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Organizadores:

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler


Rosângela Maria Herzer dos Santos
Lucas Lazzaretti
Vanessa Rodrigues Pereira
Fernanda Beal Pacheco
Estefani Teixeira
Ana Paula Adede y Castro

DIREITO À SAÚDE

Porto Alegre, 2021


Copyright © 2021 by Ordem dos Advogados do Brasil
Todos os direitos reservados

Organizadores:
Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler
Rosângela Maria Herzer dos Santos
Lucas Lazzaretti
Vanessa Rodrigues Pereira
Fernanda Beal Pacheco
Estefani Teixeira
Ana Paula Adede y Castro

D635
Direito à saúde/. Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler, Lucas
Lazzaretti...[et.al] (Organizadores). Porto Alegre: OABRS, 2021.
p.154
ISBN: 978-65-88371-14-5
1. Direito. 2. Saúde. I Título
CDU 368.42
Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB 10/1517

A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em


trabalhos assinados, são de responsabilidade dos seus autores.

Ordem dos Advogados do Brasil Seccional do Rio Grande do Sul


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COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

PREFÁCIO - Fabiana Azevedo da Cunha Barth ............................................................ 8

APRESENTAÇÃO - Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler e Estéfani Luise


Fernandes Teixeira .............................................................................................................. 9

A LEI DAS VIDEOCHAMADAS SOB O ENFOQUE DA TERAPÊUTICA


VOLTADA AO PACIENTE - Ana Paula Silva de Oliveira, Cláudia Helena Schmit
Peres e Priscila Demari Baruffi ........................................................................................ 10

MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO PARA DOENÇA GENÉTICA RARA:


QUANTO VALE A VIDA DE UM BEBÊ?- Cíntia Helena Zwetsch .......................... 21

O DESCUMPRIMENTO DO ESTADO EM RELAÇÃO AO DIREITO À SAÚDE E A


APLICABILIDADE DO JUDICIÁRIO NA DEMANDA POR MEDICAMENTOS ... -
Emerson Rodrigues da Silva..............................................................................................30

TESTAMENTO VITAL E O PROCURADOR DE SAÚDE - Érica da Silva Coelho 41

PROMOÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE PARA PACIENTES COM


TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA A PARTIR DA MEDICINA
PERSONALIZADA - Estéfani Luise Fernandes Teixeira ............................................ 52

OS BENEFÍCIOS DAS FERRAMENTAS DE DIÁLOGO APLICADAS NA


MEDIAÇÃO PARA A ÁREA DA SAÚDE - Fernanda Beal Pacheco Ohlweiler e Júlia
do Couto e Silva Freitas .................................................................................................... 65

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE DE ESCOLHA NA


RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE - Jarbas Paula de Souza Junior ........................... 73

A HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR IDOSO FRENTE


PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS - Jovana De Cezaro ..................................... 83

O CONSENTIMENTO DO PACIENTE NO DIREITO MÉDICO -


Karla Schostack ................................................................................................................. 94
TELEMEDICINA – A (R)EVOLUÇÃO TRAZIDA PELA PANDEMIA
PROVOCADA PELO CORONA VIRUS - Kelly Paties Pereira de Andrade........... 101

O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ODONTOLOGIA NA SAÚDE ESTÉTICA


FACIAL - Leticia Voltz Alfaro ...................................................................................... 109

O ROL DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR: TAXATIVO OU


EXEMPLIFICATIVO?- Lucas Lazzaretti ................................................................... 119

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA E O ATUAL CENÁRIO


NACIONAL DE PANDEMIA - Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler .. 125

A IMPORTÂNCIA DA ÉTICA E DO COMPLIANCE NA GESTÃO DE CONFLITOS


DE INTERESSE EM HOSPITAIS - Melissa Daandels ............................................... 133

A COLISÃO E A EFICÁCIA DE DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS


DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: A OBRIGATORIEDADE DA
VACINAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL -
Roberto Vinícius Silva Saraiva e Aline Eggers ........................................................... 142

POSFÁCIO - Germano Schwartz...................................................................................153


8

PREFÁCIO

Honra-me apresentar a presente coletânea, cuidadosamente elaborada pela Comissão


Especial de Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Sul, abordando
temas de interesse da advocacia nesta área, objeto de reflexões desta atuante e longeva Comissão.
Todavia, ainda há outro motivo que uniu textos e autores no contexto desta obra coletiva, que é o
fato de ter igualmente como propósito, para além de aprofundar debates técnicos, servir como espaço
de reconhecimento ao primoroso e dedicado trabalho realizado pela Escola Superior de Advocacia
da OAB/RS.
Dessa forma, a leitura dos textos que se seguirão é altamente recomendável, seja por sua
qualidade técnica, seja porque a partir desta ação estar-se-á, não apenas aprendendo sobre a área do
conhecimento objeto de estudo e análise em cada artigo, mas verdadeiramente homenageando os
trinta e seis anos de muitas páginas escritas motivadas pelo constante estímulo ao conhecimento, à
produção intelectual e à reflexão coletiva propostos pela ESA/OABRS.
Nesse sentido, na certeza de que esta singela e enxuta apresentação tenha estimulado
os(as)leitores(as) a desbravar as próximas páginas, encerro desejando que a curiosidade pelo
conteúdo da obra seja com brevidade plena mente satisfeita e que a ESA/OABRS tenha vida longa,
pois fundamenta ao aperfeiçoamento da advocacia e ao aprimoramento do ensino científico e
técnico em nosso Estado e, diante de uma sociedade tecnológica que altera os limites territoriais,
porque não dizer, do Brasil e do mundo.

Fabiana Azevedo da Cunha Barth


Secretária-Geral Adjunta da OABRS
9

APRESENTAÇÃO

Apresentar esta obra é um privilégio. Trata-se de oportuna coletânea de estudos sobre direito
à saúde, idealizado pelos organizadores e articulistas da Comissão Especial da Saúde da Ordem dos
Advogados do Rio Grande do Sul – OAB/RS. Os autores são estudiosos que se dedicam à reflexão
sobre o direito à saúde, debruçando-se sobre temas relevantes e inquietantes, essenciais em tempos
de pandemia, ocasionada pelo coronavírus, a requerer muitas pesquisas e estudos para informar e
conscientizar a população.
O presente e-book foi idealizado com a finalidade celebrar e os 36 anos da Escola Superior
de Advocacia – ESA e homenagear a Dra. Rosângela Maria Herzer dos Santos, diretora da ESA, os
quais foram dedicados aos estudos e à pesquisa em Direito. A trajetória acadêmica da homenageada
compreende grande experiência na pesquisa acadêmica, advocacia e docência, sendo uma renomada
profissional.
A ESA foi fundada em 1985, por inciativa da OAB/RS, sendo a primeira de sua espécie, por
força da Resolução n. 24/1985. O Presidente da OAB/RS à época, em reunião ordinária de 03 de
setembro de 1985 do Egrégio Conselho Seccional, aprovou a criação da ESA com destinação a
centralizar e coordenar – na condição de departamento cultural do conselho seccional – as atividades
culturais, por meio de cursos, estudos, seminários, congressos, publicações e demais programações
que visem à elevação do nível cultural dos advogados gaúchos.
A Dra. Rosângela Maria Herzer dos Santos expressa a dedicação à ESA gaúcha, seja na
docência ou na pesquisa, já que ela possui um currículo de extrema relevância acadêmica e jurídica.
Conforme se observa destas páginas, a obra contempla estudos que atendem profissionais de diversas
áreas, fomenta dúvidas, provoca inquietações e reflexões e, sobretudo, aponta caminhos. Nesse
sentido, é uma preciosa contribuição para a comunidade, auxiliando na compreensão de temáticas
atuais e por vir, sendo recomendada a leitura.
Portanto, os organizadores, articulistas e a Comissão Especial da Saúde, em nome da
presidente Dra. Mariana Diefenthäler, homenageiam a Escola Superior de Advocacia, pelos seus 36
anos, e a Dra. Rosangela Maria Herzer dos Santos, por sua dedicação, trajetória, contribuição e
ensinamentos à Ciência Jurídica brasileira, com votos de sucesso e agradecimento de: Mariana
Polydoro de Albuquerque Diefenthäler, Estéfani Luise Fernandes Teixeira, Ana Paula Adede y
Castro, Fernanda Beal Pacheco, Lucas Lazzaretti e Vanessa Rodrigues Pereira.

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler


Presidente da Comissão Especial da Saúde - CES-OAB/RS

Estéfani Luise Fernandes Teixeira


Membro da Comissão Especial de Educação e da Comissão Especial da Saúde da OAB/RS
10

A LEI DAS VIDEOCHAMADAS SOB O ENFOQUE DA


TERAPÊUTICA VOLTADA AO PACIENTE

Ana Paula Silva de Oliveira1


Cláudia Helena Schmit Peres2
Priscila Demari Baruffi3

Resumo: Objetiva-se com o presente artigo, analisar-se a lei das videochamadas sob o
enfoque da terapêutica voltada ao paciente, como o próprio título apresenta. É apresentado
uma breve contextualização dos efeitos da pandemia causada pelo Sars-CoV-2, aliado ao
avanço das doenças crônicas não transmissíveis pelo mundo como efeito do progresso
científico que prolongou a vida daqueles acometidos por estas enfermidades. E, finalmente,
abordar-se-á as controvérsias e evolução da utilização da lei das videochamadas.
Palavras-chave: Covid-19. Internação. Cuidado. Paciente. Empatia.

1 INTRODUÇÃO

Já restou claro após quase dois anos vivenciando os efeitos da síndrome respiratória
causada pelo Sars – CoV-2, que a pandemia disseminada por ele e com efeitos avassaladores
sobre toda a população mundial, foi um acelerador do futuro. Mas não apenas isso! Ela
reacendeu discussões a respeito da morte e do morrer, dos direitos no fim de vida e dos
cuidados centrados no paciente, grandes questões já há muito vistas pela Bioética e o
Biodireito.
Segundo Gawande (2015), durante a maior parte da história da humanidade, a morte
era uma possibilidade comum, sempre presente, vivíamos em uma verdadeira roleta-russa,
que com o decorrer dos anos e o advento do saneamento básico e outras medidas de saúde
pública, reduziram-se drasticamente o risco da provável morte.
Não obstante, na medida em que o risco da provável morte foi afastado pelo
progresso científico, levando a um prolongamento na expectativa de vida e cura de algumas
doenças consideravas ameaçadoras, o uso abusivo da tecnologia fez com que inúmeros e
complexos dilemas éticos aparecessem. Como entende França (2021), a medicina curativa

1
Graduada em direito pela Universidade Luterana do Brasil- ULBRA, Especialista no Novo Direito Processual
Civil Brasileiro pela Unisinos e Direito Tributário pela Anhanguera, inscrita na OAB/RS sob nº 58.586, email:
apaula_oliveira@hotmail.com;
2
Graduada em direito pela Pontifícia Universidade Católica do RGS- PUC/RS, Especialista em Direito Público
pela Universidade Caxias do Sul – UCS, inscrita na OAB/RS sob nº 30.350, email: chs.peres@gmail.com
3
Graduada em direito pela Universidade Caxias do Sul- UCS, Especialista em Bioética pela Universidade
Caxias do Sul- UCS, email: priscila_baruffi@yahoo.com.br
11

tornou-se uma instituição, que má utilizada, pode nos levar a programação arbitrária de
pessoas, controle abusivo da sociedade e domínio abjeto da natureza pela utilização do que
se chama de “obstinação terapêutica” ou “terapêutica fútil”.
É diante desse quadro que se apresenta uma morte longa e muitas vezes sofrida, fruto,
na maioria das vezes, da obstinação terapêutica e da necessidade médica e de muitos
familiares em manter seus pacientes internados a qualquer custo, mas também pelo fato de
que, como em doenças já consideradas crônicas e altamente transmissíveis como a causada
pelo Sars – CoV-2, não existe possibilidade de alta, cabendo ao médico não a cura, mas
minorar o sofrimento do paciente, aliviar seu desconforto e oferecer condições dignas e
respeitosas no fim de vida.
Veremos neste trabalho, a partir de pesquisa realizada por meio de estudo de
referencial biográfico, de que forma foi possível atender ao anseio da sociedade por levar
àqueles pacientes acometidos da “doença do coronarívus 2019”, mas não apenas estes, a
todos aqueles que se encontram em uma situação de extrema dor e fragilidade, um pouco de
conforto, carinho e esperança.

2 PRECISO DIZER QUE TE AMO

A chegada de uma síndrome respiratória aguda grave causada pelo Sars-CoV-2 e que
ficou conhecida como “doença do coronavírus 2019” ou covid-19 foi noticiada pela primeira
vez em dezembro de 2019, tendo como origem a cidade de Wuhan, Província de Hubei, na
China (CHAN et al., 2020). O vírus causador do covid-19 pode ser transmitido através de
secreções de saliva, espirro, tosse, fala e contato com superfícies contaminadas. Ou seja,
basta o contato próximo (menos de um metro de distância) com uma pessoa que esteja
infectada para que possa ocorrer a transmissão (OPAS, 2021).
Como o covid-19 possui alta transmissibilidade, foi necessário que os países colocassem em
prática medidas sanitárias na tentativa de diminuir o caos instalado pela doença. Ocorreu o
fechamento de escolas e universidades, proibição de eventos em massa e aglomerações, bem
como restrições de viagens, por exemplo (AQUINO et al., 2020).
O quadro clínico dos pacientes acometidos pelo covid-19 varia de leve, moderado e
grave (WIERSINGA et al., 2020). Cerca de 14% dos infectados evoluem para casos clínicos
graves, apresentando dispnéia, envolvimento pulmonar acima de 50% e 5% evoluem para
doença crítica com insuficiência respiratória, choque e/ou falência de múltiplos órgãos
(MICHELIN et al., 2020). Além disso, estudos apontam que pelo menos 17% a 35% dos
12

pacientes adultos com covid-19 precisaram de internação em Unidade de Terapia Intensiva


(UTI) pela hipoxemia e insuficiência respiratória, e até 91% destes receberam ventilação
mecânica (SAUERESSIG et al., 2020).
Sabe-se que as emoções que os pacientes vivem durante a hospitalização podem interferir
na sua recuperação, e isso, não é diferente com os internados por covid-19. De acordo com
um estudo realizado por Rodrigues et al (2021), dentre os sentimentos mais evidentes entre
os internados estão: humor depressivo, medo e a ansiedade.
Enquanto os pacientes que apresentavam sintomas leves da doença realizavam o
tratamento de forma isolada em suas residências, para os pacientes que inspiravam maiores
cuidados e apresentavam situação clínica agravada foi necessário a hospitalização,
permanecendo o paciente em leito isolado, mantendo contato apenas com os profissionais
da saúde, visto que, as visitas hospitalares e a permanência de acompanhantes foram
suspensas (NUNES et al., 2020).
Os pacientes internados podem ser divididos em dois grupos de acordo com sua capacidade
de comunicação, com base no quadro a seguir:

Fonte: Crispim et al ([2020]).

Devido a impossibilidade de visitas presenciais, surge a alternativa das visitas


virtuais, que através da tecnologia pode conectar o paciente e seus familiares. Com tantas
opções de contatos com o mundo externo, não há motivos para manter o paciente que já está
isolado fisicamente sem receber nenhum contato com seus familiares (CRISPIM et al.,
[2020]).
Apesar de o Conselho Federal de Medicina (CFM) ter elaborado o parecer de n. 14
do ano de 2017, reconhecendo o WhatsApp como ferramenta de comunicação (até mesmo
muito antes da pandemia ocorrer), não existia nenhuma lei que pudesse guiar os profissionais
de saúde referente as videochamadas hospitalares, principalmente se tratando de internações
de pacientes em UTI.
Ou seja, como surgiu essa alternativa de contato entre paciente e seus familiares, mas
13

não existia nenhuma lei que a embase algumas cidades liberaram a prática através de leis
municipais como São Paulo e Rio de Janeiro, mas mesmo assim, acabava dependendo de
vários outros fatores para acontecer esse contato, afinal, não existia critérios legalmente
constituídos.
Dessa forma, iniciou-se uma campanha chamada “preciso dizer que te amo”
encabeçada pela médica Ana Cláudia Arantes ([2021]) que buscava a aprovação de uma Lei
Federal que tratasse das videochamadas hospitalares, através do Projeto de Lei (PL) n. 2136
e sua consequente aprovação.
O Projeto de Lei de autoria do Deputado Federal Célio Studart passou por uma
votação simbólica e foi aprovada em 11 de agosto de 2021, seguindo para sanção do
Presidente da República.
Dentre os pontos mais importantes do antigo Projeto de Lei e agora Lei n. 14.198
(Lei das Videochamadas) pode-se destacar: mínimo de uma chamada diária a pacientes
internados; em caso de existir contraindicação para videochamada deverá ser justificada e
anotada no prontuário médico; no caso de pacientes inconscientes, as videochamadas devem
ser realizadas desde que previamente autorizadas pelo próprio paciente enquanto gozava da
capacidade de se expressar de forma autônoma, ainda que oralmente ou por familiar.
No mesmo mês que ocorria a tramitação do PL no Senado Federal, a média de mortes
diárias no Brasil atingiu a marca de 777 óbitos, menor número do ano (PINHEIRO, 2021).

3 CONTROVÉRSIAS E EVOLUÇÃO NA UTILIZAÇÃO DAS VIDEOCHAMADAS

Com a realidade pandêmica, hospitais, casas de saúde e, principalmente, os


profissionais da saúde passaram a vivenciar rotinas muito diferentes das anteriormente
enfrentadas.
As internações de pacientes acometidos pela covid-19 cresciam de forma
exponencial ao mesmo tempo em que a necessidade de internação por outras patologias
também persistia, gerando uma necessidade urgente de adequação a novas rotinas e práticas
no cuidado médico e assistencial do paciente. Diante desse quadro de aumento no volume
de internações e o alto grau de contágio do covid-19, a rotina mais impactada foi a visitação
de familiares a todos os pacientes internados.
Por outro lado, os profissionais de saúde que prestavam atendimentos vivenciavam uma
rotina de cuidados intensivos e permanentes, além da necessidade de isolamento pelo alto
14

grau de contágio da doença que impossibilitava o contato com familiares para prestar
informações sobre o quadro do paciente ou levar informações aos mesmos, gerando um
afastamento e uma grave ansiedade para todos os envolvidos – familiares, pacientes e equipe
médica.
Diante desse contexto, as videochamadas eram a única forma de minimizar o
afastamento do paciente e seu familiar, sempre com a certeza que esse contato era essencial
para a recuperação da doença. Na busca da aproximação do paciente e seu familiar, as
instituições de saúde se utilizaram de diversas práticas na lacuna da regulamentação. No
Hospital Universitário Júlio Muller, no Estado do Mato Grosso, as videochamadas
começaram a ser feitas de forma regular já no ano passado, com regras claras para o
procedimento.

Nosso primeiro paciente foi um paciente do Amazonas, e a videochamada foi


essencial para mantermos a conexão dele com a família. Foi como colocar alguém
que estava na chuva em um local quente. […] A gente percebe a diminuição da
ansiedade dessas pessoas e até uma melhor adesão a procedimentos médicos.

Relata o enfermeiro coordenador do hospital, Lennon Rodrigues Silva (CAMPOS,


2021). Segundo a matéria, a instituição promove videochamadas até com pacientes sedados
e em situações terminais, para que a família possa se despedir. No Hospital Bom Pastor de
Igrejinha, Rio Grande do Sul, as videochamadas eram realizadas por uma psicóloga, de
forma agendada e através de um tablet (SANDER, 2021). No Hospital Universitário de
Londrina, as visitas virtuais eram realizadas por um setor de acolhimento formado por
estagiários e voluntários (ORIKASA, 2021).
Todavia, a utilização das videochamadas sem uma normatização trazia muita
insegurança jurídica para as instituições de saúde e profissionais da área com a necessidade
da preservação do sigilo e da privacidade dos pacientes, pois o paciente em leito de UTI não
está com seu aparelho celular, como o paciente em leito de enfermaria ou apartamento. Além
da questão da preservação da privacidade do paciente, havia a questão da autorização do
paciente sem estado de consciência para realizar a videochamada.
A normatização dessa prática se fazia necessário e urgente para a preservação dos
direitos do paciente e seu familiar, uma vez que sua aplicação ficava a critério da instituição
de saúde, muitas vezes gerando dúvidas éticas aos profissionais da saúde que não se sentiam
seguros na aplicação das medidas adotadas.
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Nesse período foram promulgadas leis municipais – Rio de Janeiro, São Paulo e
Londrina e Resoluções de Conselhos Estaduais de Medicina, como o Conselho Regional de
Medicina do Estado de São Paulo que trouxeram algumas regulamentações para a realização
das videochamadas.
Com o advento da Lei n. 14.198/21, aguarda-se uma maior efetividade da prática
pelas instituições de saúde, tanto no cumprimento do direito segurado, quanto na extensão
aos demais pacientes em situação de isolamento ou internação intensiva, uma vez que,
segundo uma nota do governo federal sobre a lei.

A iniciativa atende e respeita o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto


na Constituição Federal, permitindo que expressões de amor, afeto e apoio por
parte de amigos e familiares propiciem benefícios diretos e indiretos a todos os
envolvidos no tratamento, inclusive profissionais de saúde, com foco,
principalmente, na recuperação do paciente, ainda que ele esteja inconsciente
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, GOVERNO FEDERAL, 2021.)

Ainda não se pode sentir de forma concreta, dada sua promulgação ser muito recente,
em 02 de setembro de 2021, e depender da operacionalização dos serviços de saúde, como
dispõe o art. 3º da referida lei, mas, a toda evidência, já se tem uma vitória na concretização
do direito do paciente e seu familiar.

4 CONCLUSÃO

É sob tal perspectiva que devemos entender que o foco no paciente sempre deverá
ser o objetivo a permear qualquer ato médico, especialmente aqueles atos que farão parte de
momentos de grande sofrimento da vida de um enfermo, ou daqueles que determinarão de
que forma serão os últimos momentos de vida de um ser humano, o último acontecimento
da nossa vida, a morte!
Segundo a Organização Pan Americana de Saúde (OPAS) e a Organização Mundial
de Saúde, com dados que cobrem o período de 2000 a 2019, as Doenças Crônicas Não
Transmissíveis (DCNT), são a causa principal de mortalidade e de incapacidade prematura
no mundo, incluindo países do nosso continente e o Brasil. Destacam a necessidade urgente
de intensificar a prevenção de doenças cardiovasculares, câncer, diabetes e doenças
respiratórias crônicas, conforme estabelecido na agenda dos objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) da ONU.
E diante desse quadro o que temos é uma morte longa e sofrida diante, na maioria
16

das vezes, da obstinação terapêutica e da necessidade médica e de muitos familiares em


manter seus pacientes internados a qualquer custo, mas também pelo fato de que, como em
doenças já consideradas crônicas e altamente transmissíveis como a causada pelo Sars –
CoV-2, não existe possibilidade de alta, cabendo ao médico não a cura, mas minorar o
sofrimento do paciente, aliviar seu desconforto e oferecer condições dignas e respeitosas no
fim de vida.
Para tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS), preconiza que a modalidade de
tratamento, ou seja, a intervenção terapêutica deve ser focada não na doença, mas sim, na
pessoa, que passa a ser vista e amparada em todas as dimensões do seu sofrimento, que vão
desde os efeitos colaterais dos tratamentos ditos curativos até os desejos do paciente em fim
de vida, os cuidados paliativos.
O primeiro conceito de cuidados paliativos foi dado em 1990 pela Organização
Mundial da Saúde (OMS), atualizado em 2002, e mais recentemente em 2017 quando afirma
tratar-se de:

Uma abordagem de melhora da qualidade de vida dos pacientes (adultos e


crianças) e de seus familiares, que enfrentam problemas associados a doenças que
ameaçam a vida. Previne e alivia sofrimento por meio da investigação precoce,
avaliação correta e tratamento da dor e de outros problemas ‘físicos, psicossociais
ou espirituais’.

Dito isso, os cuidados paliativos são aqueles que objetivam garantir ao paciente
qualidade de vida até o momento de sua morte, assegurando que ela ocorra de forma digna,
com cuidados e buscando o menor sofrimento possível. É nesse cenário que se perpetuam
os maiores conflitos segundo França (2021), levando-se em conta os princípios antagônicos
de preservação da vida e do alívio do sofrimento, sendo uma das tarefas da Bioética o
estabelecimento e articulação entre seus princípios fundamentais, como forma de resolver o
conflito.
O Direito dos Pacientes baseia-se em normas de direitos Humanos, que se aplicam a
qualquer pessoa, independentemente de sua condição ou tipo de relação com os serviços ou
os profissionais de saúde (ALBUQUERQUE, 2020, p. 33). Dentre os Direitos Humanos do
Paciente, temos: direito à vida; direito à privacidade, direito a não ser discriminado; direito
à informação, direito à saúde e remédios (jurídicos efetivos) e de onde derivam os Direitos
do Paciente, quais sejam: cuidados em saúde de qualidade e seguro; autodeterminação e
confidencialidade de dados pessoais; não ser discriminado; direito à informação sobre sua
17

condição de saúde e acesso ao prontuário, cuidados em saúde com qualidade e segurança,


apresentar queixa e reparação (ALBUQUERQUE, 2020, p. 25)
Mais do que nunca é preciso dar voz ativa ao cuidado centrado no paciente, no intuito
de reforçar a parceria que deve existir entre médicos, pacientes e suas famílias, na promoção
do respeito, do bem-estar, do cuidado, e do cuidado com o espírito, para que a partir daí
sejam respeitados dois dos principais princípios da bioética, quais sejam: a) princípio da
beneficência, que representa a obrigação moral do pesquisador e do profissional da saúde de
buscar o bem-estar do paciente maximizando os benefícios de uma conduta ou procedimento
médico e minimizando o prejuízo, e; b) princípio da justiça, o qual deve ser entendido como
um critério de imparcialidade e equidade, garantindo a cada paciente, de forma individual e
humanizada, o tratamento e o cuidado de que necessite (SIQUEIRA, 2008).
Segundo Albuquerque (2012), a empatia passou a ser considerada uma capacidade
fundamental na esfera dos cuidados em saúde, uma vez que há um movimento global no
sentido de pensar a Medicina sob uma perspectiva humanista, como forma de reaproximar o
profissional da saúde, o paciente e sua família, integrando a empatia implícita ou
explicitamente em seu arcabouço teórico.

Define-se, então, a empatia e a conexão humana como fatores determinantes da


condição de saúde do paciente. Com efeito esses estudos lançaram luz sobre o fato
de que o relacionamento profissional de saúde-paciente é o coração dos cuidados
em saúde.

Assim, concluindo que o paciente é um ser multifatorial e possui dores que não são
apenas físicas e ultrapassam sua dimensão biológica, é através do humanismo, dos cuidados
paliativos e da saúde centrada no paciente, que a Lei n.º 14.198 (Lei das Videochamadas),
deve ter seu enfoque e aplicabilidade, de forma a possibilitar a presença da família junto ao
paciente favorecendo a efetividade desta relação de humanidade, bem-estar e segurança.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Aline. Manual de direito do paciente. Belo Horizonte: CEI, 2020.

AQUINO, Estela M. L. et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de


Covid-19: potenciais impactos e desafios no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, p.
2423-2446, jun. 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1413-
81232020256.1.10502020. Acesso em: 20 abr. 2021.
18

ARANTES, Ana Cláudia Quintana. Preciso dizer que te amo. [S.l., 2021]. Disponível em:
https://precisodizerqueteamo.com. Acesso em: 11 out. 2021.

BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Parecer CFM nº 14/2017. Conselheiro Relator:


Emmanuel Fortes S. Cavalcanti. Brasília, DF, 27 abr. 2017. Disponível em:
https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/2017/14. Acesso em: 11 out.
2021.

BRASIL. Lei nº 14.198, de 02 de setembro de 2021. Dispõe sobre videochamadas entre


pacientes internados em serviços de saúde impossibilitados de receber visitas e seus
familiares. Brasília, DF: Senado Federal, 2021. Disponível em:
https://legis.senado.leg.br/norma/34809498/publicacao/34810358. Acesso em: 11 out.2021.

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Londrina, Londrina, 09 set. 2021. Disponível em:
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20

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https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2768391. Acesso em: 20 out. 2021.
21

MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO PARA DOENÇA GENÉTICA


RARA: QUANTO VALE A VIDA DE UM BEBÊ?

Cíntia Helena Zwetsch1

Resumo: O aumento na judicialização de demandas de saúde que versam sobre a concessão,


pelo Poder Público, de medicamento para terapia gênica em pacientes bebês com doença
genética rara tem gerado um acirrado debate envolvendo dois relevantes princípios
constitucionais: mínimo existencial e reserva do possível. A busca por uma chance de
salvaguardar a vida, a saúde e a dignidade humana dos pacientes com atrofia muscular
espinhal (AME) tem como obstáculo um valor consideravelmente astronômico: cerca de 12
milhões de reais. Levando-se em conta os direitos, valores e princípios envolvidos, o que
deverá preponderar?

Palavras-chave: Atrofia muscular espinhal. Direitos fundamentais. Princípios


constitucionais. Mínimo existencial. Reserva do possível.

1 INTRODUÇÃO

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito à saúde foi alçado ao


status de direito social fundamental. A Carta Magna inovou ao dispor expressamente, em
seu artigo 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado, bem como ao instituir, no
artigo 198, o Sistema Único de Saúde (SUS), que tem por objetivo oferecer serviços de saúde
gratuitos e de qualidade a toda população brasileira.
Ao passo que as necessidades humanas são ilimitadas, as possibilidades financeiras
do Estado são insuficientes para atendê-las em sua plenitude. Essa escassez de recursos
consubstancia a teoria da reserva do possível. Já o princípio do mínimo existencial tem como
fundamento a necessária (e obrigatória) garantia das prestações positivas mais básicas às
pessoas, que assegurem a sua integridade.
Conforme entendimento já firmado pela jurisprudência do STF, o princípio da
reserva do possível não poderá ser invocado pelo Poder Público sempre que inviabilizar/
comprometer a concretização/ efetivação dos direitos essenciais dos cidadãos (mínimo
existencial), especialmente no que tange ao direito à vida e à saúde, este que é decorrente do
princípio da dignidade da pessoa humana.

1
Advogada. OAB/RS 60.544. Pós-graduada - LL-M em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas -
FGV. Pós-graduanda em Direito Médico e da Saúde pela Ulbra. E-mail: cintia.zwetsch@gmail.com.
22

Especificamente no caso dos bebês portadores de AME (atrofia muscular espinhal)


Tipo1, cujo medicamento que busca corrigir o raro defeito genético possui um custo
extremamente elevado, a relevante e desafiadora questão que surge instantaneamente é:
como harmonizar os princípios constitucionais em conflito?

2 CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS


CONSTITUCIONAIS ENVOLVIDOS

A Constituição Cidadã de 19882, ao dispor sobre os direitos e garantias fundamentais,


bem como os direitos sociais, assim determina expressamente:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: [...].
Art. 6.º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta
Constituição.

Mais adiante em sua redação, ao tratar da Ordem Social, a Lei Maior3 estabelece que:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos
e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação.

Os dispositivos legais acima transcritos têm por intuito assegurar direitos básicos,
inerentes à condição humana, fundamentais para a manutenção da vida e pleno
desenvolvimento de todos os cidadãos brasileiros.
A saúde, que tempos atrás era tida como sinônimo de ausência de doença e enfermidade,
teve seu conceito bastante ampliado, sendo modernamente compreendida como um estado
de completo bem-estar físico, mental, emocional, social e espiritual. Isso porque a saúde
passou a ser analisada em suas dimensões subjetivas, também chamadas de biopsicossociais,
sendo parte importante ainda a busca e preservação da qualidade de vida das pessoas.

2
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 out. 2021.
3
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 24 out. 2021.
23

A atrofia muscular espinhal (AME), presente na Classificação Estatística


Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 10) com o código G.12.0
(atrofia muscular espinal infantil tipo 1 – Werdnig-Hoffman)4, trata-se de uma doença
neurodegenerativa progressiva rara e irreversível, ocasionada pela ausência ou defeito no
gene que produz a proteína (denominada SMN1) que protege os neurônios motores
responsáveis por levar o impulso nervoso da coluna vertebral para os músculos. Sem essa
proteína, os neurônios morrem e os impulsos não chegam, o que provoca uma perda
progressiva da função muscular e as consequentes atrofia e paralisação dos músculos,
afetando a respiração (trazendo sérios riscos de infecções respiratórias que não raramente
evoluem para uma pneumonia), a deglutição, a fala e a capacidade de andar do bebê.
Atualmente, existem no mercado dois medicamentos produzidos por grandes
empresas farmacêuticas para tratar da doença, ambos devidamente registrados perante a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
O primeiro, nominado SPINRAZA®, cujo princípio ativo é a nusinersena, foi
aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC) e
atualmente é disponibilizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde, desde que
atendidos os protocolos exigidos 5. O fármaco – de uso contínuo – consiste no recebimento
de 06 (seis) infusões intravenosas no primeiro ano de vida do paciente e 03 (três) doses por
ano até o fim da vida – o que não exclui a necessidade de uso de suporte ventilatório e
eventuais intercorrências que demandem a necessidade de internação hospitalar, inclusive
em âmbito de unidade de terapia intensiva (UTI).
O segundo, aplicado em dose única – de preferência até os 02 (dois) anos de idade
do bebê, para maior eficácia no tratamento –, corrige o defeito na base e dispensa
manutenção. A este pequeno milagre da ciência denominou-se ZOLGENSMA®.
Referido fármaco, cujo princípio ativo é o onasemnogeno abeparvoveque, insere
material genético modificado no organismo, fornecendo uma cópia funcional do gene SMN1
para deter a progressão da doença. Em outras palavras, repõe a função nervosa do(a) paciente
acometido(a) pela atrofia muscular espinhal.

4
PEBMED. G12 – Atrofia Muscular Espinal e Síndromes Correlatas. [S.l., 20--]. Disponível em:
https://pebmed.com.br/cid10/g12-atrofia-muscular-espinal-e-sindromes-correlatas/. Acesso em: 24 out. 2021.
5
INSTITUTO NACIONAL DA ATROFIA MUSCULAR ESPINHAL (INAME). Pelo SUS, benefícios e
outros. [S.l., 20--]. Disponível em: https://iname.org.br/vivendo-com-ame/beneficios/. Acesso em: 24 out.
2021.
24

Como dito anteriormente, a terapia genética pioneira realizada com o


ZOLGENSMA® ainda não foi adotada pelo SUS, pendendo de avaliação na Câmara de
Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED)6 quanto a comprovação de sua eficácia.
Razão pela qual as famílias dos bebês acometidos pela AME tem buscado judicialmente a
complementação, pelo Estado, do valor necessário para receber a sua “dose de vida”. Isso
porque, tão logo o diagnóstico é informado, se inicia uma verdadeira corrida contra o tempo
na busca da cura para essa doença letal e para angariar valores para custear o medicamento
de valor astronômico.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), através do Tema 1067 (definido quando do
julgamento do repetitivo REsp n.º 1.657.156), estabeleceu regras para o deferimento de
remédios não integrados pelo SUS. Vejamos:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS


exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: (i) comprovação, por meio
de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste
o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como
da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS;
(ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; (iii)
existência de registro na ANVISA do medicamento.

Aplica-se ao caso ainda o Tema 7938 do Supremo Tribunal Federal (fixado por
ocasião do julgamento em sede de repercussão geral do RE n.º 855.178), o qual determina
que

Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente


responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios
constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade
judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de
competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Razão pela qual as demandas envolvendo a concessão do medicamento mais caro do


mundo, via de regra, estão sendo ajuizadas perante a Justiça Federal dos Estados.

6
NOBRE, Noéli. Projeto garante tratamento de atrofia muscular espinhal no SUS. Agência Câmara de
Notícias, Brasília, 10 jun. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/766448-projeto-garante-
tratamento-de-atrofia-muscular-espinhal-no-sus/. Acesso em: 24 out. 2021.
7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção. Tema Repetitivo n. 106. Relatoria: Ministro Benedito
Gonçalves. Julgado em: Brasília, 03 maio 2018. Publicado em: Brasília, 04 maio 2018. Disponível em:
https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&c
od_tema_inicial=106&cod_tema_final=106. Acesso em: 24 out. 2021.
8
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Repercussão Geral em Recurso Extraordinário n. 855178
– Tema 793. Relatoria: Ministro Luiz Fux. Julgado em: Brasília, 23 maio 2019. Disponível em:
https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4678356. Acesso em: 24 out. 2021.
25

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STP 803)9 debruçou-se sobre o tema e exarou
acórdão paradigmático ao determinar a entrega do medicamento ZOLGENSMA® a uma
criança de 03 (três) anos de idade da cidade de São Paulo, portadora de AME.
Colacionamos importante trecho do leading case, da lavra do Ministro Luiz Fux:

Nesse sentido, tratando o caso dos autos de medicamento órfão para doença rara,
os requisitos da tese vinculante formada por esta Corte parecem estar atendidos.
Ademais, merecem relevância os relatórios dos profissionais médicos que
acompanham a criança, os quais corroboram a necessidade de prescrição do
medicamento, inclusive considerando as condições de idade e de peso da
interessada, para, de forma segura e eficaz, minimizar os efeitos da doença que
sofre.
Ademais, não se deve olvidar que a ordem constitucional vigente, em seu artigo
196, consagra o direito à saúde como dever do Estado, que deverá, por meio de
políticas sociais e econômicas, propiciar aos necessitados tratamentos eficazes,
capazes de lhes garantir maior dignidade e menor sofrimento. Deveras, na
complexa ponderação entre, de um lado, os importantes argumentos de ordem
financeira, e, de outro, a concretização do direito de acesso à saúde, não se pode
desconsiderar a relevância do direito à vida, para cuja garantia devem todos os
cidadãos ser incentivados a cooperar. Eis a máxima da justiça social preconizada
pela Constituição de 1988, calcada nos valores de solidariedade tão caros à
sociedade brasileira.

Ao tratar sobre os limites oponíveis à realização dos direitos fundamentais de cunho


prestacional, Novelino10 assim leciona sobre o princípio da reserva do possível:

A existência de disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos


fundamentais é um dos aspectos mais controvertidos. A limitação e escassez dos
recursos materiais disponíveis para o atendimento das infindáveis demandas
sociais condicionam, em certa medida, a realização das prestações impostas pelos
direitos sociais ao volume de recursos susceptível de ser mobilizado pelos poderes
públicos. A onerosidade da implantação dos direitos sociais acaba por condicionar
o seu processo de concretização às possibilidades financeiras e orçamentárias do
Estado, já que alguns consistem em prestações pecuniárias, enquanto outros
implicam em despesas de diversos tipos (e.g., saúde e educação). Dentre as várias
questões que podem ser suscitadas, pergunta-se: qual o critério a ser utilizado para
esta análise? A disponibilidade orçamentária para atender àquela demanda
específica ou a todas as situações similares a ela? O atendimento deve ser para
todos ou apenas para aqueles que realmente não têm como arcar com os custos?

