promotora, para saber o que trancava o processo,
fui informado por sua assessora, que a mesma dissera que “ haviam processos mais
importantes “ para serem tratados.
Por tudo que foi dito, não é de se esperar um futuro para advogados (a) negras na
advocacia brasileira. Nós temos que fazer esse futuro, temos que mostrar para os nossos
filhos que o futuro da nossa raça, depende da educação, sob pena de ser dizimada pela
miséria, doenças, sentimento de impotência e pelo banzo moderno (depressão e
alcoolismo).
Bagé, maio de 2020. Luiz Alves.
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Ser referência é uma responsabilidade tão grande que chega a dar medo.
Nós podemos querer tudo: o que é bom; o que é ruim. Mas o que é bom para mim,
será realmente para o outro? O que é ruim para mim, será realmente para o outro?
Há questionamentos que te fazem pensar. Esse é um deles: o que representa o
reconhecimento de minha trajetória como advogada negra, para a comunidade e para a
sociedade?
Como a maioria das pessoas negras, venho de uma comunidade carente. Acredito,
até, que tenha sido a primeira bacharel em direito da região onde moro: Restinga, em Porto
Alegre.
Hoje a situação está bastante diferenciada: muitos advogados, dentistas, clínicas
médicas...aparentemente não está fácil para ninguém.
Mas a resposta permanece sendo uma incógnita. Via as pessoas me olharem com
certo espanto, admiração, algumas com certa ironia, como àquela em que vindo da
faculdade, Tinga apertado, mais de meia-noite. No tempo em que se levava livros sobre
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livros (a maioria por empréstimo da biblioteca da OAB), para faculdade. Eis que um vizinho,
ao perguntar de onde eu vinha àquela hora, respondi-lhe que da Faculdade, de São
Leopoldo. Perguntada, respondi que fazia Direito na Unisinos. Como resposta, obtive que
ele também frequentava a UFRGS. – Que barato! Poxa, que legal. Eu tentei, mas não
consegui. Respondi-lhe. – E qual faculdade? – Administração. Passados alguns meses, por
acaso, descubro que o mesmo vizinho sequer havia completado o 2º grau. Ora bolas, essa
neguinha da Restinga fazendo faculdade de Direito!
Então percebi que as primeiras pessoas que deveriam acreditar que isto era
possível, estavam dentro da minha própria comunidade e inseridas na minha família. E isto
aconteceu somente quando me formei.
Já no ambiente de trabalho, colegas brancos, quando da formatura, ouvia a famosa
frase: “Ah, mas se a Maria do Carmo conseguiu, eu também consigo”. Este sempre foi um
reconhecimento meio mórbido para mim. A equivocada subestimação da mulher negra.
Mas as glórias chegaram. Foi através da minha formação que consegui convite para
ser Assessora Jurídica da FASC e, provando minha capacidade jurídica, ser convidada, a
fazer parte do Juizado Especial Civil (na época Juizado de Pequenas Causas), da Restinga
como conciliadora e, posteriormente, Juíza Leiga. Foram mais ou menos 08 anos de grande
aprendizagem!
Foi muito agradável ouvir o breve comentário do Secretário do Juizado, de que
meus Pareceres eram os que menos sofriam recursos aos Tribunais. Vitória!
Foi agradável ver alguns vizinhos, nas audiências, se espantarem com a nova Juíza
Leiga e, posteriormente, os verem frequentando faculdades seja de direito, letras,
assistente social, etc.
Foi agradável verificar que, no local onde moro, estudei, trabalhei e me formei, servi
de espelho para outras pessoas, principalmente mulheres negras as quais, até hoje,
percebo respeito e muita consideração.
Como? Um esforço enorme de minha mãe, Gladis, que não mediu esforços para que
eu enfrentasse esse mundo embranquecido e racista. Uma mulher adiante do seu tempo.
Politizada, participou dos movimentos políticos de 1964, alçando, tempos depois, o direito
a ser funcionária pública, no cargo de Merendeira Escolar.
