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Mestre e Doutor em Direito Público pela UERJ. Professor-Adjunto de Direito Financeiro e Tributário na
graduação, mestrado e doutorado da UERJ. Ex-Assessor de Ministro do STF. Advogado. Membro da Associação
Brasileira de Direito Financeiro – ABDF, da Sociedade Brasileira de Direito Tributário – SBDT e da International
Fiscal Association – IFA.
2
1. Introdução
2
LEVINSON, Daryl J. Looking for Power in Public Law. Harvard Law Review Vol. 130 (1), 2016, p. 33.
3
Ibidem, p. 102: “Junto com a separação de poderes, federalismo constitucional é concebido como um mecanismo
para difundir e equilibrar poder”.
4
Para essa vertente de pensamento, cf. o clássico FRIEDRICH, Carl Joachim. Trends of Federalism in Theory and
Practice. New York: Praeger, 1968.
5
Sobre essa distinção, cf. HALBERSTAM, Daniel. Federalism: Theory, Policy, Law. In: ROSENFELD, Michel;
SAJÓ, András. The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law, 2012, p. 580-581.
3
arranjo é sempre problemático em todos os países que adotam tal forma de organização política.
As dificuldades alcançam tanto o nível desejável de transferência de responsabilidades do ente
central aos periféricos, como a medida necessária de autonomia política e financeira dos entes
menores. As distorções de nosso modelo têm chegado ao que podemos chamar de verdadeira
crise do federalismo fiscal brasileiro. Recentes acontecimentos econômicos, políticos e sociais
não deixam dúvidas quanto à plena vigência dessa crise.
O texto tem a seguinte divisão: além desta Introdução (1), delimito, no próximo
item (2), o objeto do artigo ao discorrer sobre o RE 572.672/SC, (2.1) apresentando os
argumentos do estado-membro recorrente, (2.2) descrevendo os fundamentos e conclusão do
julgamento pelo Supremo e (2.3) problematizando-os; no tópico seguinte (3), são apresentadas
algumas críticas doutrinárias à decisão do Tribunal; na sequência, elaboro minhas objeções a
essas críticas sem, no entanto, deixar de dizer da fundamentação insuficiente da Corte; defendo
que essas críticas doutrinárias, em relação ao federalismo fiscal, possuem deficiências (4) de
ordem conceitual, (5) quanto à fundamentação do mecanismo e (6) de caráter metodológico;
então (7) proponho limites e possibilidades de aplicação do entendimento do STF como
resposta a algumas críticas. Ao final, conclusões (8).
6
STF – Pleno, RE 572.672/SC, Rel. Min. Ricardo Lewandwski, j. 18/6/2008, DJ 5/9/2008.
4
2. O RE 572.672/SC
7
CF/88:
Art. 158. Pertencem aos Municípios:
[...]
IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação
de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.
5
No extraordinário, interposto com base na alínea “a” do inciso III do artigo 102, da
Constituição, o Estado de Santa Catarina alegou violação ao próprio inciso IV do artigo 158, e
também ao artigo 1608, ambos da CF/88. Em resumo, o Estado defendeu que com o PRODEC
o ICMS não chegou a ser arrecadado, havendo a postergação do cumprimento do dever
tributário. Com isso, não haveria que se falar em parcela do “produto da arrecadação” a ser
repassada aos municípios, uma vez que a arrecadação não chegara a ocorrer. Não sendo
realizada a arrecadação, logicamente inexistiria direito dos municípios à partilha das receitas
dela decorrente. Para o ente recorrente, como os municípios não possuem competência
tributária relativa ao ICMS, apenas passariam a ter algum direito à repartição do imposto
quando a receita correspondente efetivamente ingressasse nos cofres públicos.