Relativamente ao preceito do mínimo existencial, Novelino11 assevera que,


“deduzido a partir dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade material e do

9
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Presidência. Suspensão de Tutela Provisória n. 803. Relator: Ministro
Luiz Fux. Julgado em: Brasília, 17 jul. 2020. Disponível em:
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6220257. Acesso em: 24 out. 2021.
10
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 481-482.
11
NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 12. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 483.
26

Estado Social, o termo designa um conjunto de bens e utilidades básicas imprescindíveis a


uma vida humana digna.”
A Lei n.º 8.069/9012, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),
determina o quanto segue:

Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais


inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e
facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.

Por tudo quanto exposto, inequivocamente estamos diante de um conflito entre os


princípios do mínimo existencial e da reserva do possível, os quais possuem a mesma
envergadura constitucional. Há de se levar em conta ainda os direitos fundamentais à vida,
à saúde e àquele que é o cerne do ordenamento jurídico pátrio: a dignidade da pessoa
humana, elevada ao status de fundamento da República Federativa do Brasil.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os direitos fundamentais previstos em nossa Carta Magna – individuais,


sociais, políticos, culturais, econômicos, ambientais – possuem a mesma escala de
importância, pelo que não há de se falar em direito absoluto ou inquestionável. Em existindo
colidência entre um ou mais princípios e valores, o julgador terá que adotar os critérios da
ponderação, da razoabilidade, da adequação e da proporcionalidade na análise do caso
concreto.
Nas palavras Mendes, Coelho e Branco,13

O exercício da ponderação é sensível à ideia de que, no sistema constitucional,


embora todas as normas tenham o mesmo status hierárquico, os princípios
constitucionais podem ter “pesos abstratos” diversos. Mas esse peso abstrato é
apenas um dos fatores a ser ponderado. Há de se levar em conta, igualmente, o

12
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá
outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.
Acesso em: 24 out. 2021.
13
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 285-286.
27

grau de interferência sobre o direito preterido que a escolha do outro pode


ocasionar. Por fim, a ponderação deve ter presente a própria confiabilidade das
premissas empíricas em que se escoram os argumentos sobre o significado da
solução proposta para os direitos em colisão.

Sopesando todos os aspectos envolvidos na questão posta, nos parece evidente que o
direito à vida deverá prevalecer sempre. Alcançar um medicamento de alto custo a um bebê
portador de doença neurodegenerativa equivale a investir em seu futuro, dando a ele a
oportunidade de crescer, se desenvolver e, quiçá, ter uma vida plena na idade adulta.
Embora os estudos acerca da AME ainda sejam incipientes, é sabido que as crianças
que estão recebendo aplicação da terapia gênica com o medicamento ZOLGENSMA® tem
respondido adequadamente ao tratamento, que possui prognóstico bastante promissor. Por
certo que durante um bom tempo seguirão com acompanhamento médico (pediatra,
geneticista, neurologista, pneumologista) e equipe multiprofissional (fisioterapeuta
respiratória e motora, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional, entre outros) mas, embora ainda
exista o risco de óbito, a esperança de dias melhores e na melhor recuperação possível graças
aos benefícios clínicos do fármaco faz com que o pensamento acerca dessa possibilidade se
dissipe instantaneamente.
O preço proibitivo do medicamento, assim considerado até mesmo nos países ricos
– USD 2.125.000,000 (dois milhões cento e vinte e cinco mil dólares), faz com que a
judicialização para fornecimento do remédio pelo Poder Público seja a única alternativa
viável para a aplicação de sua dose única.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 1.531/21,
proposta pelo deputado Guilherme Mussi, que visa garantir à pessoa com atrofia muscular
espinhal o direito de receber a terapia gênica sem custo, via Sistema Único de Saúde14.
Importante consignar que o custo extremamente elevado do ZOLGENSMA® se dá em razão
de sua condição de medicamento órfão, ou seja, é dirigido ao tratamento de doença rara, cuja
comercialização não se dará em grandes proporções. Diante dessa limitação de mercado
(poucos pacientes com a doença), em regra as grandes farmacêuticas não possuem interesse
em desenvolver pesquisas extremamente caras para introduzir um remédio no mercado cujo
vultoso investimento financeiro dificilmente será recuperado com as vendas.

14
NOBRE, Noéli. Projeto garante tratamento de atrofia muscular espinhal no SUS. Agência Câmara de
Notícias, Brasília, 10 jun. 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/766448-projeto-garante-
tratamento-de-atrofia-muscular-espinhal-no-sus/. Acesso em: 24 out. 2021.
28

Em um mundo de valores muitas vezes distorcidos e corrompidos, em que a


sociedade de tantas formas privilegia o TER em detrimento do SER, decisões como a do
Supremo Tribunal Federal antes mencionada – a qual prioriza, de forma clara e expressa, o
investimento na vida, na saúde e no bem-estar de uma criança –, trazem alento e confiança
em um futuro melhor não apenas para os portadores de AME, mas para toda a humanidade.

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, 1988. Disponível em:
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2021.

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Adolescente e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 24 out. 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção. Tema Repetitivo n. 106. Relatoria:
Ministro Benedito Gonçalves. Julgado em: Brasília, 03 maio 2018. Publicado em: Brasília,
04 maio 2018. Disponível em:
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30

O DESCUMPRIMENTO DO ESTADO EM RELAÇÃO AO DIREITO


À SAÚDE E A APLICABILIDADE DO JUDICIÁRIO NA DEMANDA
POR MEDICAMENTOS

Emerson Rodrigues da Silva 1

Resumo: A saúde é um direito universal respaldado pela Constituição Federal de 1988, na


qual encontra-se inserida na órbita dos direitos sociais, tendo como pilar a dignidade
humana. Infelizmente, mesmo após o pacto constitucional e a criação do Sistema Único de
Saúde, que buscou através de uma rede organizada e regionalizada atender a população com
maior eficiência, o Estado com dever prestacional de saúde, declinou-se dessa
responsabilidade, terceirizando serviços, retirando controle dos Conselhos e Conferências
de Saúde e sucateando o SUS, gerando um acumulo de incontáveis processos na esfera
judicial em que os cidadãos buscam por medicamentos e tratamentos. Assim, o presente
artigo tem como objetivo analisar o direito à saúde como corolário do princípio da dignidade
da pessoa humana, abordando o dever do Estado na garantia dos direitos fundamentais,
verificando a precariedade do Sistema Único de Saúde como fruto do descumprimento do
pacto constitucional e, por fim, averiguar a necessidade da judicialização por busca de
medicamentos. Quanto à metodologia, foi aplicada a técnica de pesquisa bibliográfica,
desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de livros e
artigos científicos a fim de conhecer e analisar as principais contribuições teóricas existentes
sobre o assunto, em especial, foram utilizadas como fonte de dados a legislação, a doutrina
(composta pelos livros, artigos científicos e demais trabalhos acadêmicos, bem como outros
materiais já publicados a respeito do tema) e a jurisprudência pátria. Concluindo-se que a
resolução desta problemática seria a retomada do Estado ao seu posto de garantidor de
direitos, melhorando e ampliando a rede de saúde, para que toda população brasileira possa
efetivamente ter uma saúde e vida plena.

Palavras-chave: Saúde. Estado. Poder Judiciário.

ABSTRACT: Health is a universal right supported by the Federal Constitution of 1988, in


which it is inserted in the orbit of social rights, with human dignity as a pillar. Unfortunately,
even after the constitutional pact and the creation of the Unified Health System, which
sought to serve the population more efficiently through an organized and regionalized
network, the State with a duty to provide health care, declined this responsibility,
outsourcing services, removing control of Health Councils and Conferences and scrapping
the SUS, generating an accumulation of countless lawsuits in the judicial sphere in which
citizens seek medicines and treatments. Thus, this article aims to analyze the right to health
as a corollary of the principle of human dignity, addressing the State's duty to guarantee
fundamental rights, verifying the precariousness of the Unified Health System as a result of

1
Advogado pós graduando em Direito Médico e da Saúde – Bagé/RS.
31

non-compliance with the constitutional pact and , finally, to investigate the need for
judicialization for drug search. As for the methodology, the bibliographic research technique
was applied, developed based on already prepared material, consisting mainly of books and
scientific articles in order to know and analyze the main existing theoretical contributions
on the subject, in particular, they were used as a source of given the legislation, the doctrine
(composed of books, scientific articles and other academic works, as well as other materials
already published on the subject) and the Brazilian jurisprudence. In conclusion, the
resolution of this problem would be the return of the State to its position of guarantor of
rights, improving and expanding the health network, so that the entire Brazilian population
can effectively enjoy full health and life.

Keywords: Health. State. Judicial Power.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A Constituição Federal de 1988 tem por fundamento a promoção do bem estar de


todos sem qualquer forma de discriminação, garantindo o direito à dignidade da pessoa
humana, que serve de pilar dos demais direitos e garantias fundamentais em prol do bem
comum. Dispõe, também, em seu art. 196 que a saúde é direito de todos e dever do Estado,
sendo aplicado através de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco e de
outros agravos, acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção,
proteção e recuperação.
Além disso, para dar cumprimento aos mandamentos constitucionais para
otimização da saúde, criou-se políticas públicas por meio de uma rede organizada,
regionalizada, com hierarquia de ações e serviços públicos de saúde, mediante Sistema
Único de Saúde – SUS, isto é, para a real efetivação desse direito o Poder Legislativo, bem
como o Poder Executivo criaram normas e medidas de ações em busca de assegurar saúde
básica aos brasileiros.
Lamentavelmente, apesar do pacto constitucional que tornou o SUS precursor e
principal fornecedor dessa assistência, houve um contraponto por parte do Estado, pois
declinou-se dessa responsabilidade ao terceirizar obrigações através de entidades privadas,
infringindo preceitos constitucionais, subfinanciando a saúde com sistemáticos desvios de
recursos por meio da Desvinculação das Receitas da União, reduzindo a participação do
Governo Federal nos gastos com a saúde, retirando a capacidade deliberativa dos
Conselhos e Conferências de Saúde, através de violação do controle social por meio da
32

falta de funcionamento e estrutura dos dispositivos, sendo, sucessivamente, substituídos


por colegiados consultivos sem atuação da população.
Assim, diante das falhas ocasionadas pelo Estado que contrapõem o texto
constitucional e o direito dos cidadãos brasileiros a terem o mínimo existencial, ferindo o
princípio da dignidade da pessoa humana, a proteção social e o direito à saúde,
progressivamente, vem aumentando o número de demandas judiciais em busca por
restabelecimento de direitos, em especial por fármacos, com objetivo de obterem aquilo que
outrora foi sonegado pela Administração Pública. Servindo, inclusive, de pauta para o
Supremo Tribunal Federal que definiu regras a serem adotadas para a concessão de
medicamentos e tratamentos, incluindo aqueles que não foram oferecidos pelo SUS e os
ausentes de protocolos de alto custo.
Deste modo, resta demonstrando a cada dia mais o quanto o Estado não consegue
comportar o oferecimento de tratamento de qualidade, crescendo, assim, a “judicialização
da saúde” por meio de liminares devido a contínua e reiterada falha do Estado, fazendo com
que este tenha gastos em dobro. Primeiramente para dar aquilo que se pleiteia, segundo por
conta dos gastos originados nestes processos, ocasionando a retirada de recursos de outras
áreas para cobrir tais despesas.

DESENVOLVIMENTO

2.1 Direito à saúde como corolário do princípio da dignidade humana


A dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, no
art. 1º, III, da Constituição Federal, está completamente atrelada à saúde, pois é reconhecida
como princípio fundamental e vetor de todo sistema jurídico brasileiro. Refere-se como
garantia das necessidades vitais de cada indivíduo, tendo como principal foco a garantia de
uma vida digna aos cidadãos, como preceitua Alexandre de Moraes (2017), in verbis:
“Um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a
pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo
invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar de modo que, somente
excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos
fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem
todas as pessoas enquanto seres humanos e a busca ao Direito à Felicidade.”

Assim, conforme preleciona Silva (2017), percebe-se que o legislador brasileiro ao


tratar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, preocupou-se com o respeito ao ser
humano e sua dignidade, criando normas com exigência de sua interpretação, servindo de
33

base para o estabelecimento e reconhecimento dos direitos fundamentais, dando sustentação


à aplicação do direito a igualdade, direitos sociais, valoração ao trabalho, livre iniciativa,
ordem social, entre tantos outros direitos e garantias respaldadas pela CF/88.
No tocante, saúde é um direito universal amparado pela Constituição Federal de
1988, na qual encontra-se inserida na órbita dos direitos sociais, tendo como pilar a
dignidade da pessoa humana. Isto é, todos têm direito a tratamentos adequados fornecidos
pelo poder público para que gozem de saúde plena, vejamos: “Art. 196. A saúde é direito
de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem
à redução dos riscos de doença e de outros agravos e o acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Sendo complementado pela Lei nº 8.080/1990 (BRASIL, 1990), que dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes, em seu art. 2º no qual preleciona que “a saúde
é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições
indispensáveis ao seu pleno exercício”.
No que refere-se ao direito fundamental à saúde, Silva (2017, p. 311-312) explica
que:
“Há de informar-se pelo princípio de que o direito igual a vida de todos os seres
humanos significa também que, nos casos de doença, cada um tem o direito a um
tratamento condigno de acordo com o estado atual da ciência médica,
independentemente de sua situação econômica, sob pena de não ter muito valor
sua consignação em normas constitucionais. [...] Como ocorre com os direitos
sociais em geral, o direito à saúde comporta duas vertentes, conforme anotam
Gomes Canotilho e Vital Moreira: ‘uma de natureza negativa, que consiste no
direito a exigir do Estado (ou de terceiros) que se abstenha de qualquer acto que
prejudique a saúde; outra, de natureza positiva, que significa o direito às medidas
e prestações estaduais visando a prevenção das doenças e o tratamento delas’.
Como se viu do enunciado do art. 196 e se confirmará com a leitura dos arts. 198
a 200, trata-se de um direito positivo ‘que exige prestações de Estado e que impõe
aos entes públicos a realização de determinadas tarefas [...], de cujo cumprimento
depende a própria realização do direito.”

Deste modo, segundo Santos (2018) o direito à saúde como direito fundamental é um
mandamento de otimização, reafirmando o compromisso do Estado de cumprir e fazer
cumprir o pleno exercício da saúde, através de políticas públicas para que a prestação da
saúde ocorra de forma igual para todos, independente do cenário socioeconômico e suas
desigualdades, bem como para a prestação de serviços médicos preventivos, de recuperação
e promoção. Restando demonstrado que a saúde não reside apenas no fato de ser essencial
para a manutenção da vida, mas, também, por ser um direito imprescindível para o exercício
dos demais.
34

A SAÚDE COMO DEVER DO ESTADO E A FALHA DO SISTEMA ÚNICO DE


SAÚDE
A tutela do direito à saúde apresenta duas vertentes, que segundo Castro (2005), a
primeira, de preservação, se relacionaria com as políticas de redução de risco de doenças, a
segunda, de proteção, se caracteriza como um direito individual para tratamento e
recuperação. Assim, o fornecimento de medicamentos e tratamentos pelo Estado se inclui
na proteção à saúde, pois, esta é um bem jurídico indissociável do direito à vida, como
demonstra Ordacgy (2009):

“A Saúde encontra-se entre os bens intangíveis mais preciosos do ser humano,


digna de receber a tutela protetiva estatal, porque se consubstancia em
característica indissociável do direito à vida. Dessa forma, a atenção à Saúde
constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado, devendo estar
plenamente integrada às políticas públicas governamentais”.

Para Castro (2005) “o Estado assume a responsabilidade na criação dos serviços


necessários à saúde e o faz por via de normas infraconstitucionais”. Dessa forma, para dar
cumprimento às normas constitucionais que visam eficiência e efetivação da saúde, o art.
198 da nossa Carta Magna, pressupõe uma rede regional, em todos os municípios do Brasil,
de maneira organizada, com hierarquia de ações e serviços públicos de saúde, através do
Sistema Único de Saúde - SUS, sendo ofertados 15% da receita nacional para essas
localidades que atenderão aos moradores que buscam assistência, a fim de cobrir gastos
com a saúde, visto que estes são responsáveis imediatos pelo atendimento das necessidades
básicas, explicita Castro (2005):
“Nesse âmbito, estabeleceu-se uma divisão de tarefas no que tange ao
fornecimento de medicamentos, de maneira que o sistema básico de saúde fica
a cargo dos Municípios (medicamentos básicos), o fornecimento de
medicamentos classificados como extraordinários compete à União e os
medicamentos ditos excepcionais são fornecidos pelos Estados. Percebe-se,
claramente, a composição de um sistema único, que segue uma diretriz clara de
descentralização, com direção única em cada esfera de governo”.

Sob ótica nacional, Dallari (2009) observou que no decorrer dos anos, após o pacto
federal de 1988, juntamente com a criação do SUS mediante Lei sob nº 8.080/90 tecida
anteriormente nesta pesquisa, que delegou as esferas subnacionais o dever de proteção e
defesa da saúde, percebeu-se uma atribuição de responsabilidades cabíveis aos três
poderes, ou seja, caso o Estado descumpra a norma constitucional, declinando-se de
garantir o mínimo para restabelecimento à saúde do cidadão brasileiro, este poderá recorrer
ao Poder Judiciário por ser guardião de direitos.
35

Infelizmente, mesmo com as autoridades públicas elencando quais prestações


positivas essenciais devem ser asseguradas para obtenção de uma justiça social,
respeitando e assegurando o mínimo existencial, percebe-se a existência de certa
precariedade do sistema público de saúde, aliada ao insuficiente fornecimento de remédios
gratuitos, atrelada a uma acentuada inércia do Poder Executivo na garantia desses direitos,
ensejando no descumprimento da norma constitucional principiológica, ocasionando no
nascimento do fenômeno da judicialização da saúde.
São palavras de André da Silva Ordacgy (2009):

“A notória precariedade do sistema público de saúde brasileiro, bem como o


insuficiente fornecimento gratuito de medicamentos, muitos dos quais
demasiadamente caros até paras as classes de maior poder aquisitivo, têm feito
a população civil socorrer-se, com êxito, das tutelas de saúde para a efetivação
do seu tratamento médico, através de provimentos judiciais liminares, fenômeno
esse que veio a ser denominado de “judicialização” da Saúde”.

Neste viés, percebe-se que nos anos de 1990 a 2000, ocorreu a maior violação dos
direitos, por ausência do Estado na área social suscitada por uma política macroeconômica
neoliberal que defendia uma economia de mercado, privatizando os direitos sociais,
ocasionando para Araújo (2014) implicações na política de saúde, tornando-a um bem de
consumo.
Nota-se, segundo Araújo (2014) que esta privatização foi um dos entraves para que
não houvesse a implementação plena do Sistema Único de Saúde, sendo institucionalizado
num cenário de um Estado mínimo adverso dos ideais democráticos, corroborando na
existência de um sistema híbrido de saúde, tornando-o cada vez mais sucateado, retirando
da sociedade o gozo de desfrutar daquilo que é seu por direito, a saúde, a vida.
Soares (2010) divide essa violação em duas vertentes: macro estrutural, que
flexibiliza a materialização do SUS através de um reformismo, refuncionalizando os
princípios do sistema de saúde para atender as exigências sociais do capital,
subfinanciando a saúde com sistemáticos desvios de recursos por meio da Desvinculação
das Receitas da União, reduzindo a participação do Governo Federal nos gastos com a
saúde, retirando a capacidade deliberativa dos Conselhos e Conferências de Saúde, através
de violação do controle social por meio da falta de funcionamento e estrutura dos
dispositivos, sendo, sucessivamente, substituídos por colegiados consultivos sem atuação
da população. Já a micro estrutural encontra-se na terceirização dos serviços de saúde,
violando o art. 199 da Constituição Federal que proíbe o repasse de verba pública para
entidades privadas com fins lucrativos, ensejando na transgressão do direito à saúde, visto
36

que o desfinanciamento e a violação de preceito constitucional acarretam na falta de


medicamentos, insumos, leitos e até mesmo na precarização das condições de trabalho para
os profissionais da saúde.
Logo, cabe aos usuários da saúde recorrer ao judiciário para que este responsabilize
o Estado quanto aos seus deveres, pois a ele é atribuída à competência positiva de suprir
está omissão através de instrumentos processuais postos à disposição daqueles que
almejam o acesso à saúde, em especial por medicamentos.

A JUDICIALIZAÇÃO POR BUSCA DE MEDICAMENTOS

Com a política neoliberal, houve um gradativo corte no financiamento das políticas


sociais como a da saúde, promovendo a não correspondência entre as ofertas de serviços e
a demanda, como preleciona Ribeiro (2014), este cenário contrapõe o que está escrito no
texto legal, gerando uma procura infindável pelo direito à saúde, principalmente no que
tange a fármacos e tratamentos de doenças raras, fazendo com que a população que carece
dessas intervenções por parte do Estado que abstém-se do seu dever, utilize-se de tutelas
jurisdicionais quando encontra tal omissão. É o entendimento de Sarlet (2010):

[...] a judicialização crescente das mais diversas demandas, notadamente no que


diz a concretização do direito (fundamental social) à saúde, vem cobrando uma
ação cada vez mais arrojada por parte dos aplicadores do Direito, em especial ao
Estado-juiz, que frequentemente é provocado a se manifestar sobre questões antes
menos comuns, como a alocação de recursos públicos, o controle das ações
(comissivas e omissivas) da Administração na esfera dos direitos fundamentais
sociais, e até mesmo a garantia da proteção de direito (e deveres) fundamentais
sociais na esfera das relações entre particulares.

Dessa forma, há diversas formas do indivíduo recorrer à justiça, podendo ser de


forma emergencial por meio de liminares, que para Ventura et al (2010) corresponde a
antecipação de resposta judicial, tendo como base a prova de risco à vida, ou por meio de
mandado de segurança, mandado de injunção, ação de obrigação de fazer, entre outras
ações que têm como finalidade a reparação do direito até então infringido.
Noutro giro, Ordacgy (2009) descreve a existência de uma crítica por parte do
Governo Federal ao que tange à judicialização da saúde, sob alegação de que o Judiciário
está “intrometendo-se” indevidamente em sua gestão e que está interferência gerará
inoperância do Sistema Público de Saúde, devido aos gastos financeiros disponibilizados
a fim de cobrir despesas judiciais de decisões transitadas em julgado, que consomem parte
do orçamento da saúde. Scheinberg (2009) afirma que esses gastos são consequência da
37

abstenção e excessiva lentidão na incorporação de avanços no sistema básico, que ao invés


do Estado estar cobrindo despesas duplicadas, poderia estar aplicando essas verbas na
melhoria do seu próprio sistema, ampliando leitos, cobrindo maior número de cirurgias,
agregando produtos para a saúde, ampliando o acesso a medicamentos, bem como
aprimoramento o ambiente de trabalho dos funcionários da saúde, isso engloba os EPI’s
(equipamentos de proteção individual).
Destarte, resta demonstrado que o aumento significativo de demanda judicial só
ocorre por conta do próprio Estado, que descumpre seus deveres constitucionais de
proteção, promoção e recuperação da saúde, violando o dever de garantir acesso universal
e igualitário nas órbitas genéricas e individuais. Assim, levando a população que carece de
saúde, a procurar o Poder Judiciário para que este tome as devidas ações necessárias,
impondo ao Estado o cumprimento dos preceitos constitucionais.

METODOLOGIA
A presente pesquisa realizada, quanto ao seu objetivo, foi descritiva, pois pretendeu
estabelecer relação entre o princípio da dignidade da pessoa humana como corolário do
direito à saúde, diretamente ligado as demandas judiciais por busca de medicamentos a fim
de garantir tratamento digno ao cidadão.
Segundo Gil (2010) as pesquisas podem ser classificadas em três grupos conforme
seus objetivos, sendo essas exploratórias, descritivas e explicativas. A pesquisa exploratória
busca proporcionar familiaridade com o problema, torná-lo mais explícito e construir
hipóteses. A descritiva tem como objetivo a descrição das características da população ou
fenômeno e estabelecer relações entre as variáveis. A explicativa objetiva identificar fatores
que determinam ou contribuem para a ocorrência do fenômeno.
Para a realização deste trabalho foi aplicada a técnica de pesquisa bibliográfica, que
conforme preleciona Gil (2010), é desenvolvida com base em material já elaborado,
constituído principalmente de livros e artigos científicos. Como resultado do primeiro passo,
é identificado um perfil geral do profissional e são gerados subsídios para a construção do
questionário de entrevista, se desenvolve tentando explicar um problema através de teorias
publicadas em livros ou obras do mesmo gênero. O objetivo deste tipo de pesquisa é de
conhecer e analisar as principais contribuições teóricas existentes sobre um determinado
assunto ou problema, tornando-se um instrumento indispensável para qualquer pesquisa,
pois busca dominar o conhecimento disponível utilizá-lo como instrumento, aplicar o
38

conhecimento em determinada área, auxiliar a construção de hipóteses e descrever ou


organizar o estado da arte em um determinado momento.
Nesse sentido, foram utilizadas como fonte de dados a legislação, a doutrina
(composta pelos livros, artigos científicos e demais trabalhos acadêmicos, bem como outros
materiais já publicados a respeito do tema) e a jurisprudência pátria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou identificar e compreender o direito à saúde como


corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo que o segundo serve de
pilar para todos os outros direitos e garantias fundamentais elencados pela Constituição
Federal, que tem como principal intuito assegurar a todos o gozo de uma vida plena e o bem
estar social. Demonstrando que o Estado tem o dever de garantir com efetividade o direito à
saúde e o mínimo existencial, através de um acesso universal e igualitário às ações e serviços
para a promoção, proteção (na órbita genérica e individual) e recuperação da saúde.
Analisando o pacto constitucional que criou o Sistema Único de Saúde e os motivos
que o levaram a falha, por conta de terceirização dos serviços de saúde, progressão de receita,
bem como a retirada do poder de controle dos Conselhos e Conferências de Saúde,
inviabilizando a assistência à saúde de qualidade àqueles que são responsáveis por oferecê-
las, diga-se, os municípios, faz-se com que a população que carece de medicamentos e
tratamentos busquem uma maneira efetiva para a resolução desses conflitos.
Assim, surgi o Poder Judiciário e o que a doutrina majoritária tece como
“judicialização da saúde”, como forma de garantir àquilo que é mínimo, tornando
incontáveis os números de processos judiciais para restabelecimento da saúde, sendo o
principal causador do aumento de despesas ou até mesmo a duplicação desta, o próprio
Estado que abstém-se do seu dever, sendo a resolução desta problemática a retomada do
Estado ao seu posto de garantidor de direitos, melhorando e ampliando a rede de saúde, para
que toda população brasileira possa efetivamente ter uma saúde e vida plena.
39

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à saúde. Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 20, n.01, p. 77-100, 2010.
41

TESTAMENTO VITAL E O PROCURADOR DE SAÚDE

Érica da Silva Coelho1

Resumo: O presente artigo se caracteriza metodologicamente como uma revisão


bibliográfica realizada de livros da área médica, bioética e jurídica, pareceres, relatórios de
pesquisa, leis, normas médicas e jurídicas norteadoras das diretivas antecipadas de vontade
no Brasil. Ainda hoje no Brasil as Diretivas Antecipadas de Vontade são desconhecidas; e
este instituto deve continuar sendo debatido com a finalidade de propagar a informação,
trazendo conhecimento e um novo olhar para os cidadãos do “viver e morrer com dignidade”,
e que mesmo em situações de fim de vida a vontade individual ainda deve ser respeitada.

Palavras-chave: DAVS. Autonomia. Dignidade. Morte.

1 INTRODUÇÃO
A morte nas últimas décadas tem passado por grandes transformações, se antes era
vista como um processo natural, ainda que se mantenha essa característica passou a ser
entendida como uma derrota, vindo a demonstrar a fragilidade da Medicina e a
vulnerabilidade dos médicos.2
Temos presenciado a cada dia o avanço da Medicina através do desenvolvimento
científico- tecnológico; e na ânsia de buscar o prolongamento da vida artificial a qualquer
preço são realizados procedimentos invasivos, dolorosos e desnecessários, trazendo maior
sofrimento para o paciente, familiares e cuidadores.
O indivíduo é impedido de viver a sua morte de forma digna, sendo detentor das suas
vontades, junto a seus entes queridos, delegando funções, reatando laços, se despedindo e se
preparando para a sua partida.
Por essa razão, o Direito tem debatido os questionamentos acerca dos direitos dos
pacientes terminais e em fim de vida. Assim, emerge o “direito de morrer”, onde buscam
amparo os defensores da eutanásia, suicídio assistido, e demais institutos que visam garantir
o direito desses pacientes a morrer com dignidade com as diretivas antecipadas de vontade.3
Para Luciana Dadalto:

1
Graduada em Direito pela Universidade da Cidade, Especialista em Direito e Saúde pela ENSP – Fiocruz,
inscrita na OAB/RJ sob o nº 142.621, e-mail: coelhoconsultoria.net@gmail.com.
2
DADATO, L. Testamento Vital. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015 p. 01.
3
DADALTO, L. Testamento Vital. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 01.
42

As diretivas antecipadas são gênero, do qual é espécie o testamento vital, e o


mandato duradouro. Sendo o testamento vital, um documento pelo qual uma
pessoa capaz pode deixar registrado a quais tratamentos e não tratamentos desejam
ser submetida, caso esteja em fim de vida.4

Dadalto, conceitua:

[…] o mandato duradouro como documento em que o paciente nomeia um ou mais


procuradores, que deverão ser consultados pelos médicos na circunstância de sua
incapacidade - terminal ou não, para decidirem sobre o tratamento ou não a ser
realizado. Para tanto, o procurador de saúde se baseará na vontade do paciente, e
não em sua própria.5

Apesar do testamento vital e o mandato duradouro serem documentos distintos,


sendo o mandato duradouro utilizado para outras situações que não envolvam a
terminalidade, este pode vir integrado ao testamento vital com a finalidade de conter todas
as funções pertinentes ao procurador de saúde.
A nomeação do procurador de saúde no testamento vital, pode ser envolvida de muita
dúvida e sentimentos para o paciente em fim de vida bem como para o procurador, o que
pode gerar divergência a respeito dos tratamentos e cuidados médicos a serem ou não
adotados que foram declarados pelo paciente no momento em que este ainda detinha sua
autonomia.
Desta forma, diante da importância em estudar o assunto e objetivando aprimorar os
conhecimentos acerca da nomeação do procurador de saúde no testamento vital, este estudo
foi norteado pelas seguintes questões: Ser nomeado procurador de saúde no testamento vital,
pode ser um fardo ou um alívio? Qualquer pessoa pode ser nomeada? O procurador de saúde
pode deixar de cumprir a declaração de vontade manifestada pelo paciente em sua diretiva
antecipada? Qual o entendimento jurídico proveniente dessa discordância?
O tema deste estudo, é de suma importância para o mundo jurídico, da saúde, e para
a sociedade, por emergir da autonomia privada do indivíduo e na dignidade da pessoa
humana.
Ainda hoje no Brasil as (DAV) diretivas antecipadas de vontade são desconhecidas;
e este instituto deve continuar sendo debatido com a finalidade de propagar a informação,
trazendo conhecimento e um novo olhar para os cidadãos do “viver e morrer com dignidade”,
e que mesmo em situações de fim de vida a vontade individual ainda deve ser respeitada.
Assim, iremos abordar o nascimento do testamento vital e o do mandato duradouro,

4
DADALTO, L. Testamento Vital. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 02.
5
DADALTO, L. Declaração antecipada de vontade. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 524, 2009. Disponível
em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_/article/view/515/516. Acesso em: 22 out. 2021.
43

conceitos, finalidades e efeitos; apontaremos as normas jurídicas que fundamentam a


validade das diretivas antecipadas no Brasil; e os deveres jurídicos, éticos e morais do
procurador de saúde, e os requisitos para a sua nomeação.

2 TESTAMENTO VITAL
A adoção do nome testamento vital no Brasil se deu pela tradução literal de living
will, entretanto, não parece ser a melhor denominação, por remeter ao instituto do
testamento, que é um negócio jurídico unilateral, com eficácia após a morte. Contudo,
assemelham-se por ser um negócio jurídico, unilateral, personalíssimo, gratuito e revogável,
distanciando-se pelo efeito pos mortem e a solenidade.6
Assim, torna-se inadequada a nomenclatura testamento vital para designar uma
declaração de vontade, de uma pessoa com discernimento sobre os cuidados que deseja ou
não receber quando estiver em estágio de fim de vida e impossibilitado de manifestar a sua
vontade.7
Entretanto, toda crítica a nomenclatura acabou optando pelo caminho mais fácil por
aqueles que desconheciam a história do instituto em tornar o Testamento Vital sinônimo de
Diretivas Antecipadas de Vontade.8
O testamento vital, é um instrumento de manifestação que a pessoa capaz pode
expressar os seus desejos sobre a suspensão de tratamentos, a ser utilizado quando o
outorgante estiver em estado terminal, em (EVP) Estado Vegetativo Persistente, ou com uma
doença incurável, impossibilitado de manifestar livre e conscientemente sua vontade.9
Deverá ser escrito por pessoa com discernimento, sendo eficaz apenas em situações
de terminalidade, quando o paciente não puder exprimir a sua vontade, devendo ser mantido
o tratamento ordinário ou cuidados paliativos para amenizar o sofrimento, assegurando ao
paciente a qualidade de vida.10
Nele deve versar apenas sobre a suspensão do tratamento extraordinários ou fúteis,
que visam o prolongamento da vida e não alteram a situação de terminalidade do paciente,
ressaltando, que o tratamento ordinário deve permanecer, afinal, o paciente, ainda que em
estado terminal, deve ser respeitado como ser humano autônomo, e sua vontade mesmo que

6
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 02.
7
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 03.
8
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p .03.
9
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 97.
10
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 98.
44

prévia deve ser respeitada.11


O testamento vital parte de dois princípios: a garantia ao paciente de que seus desejos
serão atendidos no momento de sua terminalidade; e de proporcionar ao médico um respaldo
legal para a tomada de decisões em situações de conflito.12
Quanto ao seu conteúdo, a doutrina estrangeira aponta para alguns pontos
fundamentais: os aspectos relativos ao tratamento médico, como a SET; a manifestação de
vontade antecipada se deseja ou não ser informado sobre diagnósticos fatais; a não utilização
de máquinas e previsões relativas a intervenções médicas que não deseja receber, entre
outras; a nomeação de um procurador; e a manifestação sobre eventual doação de órgãos.13
Ele produz via de regra efeito erga omnes, ou seja, os médicos, parentes do paciente,
e eventual procurador de saúde são obrigados a respeitar as disposições determinadas pelo
paciente. Esse caráter vinculante torna-se necessário para evitar uma perigosa
jurisdicionalização do morrer, que inevitavelmente ocorreria quando o médico se recusasse
a executar as diretivas antecipadas.14
Mas a doutrina aponta a objeção de consciência do médico; a proibição de
disposições contrárias ao ordenamento jurídico e disposições que sejam contraindicadas à
patologia do paciente ou tratamento que já estejam superados pela medicina, por esse último
motivo ele pode ser alterado a qualquer tempo pelo detentor.15
Por último, quanto a sua formalidade Dadalto explica que “[…] o testamento vital,
assim como o testamento é um negócio jurídico solene, portanto, deve ser escrito e registrado
no cartório competente, nos países que adotam esse sistema de publicização de atos civis”.16

3 MANDATO DURADOURO

Como já vimos o mandato duradouro, é o documento pelo qual se realiza a nomeação


de um ou mais procuradores de saúde que deverão ser consultados pelos médicos em caso
de recusa do tratamento por incapacidade do paciente. Ele pode existir sozinho, pois, não se
aplica apenas aos casos de terminalidade; e se tratando de diretivas para o fim de vida, este

11
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 98.
12
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 99.
13
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 99.
14
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 99.
15
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 100.
16
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 102.
45

deve coexistir ao testamento vital.17


Neste caso, seria interessante fazer um testamento vital contendo a nomeação de um
procurador (mandato duradouro), e de forma conjunta, um mandato duradouro, nomeando o
mesmo procurador para que não ocorra conflito entre os documentos, com a finalidade de
este possa agir em situações que não envolvam o fim da vida. Inexistindo o procurador, seria
necessária a nomeação de uma equipe médica, de um juiz ou até mesmo de um comitê de
ética do hospital.18
Para Vitor apud Dadalto, como vantagens desse instrumento podemos apontar as
possibilidades de evitar incertezas em relação a quem tem o poder legal para decidir; de se
respeitar o desejo de conferir legalmente poderes a alguém para que possa agir pela pessoa,
quando esta estiver incapacitada; de definir um padrão de decisão; de evitar a imposição de
medida de tutela ou curatela, quando desnecessária; e a garantia de respeito à vontade da
pessoa incapaz, mesmo quando instaurada a tutela ou curatela.19
Podemos dizer que o maior problema deste instituto é a escolha de quem será
nomeado procurador do paciente: discute-se que a figura mais adequada seria o cônjuge,
algum dos pais ou ambos, o juiz, a equipe médica, ou um terceiro imparcial.20
Para Manzini apud Dadalto:

As decisões do paciente serão sub-rogadas – tomadas em seu nome – pelo


mandatário, com base no seu conhecimento do paciente e de suas preferências;
quer dizer, o mandatário não deve indicar o que melhor lhe parece e sim o que crê
que o paciente elegeria para essa circunstância particular.21

Para a melhor escolha deve se considerar que o procurador tenha contato próximo
com o paciente, devendo saber exatamente qual é a vontade do mesmo, para que não tome
uma decisão com base em seus próprios desejos, desrespeitando o que espera o mandatário.
Nesse sentido Naves e Rezende apud Dadalto, apresenta o entendimento de não ser possível
que o procurador seja um terceiro imparcial, o juiz ou a equipe médica, mas sim um parente
próximo.22
Assim, surge outro problema, pois existe relatos de parentes que não desejam cumprir

17
DADALTO L. Declaração antecipada de vontade. Revbioét. [Internet]. 2009 [acesso em 2016 abr 1]; 17
(3): 523-543. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_/article/view/515/516.
18
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 95.
19
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 93.
20
DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 245 p.
21
DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 245 p.
22
DADALTO, L. Declaração antecipada de vontade. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 523-543, 2009.
Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_/article/view/515/516. Acesso em: 22 out.
2021.
46

a vontade do paciente, por questões éticas ou religiosas. Desta forma, nomear o cônjuge, os
filhos ou os pais é razoável devido à proximidade e ao afeto que os une. Mas pode ser
perigoso, pois, essas pessoas possuem valores próprios, que podem diferentes dos do
paciente, além da proximidade afetiva, que tende a dificultar a tomada de decisões.23
Segundo Beauchamp e Childress, “[…] tornou-se cada vez mais difícil encontrar
pessoas apropriadas que desejam assumir a pesada tarefa de tutelar pessoas mentalmente
inaptas que estejam institucionalizadas, e as famílias algumas vezes tomam decisões que
entram em choque com os desejos aparentes da pessoa atualmente incapaz”.24
Assim, “afirmam que o modelo dos melhores interesses pode ser usado para invalidar
decisões do substituto que sejam claramente contrárias aos melhores interesses do
paciente”.25
O mandato duradouro como já dito anteriormente tem um alcance mais amplo porque
demonstra seus efeitos cada vez que a pessoa que o outorgou seja incapaz de tomar uma
decisão, ainda que de forma temporária, enquanto, a declaração prévia de vontade do
paciente terminal só produzirá efeito nos casos de incapacidade definitiva do paciente.26

4 VALIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS NO BRASIL

No Brasil até a presente data não há lei específica sobre o testamento vital, sequer
projeto de lei em tramitação. A fundamentação da sua validade é trabalhada em cima de
regulamentações, decisões judiciais e alguns princípios que veremos a diante.
Em 28 de novembro de 2006 foi editada a Resolução n. 1.805 pelo CFM (2006),
constando no seu preâmbulo a permissão para o médico limitar ou suspender, na fase
terminal de enfermidades graves, tratamentos que prolonguem a vida do doente, devendo,

23
DADALTO, L. Declaração antecipada de vontade. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 523-543, 2009.
Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_/article/view/515/516. Acesso em: 22 out.
2021.
24
BEAUCHAMP T.; CHILDRESS J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. Disponível
em: https://www.google.com.br/books/edition/Principios_de_etica_biomedica/1i-WZeYTqicC?hl=pt-
BR&gbpv=0. Acesso em: 01 abr. 2016.
25
BEAUCHAMP T.; CHILDRESS J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. Disponível
em: https://www.google.com.br/books/edition/Principios_de_etica_biomedica/1i-WZeYTqicC?hl=pt-
BR&gbpv=0. Acesso em: 01 abr. 2016.
26
BEAUCHAMP T.; CHILDRESS J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola, 2002. Disponível
em: https://www.google.com.br/books/edition/Principios_de_etica_biomedica/1i-WZeYTqicC?hl=pt-
BR&gbpv=0. Acesso em: 01 abr. 2016.
47

contudo, ser mantidos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao
sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou
de seu representante legal.27
Se tratando a Resolução n. 1.805/2006 de uma norma que vincula apenas a
comunidade médica, a aprovação desta resolução foi parar nos tribunais devido a sua
repercussão social, onde o Ministério Público Federal do Distrito Federal questionou o poder
de regulamentação do CFM para estabelecer conduta ética uma conduta que é tipificada
como crime, e propôs a ação civil pública n. 2007.34.00.014809-3 na 14ª Vara Federal do
Distrito Federal.28
A referida resolução foi suspensa liminarmente após decisão do Juiz Federal Roberto
Luis Luchi Demo, que apesar de ter reconhecido que a ortotanásia não antecipa o tempo da
morte, fazendo com que apenas esta ocorra em tempo natural, entendeu que por estar em
tramitação no Congresso Brasileiro um anteprojeto de reforma da parte especial do Código
Penal colocando a eutanásia como homicídio privilegiado e descriminalizando a ortotanásia,
logo seria crime a quando da propositura da ação.29
Após o ajuizamento desta ação civil pública, o CFM aprovou o novo Código de Ética
Médica em 24 de setembro de 2009 estabelecendo entre os seus principais fundamentos, que
diante de situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de
procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários, propiciando aos pacientes sobre
sua atenção todos os cuidados paliativos.30
Corroborando com toda essa evolução em 31 de agosto de 2012 o Conselho Federal
de Medicina aprovou a Resolução nº 1.995, dispondo sobre diretivas antecipadas de vontade
no Brasil, passando a ser a primeira regulamentação sobre o tema no país.31
Sobre a resolução o CFM esclareceu afirmando, que a resolução respeita a vontade
do paciente conforme o conceito de ortotanásia e não possui qualquer relação com a prática
de eutanásia, tendo a intenção de reafirmar um limite inerente ao instituto, trazendo como
fundamento a decisão advinda do julgamento da ação civil pública 2.007.34.00.014809-3
em que considerou a eutanásia proibida e a ortotanásia permitida no Brasil.32
Luciana Dadalto, esclarece que a Resolução 1995/2012 não legalizou as diretivas

27
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 155.
28
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 157.
29
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 157-158.
30
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 161.
31
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 163.
32
DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 245 p.
48

antecipadas de vontade no país por não possuir força de lei, não tendo o CFM competência
para legislar a respeito.33
Deve ainda ser ressaltado, que a referida Resolução estabelece dentre outras
diretrizes no seu parágrafo segundo que o médico deverá registrar em prontuário as diretivas
antecipadas de vontade que lhes forem diretamente comunicadas pelo paciente, o que para
Dadalto iria de encontro com o papel que o médico tem nas DAV nos demais países, porque
a sua função vai muito mais além de transcrever a vontade do paciente, mas esclarecer o
declarante quanto aos procedimentos que podem ou não ser recusados.34
Entende ainda, ser imprescindível a orientação de um outro médico de confiança para
a realização das diretivas antecipadas, sendo toda a precaução e informação exatamente o
que garante ao declarante que a sua expressão de vontade será pura e verdadeira.35
Outro avanço importante, apesar de algumas falhas, se deu através do Enunciado 37
da I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça que dispõe que:

as diretivas ou declarações antecipadas de vontade, que especificam os


tratamentos médicos aos quais o declarante deseja ou não se submeter quando
incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente
por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem
prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.