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A ti, mamãe, todo o respeito, amor e saudades desta tua filha, que empurravas para
frente, mesmo no caminho da indecisão.
Hoje tudo se tornou um pouco mais fácil e tento passar para os meus filhos e netos,
que não existe nada maior que a formação educacional, que graças a Deus, eles vêm
conquistando. A luta nunca acaba e devemos elevar, mostrar, compartilhar e trocar nossas
capacidades intelectuais.
Evidente que houve agruras desmedidas, conotações racistas, na faculdade, de
partes e advogados que se surpreendiam com uma Juíza Leiga negra, mas sempre me
detive no proveito que poderia tirar desses momentos. O espaço era meu e, portanto,
deveria e foi conduzido por mim. Temos que reconhecer e valorizar o potencial que existe
dentro de cada um de nós.
Quanto ao futuro, espero que nós advogados negros e negras, deixemos de ser
competitivos entre si, mas que consigamos formar diversas grandes bancas de advogados,
focados e combativos em temas de extrema relevância: meio ambiente, bancário, político,
Mercosul e afins, com renovado conhecimento em áreas tão embranquecidas.
Não sei se consegui responder ao questionamento acima, mas de uma coisa tenho
certeza: Não se pode relembrar um passado racista somente para justificar o presente, e
sim, para transformar o futuro. Temos tudo para, agora, transformar.
A emoção da formatura.
64
audiências, sobretudo quando se trata de processos de natureza penal. Fatos que validam
a afirmação de que a desigualdade racial é gritante também na advocacia.
Somando a isso a variável de gênero o problema se potencializa. Ser mulher, preta,
advogada é ser questionada permanentemente acerca da sua condição e competência para
exercer a profissão. O que promove muitas vezes a necessidade de omitir a própria essência
e personalidade, adequando sua aparência e indumentária ao padrão socialmente
aceitável, qual seja ou mais próximo possível das advogadas não pretas.
Da irresignação em relação a invisibilidade que nos era imposta surgiu a Comissão
Especial da Igualdade Racial – CEIR, que concedeu reconhecimento à advocacia preta
através da promoção de estudos e debates acerca das temáticas raciais. Um espaço de fala
para aqueles que outrora foram silenciados pelo preconceito.
Sou Mauren Lisiane Acosta Amaral, mulher, preta, mãe e advogada militante na
Comarca de Rio Grande/RS. Atuo principalmente nas áreas cível e previdenciária desde o
ano de 2006. Desde fevereiro de 2019 “estou” Presidente da Comissão Especial de
Igualdade Racial da Subseção de Rio Grande/RS, e desde fevereiro de 2020, Secretária
geral-adjunta da referida Subseção.
O ano de 2019 foi um divisor de águas sob o ponto de vista profissional. Fui
apresentada ao trabalho de Ordem, como Conselheira Subseccional, e em seguida à
presidência da CEIR na minha cidade. A Comissão Especial da Igualdade Racial promoveu
atividades que repercutiram de forma bastante positiva na comunidade tendo sido
acolhida pelo Movimento Negro local. Com relação ao meio jurídico a promoção de
palestras e eventos voltados para a temática racial fomentaram debates sobre as relações
socioculturais/econômicas, como também, mobilidade social que antes não eram
abordados pela comunidade jurídica.
Pessoalmente, considero a CEIR é um encontro com a minha identidade. Pela
aproximação com outros pretos (as), colegas de profissão, que partilham dos mesmos
anseios e busca por meios de minimizar as desigualdades raciais. Podemos considerar a
CEIR um sistema de empoderamento. Nas palavras de Joice Berth:
Empoderamento como teoria está estritamente ligado ao trabalho social
de desenvolvimento estratégico e recuperação consciente das
potencialidades de indivíduos vitimados pelos sistemas de opressão, e
visa principalmente a libertação social de todo um grupo, a partir de um
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REFERÊNCIAS
BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
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depois entendi que o era porque doía falar, era uma ferida aberta, que sangrava. Na
sociedade não havia remédio nem sutura para nossa dor, ao contrário, a desigualdade foi
naturalizada. Na escola, era uma história contada a partir da ótica colonizadora, nos
reduzindo, nos envergonhando. Na universidade fazia parte da chamada minoria e me
sentia estranha, por mais que desejasse ali estar.