Como se vê, para o Estado, não há nada de errado em utilizar cota da arrecadação
do ICMS pertencente aos municípios para financiar ou incentivar empreendimentos comerciais
ou industriais, haja vista apenas os estados-membros possuírem competência tributária em
relação ao imposto. Foi assim defendida, no recurso, a ideia de plenitude do exercício da
competência tributária pelos estados, alcançando o “poder de isentar ou beneficiar” mesmo que
em detrimento da partilha de receita do imposto estadual com os municípios. Dessa forma, o
inciso IV do artigo 158, da Carta da República, não encerraria um limite ao poder tributário dos
estados. Ao contrário, o direito dos municípios à receita do imposto estaria sujeito à vontade
política dos estados. Por unanimidade, os ministros do Supremo não acataram a tese.
8
CF/88:
Art. 160. É vedada a retenção ou qualquer restrição à entrega e ao emprego dos recursos atribuídos, nesta seção,
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, neles compreendidos adicionais e acréscimos relativos a
impostos.
6
Destarte, para que a autonomia política concedida pelo constituinte aos entes
federados seja real, efetiva, e não apenas virtual, cumpre que se preserve com rigor a
sua autonomia financeira, não se permitindo no tocante à repartição de receitas
tributárias, qualquer condicionamento arbitrário por parte do ente responsável pelos
repasses a que eles fazem jus.
O ministro Lewandowski, apesar de ter dito, com base no que decidido pelo
Tribunal de origem, que o ICMS pode ter sido efetivamente arrecadado, advertiu que essa
circunstância não seria decisiva para o deslinde da controvérsia, uma vez que o direito dos
municípios não “estaria condicionado ao efetivo ingresso do tributo no erário estadual”. Embora
um tanto confusa a sua fundamentação neste ponto, pretendeu o magistrado assentar que a
parcela do ICMS, aludida no inciso IV do artigo 158, da Constituição, “não constitui receita do
Estado, mas, sim, dos Municípios, aos quais pertence de pleno direito”. Não obstante a
competência dos estados, tal parcela – disse o relator – “integra de jure o patrimônio do
Município, não podendo o ente maior dela dispor a seu talante, sob pena de grave ofensa ao
pacto federativo”.
O ministro Celso de Mello destacou que a parcela de 25% do ICMS pertence aos
municípios “de pleno direito”, de forma que os estados devem repartir suas receitas “sem
qualquer outra restrição que não aquelas a que alude o próprio texto constitucional”. Esse ponto
é bastante importante: as restrições possíveis ao direito dos municípios apenas podem advir
diretamente do texto constitucional, ainda que decorrentes de normas constitucionais implícitas
como, por exemplo, a imunidade tributária do mínimo existencial. Voltarei a este ponto no item
7 deste trabalho. Para o decano, deveria prevalecer a tutela da autonomia municipal, “princípio
estruturante da organização institucional do Estado brasileiro”, cuja preservação depende do
respeito à “repartição constitucional de receitas tributárias”. Por fim, e no mesmo sentido, o
9
Arguindo a fraude à Constituição em matéria tributária como hipótese de elusão legislativa da Constituição, cf.
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Elusão Legislativa da Constituição no Direito Tributário. In:
GREGÓRIO JR., Eduardo Lourenço; LEAL, Saul Tourinho (Org.). A Constituição cidadã e o Direito Tributário
– Estudos em homenagem ao Ministro Carlos Ayres Britto. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019 (No prelo).
8
então Presidente do Tribunal Gilmar Mendes fundamentou seu voto na correlação vital entre
autonomia municipal e o modelo constitucional de repasse de receitas tributárias ou distribuição
de participações financeiras.
2.3. Problematização.
que mutilou o alcance desse instituto constitucional, restringindo a atuação política do ente
titular da competência exclusivamente sobre a parcela do imposto que não deve ser partilhado;
(ii) a decisão seria de difícil aplicação, sequer podendo ser generalizada ante a desarrumação
que causaria na estrutura federativa nacional. Dois excelentes artigos representam muito bem
essas linhas críticas.