O Enunciado utiliza as nomenclaturas “As diretivas ou declarações antecipadas de


vontade”, mas deve ser esclarecido que o que existe é Diretiva Antecipada de Vontade, e
Declaração Prévia de Vontade do Paciente em fim de vida, sendo este o nome mais correto
para Testamento Vital, que como já falamos é uma espécie de Diretiva Antecipada de
Vontade.36
O Enunciado apenas versou quanto à manifestação de vontade sobre tratamentos
médicos, quando na verdade as diretivas antecipadas versam também sobre cuidados
médicos, sendo omisso ainda em muitos aspectos e pouco claro em algumas colocações.37
Os princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III) e da
Autonomia (princípio implícito no art. 5º), bem como a proibição do tratamento desumano
(art. 5º, III) também dão base a validade jurídica das diretivas antecipadas no Brasil, por

33
DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 164.
34
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 165.
35
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 166.
36
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 177.
37
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 177-178.
49

serem uma forma de expressão de autonomia do indivíduo, além de serem instrumento


garantidor da dignidade.38
Dadalto, defende a imprescindibilidade da lavratura das DAV por escritura pública,
perante um notário, a fim de garantir a segurança jurídica, fala ainda, sobre a importância da
criação de um registro nacional de DAV a fim de possibilitar uma maior efetividade no
cumprimento da vontade do paciente, de modo a não correr risco de que declaração se torne
inócua.39
Ressalta ainda, que uma legislação específica é imprescindível para a efetivação e
disseminação do instituto no Brasil, com a finalidade de regulamentar os critérios de
capacidade e/ou discernimento do outorgante, o conteúdo das DAV juridicamente válidas
no direito brasileiro, a existência (ou não) de prazo de eficácia, quem pode ser nomeado
procurador para cuidados de saúde, bem como os aspectos formais de registro.40
Apesar de não existir ainda no Brasil legislação específica, afirma que desde que as
normas vigentes e que o seu conteúdo verse apenas sobre a interrupção dos tratamentos ditos
fúteis, uma vez que os cuidados paliativos são garantidores da Dignidade da Pessoa Humana,
um dos princípios basilares do ordenamento jurídico.41

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Notamos que o princípio do respeito à autonomia vem sendo amplamente adotado


pelos instrumentos normativos concernentes à aplicação das vontades dos pacientes
terminais ou em fim de vida.
Desde a implementação das Diretivas antecipadas nos Estados Unidos muito tem
avançado, inclusive com a adoção de novos documentos que proporcionam maior facilidade
ao usuário e ao corpo médico com a sua desburocratização.
A Constituição Federal de 1988, a Lei 8.078/1990 e o Código de Ética Médica
Brasileiro foram fundamentais no que tange ao Consentimento Livre e Esclarecido do
Paciente. A partir desse momento houve um fortalecimento de que o paciente não é apenas

38
DADALTO, L. Testamento Vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 179.
39
DADALTO, L. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. Civilistica.com, a. 2, n. 4, 2013.
Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Dadalto-civlistica.com-a.2.n.4.2013.pdf.
Acesso em: 28 mar. 2016.
40
DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 245 p.
41
DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 203 p.
50

mero expectador, ele deve ser informado e entender de fato o tratamento que será realizado,
podendo se for o caso recorrer a negativa de tratamento que considera dolorosos em casos
que não alterará o fim da vida ou a terminalidade.
Quanto a nomeação de um procurador de saúde, ainda tem causado muita angústia
no paciente, familiares e a quem for nomeado. A falta de esclarecimento quanto a melhor
pessoa para tomar a decisão mais acertada ainda é uma dúvida.
Resta claro que o procurador deve cumprir os desejos expressos pelo paciente, não
podendo mudar a decisão de acordo com as suas convicções ou religião. Deve prevalecer a
autonomia de vontade do paciente e a dignidade da pessoa humana, estando vinculado ainda
ao efeito erga omnes do testamento vital, com a finalidade de que não ocorra uma
judicialização do “direito de morrer”.
No Brasil ainda estamos começando a conhecer esse instituto, procurando
internalizá-lo na nossa cultura e sociedade. Não existe uma lei específica no nosso
ordenamento jurídico que regulamente o instituto.
Tal regulação se faz necessária, com a finalidade de possa ser esclarecido a forma,
conteúdo, validade, registro e normas para nomeação de procurado de saúde, entre outras
para que as diretivas antecipadas de vontade continuem sendo garantidoras da autonomia de
vontade e dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

BEAUCHAMP T.; CHILDRESS J. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Loyola,


2002. Disponível em:
https://www.google.com.br/books/edition/Principios_de_etica_biomedica/1i-
WZeYTqicC?hl=pt-BR&gbpv=0. Acesso em: 01 abr. 2016.

CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.805/2006. Na fase terminal de


enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos
e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para
aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral,
respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal. Brasília, 2006. Disponível
em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm. Acesso: 01 abr.
2016.

DADALTO, L. História do testamento vital: entendo o passado e refletindo sobre o presente.


Mirabilia Medicinae, v. 4, n. 1, p. 23-42, jan./jun. 2015. Disponível em:
http://www.revistamirabilia.com/sites/default/files/medicinae/pdfs/med2015-01-03.pdf.
Acesso em: 20 out. 2021.
51

DADALTO, L. Aspectos registrais das diretivas antecipadas de vontade. civilistica.com, a.


2, n. 4, 2013. Disponível em: http://civilistica.com/wp-content/uploads/2015/02/Dadalto-
civlistica.com-a.2.n.4.2013.pdf. Acesso em: 28 mar. 2016.
DADALTO, L. Declaração antecipada de vontade. Revista Bioética, v. 17, n. 3, p. 523-543,
2009. Disponível em:
http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_/article/view/515/516. Acesso em: 22
out. 2021.

DADALTO, L. Testamento vital. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. 245 p.


52

PROMOÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE PARA


PACIENTES COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA A
PARTIR DA MEDICINA PERSONALIZADA

Estéfani Luise Fernandes Teixeira1

Resumo: Este artigo reflete sobre o direito fundamental à saúde e o aumento dos Transtorno
do Espectro Autista (TEA), apresentando a medicina personalizada como alternativa eficaz
para o diagnóstico precoce, de forma a propiciar tratamentos dignos, mais eficazes, menos
penosos, mais assertivos e de maneira individualizada. Nesse contexto, examina-se o TEA e
sua correlação com as normas constitucionais e infraconstitucionais a partir do direito
fundamental à promoção da saúde. Em seguida, investiga-se as relações como justa
igualdade de oportunidades nas relações humanas, averiguando as medidas governamentais
efetivas. Oportunamente, analisa-se as tecnologias como big data e blockchain para fins de
proteger os dados pessoais e sensíveis do titular. Da mesma forma, avalia-se os benefícios
da aplicação da medicina de personalizada para a promoção da saúde e tratamentos mais
eficazes. Por fim, a metodologia proposta para atingir os objetivos é hipotético-dedutiva com
cunho exploratório e realizada por meio de levantamento bibliográfico.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Medicina Personalizada. Promoção da Saúde.


Transtorno do Espectro Autista. Políticas Públicas.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende examinar o direito fundamental à saúde enquanto


economicamente viável no setor da saúde brasileira, notoriamente no Sistema Único de
Saúde (SUS) e planos de saúde para a aplicabilidade efetiva dos valores supremos
constitucionais. Nesse segmento, averigua-se a aplicação da medicina personalizada para
tratamentos mais eficazes, mais assertivos, menos penosos em pacientes com Transtorno do
Espectro do Autismo (TEA). Destarte, é fundamental garantir saúde digna aos pacientes e
para a tutela de direitos fundamentais e garantias deles decorrentes, dispostas na Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB).
No contexto brasileiro, a CRFB, logo em seu preâmbulo, declara a concepção de um
estado democrático de direito, ao referir, expressamente: “Nós, representantes do povo

1
Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especialista em Direito Material e Processual
do Trabalho e Bacharela em Direito pela Pontifícia Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Membro da
Comissão Especial de Educação e da Comissão Especial da Saúde da OAB/RS. Advogada.
53

brasileiro, em assembleia Nacional constituinte […].”2 Este Estado de direito tem como
objetivos essenciais “[…] assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos […].”,3 sendo, por seu
turno, “fundado na harmonia social” e comprometendo-se, na ordem interna e internacional,
a agir de forma pacífica
A pesquisa tem por objetivo analisar as inovações tecnológicas (big data e
Blockchain) para a aplicação da medicina de precisão no setor da saúde, notoriamente nos
casos de pacientes com TEA. Assim, proporcionando melhor qualidade de vida ao paciente
e titular dos dados com tratamentos eficazes e menos penosos aos que já adquiriram a doença
mapeando os dados do paciente: pré-disposição genética, estilo de vida, sinais, sintomas,
histórico pessoal e familiar, exames anteriores, bem como fatores ambientais. Em suma,
todos e quaisquer dados, utilizando-se do sequenciamento genético, big data e blockchain
como ferramentas para aplicação da medicina de precisão. Outrossim, o estudo contemplará
os valores supremos da CRFB, dos Direitos Humanos, sociais, das diretrizes da saúde: leis,
regulamentos, recomendações, demonstrando a importância de recursos públicos em ambos
os setores: tecnologias e saúde, bem como, uma atuação ativa do governo para ter-se um
Estado Democrático de Direito, conforme previsto na CRFB.
Ademais, destaca-se que as inovações tecnológicas são irreversíveis e irrefreáveis a
sociedade 4.0 (indústria 4.0) já está atenta a esta revolução, bem como a sociedade 5.0
(denominada sociedade inteligente, criada no Japão) que tem por objetivo, dentre outros, a
transformação/resolução dos problemas globais e sociais mundiais. Sendo assim, é
necessária a pesquisa das novas frentes de diagnósticos e tratamentos médicos na área
tecnológica, repensando a saúde e criando estratégias.
Diante o exposto, o cerne do artigo é, portanto: avaliar a aplicabilidade da medicina
de precisão nos tratamentos de pacientes com TEA via a tecnologia do Big Data e
Blockchain objetivando promover o direito fundamental à saúde.
Nesse sentido, a proposição de políticas públicas que sejam inovadoras, eficazes e
eficientes é crucial à prestação de serviços de saúde, que respeitem a dignidade da população,
especialmente a carente, principal usuária do SUS. Ademais, referido desiderato encontra-

2
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. Posição 1749.
3
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. posição 1756.
54

se em consonância com o atual contexto econômico, político e social da alcunhada sociedade


pós-moderna para resolver problemas de cunho social e global.
Por fim, sendo o meio acadêmico o ambiente no qual devam ser discutidas e arejadas,
transformadas e reconstruídas as ideias, em tempos de colapso no setor da saúde, a pesquisa
encontra campo fértil ao seu desenvolvimento, pois representa tema atual e, mormente no
que diz respeito às políticas públicas eficazes e o direito fundamental à saúde.

2 TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)

Atualmente, o TEA é definido por diversos sintomas em comum, admitindo-se que


ele seja representado por uma única categoria diagnóstica, adaptável conforme apresentação
clínica individual, o que permite incluir especificidades clínicas, como transtornos genéticos
conhecidos, epilepsia, deficiência intelectual e outros.4 Passa-se a considerar que déficits na
comunicação e comportamentos sociais são inseparáveis e podem ser avaliados mais
acuradamente quando observados como um único conjunto de sintomas com especificidades
contextuais e ambientais.5 Considera-se ainda que atrasos de linguagem não são
características exclusivas dos TEA nem são universais dentro deles, podendo ser definidos,
apropriadamente, como fatores que influenciam nos sintomas clínicos de TEA, e não como
critérios de diagnóstico.
A exigência de que esses dois critérios sejam completamente preenchidos parece
melhorar a especificidade do diagnóstico dos pacientes com TEA sem prejudicar sua
sensibilidade. Os comportamentos sensoriais incomuns, explicitamente incluídos dentro de
um subdomínio de comportamentos motores e verbais estereotipados, parece aumentar a
especificação daqueles que podem ser codificados dentro desse domínio, parecendo ser,
particularmente relevantes para as crianças mais novas.
Destaca-se o fato de que a sintomatologia deve estar presente desde o nascimento ou
começo da infância, mas que pode não ser detectada antes, por conta das demandas sociais
mínimas na infância precoce, e do intenso apoio dos pais ou cuidadores nos primeiros anos
de vida.6 Assim, demonstrando determinadas estatísticas realizadas por estudiosos dizem

4
SELLA; Carolina Ana, RIBEIRO, Mendonça Daniela. Análise do comportamento aplicada do Transtorno
do Espectro Autista. Curitiba: Appris, 2018. p. 25.
5
SELLA; Carolina Ana, RIBEIRO, Mendonça Daniela. Análise do comportamento aplicada do Transtorno
do Espectro Autista. Curitiba: Appris, 2018. p. 25.
6
SELLA; Carolina Ana, RIBEIRO, Mendonça Daniela. Análise do comportamento aplicada do Transtorno
do Espectro Autista. Curitiba: Appris, 2018. p. 25.
55

que aproximadamente 1,5% das crianças norte-americanas desenvolve autismo – um número


que aumenta para 20% quando a família já tem um filho com autismo e para 33% quando a
família já tem dois filhos com autismo.7
No que tange ao TEA:

[…] esse é um esforço complicado precisamente porque o autismo é conhecido


como uma doença “complexa”. Diferentemente de condições “simples” como a
doença de Huntington, na qual uma única mutação genética é a causa (como a
maioria de outros traços e condições), o TEA costuma ser causado por uma
combinação de fatores, que pode ser distinta para diferentes indivíduos. Sabemos
que o autismo, assim como muitos outros transtornos complexos, está associado à
mutação em genes específicos (embora estes sejam raros), a alterações estruturais
nos cromossomos que influenciam o funcionamento genético e a uma combinação
de variações em múltiplos genes, bem como a contribuições de vários fatores
ambientais específicos.8

Os pacientes com TEA tem o direito de tratamento digno e eficaz por meio de
legislações e regulamentos. No Brasil não temos um estudo das crianças diagnosticadas com
TEA. Todavia, percebe-se um aumento de pais que procuram ajuda para os seus filhos com
o transtorno. Importante mencionar que, hoje adultos são diagnosticados com TEA, ou seja,
não é somente crianças. A sociedade Brasileira de Pediatria diz que o TEA, é “[…] um
transtorno do desenvolvimento neurológico, caracterizado por dificuldades de comunicação
e interação social e pela presença de comportamentos e/ ou interesses repetitivos ou
restritos”.9 Frisa-se ao analisar que se tem vários outros conceitos e o maior deles está ligado
aos movimentos repetitivos restritos do paciente.
A Lei n. 12.764/2012,10 a qual foi um marco para o direito dos autistas, em seu artigo
5º proíbe os planos privados de assistência à saúde de impedir a participação da pessoa
autista em razão da sua deficiência. Com base nessa lei, pacientes com TEA tiveram uma
base legal mais concreta, principalmente em questão do tratamento, da intervenção precoce,

7
BERNIER, Raphael A.; DAWSON, Geraldine; NIGG, Joel T. O que a ciência nos diz sobre o transtorno
do espectro autista: fazendo as escolhas certas para o seu filho. Porto Alegre: Artmed, 2021. e-Book. p. 56.
8
BERNIER, Raphael A.; DAWSON, Geraldine; NIGG, Joel T. O que a ciência nos diz sobre o transtorno
do espectro autista: fazendo as escolhas certas para o seu filho. Porto Alegre: Artmed, 2021. e-Book. p. 56.
9
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA (SBP). Departamento Científico de Pediatria do
Desenvolvimento e Comportamento. Transtorno do Espectro do Autismo. Manual de Orientação n. 05. São
Paulo: SBP, abr. 2019. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/21775d-MO_-
_Transtorno_do_Espectro_do_Autismo__2_.pdf. Acesso em: 30 de ago. 2021.
10
BRASIL. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos
da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art. 98 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de
1990. Brasília, 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12764.htm. Acesso em: 30 de ago. 2021.
56

da intervenção da possibilidade de estudos nas escolas e como deve ser feita essa adaptação.
Faz-se necessário frisar a Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015), 11 em seus
artigos 20 e 23, proíbe qualquer forma de discriminação dos planos e seguros privados, em
razão da deficiência e garante à pessoa com deficiência, no mínimo, todos os serviços e
produtos ofertados aos demais clientes.
Sendo assim, importante mencionar que uma lei complementa a outra. Em casos de
pacientes com TEA se faz necessário buscar outras legislações, tais como, o Instituto da
criança e do adolescente, CRFB, doutrinas e jurisprudência, entre outras para concretizar os
direitos fundamentais e proporcionar dignidade nos tratamentos dos pacientes com essa
deficiência, seja no SUS ou nos planos de saúde.
Nessa esteira, Sarlet aduz que o termo “direitos fundamentais […] se aplica àqueles
direitos (em geral atribuídos à pessoa humana) reconhecidos e positivados na esfera do
direito constitucional positivo de determinado Estado”,12 enquanto os direitos humanos estão
relacionados com o direito internacional

[…] por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano
como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos
e em todos os lugares, de tal sorte que revelam um caráter supranacional
(internacional) e universal.13

O direito à vida mediante a prestação estatal organizada ou por instituições, que


visam conceder aos indivíduos carentes de recursos suficientes para a sua sobrevivência dos
serviços essenciais à existência digna.14 Nesse diapasão, igualmente, o Supremo Tribunal
Federal (STF), em jurisprudência vinculada ao direito à saúde e o direito à vida, afirma que
“O direito à saúde, além de qualificar-se como direito fundamental, que assiste a saúde de
todas as pessoas, representa consequência constitucional indissociável do direito à vida”.15

11
BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, 2015. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 30 ago. de 2021.
12
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. p. 307.
13
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. p. 307
14
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz.
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2018. posição 1078.
15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma. Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n.
734.487. Relatoria: Ministra Ellen Gracie. Julgado em: Brasília, 03 ago. 2010. Publicado em:Brasília, 20 ago.
2010. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201814. Acesso em: 18
mar. 2021.
57

No que tange ao significado da dignidade da pessoa humana, o autor o define como


um valor intrínseco da pessoa humana. No pensamento clássico, como qualidade intrínseca,
irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano.16
A CRFB, em seu título II, capítulo I, consagra a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida sem qualquer distinção.17 Nesse sentido, Sarlet elucida que a

[…] titularidade do direito à vida é ampla, assegurada a qualquer pessoa natural,


portanto, qualquer ser humano, independentemente de ser nacional ou estrangeiro,
visto que se trata de um direito cuja titularidade inequivocamente se rege pelo
princípio da universalidade e não pode ser reservada apenas aos brasileiros e
estrangeiros residentes no Brasil. 18

Sendo assim, substancialmente, inexistem distinções entre direitos humanos e


direitos e garantias fundamentais, contudo há uma generalização de sentido e propósito. O
objetivo principal de ambos está voltado à proteção da vida e dignidade da pessoa humana,
“[…] ainda que representado por entes coletivos diversos (grupos, povos, nações, Estado),
também é certo que não é esse o motivo pelo qual a distinção se faz necessária, ainda mais
no contexto do direito constitucional positivo.”19 Nessa linha, subentende-se que o direito à
saúde é um direito fundamental humano primordial, uma vez que o direito à saúde poderá
garantir à vida.

3 APLICAÇÃO DA MEDICINA PERSONALIZADA PARA A PROMOÇÃO DO


DIREITO FUNDAMENTAL A SAÚDE

A medicina de precisão, também intitulada de personalizada, cuida unicamente de

16
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade (da pessoa) humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 473-474.
17
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileirose aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade […].” Cf. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 ago. 2021.
18
Na Constituição Federal de 1988, o direito à vida foi expressamente contemplado no elenco do artigo 5.º,
caput, na condição mesma – teor do texto constitucional – de direito “inviolável”. Além da proteçãogenérica já
referida, a vida encontrou proteção constitucional adicional, mediante a proibição da pena de morte, salvo em
caso de guerra declarada (art.5.º, XLVII, a), guardando, portanto, sintonia textual com o sistema internacional
(pacto dos direitos civis e políticos e Protocolo Adicional) e regional (interamericano) de proteção dos direitos
humanos.” Cf. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de
direito constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. posição: 8979.
19
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. p. 307.
58

cada indivíduo, aliando os dados já convencionados para diagnósticos e tratamentos,


observando fatores de predisposição genética, bem como os sinais, sintomas, história
pessoal/familiar, estilo de vida, fatores ambientais e exames complementares amplamente
utilizados,20 ao contrário de conceber tratamentos com base em grupos sociais. Em suma,
proporciona um mapeamento dos dados sensíveis do paciente atuando de forma preventiva
para obtenção de informações sobre futuras doenças ou possibilitando um tratamento com
maior eficácia e efetividade. Importa frisar que, a medicina personalizada pode oferecer uma
forma de ampliar o tratamento e torná-lo mais efetivo, eficaz e eficiente. Contudo, esse não
pode substituir as interações reais com outras pessoas. Tendo em vista que, muitos pacientes
de TEA comprovadamente precisam otimizar a interação social e desenvolvimento da
linguagem para a evolução do seu tratamento.
Klaus Schwab corrobora que esses avanços causarão um impacto profundo e
imediato na medicina, tendo em vista que, muitos problemas de saúde que antes eram
intratáveis, “[…] desde as doenças cardíacas até deficiências como TEA, têm um
componente genético”.21
Em razão disso, o autor aduz:

[…] a capacidade de determinar nossa constituição genética individual de forma


eficiente e econômica (por meio de máquinas utilizadas em diagnósticos rotineiros
de sequenciamento) irá revolucionar os cuidados de saúde, tornando-os
personalizados e eficazes. Informados pela constituição genética de um tumor, os
médicos poderão decidir o melhor tratamento para o câncer de um paciente.
Enquanto nossa compreensão das ligações entre os marcadores genéticos e as
doenças ainda é pequena, o aumento da quantidade de dados irá possibilitar uma
medicina de precisão, permitindo o desenvolvimento de terapias altamente
segmentadas para melhorar os resultados dos tratamentos. […].22

Vale ressaltar que esta nova área da saúde pretende descobrir o tratamento certo, para
o paciente certo, no momento exato, quando há alguma enfermidade. Partindo-se da
predisposição genética e do estilo de vida e fatores ambientais que afetam o indivíduo.
A sociedade 4.0 congrega várias tecnologias para buscar maior efetividade, em prol
de maior eficiência, sendo incrementadas no setor da saúde, possibilitando vida digna ao ser

20
UZIEL, Daniela. Medicina de precisão: o que é e que benefícios traz? Centro de Pesquisa em Ciência,
Tecnologia e Sociedade do IPEA, [s.l.], 30 ago. 2021. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-
de-conteudo/artigos/artigos/95-medicina-de-precisao-o-que-e-e-que-beneficios-traz. Acesso em: 18 ago. 2021.
21
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. 5. ed. São Paulo: Edipro, 2018. p. 29.
22
SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. 5. ed. São Paulo: Edipro, 2018. p. 30.
59

humano. Isso significa, em última análise, proporcionar aos pacientes uma medicina
eficiente e precisa ou um tratamento com maior índice de assertividade, sendo menos penoso
ao paciente. As relações humanas e biológicas foram modificadas, criando uma necessidade
de se imprimir tecnologia de ponta tanto no setor público, quanto no privado, no sentido de
tutelar os direitos fundamentais da pessoa humana previstos na CRFB, razão pela qual os
reflexos de tais inovações não podem ser ignoradas no âmbito do direito.
Sobreleva mencionar que é indispensável na medicina personalizada para a proteção
dos dados pessoais e sensíveis dos pacientes com TEA entre outras enfermidades se faz
necessário aplicar softwares para o tratamento de dados. Valendo-se dos dados da Big Data
que

[…] representa o êxtase do progresso quantitativo e qualitativo da gestão da


informação. Essa tecnologia permite que um volume descomunal de dados seja
estruturado e analisado para uma gama indeterminada de finalidades. Com base
na abordagem de Doug Laney, o Big Data é comumente associado a 3 (três)
vetores “Vs”: Volume, velocidade e variedade. Volume e variedade, porque ele
excede a capacidade das tecnologias “tradicionais” de processamento, conseguido
organizar quantidades antes inimagináveis – dos bits aos yottabytes – e em
diversos formatos – e.g., textos, fotos etc.- e, tudo isso, em alta velocidade. Tal
evolução poderia ser imputada a uma diferença crucial entre o Big Data e as outras
metodologias comuns de processamento de dados, que é de fato da
prescindibilidade de os dados estarem previamente estruturados para o seu
tratamento.23

Da mesma forma,

[…] o blockchain atua como um livro-razão “peer-to-peer” extenso, digital e


distribuído que não está restrito a suporte de criptomoedas, podendo a vir servir
como instrumento de agilidade, segurança, e redução de custos em praticamente
qualquer cenário que exija registros sistemáticos (Gestão contratos, registros
imobiliários etc.) Em resumo, pode-se dizer que é uma corrente distribuída
expansível de blocos de dados interligados por conexões criptográficas.24

Ademais, a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990) dispõe sobre as condições


para a promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento25 bem

23
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. p. 40.
24
PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Tomazi; OLIVEIRA NETO, Antônio Alves de. Fundamentos
dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2019. p. 12.
25
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Brasília, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm. Acesso em: 18 ago.
2021.
60

como sobre os princípios norteadores (universalidade, equidade, integralidade) e as


orientações organizacionais (hierarquização, regionalização, descentralização e participação
social).26 Na mesma direção, a CRFB, em seu artigo 196, aduz que a saúde é um direito de
todos e um dever do estado “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem a
redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços a sua promoção, proteção e recuperação.27 Na mesma linha, a previsão do art. 198
da CRFB, que estabelece a competência comum, bem como a organização em rede,
regionalizada e hierarquizada, a qual constitui um sistema único, prevendo uma ação
conjunta e coordenada entre os entes federativos na realização do princípio fundamental de
proteção à saúde28
De acordo com Sarlet, a CRFB pode ser considerada como a mais democrática e
avançada em nossa história, tendo contribuído muito para assegurar a estabilidade
institucional que tem sido experimentada no Brasil desde então, dando como exemplo de
normas impositivas de objetivos e tarefas em matéria econômica, social, cultural e ambiental
contidas no texto.29
A CRFB, salvo alguns dispositivos implícitos, não estabelece exatamente o conteúdo
do direito à saúde (proteção e promoção), fato que por sua vez, não pode afastar a intervenção
judicial no que for admissível pela Administração Pública. Por sua vez, é viável extrair da
CRFB que o direito fundamental à saúde contempla os valores de prevenção e promoção,
em seu artigo 196.30 Resta mais “[…] apropriado não falar de um direito a saúde, contudo,
mas de um direito à proteção e promoção da saúde”.31

26
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Brasília, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8080.htm. Acesso em: 18 ago.
2021.
27
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 18 ago. 2021.
28
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Senado Federal, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.
Acesso em: 18 ago. 2021.
29
SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito
constitucional. 8. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2019. posição 5536
30
“Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicasque
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às açõese serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.” Cf. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 ago. 2021.
31
CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz.
Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva; Almedina, 2018. p. 10353.
61

Em nosso país ainda se tem uma situação muito precária, notoriamente no setor da
saúde pública pela influência direta na gênese das patologias com maior prevalência. As
políticas públicas atuais não são capazes de reverter esse quadro, contudo, um conjunto de
políticas sociais, pode contribuir significativamente para a promoção da cidadania de uma
parcela expressiva da população brasileira.32
Diante do exposto, se faz necessário um diagnóstico preciso, assertivo para melhorar
a qualidade de vida dos pacientes com TEA por meio da medicina personalizada. Assim,
proporcionando tratamentos mais eficazes e eficientes para os pacientes. Assim, tutelando
os direitos e garantias fundamentais elencados nos artigos da CRFB bem como, qualidade
de vida para pacientes com TEA e seus familiares.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A medicina personalizada é uma nova abordagem da medicina, que pode dar um


diagnóstico preciso, um tratamento menos sofrido ao paciente, também transformando a
maneira de pensar no cuidado da saúde humana individualmente. Ensina Iriart que as
ciências sociais têm muito a contribuir,

[…] situando o sujeito e o corpo biológico em seu contexto histórico, político,


ambiental e econômico, abordando a repercussão da implantação das novas
tecnologias genômicas na prática clínica, com base no saber local e na experiência
dos profissionais de saúde, pacientes e comunidades diretamente afetados pelas
inovações tecnológicas.33

O futuro da saúde invariavelmente dependerá das novidades tecnológicas


(irreversíveis e irrefreáveis) e os países desenvolvidos economicamente se beneficiarão
implementando uma medicina com baixo custo, que poderá ser disponível no SUS bem
como nos planos de saúde.
No que concerne aos benefícios no setor da saúde, a medicina personalizada está
sendo bem utilizada para diagnosticar múltiplas doenças ou futuras doenças, tais como
cânceres e deficiências como o TEA.34 Assim, por meio da aplicação das tecnologias e

32
PUSTAI, Odalci José; FALK, João Werner. O sistema de saúde no Brasil. In: DUNCAN, Bruce B.;
SCHMIDT, Maria Inês; DUNCAN, Michael Schmidt; GIUGLIANI, Camila. Medicina ambulatorial:
condutas de atenção primária baseadas em evidências. 4. ed. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 18.
33
IRIART, Jorge Alberto Bernstein. Medicina de precisão/medicina personalizada: análise crítica dos
movimentos de transformação da biomedicina no início do século XXI. Caderno de Saúde Pública, Rio de
Janeiro, v. 35, n. 3, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
311X2019000303001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 mar. 2021
34
IRIART, Jorge Alberto Bernstein. Medicina de precisão/medicina personalizada: análise crítica dos
movimentos de transformação da biomedicina no início do século XXI. Caderno de Saúde Pública, Rio de
62

medicina personalizada proporcionando tratamentos dignos e eficazes para crianças com


TEA.
Diante do exposto, existem múltiplos diagnósticos que as inovações tecnológicas no
setor da saúde podem se beneficiar, e este é o futuro, porém é necessário que haja recursos
públicos financeiros no setor da saúde, cabendo ao Estado prestar assistência à saúde.
Por todo exposto, é imprescindível analisar os benefícios da inserção da medicina de
precisão no sistema único de saúde planos de saúde, em cuidado aos pacientes com TEA e
outras doenças/ deficiências em prol de um tratamento eficaz e mais preciso. Assim como,
estudar políticas públicas como forma de inserção destas tecnologias para salvar vidas ou
dar maior assertividade nos tratamentos dos pacientes
O presente artigo, assim, tem por escopo demonstrar a necessidade da intervenção
estatal para garantir, em respeito aos valores supremos da CRFB, essencialmente ao
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, saúde a todos, curativa e tratativa,
bem como os benefícios da utilização das tecnologias, em especial do Big Data, para tal
finalidade.
Nesse sentido, sob o enfoque da dignidade da pessoa humana, faz-se mister a
prestação, pelo Estado, de um serviço de saúde adequado e suficiente, que atenda à sua
função social, mediante investimentos em pesquisas e políticas públicas, a fim de que tudo
se reverta em vantagens, tanto aos usuários do SUS, quanto ao próprio sistema que, sendo
mais eficaz, também poupa mais recursos.

REFERÊNCIAS

BERNIER, Raphael A.; DAWSON, Geraldine; NIGG, Joel T. O que a ciência nos diz sobre
o transtorno do espectro autista: fazendo as escolhas certas para o seu filho. Porto Alegre:
Artmed, 2021. Versão Kindle.

BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do


consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 18 ago.
2021.

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63

Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3º do art.
98 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Brasília, 2012. Disponível em:
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65

OS BENEFÍCIOS DAS FERRAMENTAS DE DIÁLOGO APLICADAS


NA MEDIAÇÃO PARA A ÁREA DA SAÚDE

Fernanda Beal Pacheco Ohlweiler1


Júlia do Couto e Silva Freitas2

Resumo: Este artigo objetiva apresentar as ferramentas de diálogo, em especial a


Comunicação Não-Violenta, como práticas eficazes de lidar com os conflitos na área da
saúde. Para tanto, serão apresentados os desafios da efetivação do direito à saúde, a
problemática dos métodos autocompositivos neste âmbito, e, ao final, será oferecido um
aporte prático sobre o potencial que o uso das ferramentas de diálogo tem para todos os
atores envolvidos nesta área: pacientes, famílias, advogados, profissionais de saúde e serviço
social, e etc. Pretende-se, assim, demonstrar os benefícios e possibilidades de satisfação dos
interesses dos envolvidos através do diálogo, ampliando o debate sobre a aplicação destas
ferramentas nas questões de direito à saúde.

Palavras-chave: Saúde como garantia constitucional e direitos; Mediação; Características


(ferramentas) da mediação; Comunicação Não-Violenta.

INTRODUÇÃO
Os conflitos de maneira geral geram mudanças. Essas mudanças podem trazer
aprendizados que permitem a evolução que vemos acontecendo, desde a promulgação da
Constituição Federal de 1988, a qual colocou holofotes na forma como se compreendia os
direitos fundamentais, ampliando sobremaneira a proteção aos cidadãos brasileiros. O direito
à saúde foi uma dessas consequências advindas da constituição cidadã.
E o direito e a medicina são ciências antigas, que convergem para o interesse do bem
comum, cada uma das áreas com suas características e que se tem notado merecem cada dia
mais atenção de forma a viabilizar as mudanças evolutivas que buscamos.
Esse estudo pretende elucidar mais como podemos nos relacionar de forma
construtiva, até mesmo diante de conflitos tão densos como os que envolvem a área da saúde,

1
Advogada (OAB-RS 54.001) especializada em Direito Médico. Defensora dativa nomeada junto ao
CREMERS. Membro da Comissão Especial da Saúde da OAB-RS. Membro da Comissão da Saúde da Família
do IBDFAM-RS.
2
Advogada (OAB/RS 99.174) e mediadora de conflitos. Mestre em Estudos de Paz e Transformação de
Conflitos pela Cátedra de Estudos de Paz da UNESCO da Universidade Innsbruck, na Áustria. Instrutora em
cursos de mediação, negociação, liderança, comunicação e justiça restaurativa. Sócia da Teia - Consultoria
Empresarial, que consolida culturas de comunicação assertiva nas organizações.
66

lançando mão de ferramentas que vem sendo elaboradas e experimentadas em diversas áreas
do conhecimento. Fomentar o debate e permitir a convergência de interesses para a
construção de relacionamentos permeados pelo diálogo, cooperação e boa-fé é o que nos
move para sugerir esse novo desdobramento para os conflitos.