A questão racial não era pauta nas discussões no meu meio formal acadêmico, o
era em grupos distintos, fora de lá. Era preciso desconstruir muita coisa, me fortalecer,
levar em conta o esforço e história da minha ancestralidade. Fui crescendo junto com a
injustiça social.
O pensamento elitista dominante construiu o senso de que éramos inferiores em
todos os aspectos e que a nossa condição de miseráveis era de nossa absoluta
responsabilidade.
A contribuição histórica negra foi renegada, nossa cultura desprezada. Este cenário
corrosivo e cruel contribuiu e acabou por gerar-me muita insegurança. O mercado de
trabalho esperava e espera um sujeito completo. Como ser este sujeito, nesta sociedade?
Nos anos 80, por sorte, o país borbulhava pela redemocratização, emergindo os
movimentos sociais e entre eles o Movimento Negro, o grande responsável pelo
protagonismo negro na luta. Participei dentro dos meus limites e passei a ter a certeza de
que o coletivo, que os movimentos organizados fazem a diferença.
Já certa de que a luta deveria ser constante, escolhi como tema para meu Trabalho
de Conclusão de Curso - TCC: “A Discriminação Racial à Luz do Direito Brasileiro”. Fui
persuadida por diversos professores para “trocar” o tema; para escolher um que fosse
rentável no futuro; ou que não gerasse tanta polêmica. A lógica continuou a ser perversa,
mas persisti. O tempo era analógico e pouco ou quase nada havia de produção acadêmica
sobre o tema, assim como literatura. A prática de racismo era tipificada como contravenção
penal e já havia uma movimentação na sociedade civil, por força do movimento negro, para
que passasse a ser crime. Esta foi a linha do meu TCC. Formei-me em 1987 e em 1988, com
a Constituição Federal, as práticas de racismo passaram a ser crime. Uma vitória!! Antes
de ser uma advogada negra, eu era uma mulher negra, oriunda de uma família de iletrados
trabalhadores braçais, de onde herdei a resiliência das velhas feridas, dignidade e desejo
de mudança.
70
ENSAIOS
minha cor, da minha etnia. Eu costumo dizer que o racismo é uma “guerra” que toda a
pessoa negra mais cedo ou mais tarde, precisará enfrentar, e eu fui preparada muito cedo
para ela.
O fato de ter escutado desde muito pequena, que eu não era melhor que ninguém,
mas que minha cor de pele não me tornava inferior ou menos capaz, com certeza contribuiu
muito para me tornar a mulher que sou hoje, alguém que tem muito orgulho da sua origem.
Este mesmo ensinamento passei a minha filha Emilli, que ainda muito pequena já era
ensinada a ter orgulho da sua cor, seus traços, sua história. E acredito que assim como meus
pais, também tive sucesso neste ensinamento, já que hoje ela é uma adolescente que se
orgulha da sua raça e não admite nenhum tipo de preconceito ou discriminação.
Comecei a trabalhar aos 12 anos de idade juntamente com meu pai, após o mesmo
com muito sacrifício, ter concluído o curso de Direito.
Meu contato com a rotina jurídica começou relativamente cedo, no início
acompanhava meu pai nas idas ao Fórum e Justiça do Trabalho, achando tudo encantador.
Aos 15 anos já sabia que queria ser advogada. Ingressei no curso superior de Direito
aos 18 anos no ano de 1994, tão logo conclui o ensino, médio na Universidade da Região da
Campanha (Urcamp).