Três parecem ter sido as suas premissas principais e correlacionadas: (i) uma
conceitual: “o Federalismo brasileiro é baseado num sistema rígido de discriminação de rendas
instituído pela Constituição”13; (ii) uma de fundamentação: “o federalismo fiscal desenhado
pela Constituição de 1988 se sustenta sobre dois pilares: a repartição de competências
10
PENHA, Marcos Bueno Brandão da. Repartição de competência tributária, participação no produto da
arrecadação e concessão de incentivos fiscais: análise do julgamento do RE 572.762/SC pelo Supremo Tribunal
Federal. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro Vol. XXII (Série
Especial: Direito Tributário: Federalismo e Guerra Fiscal), 2014, p. 154-171.
11
Ibidem, p. 157.
12
Ibidem, p. 162.
13
Ibidem, p. 169.
10
14
Ibidem, p. 163.
15
Ibidem, p. 164.
16
SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Competência Tributária, Transferências
Obrigatórias e Incentivos Fiscais. In: CONTI, José Maurício; __________.; BRAGA, Carlos Eduardo Faraco
(Org.). Federalismo Fiscal: Questões Contemporâneas. Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 288.
17
Ibidem, p. 296.
18
Ibidem, p. 300-301.
11
Apesar da qualidade das objeções, não concordo com as críticas. Como desenvolvo
nos quatro tópicos seguintes, penso ter sido acertada a decisão do Tribunal quanto ao seu
resultado, embora carente de uma fundamentação mais sólida quanto ao alcance do federalismo
fiscal. Acredito que as críticas padecem dos seguintes defeitos, que abordarei em cada um
desses tópicos seguintes: (i) as críticas partem de um conceito muito restrito de federalismo
fiscal, que teria por conteúdo apenas a partilha de competências tributárias e de receitas, ao
passo que penso ser a distribuição de funções e responsabilidades entre os entes federativos o
próprio ponto de partida dos desenhos do federalismo fiscal; (ii) como decorrência do primeiro
defeito, a fundamentação da controvérsia é praticamente exclusiva em termos de competência
tributária, desprezando o elemento função constitucional; (iii) ainda como consequência,
ignora-se o uso mais seguro da interpretação estrutural para resolver casos da espécie; e, por
fim, (iv) não existem tantas dificuldades para a implementação da decisão.
4. A deficiência conceitual.
19
Ibidem, p. 302.
20
Ibidem, p. 286.
12
Em assim sendo, o federalismo fiscal significa a partilha dos tributos pelos diversos
entes federativos, de forma a assegurar-lhes meios para atendimento de seus fins. Não
só de tributos, no entanto, mas também de receitas não tributárias, como as decorrentes
da exploração de seu patrimônio (preço), da prestação de serviços através de
concessão ou da partilha de produto da produção de energia elétrica e de produção
mineral, na forma do § 1º do art. 20 da Constituição. Faz-se um bolo arrecadatório,
destinados a fornecer os meios para que o Estado cumpra suas finalidades [....].21
Penso que tal deficiência conceitual não ajuda a compreensão do desenho original
do federalismo fiscal em nossa Constituição. Ou seja, no âmbito do denominado direito
constitucional estrutural, é necessário que a fundamentação e a interpretação levem em conta
todos os elementos que constituem as diferentes estruturas da Constituição. Assim deve ser
feito com a estrutura do federalismo fiscal, pois só assim poderá ser apreendido integralmente
o projeto normativo de criar, alocar, equilibrar e constranger os poderes do estado. No plano da
distribuição vertical de poderes, como elementos do próprio constitucionalismo, os princípios
do federalismo fiscal têm por objeto como melhor alocar, distribuir e limitar, de um lado,
responsabilidades e funções, e de outro, o poder de tributar e as transferências de recursos, entre
os níveis central e subnacionais de governo. Assim deve ser compreendido o arranjo
constitucional: de forma integral, e não como estruturas diversas.
21
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 6ª ed. São Paulo: RT, 2014, p. 110-111.