DESAFIOS DA APLICAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE

Saúde e tempo cada dia estão mais atrelados como dois fatores determinantes para a
boa qualidade de vida das pessoas, todos precisamos de atenção à saúde, seja em nível básico
até o mais complexo. Para dimensionar, o volume de demandas primárias – assistência
básica de saúde – representa 80% do nosso Sistema Único de Saúde (SUS), conforme dados
coletados pelo Ministério da Saúde (GONÇALVES, 2014, p.54).
E quando enfrentamos conflitos que envolvam a área da saúde, direito fundamental
para qualquer cidadão brasileiro, sob o manto da Constituição Federal de 1988, as estratégias
para se trabalhar o tempo são ainda mais vitais. Veja-se o grande espectro que abrange o
SUS, pois não possui precedentes na história, especialmente em vista da grande quantidade
de vidas que abrange (FRANÇA, 2017, p. 86).
A dinâmica desses bens da vida (saúde e tempo) são resguardados por inúmeros
profissionais que conhecem bem a palavra emergência, urgência, pressa... E isso precisava
se estender até a profissões mais ortodoxas, como advocacia ou magistratura, muito atreladas
a códigos, normas e praxes que frequentemente não acompanham a velocidade e dinâmica
da vida humana – especialmente agora em que fração de segundos as informações são
rapidamente propagadas.
Os operadores do direito atualmente buscam desenvolver conhecimentos de outros
métodos, outras portas, para a solução de controvérsias. E as questões que embasam o direito
à saúde e o direito médico demandam ainda mais urgência nessa visão, acerca da ampliação
de portas para acesso à justiça. Pois, a cultura do litígio, submetido a um terceiro, chamado
de estado-juiz, para decidir sobre conflitos de saúde se mostra cada dia menos eficaz diante
das demandas de saúde.
Na saúde, o equilíbrio de interesses e propósitos é importante para manter a relação
entre os envolvidos. Por exemplo: planos de saúde que buscam a sua sustentabilidade, bem
como retorno financeiro, e beneficiários que precisam de tratamento diferenciado, diante de
inúmeras particularidades; metodologia do médico que gerou desconforto emocional e moral
67

no seu paciente; lista de medicamentos incorporados para os tratamentos pelo SUS, mas
ausentes em farmácias populares, entre outros exemplos.
Tanto o profissional do direito quanto o de saúde costuma ser chamado quando há
um problema, normalmente não se faz um trabalho preventivo. A sensação por isso é sempre
de corrida contra o tempo. E na medida em que mais pessoas são envolvidas, mesmo que
profissionalmente, o nível de tensão só tende a aumentar. Essa tensão resta traduzida em
palavras e ações, que podem gerar outros ou maiores conflitos.
Nesses tempos de pandemia, desencadeada para os brasileiros em março de 2020,
todo esse desgaste se potencializou. Observando os fatos passados podemos perceber que
houve legado positivo, pois houve uma ampliação do diálogo, possibilitando sim a
autocomposição. Todos tivemos que ceder e flexibilizar as formas de nos comunicar. As
sessões e audiências virtuais, as comunicações por meios eletrônicos, passaram a ser a única
ferramenta que dispúnhamos, e conseguimos sim construir e viabilizar essas alternativas.
Veja-se, por exemplo, os Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de
Conflitos (NUPEMECs) e os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania
(CEJUSCs) que têm trabalhado ativamente para que novas ferramentas sejam
disponibilizadas para o crescimento dos entendimentos, de forma a transformar efetivamente
a cultura do litígio (CNJ 2021).
A situação da pandemia evidenciou a dinâmica do direito à saúde e direito médico,
que invariavelmente é fruto de uma urgência, que não converge com o rito dos
procedimentos de intervenção de terceiro na tomada de decisão. A demora na tomada de
decisão impacta negativamente a obtenção do bem que é a vida e a dignidade. Os
procedimentos autocompositivos ficaram mais evidentes, pela agilidade e eficácia, nestes
tempos atípicos, e em que especialmente a saúde, em toda sua definição descrita pela OMS,
está em xeque.

EFETIVAÇÃO DO DIREITO À SAÚDE ATRAVÉS DOS MÉTODOS


AUTOCOMPOSITIVOS
A premissa de se tratar os iguais de forma igual e os desiguais em sua desigualdade
está passando ao largo das relações que envolvem a saúde e o direito médico. E essa alteração
de paradigmas, respeitando as minucias, as desigualdades, inicia pela movimentação
daqueles que estudam e podem difundir essas outras ferramentas disponíveis para a
resolução dos conflitos.
68

Não é novidade que trabalhar na área da Saúde e Direito Médico vem se tornando
cada dia mais desafiador. Requerer, provar e demonstrar a urgência do direito invocado
precisa estar alinhado aos temas de estudos recentes dos tribunais, que a cada dia se
aprofundam mais nas minucias. Os magistrados estão sendo convidados a analisar atos e
fatos jurídicos perante a lei vigente que deveriam ser de prontos observados pelos envolvidos
na demandada, que buscam o acesso à saúde. Veja-se a Constituição Federal e as leis que
disciplinam as relações nessa área são cristalinas, de modo que a premissa de “tratar
igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de sua igualdade” se observada
pelos princípios da boa-fé e cooperação simplificaria muito o acesso à justiça.
A soberania do ato médico e a autonomia de vontade do paciente acabam sendo
dissipadas pelo protagonismo da “obtenção da liminar”, pela busca à prestação jurisdicional
que obriga magistrados a se aprofundar mais do que o necessário na área de saúde.
De outro lado, os métodos autocompositivos, como a mediação e a conciliação
buscam a ajuda de uma terceira pessoa para intermediar esse diálogo, possibilitando o uso
de ferramentas que validem e deem maior empoderamento aos argumentos dos mais
fragilizados nas relações. E nestes dois métodos de resolução de conflitos, igualmente a
flexibilização é fundamental para se evoluir e possivelmente se chegar a um entendimento.
A conciliação costuma ser indicada para relações que não se pretendem manter após
a resolução do conflito. Não há a necessidade de se aprofundar o diálogo para se buscar os
pontos convergentes e dele se traçar opções para o prosseguimento de um relacionamento
profissional ou pessoal, comercial ou de consumo, político ou religioso (TARTUCE, 2016).
Por seu turno, a mediação é o método mais indicado para situações nas quais os
conflitos são mais profundos, emocionais e envolvem as pessoas que já possuíam uma
relação anterior. De forma que, o processo de diálogo conduzido por um terceiro imparcial
possibilita a tomada de decisão informada e esclarecida, sem imposições de convicções
alheias, prestigiando a autonomia e desencadeando o sentimento de empoderamento frente
às dificuldades (TARTUCE, 2016).

APLICAÇÃO DAS FERRAMENTAS DE DIÁLOGO UTILIZADAS EM


MEDIAÇÃO AO DIREITO À SAÚDE
Como dissemos, em situações conflitivas ou delicadas, pode-se precisar de um
terceiro imparcial para conduzir a interação, facilitando assim a compreensão dos interesses
de ambos os lados – e é isso que a mediação pode oferecer. Ela é essencialmente um
69

procedimento sobre comunicação: como os envolvidos podem esclarecer seus interesses e


afastar do caminho o que os impede de chegar a um acordo satisfatório para ambos? Como
aperfeiçoar a comunicação? De que forma expressar insatisfações, limites, divergências,
propostas, de forma a ser de fato escutado?
As sessões de mediação são desenhadas para colocar luz nestes pontos, sendo tarefa
do(a) mediador(a), através das ferramentas adequadas, conduzir estas conversas, para
ampliar a percepção dos participantes acerca das possibilidades de atender interesses
diversos, de forma satisfatória.
No âmbito da saúde, os métodos autocompositivos, em especial a mediação, têm um
potencial enorme, ainda pouco explorado. O embate gera gasto (físico, emocional e
financeiro), para todos os envolvidos. Abrir a possibilidade de conversa, compreendendo
interesses de ambos os lados, auxiliando as pessoas (beneficiárias e operadoras de saúde) a
"encontrar outras maneiras de satisfazer suas necessidades a um custo menor"
(ROSENBERG, 2019, p. 108).
Nestes casos, uma comunicação assertiva e propositiva se torna ainda mais premente,
visto que as questões trazidas em geral têm caráter de urgência e podem ser definitivas para
a vida das pessoas. Uma metodologia que pode apoiar tanto interações em mediação quanto
em negociações diretas é a comunicação não-violenta (CNV).
A CNV é "uma integração de pensamento, linguagem e comunicação"
(ROSENBERG, 2019, p. 29) um processo comunicacional que visa a construção de diálogos
saudáveis, contribuindo para o bem-estar comum. Ela surge da observação de que o que nos
move no mundo são nossas necessidades (ROSENBERG 2016;2019).
Como elucida Marshall Rosenberg (2019, p. 23), fundador da CNV, "ao invés de
ficar impotente ou de subjugar os outros para que nossas necessidades sejam atendidas, a
CNV adota a tática do 'poder com". A expressão "poder com" traduz a ideia de que, juntas,
as partes podem chegar a compromissos mais satisfatórios para ambas, potencializando
ganhos ao invés de somar prejuízos, perdas e desavenças que desgastam o relacionamento.
De acordo com Abraham Maslow (1993), que inspirou Rosenberg na elaboração da
CNV, as necessidades universais são um grupo de valores que todos nós, enquanto seres
humanos, partilhamos. Podem se tratar de necessidades físicas, tais como sono, nutrição,
sede, calor e abrigo, ou necessidades mais subjetivas, vinculadas à segurança, bem-estar
econômico, senso de pertencimento, reconhecimento ou controle sobre a própria vida, por
70

exemplo. Escuta, atenção e respeito também são necessidades legítimas que se encontram
aqui.
Em qualquer interação humana, podemos nos perguntar: quais
necessidades/interesses, desejos, preocupações ou temores estão em jogo, motivando as
ações das partes? Aí está a chave. Nesta linha, como afirma William Ury (2014, p. 58),
"Interesses são motivadores. (...) A sua posição é algo sobre o qual você decidiu. Seus
interesses são o que o levaram a tomar esta decisão”.
Se a busca pela identificação das necessidades das partes, através da utilização da
ferramenta de diálogo CNV, ainda parece distante na área da saúde, vamos percorrer
algumas perguntas, com o intuito de verificar se há pelo menos um potencial abertura para
estas ferramentas adentrarem no universo da saúde. William Ury (2014, p. 84) nos provoca
com as seguintes reflexões: "Temos interesses comuns em preservar nosso relacionamento?
Que oportunidades teremos pela frente para cooperar e usufruir de benefícios mútuos? Qual
seria nosso custo se essas negociações fracassassem?".
Do que sabemos, as respostas para essas perguntas indicam que, nos conflitos de
saúde:
há, sim, o interesse tanto de beneficiários quanto das operadoras de saúde de preservar seu
relacionamento;
as oportunidades se ampliam quando há cooperação para chegar a um acordo, gerando
benefícios mútuos, representem eles vantagens financeiras, na forma da ausência de
prejuízo, ou o atendimento das condições que preservam a saúde dos beneficiários, dentre
outros;
caso as negociações falhem, o custo é alto para ambas as partes: desgaste financeiro e de
tempo, em função do moroso processo judicial, além do risco de ver a saúde (e por vezes a
própria vida) em condições cada vez mais precárias.
Assim, acreditamos que a CNV, enquanto metodologia facilitadora de diálogos, pode
ser utilizada nas questões atinentes à saúde, pelos mais diversos atores:

- Por advogados: num telefonema com cliente, para compreender de forma mais clara sua
real necessidade; nas tratativas com as operadoras de saúde ao buscar uma solução direta,
reconhecendo seus interesses como legítimos.
- Por colaboradores das operadoras de saúde: ao ouvir pedidos e reclamações de
beneficiários e seus advogados, tentando já identificar suas necessidades reais; ao sentar na
71

mesa para negociação, expressando seu interesse de forma assertiva, reconhecendo a


necessidade da outra parte e colaborando para soluções satisfatórias a ambos; ao conversar
com seu chefe, buscando compreender quais os parâmetros e o que motiva as decisões
tomadas (e, portanto, também sua margem de negociação);
- Por médicos e profissionais de saúde: na interação com seus pacientes e suas famílias,
estando atentos às demandas além das prescritivas sobre tratamentos, emocionais - não para
tratá-las, mas para acolhê-las; na interação com colegas, tornando o ambiente de trabalho
mais saudável.
Em todos os momentos acima elencados, as pessoas estão tentando expressar seus
interesses, de modo a vê-los atendidos. Para uma comunicação assertiva, temos de não
apenas manifestar com clareza nosso próprio interesse, como também buscar compreender
a(s) necessidades da(s) outra(s) pessoa(s).
Trazer estes tópicos para perto da área da saúde de forma ampla, seja na área judicial,
focando em direito à saúde, ou hospitalar, voltada ao cuidado à saúde, pode possibilitar um
ambiente de maior resolutividade e satisfação, para todos os envolvidos.

CONCLUSÃO

Sabemos que os desafios de se implementar ferramentas de diálogo na área da saúde


são muitos, dadas as características desta relação e a urgência deste tipo de demanda.
Entretanto, já vemos abertura para essa possibilidade, até mesmo dentro do judiciário, com
a criação de núcleos especializados em métodos autocompositivos para lidar com conflitos
de saúde.
A inclusão de ferramentas de diálogo no âmbito da saúde, em especial da
comunicação não-violenta, vem somar aos esforços de mediar conflitos nesta área. Ainda
que caracterize relação de consumo, a peculiaridade da relação que se estabelece entre
beneficiários e operadoras de saúde, por exemplo, merece ser tratada como relação
continuada e, também por isso, habilitada à metodologia da mediação, com todo cuidado
que este procedimento oferece aos participantes e suas histórias de vida.
Como se pretendeu ter demonstrado, a metodologia da mediação oferece atenção aos
interesses de todos os envolvidos, aumentando possibilidades de satisfação mútua e
diminuindo custos. Aliada à prática da CNV, no nosso entendimento, ela potencializa o que
o direito à saúde pretende tutelar: a vida e a dignidade.
72

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Nacional, NUPEMECs e CEJUSCs. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/programas-e-
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relacionamentos pessoais e profissionais. São Paulo: Ágora, 2006.

ROSENBERG, Marshall. Linguagem da paz em um mundo de conflitos. São Paulo: Palas


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TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. São Paulo: Método, 2016.

URY, William. Como chegar ao sim: como negociar acordos sem fazer concessões. São
Paulo: Sextante, 2014.
73

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE DE


ESCOLHA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

THE DIGNITY OF THE HUMAN PERSON AND THE FREEDOM OF


CHOICE IN THE DOCTOR-PATIENT RELATIONSHIP

Jarbas Paula de Souza Junior1

Resumo: O artigo tem o objetivo de responder como seria possível, considerando o modelo
paradigmático paternalista implantado na relação médico-paciente, salvaguardar a liberdade
de escolha do paciente como um instrumento da sua autonomia. Busca-se demonstrar que a
medicina, assim como a sociedade, se transformou com o decorrer do tempo e, com ela, a
forma da relação entre médicos e pacientes. O modelo paradigmático paternalista, no sentido
de cumprimento irrestrito das determinações médicas (prescrições), no qual não havia
espaço para contestações as decisões dos profissionais da saúde, cedeu espaço ao Estado
Democrático de Direito e às suas respectivas liberdades civis. As pesquisas bioéticas
(biomédicas), aliadas a algumas atrocidades, também impulsionaram na construção de
normas universais garantidoras dos Direitos Humanos, dentre elas o meta-princípio da
dignidade da pessoa humana. Passou-se a compreender que a saúde não poderia ser objeto
de uma decisão isolada, soberana, do profissional médico, reconhecendo-se a necessidade
de uma participação mais ativa, livre e consciente do paciente na construção do seu
tratamento médico. Dividiu-se a metodologia em método de abordagem e método de
procedimento. Optou-se pela linha de pesquisa que se refere ao método dedutivo, isto é,
parte-se de uma premissa, por exemplo, autonomia do paciente para decidir a que tratamento
irá ou não se submeter, para alcançar uma conclusão logicamente correta ou não. Como
método de procedimento a ser utilizado decidiu-se predominantemente pela pesquisa
bibliográfica na qual foram analisados livros, periódicos nacionais e internacionais, bem
como páginas da internet que exploram a temática do princípio da autonomia do paciente.

Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana; Liberdade de escolha; Relação médico-


paciente; Autonomia.

Abstract: The text aims to answer how it would be possible, considering the paternalistic
paradigmatic model implemented in the doctor-patient relationship, to safeguard the patient's
freedom of choice as an instrument of his autonomy. It seeks to demonstrate that medicine,
as well as society, has changed over time and, with it, the form of the relationship between
doctors and patients. The paternalistic paradigm model, in the sense of unrestricted

1
Mestrando em Direito pela Faculdade Meridional – IMED/Passo Fundo-RS, Pós-Graduado em Direito
Processual Civil (URI-FW), Direito Tributário (Unoesc), Direito Médico e Hospitalar (EPD-SP) e Direito da
Medicina (Coimbra-PT)
74

compliance with medical determinations (prescriptions), in which there was no room for
contesting the decisions of health professionals, gave way to the Democratic State of Law
and their respective civil liberties. Bioethical (biomedical) research, combined with some
atrocities, also boosted the construction of universal norms that guarantee Human Rights,
including the meta-principle of human dignity. It was understood that health could not be
the object of an isolated, sovereign decision by the medical professional, recognizing the
need for a more active, free and conscious participation of the patient in the construction of
their medical treatment. The methodology was divided into approach method and procedure
method. We chose the line of research that refers to the deductive method, that is, it starts
from a premise, for example, the patient's autonomy to decide which treatment he will or
will not undergo, to reach a logically correct conclusion or not. As a method of procedure to
be used, it was decided to predominantly use bibliographical research, which analyzed
books, national and international journals, as well aspages internet that explore the theme of
the principle of patient autonomy.
Keywords: Dignity of human person; Freedom of choice; Doctor-patient relationship;
Autonomy.

INTRODUÇÃO

A medicina assim como a sociedade transformou-se com o decorrer do tempo e, com


ela, a forma da relação entre médicos e pacientes. Já no século XVI iniciaram-se os primeiros
movimentos com o objetivo de reconhecer mais liberdade aos cidadãos, outorgando-lhes
mais autonomia em suas decisões.
O modelo paradigmático paternalista, no sentido de cumprimento irrestrito das
determinações médicas (prescrições), no qual não havia espaço para contestações das
decisões dos profissionais da saúde, cedeu espaço ao Estado Democrático de Direito, às
respectivas liberdades civis e a introdução de direitos e garantias fundamentais nos
ordenamentos jurídicos internacionais, salvaguardando a liberdade de escolha do paciente
como um instrumento garantidor da sua autonomia.
As pesquisas bioéticas (biomédicas), aliadas as atrocidades realizadas pelos alemães,
no interior dos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial, impulsionaram
a construção de normas universais garantidoras dos Direitos Humanos, dentre elas o meta-
princípio da dignidade da pessoa humana.
A implementação normativa do princípio da dignidade da pessoa humana
representou para os cidadãos, no período pós-guerra, a liberdade e igualdade na definição do
tratamento, direito de escolher quais intervenções poderiam ou não ser realizadas em seu
corpo sem qualquer sujeição a imposições.
75

Buscar-se-á demonstrar, ainda, no tocante à liberdade de escolha, a importância do


princípio da autonomia, na relação médico-paciente, como um instrumento garantidor da
dignidade da pessoa humana no contexto constitucional brasileiro.
Dividiu-se a metodologia em método de abordagem e método de procedimento.
Optou-se pela linha de pesquisa que se refere ao método dedutivo, isto é, parte-se de uma
premissa, por exemplo, autonomia do paciente para decidir a que tratamento irá ou não se
submeter, para alcançar uma conclusão logicamente correta ou não.
Como método de procedimento a ser utilizado decidiu-se predominantemente pela
pesquisa bibliográfica na qual foram utilizados livros, periódicos nacionais e internacionais
e, páginas da internet que exploram a temática do princípio da autonomia do paciente.
Dessa forma, busca-se com o presente trabalho demonstrar a importância da
liberdade de escolha na relação médico-paciente, como um instrumento garantidor da
autonomia do paciente.

DO PARADIGMA PATERNALISTA À LIBERDADE DE ESCOLHA NA RELAÇÃO


MÉDICO-PACIENTE

A saúde desperta o interesse da humanidade desde a sua origem, sendo que o combate
aos males que afligem o ser humano e o fascínio em desafiar Deus sempre foi objeto de
estudos e investigações, convertendo-se de uma ciência incipiente para um dos ramos da
ciência mais respeitados e complexos da atualidade.
Durante muito tempo o ser humano preocupou-se tão somente pela “busca da
preservação da saúde humana ou, noutra perspectiva, a luta contra a doença ou a enfermidade
que acompanha a história da humanidade2”.
De acordo com Drumond3 foi fundada no temor do homem com a sua saúde que se
originou a medicina:
[...] a medicina, entendida como ato de socorro ou ajuda ao ser humano, teve
início, de fato, com aparecimento do homem no planeta. Seus primeiros
praticantes foram feiticeiros – médicos ou xamâs – que utilizavam rezas,
exorcismos e invocações a deuses ou ao desconhecido, juntamente com
tratamentos físicos (frio, calor), plantas medicinais e certas intervenções cruentas,
como trepanações, como forma de libertar o enfermo dos demônios que o
possuíam.

2
ESTOURINHO, Maria João; MACIEIRINHA, Tiago. Direito da saúde. Lisboa: Universidade católica
Editora, 2014, p. 9.
3
DRUMOND, José Geraldo de Freitas. A história da ética na medicina. In: FIGUEIREDO, Antônio Macena;
LANA, Roberto Lauro (Coord.). Direito médico: implicações práticas e jurídicas na prática médica. Rio
de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009, p. 21.
76

Inicialmente o médico, em decorrência das suas práticas nada usuais para a época -
com experimentos que confrontavam a moral e a ética -, acabou por assumir uma postura
paternalista relegando qualquer intervenção ou participação do paciente no processo de
decisão médica.
Nesta fase da humanidade o paciente era tratado como se fosse uma criança, isolada
do processo decisório na busca do melhor tratamento. Assumia o médico uma condição de
protetor (ideia de beneficência) existindo um cumprimento irrestrito (sem objeção) as suas
decisões.
A liberdade de escolha efetiva do paciente claramente sofria a influência de
circunstancias alheias a sua vontade. Ao debilitado ser humano era imposto uma falsa
interpretação social da realidade (médico era visto como uma divindade), restando ao
paciente apenas aquiescer ao tratamento que lhe fora decretado.
O período pós Segunda Guerra Mundial marcou a ruptura, que já havia se iniciado
no século XVI com um movimento sócio-político que reconhecia a liberdade dos cidadãos
e, por corolário lógico, a sua autonomia, com o modelo paternalista.
A partir do julgamento dos crimes de guerra praticados pelos nazistas durante a
Segunda Guerra Mundial, verificou-se uma relevante alteração no padrão da ética médica
relacionada com a experimentação humana. A relação até então autoritária foi substituída
pela autonomia do paciente, erigindo-se a dignidade da pessoa humana como um dos
fundamentais consensos éticos da humanidade.
As barbáries praticadas pelos nazistas, em suas pesquisas com seres humanos,
resultou na primeira resposta “ético-jurídica às intervenções médicas não autorizadas”, qual
seja, o Código de Nuremberg4 de 1948, passando-se a se preocupar não só com o conteúdo
das informações prestadas aos pacientes, mas inexoravelmente com a qualidade das
informações prestadas pelos médicos.

4
Diz o Código de Nuremberg, em seu artigo 1º: “O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente
essencial. Isso significa que as pessoas que serão submetidas ao experimento devem ser legalmente capazes de
dar consentimento; essas pessoas devem exercer o livre direito de escolha sem qualquer intervenção de
elementos de força, fraude, mentira, coação, astúcia ou outra forma de restrição posterior; devem ter
conhecimento suficiente do assunto em estudo para tomarem uma decisão. Esse último aspecto exige que sejam
explicados às pessoas a natureza, a duração e o propósito do experimento; os métodos segundo os quais será
conduzido; as inconveniências e os riscos esperados; os efeitos sobre a saúde ou sobre a pessoa do participante,
que eventualmente possam ocorrer, devida à sua participação no experimento. O dever e a responsabilidade de
garantir a qualidade do consentimento repousam sobre o pesquisador que inicia ou dirige um experimento ou
se compromete nele. São deveres e responsabilidades pessoais que não podem ser delegados a outrem
impunemente.”
77

Para Dantas5 não há que confundir consentimento informado com a efetiva prestação
da obrigação de informar. Nesse sentido vejamos o que observa Roberto6:

O consentimento informado é o consentimento dado pelo paciente, baseado no


conhecimento da natureza do procedimento a ser submetido e dos riscos, possíveis
complicações, benefícios e alternativas de tratamento. Ou seja, é uma
concordância na aceitação dos serviços a serem prestados pelo profissional de
saúde em troca do pagamento do paciente ou do responsável, estando este
informado adequadamente do que está consentindo.

Acrescenta-se, ainda, que o consentimento ou o ato de concordar com um


procedimento médico não pode ser equiparado simploriamente ao preenchimento de um
papel, mas deve ser encarado como uma troca de informações entre o profissional da saúde
e o paciente.
É imprescindível que o paciente assimile as informações transmitidas pelo médico e
esclareça todas as suas dúvidas para que, desse modo, exerça amplamente seu direito de
escolha livre e esclarecida7.
Consequentemente, a contar desta alteração de concepção social é o paciente que
deve concordar (anuir) ou não com a terapêutica prescrita, sendo vedado ao médico a
imposição de qualquer conduta, mesma que lastreada em critérios técnicos.
De acordo com Roxin8:

Se o paciente recusa, portanto, a operação que salvaria sua vida, ou a necessária internação numa
unidade de tratamento intensivo, deve o médico abster-se de tais medidas e, se for o caso, deixar
o paciente morrer. Esta solução é deduzida, corretamente, da autonomia da personalidade do
paciente, que pode decidir a respeito do alcance e da duração de seu tratamento.

Vale ressaltar que não está o médico proibido de expor a sua opinião técnica sobre o
tratamento que acredita ser o mais indicado ao paciente. Contudo, para Dantas “duas coisas
não pode fazer: a primeira é impor sua vontade com relação ao tratamento; e a segunda é
omitir informações sobre caminhos possíveis ou outros tratamentos9”.
Da mesma forma, não está o médico sujeito aos desejos do paciente, tornando-se
legítima a recusa do profissional em assistir um paciente que não consinta com o tratamento

5
DANTAS, Eduardo. Direito médico. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 110.
6
ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade civil do profissional da saúde e consentimento
informado. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2012, p. 83.
7
DANTAS, ob. cit., p. 112.
8
ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do direito penal. Disponível em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25456-25458-1-PB.pdf. Acesso em: 21 jul. 2020, p.
7.
9
DANTAS, op. cit., p. 113.
78

indicado. Desta feita, estar-se-á garantindo ao médico o direito de se pautar em seus padrões
ético-científicos.
Neste contexto, observamos que o paradigma paternalista “foi mitigado” cedendo
lugar à autonomia do paciente. Não se encontra autorizado o profissional médico a impor
qualquer espécie de tratamento sem que ocorra a participação efetiva do paciente nas
decisões a respeito de sua integridade psicofísica, salvo como veremos a seguir nas hipóteses
de iminente risco de morte.

3 BIOÉTICA COMO INSTRUMENTO DE DESENVOLVIMENTO, LIBERDADE E


AUTONOMIA DO PACIENTE

No panorama de diversidades culturais a bioética resguarda sua condição de


protagonismo na construção de uma sociedade mais equânime, pois impossível “se falar em
um sistema jurídico legítimo se não fundado na garantia da intangibilidade da dignidade da
pessoa humana10”.
No entendimento de Sá e Souza11:

O princípio da autonomia na bioética representa a liberdade das pessoas na


autodeterminação e na escolha das intervenções que poderão ser realizadas em seu
próprio corpo [...]. A expressão externa da autonomia se dá por meio da
manifestação da vontade, sendo o discernimento seu elemento essencial,
representando a capacidade do sujeito de direito dotado de personalidade jurídica
desde que capaz de estabelecer diferença, distinguir, fazer apreciação.

A bioética, como um mecanismo de transformação da relação médico-paciente,


consiste em uma reflexão ética sobre as estruturas morais da sociedade humana, considerada
em sua pluralidade de circunstancias econômico-sociais, tendo por sustentáculo essencial à
dignidade da pessoa humana e, consequentemente, a autonomia do paciente.
Com o advento da teoria principialista de Beauchamp e Childress inaugurou “uma
nova visão acerca da necessidade de se observar o respeito aos pacientes, – fundada na
preocupação de um novo ponto de vista da relação médico-paciente”, bem como na
participação ativa do paciente na definição da melhor escolha terapêutica12.

10
ROBERTO, ob. cit., p. 36.
11
SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Termo de consentimento livre e esclarecido e
responsabilidade civil do médico e do hospital. In: Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO,
Luciana. Responsabilidade civil e medicina. São Paulo: Editora Foco, 2020, p. 56-59.
12
BORGES, Gustavo. Erro médico nas cirurgias plásticas. São Paulo: Atlas, 214, p. 86.
79

A necessidade de uma releitura da relação médico-paciente, especialmente ante a


necessidade de se impulsionar uma maior participação do paciente na escolha dos meios do
seu tratamento, potencializou a construção dos preceitos bioéticos.
Logo, foi inserido na relação médico-paciente como um dos princípios “norteadores
da ética biomédica, denominados de prima facie”, o princípio do respeito à autonomia, tal
como a não maleficiência, a beneficência e a justiça.
Para Beauchamp e Childress13 “o respeito pelas escolhas autônomas das outras
pessoas está tão profundamente inserido na moralidade comum quanto qualquer outro
princípio [...]”, apesar de não existir harmonia no que atine a sua essência e demais direitos
dela derivados.
Nesse novo cenário bioético mundial se intensificou a preocupação com o respeito à
dignidade, mais precisamente com a liberdade do paciente praticar escolhas conscientes, de
autodeterminar-se nas questões relacionadas à sua vida e à sua saúde.
O respeito a autonomia do paciente, ou seja, a sua vontade, é fator determinante
atualmente na legitimação das ações médicas. Sob o enfoque bioético (supremacia do
respeito à autonomia) tornando-se indispensável ao tratamento médico a obtenção de uma
decisão compartilhada.
Por conseguinte, lastreado nos princípios universais da liberdade e da igualdade
inseriu-se, exemplificativamente, no contexto global o respeito à autonomia do paciente “ao
consentir no tratamento de sua saúde, diante das informações recebidas, entendidas e
assimiladas14”.
Asseguram Schulman e Almeida15 que:

[...] os atos de autonomia nas decisões afetas ao próprio corpo, saúde e vida são
cruciais para viver com dignidade. [...] A rigor, o respeito à autonomia do paciente
é totalmente compatível com a tendência hodierna de valorização aos direitos do
paciente no contexto geral da prestação de serviços de saúde.

O exercício da autonomia do paciente inicia-se desde o momento da escolha do


profissional da saúde responsável pela terapêutica, transcorrendo durante todo o interregno

13
BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo: Edições
Loyola, 2002, p. 137.
14
ROBERTO, op. cit., p. 48.
15
SCHULMAN, Gabriel; ALMEIDA, Vitor. Novos olhares sobre a responsabilidade civil na saúde:
autonomia, informação e desafios do consentimento na relação médico-paciente. In: ROSENVALD,
Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. São
Paulo: Editora Foco, 2020, p. 30.
80

do tratamento, ultimando-se com, após a aplicação de todas as técnicas e meios adequados,


a recuperação integral, melhoria, estabilização, ausência de bons resultados e, em último
caso agravamento e piora do quadro clínico do paciente (resultado danoso).
Com efeito, o reconhecimento da liberdade de escolha, assim como os demais
direitos democráticos, encontra-se entre os componentes constitutivos do desenvolvimento
e da dignidade humana. Dessa forma, a dignidade e os direitos humanos são pretensões éticas
que independeriam de normatização jurídica.
Portanto, firmada a relação entre dignidade e liberdade poder-se-ia dizer que a
dignidade da pessoa humana reflete a plenitude de todos os demais direitos fundamentais,
individuais, econômicos ou sociais, especialmente a liberdade de escolher como viver.

4 CONCLUSÃO

A relação médico-paciente foi marcada historicamente por diversos conflitos de


ordem ética e moral. Incialmente competia ao médico a absoluta percepção da dimensão e
amplitude dos seus deveres profissionais, restando ao paciente simplesmente a condição de
respeito e passividade.
Entretanto, o decorrer do tempo, combinado com evolução dos dogmas sociais, bem
como da ordem legal e da própria ciência médica, resultaram na alteração desta máxima
paternalista, passando o paciente a fixar-se como nítido senhor da sua razão,
consequentemente da sua liberdade de escolha. Único proprietário da sua integridade
corporal.
Na nova concepção da relação médico-paciente passou-se, em atenção aos novos
preceitos éticos e jurídicos inseridos no ambiente normativo nacional, a considerar como
relevantes o respeito à autonomia e autodeterminação do paciente, evitando-se, dessa forma,
exposições, vulnerabilidades e riscos desnecessários.
Com a derrocada do exercício da autoridade patriarcal pelo médico (da autonomia do
profissional da saúde em impor suas decisões profissionais, restringindo-se a liberdade de
participação do paciente nas escolhas terapêuticas) iniciou-se um período de reconhecimento
do ser humano como um partícipe do mundo.
Passou-se a compreender que a saúde não poderia ser objeto de uma decisão isolada,
soberana, do profissional médico, reconhecendo-se a necessidade de uma participação mais
ativa, livre e consciente (autônoma) do paciente na construção do seu tratamento médico.
81

A participação na discussão do tratamento médico a ser aplicado adquiriu contornos


de consensualidade, uma relação em que médico e paciente são protagonistas, sujeitos ativos,
interagindo, lastreados na ciência na busca da melhor alternativa possível.
Não por acaso, o conceito de melhor interesse do paciente inseriu-se na ordem
jurídica e com ele o instituto da autonomia e da dignidade da pessoa humana.
Portanto, ressalvadas as hipóteses de emergência, urgência, risco a coletividade,
dentre outras situações em que se torna impossível ou desnecessária a obtenção do
consentimento do paciente ou do seu responsável legal, deve ser rechaçada qualquer espécie
agressão à integridade corporal do paciente, em que pese não se encontrar mais lugar, em
um Estado Democrático de Direitos, para ações que tolham a liberdade individual de cada
indivíduo e agridam a intangibilidade da dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

BEAUCHAMP, Tom L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. São Paulo:
Edições Loyola, 2002.

BORGES, Gustavo. Erro médico nas cirurgias plásticas. São Paulo: Atlas, 2014.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 7 ago.
2021.

DANTAS, Eduardo. Direito médico. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.

DRUMOND, José Geraldo de Freitas. A história da ética na medicina. In: FIGUEIREDO,


Antônio Macena; LANA, Roberto Lauro (Coord.). Direito médico: implicações práticas e
jurídicas na prática médica. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2009.

ESTOURINHO, Maria João; MACIEIRINHA, Tiago. Direito da saúde. Lisboa:


Universidade católica Editora, 2014.

ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. Responsabilidade civil do profissional da saúde e


consentimento informado. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2012.

ROXIN, Claus. A proteção da vida humana através do direito penal. Disponível em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/25456-25458-1-PB.pdf. Acesso
em: 21 jul. 2021.

SÁ, Maria de Fátima Freire de; SOUZA, Iara Antunes de. Termo de consentimento livre e
esclarecido e responsabilidade civil do médico e do hospital. In: Nelson; MENEZES,
Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade civil e medicina. São Paulo:
Editora Foco, 2020.
82

SCHULMAN, Gabriel; ALMEIDA, Vitor. Novos olhares sobre a responsabilidade civil


na saúde: autonomia, informação e desafios do consentimento na relação médico-
paciente. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO,
Luciana. Responsabilidade civil e medicina. São Paulo: Editora Foco, 2020.
83

A HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR IDOSO FRENTE


PUBLICIDADE DE MEDICAMENTOS

Jovana de Cezaro1

Resumo: O presente estudo visa analisar a hipervulnerabilidade do consumidor idoso frente


à publicidade de medicamentos. Objetiva-se compreender se a publicidade de medicamentos
voltada a proteger o público idoso é efetiva. Para tanto, utiliza-se dos métodos de
procedimentos documentais e bibliográficos. Disso constata-se que o consumidor idoso,
parte hipervulnerável na relação de consumo, tomados pelo medo, buscam, incansavelmente,
formas de prevenção e até mesmo medicamentos que se dizem eficazes para o enfrentamento
das doenças. Assim, verifica-se a necessidade de adaptação da legislação atual a fim de
proteger esse público hipervulnerável frente a enxurrada de informações publicitárias
propagadas diariamente em veículos de comunicação.

Palavras-chave: Publicidade de medicamentos. Pandemia Covid-19. Hipervulnerabilidade.


Consumidor Idoso.

1 INTRODUÇÃO

A forma com que se faz publicidade mudou drasticamente nos últimos anos. As
mudanças comportamentais dos consumidores, a consolidação da globalização dos
mercados, o avanço da internet e as revoluções tecnológicas desafiam cada vez mais o
mercado publicitário brasileiro.
Hodiernamente os consumidores são bombardeados com uma série de anúncios
publicitários, que utilizam da criatividade para convencer e persuadir o consumidor a
consumir cada vez mais. A fim de conquistar o consumidor, a publicidade apela para o desejo
e para a fantasia das pessoas.
O presente artigo analisa os cuidados redobrados com a publicidade de
medicamentos direcionada a população idosa os hipervulneráveis, que além da saúde
fragilizada, são facilmente ludibriados. O excesso de informações também pode acarretar na
falta de informações confiáveis, principalmente em tempos de pandemia.

1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Passo Fundo - UPF. Especialista
em Direito do Trabalho pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI. Bacharela em Direito pela
Universidade de Passo Fundo - UPF. Advogada. E-mail: jovanadc@hotmail.com
84

Tendo-se como base a Constituição Federal do Brasil de 1988, o Estatuto do Idoso e


o Código de Defesa do Consumidor, busca-se verificar se estas legislações são suficientes
para proteger os consumidores idosos da prática de publicidade abusiva ou enganosa com
relação ao uso de medicamentos em tempos de pandemia. Para tanto, utiliza-se dos métodos
de procedimentos documentais e bibliográficos.