Considerando o fato de que a maioria das pessoas negras ingressam em um curso
superior mais tarde, posso considerar que fui privilegiada, privilégio esse que tive graças ao
esforço dos meus pais.
Trabalhei durante toda a minha faculdade, um período no escritório junto ao meu
pai, após fui trabalhar em um escritório de compra e venda de Ações e também trabalhei
como bolsista em uma creche que mantinha convênio com a Universidade, horas
trabalhadas eram abatidas na mensalidade, eram tempos difíceis financeiramente.
Conclui meu curso superior em 1998, mesmo trabalhando estudava muito, pois sabia
que as minhas notas, o meu rendimento seria a resposta para aqueles olhares que
transmitiam a mensagem de que ali não era o lugar de uma mulher pobre e negra. E sempre
tive as melhores notas da sala, conclui todo o curso sem ter realizado nenhum exame. Era a
minha forma de dizer: Esse lugar me pertence sim!
73
Por diversas vezes fui a única negra na turma, durante todo o curso, o máximo que
chegamos foram três alunos negros, isso somando os turnos manhã e noite, que totalizavam
mais de setenta alunos.
Eu já estava acostumada em ser a "única" em alguns lugares, pelo fato de ter
estudado em escola particular, da pré-escola até o sexto ano, metade da minha trajetória
escolar, por diversas vezes era a única aluna negra em sala de aula.
Apesar de ter sido ensinada a exigir respeito e não me calar diante das
discriminações, ser a única nos espaços cansava… por vezes entristecia.
Minha trajetória na advocacia: Me formei no ano de 1998 nessa época eu já estava
trabalhando novamente no escritório, apesar de ter todo o suporte e amparo do meu pai ,
o que sem sombra de dúvidas me ajudou muito ,pois como sempre digo ele já havia aberto
grande parte do caminho, era o meu início realmente como advogada, e para uma mulher
negra com 23 anos, ingressar em uma profissão que há vinte anos atrás ainda era
predominantemente masculina e branca, não foi uma tarefa fácil , mas eu estava disposta
a enfrentar, e Deus me permitiu ter alguém ao meu lado , que foi e ainda é o meu espelho,
quem eu sei que eu posso sempre contar.
Sempre que falo em racismo, as pessoas me perguntam se eu sofri alguma
discriminação no exercício da profissão, sim sofri, mas ela nunca foi de forma explícita e sim
velada, por exemplo através da pergunta, mas é advogada mesmo? Ou então nos olhares
surpresos quando procuram a Dra. Patrícia e se deparam com uma mulher Negra, alguns
anos atrás essa surpresa era justificada (tentavam justificar!) Pela pouca idade, quando na
verdade eu sabia que não era a idade que surpreendia, mas o fato de ser uma advogada
Negra.
Mas a cada olhar, a cada “prejulgamento”, cada vez que a minha capacidade era
colocada à prova, mais eu percebia que deveria lutar por aquele espaço, para que as pessoas
entendessem que ele nos pertencia também.
Essa foi uma das razões que sempre estive de uma forma ou outra ligada a
movimentos e projetos de luta pela igualdade de espaços e oportunidades. Em novembro
de 2016 demos início ao projeto para criação da Coordenadoria Municipal de Igualdade
Racial, após cinco meses de muita luta, em abril de 2017 o projeto foi aprovado sendo então
instituída Coordenadoria Municipal.
74
Sou advogada a uma década, ingressei nos quadros da OAB/RS em março de 2010,
sempre trabalhei com direito previdenciário e alguma atuação no direito do trabalho,
também fui advogada correspondente por alguns anos nas comarcas da Região
metropolitana, atuando nos Juizados Especiais.
Não tive um início de carreira fácil, até porque conseguir estágio em grandes
escritórios não missão quase impossível l, morava em Guaíba, era negra, casada e tinha um
filho com menos de 03 anos de idade e me formei com 30 anos, fora dos padrões desejados.