13
Da mesma forma, para autores mais contemporâneos, como Answar Shah, que
também muito se dedicou ao tema24, o federalismo fiscal diz sobre “o desenho de constituições
fiscais – ou seja, como tributar, gastar, e alocar as funções regulatórias entre governos e como
transferências intergovernamentais são estruturadas”25. O campo de estudo é, assim,
abrangente, incluídos os gastos e as funções. Para Enrico Corali, pensar o federalismo fiscal na
Constituição é raciocinar as opções, constitucionalmente sustentáveis, “em matéria de
autonomia de entrada e de despesas das Regiões e dos Entes Locais”26. Da mesma forma, a
exposição de Rossela Miceli destaca a amplitude do que seja o “federalismo fiscal”:
22
MUSGRAVE, Richard A. The Theory of Public Finance. New York: McGraw-Hill Book Co., 1959, p. 179-
180.
23
OATES, Wallace E. An essay on fiscal federalism. In: BAIMBRIDGE, Mark; WHYMAN, Philip. (Ed.) Fiscal
Federalism and European Economic Integration. New York: Routledge, 2004, p. 13.
24
Para ampla compreensão de sua teoria, cf. a excelente obra: BOADWAY, Robin; SHAH, Anwar. Fiscal
Federalism. Principles and Practice of Multiorder Governance. New York: Cambridge University Press, 2009.
25
SHAH, Anwar. Introduction: Principles of Fiscal Federalism. In: _______. (Ed.) A Global Dialogue on
Federalism. Vol. 4: The Practices of Fiscal Federalism – Comparative Perspectives. Montreal: McGill-Queen’s
University Press, 2007, p. 3.
26
CORALI, Enrico. Federalismo Fiscale e Costituzione: essere e dovere in tema di autonomia di entrata e di
spesa di regioni ed enti locali. Milão: Giuffrè, 2010, p.2-3.
14
Como mais vezes revelado no presente trabalho, a expressão federalismo fiscal é hoje
utilizada em termos gerais, ao escopo de definir as relações financeiras entre os vários
níveis de governo dentro de um Estado, reagrupando diversas soluções jurídicas em
comum de uma filosofia organizativa baseada sobre o autogoverno e sobre a
descentralização.
[...]
Em particular, o federalismo fiscal, em toda a sua clarificação, tende a afirmar de
modo mais ou menos forte o binômio dos princípios da autonomia e responsabilidade.
Ao reconhecimento dos espaços de autonomia corresponde nos modelos federais um
poder de entrada e despesa, ao fim de responsabilizar os Entes territoriais menores
(pertencentes a um Estado) a uma correta e eficiente gestão do território e dos recursos
disponíveis.
O federalismo fiscal é, assim, fundado sobre alguns elementos recorrentes, quais
sejam:
– a existência de um governo central
– o reconhecimento de autonomia aos Entes territoriais menores
– uma responsabilidade de entrada e de despesa em nome de tais Entes
– a tendência de realização de objetivos políticos e de orientações autônomas em nível
territorial.27
5. A deficiência da fundamentação.
27
MICELI, Rossela. Federalismo Fiscale e Principi Europei: spazi di autonomia, livelli di responsabilità e
modelli di federalismo. Milão: Giuffrè, 2014, p. 45-47.
28
CABRAL, Nazaré da Costa. O primeiro passo do federalismo financeiro: determinação de funções. Boletim de
Ciências Econômicas Vol. 57, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 833-871.
15
constitucional do federalismo fiscal. Daí porque os ministros, assim como a doutrina crítica,
restringirem a discussão da controvérsia a fundamentos insuficientes: alcance da competência
tributária, alcance do direito à partilha de receitas e autonomia financeira vis a vis autonomia
política. Penso que faltou olhar para o federalismo fiscal como estrutura constitucional global
e consolidada de financiamento e função.