2 A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR IDOSO DIANTE DE SUA


HIPERVULNERABILIDADE

O Código de Defesa do Consumidor, visa tutelar um grupo específico de indivíduos,


considerados vulneráveis nas relações de consumo, quais sejam, os consumidores. O
consumidor é o principal agente da vida econômica, já que é para ele e pensando nele que se
produz e para ele que vendem os produtos e serviços.
Nas relações de consumo, deve-se levar em consideração o artigo 4º do Código de
Defesa do Consumidor, que em seus incisos enumera princípios que devem ser observados
na política nacional das relações de consumo. Dentre eles, destaca-se como mais importante
para esse estudo, o inciso I que reconhece o consumidor como ser vulnerável em uma relação
de consumo. De acordo com Moraes:

Vulnerabilidade, sob o enfoque jurídico, é então, o princípio pelo qual o sistema


jurídico positivado brasileiro reconhece a qualidade ou condição daquele(s)
sujeito(s) mais fraco(s) na relação de consumo, tendo em vista a possibilidade de
que venha(m) a ser ofendido(s) ou ferido(s), na sua incolumidade física ou
psíquica, bem como no âmbito econômico, por parte do(s) sujeito(s) mais
potente(s) da mesma relação.2

Miragem afirma que “há na sociedade atual o desequilíbrio entre dois agentes
econômicos, consumidor e fornecedor, nas relações jurídicas que estabelecem entre si”.
Reconhecendo essa situação surge a necessidade de uma “lei retione personae de proteção
do sujeito mais fraco da relação de consumo”.3

2
MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da vulnerabilidade no
contrato, na publicidade, nas demais práticas comerciais: interpretação sistemática do direito. 3. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 125.
3
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 114.
85

Importante mencionar a existência de diversas espécies de vulnerabilidade, quais


sejam vulnerabilidade fática ou socioeconômica, vulnerabilidade técnica, vulnerabilidade
jurídica ou científica, vulnerabilidade informacional. Para fins desse estudo, destaca-se a
vulnerabilidade agravada do consumidor idoso. O Estatuto do Idoso, em seu artigo primeiro,
considera às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos4.5 Importante destacar
que, proteção do idoso tem assento constitucional no capítulo VII, da Constituição Federal,
que trata da família, da criança, do adolescente, do jovem e do idoso, dentre o qual destaca-
se o artigo 230.6
Além desses deveres, o Estatuto do Idoso prevê direitos fundamentais que precisam
ser garantidos aos idosos. Acerca do contexto de direitos destinados ao idoso, destacam-se,
principalmente, o direito à vida e o direito à saúde, pois sem saúde não há vida.7
Em relação ao direito à saúde, assegurado também no artigo 15 do Estatuto do Idoso,
Freitas Junior aborda que “o cidadão idoso é o que mais sofre com as deficiências de
atendimento, tendo em vista a debilitação natural que a idade causa ao organismo do
homem”.8 Diante da necessidade de cuidado com a saúde e tendo em vista o avançar da
idade, o idoso tem uma estreita relação com o consumo de medicamentos.
Todos os consumidores são vulneráveis, mas alguns deles, como é o caso dos idosos,
crianças e os enfermos, possuem o aspecto da vulnerabilidade potencializada e por isto
mesmo requerem uma proteção especial o que se convencionou de chamar de
hipervulneráveis.
O termo hipervulneráveis foi criado por Antônio Herman Benjamin, que passou a
utiliza-lo em palestras e em suas decisões, como no Recurso Especial nº 586.316 “Ao Estado
Social importam não apenas os vulneráveis, mas sobretudo os hipervulneráveis, pois são
esses que, exatamente por serem minoritários e amiúde discriminados ou ignorados, mais

4
Essencial salientar que existe um Projeto de Lei nº 5383/19, em análise na Câmara dos Deputados, proposto
pelo deputado João Campos, que altera a legislação vigente, passando a considerar pessoas idosas a partir dos
65 anos de idade. A fundamentação do referido projeto é o aumento da expectativa de vida no Brasil. Cf.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 5383/2019. Brasília, 2019. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2223942. Acesso em: 22 out.
2021.
5
BRASIL. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
Brasília, 2003. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
6
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
7
BRASIL. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências.
Brasília, 2003. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
8
FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Direitos e garantias do idoso: doutrina, jurisprudência e legislação.
3. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 57.
86

sofrem com a massificação do consumo [...]. Benjamin reforça que o fato de ser um
consumidor de uma classe diferente ou minoritária, não o faz “menos consumidor, nem
menos cidadão, tampouco merecedor de direitos de segunda classe ou proteção apenas
retórica do legislador”.9
Grinover et al. definem os mesmos como “consumidores ignorantes e de pouco
conhecimento, de idade pequena ou avançada, de saúde frágil, bem como aqueles cuja
posição social não lhes permite avaliar com adequação o produto ou serviço que estão
adquirindo”. A hipervulnerabilidade é limitada a alguns, mas nunca a todos consumidores.10
O envelhecimento da população é considerado um fato social pós-moderno11 e a
preocupação com a proteção do consumidor idoso não é nova. Os avanços tecnológicos
juntamente com o envelhecimento da população mundial, leva a sociedade a uma atenção
especial com a proteção dos idosos.12
O Estatuto do Idoso, vigente desde janeiro de 2004, conforme Schmitt “visa permitir
a inclusão social dos idosos no Brasil, garantindo-lhes tratamento igualitário”. Ainda, por
meio do Estatuto do Idoso “pretende-se impedir que os idosos continuem sendo mantidos,
em sua maioria, à margem da sociedade, como se fossem cidadãos de segunda classe”.13
Tendo em vista sua idade avançada o consumidor idoso é hipervulnerável e deve ser
protegido pelo Código de Defesa do Consumidor. A vulnerabilidade do consumidor idoso,
conforme aponta Miragem, é demostrada por dois aspectos principais, quais sejam “a
diminuição ou perda de determinadas aptidões físicas ou intelectuais que os tona mais
suscetível e débil em relação à atuação negocial dos fornecedores”, bem como “a

9
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial n. 586.316/MG. Relatoria:
Ministro Herman Benjamin. Julgado em: Brasília, 17 abr. 2017. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=683195&tipo=0&nreg=200301612085&SeqCg
rmaSessao=&CodOrgaoJgdr=&dt=20090319&formato=PDF&salvar=false. Acesso em: 03 set. 2021. p. 3.
10
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores
do anteprojeto: direito material e processo coletivo. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. único. p. 381.
11
Afonso aborda que “nos últimos 60 anos, foram muitas as conquistas no campo da medicina e que auxiliaram
na prevenção e cura de doenças. Entre elas, destacam-se a assepsia, as vacinas, os conceitos de medicina
preventiva, os tratamentos de químo e radioterapia. Essas descobertas foram relevantes para o aumento da
expectativa de vida e, consequentemente, para o aumento no número de idosos. Não só́ a evolução da ciência
possibilita o aumento da expectativa de vida das pessoas. A expansão da economia e a melhoria nas condições
de vida também são fatores importantes na avaliação das causas da maior longevidade”. Cf. AFONSO, Luiz
Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013. p. 137.
12
AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 136.
13
SCHMITT, Cristiano Heineck. A “hipervulnerabilidade” do consumidor idoso. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 2, p. 463-493, abr. 2011. p. 6.
87

necessidade e catividade em relação a determinados produtos ou serviços no mercado de


consumo, que o coloca em uma relação de dependência em relação aos seus fornecedores”.14
O idoso necessita de mais proteção do que o consumidor normal, visto que possuem
uma vulnerabilidade agravada e por esse motivo são denominados de hipervulneráveis.
Aproveitar-se da hipervulnerabilidade desse consumidor, decorrente das fragilidades
impostas pelo natural processo de envelhecimento, caracteriza a abusividade.

3 O REFORÇO DOS CUIDADOS COM A PUBLICIDADE DE MEDICAMENTO


AOS IDOSOS

A sociedade contemporânea, considerada como pós-moderna, caracteriza-se pelo


consumo em massa, tudo gira em torno do dinheiro, do lucro e da acumulação. Ainda que
em tempos de crise, incentiva-se os cidadãos a comprar com a finalidade de manter a
economia girando.
Para que esse consumo cresça, cada dia mais o modelo econômico do capitalismo se
vale do marketing e da publicidade, que fazem o papel de impulsionar as vendas e divulgar
novos produtos, criando desejos. Conforme Souza e Stohrer:15

As empresas investem em marketing para seduzir o consumidor a realizar sua


próxima compra. E caso o consumidor não ceda imediatamente aos apelos da
propaganda, entra em cena a obsolescência programada, destinada a causar o
desejo por um novo produto, seja por haver um modelo mais novo e atraente no
mercado, seja porque o produto a ser substituído chegou ao fim de sua vida útil.

A publicidade deve ser difundida por meio de informações claras e corretas que
objetiva responsabilizar quem a veicula e responsabilizar os fornecedores, exigindo-se a boa-
fé entre fornecedor e consumidor e buscando assegurar maior transparência nas relações de
consumo16.
Marques afirma que “a publicidade é um meio lícito de promover, de estimular o
consumo de bens e serviços, mas deve pautar-se pelos princípios básicos que guiam as
relações entre fornecedores e consumidores, especialmente o da boa-fé”. Ainda, as relações

14
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 119.
15
SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; STOHRER, Camila Monteiro Santos. Consumo Consciente
como mecanismo da sustentabilidade. In: BENACCHIO, Marcelo; GARCIA, Marcos Leite; ARCE, Gustavo.
Direito e sustentabilidade. Florianópolis: CONPEDI, 2016. p. 110
16
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 800.
88

de consumo “devem guiar-se pela lealdade e pelo respeito entre fornecedor e consumidor”.17
No Brasil ocorre uma limitação da publicidade por meio de instrumentos legais, dentre os
quais destaca-se a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor.
O artigo 220, § 3º e 4º da Constituição Federal trazem restrições à veiculação
publicitária. Tal publicidade está sujeita as restrições legais e deverá conter, sempre que
necessário, advertências sobre os malefícios decorrentes de seu uso18. A lei nº 9.294 de 1996
conhecida como lei Murad, dispõe “sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos
fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do
§ 4° do art. 220 da Constituição Federal”.19 Ainda, o Código de Defesa do Consumidor,
conforme artigo 37, conceitua duas espécies de publicidades que são vedadas aos
fornecedores, sendo elas a enganosa e a abusiva.20
Por ser o público idoso parcela bastante lucrativa no mercado consumidor global,
face à grande utilização de medicamentos, principalmente, é assegurado aos mesmos,
proteção contra a publicidade. O envelhecimento da população é um fato natural, irreversível
e mundial. Frente a esse cenário, o amparo ao idoso é uma preocupação cada vez maior do
Estado, da família e da sociedade civil.21
O idoso padece com a pouca ou nenhuma intimidade com as novas tecnologias em
todas as suas formas de manifestação. Percebe-se a “dificuldade desse indivíduo frente aos
novos tipos de relação de consumo na pós-modernidade e dessa maneira age a publicidade
enganosa e abusiva”.22
É considerada prática abusiva, conforme artigo 39, inciso IV do Código de Defesa
do Consumidor, “a divulgação de anúncio para venda de produtos e serviços que se prevaleça

17
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 803-804.
18
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
19
BRASIL. Lei n. 9.294, de 15 de julho de 1996. Dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos
fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220
da Constituição Federal. Brasília, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9294.htm.
Acesso em: 22 out. 2021.
20
Define-se como publicidade enganosa aquela que “viola o dever de veracidade e clareza estabelecidos pelo
CDC”. Já a publicidade abusiva “é aquela que viola valores ou bens jurídicos considerados relevantes
socialmente (tais como meio ambiente, segurança e integridade dos consumidores)” bem como, “a que se
caracteriza pelo apelo indevido a vulnerabilidade agravada de determinados consumidores, como crianças e
idosos. Cf. MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013. p. 251.
21
AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 136-138.
22
MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013. p. 251.
89

da fraqueza ou da ignorância do consumidor, tendo em vista a sua idade, saúde,


conhecimento ou condição social”. Dessa forma, não pode o fornecedor aproveitar-se da
vulnerabilidade do idoso para vender seus produtos ou serviços no mercado de consumo.23
A população está envelhecendo mais saudável e ativamente, mas os idosos sempre
foram associados a estigmas negativos e a doenças. Tanto é assim que investe-se altos
valores em campanhas publicitárias, destinadas a oferecer medicamentos e produtos ligados
a saúde, tendo como alvo os idosos24. Muito utilizada, a exploração do medo é conduta
reprovável pelo Código de Defesa do Consumidor, devendo o mesmo ser banido da
publicidade de produtos e serviços, principalmente em se tratando do medo da morte. Afonso
aborda que

[...] a hipervulnerabilidade do idoso, decorrente das fragilidades impostas pelo


natural processo de envelhecimento, traz consigo vários medos, em especial o
medo da morte. Esses temores, em rigor, não podem ser utilizados como
mecanismos de venda de produtos e serviços por fornecedores no mercado de
consumo.25

O medo da morte ou do sofrimento pelo idoso torna-se fato próximo e concreto com
o passar dos dias, o que fragiliza o consumidor e torna-o objeto fácil da publicidade que
pretende vender produtos que se dizem milagrosos ou que prometem cura fácil para todos
os males. Utilizando-se os fornecedores do medo da morte ou do sofrimento para venda dos
produtos ou serviços resta-se comprovada a publicidade abusiva26.
Também, quando se fala em risco a saúde deve-se levar em conta, além do consumo
de medicamentos, a automedicação. Kaplan, Jauregui e Rubin afirman que “la prescripción
de medicamentos es un elemento fundamental en el cuidado de la salud de los adultos
mayores” e que “el uso inapropiado de fármacos supone un gran impacto en salud”.27
Os medicamentos têm forte influência e presença na vida das pessoas, pois são
produtos elaborados especialmente com a finalidade de diagnosticar, prevenir e curar
doenças, produzidos para atender às especificações. Porém, em demasiadas vezes, os

23
AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 190.
24
AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 191.
25
AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 194.
26
AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São Paulo: Atlas, 2013.
p. 194-195.
27
KAPLAN, Roberto; JAUREGUI, José R.; RUBIN, Romina K. Los grandes síndromes geriátricos.
Argentina: Edimed – Ediciones Médicas SRL, 2009. p. 159.
90

mesmos são destacados como objetos mágicos, onde as pessoas depositam toda confiança
em seu poder de cura, vendo naquele medicamento uma chance de alívio para os indicativos
que sente.
A concorrência no mercado de medicamentos é grande, o que faz com que os
laboratórios apostem em estratégias como a publicidade, que tem forte poder de persuasão e
influência na compra desses produtos. Porém, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) estabelece regras a fim de proteger o indivíduo nas relações de consumo, tais
como a proibição à publicidade enganosa28 e ao incentivo à automedicação, permitindo a
publicidade de medicamentos tidos como não controlados.
A Resolução da Diretoria Colegiada-RDC da ANVISA de número 96, de 17 de
dezembro de 2008, dispõe sobre a propaganda e publicidade de medicamentos. Em seu artigo
3º aborda que somente é permitida propaganda ou publicidade de medicamentos
regularizados na ANVISA, conforme artigo 7º as informações divulgadas devem ser
comprovadas cientificamente.29
O artigo 8º da referida resolução estabelece restrições a propaganda e publicidade de
medicamentos, enquanto o artigo 9º traz permissões. Os artigos seguintes trazem requisitos
para a correta propaganda ou publicidade de medicamentos.30 Importante mencionar a
Portaria n. 344/199831 que se refere ao Regulamento Técnico sobre substâncias e
medicamentos sujeitos a controle especial.
A publicidade pode apresentar-se também como buzz marketing, forma mais antiga
de realizar a comunicação de marketing, é conhecido como a propaganda boca a boca, ou

28
Artigo 4º da Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária número 96, de
17 de dezembro de 2008: “Não é permitida a propaganda ou publicidade enganosa, abusiva e/ou indireta.
Parágrafo único - Fica vedado utilizar técnicas de comunicação que permitam a veiculação de imagem e/ou
menção de qualquer substância ativa ou marca de medicamentos, de forma não declaradamente publicitária,
de maneira direta ou indireta, em espaços editoriais na televisão; contexto cênico de telenovelas; espetáculos
teatrais; filmes; mensagens ou programas radiofônicos; entre outros tipos de mídia eletrônica ou impressa”. Cf.
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Resolução de Diretoria Colegiada –
RDC n. 96, de 17 de dezembro de 2008. Brasília, 2008. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/rdc0096_17_12_2008.html. Acesso em: 01 set. 2021.
29
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Resolução de Diretoria Colegiada
– RDC n. 96, de 17 de dezembro de 2008. Brasília, 2008. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/rdc0096_17_12_2008.html. Acesso em: 01 set. 2021.
30
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Resolução de Diretoria Colegiada
– RDC n. 96, de 17 de dezembro de 2008. Brasília, 2008. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/rdc0096_17_12_2008.html. Acesso em: 01 set. 2021.
31
AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Portaria n. 344, de 12 de maio de
1998. Brasília, 1998. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html. Acesso em: 01 maio
2020.
91

seja, quando uma pessoa fala naturalmente de um produto ou serviço, seja positiva ou
negativamente. Tal forma de comunicação ganha importância devido à confiabilidade que
se tem na fonte que profere a mensagem.32
Com relação aos medicamentos, verifica-se que têm forte influência e presença na
vida dos idosos, pois são produtos elaborados especialmente com a finalidade de prevenir e
curar doenças. Porém, em demasiadas vezes, os mesmos são destacados como objetos
mágicos, em que as pessoas depositam toda confiança em seu poder de cura, vendo naquele
medicamento uma chance de alívio para os indicativos que sente. Como acompanhado
diariamente no noticiário, vê-se a publicidade escancarada de medicamentos. Também,
conclui-se que os indivíduos estão consumindo medicamentos por conta própria e
colocando-se em perigo quanto aos efeitos colaterais.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O consumidor, parte vulnerável nas relações de consumo, tem proteção de seus


direitos respaldada pela Constituição Federal, visto constituir um direito fundamental. Com
isso, o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º e incisos, traz um rol
exemplificativo de direitos básicos do consumidor.
Dentre os direitos básicos analisados, encontra-se a proteção contra a publicidade
enganosa e abusiva, tendo em vista que, na atual sociedade de informação, os consumidores,
principais agentes da vida econômica, são diariamente bombardeados com anúncios
publicitários que estimulam desejos de comprar.
O consumidor idoso, parte hipervulnerável nesta relação, por sua idade avançada e
pelas consequências por ela trazida, é parcela bastante ativa no mercado consumidor de
medicamentos. O uso indiscriminado desses medicamentos, pode trazer sérios danos à
saúde, se utilizado sem a orientação médica.
Portanto, com o objetivo de proteger o consumidor idoso que é o sujeito
hipervulnerável, editou-se novas regras, principalmente, por parte da ANVISA, como meio
de proteger a população. Também se torna necessário um reforço de proteção dos órgãos

32
ANDRADE, Josmar; TOLEDO, Ana Carolina; MARINHO, Monique Terra. Uma reflexão crítica sobre o
buzz marketing e suas implicações éticas como estratégia de comunicação de marketing. Cadernos de
Comunicação, Santa Maria, v. 17, n. 18, p. 187-209, jan./jun. 2013. p. 189-190.
92

que compõem o sistema nacional de defesa do consumidor, com vistas a fiscalizar a prática
de publicidade enganosa e abusiva de medicamentos destinados ao público idoso.
O Brasil possui legislação suficiente para evitar tais práticas, dentre elas está o
Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Idoso e a Constituição Federal de 1988, mas
o que precisa ser realmente efetivada é a fiscalização.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Luiz Fernando. Publicidade abusiva e proteção do consumidor idoso. São


Paulo: Atlas, 2013.

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Portaria n. 344, de


12 de maio de 1998. Brasília, 1998. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/svs/1998/prt0344_12_05_1998_rep.html.
Acesso em: 01 maio 2020.

AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). Resolução de


Diretoria Colegiada – RDC n. 96, de 17 de dezembro de 2008. Brasília, 2008. Disponível
em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2008/rdc0096_17_12_2008.html.
Acesso em: 01 set. 2021.

ANDRADE, Josmar; TOLEDO, Ana Carolina; MARINHO, Monique Terra. Uma reflexão
crítica sobre o buzz marketing e suas implicações éticas como estratégia de comunicação de
marketing. Cadernos de Comunicação, Santa Maria, v. 17, n. 18, p. 187-209, jan./jun.
2013.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 5383/2019. Brasília, 2019. Disponível
em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2223942.
Acesso em: 22 out. 2021.

_______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 out.
2021.

_______. Lei n. 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá


outras providências. Brasília, 2003.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.741.htm. Acesso em: 22 out. 2021.

_______. Lei n. 9.294, de 15 de julho de 1996. Dispõe sobre as restrições ao uso e à


propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos
agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal. Brasília, 1996. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9294.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
93

_______. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Turma. Recurso Especial n. 586.316/MG.


Relatoria: Ministro Herman Benjamin. Julgado em: Brasília, 17 abr. 2017. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/ITA?seq=683195&tipo=0&nreg=2003
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FREITAS JUNIOR, Roberto Mendes de. Direitos e garantias do idoso: doutrina,


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comentado pelos autores do anteprojeto: direito material e processo coletivo. 12. ed. Rio de
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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo


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MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: o princípio da


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SCHMITT, Cristiano Heineck. A “hipervulnerabilidade” do consumidor idoso. Revista dos


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SOUZA, Maria Claudia da Silva Antunes de; STOHRER, Camila Monteiro Santos.
Consumo Consciente como mecanismo da sustentabilidade. In: BENACCHIO, Marcelo;
GARCIA, Marcos Leite; ARCE, Gustavo. Direito e sustentabilidade. Florianópolis:
CONPEDI, 2016.
94

O CONSENTIMENTO DO PACIENTE NO DIREITO MÉDICO

Karla Schostack1

Resumo: É de extrema importância que médicos elaborem o Termo de Consentimento e que


esse termo seja específico para cada paciente. Omitir informações relacionadas à alguma
intervenção médica, além da possibilidade de prejudicar a integridade física e moral de uma
pessoa, o médico pode responder judicialmente, por responsabilidade civil, penal e/ou ético-
disciplinar/ ético-profissional.
Palavras-chave: Consentimento, Dever, Informação, Médico, Paciente.

1 INTRODUÇÃO

Muitos médicos ainda elaboram o Termo de Consentimento de forma genérica.


Sabemos que o médico e a unidade hospitalar não devem oferecer um tratamento médico
sem Termo de Consentimento Informado, assinado pelo paciente e/ou pelos seus familiares.
Se o Termo for feito de forma genérica, ele não será eficaz, pois quem assina não está
assimilando e entendendo o que está assinando. O Termo precisa ser feito de forma
individualizada para cada paciente. É imprescindível que os profissionais da saúde
conheçam todos os aspectos legais da medicina e tenham uma visão jurídica clara do Termo
de Consentimento Informado, para prevenir que situações fora do planejado se transformem
em ações judiciais.

2 DESENVOLVIMENTO

Em decorrência da complexidade da relação médico-paciente, é recomendado, que o


médico formalize o Termo de Consentimento Informado e esclarecido de forma escrita,
atendendo a todos os requisitos e formalidades legais.
O paciente tem o direito de receber a informação, ser esclarecido sobre o
procedimento, sobre a sua doença, para depois disso ter a autonomia na hora de decidir sobre
qualquer prática médica que venha ser realizada em seu corpo.

1
Advogada Palestrante, coordenadora e fundadora do escritório Karla Schostack Advocacia e Consultoria, atua
na área das Famílias e Sucessões, Direito Médico, na defesa dos Direitos das Mulheres e Direitos Humanos,
Pós-graduada em Direito Empresarial PUCRS, Pós-graduanda em Direito Médico pelo Verbo Jurídico,
Presidente da Comissão da Mulher ABA/RS, Vice-Presidente da Comissão Nacional de Direito das Famílias
e Sucessões da ABA e Membro da Comissão Especial da Saúde OAB/RS.
95

No momento em que o paciente assina o Termo de Consentimento Informado,


significa que ele autoriza a intervenção médica e que está ciente de todas as consequências
e riscos previsíveis no documento.
Mas o que é o Termo de Consentimento informado e esclarecido?
Nada mais é do que um contrato, um acordo de vontades estabelecido para certa e
determinada finalidade (que, no caso do Direito Médico, envolve a prestação de serviços
relativos à área da Medicina) e, portanto, um negócio jurídico, deve apresentar os mesmos
elementos essenciais dos atos jurídicos.
Estes requisitos estão expressos nos art. 104 do Código Civil, a Art. 104. A validade
do negócio jurídico requer:
I – agente capaz;
II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável
III – forma prescrita ou não defesa em lei.
No caso da relação médico-paciente, muito embora não seja habitual e as regras
consuetudinárias tenham sedimentado a prática da não realização do contrato de serviços e
honorários médicos, há um documento do qual nenhum médico deve abrir mão: o Termo de
Consentimento informado e esclarecido.
O Código de Defesa do Consumidor e o Código de Ética Médica instruíram a
obrigatoriedade do consentimento do paciente antes de se submeter à algum procedimento
médico.
De acordo com o Código de Ética Médica, é vedado ao médico:
Art.22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após
esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte;
Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir
livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de
iminente risco de morte;
Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, prognóstico, os riscos e os
objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar danos,
devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal;
E o Código de Defesa do Consumidor declara que:
Art. 9. O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à
saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua
96

nocividade ou periculosidade, sem prejuízo de outras medidas cabíveis em cada caso


concreto.
Alguns tópicos que não podem faltar na elaboração de um Termo de Consentimento:
O Termo de Consentimento deve ser específico para cada procedimento. Cada
intervenção tem um risco diferente, uma maneira diferente de ser feita.
A linguagem contida no Termo deve ser acessível.
O paciente ou representante legal deve ter capacidade mental, racional e etária (maior
de 18 anos), para assinar o Termo.
São considerados representantes legais: os pais, tutores, cônjuge ou curadores.
Deve conter: nome completo do médico, do paciente e da instituição hospitalar, nome
e explicação do procedimento que será realizado, benefícios, possíveis riscos, efeitos
colaterais, contraindicações e complicações que são previstas com a intervenção médica.
Deve informar as medicações que serão utilizadas e processos que serão realizados.
Possibilidade de anulação do procedimento antes da intervenção médica.
Opção para o paciente autorizar a divulgação do procedimento por meio de fotos e
vídeos em publicações médicas e científicas.
Assinatura do médico, do paciente ou representante legal e testemunhas.
A autenticação do termo deve ser com a livre e espontânea vontade do paciente.
Além disso, deve o médico ter uma conversa franca e transparente com o paciente.
Todos os itens contidos no documento precisam ser esclarecidos e todas as dúvidas
respondidas
Alessandra Varrone de Almeida Prado Souza,2 acerca desta temática, assim faz
constar:
Para que seja considerado válido o consentimento, é importante que seja
concedido, pelo paciente, sem qualquer influência e, não menos relevante, permitir
que o enfermo tenha acesso às informações fundamentais para decidir livremente
sobre sua condição.
Desse modo se conclui que tão indispensável quanto o consentimento informado
é o dever de informação, que recai sobre o profissional da saúde esclarecer a real
situação do paciente e informar as opções compatíveis com a necessidade real.
Contudo, o consentimento informado não deve ser compreendido somente como
a simples transmissão de informações ao enfermo.
É preciso que seja dado a ele o conhecimento da amplitude do procedimento
médico a que será submetido, sendo repassadas as possibilidades de riscos,
complicações, benefícios e alternativas de tratamento. Essa somatória de
informações que devem ser repassadas precisa ser compreenda como elementos
formadores no negócio jurídico, previstos nos artigos 104, 185 e 166 VI, todos do
CC.

2
SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Resumo de direito médico. Leme: JH Mizuno, 2020, v. 16.
97

Desse modo se conclui que tão indispensável quanto o consentimento informado é o


dever de informação, que recai sobre o profissional da saúde esclarecer a real situação do
paciente e informa as opções compatíveis com a necessidade real.
Sendo assim, o paciente deve ser mais do que informado, deve ser esclarecido de
todos os pontos do tratamento médico que ele será submetido. Isso implica que o médico
deve ser o mais claro possível, inclusive, utilizando vocabulário compatível com o grau de
instrução do paciente.
Se o médico notar que o paciente não possui o necessário grau de entendimento, deve
falar com o familiar mais próximo e explicar-lhe, em detalhes, a terapêutica que será seguida.
Neste caso, é recomendado que, tanto o paciente, quanto o familiar que ouviu as
informações, assine o Termo de Consentimento Informado e Esclarecido.
O paciente e/ou o familiar precisam entender que tudo que o procedimento a que ele
pretende se submeter pode implicar, de bom ou de ruim.
Quando o termo não é individualizado, quando é feito de forma genérica, o médico
não está esclarecendo o paciente em sua totalidade.
É obrigação do médico esclarecer ao seu paciente tudo que está relacionado à
enfermidade e as chances de ocasionar algum efeito não esperado. O diagnóstico,
prognóstico, procedimentos, benefícios, reações adversas, entre outras informações
pertinentes ao tratamento devem ser muito bem explicadas.
Não temos como prever tudo, mas quanto mais individualizado o termo, quanto mais
esclarecido for o paciente e os familiares que acompanham o paciente na consulta, menor a
chance de, no futuro, o médico sofrer alguma ação judicial.
Por isso a importância do paciente e/ou familiar ser esclarecido sobre tudo o que pode
acontecer ao se submeter a uma cirurgia.
Claro que se for uma cirurgia que não seja eletiva, onde o médico precisa agir rápido
para salvar a vida, é uma outra situação.
O Código de ética Médica ampara o médico para essa tomada de decisão em
situações de iminente perigo de vida.
Para os casos em que a cirurgia é marcada com antecedência, que o paciente foi várias
vezes no consultório, ele deve estar suficientemente esclarecido para tomar a decisão de
fazer ou não o tratamento/cirurgia.
98

Outra situação que é importante citar, é a promessa de resultado. Os médicos não


devem prometer resultados aos seus pacientes.
Afinal, cada organismo humano é único e possui metabolismo próprio, sendo que
cada paciente reage de forma diferente ao mesmo tratamento e/ou medicamento prescrito.
Prometer resultados, além de ser antiético, é ilegal e totalmente ilógico, pois a
Biologia não é uma ciência exata.
A prestação de serviços médicos é, inquestionavelmente, um ato contratual que
estabelece direitos obrigações tanto para o médico, quanto para o paciente. É um contrato
bilateral, uma vez que, prevê prestação e contraprestação para as partes envolvidas.
Portanto, não basta ao médico informar o paciente acerca do que será feito, mas é
preciso, fundamentalmente, que o paciente compreenda o que foi explicado, bem como os
riscos e benefícios da terapêutica proposta. Como se verifica, trata-se de um ato negocial
complexo, notadamente, quando envolve a vida do paciente.
E é justamente em decorrência dessa complexidade, presente em muitos casos, que
se recomenda que, sempre, o médico formalize o termo de consentimento informado e
esclarecido de forma escrita.
É importante ressaltar, ainda, necessidade de alteração na Lei que prevê a notificação
compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher.
A Lei n. 13.931/20193 alterou o art. 1º da Lei n. 10.778/20034 sobre a notificação
compulsória nos casos de violência contra a mulher.

Art. 1º Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território


nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a
mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados.
§ 4º. Os casos em houver indícios ou conformação de violência contra a mulher
referidos no caput desse artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade
policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para
fins estatísticos.

Sobre esse assunto devemos questionar:

3
BRASIL. Lei n. 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 10.778, de 24 de novembro de 2003,
para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13931.htm. Acesso em: 22 out. 2021.
4
BRASIL. Lei n. 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória, no território
nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados.
Brasília, 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.778.htm. Acesso em: 22
out. 2021.
99

Será que as mulheres não vão acabar deixando de ir ao médico com medo que ele
possa fazer a denúncia contra o seu companheiro?
Não podemos esquecer:
A violência doméstica e familiar inicia em um relacionamento abusivo e ela é cíclica,
tendo 3 fases:
1. onde começa a tensão
2. o ato de violência: agressões físicas, verbais
3. arrependimento, comportamento carinhoso, onde o agressor fala que vai mudar...
Como podemos ajudar que está em um relacionamento abusivo?
É fundamental orientar a procurar ajuda de uma equipe multidisciplinar: com
psicóloga(o), assistente social, coaching, advogada(o).
Formas de denúncia são:
Preferencialmente na delegacia da mulher, delegacia online, 190 da Brigada Militar
e 180 Disque Denúncia.
Devemos acolher essa mulher e não julgar.
Muitas mulheres não saem da situação de violência doméstica por ter dependência
financeira, por ter filhos pequenos, por dependência emocional, por não ter apoio da família
e amigos, por achar que é assim mesmo (que mulher deve ser tratada dessa forma), e
principalmente pelo desconhecimento da Lei Maria da Penha.
O médico precisa orientar essa mulher sobre os tipos de violência, alertá-la de que
pode estar em uma situação de violência doméstica, e questioná-la sobre o interesse ou não
em denunciar.
Diante da determinação que prevê que o médico tem o dever de fazer a notificação
compulsória em 24 horas para as autoridades policiais, seria interessante uma alteração na
Lei n. 13.931/2019, prevendo que a paciente dê uma autorização expressa de sua vontade,
assinando um Termo de Autorização, para que o médico fizesse a notificação às autoridades
Policiais e Sanitárias.
Caso a paciente, vítima de violência doméstica e familiar, mesmo após ser
esclarecida pelo médico, fosse contrária a notificação às autoridades, seria recomendado
pedir uma declaração de não autorização de notificação, desta forma o médico estaria
acolhendo a vontade de sua paciente, deixando que ela ficasse livre para escolher o que é
melhor para ela.
Essa é uma ação de transparência, lealdade e boa-fé com a vida da paciente.
100

3 CONCLUSÃO

Sendo assim, é de extrema importância que o médico esclareça sempre o Paciente,


tenha empatia com ele e com a sua família, criando um laço de confiança entre ambos.
Além disso, é necessário que o Paciente compreenda o foi explicado, bem como os
riscos e benefícios da terapêutica proposta.
O Termo de Consentimento deve ser individualizado para cada um, tendo em vista
que cada organismo/cada pessoa reage de uma forma.
Cada procedimento é único, não há modelos prontos.
O Termo de Consentimento Informado deve ser elaborado por um Advogado
Especialista em Direito Médico com o auxílio do Médico.
Nunca esqueça que o Termo de Consentimento Informado e Esclarecido é um
importante meio de prova da verdadeira relação estabelecida entre Médico e Paciente que
muito pode auxiliar o Médico em processos civis, penais e/ou ético-disciplinares/ ético-
profissionais.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Lei 8078, de 11 de setembro de 1990, Código de defesa do Consumidor

BRASIL. Lei n. 10.778, de 24 de novembro de 2003. Estabelece a notificação compulsória,


no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de
saúde públicos ou privados. Brasília, 2003. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.778.htm. Acesso em: 22 out. 2021.

BRASIL. Lei n. 13.931, de 10 de dezembro de 2019. Altera a Lei nº 10.778, de 24 de


novembro de 2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de
violência contra a mulher. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2019/lei/L13931.htm. Acesso em: 22 out. 2021.

Código de Ética Médica: Resolução CFM nº 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada


pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 / Conselho Federal de Medicina –
Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019.
SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Resumo de direito médico. Leme: JH
Mizuno, 2020, v. 16.

Internet:https://blog.ipog.edu.br/saude/voc-conhece-o-termo-de-consentimento-informado-
entenda-a-importncia-do-documento-para-pacientes-e-mdicos/ (está nas páginas 2 e 3)

https://cardiopapers.com.br/qual-diferenca-entre-cirurgia-de-emergencia-de-urgencia-e-
eletiva/ (está nas páginas 3 e 4)
101

TELEMEDICINA – A (R)EVOLUÇÃO TRAZIDA PELA PANDEMIA


PROVOCADA PELO CORONA VIRUS

Kelly Paties Pereira de Andrade

RESUMO: A pandemia provocada pelo Coronavírus (COVID19) impulsionou o


desenvolvimento da tecnologia em vários setores, em especial, da área da saúde. A inovação
tecnológica na saúde ganhou mais evidência, garantida por um cenário necessitado e carente,
e que foi, finalmente, olhado e replanejado, às pressas, em vida da urgência do momento.
Além da comunidade cientifica e clínica, a sociedade ganhou muito com o andamento de
políticas públicas e privadas, voltadas para a telemedicina.

Palavra-chave: telemedicina; pandemia; (re)evolução.

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento do programa de Telemedicina, nos termos preconizados pelo


Projeto de Lei 696/2020 (aprovado dia 25/03/2020, pela Câmara dos Deputados e
transformada na Lei nº 13.989, em 15/04/2020), acabou, em caráter emergencial,
impulsionando os atendimentos médicos ao longo do país.
Não há consenso de quando as primeiras experiências com a telemedicina no Brasil
começaram, mas relatos indicam que em 1994 a tecnologia passou a ser utilizada em exames
de eletrocardiograma feitos a distância.
O Conselho Federal de Medicina, a saber a Resolução nº 1643/2002, já rezava no seu
art. 5º, a previsão da telemedicina a ser prestada por Instituições de saúde.
O tema é importante e de forte impacto social, culminando na evolução tecnológica,
não somente da medicina, mas também, de outros setores da saúde que também buscaram se
adequar às novas necessidades. Inclusive, já há forte aspiração entre os profissionais pela
extensão da facilidade tecnológica para após a crise ocasionada pelo COVID19. Passaremos
a analisar a legislação e, após, tecer comentários específicos ao tema.

1. SOBRE O PROJETO DE LEI Nº 696/2020 E SUA CONVERSÃO NA LEI


13.989/20

De acordo com o texto do PL, a telemedicina foi autorizada para qualquer atividade
da área da saúde. O uso de tecnologias de informação e de comunicação, como
102

videoconferências, poderá ser destinado a serviços oferecidos por médicos, nutricionistas e


psicólogos. O objetivo é desafogar o atendimento nos hospitais.

No texto do PL, Telemedicina está caracterizada como “o exercício da medicina


mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões
e promoção de saúde” – sic.
A PL foi transformada, então na Lei nº 13.989 de 15/04/2020, estabelecendo critérios
e diretrizes para o uso da telemedicina, dentre as quais, uma das mais importantes: a
obrigação do médico informar ao paciente todas as limitações da telemedicina, tendo em
vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta virtual. Ainda,
merece destaque a obrigação do serviço seguir todos os padrões normativos e éticos usuais
no atendimento presencial.
O poder público ficaria responsável pelo custeio de atividades realizadas
exclusivamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). As alterações foram negociadas com
os líderes partidários.1
Sabe-se que o avanço da tecnologia já apontava para o uso da telemedicina. Naquele
momento, a situação pedia urgência na disponibilização do serviço, o que soa positivo para
todos, inclusive para o futuro, em especial aos idosos, doentes crônicos, psiquiátricos, além
daqueles pacientes residentes distantes dos hospitais, pela dificuldade, tempo e custo dos
deslocamentos.
De acordo com a Lei, os médicos e psicólogos deverão prestar uma boa orientação,
e poderão fornecer diagnóstico, aconselhamento ou até prescrição de medicamentos.
Inclusive, a medida, posteriormente aprovada e convertida em Lei, permitiu a
ampliação da telemedicina para além do período da crise. Então, caberá ao Conselho Federal
de Medicina (CFM) a regulamentação do serviço, após o período de emergência em saúde
relacionado à Covid-19.
Fato é que a Lei nº 13.989/20, que regulamenta as atividades de telemedicina durante
a emergência de saúde, definiu a possibilidade da aplicação da modalidade para assistência,
pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção da saúde.
Com isso, o atendimento a distância recebeu a devida autorização legal e o incentivo
necessário enquanto durar a pandemia.