Como sempre gostei muito do direito social, trabalhei por um bom tempo
produzindo as peças cuidando do processo e indo as agências do INSS, para a realização
dos procedimentos administrativos, recebendo muito a quem do valor cobrado pelo
proprietário do escritório, realizava a instrução dos colegas para as audiências em matéria
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Afinal tinha certo receio de não conseguir andar sozinha, até que meu filho adoeceu
e fui demitida, foi ai que um escritório estava recrutando advogados recém- formados me
contatou, pois havia largado currículo para todo o lado, a proposta que me fizeram não era
a que eu esperava só estavam querendo realizar uma parceria pois a minha localização
geográfica era interessante e sabiam que não tinha experiência, aceitei realizava diligências
e audiências por R$25,00 a R$30,00, nenhuma atuação jurídica, apenas mecânica, mas foi
onde vi a possibilidade de começar advogar por conta própria na área previdenciária, pois
as correspondências me garantiam um fixo que não podia abrir mão, sou casada e nessa
fase meu marido trabalhava como metalúrgico chão de fábrica e o meu dinheiro mesmo
pouco ajudava muito no orçamento familiar.
Mas o que eu sempre almejei foi ter o meu próprio escritório , mas dinheiro faltava
e muito para isso, então resolvi bater na porta de um antigo advogado de Guaíba, cidade
que residia na época e fiz a proposta de cedência de um espaço de seu escritório para
atendimento de meus clientes na área previdenciária em troca da metade dos honorários
auferidos ele aceitou e foi onde realmente me senti advogando em mais ou menos dois
juntei capital e aluguei a minha primeira sala, o orgulho que senti quando entrei a primeira
vez no meu escritório foi indescritível, havia chegado no objetivo levei uns 05 anos após a
inscrição de quadros da Ordem para conseguir ter cartela de clientes e escritório próprio.
Mas em 2013 meu esposo foi aprovado em concurso público e sua vaga era para a
cidade de Uruguaiana, município que resido até hoje. Confesso que a notícia dele ter
conseguido conquistar seu cargo público me gerou um misto de felicidade e frustração,
pois teria que novamente abrir o caminho para advogar em outra cidade me fazer conhecer
captar clientes e fazê-los acreditar no meu trabalho.
Foi então vi o edital para o processo seletivo de Juiz Leigo para Comarca de
Uruguaiana, fui classificada, mas para assumir não foi assim tive que bater todos os dias na
79
vara para saber quando assumiria e ninguém me passava as informações corretas, assumi
na insistência atuei por 08 meses, mas não era ali que queria atuar, sentia muita falta de
exercer a advocacia.
Durante o tempo que atuei como juíza leiga, conheci o trabalho voluntário de apoio
as vítimas de violência doméstica, abracei a causa e lá trabalhei como advogada voluntária
, o que me trouxe satisfação pessoal em ajudar outras mulheres as auxiliando nesse
momento tão delicado e nesses atendimentos elas traziam outras demandas, pois me
diziam: Dessas falas vi que de maneira simples elas me diziam que a representatividade
importa e faz diferença , pois infelizmente a grande maioria das mulheres vítimas de
violência doméstica são negras, desse trabalho conheci o fórum da igualdade racial e o
movimento negro de Uruguaiana, dos quais faço parte atualmente.
Patricia Oliveira
OAB/RS 37.746
Público RS, sendo que o estágio no IPERGS foi determinante tanto na minha monografia,
como na vida profissional.
Na graduação com maestria obtive a nota máxima no trabalho de conclusão, tendo
sido a única aluna da banca de defesa, em que estava submetida, aprovada com distinção.
Em face a minha pesquisa ter sido realizada sobre a Integralidade da Pensão por Morte no
Estado do RS a luz da Constituição Federal de 1988, num lapso temporal muito exíguo meu
trabalho alcançou uma visibilidade grandiosa que consolidou minha carreira como
advogada.