1
https://odocumento.com.br/camara-aprova-projeto-que-autoriza-telemedicina-durante-pandemia-de-
coronavirus/
103

1.1 Particularidades

A medida autorizou a cobrança das consultas realizadas na modalidade particular,


sendo que cada unidade de saúde, clínica, hospital deve se organizar para oferecer as
modalidades de pagamento para escolha do paciente.
Disseram os parlamentares votantes:2

Honorários – Entre os pontos que constam da regra, está a obrigatoriedade de o


médico informar ao paciente sobre todas as limitações inerentes ao uso da
telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico
durante a consulta. O projeto também prevê que a prestação da telemedicina
seguirá os padrões normativos e éticos usuais de atendimento presencial
“inclusive em relação à contraprestação financeira pelo serviço prestado”, ou
seja, os atendimentos por meio desse tipo de plataforma poderão ser cobrados,
na forma de honorários médicos. (....)

Com relação ao SUS, cada Estado e Município da Federação de organizou conforme


suas demandas e possibilidades. A Secretaria de Saúde de Porto Alegre/RS, por exemplo,
mostrou-se receptiva ao exercício da telemedicina, exceto para os casos de 1ª consulta do
paciente, ou seja, aceitando, a priori, apenas aquelas consultas em que o paciente já tenha
acompanhamento prévio em alguma Instituição, à exceção de uma especialidade (a
dermatologia).
Foi necessária a organização de estruturas, a fim de atender aos pacientes, através de
plataformas digitais, a favorecer a estrutura necessária aos atendimentos.
Em alguns Estados, onde o modelo já estava implantado antes mesmo da Pandemia
provocada pela COVID 19, foi facultado ao paciente se direcionar ao posto de saúde de sua
região (UBS ou APS) e de lá, através de um médico ou enfermeiro, o contato já era feito
com o médico localizado na Central Tele do Hospital. As prescrições poderiam ser
realizadas pelo médico da UBS, após a indicação do especialista da base.
O modelo de gestão em saúde púbica em alguns estados da federação já permitia,
antes da PL de 2000, a organização do sistema de maneira a atender amplamente as
necessidades de uma população de modo regionalizado, sistematizado e contínuo das
comunidades mais necessitadas. No Estado de São Paulo, a telemedicina foi pioneira.
Como resultado deste esforço, tem-se a redução significativa do número de
encaminhamentos para especialistas, reduzindo o tempo de espera para agendamento de

2
http://www.sbd.org.br/noticias/deputados-aprovam-pl-que-permite-cobranca-de-honorarios-em-
telemedicina-e-exige-respeito-a-normas-eticas/
104

consultas. Ainda, pode-se afirmar que o uso da telemedicina na saúde primária é capaz de
diminuir as internações desnecessárias, tudo non sentido de possibilitar, também, economia
de custos operacionais, seja para o paciente, seja para os profissionais e estabelecimentos de
saúde.
Já com relação aos convênios de saúde privados, os médicos credenciados já estão
habilitados, em seus consultórios e clínicas, a prestar o atendimento a ser remunerado pelo
convênio, mediante as normas deste.

2. ENTENDIMENTO DO MINISTÉRIO DA SAÚDE E CONSELHOS


FEDERAIS:

Entidades profissionais, como o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal


de Psicologia liberaram rapidamente a prática do atendimento remoto em meio à crise do
Coronavírus.
O Ministério da Saúde também regulamentou a prática apenas para os médicos por
meio da Portaria 467/20. A portaria autoriza a telemedicina durante a emergência em saúde
causada pelo coronavírus e pode contemplar atendimento pré-clínico; suporte assistencial;
consultas de monitoramento e diagnóstico na rede pública e privada.3
Até a edição da Portaria, 467/20, a realidade apenas autorizava orientações e
monitoramento e, quando houvesse necessidade de firmar diagnóstico, teria que ter outro
médico junto ao paciente. A partir de então, foi autorizado pelo Ministério da Saúde que os
médicos emitissem atestados e receitas sem o contato pessoal com o paciente. Havendo
dúvidas, a orientação deverá ser o encaminhamento do paciente a um serviço de saúde.

O QUE DIZ A PORTARIA?

“Art. 2º As ações de Telemedicina de interação à distância podem contemplar o


atendimento pré-clínico, de suporte assistencial, de consulta, monitoramento e
diagnóstico, por meio de tecnologia da informação e comunicação, no âmbito do
SUS, bem como na saúde suplementar e privada.

Parágrafo único. O atendimento de que trata o caput deverá ser efetuado


diretamente entre médicos e pacientes, por meio de tecnologia da informação e
comunicação que garanta a integridade, segurança e o sigilo das informações.

Art. 4º O atendimento realizado por médico ao paciente por meio de tecnologia


da informação e comunicação deverá ser registrado em prontuário clínico, que
deverá conter:

3
https://www.camara.leg.br/noticias/648408-camara-aprova-projeto-que-autoriza-telemedicina-durante-
pandemia-de-coronavirus/
105

I - dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido em


cada contato com o paciente;
II - data, hora, tecnologia da informação e comunicação utilizada para o
atendimento; e
III - número do Conselho Regional Profissional e sua unidade da federação.

Art. 5º Os médicos poderão, no âmbito do atendimento por Telemedicina, emitir


atestados ou receitas médicas em meio eletrônico.

Art. 6º A emissão de receitas e atestados médicos à distância será válida em meio


eletrônico, mediante:

I - uso de assinatura eletrônica, por meio de certificados e chaves emitidos pela


Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil;

II - o uso de dados associados à assinatura do médico de tal modo que qualquer


modificação posterior possa ser detectável; ou
III - atendimento dos seguintes requisitos:
a) identificação do médico;
b) associação ou anexo de dados em formato eletrônico pelo médico; e
c) ser admitida pelas partes como válida ou aceita pela pessoa a quem for oposto
o documento.

§ 1º O atestado médico de que trata o caput deverá conter, no mínimo, as seguintes


informações:

I - identificação do médico, incluindo nome e CRM;


II - identificação e dados do paciente;
III - registro de data e hora; e
IV - duração do atestado.

§ 2º A prescrição da receita médica de que trata o caput observará os requisitos


previstos em atos da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).

§ 3º No caso de medida de isolamento determinada por médico, caberá ao


paciente enviar ou comunicar ao médico:

I - termo de consentimento livre e esclarecido de que trata o § 4º do art. 3º da


Portaria nº 356/GM/MS, 11 de março de 2020; ou
II - termo de declaração, contendo a relação das pessoas que residam no mesmo
endereço, de que trata o § 4º do art. 3º da Portaria nº 454/GM/MS, 20 de março
de 2020.”

Quanto ao parágrafo 3º itens I e II acima, as Instituições de saúde precisaram se


adequar rapidamente, elaborando os documentos citados pela Portaria.

Prontuário – O Ministério orienta, de modo complementar, que o atendimento


deverá ser registrado em prontuário clínico, contendo as seguintes informações:
data; hora e tecnologia da informação e comunicação utilizada para o
atendimento; número do CRM e sua unidade da federação; assim como os dados
clínicos necessários sobre a condução do caso, que serão preenchidos a cada
contato com o paciente.
Sobre a emissão de receitas e atestados médicos a distância, a portaria do
Ministério informa que ela será válida em meio eletrônico mediante: uso da
assinatura eletrônica certificada pelo ICP-Brasil; uso de dados associados à
assinatura do médico de tal modo que qualquer modificação posterior possa ser
106

detectável; e identificação do médico, associação ou anexo de dados em formato


eletrônico pelo médico e ser admitida pelas partes como válida.
No caso dos atestados médicos, eles devem conter, no mínimo, as seguintes
informações: identificação do médico, incluindo o CRM, identificação e dados do
paciente, registro de data e hora, duração do atestado.4

3. LEITURA AO OFÍCIO N º 1756 DE 19 DE MARÇO DE 2020 DO CONSELHO


FEDERAL DE MEDICINA AO MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE E A
RESOLUÇÃO Nº 1643/2002:

O Conselho Federal de Medicina entendeu por bem oficializar a extensão das


disposições da Resolução nº 1643/2002, sobre telemedicina, através da elaboração do Oficio
n. 1756/2020, a saber:

Oficio 1756/2020

(...)
5. Este Conselho Federal de Medicina (CFM) decidiu aperfeiçoar ao máximo a
eficiência dos serviços médicos prestados e, EM CARÁTER DE
EXCEPCIONALIDADE E ENQUANTO DURAR A BATALHA DE COMBATE AO
CONTÁGIO DA COVID-19, reconhecer a possibilidade e a eticidade da
utilização da telemedicina, além do disposto na Resolução CFM nº 1.643, de 26
de agosto de 2002, nos estritos e seguintes termos:

6. Teleorientação: para que profissionais da medicina realizem à distância a


orientação e o encaminhamento de pacientes em isolamento;

7. Telemonitoramento: ato realizado sob orientação e supervisão médica para


monitoramento ou vigência à distância de parâmetros de saúde e/ou doença.

8. Teleinterconsulta: exclusivamente para troca de informações e opiniões entre


médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico.

9. Toda essa normatização caminha no mesmo sentido do trabalho conjunto


realizado por todas as autoridades públicas competentes para se manifestar sobre
o tema e ressalta, novamente, o papel do CFM como Autarquia Federal apoiadora
das políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da população brasileira.” 5

Por sua vez, o que já dizia a Resolução nº 1643/2002, sobre telemedicina:

“Art. 1º - Definir a Telemedicina como o exercício da Medicina através da


utilização de metodologias interativas de comunicação áudio visual e de
dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde.

Art. 2º - Os serviços prestados através da Telemedicina deverão ter a infra -


estrutura tecnológica apropriada, pertinentes e obedecer as normas técnicas
do CFM pertinentes à guarda, manuseio, transmissão de dados,
confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional.

4
http:// /noticias/deputados-aprovam-pl-que-permite-cobranca-de-honorarios-em-telemedicina-e-exige-
respeito-a-normas-eticas/
5
https://portal.cfm.org www.sbd.org.br.br/images/PDF/2020_oficio_telemedicina.pdf
107

Art. 3º - Em caso de emergência, ou quando solicitado pelo médico


responsável, o médico que emitir o laudo a distância poderá prestar o devido
suporte diagnóstico e terapêutico.

Art. 4º - A responsabilidade profissional do atendimento cabe ao médico


assistente do paciente. Os demais envolvidos responderão solidariamente
na proporção em que contribuírem por eventual dano ao mesmo.

Art. 5º - As pessoas jurídicas que prestarem serviços de Telemedicina deverão


inscrever-se no Cadastro de Pessoa Jurídica do Conselho Regional de
Medicina do estado onde estão situadas, com a respectiva responsabilidade
técnica de um médico regularmente inscrito no Conselho e a apresentação
da relação dos médicos que componentes de seus quadros funcionais.
Parágrafo único – No caso de o prestador for pessoa física, o mesmo deverá ser
médico e devidamente inscrito no Conselho Regional de Medicina.”6

Portanto, para que se esteja habilitado a exercer o atendimento remoto, nos


termos legais, é preciso atentar e respeitar as recomendações contidas no Oficio nº
1756/2020 do Conselho Federal de Medicina, bem como à Lei nº 13.989/20, que
regulamenta as atividades de telemedicina durante a emergência de saúde.

4. DA REVOGADA RESOLUÇÃO CFM Nº 2.227/2018:

Finalmente, e não menos importante, mas, quiçá, curioso, há que se tecer


comentários sobre a revogação da Resolução n. 2.227/2018, ocorrida em 22/02/20197,
exatamente 14 meses antes da edição da Lei nº 13.989, de 15/04/2020.
Mal se poderia imaginar que, um ano após a revogação da Resolução, em que o
Conselho Federal de Medicina pretendia definir e disciplinar “a telemedicina como forma
de prestação de serviços médicos mediados por tecnologias”8, sobreviria Legislação Federal
a dispor sobre o uso da telemedicina (durante a crise causada pelo coronavírus (SARS-CoV-
2).
A revogação da resolução se deu, a saber, pelo grande número de manifestos
recebidos de entidades da classe médica, por mais tempo para analisar o texto original.

5. CONCLUSÃO

Assim, conclusão inequívoca que se extrai do presente artigo é que a telemedicina


foi, efetivamente, impulsionada pela urgência trazida pela COVID19, capaz de gerar a

6
https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=98094
7
https://portal.cfm.org.br/noticias/conselheiros-do-cfm-revogam-a-resolucao-no-2-227-2018-que-trata-da-
telemedicina/
8
https://portal.cfm.org.br/images/PDF/resolucao222718.pdf
108

regulamentação Federal ao tema. Entretanto, considerando que o país ainda é marcado por
grandes divergências econômicas, sociais e culturais, o compromisso e a responsabilidade
de todos é primordial para que as políticas públicas e privadas tenham valia.
Eventos adversos e riscos (inclusive sobre dados) deverão ser sempre ponderados e
medidos ao máximo. Mas, com a obediência rígida às normas e aos planos estruturais a
caminho da inovação, tais riscos poderão ser evitados ou minimizados, angariando-se bons
resultados.
Aliás, pode ser compreendido que esse tipo de atendimento médico é algo que veio
para ficar. É esperado que, nos próximos anos, o número desses atendimentos cresça
consideravelmente em razão de todos os benefícios que oferece.
Ao término da urgência provocada pela pandemia, competirá aos Conselhos Federais
de Classe dispor, novamente, sobre os atendimentos remotos. Todavia, já se pode antever
que a inovação está a caminhar lado a lado com saúde e que, ceifar o atendimento remoto,
será como um retrocesso à caminhada para a evolução tecnológica e assistencial do pais.

REFERÊNCIAS

Portal CFM – www.cfm.org.br


Portal CL - www.camara.leg.br/
Portal LEGIS - www.legisweb.com.br
Portal Odocumento – www.odocumento.com.br/
Portal SBD - www.sbd.org.br
109

O EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ODONTOLOGIA NA SAÚDE


ESTÉTICA FACIAL

Leticia Voltz Alfaro9

Resumo: Esse artigo aborda a Odontologia moderna, especificamente a odontologia na


saúde estética facial. O objetivo é esclarecer sobre a habilitação legal e área de atuação do
Cirurgião-dentista na saúde estética facial, com enfoque nas Leis e Resoluções do Conselho
Federal de Odontologia sobre o tema. Também trazer ao conhecimento do leitor sobre uma
das mais recentes especialidades da Odontologia, a Harmonização Orofacil, reconhecida
pelo Conselho Federal de Odontologia desde 29 de janeiro de 2019. Por fim, a metodologia
proposta para atingir os objetivos é hipotético-dedutiva com cunho exploratório e realizada
por meio de levantamento bibliográfico.

Palavras-chave: Odontologia, estética facial, harmonização orofacial, habilitação legal.

1 INTRODUÇÃO

A autora buscará esclarecer a sociedade sobre a atuação do Cirurgião-dentista na


realização de procedimentos estéticos faciais e em áreas afins, à luz das normas aplicáveis
para a Odontologia.
A partir da análise de uma evolução normativa, que demonstram a habilitação legal
da Odontologia para a prática da harmonização orofacial se enfrenta um tema que é palco de
discussões desde as redes sociais até o Poder Judiciário.
Inobstante explícita autorização legislativa, o Conselho Federal de Odontologia
editou várias normativas desde o ano de 2011 sobre a odontologia estética e funcional e os
preenchedores faciais. Atualmente, desde o reconhecimento da harmonização orofacial
como especialidade odontológica em 29 de janeiro de 2019, o CFO sedimentou o já
estabelecido na lei federal 5.081de 24 de agosto de 1966, que regula o exercício da
odontologia, não havendo mais dúvidas sobre o atuar do cirurgião-dentista na estética facial.

9
Advogada Sócia da Alfaro&Voltz; fundadora da DMO–Direito Médico, Odontológico e da Saúde pela
Paties&Alfaro. Palestrante e moderadora. Especialista em Direito Público; Membro da Comissão Especial da
Saúde da OAB/RS e da Comissão de Saúde da ABA-RS, Coordenadora do GT de Direito Odontológico da
ABA/RS. Ex-Procuradora dos Conselhos Profissionais de Enfermagem (Coren/RS), Educação Física (CREF2)
e Odontologia (CRO/RS).
110

2 DESENVOLVIMENTO

O Cirurgião-dentista com inscrição profissional ativa e regular, clínico geral ou com


especialização em Harmonização Orofacial (Resolução CFO 198/2019)10 está, nos termos
da Lei Federal 5.081/66, autorizado e habilitado para realizar procedimentos funcionais e/ou
estéticos na sua área de atuação. Portanto, nos termos da Resolução CFO nº 176/2016 11, é
considerada (área de atuação) superiormente ao osso hioide, até o limite do ponto násio
(ossos próprios de nariz) e anteriormente ao tragus, abrangendo estruturas anexas e afins.
A atuação dos Cirurgiões-dentistas na estética facial sempre foi permitida pela norma legal,
primeiramente pela atenção ao princípio do livre exercício profissional esculpido no artigo
5º, inciso XIII da Constituição Federal, bem como pela previsão do artigo 6º, inciso I da Lei
5.081 de 24 de agosto de 1966 que estabelece que compete a este profissional praticar todos
os atos pertinentes a Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso
regular ou em cursos de pós-graduação.
O Conselho Federal de Odontologia, nos termos do artigo 4º, alínea g da Lei 4324/64,
editou normas infra legais, denominadas Resoluções sobre o tema, apresentando-se a
seguinte evolução normativa:
 Resolução CFO nº 112/201112 - vedou o uso do ácido hialurônico em
procedimentos estéticos até que se tivessem melhores comprovações científicas e
reconheceu a sua utilização na área odontológica. Além disso, proibiu o uso da
toxina botulínica para fins exclusivamente estéticos, permitindo seu uso
terapêutico em procedimentos odontológicos. (revogada pela Resolução CFO
176/2016);

10
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-198, de 29 de janeiro de 2019.
Brasília, 29 jan. 2019. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2019/198. Acesso em: 20 out.
2021.
11
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-176, de 06 de setembro de 2016.
Brasília, 06 set. 2016. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2016/176. Acesso em: 20 out.
2021
12
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-112, de 02 de setembro de 2011.
Brasília, 02 set. 2011. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2011/112. Acesso em: 20 out.
2021.
111

 Resolução CFO nº 145/201413 - permitiu o uso do ácido hialurônico em


procedimentos odontológicos, após estudos e reconhecida comprovação
científica. E reafirmou a legalidade do uso terapêutico da Toxina Botulínica,
mantendo seu veto para fins exclusivos em procedimentos estéticos. (revogada
pela Resolução CFO 176/2016);
 Resolução CFO nº 146/201414 - autorizou o uso de ácido hialurônico e toxina
botulínica para fins odontológicos e vedou para fins não odontológicos (revogada
pela Resolução CFO 176/2016);
 Resolução CFO nº 176/201615 - autorizou para fins funcionais e/ou estéticos e
definiu a área de atuação do CD nos procedimentos;
 Resolução CFO nº 198/201916 - reconheceu a especialidade da harmonização
orofacial (HOF) e autorizou a aplicação para fins exclusivamente estéticos;
 Resolução CFO nº 218/201917 – regulamenta o exercício da Odontologia em
estabelecimentos diversos dos consultórios e clínicas odontológicas;
 Resolução CFO nº 230/22018 – vedou apenas a realização de procedimentos
cirúrgicos estéticos pelos Cirurgiões-dentistas, com exceção dos permitidos
explicitamente pela resolução CFO nº 198/2019.

13
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-145, de 27 de março de 2014.
Brasília, 27 mar. 2014. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2014/145. Acesso em: 20 out.
2021.
14
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-146, de 16 de abril de 2014.
Brasília, 16 abr. 2014. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2014/146. Acesso em: 20 out.
2021.
15
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-176, de 06 de setembro de 2016.
Brasília, 06 set. 2016. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2016/176. Acesso em: 20 out.
2021.
16
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-198, de 29 de janeiro de 2019.
Brasília, 29 jan. 2019. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2019/198. Acesso em: 20 out.
2021.
17
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-218, de 18 de dezembro de 2019.
Brasília, 18 dez. 2019. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2019/218. Acesso em: 20 out.
2021.
18
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-230, de 14 de agosto de 2020.
Brasília, 14 ago. 2020. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2020/230. Acesso em: 20 out.
2021.
112

A Resolução CFO nº 230/2020 vedou a realização de alguns procedimentos


cirúrgicos estéticos pelos Cirurgiões-dentistas, listando os procedimentos de alectomia,
blefaroplastia, cirurgia de castanhares ou lifting de sobrancelhas, otoplastia, rinoplastia e
ritidoplastia ou face lifting como proibidos de serem executados.
De qualquer sorte, a norma não limita a realização de procedimentos cirúrgicos na
face pelos profissionais, quando realizadas para fins estético-funcionais, como o que ocorre,
por exemplo, no caso dos cirurgiões-dentistas bucomaxilofaciais nas reconstruções da face
após traumas, nas cirurgias ortognáticas e/ou de prótese de ATM e outras. E também não
limita a realização dos procedimentos estéticos através de técnicas químicas, físicas ou
mecânicas na região orofacial e técnicas cirúrgicas de remoção do corpo adiposo de Bichat
(técnica de Bichectomia) e técnicas cirúrgicas para a correção dos lábios (liplifting) na sua
área de atuação e em estruturas relacionadas anexas e afins pelos especialistas em
Harmonização Orofacial (alínea f do art. 3º da Resolução CFO nº 198/2019).
Quanto ao termo ‘procedimentos cirúrgicos’, a literatura caracteriza diferentes tipos,
dos quais descreve a cirurgia ambulatorial de pequeno porte, que é aquela realizada
geralmente sob anestesia local com alta imediata do paciente, incluindo as operações feitas
no consultório ou ambulatório (retirada de lesões tumorais da pele e do subcutâneo,
postectomia, vasectomia, hemorroidectomia, polipectomias endoscópicas em casos
selecionados).19 E a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica divulga que a procura por
procedimentos estéticos não cirúrgicos aumentou 390% entre 2016 e 2017. E entre os
tratamentos não cirúrgicos mais procurados estão: preenchimento (1º), toxina botulínica (2º),
peeling (3º), laser (4º) e suspensão com fios (5º).20
Aliás, desde o ano de 2010, através da Resolução CFO nº 100 de 18 de março de
201021 o Conselho Federal de Odontologia editou normas para regulamentar a prática da
cirurgia e traumatologia bucomaxilofaciais por cirurgiões-dentistas. As equipes

19
SANTOS, J. S.; SANKARANKUTTY, A. K.; SALGADO JR., W.; KEMP, R.; LEONEL, E. P.; CASTRO
E SILVA JR., O. Cirurgia ambulatorial: do conceito à organização de serviços e seus resultados. Medicina,
Ribeirão Preto, SP, v. 41, n. 3, p. 274-286, 2008. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2783841/mod_resource/content/1/SIMP_4Cirurgia_ambulatorial.pd
f. Acesso em: 20 out. 2021.
20
SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA PLÁSTICA. Estética: procura por procedimentos não
cirúrgicos aumenta 390%. [S.l.], 27 out. 2017. Disponível em
http://www2.cirurgiaplastica.org.br/2017/10/27/estetica-procura-por-procedimentos-nao-cirurgicos-aumenta-
390/. Acesso em: 20 out. 2021.
21
CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-100, de 18 de março de 2010.
Brasília, 18 mar. 2010. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2010/100. Acesso em: 20 out.
2021.
113

multidisciplinares atuam em conjunto nos procedimentos em pacientes politraumatizados,


respeitadas as competências legais de cada profissão, sendo que nas cirurgias crânio-
cervicais existem áreas de estrita competência do cirurgião-dentista e outras do médico.
Enquanto as cirurgias estéticas funcionais do aparelho mastigatório são de competência do
cirurgião-dentista as demais são de competência do médico.
É verdade que os procedimentos estéticos não cirúrgicos podem ser realizados por
outras profissões regulamentadas, não sendo ato privativo de nenhuma profissão com
exclusividade, cabendo ao consumidor, dentre a lei da oferta e da procura, escolher o
profissional legalmente habilitado e capacitado para realizar o procedimento estético
escolhido, dentro das suas respectivas áreas de atuação. Ressaltando, ainda, que existem
procedimentos cirúrgicos exclusivamente estéticos permitidos à Odontologia, conforme
prevê a Especialidade de Harmonização Orofacial, neste caso para os cirurgiões-dentistas
detentores do título de especialista devidamente registrado no Conselho Federal de
Odontologia.
A Resolução CFO nº 198, de 29 de janeiro de 2019, lista no artigo 3º as áreas de
competência do Cirurgião-dentista especialista em harmonização orofacial:
“praticar todos os atos pertinentes à Odontologia, decorrentes de conhecimentos
adquiridos em curso regular ou em cursos de pós-graduação de acordo com a Lei
5.081, art. 6, inciso I; fazer uso da toxina botulínica, preenchedores faciais e
agregados leucoplaquetários autólogos na região orofacial e em estruturas anexas
e afins; ter domínio em anatomia aplicada e histofisiologia das áreas de atuação
do cirurgiãodentista, bem como da farmacologia e farmacocinética dos materiais
relacionados aos procedimentos realizados na Harmonização Orofacial; fazer a
intradermoterapia e o uso de biomateriais indutores percutâneos de colágeno com
o objetivo de harmonizar os terços superior, médio e inferior da face, na região
orofacial e estruturas relacionadas anexas e afins; realizar procedimentos
biofotônicos e/ou laserterapia, na sua área de atuação e em estruturas anexas e
afins; e, realizar tratamento de lipoplastia facial, através de técnicas químicas,
físicas ou mecânicas na região orofacial, técnica cirúrgica de remoção do corpo
adiposo de Bichat (técnica de Bichectomia) e técnicas cirúrgicas para a correção
dos lábios (liplifting) na sua área de atuação e em estruturas relacionadas anexas
e afins”.

A Saúde Estética é uma área do conhecimento em Saúde que possui afinidade com
várias profissões, e que, até o momento, não é de exercício privativo, pois não há norma
legal que assim estabeleça, exceto as especificidades descritas à Medicina. A Lei 12.842 de
10 de julho de 2013, que dispõe sobre o exercício da Medicina, normalmente invocada pelos
médicos para tratar a saúde estética como sendo privativa desta profissão, não é aplicada
para Odontologia, em consequência para os Cirurgiões-dentistas. O parágrafo 6º do artigo
4º dessa norma estabelece que o disposto neste artigo não se aplica ao exercício da
114

Odontologia, no âmbito de sua área de atuação, sendo que este artigo estabelece as atividades
privativas do médico (popularmente conhecido como ato médico).
Ao estudar os vetos desta Lei, resta claro que a intenção foi de preservar
procedimentos já realizados por outras profissões regulamentadas da saúde, visando à
manutenção de ações preconizadas em protocolos e diretrizes clínicas estabelecidas no
Sistema Único de Saúde e em rotinas e protocolos consagrados nos estabelecimentos
privados de saúde.
Dentre os vários artigos, parágrafos e incisos vetados, tem-se o inciso I e II do
Parágrafo 4º do Artigo 4º: “invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos
ou abrasivos” e “invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção,
punção, insuflação, drenagem, instilação ou enxertia, com ou sem o uso de agentes químicos
ou físicos”. E o inciso I do Parágrafo 5º do Artigo 4º que estabelecia a “aplicação de injeções
subcutâneas, intradérmicas, intramusculares e intravenosas, de acordo com a prescrição
médica”. Considerando os vetos citados listados da lei do ato médico, é evidente que os
procedimentos estéticos não cirúrgicos, ou cirúrgicos minimamente invasivos, não são
privativos da medicina.
A Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica afirma que a aplicação da toxina
botulínica (popularmente denominada Botox) não é um procedimento cirúrgico, conforme a
Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica.22
Destarte, outro enfoque importante sobre o tema é discorrer sobre o local autorizado
para a prática da odontologia estética. Conforme já referido linhas acima, uma Resolução do
Conselho Federal de Odontologia (Resolução nº 218/2019) vedou a pratica de atos
odontológicos com vinculação, interação, parceira e/ou convênio com estabelecimentos de
estética, salões e/ou institutos de beleza e congêneres, sem a devida observância dos critérios
e recursos sanitários e de higiene referentes à realização dos procedimentos odontológicos.
Assim, considerando que a harmonização orofacial é um conjunto de procedimentos
odontológicos, inclusive, reconhecida como especialidade odontológica, se faz necessário
que o profissional possua os respectivos alvarás sanitários de localização e/ou
funcionamento e saúde do respectivo local onde será executado o procedimento para sua
prática clínica. A competência para a análise e expedição dos alvarás sanitários é da

22
SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA PLÁSTICA. Toxina Bontulínica. Disponível em:
http://www2.cirurgiaplastica.org.br/cirurgias-e-procedimentos/minimamente-nvasivos/toxina-botulinica/
Acesso em: 10 de nov. 2021.
115

Vigilância Sanitária competente pela área e localização do estabelecimento. Por óbvio que a
melhor orientação é a execução da odontologia estética nos consultórios e clínicas
odontológicas que já possuem as autorizações sanitárias para realização de qualquer
procedimento odontológico. Atualmente no âmbito do estado do Rio Grande do Sul, está em
vigor a Portaria nº 40/200023 que aprovou a Norma Técnica de Biossegurança em
Estabelecimentos Odontológicos e Laboratórios de Próteses não havendo, até o momento,
norma específica para consultórios e clínicas odontológicas que exerçam atividade
exclusivamente de harmonização orofacial.
Ocorre que como já referido, a saúde estética é atividade multidisciplinar e
interdisciplinar de várias profissões regulamentadas por lei e independentes, com legislações
específicas prevendo áreas e limites de atuação, que muitas vezes podem ser convergentes
na atuação prática. Assim, a prática da saúde estética pelo Cirurgião-dentista é exercício
regular de direito frente a sua profissão, desde que executada por profissional habilitado e
capacitado dentro dos limites legais e infralegais impostos.
A matéria foi, e ainda é, palco de discussões judiciais entre sociedades, associações
vinculadas às áreas da Medicina e Conselho Federal de Medicina em desfavor do Conselho
Federal de Odontologia com ações judiciais findas e em curso24, e ainda com inúmeras
denúncias administrativas recebidas nos Conselhos Profissionais de Odontologia em
desfavor de Cirurgiões-dentistas que atuam em Harmonização Orofacial, numa busca
incessante pela preservação de uma reserva de mercado que, salvo melhor juízo, inexiste.
Inclusive, na ação judicial em curso (nº 0012537-52.2017.4.01.3400), ainda sem decisão
judicial, foi exarado parecer pela Procuradora da República Dra. Márcia Brandão Zollinger,
em que analisou o mérito nos seguintes termos:

Note-se que a Lei nº 4.324/64, que institui o Conselho Federal e os Conselhos


Regionais de Odontologia, estabelece no artigo 4º, alínea “g”:
Art. 4º São atribuições do Conselho Federal:
(...)
g) expedir as instruções necessárias ao bom funcionamento dos Conselhos
Regionais;
Por sua vez, a Lei nº 5.081/66 regula o exercício da odontologia e estabelece no
artigo 6º:
Art. 6º Compete ao cirurgião-dentista:

23
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Saúde. Portaria n. 40/2020. Porto Alegre, 26 dez. 2000.
Disponível em: https://saude-admin.rs.gov.br/upload/arquivos/202102/17140125-40-00-247-2912-2612.pdf.
Acesso em: 20 out. 2021.
24
Ações judiciais nº 0809799-82.2017.4.05.8400 e 0803567-56.2018.4.05.8000 extintas sem julgamento de
mérito; e, ainda esta em discussão na 8º Vara Federal da Justiça Federal de Brasília na ação judicial nº 0012537-
52.2017.4.01.3400.
116

I – praticar todos os atos pertinentes a Odontologia, decorrentes de conhecimentos


adquiridos em curso regular ou em curso de pós-graduação;
II – prescrever e aplicar especialidades farmacêuticas de uso interno e externo,
indicadas em Odontologia;
Nesse contexto, o réu editou a Resolução nº 176/2016-CFO, por meio da qual
autoriza a utilização da toxina botulínica e dos preenchedores faciais pelo
cirurgião-dentista, para fins terapêuticos funcionais e/ou estéticos, desde que não
extrapole sua área anatômica de atuação (art. 1º). Prevê também a área de atuação,
bem como restringe o uso desde que seja para os casos de procedimentos não
cirúrgicos.
Assim, tendo em vista que o cirurgião-dentista atua na harmonização da face e que
o procedimento autorizado pela Resolução nº 176/2016-CFO restringe o uso na
área de atuação do cirurgião-dentista ESPECILIZADO, o Parquet federal entende
que estão ausentes os requisitos autorizadores da concessão liminar.

Portanto, certo é que, hoje, o Cirurgião-dentista pode e deve utilizar seus


conhecimentos científicos, adquiridos nos bancos acadêmicos e cursos de pós-graduação,
para realização de procedimentos de harmonização orofacial na sua área de competência.
Ademais, o Conselho Federal de Odontologia está atento e diligente na fiscalização
do exercício desta prática pelos Cirurgiões-dentistas, tanto que editou em 14 de maio de
2021 a Resolução nº 237, que autorizou como medida imediata a suspensão cautelar do
exercício profissional de quem coloque em risco a saúde e/ou a integridade física dos
pacientes ou que estejam na iminência de fazê-lo, sem mencionar os vários processos éticos-
disciplinares que tramitam nos Conselhos de Odontologia da Federação.

3 CONCLUSÃO

Em conclusão e corolário do acima exposto, os profissionais da advocacia têm a


obrigação de trazer informações atuais e baseadas na legislação aplicável para combater as
publicações inverídicas quanto à habilitação legal para realização de procedimentos
estéticos. E é um direito do consumidor escolher com qual profissional irá realizar este
procedimento, respeitadas as competências de cada área da saúde legalmente habilitadas e
capacitadas para a execução de procedimentos estéticos não cirúrgicos e cirúrgicos não
privativos da medicina. Aliás, dentre os direitos básicos do consumidor está elencada a
liberdade de escolha e também a informação adequada. O artigo 6º, inciso II da Lei nº 8.078
de 11 de setembro de 1990 estabelece que “são direitos básicos do consumidor a educação
e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade
de escolha e a igualdade nas contratações”.
Importante ressaltar que profissionais incompetentes, imperitos e negligentes
existem em qualquer área, porém isso não autoriza uma generalização de conceitos sobre a
117

atuação de uma determinada profissão. Hoje a harmonização facial apesar de ser


competência de várias profissões legalmente autorizadas, não é para todos e sim para quem
pode.

REFERÊNCIAS

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-100, de 18 de


março de 2010. Brasília, 18 mar. 2010. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2010/100.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-112, de 02 de


setembro de 2011. Brasília, 02 set. 2011. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2011/112.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-145, de 27 de


março de 2014. Brasília, 27 mar. 2014. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2014/145.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-146, de 16 de


abril de 2014. Brasília, 16 abr. 2014. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2014/146.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-176, de 06 de


setembro de 2016. Brasília, 06 set. 2016. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2016/176.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-198, de 29 de


janeiro de 2019. Brasília, 29 jan. 2019. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2019/198.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-218, de 18 de


dezembro de 2019. Brasília, 18 dez. 2019. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2019/218.
Acesso em: 20 out. 2021.

CONSELHO FEDERAL DE ODONTOLOGIA (CFO). Resolução CFO-230, de 14 de


agosto de 2020. Brasília, 14 ago. 2020. Disponível em:
https://sistemas.cfo.org.br/visualizar/atos/RESOLU%c3%87%c3%83O/SEC/2020/230.
Acesso em: 20 out. 2021.
118

RIO GRANDE DO SUL. Secretaria de Estado da Saúde. Portaria n. 40/2020. Porto Alegre,
26 dez. 2000. Disponível em: https://saude-
admin.rs.gov.br/upload/arquivos/202102/17140125-40-00-247-2912-2612.pdf. Acesso em:
20 out. 2021.

SANTOS, J. S.; SANKARANKUTTY, A. K.; SALGADO JR., W.; KEMP, R.; LEONEL,
E. P.; CASTRO E SILVA JR., O. Cirurgia ambulatorial: do conceito à organização de
serviços e seus resultados. Medicina, Ribeirão Preto, SP, v. 41, n. 3, p. 274-286, 2008.
Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/2783841/mod_resource/content/1/SIMP_4Cirurgi
a_ambulatorial.pdf. Acesso em: 20 out. 2021.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA PLÁSTICA. Estética: procura por


procedimentos não cirúrgicos aumenta 390%. [S.l.], 27 out. 2017. Disponível em
http://www2.cirurgiaplastica.org.br/2017/10/27/estetica-procura-por-procedimentos-nao-
cirurgicos-aumenta-390/. Acesso em: 20 out. 2021.
119

O ROL DA AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR:


TAXATIVO OU EXEMPLIFICATIVO? 1

Lucas Funghetto Lazzaretti2

Resumo: Este artigo reflete sobre o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS),
apresentando julgados que versam sobre a temática no âmbito do Superior Tribunal de
Justiça (STJ). Neste viés, examina-se o rol através de uma análise crítica do entendimento
da Terceira e Quarta Turma do referido Colegiado, as quais ainda não firmaram
entendimento uníssono sobre a temática. Por fim, a metodologia proposta para atingir os
objetivos é realizada por meio de levantamento bibliográfico e jurisprudencial.
Palavras-chave: Lei nº 9.656/98. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Saúde
Suplementar. Rol. Superior Tribunal de Justiça.

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa abordar a Lei nº 9.656/98, conhecida como a lei dos planos
de saúde, as funções da ANS, explorando o entendimento do STJ sobre o rol da ANS ter
caráter taxativo ou exemplificativo.
Neste sentido, serão expostos os principais julgados do STJ que se referem ao rol da
ANS, através de uma análise crítica sobre o entendimento da Terceira e Quarta Turma do
referido Colegiado, as quais possuem entendimento diverso sobre a temática.

2 O ROL DA ANS SOB A ÓTICA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O presente estudo atualizado é realizado através da análise jurisprudencial do


entendimento adotado pelo STJ nos casos que envolvam o rol de procedimentos da ANS.
Até dezembro de 2019 o entendimento do STJ pautava-se, de forma majoritária, no
sentido de o rol de procedimentos ter caráter exemplificativo, ou seja, seriam de cobertura
mínima as disposições elencadas pela agência reguladora do setor de saúde suplementar.

1
Artigo original primeiramente publicado no livro ESTUDO DE CASOS EM DIREITO MÉDICO E DA
SAÚDE (2021), promovido pela Escola Superior da Advocacia da OAB Bahia. A presente versão encontra-se
atualizada e com modificações.
2
Advogado OAB/RS nº 106.774. Professor. Pós-graduado em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade
CERS. Presidente da Comissão da Saúde da OAB/RS, Subseção de Canoas. Vice-Presidente Interino da
Comissão Especial da Saúde da OAB/RS. E-mail: luclazzaretti@gmail.com.
120

A Terceira Turma do Colegiado definia que “[...] o fato de o procedimento não


constar no rol da ANS não significa que não possa ser exigido pelo usuário, uma vez que se
trata de rol exemplificativo”3.
O entendimento da Terceira Turma é acompanhado pela maioria dos Tribunais
Estaduais, especialmente pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que editou a Súmula n. 102,
determinando que “[...] havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de
cobertura de custeio de tratamento sob o argumento da sua natureza experimental ou por não
estar previsto no rol de procedimentos da ANS”.4
Neste sentido, como dito acima, até dezembro de 2019 a Quarta Turma do STJ
mantinha entendimento semelhante, afirmando:

Consolidou a jurisprudência do STJ o entendimento de que é abusiva a negativa


de cobertura para o tratamento prescrito pelo médico para o restabelecimento do
usuário de plano de saúde por ausência de previsão no rol de procedimentos da
ANS, em razão de ser ele meramente exemplificativo.5

Contudo, a Quarta Turma do STJ, em dezembro de 2019, através de um overruling


(alteração do precedente), passou a adotar entendimento contrário, consolidando o
entendimento que o rol da ANS não teria mais o caráter exemplificativo, mas sim taxativo.
O divisor de água sobreveio através da decisão emanada no Recurso Especial n.
1.733.013/PR:6

3. A elaboração do rol, em linha com o que se deduz do Direito Comparado,


apresenta diretrizes técnicas relevantes, de inegável e peculiar complexidade,
como: utilização dos princípios da Avaliação de Tecnologias em Saúde – ATS;
observância aos preceitos da Saúde Baseada em Evidências – SBE; e resguardo da
manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do setor.
4. O rol mínimo e obrigatório de procedimentos e eventos em saúde constitui
relevante garantia do consumidor para propiciar direito à saúde, com preços
acessíveis, contemplando a camada mais ampla e vulnerável da população. Por
conseguinte, em revisitação ao exame detido e aprofundado do tema, conclui-se

3
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial
n. 1.442.296/SP. Relatoria: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgado em: Brasília, 23 mar. 2020.
Publicado em: Brasília, 25 mar. 2020; BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Terceira Turma. Agravo
Regimental no Agravo em Recurso Especial n. 708.082/DF. Relatoria: Ministro João Otávio de Noronha.
Julgado em: Brasília, 16 fev. 2016. Publicado em: Brasília, 26 fev. 2016; BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. Terceira Turma. Agravo Interno no Recurso Especial n. 1.929.629/RS, Relatoria: Ministro Moura
Ribeiro. Julgado em: Brasília, 25 maio 2021. Publicado em: Brasília, 28 maio 2021.
4
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Primeira Seção. Súmula n. 102. Julgado em: Brasília, 17 maio 1994.
Publicado em: Brasília, 26 maio 1994.
5
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Agravo Interno no Recurso Especial n.
1.682.692/RO. Relatoria: Ministra Maria Izabel Gallotti. Julgado em: Brasília, 21 nov. 2019. Publicado em:
Brasília, 06 dez. 2019.
6
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial n. 1.733.013/PR. Relatoria: Ministro
Luis Felipe Salomão. Julgado em: Brasília, 10 dez. 2019. Publicado em: Brasília, 20 fev. 2020.
121

que é inviável o entendimento de que o rol é meramente exemplificativo e de que


a cobertura mínima, paradoxalmente, não tem limitações definidas. Esse
raciocínio tem o condão de encarecer e efetivamente padronizar os planos de
saúde, obrigando-lhes, tacitamente, a fornecer qualquer tratamento prescrito,
restringindo a livre concorrência e negando vigência aos dispositivos legais que
estabelecem o plano-referência de assistência à saúde (plano básico) e a
possibilidade de definição contratual de outras coberturas.
5. Quanto à invocação do diploma consumerista pela autora desde a exordial, é de
se observar que as técnicas de interpretação do Código de Defesa do Consumidor
devem reverência ao princípio da especialidade e ao disposto no art. 4º daquele
diploma, que orienta, por imposição do próprio Código, que todas as suas
disposições estejam voltadas teleologicamente e finalisticamente para a
consecução da harmonia e do equilíbrio nas relações entre consumidores e
fornecedores.
6. O rol da ANS é solução concebida pelo legislador para harmonização da
relação contratual, elaborado de acordo com aferição de segurança,
efetividade e impacto econômico. A uníssona doutrina especializada alerta para
a necessidade de não se inviabilizar a saúde suplementar. A disciplina contratual
exige uma adequada divisão de ônus e benefícios dos sujeitos como parte de uma
mesma comunidade de interesses, objetivos e padrões. Isso tem de ser observado
tanto em relação à transferência e distribuição adequada dos riscos quanto à
identificação de deveres específicos do fornecedor para assegurar a
sustentabilidade, gerindo custos de forma racional e prudente. 7. No caso, a
operadora do plano de saúde está amparada pela excludente de responsabilidade
civil do exercício regular de direito, consoante disposto no art. 188, I, do CC. É
incontroverso, constante da própria causa de pedir, que a ré ofereceu prontamente
o procedimento de vertebroplastia, inserido do rol da ANS, não havendo falar em
condenação por danos morais. (grifo nosso)

Assim, após análise do supracitado acórdão paradigma, pode-se concluir:


1. que o respeito à legislação, mais especificamente a Lei nº 9.656/98, artigo 10, §
4º, que trata sobre a amplitude das coberturas, deverá ser definida por normas
editadas pela ANS;
2. o rol de procedimentos segue diretrizes técnicas relevantes, fazendo-se valer da
utilização dos princípios da ATS (Avaliação de Tecnologia e Saúde), bem como
da observância dos princípios da saúde baseada em evidências;
3. o rol mínimo garante o direito à saúde com preços acessíveis. Não há como as
operadoras de planos de saúde fornecerem tudo e continuarem ofertando a atual
faixa de valores de mensalidades aos seus beneficiários e;
4. por fim, a necessidade de não inviabilizar a saúde suplementar, eis que, se o rol
fosse exemplificativo, o setor de saúde suplementar correria sérios riscos de não
mais existir, sobrecarregando o Sistema Único de Saúde e inviabilizando o acesso
à saúde tanto na esfera privada, como na seara pública.
122

As decisões proferidas posteriormente pela Terceira Turma do STJ não reconheceram o


overruling, mantendo o posicionamento anterior.7 O entendimento da referida Turma pauta-
se pelos seguintes fatores:
1. princípio da função social do contrato;
2. atribuição ao médico assistente para a indicação de tratamento à doença que acomete
o seu paciente, portanto, a seguradora não deve discutir o tratamento, apenas custeá-
lo;
3. o plano de saúde pode estabelecer as doenças que terão cobertura, mas não o tipo de
procedimento e;
4. a morosidade da atualização do rol (bienal).
Referente ao quarto ponto supracitado, vale destacar ser este o principal gerador de
insatisfação dos operadores do direito que abordam a presente temática. O Conselho Federal
de Farmácia, como amicus curiae do Recurso Especial n. 1.733.013/PR, declarou que “[...]
O prazo de atualização do Rol seguido pela ANS é condizente com o exigido pelo Ministério
da Saúde para atualização de outras normativas”,8 citando a Relação Nacional de
Medicamentos Essenciais e a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias em Saúde.
Por conseguinte, a atualização do Rol atenderia os critérios exigidos pelas principais
autoridades sanitárias do Brasil.
Percebe-se, portanto, que o não reconhecimento, pela Terceira Turma, da decisão
emanada pela Quarta Turma, invalida a criação de um precedente jurídico no tocante à
taxatividade ou não do rol de procedimentos da ANS.
Elucida-se. Ao analisarmos o precedente judicial percebe-se que este é oriundo de
uma decisão judicial, contudo, não é qualquer decisão judicial que gerará um precedente.
Para criá-lo, é necessário enfrentar, como por exemplo, o point of law, que é a matéria do
direito. Isto é, nem toda decisão judicial gera um precedente, mas todo precedente tem
origem em decisões judiciais. Ademais, o precedente não pode ser confundido com a
jurisprudência ou súmulas, seja ela persuasiva ou vinculante. As súmulas fazem parte de
uma linguagem na qual é descrita as decisões, ou seja, um enunciado acerca das decisões
não tem as mesmas garantias de um precedente. Nas palavras de Marinoni (2011, p. 217):

7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática. Agravo Interno no Recurso Especial n.
1.829.583/SP. Relatoria: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgado em: Brasília, 22 jun. 2020. Publicado
em: 26 jun. 2020.
8
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. Recurso Especial n. 1.733.013/PR. Relatoria: Ministro
Luis Felipe Salomão. Julgado em: Brasília, 10 dez. 2019. Publicado em: Brasília, 20 fev. 2020.
123

Para que existe precedente não basta apenas um enunciado acerca de questão
jurídica, mas é imprescindível que este enunciado tenha sido elaborado em
respeito à adequada participação em contraditório dos litigantes e, assim, tenha
surgido como um resultado do processo judicial, ou melhor, como um verdadeiro
resultado do debate entre as partes. É certo que se poderia dizer que o enunciado
da súmula provém das decisões judiciais, fruto da participação em contraditório.
Acontece que a súmula, só por isso, é diferente, carecendo de igual legitimidade,
ao menos quando se pensa na sua observância obrigatória ou na sua incidência
sobre a esfera jurídica de outros jurisdicionados.

Tal dissonância entre as turmas acarreta insegurança jurídica, pois o destino dos
casos, no momento, é questão de sorte(io). A Corte se afasta de sua função de Corte de
Precedentes, que é a de dar unidade ao Direito mediante a formação de precedentes e o
subsequente respeito ao precedente formado.
Devido a divergência entre a Turmas de Direito Privado do STJ, a Terceira Turma
afetou o Recurso Especial n. 1.867.027/RJ9 e a discussão foi levada à Segunda Seção do
Tribunal, colegiado que reúne os ministros dessas duas turmas e uniformiza as teses de
Direito Privado. A título elucidativo, o procedimento de afetação de um recurso à Seção
ocorre quando há posições diferentes sobre um mesmo assunto. O julgamento, que estava
previsto para o dia 28 de abril de 2021, foi retirado de pauta, devido ao falecimento da
recorrida e, posteriormente, realizado acordo entre as partes, tendo o caso transitado em
julgado em 20 de maio de 2021, sem ter firmado, definitivamente, entendimento uníssono
do STJ em relação ao caráter exemplificativo ou taxativo do rol de procedimentos da ANS.
Contudo, o STJ retornou o julgamento da questão através dos Embargos de
Divergência em Recurso Especial n. 1.886.929/SP10 e 1.889.704/SP,11 o qual ainda pende
de conclusão. Neste sentido, conforme o deslinde da resolução dos referidos casos, o
entendimento do STJ será no sentido do Rol da ANS ser considerado híbrido, ou seja, uma
proposta intermediária.
Assim, diante de casos específicos, o Rol poderá ser considerado exemplificativo,
todavia, em grande parte das discussões que envolvam o presente tema, o caráter da lista
exarada pela ANS deverá ser taxativo.

3 CONCLUSÃO

9
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.867.027/RJ. Relatoria: Ministra Nancy
Andrighi.
10
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática. Embargos de Divergência em Recurso
Especial n. 1.886.929/SP. Relatoria: Ministro Luis Felipe Salomão.
11
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Decisão Monocrática. Embargos de Divergência em Recurso
Especial n. 1.889.704/SP. Relatoria: Ministro Luis Felipe Salomão.
124

A pesquisa em tela, através da abordagem crítica dos dois entendimentos contrários


exarados do STJ, referente ao rol da ANS, destacou a evidente da insegurança jurídica que
tal fato acarreta aos operadores do direito, majorando a importância da busca dos meios
autocompositivos antes do ingresso judicial e, em caso de judicialização, faz-se necessário
trazer a posição da respectiva Turma, a fim de contrapor a ideia da existência de precedente
ou jurisprudência consolidada no ponto.
Portanto, para além de possibilitar o entendimento e a aplicabilidade das normas
consumeristas ao campo da saúde suplementar, a presente pesquisa serviu ao estudo da
natureza híbrida dos agentes privados prestarem serviços de saúde, além daqueles já
disponibilizados pelo Estado.

REFERÊNCIAS

BUZZI, Marco Aurélio. A mediação como solução à excessiva judicialização da saúde. In:
JOSÉ CECHIN, Judicialização de planos de saúde: conceitos, disputas e consequências.
Palmas: Esmat, 2020.

JOBIM, Candice L. G.; SANT’ANA, Ramiro N. Judicialização da Saúde. In: JOSÉ


CECHIN, Judicialização de planos de saúde: conceitos, disputas e consequências. Palmas:
Esmat, 2020.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011.

MELLO, Marco Aurélio. Análise jurídica do setor de saúde suplementar. In: JOSÉ
CECHIN, Judicialização de planos de saúde: conceitos, disputas e consequências. Palmas:
Esmat, 2020.
125

A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA E O ATUAL


CENÁRIO NACIONAL DE PANDEMIA

Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaler1

Resumo: Este artigo se propõe a estudar a politização da pandemia e como ela pode enviesar
o pensamento e manejo da crise sanitária. O estado democrático de direito hoje mais
considerado estado sanitário de direito repercute no acesso à saúde. Ressignificar o Direito
da Saúde integrando todas as disciplinas nesse tema contemporâneo transversal é desafiador.
A jurisdição e gestão tripartite em saúde torna complexo não politizar, razão pela qual driblar
a ideologia partidária e a judicialização é sintoma de desenvolvimento sustentável que exige
o holismo nesse aqui e agora.

Palavras-chave: Judicialização. Pandemia. Politização. Política Pública. Secularização. Pós


verdade. Multidiscilinaridade.

1 INTRODUÇÃO

O presente estudo, aborda a judicialização da política através do método filosófico


da realidade num mundo cada vez mais dominado pelas questões globais. Os conceitos
trabalhados pela filosofia demonstram o abismo entre a normatização e a quantidade de
culturas emersas na sociedade pós verdade. A constelação da teoria política, historicamente,
enraizada na concepção medieval, convida o leitor a voltar às raízes históricas da
conceituação política, rememorando certos significados originais importantes e
ressignificando-os.
A secularização, tão bem trabalhada na obra “A Filosofia Política na Sombra da
Secularização”, de Hans-Georg Flinkinger, provoca o debate pela autora no contexto
nacional e mundial, através da Organização Mundial de Saúde, de declaração de emergência
internacional de Pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2º), o Covid-19. Mas o qual a
repercussão do assunto no processo civil brasileiro?
Diuturnamente, estamos observando a repercussão da pandemia nas esferas público
privadas e na dificuldade de regular padronização dos procedimentos e informações sobre
as repercussões jurídicas da declaração internacional. Num mundo conectado, são inúmeras

1
Advogada, especialista em processos civil, pós graduada em.psicologia forense básica e avançada, Presidente
da Comissão Especial da Saúde da OABRS e moderadora do Grupo de Estudo de Direito à Saúde na ESARS,
OABRS 53.106, e-mail: marianainternet@gmail.com
126

notícias que invadem os governos e os lares, acarretando numa infodemia simultânea à


pandemia. O processo, sabe-se, organiza o manejo das situações para que elas sejam úteis e
possam solucionar os conflitos intersubjetivos de interesses dos envolvidos. O processo civil
contemporâneo repensa a justiça e a jurisdição, inclusive, o cidadão. Trabalhos dos juristas
Mauro Cappelletti (1982) e Vittorio Denti já visavam o movimento de acesso à justiça
prestigiando um processo de resultados. Assim, a repercussão civil da pandemia já pode ser
notada em diversas áreas do sistema judiciário brasileiro: justiça do trabalho, justiça comum,
justiça militar, justiça federal e justiça eleitoral. São inúmeros os reflexos e as interfaces da
declaração mundial de pandemia nas organizações de controle internas e externas
(internacionais), das pessoas físicas e jurídicas, obrigando o leitor a lembrar da Teoria Geral
do Estado, disciplina que estuda os fenômenos do Estado desde sua origem, formação,
estrutura, organização, funcionamento e suas finalidades.
Essa Teoria Geral do Estado sistematiza conhecimentos jurídicos, filosóficos,
sociológicos, políticos, históricos, geográficos, antropológicos, econômicos e psicológicos e
corresponde à parte geral do Direito Constitucional, base do Direito Público, disciplina dos
Cursos de Direito e afins.
O caráter multidisciplinar do estudo ora utiliza vários fenômenos de indução, ora de
dedução para chegar às conclusões, se identificando com a Ciência Política para alicerçar ao
debate.
A importância da TGE e da ciência política para o direito é fenômeno da
secularização, conceito no dicionário online de Português de

1. Transformação ou passagem das coisas, fatos, pessoas, crenças e instituições,


que estavam sob domínio religioso para o regime leigo. 2. Transferência de bens
ou pessoas do regime religioso ou monástico, passando os bens ao regime civil, e
as pessoas ao regime secular, leigo. 3. Absolvição do voto de clausura; dispensa
dos votos monásticos. 4. Ação ou efeito de subordinar ao direito civil o que era do
direito canônico.

O pensamento constitucional na política, aqui, é o foco do raciocínio do conceito de


secularização, hoje muito discutido. A bipolaridade histórica do questionamento convida o
leitor a acolher a política como algo desmistificado.
127

2 DA SECULARIZAÇÃO

Vários autores oferecem referências sobre o conceito, contudo, saeculum significa


século em português, período de cem anos no passado ou projetado, para o futuro. O século
delimita um período dentro de uma linha considerada infinita em relação ao passado e
também ao futuro. Trata-se de uma imagem baseada na ideia de continuidade do tempo,
dentro do qual o momento presente marca apenas o ponto de vista inscrito por nós. O período
de cem anos, no mundo cristão, a contagem do nascimento de Jesus como ponto de partida
evidencia o caráter aleatório desse tempo, diferente da contagem judaica, islâmica, o que
denota a perspectiva cultural da expressão. Logo, as normas de orientação ético-culturais,
igualmente, coordenam o ser no mundo e o seu tempo.
A aplicação do termo século expressa a pretensão do homem de se apoderar do tempo
e de se tornar seu construtor como criador de um mundo seu. A apropriação do tempo pelo
homem é fenômeno importante para a análise do mundo moderno, fiel à concepção
racionalista.
A secularização da visão teológica do tempo causa um anseio existencial irrecusável.
Não por acaso a sociedade moderna ganhou o status de uma sociedade de consumo e de
trabalho que se submete cada vez mais à lógica temporal, que mede o valor da pessoa e sua
biografia social pela produtividade econômica. A essência do tempo é enigmática e uma
preocupação da filosofia. Aristóteles já dedicava ao ser ou não- ser esse status ontológico.
A magia do tempo nas variadas disciplinas poderia ser aqui narrada pela
racionalidade instrumental, mas isso seria um abuso do tempo disponível do leitor, que
poderia abandonar o texto nessa ampulheta alquímica. No direito, o que nos cabe nesse
momento, as expressões cláusulas pétreas, garantias legais, apontam essa construção
externa do conceito proposto.

3 O FENÔMENO DA PÓS-VERDADE

A secularização traz a raiz ambígua do tempo vista sob a ótica da teologia, sociologia
e psicanálise. Assim, a ciência política transcende e desencadeia na revisão dos conceitos de
política, soberania, povo, estado-nação e ganha um significado de nova constelação política.
Essa instância transcendente desmascara a ordem liberal e descreve a pós verdade que
modela a opinião pública, os fatos, às emoções e crenças na cultura política. A questão da
pós- verdade relaciona-se com a dimensão hermenêutica na fala de Nietzsche, admitindo-se
que “não há fatos, apenas versões”. A busca pela verdade, ressignificada. O cada novo “aqui
128

e agora” político-social. Tal constelação favoreceria a reformulação e o fortalecimento do


conceito de democracia, porque a real dinâmica política dependeria com maior rigor, da
participação ativa dos cidadãos nas decisões políticas. Revalidar os conceitos de povo-nação,
que não são homogêneos diante da realidade das sociedades multifacetas é provocador. Os
limites geofísicos, o idioma e o alcance do poder político levam à formação de nações
modernas com identidade próprias. O conceito de povo perdeu seus contornos existenciais
unívocos e com isso sua força legitimadora. O conceito não passa de uma projeção e de
fragmento. Na realidade, a maioria dessas populações é composta de correntes tribais com
interesses e orientações religiosas conflitantes, correntes que jamais se aproximaram dos
ideais iluministas ou de racionalidade. Disso decorre o enfraquecimento do Estado-nação,
provocado pela migração do poder político em direção a organizações ou instituições
internacionais. Ademais, dentro do cenário de pandemia, a imprensa atinge um alcance que
extrapola os territórios, além do conteúdo ser recheado de interesses políticos partidários
com as chamadas notícia falsas, ou fake news.

4 A DECLARAÇÃO DA PANDEMIA PELA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA


SAÚDE

Após a declaração internacional da pandemia, em 11 de março de 2020, devido ao


covid-19, o coronavírus, essas interferências cosmopolitas podem ser vivenciadas dia a dia.
Apesar de todos os apelos internacionais no sentido de promover a democratização, não
conseguimos penetrar na superfície cultural e social de cada região, cujas condições
políticas, por vezes, são avessas a essas orientações gerais.
À luz da dignidade humana, a presente análise teleológica encontra dificuldade
quando apoiada nos direitos fundamentais expressos na Constituição brasileira. Só
conseguiremos romper com o paradigma atual se admitirmos o caráter provisório e sujeitos
a revisões contínuas das dinâmicas político-culturais na exegese diária. A ameaça da
incerteza compensa quando sobrepostas aos desafios vindos da modernização da sociedade.
A reinterpretação dos conceitos políticos e a empiria desencadeiam a revolução de
autorizar a reconstruir todas as razões reformulando os paradigmas científicos das pesquisas
atuais. Qualquer modificação epistemológica, por menor que seja, pode causar a entropia do
sistema como um todo. Essa desordem é que harmoniza os elementos novos e autoriza o
novo dispositivo de flexibilizar o sistema. A pandemia, evidentemente mudou o cenário
129

interno e externo do Brasil, no Distrito Federal, nos Estados e Municípios, que estão
“parados”, em isolamento social, salvo os serviços essenciais destacados nos vários
dispositivos normativos. Uma enxurrada de decretos, resoluções e medidas provisórias
sustentam os governos enquanto a saúde contabiliza os infectados, curados e mortos. A
economia já apresenta recessão e a segurança pública enfrenta altos índices de violência
doméstica e social, conforme declaração do chefe da ONU. António Guterres. Com a
educação em “banho maria”, as aulas online e o trabalho remoto são as únicas ferramentas
para a informação e o trabalho.
Nessa esteira, em tese, o Judiciário, com seu poder normativo e político segue
protagonizando a cena para assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, de acordo com a Constituição Federal.

5 A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA PÚBLICA

O processo entrópico social é que acarreta a crescente judicialização da política e da


saúde em questão. Não estamos autorizados a mudar e a romper com um modelo, senão de
forma coercitiva senão o sistema não tolera, não sustenta e não reconhece qualquer atividade
diferente do regulamentado.
As demandas judiciais, como sempre, transbordam o sistema já colapsado e
represado, sintoma de um modelo democrático deficiente. A autopoiese, segundo os
filósofos chilenos, Francisco Varela e Humberto Maturana, na obra “Autopoiesis and
cognition: the realization of the living” (1980) é um termo criado em 1970 que designa a
capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. Portanto, um ser vivo, como sistema
autônomo está constantemente se autoproduzindo, autorregulando, e sempre mantendo
interações com o meio. A judicialização é o maior sintoma dessa emergência dogmática
jurídica e da incontingência social.
A declaração mundial da pandemia ilustra o diagnóstico quando o Brasil rompe com
a orientação política internacional de manejo com a pandemia, adotando sua verdade sobre
os fatos. Essa gota d’água pode levar o sistema a implodir pelo nível de (in) tolerância desse
sistema social que caminha junto com o sistema individual. O sistema é capaz de manejar a
crise desde que não exceda aos limites do todo. Sendo pragmática, se o sistema conseguir
130

reagir e controlar a crise interna, o colapso econômico não vai ceder parte da soberania
nacional em favor de instituições internacionais. É tempo de Páscoa para os cristãos, de
sacrifício. Cristo é o sacrifício da Páscoa. Páscoa significa “passar por cima”, do hebraico
passach, derivado do verbo passah, “saltar” ou “passar”. Portanto, com o signo da Páscoa
como um símbolo de paz, podemos passar por cima de algumas questões políticas e
“verdades absolutas” e admitir que o Judiciário precisa dessa automediação e autocrítica,
além dos poderes executivos e legislativo. O fortalecimento da democracia está na “UTI” e
esse caráter provisório é teleológico, sentido da praxis política e jurídica.

6 A MULTIDISCIPLINARIDADE

No exame, a avaliação e definição de um objeto sob diversos olhares de diferentes


disciplinas é o que estamos observando quando abordamos o assunto da pandemia. Cada
especialista, neste caso, faz suas próprias observações considerando seus saberes, sem
estabelecer contato com os diferentes do seu, o que pode acarretar na dissonância crítica de
informações. Um olhar de matemático é diferente do olhar humanista e está tudo bem, eis o
paradoxo; determinar o que é verdadeiro ou falso, sé é que isso é possível e produtivo. Muitos
axiomas, até agora, passaram nos testes sendo aceitos como verdades, até que um axioma
novo invalida um antigo e seja substituído por um novo axioma. Assim funciona o
pensamento lógico.
Ocorre que estamos diante de uma pandemia que desafia todos esses conceitos de
olhares que desnorteiam os olhares de todos. A judicialização da política na pandemia
decorre, justamente, dessas inúmeras possibilidades de visão de mundo e da inconsistência
de algumas probabilidades indecidíveis. O Direito sempre foi uma seara propícia para
quebrar os códigos através da prova por contradição.
O atual cenário nacional, seguindo a evolução em outros países, apresenta um
número crescente de casos do coronavírus, de modo que, a fim de evitar um colapso no
sistema público de saúde, demandam atuações urgentes e efetivas de forma multidisciplinar
que não convergem e acirram os conflitos internos e externos.
Para evitar o risco de contágio e garantir o êxito de cura em eventual circunstância,
deve-se prezar por medidas públicas efetivas e imediatas, através do Poder de Polícia,
restringindo liberdades individuais, regulando a prática de ato ou abstenção de fato, em razão
de interesse público. Além dessa medida, se mostra indispensável um agir estatal, através de
implementação de direitos humanos de segunda dimensão, ao buscar uma prestação positiva
131

estatal, a fim de garantir a tutela de direitos positivados no ordenamento jurídico, como


direitos fundamentais, a exemplo, de vida, saúde e integridade física. Para tanto, tem-se por
essencial um atuar conjunto e harmônico das funções estatais, considerando o Poder uno e
indivisível em busca de um bem maior a toda a sociedade.
Os 3 poderes estão em cena: Executivo, Legislativo e Judiciário. Quando se está
diante de um pleito de implementação da política pública perante o Poder Judiciário é porque
houve uma falha na implementação dessa ou, devido à urgência que a medida demanda, não
se pode aguardar todo o ciclo para que o Executivo e Legislativo atuem. É hora de organizar
o plano de ação. Fazendo uma analogia à luz das famílias, não é hora de os integrantes da
família ficarem brigando enquanto só um trabalha para arrumar a casa e prover tudo. Todos
podem e devem ter funções distintas para que tudo funcione em harmonia.
Diante de um cenário fático como o atual, as soluções compartilhadas com a atuação
conjunta das três funções estatais, de forma harmônica, possibilitam e aceleram a superação
de problemas, de modo a tornar mais fácil a tomada de decisões.
A Judicialização da pandemia deve ser vista com cautela em situações que não
demandam urgência e podem ser buscadas mediante os trâmites necessários para tanto, seja
por meio da edição de uma lei, após o processo legislativo, seja através do respeito ao ciclo
de implementação de políticas públicas ou do uso do Judiciário, justamente, por faltar tempo
para que tudo ocorra dentro dos padrões tradicionais.
O Judiciário não pode ser visto como mera “boca da lei”, com a função tão somente
de aplicar a lei ao caso concreto, mas sim de efetivar direitos fundamentais, atuar por meio
de medidas indutivas e coercitivas, a fim de integrar as funções estatais em busca de um bem
maior, mas parece que a harmonia dos poderes está desafinada e a briga compromete o
desempenho e performance do país.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A judicialização da política pública e o atual cenário de pandemia, ao final, podem


ser concluídos através do sentido empírico que nos conduz a revolução. Que o sentido
teleológico da justiça possa revolver em bons novos olhares sobre os conceitos que
ultrapassam a barreira das disciplinas.
Finalmente, difícil não politizar a pandemia, mesmo sendo caso científico de saúde
pública. Não existe nada puramente técnico que seja separado de outros olhares e disciplinas.
Os Estados e os munícipios não estão dissociados da união. O país não está separado de
132

outras nações. As noções e os olhares de cada instituição pública ou privada são diferentes
e os aspectos políticos interferem em todas as áreas da nossa vida. As ontologias se
relacionam e no holismo sobre a pandemia foi rigorosamente evitado o purismo.
Sobre a virtude da palavra-chave pureza, o livro “O pequeno tratado das grandes
virtudes”, de André Comte-Sponville (2009) ensina. “A pureza não é pura”, mas a pureza
do olhar da autora sobre o tema, foi procurado ser puro no sentido de interesse político
partidário.
Por isso, encerra-se o artigo sem a pretensão sem descobrir qual a verdade por trás
de toda a repercussão política da pandemia, até porque, existem muitas verdades e não
acreditamos que alguma seja mais verdadeira do que outra. Afinal, a verdade importa?

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

AZAMBUJA, Darcy. Teoria geral do estado. 41. ed. São Paulo: Globo, 2001.

CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, visto por um advogado. 2. ed. Martins Fontes,
2015.

COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Tradução de


Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DOEHRING, Karl. Teoria geral do estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

FLINKINGER, Hans-Georg. A filosofia política na sombra da secularização. São


Leopoldo: Unisinos, 2016.

MATURANA, H. R.; VARELA, F. J. Autopoiesis and cognition: the realization of the


living. Dordrecht: D. Reidel, 1980.

REALE, Miguel. Teoria do direito e do estado. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

SINGH, Simon. O último teorema de Fermat. Rio de Janeiro: Record, 2008.

TRINDADE, Jorge Trindade; MOLINARI, Fernanda (Org.). Psicologia forense: novos


saberes. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2018.

TRINDADE, Jorge Trindade; MOLINARI, Fernanda (Org.). Psicologia forense: um olhar


para o futuro. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2019.
133

A IMPORTÂNCIA DA ÉTICA E DO COMPLIANCE NA GESTÃO DE


CONFLITOS DE INTERESSE EM HOSPITAIS

Melissa Daandels1

Resumo: Vivemos em tempos em que se depende de forma crescente da ciência e da


tecnologia, especialmente em ambientes organizacionais na área da saúde, onde princípios e
valores estabelecidos pelas organizações são de grande importância para a construção de
uma cultura ética, na medida em que influenciam, efetivamente, o comportamento e a
tomada de decisão de seus colaboradores. Considerando-se que a figura do paciente é o foco
central em meio aos diversos stakeholders2 do setor da saúde, a prevenção de conflitos de
interesses nesta área se traduz como um grande desafio, notadamente ante o impacto da
evolução da saúde na materialização de potenciais conflitos de interesses. Nesse contexto, a
existência de programas de compliance efetivos no setor da saúde gera benefícios às
organizações que os implementa, contribuindo para a gestão dos dilemas éticos na saúde e
para a melhoria do ambiente de controles internos, promovendo valores como a
transparência e a integridade.

Palavras-chave: Conflitos de interesses. Hospitais. Compliance. Transparência. Cultura


ética.

1 INTRODUÇÃO

O setor da saúde vivencia constantes e efetivas transformações na atualidade,


notadamente em virtude da velocidade em que o conhecimento e as práticas médicas e
assistenciais avançam e tecnologias e novas soluções para o tratamento e o cuidado dos
pacientes se incorporam a este setor.
Atualmente, o encontro entre o paciente e o profissional médico ocorre em ambientes
institucionais e econômicos mais complexos do que nunca, como nos ambientes hospitalares,
onde estes possuem múltiplas relações com outros médicos, enfermeiros e outros
profissionais da área da saúde, gestores de atenção à saúde, seguradoras, organizações de
classe e, até mesmo, órgãos estaduais e federais, além das próprias famílias dos pacientes.

1
Advogada. Pós-Graduada em Direito Processual Civil. Pós-Graduada em Direito Médico. MBA em Gestão
Jurídica Hospitalar e da Saúde. Certificada em Ética e Compliance pelo Hospital Albert Einstein (SP) e em Lei
Geral de Proteção de Dados e Compliance pelo Hospital Sírio Libanês (SP
2
Segundo Freeman (1994, p.4) “[...] stakeholders são indivíduos ou grupos que podem influenciar ou serem
influenciados pelas ações, decisões, políticas, práticas ou objetivos da organização”. De um modo geral, são
os atores que fazem parte da cadeia do setor da saúde, sofrendo influência e/ou influenciando as organizações,
com diferentes interesses e objetivos, como, por exemplo, pacientes, profissionais da saúde, operadoras de
planos de saúde, entre outros inseridos nesta cadeia.
134

Com efeito, os problemas éticos se configuram em todos os encontros clínicos entre


os pacientes e os profissionais da saúde, especialmente o profissional médico, porquanto o
cuidado do paciente sempre envolve tanto considerações técnicas como morais.
Enquanto alguns pacientes podem ser beneficiados pelos avanços da Medicina, da
tecnologia e da indústria farmacêutica, advindos, em grande parte, desse relacionamento
complexo, outros podem sofrer as consequências de procedimentos desnecessários,
realizados mediante a tomada de decisão do profissional da saúde influenciada por interesses
e benefícios secundários, momento este em que se instaura o conflito de interesses.
Afinal, com considerável frequência, os médicos assumem obrigações contratuais
com estas organizações e que afetam diretamente a maneira como cuidam dos seus pacientes.
Similarmente, muitas oportunidades de lucro a partir da identidade e do conhecimento
profissional são apresentadas por associações com empresas farmacêuticas e, ainda, por
investimentos em organizações que prestam serviços clínicos.
Nesse contexto, eventuais perdas financeiras, danos à imagem da organização de
saúde, bem como irregularidades cometidas pelos profissionais podem afetar não somente a
competitividade e a imagem da instituição perante o mercado, mas potencialmente a saúde
e a segurança de pacientes. Isso justifica a necessidade de se pensar em formas de
identificação de vulnerabilidades, adoção de métodos de prevenção e tratamento de riscos
associados a fraudes e condutas indesejadas, revelando-se o compliance nas instituições de
saúde como o instrumento fundamental para a gestão dos conflitos de interesses.

2 A IMPORTÂNCIA DA CONSTRUÇÃO DE UMA CULTURA ÉTICA NO


AMBIENTE HOSPITALAR PARA A IDENTIFICAÇÃO E PREVENÇÃO DE
CONFLITOS DE INTERESSE

Em um ambiente organizacional hospitalar, existem determinadas relações


terapêuticas em que as decisões dos profissionais médicos não se restringem simplesmente
a escolhas feitas pelos agentes autônomos: o médico e o paciente, porquanto sofrem
influências e restrições por considerações relacionadas ao contexto no qual ocorre o caso.
Com efeito, além dos prestadores de serviços e dos profissionais de saúde, fazem
parte da cadeia de atores em saúde as indústrias, distribuidores de materiais e medicamentos,
operadoras de planos de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS), bem como órgãos
reguladores. Os hospitais reúnem, normalmente, todos esses players (atores em saúde), os
135

quais se relacionam entre si por meio de parcerias com o intuito de disseminar conhecimento
e adotar novas técnicas assistenciais necessárias à assistência ao paciente.
Segundo Jonsen (2012), os médicos e os pacientes também estão sujeitos a diferentes
influências dos padrões da comunidade e dos profissionais, das normas legais, das políticas
governamentais e institucionais acerca do financiamento e acesso à saúde, dos métodos
computadorizados de armazenamento e recuperação de informações médicas, da relação
entre pesquisa e prática, bem como de outros fatores. Da mesma forma, a relação entre o
paciente e o médico é cercada pela família e pelos amigos do paciente, outros profissionais
da saúde, figurando o ambiente hospitalar como instituição.
Nesse ecossistema da saúde, as interações entre os diversos profissionais da saúde e
empresas do setor, à medida em que trazem inúmeros benefícios aos pacientes,
proporcionando a oportunidade de que avanços tecnológicos, novas descobertas clínicas e
novos tratamentos possam chegar até ele de modo veloz e eficaz, podem existir nessas
relações potenciais riscos de que interesses secundários (privados) não visem à promoção da
saúde na instituição hospitalar, situação a qual denominamos de conflito de interesses.
Sobre conflitos de interesse na área da saúde, Thompson (1993) afirma que se trata
de uma “[...] situação em que o julgamento de um profissional quanto a um interesse primário
tende a ser influenciado indevidamente por um interesse secundário”. Para o autor, os
interesses primários são determinados pelos deveres inerentes à profissão médica, enquanto
os interesses secundários têm o potencial de influenciar os juízos, as ações e as opiniões dos
médicos quanto aos interesses primários em relação aos pacientes, trazendo algum benefício
ao tomador da decisão.
Conceitualmente, Diniz (2015, p. 79) pontua que

[...] o interesse é uma projeção de ânimo pessoal que qualifica objetos como
necessários e oportunos à satisfação de necessidades para o progresso material e
moral. É fato jurídico que pode compor as circunstâncias (relevantes) de negócios,
assim como pode integrar a própria manifestação da vontade, produzindo efeitos
jurídicos que perpassam a validade e a eficácia e podem passar ao campo do ilícito.

De fato, nas organizações empresariais e instituições de saúde, em que o paciente é


o ator principal de uma rede complexa de relacionamentos, o conflito é um aspecto central
e permanente, inerentemente associado ao processo decisório nas suas mais diversas esferas,
tendo o potencial de provocar vieses e influenciar efetivamente as decisões clínicas, sendo
136

desnecessário um real comprometimento dos interesses primários para que exista, bastando
que sua possibilidade esteja presente.
Nesse sentido, diferentes perspectivas entre os atores nas relações em saúde podem
levar a distintas facetas de conflitos, com importantes consequências para as organizações e
suas diferentes partes interessadas, especialmente quando se tratam de relações terapêuticas
que normalmente unem o médico e o paciente no ambiente hospitalar , haja vista que uma
eventual colisão faz com que se instaure um bloqueio no processo de tomada de decisão e
ação, que é intrínseco ao cuidado clínico, podendo, inclusive, comprometer a relação
médico-paciente.
No entanto, sinala-se que os interesses secundários nem sempre são, por si só,
negativos. Podem ser legítimos, razoáveis, valiosos e até desejáveis. Nesses casos, Jonsen
(2012, p. 167) sustenta que, se um conflito de interesses em potencial não resultar em
tratamento terapêutico injusto, “[...] não houve nenhuma violação ética”. Contudo, quando
dominam e indevidamente influenciam, distorcem ou corrompem a integridade do
julgamento médico em relação à conduta terapêutica a ser adotada para o paciente, os
interesses secundários acabam gerando o conflito de interesses.
Efetivamente, os princípios e valores estabelecidos pelas organizações são de grande
importância para a construção de uma cultura ética no ambiente hospitalar, na medida em
que influenciam o comportamento e a tomada de decisão de seus colaboradores. Como são
construídos em função do ambiente, acabam definindo os comportamentos esperados dos
colaboradores e defendidos pela organização hospitalar, especialmente pautando a forma
como a maioria deles irá se posicionar frente às decisões a serem tomadas.
Por essas razões e, considerando-se que no ambiente hospitalar estão presentes todos
os atores do sistema de saúde, cujo relacionamento é importante e necessário para a
disseminação do conhecimento a adoção de novas técnicas e avanços tecnológicos para a
promoção da saúde - ao passo que dependem de diversas e complexas contratações entre
estes -, é neste ambiente que se faz necessária a definição e disseminação de regras e limites
éticos para que estes relacionamentos aconteçam, bem como a criação de mecanismos de
controle para o monitoramento e detecção de eventuais desvios, decorrentes de potenciais
conflitos de interesses.
Para tanto, a implementação de uma cultura ética pela própria instituição de saúde a
toda a cadeia de saúde, inclusive terceiros, é fundamental para que os profissionais da saúde
possam identificar situações de conflitos de interesses dentro dos hospitais e adotar a
137

transparência em suas relações, estabelecendo-se, assim, os limites éticos desses


relacionamentos com os outros atores envolvidos no processo e a mitigação do risco de
conflitos, para que não tenham o potencial de enviesar as decisões em prol de um interesse
secundário.