Militante desde o ano de 1995, as realizações iniciais aconteceram devido o apoio
de familiares e de pessoas amigas que tenho maior apreço, respeito e admiração. Porém,
profissionalmente não posso deixar de citar o meu orientador na graduação Dr. Nei Rafael
Lopes, que me apresentou ao jornalista Enir Borges, fundador da Associação de Idosos
“Ardapi” e apresentador do programa na Rádio Caiçara, locais onde participei de
entrevistas e prestei assessoria jurídica. Meu mestre querido e saudoso Dr. José Luzardo
Silveira, que incansavelmente me transmitiu seus valiosos conhecimentos. Ricardo Gaston,
irmão de coração de meu pai, que gentilmente me cedeu parte de seu espaço no escritório.
Concomitantemente com o exercício da advocacia no escritório, em 1999 por conta
de ter sido aprovada no processo seletivo para um contrato temporário, laborarei no cargo
de advogada Especialista I, na procuradoria do INSS, me desligando da função no ano de
2004. A partir do ano de 2005 passei a fazer parte do quadro de Conciliadores no 5º Juizado
Especial Cível, sendo que na sequencia atuei, também, no 3º e 4º Juizado Especial Cível,
todos na Comarca Porto Alegre. Atuando como conciliadora nos Juizados até 2014,
seguidamente fui convidada a atuar como advogada dativa no 3º Juizado Especial Cível,
função que exerço até a presente data. Igualmente, faz parte de minha trajetória
profissional o cargo de conciliadora pelo CEJUSC.
Paralelamente ao exercício da advocacia, realizei especialização em Direito Civil e
Processo Cível pelo IARGS e a Escola da Ajuris RS, entre tantos outros cursos de atualização.
No ano de 2019 fiz parte do corpo de formação do Grupo Afro Juristas RS, no qual
sou coordenadora, e me tornei membro do Grupo de Pesquisa Antirracismo-Escola do
Legislativo-Câmara Municipal de Porto Alegre.
82
ENSAIOS
Renata Santos
OAB/RS 94.201B
Trago essa reflexão para reafirmar o meu propósito. Estava ali não só por mim, mas
por todas aquelas pessoas negras que sonhavam em sentar no banco acadêmico com
dignidade e respeitabilidade. Naquela época, talvez, eu não tenha tido essa clareza, mas
hoje vejo que esse foi o meu papel, enquanto universitária.
Apesar disso, ainda percebo que precisamos evoluir muito, enquanto negros
operadores do direito, pois em 10 anos de formação, sendo que todos eles foram
dispendidos em trabalhos dentro da área jurídica, nunca tive a honra de dividir o mesmo
espaço com uma colega negra, seja na condição de juíza, de advogada, ou mesmo
coordenadora ou diretora jurídica de órgãos ou empresas. Isso me entristece e me causa
temor.
Por isso, ao retomar o meu propósito de infância, consigo perceber que ele é muito
maior do que eu imaginava naquela época. É gigante! E faz muito sentido hoje estar
presente, sentir a representatividade de tantas personalidades negras que alçaram voos
87
altos e representar muitas coisas para meninas negras que estão sendo apresentadas para
uma sociedade impregnada pelo patriarcado e por culturas que minimizam, violentam e
preterem as mulheres, sobretudo as mulheres negras.
O presente trabalho dedico para minha esposa Ângela das Chagas Gomes, meus
filhos, Bruno Menezes da Rosa, Marianne Gomes da Rosa e Rafael Gomes da Rosa.
Meu reconhecimento aos meus colegas, com quem eu tive a honra de conhecer no
período da fase universitária, e depois na labuta profissional, onde compartilharam vitórias
e derrotas, mas, sempre irmanados fraternalmente: Dr. Laércio Carvalho dos Santos e Dr.
Marcelo Fabiano Iorra.