3 O COMPLIANCE COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO NA PREVENÇÃO E


RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DE INTERESSES

Em um processo contínuo e cada vez mais veloz, as empresas públicas e privadas em


saúde, objetivando a competitividade, buscam sua adequação à nova realidade do mercado
em meio à adoção de comportamentos éticos nas relações de trabalho, com o objetivo
genuíno de contribuir e promover a saúde, bem como a melhores práticas de compliance,
aprimorando seus processos internos e externos, por meio da implementação de melhores
práticas de gestão e ampliando a consciência sobre a importância de divulgar informações
de modo claro e íntegro.
Uma vez que eventuais perdas financeiras e danos à imagem das organizações de
saúde, tanto quanto irregularidades cometidas pelos profissionais no ambiente institucional
podem afetar a saúde e segurança de pacientes, pensar-se em formas de se identificar
vulnerabilidades, adotar métodos para prevenir e tratar riscos associados a fraudes e condutas
indesejadas se torna urgente no setor da saúde.
Uma das maneiras mais comuns de prevenção e resolução de conflitos de interesse,
segundo Jonsen (2012, p. 173), é exigir que eles sejam revelados de forma transparente para
as partes envolvidas, além de apropriadamente manejados: “[...] se uma parte envolvida em
um conflito de interesse revelá-lo, a segunda parte poderá fazer alguma ação protetora, como
sair da relação ou se resguardar contra alguma ação contrária aos seus interesses”.
Como valorização da formação ética, leciona Diniz (2015) que o conflito de interesse
autodeclarado deveria ser prestigiado, reconhecendo a integridade de quem declara
espontaneamente ou questiona o departamento de compliance sobre a possível incidência de
conflito. O primeiro passo para isso é torná-los transparentes, fazendo com que as relações
existentes entre os diversos atores da rede de prestação de serviços da saúde sejam públicas,
para que as decisões institucionais levem em consideração esses vínculos.
Desse modo, as declarações de apoios e vínculos dos profissionais da saúde à
instituição, sejam eles vínculos com outras instituições ou apoios percebidos de indústrias
farmacêuticas, representam uma importante ferramenta de transparência, porquanto
138

permitem a ciência pela instituição dos potenciais conflitos existentes e a atuação direta em
controles específicos que mitiguem os riscos ou impeçam a sua materialização.
Com efeito, em meio à multiplicidade de proposições para lidar com os conflitos de
interesse, o instrumento importante e efetivo, segundo Schneider, Lingner e Schwartz
(2007), é a implementação de programas de compliance nas instituições de saúde, com o
escopo de assegurar a transparência da melhor forma possível, revelando as relações entre
todos os players não somente na divulgação dos resultados, mas já na inclusão dos sujeitos.
Nessa linha evolutiva, sustenta Diniz (2019) que os programas de compliance podem
ser entendidos como um programa organizado para incrementar a gestão organizacional e a
capacidade regulatória para prevenção de infrações econômicas e controles de riscos morais,
como um novo modelo de cumprimento de normas de gestão que oferece novas perspectivas
de método para a revisão das teses tradicionais sobre a performance institucional e o lugar
do comportamento ético na empresa.
Objetivamente, pode-se verificar o impacto significante que as medidas de
governança e integridade tem na mudança do comportamento ético, na medida em que os
critérios objetivos de disclosure (revelação), após mensurados e ranqueados, geram valor
agregado ao comportamento com determinadas empresas, estimulando a declaração das
melhores práticas, oportunizando às empresas a tomar decisões concretas e efetivas em
termos de compliance, integridade e liderança.
Isso permite que a instituição de saúde atue com programas de compliance
específicos na mitigação de riscos de conflitos de interesses e, notadamente, para que essas
relações entre todos os stakeholders possam ocorrer de modo íntegro, transparente e com
interesses genuínos, gerando, efetivamente, benefícios aos pacientes.
Nesse cenário, a liderança da instituição hospitalar tem um papel fundamental
perante a sua equipe, direcionando-a ao comportamento ético e transparente por meio do
mapeamento de riscos, auxiliando na identificação de pontos de melhoria em seus processos
e desestimulando a recorrência da prática de atos desonestos, além de ser exemplo pelas suas
atitudes no dia a dia. Afinal, alguns conflitos de interesses, segundo Jonsen (2012), podem
ser eliminados pela legislação; outros podem e devem ser desencorajados pela instituição
hospitalar.
Sincronicamente, ações de treinamento e comunicação podem e devem ser efetivadas
nesses ambientes, com o intuito de que os profissionais da saúde conheçam os possíveis
riscos e conflitos de interesses materializados, oportunizando aos mesmos a identificação
139

destas situações de riscos em suas atividades diárias, de modo que saibam como agir e tomar
a decisão em caso de ocorrência de um conflito de interesse. A transparência assume um
papel de excelência nesses casos, juntamente com a ética e a integridade.
Dilemas éticos fazem parte do dia a dia dos serviços de saúde, não havendo uma
única solução capaz de impedir as distorções construídas ao longo das últimas décadas,
sendo necessário compreender todo esse panorama e implementar boas práticas de gestão
por meio de um modelo sustentável baseado em diretrizes estratégicas e alinhadas ao plano
de negócios, com o objetivo de potencializar e agregar o valor da empresa.
Para que se tenha êxito na implementação da cultura do compliance, esclarece Porto
(2020, p.64) “ é indissociável a identificação de uma ética que seja compreendida por todos,
mas, sobretudo, que apresente a missão daquela instituição, que é como ela se posicionará
no mercado”.
Programas de compliance, portanto, se bem estruturados e geridos por meio de seus
pilares estabelecidos, são uma ferramenta de monitoramento e controle para garantir um
ambiente mais seguro e justo para a assistência ao paciente, evitando perdas e danos e
contribuindo para o aumento da confiabilidade e a valorização das organizações prestadoras
de serviços de saúde. Por isso, salienta Fragoso (2017), investir em práticas de compliance
tem se mostrado um caminho sem volta para a longevidade dos negócios.

4 CONCLUSÃO

A evolução da Medicina, das pesquisas clínicas e o uso das tecnologias na área da


saúde crescem exponencialmente de modo a desenvolver tratamentos cada vez mais
eficientes aos pacientes, com o escopo de garantir a eles segurança e qualidade de vida.
No entanto, as relações que os profissionais médicos podem ter com atividades
comerciais relacionadas à Medicina são abundantes em conflitos de interesse e representam
um ponto que demanda uma atenção especial. Afinal, os médicos interagem frequentemente
com hospitais, investem financeiramente em atividades de atenção à saúde e seus contatos
com a indústria farmacêutica podem influenciar as suas decisões clínicas.
Nesse cenário, a declaração dos vínculos entre todos os stakeholders é um dos meios
mais aceitos para lidar com os conflitos de interesses, especialmente os de natureza
financeira. Contudo, embora importante ferramenta, a declaração não é suficiente e deixa
sem respostas a muitas questões importantes, como quais os tipos de vínculos são
inaceitáveis e quais podem ser admitidos.
140

Ações de educação e treinamento podem ser exploradas com o objetivo de


conscientizar os indivíduos tomadores de decisões para que, conhecendo e reportando seus
vínculos à instituição de saúde, entendam a necessidade de se abster de algumas decisões a
fim de evitar decisões enviesadas, que, porventura, representem interesses primários.
Da mesma forma, disseminar uma cultura ética e íntegra pela instituição de saúde a
todos os seus colaboradores permite que estes tomem decisões alinhadas com a identidade
da organização hospitalar, com princípios e valores em que acredita, com o escopo de que
efetivamente sejam cumpridos, minimizando, assim, os riscos de surgimento e de
materialização dos conflitos de interesse.
De fato, parece não haver uma solução única, mas lidar com conflitos de interesses
requer a implementação de programas de compliance efetivos na instituição de saúde, de
modo a prevenir ou evitar o domínio real ou aparente dos interesses secundários sobre os
interesses primários na tomada de decisão terapêutica pelos profissionais médicos. E isto,
acredita-se, somente será possível quando se assumir de modo transparente que os conflitos
de interesses em saúde, inegavelmente, fazem parte da vida social.
Portanto, diante das crescentes regulamentações das atividades empresariais e as
demandas da sociedade por comportamentos éticos, observa Coimbra (2017, p. 111), “as
atividades de compliance tornaram-se tão importantes quanto outras funções
organizacionais”, sendo certo que uma instituição que possui um programa de compliance
implementado de forma eficaz, promove uma gestão em que os seus riscos são conhecidos,
controlados e mitigados, contribuindo para o desenvolvimento sustentável da sociedade e
para a melhoria da saúde e da população.

REFERÊNCIAS

DINIZ, Eduardo Saad. Ética negocial e compliance: entre a educação executiva e a


interpretação judicial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

DINIZ, Gustavo Saad. Conflitos de interesses na sociedade anônima. In: COELHO, Fábio
Ulhôa. Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 2015.

COIMBRA Fábio; LEMOS, Ricardo. Miopia em compliance. In: BRANDÃO, Carlos


Eduardo Lessa; FONTES FILHO, Joaquim Rubens; MURITIBA, Sérgio Nunes (Org.).
Governança corporativa e integridade empresarial: dilemas e desafios. São Paulo: Saint
Paul, 2017.

FRAGOSO, Ronaldo Perez. O real valor dos investimentos na busca por transparência. In:
BRANDÃO, Carlos Eduardo Lessa; FONTES FILHO, Joaquim Rubens; MURITIBA,
141

Sérgio Nunes (Org.). Governança corporativa e integridade empresarial: dilemas e


desafios. São Paulo: Saint Paul, 2017.

FREEMAN, Edward R. Strategic management: a stakeholder approach. Boston: Pitmann,


1994.

JONSEN, Albert R.; SIEGLER, Mark; WINSLADE, William J. Ética clínica: abordagem
prática para decisões éticas na medicina clínica. 7. ed. Porto Alegre: Artmed, 2012.

PORTO, Éderson G. Compliance e governança corporativa: uma abordagem prática e


objetiva. Porto Alegre: Laboratory, 2020.

SCHNEIDER, N.; LINGNER, H.; SCHWARTZ, F. W. Disclosing conflicts of interest in


German publications concerning health services research. BMC: Health Services
Research, 2007.

THOMPSON, D. F. Understanding financial conflicts of interest. The New England


Journal of Medicine, New England, n. 573, Aug. 1993.
142

A COLISÃO E A EFICÁCIA DE DIREITOS HUMANOS


FUNDAMENTAIS DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: A
OBRIGATORIEDADE DA VACINAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL

Roberto Vinícius Silva Saraiva1


Aline Eggers2

Resumo: Este artigo analisa a questão da constitucionalidade das normas que impõem a
obrigatoriedade de vacinação em emergências de saúde pública em âmbito nacional. O
presente estudo busca fazer uma breve análise passando por questões históricas, doutrinárias
e jurisprudenciais a respeito da constitucionalidade das normas que impõe a obrigatoriedade
da vacinação sob a ótica da colisão entre estas diferentes normas e a Constituição Federal.
Nesse estudo exploratório de revisão bibliográfica e jurisprudencial realizaremos uma
síntese das teorias doutrinárias aplicadas nas decisões judiciais partindo de uma perspectiva
histórica até chegar as decisões mais recentes proferidas pelo Supremo Tribunal Federal.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Colisão entre Princípios. Saúde Pública.


Obrigatoriedade de vacinação. Constitucionalidade.

1 INTRUDUÇÃO

Durante a pandemia de Covid-19 ressurgiram debates a respeito da eficácia de alguns


Direitos Humanos Fundamentais em situações em que há uma colisão entre as diferentes
normas que os inserem no direito positivo brasileiro e diversas formas de solução destas
aparentes antinomias. Muitos questionamentos foram levantados a respeito da
constitucionalidade das normas editadas pelas três esferas governamentais - União, Estados
e Municípios - especialmente com relação a novos atos normativos que, de alguma forma,
impuseram restrições a direitos e liberdades individuais, como o direito de expressão; à
dignidade humana; o direito de ir e vir; o direito à integridade física, entre outros. Dentre os
motivos que levaram a tais questionamentos frequentemente foi invocada à violação à
separação dos três Poderes do Estado e ofensa ao pacto federativo. Ainda, com relação às

1
Advogado, Mestre em Desenvolvimento, Inovação e Mudança pela Università di Bologna, Especialista em
Gestão de Projetos de Investimentos em Saúde pela ENSP/Fiocruz. Premiado com Menção Honrosa pelo
Ministério da Saúde e agraciado com Voto de Louvor pelo Conselho Federal da OAB E-mail:
roberto.saraiva@rvssadvocacia.com
2
Advogada, Mestre em Direitos Humanos pela UniRitter Laureate International Universities, Especialista em
Ciências Penais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Docente no Curso de Especialização em Direito
das Famílias na Contemporaneidade da Universidade de Caxias do Sul – UCS. E-mail: alieggers@gmail.com
143

diferentes interpretações com relação ao método correto de solução para estas aparentes
antinomias alguns operadores do direito apontaram a hierarquia entre as diferentes normas
como o método adequado.

2 DA PREVISÃO CONSTITUCIONAL DO DIREITO À SAÚDE E DA SUA


NATUREZA SIMULTANEAMENTE INDIVIDUAL E COLETIVA

Inicialmente é fundamental visitarmos as normas constitucionais a respeito do direito


à Saúde e a amplitude da sua eficácia. Ao comentar o artigo 196 da Constituição Federal, os
professores Ingo Sarlet e Mariana Filchtiner Figueiredo3 ensinam que:

A saúde comunga, na nossa ordem jurídico-constitucional, da dupla


fundamentalidade formal e material da qual se revestem os direitos e garantias
fundamentais em geral, especialmente em virtude de seu regime jurídico
privilegiado. Assume particular relevância, para a adequada interpretação das
normas sobre o direito à saúde, que a tutela da saúde, a exemplo de outros direitos
fundamentais, apresenta uma série de interconexões com a proteção de distintos
bens fundamentais, apresentando zonas de convergência e mesmo de superposição
em relação a outros bens, direitos e deveres que também constituem objeto de
proteção constitucional – tais como a vida, a moradia, o trabalho, a privacidade, o
ambiente, além da proteção do consumidor, da família, de crianças e adolescentes,
e dos idosos, o que apenas reforça a tese da interdependência entre todos os direitos
fundamentais. (...) Na verdade, parece elementar que uma ordem constitucional
que protege os direitos à vida e à integridade física e corporal evidentemente deva
salvaguardar a saúde, sob pena de esvaziamento daqueles direitos.

Os ilustres mestres referidos fazem também uma importante reflexão com a respeito
do da relação direito-dever e a responsabilidade do estado e dos indivíduos particulares para
com o direito à saúde dos demais destinatários do direito assegurado pelo texto
constitucional. Dizem os professores4:

Para além da condição de direito fundamental, a proteção da saúde implica deveres


fundamentais, o que decorre já da dicção do artigo 196 da CF: “A saúde é direito
de todos e dever do Estado [...]”, impondo-se precipuamente ao Poder Público a
obrigação de efetivar tal direito. Na condição de típica hipótese de direito-dever,
os deveres fundamentais guardam relação com as posições jurídicas pelas quais se
efetiva o direito à saúde, podendo-se falar – sem prejuízo de outras concretizações
– num dever de proteção à saúde, individual e pública (dimensão defensiva),
facilmente identificado em normas penais e normas de vigilância sanitária; assim
como num dever de organização e procedimento em saúde (dimensão prestacional

3
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES,
Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 3.549-3.555.
4
SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES,
Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 3.549-3.555.
144

em sentido amplo), especialmente vigente no âmbito das normas e políticas


públicas de regulamentação e organização do SUS. Além disso, importa sublinhar
que também os particulares (pessoas físicas e jurídicas) possuem, para além de um
dever geral de respeito, até mesmo deveres específicos em relação à saúde de
terceiros e mesmo em relação à sua própria saúde, quando for o caso. Basta
lembrar que a ofensa à integridade física e corporal de outrem é causa de conduta
punível na esfera penal, assim como de estipulação de indenização no âmbito
cível. Nesse sentido, a ideia de dever fundamental evidencia o vínculo com o
princípio da solidariedade, no sentido de que toda a sociedade torna-se responsável
pela efetivação e proteção do direito à saúde de todos e de cada um, no âmbito da
responsabilidade compartilhada (shared responsibility) de que trata Gomes
Canotilho, cujos efeitos se projetam no presente e sobre as futuras gerações – como
já reconhecido na seara do direito ambiental.

Destas primeiras considerações já extraímos uma lição essencial no sentido de que


tanto o estado quanto os particulares têm o dever de respeitar o direito à saúde de terceiros.
Esta primeira conclusão será de grande relevância para as reflexões a seguir, motivo pelo
qual fazemos este destaque.

3 DA PERSPECTIVA HISTÓRICA A RESPEITO DA CONSTITUCIONALIDADE


DA OBRIGATORIEDADE DE VACINAÇÃO

Antes de aprofundarmos a investigação jurídica que este estudo propõe, é


interessante também que se desenvolva uma base histórica a respeito do surgimento e do
desenvolvimento da saúde pública e das próprias vacinas, que pelo seu potencial, logo
assumiram um papel preponderante dentre as estratégias de promoção e proteção da saúde
coletiva, que como vimos é constitui um binômio direito-dever para os indivíduos
particulares.
Assim, com o objetivo de viabilizar uma reflexão mais abrangente, é interessante que
se analise as circunstâncias históricas que antecederam o surgimento do Programa Nacional
de Vacinação brasileiro. Com relação ao surgimento das políticas públicas de saúde no
Brasil, conforme registra Plácido Barbosa5:

O refúgio em terra brasileira do Príncipe D. João e da família real portuguesa


escapando-se às hóstes de Junot, invasoras de Portugal, marca, de fato para o
Brasil o início de sua autonomia econômica política e administrativa. (...) A
organização dos serviços de Saúde Pública do Brasil data dessa época.

5
BARBOSA, Plácido. Os serviços de saúde pública no Brasil: especialmente na cidade do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, v. 1. (Esboço histórico).
145

Os professores Ricardo Becker Feijó e Marco Aurélio P. Sáfadi6 ensinam que o


surgimento das vacinas remonta ao século 17, lecionam os pesquisadores:

No início do século 17, a varíola era uma das doenças transmissíveis mais temíveis
no mundo, atingindo, até a juventude, a maioria das pessoas e representando uma
alta taxa de mortalidade. Lady Mary Montagu, esposa do embaixador inglês em
Istambul, observou que a doença poderia ser evitada através de uma técnica
utilizada pelos muçulmanos, com a introdução, na pele de indivíduos sadios, de
líquido extraído de crostas de varíola de um paciente infectado. Esse processo,
conhecido por "variolação", provavelmente teve origem na China e foi levado à
Europa Ocidental, onde, embora tenha provocado vários casos de morte por
varíola, foi utilizado na Inglaterra e nos EUA até surgirem as primeiras
investigações do médico inglês Edward Jenner, publicadas no trabalho Variolae
Vaccinae, em 1798. Jenner estudou camponeses que desenvolviam uma condição
benigna conhecida por vaccinia, devido ao contato com vacas infectadas por
varíola bovina (cowpox), desenvolvendo as primeiras técnicas de imunização.

Já os pesquisadores Cecilia Maria Roteli-Martins e Júlio César Teixeira7 relembram


que desde as primeiras normas que estabeleceram a obrigatoriedade das vacinas era possível
verificar importantes restrições para quem não realizasse a vacinação. Apontam os autores
referidos:

No Brasil, o uso de vacina contra a varíola foi declarado obrigatório para crianças
em 1837 e para adultos em 1846. Mas essa resolução não era cumprida, até porque
a produção da vacina em escala industrial no Rio só começou em 1884. Então, em
junho de 1904, Oswaldo Cruz motivou o governo a enviar ao Congresso um
projeto para reinstaurar a obrigatoriedade da vacinação em todo o território
nacional. Apenas os indivíduos que comprovassem ser vacinados conseguiriam ter
contratos de trabalho, matrículas em escolas, autorização para viagens, além de
outras dificuldades.

Desse modo, podemos verificar que é uma prática normativa adotada há séculos pelo
governo brasileiro a imposição da obrigatoriedade de vacinação associada a severas
restrições a quem se recusa a cumprir as normas referidas. Entretanto, cabe verificar se está
prática tradicional encontra guarida nos fundamentos do Estado Democrático de Direito
atual e na Constituição Federal de 1988.

6
FEIJÓ, Ricardo Becker; SÁFADI, Marco Aurélio P. Imunizações: três séculos de uma história de sucessos e
constantes desafios. Jornal de Pediatria, v. 82, n. 3 (supl.), p. s1-s3, 2006. Disponível em:
https://doi.org/10.1590/S0021-75572006000400001. Acesso em: 24 out. 2021.
7
ROTELI-MARTINS, Cecilia Maria; TEIXEIRA, Júlio César. Vacinação compulsória: o limite entre o
público e o privado. Femina, São Paulo, v.48, n. 12, p. 715-716, 2020.
146

4 DA SOLUÇÃO PARA OS CONFLITOS ENTRE PRINCÍPIOS


CONTITUCIONAIS

Para viabilizar a melhor interpretação da jurisprudência recente do Supremo Tribunal


Federal sobre o tema, é imperioso compreender como a doutrina solucionou a problemática
da colisão entre princípios. Para tanto vamos nos valer dos ensinamentos de Robert Alexy8,
que para melhor esclarecer a questão, primeiramente faz uma importante distinção entre
regras e princípios nos seguintes termos:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte,
mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos
em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não
depende somente das possibilidades fálicas, mas também das possibilidades
jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e
regras colidentes. (...) Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não
satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige;
nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo
que é fálica e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e
princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é
ou uma regra ou um princípio.

Em seguida o mesmo autor9 discorre sobre a colisão entre princípios:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente


diversa. Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é
proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido-, um
dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio
cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma
cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem
precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições
a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer
dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes
e que os princípios com o maior peso têm precedência. (...) A questão decisiva é,
portanto, sob quais condições qual princípio deve prevalecer e qual deve ceder.
(...) Da relevância de um princípio em um determinado caso não decorre que o
resultado seja aquilo que o princípio exige para esse caso. Princípios representam
razões que podem ser afastadas por razões antagônicas. A forma pela qual deve
ser determinada a relação entre razão e contrarrazão não é algo determinado pelo
próprio princípio. Os princípios, portanto, não dispõem da extensão de seu
conteúdo em face dos princípios colidentes e das possibilidades fálicas. (...) Um
princípio cede lugar quando, em um determinado caso, é conferido um peso maior
a um outro princípio antagônico.

8
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
9
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
147

Outro ponto importante nas lições de Alexy10 diz respeito a natureza individual ou
coletiva dos direitos assegurados por princípios. Diz o autor:

Princípios podem se referir tanto a direitos individuais quanto a interesses


coletivos. (...) O fato de que um princípio se refira a esses tipos de interesses
coletivos significa que ele exige a criação ou a manutenção de situações que
satisfaçam - na maior medida possível, diante das possibilidades jurídicas e fáticas
- critérios que vão além da validade ou da satisfação de direitos individuais.

Finalmente o autor11 apresenta uma solução para a colisão entre uma norma de direito
fundamental com caráter de princípio com um princípio antagônico:

Já se deu a entender que há uma conexão entre a teoria dos princípios e a máxima
da proporcionalidade. Essa conexão não poderia ser mais estreita: a natureza dos
princípios implica a máxima da proporcionalidade, e essa implica aquela. Afirmar
que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que
a proporcionalidade, com suas três máximas parciais" da adequação, da
necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em
sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre
logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é
deduzível dessa natureza. (...) Princípios são mandamentos de otimização em face
das possibilidades jurídicas e fálicas. A máxima da proporcionalidade em sentido
estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das
possibilidades jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter
de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a
realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma
decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão. Visto que a
aplicação de princípios válidos - caso sejam aplicáveis - é obrigatória, e visto que
para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter
principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um
sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por
sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do
caráter princípio lógico das normas de direitos fundamentais. A máxima da
proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de princípios serem
mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas
da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como
mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas.

Assim, percebe-se que o conflito entre princípios será resolvido levando-se em


consideração as caraterísticas específicas de cada caso concreto de modo que deverá ser
aplicado o princípio que melhor resolve o caso em questão, ademais o princípio que tem a
sua aplicação afastada não deve ser declarado inválido ou isso significa que deverá ser
introduzida uma nova norma de exceção.

10
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
11
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 5. ed. São Paulo:
Malheiros, 2008.
148

É relevante anotar ainda, que em casos de colisão entre princípios que sustentem
interesses coletivos com outros princípios que assegurem direitos individuais, exige-se a
criação ou a manutenção de situações que os satisfaçam, na maior medida possível, a
prevalência dos interesses coletivos sobre a satisfação de direitos individuais.

5 A JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL A


RESPEITO DA CONSTITUCIONALIDADE DA OBRIGATORIEDADE DE
VACINAÇÃO

Tendo em vista como a doutrina e a jurisprudência solucionam os conflitos entre


princípios que orientam o sistema jurídico e os valores e direitos fundamentais expressos e
garantidos pelas normas que positivam estes princípios é possível a partir deste momento
nos dedicarmos a analisar as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a colisão
de princípios presente no caso de normas que impõem a obrigatoriedade de vacinação e até
mesmo restrições a outros direitos, inclusive direitos fundamentais.
Em dezembro de 2020, na iminência da disponibilidade de vacinas contra a COVID-
19, nos autos do ARE 126787912, o STF decidiu:

O Tribunal, por unanimidade, apreciando o tema 1.103 da repercussão geral,


negou provimento ao recurso extraordinário, nos termos do voto do Relator. Foi
fixada a seguinte tese: “É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio
de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída
no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória
determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito
Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos,
não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica
dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”. Presidência do
Ministro Luiz Fux. Plenário, 17.12.2020 (Sessão realizada inteiramente por
videoconferência – Resolução 672/2020/STF).

Na apreciação da Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.58613, o Ministro Relator


Ricardo Lawandovski apontou que:
A obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não
pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em
decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do
corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação
legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem

12
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.267.879/SP.
Relatoria: Ministro Roberto Barroso. Julgado em: Brasília, 17 dez. 2020. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755520674. Acesso em: 20 out. 2021.
13
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.586/DF.
Relatoria: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em: Brasília, 17 dez. 2020. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755517337. Acesso em: 20 out. 2020.
149

o expresso consentimento informado das pessoas. A previsão de vacinação


obrigatória, excluída a imposição de vacinação forçada, afigura-se legítima, desde
que as medidas às quais se sujeitam os refratários observem os critérios constantes
da própria Lei 13.979/2020, especificamente nos incisos I, II, e III do § 2º do art.
3º, a saber, o direito à informação, à assistência familiar, ao tratamento gratuito e,
ainda, ao “pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades
fundamentais das pessoas”, bem como os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, de forma a não ameaçar a integridade física e moral dos
recalcitrantes.

Por sua vez o Ministro Gilmar Mendes apontou no voto conjunto proferido nas ADIs
6.58614 E 6.58715 que:

O conflito entre direitos fundamentais na espécie desenvolve-se não apenas na


alegada colisão entre o direito à vida e a integridade corpórea e o direito à saúde,
mas também no âmbito interno deste último. Isso porque a Constituição Federal
de 1988 atribuiu ao Direito à Saúde uma tensão permanente entre o resguardo de
uma posição jurídica individual e o reconhecimento do dever estatal de promoção
da saúde em uma base igualitária. (...) De um lado, não há maiores dificuldades
em se reconhecer que a exigência de se submeter o indivíduo a tratamento médico
compulsório pode de fato representar uma interferência no direito à integridade
física e psicológica da pessoa. Há, porém, distintos gradientes em que essa
intervenção pode se operar. Nesse particular, embora o STF já tenha discutido
outras situações em que as objeções de consciência poderiam se opor o interesse
estatal na área sanitária, qual versado no precedente sobre a proibição de exame
de DNA compulsório ((HC 71.373-4/RS, Redator para o acórdão Ministro Marco
Aurélio, grifei) ou ainda no tradicional debate sobre a transfusão sanguínea dos
testemunhos de Jeová (RE 1.212.272, Rel. Min. Gilmar Mendes), o caso em tela
diferencia-se substancialmente desses. A rigor, a recalcitrância à vacinação
constitui não apenas uma recusa terapêutica que coloca em risco a saúde
individual. No caso da recusa vacinal, o que está em jogo, em última análise, é a
essencialidade do cumprimento da medida para um plano maior de realização de
política pública de combate a uma doença infectocontagiosa que põe em risco a
vida de todos.(...) Na experiência norte-americana, compreende-se historicamente
que a definição da compulsoriedade de medidas de vacinação se insere na cláusula
constitucional dos poderes polícias dos Estados ou Entes Federados, conforme
definido pela 10ª Emenda da Constituição. Os limites dessa compulsoriedade, por
sua vez, foram definidos pela Suprema Corte no julgamento do célebre caso
Jacobson v. Massachusetts, de 1905, em que o Tribunal apreciou pedido de
cidadão que queria ser desonerado da obrigação de pagar uma multa por não
aceitar receber a vacina contra varíola no Estado de Massachusetts. Na decisão por
maioria de 7x2, a Corte rechaçou o argumento de que a imposição da vacina seria
contrária ao “direito inerente de todo homem livre de cuidar de seu próprio corpo
e saúde” (tradução livre). A decisão da Suprema Corte foi fundamentada na
chamada Teoria do Pacto Social e no poder policial dos Estados de proteger a
saúde pública e a segurança. O voto condutor do Justice Harlan destacou que o
“governo é instituído ‘para o bem comum, para a proteção, segurança,
prosperidade e felicidade do povo, e não para o lucro, honra ou interesses privados
de qualquer homem’”. A Corte reconheceu uma esfera de liberdades individuais

14
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.586/DF.
Relatoria: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em: Brasília, 17 dez. 2020. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755517337. Acesso em: 20 out. 2020.
15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 6.587/DF.
Relatoria: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em: 17 dez. 2020. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755517731. Acesso em: 20 out. 2021.
150

protegidas, mas insistiu que o Estado tinha amplos poderes para invadir essa esfera
quando “a segurança do público em geral assim o exigisse” (traduções livres).

Já o Ministro Roberto Barroso apontou no julgamento do Recurso Extraordinário


com Agravo 1.267.879/SP16 que:

A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e


o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos,
a da Covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência
e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um
método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela
erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas
comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade. A
liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se
expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de
viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito
é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais.
No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa
da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária
da criança e do adolescente (art. 227). De longa data o Direito brasileiro prevê a
obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis
vigentes, como, por exemplo, a Lei nº 6.259/1975 (Programa Nacional de
Imunizações) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal
previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a Lei nº
13.979/2020 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19),
de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha. É legítimo
impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância
sanitária e em relação à qual exista consenso médicocientífico. Diversos
fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações
excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como
valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a
sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente
direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar
não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a
saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança).

As decisões colacionadas demonstram que o entendimento do Supremo Tribunal


Federal é no sentido de assegurar a constitucionalidade da obrigatoriedade de vacinação,
inclusive quando eventualmente for necessário afastar a aplicação de outros princípios, até
mesmo em casos em que estes princípios afastados sustentem direitos e garantias
fundamentais de natureza individual.
A única exceção a esta posição parece ser a inviolabilidade da integridade física do
indivíduo, que até o momento, vem sendo aceita como justificativa legítima para recusa de
vacina, entretanto, vale registrar que não se aceita a recusa em nome de outros indivíduos,

16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário com Agravo n. 1.267.879/SP.
Relatoria: Ministro Roberto Barroso. Julgado em: Brasília, 17 dez. 2020. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755520674. Acesso em: 20 out. 2021.
151

mesmo que incapazes e que ao recusar a vacinação com base na inviolabilidade da sua
integridade física pessoal, o indivíduo estará sujeito à restrição de outros direitos, inclusive
direitos fundamentais.

6 CONCLUSÃO

Como pode-se perceber a discussão a respeito da legalidade e, especialmente da


constitucionalidade das normas a respeito da obrigatoriedade de vacinação não é nova e não
se restringe ao Brasil. Reconhecendo a colisão entre diferentes princípios e direitos humanos,
os tribunais constitucionais, tanto aqui quanto em outros países, se valem das técnicas para
a solução de conflitos de princípios de modo que realizam uma análise racional e
proporcional a fim de determinar qual princípio deve prevalecer e qual deve ceder em cada
caso concreto sem que qualquer deles seja declarado excluído do sistema normativo. Assim,
verifica-se que um princípio pode simplesmente ceder lugar em um determinado caso em
que há outro princípio antagônico para qual é conferido um peso maior, mas continuar válido
e plenamente eficaz em outras circunstâncias.
Nos casos deste estudo, se verificou que o direito à saúde coletiva e a preservação da
vida da população tem se imposto e prevalecido sobre os demais princípios com os quais
colidiu, de modo que reiteradamente os tribunais reconhecem a constitucionalidade da
obrigatoriedade da vacina e das normas que a impõe, inclusive aquelas que restrinjam outros
direitos, desde que não seja ferida a integridade física dos indivíduos.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva.
5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008.

BARBOSA, Plácido. Os serviços de saúde pública no Brasil: especialmente na cidade do


Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1909, v. 1. (Esboço histórico).

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.


6.586/DF. Relatoria: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em: Brasília, 17 dez. 2020.
Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755517337. Acesso
em: 20 out. 2020.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.


6.587/DF. Relatoria: Ministro Ricardo Lewandowski. Julgado em: 17 dez. 2020. Disponível
152

em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755517731.
Acesso em: 20 out. 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário. Recurso Extraordinário com Agravo n.


1.267.879/SP. Relatoria: Ministro Roberto Barroso. Julgado em: Brasília, 17 dez. 2020.
Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=755520674. Acesso
em: 20 out. 2021.

FEIJÓ, Ricardo Becker; SÁFADI, Marco Aurélio P. Imunizações: três séculos de uma
história de sucessos e constantes desafios. Jornal de Pediatria, v. 82, n. 3 (supl.), p. s1-s3,
2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0021-75572006000400001. Acesso em: 24
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ROTELI-MARTINS, Cecilia Maria; TEIXEIRA, Júlio César. Vacinação compulsória: o


limite entre o público e o privado. Femina, São Paulo, v.48, n. 12, p. 715-716, 2020.

SARLET, Ingo Wolfgang; FIGUEIREDO, Mariana Filchtiner. In: CANOTILHO, J. J.


Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lênio Luiz.
Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 3.549-3.555.
153

POSFÁCIO

Na ocasião do aniversário da Escola Superior de Advocacia do Estado do Rio Grande


do Sul, representa uma honra sem par poder escrever o posfácio da obra resultado das
atividades de seu Grupo de Estudos em Direito à Saúde e Direito Médico. Dentre suas várias
atividades, importa ressaltar que o fato de a ESA/RS alimentar a possibilidade de atualização
do advogado mediante o debate coletivo entre seus pares a partir de temas específicos, é, ao
menos para mim, digno de registro. Não é pouco. Ao contrário. Especialmente na quadra
temporal em que se vive atualmente.
A pandemia da COVID-19, a princípio imaginada como uma pandemia “normal”,
logo mostrou seu caráter singular. A sociedade global viu-se, quase que de modo imediato,
em situação inédita. A necessidade do distanciamento social - e suas consequentes
normativas - modificaram profundamente as relações entre os seres humanos. Todas as
profissões foram atingidas. Em menor ou em maior grau. Não houve exceções.
A advocacia, um dos pilares – provavelmente o mais importante deles – do Estado
Democrático de Direito, enfrenta, ainda hoje, importantes questões derivadas da pandemia
global da COVID, tanto no que diz respeito à sua atuação como em relação ao próprio modo
de instrumentalizar seu agir. A arte de advogar se reinventou não somente porque ela é uma
das características intrínsecas do Direito. Fez-se necessária.
Nesse sentido, a afirmação não se restringe unicamente, muito embora tenha sido
deveras louvável, à adaptação dos meios presenciais de exercício da profissão para os
virtuais. Também não resta focada na problemática conexão entre Direito e Ciência,
representada, por exemplo, atualmente, pelos discursos (infodemia) que procuram legitimar
uma versão não-racional (a antítese do Direito) para o tratamento da doença causadora da
pandemia.
De fato, a manutenção de um grupo de estudos durante a pandemia, algo que soa até
mesmo desnecessário para alguns, é a resistência em si da advocacia gaúcha. Significa
ressoar em alto e bom som que, mesmo nas piores adversidades, as advogadas e os
advogados gaúchos estarão preparados para, por meio do Direito, continuar a promover os
valores mais profundos da Justiça de modo atualizado. É ecoar que, em tempos anormais, é
dever da advocacia buscar a normalidade.
Não é preciso ressaltar a oportunidade de um grupo de estudos em Direito da Saúde
e Direito Médico em tempos pandêmicos. É quase uma obviedade. Contudo, como os
leitores notaram a partir da quantidade e da qualidade dos temas abordados pelos autores e
pelas autoras, nem sempre aquilo que se apresenta como óbvio tem como resultado as
mesmas abordagens. Há, nessa obra, um conjunto de textos da mais alta qualidade, provando
o esteio da própria sociedade gaúcha, que é a Escola Superior de Advocacia. Na figura dos
colegas Lucas Lazzareti e Mariana Dieftenhaler, deixo, portanto, meus parabéns e minha
admiração a todos e a todas que colaboraram e se dedicaram com seu tempo à tão nobre
empreitada.
Por fim, apenas um alerta: o Direito sempre continuará a ser o Direito? É necessário
que ele mantenha sua lógica e sua própria organização em qualquer momento da história.
154

Deixar de assim agir, mesmo que, em nome da saúde, seria esquecer sua exclusiva e singular
função perante a sociedade. O Direito da Saúde somente se reafirmará no momento em que,
até mesmo na excepcionalidade de tempos pandêmicos, mesmo que soe tautológico, se
(re)configure como um DIREITO da Saúde.

Germano Schwartz
OAB/RS 39021

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