Minha gratidão a este homem que muito me honra com a sua confiança, pelo qual
sinto orgulhoso da sua amizade, em especial ao Dr. Oscar Glusman, Médico sempre
prestativo e presente nos momentos decisivos, em diversos momentos me ouvindo e me
apoiando para que fosse possível a minha realização profissional.
“In memoriam” aos advogados Dr. João Pedro Pacheco Cunha, Zeno Martins
Stenzel, Romildo Bolzan. “In memoriam” ao meu padrinho Armindo Reinaldo Saft e Sr.
Potássio Marques da Rosa, pois foram incentivadores, acolhedores, conselheiros e
compartilharam comigo seus conhecimentos e exemplos, possibilitando a realização do
meu sonho e êxito na carreira jurídica.
89
Adquiri esta resistência através de muita luta, estudo, dedicação e trabalho, sempre
pautando minha conduta profissional como advogado, com ética e honestidade, com senso
de JUSTIÇA, na busca de ser bem-sucedido para os meus clientes.
O êxito e a recompensa do meu trabalho profissional, muito me honra, pois,
represento a continuidade do legado e dos ensinamentos propostos pela minha mãe, Sr.ª.
Ercilia Marques da Rosa, Professora e pioneira no Município de Osório (Em 1933/ 1ª
Professora Negra), que sempre nos orientou a estudar e lutar pela Educação e muito
orgulhosa por estar presente no ato da minha formatura na Unisinos: 1º Advogado Negro
do Município de Maquiné.
Hoje, em sua memória, está representada no Município de Maquiné/RS, através de
seu neto, JULIO CESAR DA ROSA, como Secretário Municipal da Educação de Maquiné/RS.
Acrescento estas fotografias anexas, como referências as minhas origens, andanças
e influência que tiveram na minha formação profissional.
93
6
Disponível em: <https://www.justificando.com/2019/03/25/o-encadeamento-do-racismo-estrutural/> acesso
em 03 de setembro de 2020.
95
escolar no ensino superior resulta em apenas 18,3%, analisando entre jovens negros de 18
a 24 anos de idade7.
Neste ponto cabe enfatizar os avanços legais para equiparar a população negra, a
criação das leis 10.639/03 e 12.711/12 embora tardias, são fundamentais na luta pela
igualdade racial na educação9. Somente seis anos após minha formação técnica ao
conhecer um grupo de curso pré-vestibular popular, que o objetivo de cursar a faculdade
de Direito se tornou uma possibilidade real. Com a subsistência de programas de bolsas e
financiamentos governamentais e dois anos de preparação com estudo intenso, conquistei
minha bolsa de estudos em uma das melhores instituições de ensino privado do Brasil.
7
IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, Rio de Janeiro, 2019. Ed. IBGE. Disponível em:
<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf> acesso em 07 de setembro
de 2020.
8
GONCHOROSKY, Juliana de Souza. A SEGREGAÇÃO RACIAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO. 2016.
Monografia (graduação). Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 2016.
9
LOPES, Maria Auxiliadora. BRAGA, Maria Lúcia de Santana. Acesso e Permanência da População Negra no
Ensino Superior. Ed 01. Brasília. UNESCO/MEC. 2007.
96
O Rio Grande do Sul é nacionalmente conhecido por sua forte sociedade racista, o
estado lidera o número de registros no crime de injuria racial11. A OAB/RS ao apoiar a
criação da Comissão Especial da Igualdade Racial (CEIR), assume papel fundamental na
promoção da igualdade racial. Os jovens advogados negros encontram importante
respaldo através da CEIR, iniciamos nossas carreiras fortalecidos com os debates e
contribuições de experiências na batalha pela inclusão e igualdade racial.
10
CONSULTOR JURÍDICO. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2020-jun-12/negros-sao-somente-
advogados-grandes-escritorios> acesso em 09 de setembro de 2020.
11
O INFORMATIVO. Disponível em:<https://www.informativo.com.br/policia/rs-e-o-estado-brasileiro-com-
mais-casos-de-injuria-racial,322632.jhtml> acesso em 10 de setembro de 2020.
97
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ENSAIOS
Nome da mãe: Eliane Antunes dos Santos, casada com Cristiano Daniel Schuster
Direito Acontecendo 1ª Edição, Editora Novo Livro. Organizadores Norberto Luiz Nardi,
Marília Possenatto Nardi, ano 2014; Palestrante de mesa redonda no curso de História
Universidade de Santa Cruz do Sul-UNISC: “Trajetória do Movimento Negro em Santa Cruz
do Sul: lutas e conquistas”, realizado no III Fórum da Consciência Negra e Semana Acadêmica
de História, 21.11.2019, carga horária 04h; Participação de Diálogo Projeto de Lei Executivo
nº 089/2019 - APROVADO e Agora? Na EMEF Dois Irmãos na cidade de Venâncio Aires-RS.
O negro no Brasil em decorrência do ranço do passado escravocrata, vive uma
discriminação que acaba excluindo o povo negro das mais diversas formas e nos mais
diversos espaços sociais e de poder. Como advogada e pessoa negra que sou e se colocar na
posição profissional de minha escolha, com certeza traz, um pesado fardo do racismo.
Penso que a minha trajetória como negra na advocacia representa tanto o orgulho
de poder atuar em uma profissão que defende o direito através da justiça ao mesmo tempo
em que demonstra a capacidade que todos possuem de alcançar seus objetivos,
independente de raça. Significa a ascensão da raça negra nos espectros de uma sociedade
que pactua e conserva o racismo (e em especial na própria advocacia), por conta da herança
escravocrata que discrimina e exclui o povo negro. Mesmo ocupando uma profissão que
carrega as características de uma profissão elitizada, não são atenuadas por isso as mazelas
que nós negros advogados temos que enfrentar no dia-a-dia, em que a pergunta sempre
nos soa como algo espantoso ”nossa, você é advogada”?!
Para a comunidade onde atuo, ser advogada negra é algo prestigioso, mas também
desafiador, por ser uma cidade que possui característica predominantemente germânica,
na qual a população negra não possui maior representatividade, a começar pelos bancos da
universidade em que cursei direito, em que duas eram as pessoas negras, eu e uma colega,
num contexto onde nem sequer haviam ações afirmativas em que pudéssemos usufruir.
Nesta realidade em que os desafios são diários, ser advogada e negra é ir muito além de
provar o meu profissionalismo, é também o peso de constantemente provar que, como
negra, sou capaz.
E mesmo hoje, após inúmeras conquistas, especialmente as cotas raciais e o
Programa Universidade para todos - ProUni, muitas barreiras ainda precisam ser
transpostas, pois, não raro, a população negra é que está exposta a condições
socioeconômicas menos favorecidas, o que leva a encontrar dificuldade no acesso a escolas
101
privadas, em que a educação tende a ser melhor, o que impacta sem sombra de dúvida no
acesso ao ingresso de universidades públicas, justamente pela falta de alcance de notas
suficientes para acessar a programas como ProUni, por exemplo.
Atuar na Comissão Especial de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil é
importante como representação da raça negra em um órgão que representa os defensores
do direito e da justiça num país democrático, o que também traz responsabilidade na busca
por igualdade entre todos. Estar representando como mulher negra uma profissão que tem
grande prestígio como é a advocacia, é demonstrar e comprovar que somos dotados das
mesmas capacidades de um branco e que podemos sim ocupar qualquer espaço de poder,
o que prova que os negros não são, e não podem ser considerados inferiores.
Estar à frente desta profissão significa também atuar na defesa do princípio da
igualdade, mas também buscar os direitos dos cidadãos e o senso de justiça e equidade. A
presença de pessoas negras certamente garantiria um olhar mais complexo às respostas
dadas pelo sistema de justiça a diferentes casos, visto que a posição dos indivíduos na
sociedade é fundamental para a construção de sua visão de mundo.