Não é o espaço adequado para discutir-se tema tão árduo30. Mas é certo que o
constituinte de 1988 levou em conta o critério da eficiência arrecadatória para realizar o seu
desenho e estabelecer/distribuir as competências tributárias. Contudo, no que se refere ao
desenho da partilhas de receitas, houve algo mais em jogo. A partilha de receitas existe porque
o constituinte tinha a noção exata da insuficiência, em desfavor dos entes menores, dos recursos
29
Cf. SHANSKE, Darien. Revitalizing Local Political Economy Through Modernizing the Property Tax. Tax
Law Review Vol. 68 (1), 2014, p. 143-205.
30
Para tanto, cf. SCHWARTZ, Amy Ellen (Ed.) City Taxes, City Spending. Essays in Honor of Dick Netzer.
Cheltenham: Edward Elgar, 2004.
16
31
CABRAL, Nazaré da Costa. O primeiro passo do federalismo financeiro: determinação de funções. Boletim de
Ciências Econômicas Vol. 57, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 837.
32
Por exemplo: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. DIREITO À
SAÚDE. TRATAMENTO MÉDICO. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. REAFIRMAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O tratamento médico
adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes
federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. (STF –
Plenário Virtual, RE 855.178, Rel. Min. Luiz Fux, j. 5/3/2015, DJ 16/3/2015.
17
33
CABRAL, Nazaré da Costa. O primeiro passo do federalismo financeiro: determinação de funções. Boletim de
Ciências Econômicas Vol. 57, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2014, p. 840.
18
6. A deficiência metodológica.
Duas linhas metodológicas podem ser extraídas das críticas feitas à decisão do
Supremo: (i) uma de viés mais literal, que toma a expressão “produto da arrecadação” como
premissa semântica para dizer que a partilha só pode recair sobre o que efetivamente
arrecadado, o que pressupõe liberdade absoluta do exercício anterior da competência tributária;
(ii) outra mais sistemática, que opõe a autonomia político-legislativa do titular da competência
tributária à autonomia financeira do ente beneficiário da partilha, para concluir, como o fez
Marcos Bueno, que “a autonomia financeira dos entes municipais não pode ser reforçada ou
garantida através do sacrifício da competência tributária conferida pela Constituição aos entes
estaduais e ao ente central”. Essas linhas não são as mais adequadas. Acredito que o tipo de
controvérsia instaurado seria melhor solucionado mediante a chamada interpretação estrutural.
Como busquei expor nos dois tópicos anteriores, considerado o conceito amplo de
federalismo fiscal, existe no desenho constitucional uma lógica de conexão interna da estrutura
de divisão de tarefas e recursos; uma lógica originária estrutural que as práticas interpretativas
sucessivas não podem prejudicar, muito menos trair. Ao contrário, a interpretação
constitucional deve proteger essa lógica interna contra práticas políticas e institucionais que
visam enfraquecê-la – e têm sido muitas as práticas da espécie. Exemplos notórios – como
aponto um pouco mais adiante – desse enfraquecimento podem ser consideradas a progressiva
concentração de arrecadação da União nas contribuições especiais não compartilhadas e a
concessão desenfreada e sem critérios de benefícios fiscais do ICMS, de duvidosa legitimidade,
pelos estados-membros. A interpretação constitucional não pode ser cega a essas variáveis.
34
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4ª ed. Coimbra: Almedina, 2000,
p. 1.137-1.139: para o constitucionalista português, princípios estruturantes são “constitutivos e indicativos das
19
privilegie a sua relevância para o arranjo constitucional. Uma interpretação que leve em conta
elementos como a autonomia financeira dos municípios. Apesar de não ser encontrada menção
à chamada interpretação estrutural, me parece que esse seria o método que esses votos
reclamaram. A interpretação estrutural é aquela que evita que decisões imponham às
constituições uma contradição interna insuportável – o bloqueio das conexões instrumentais e
finalísticas entre as estruturas da constituição, indispensáveis para o cumprimento dos objetivos
fundamentais pelo estado.
Para Black Jr., há “um interfuncionamento entre o modo textual e o modo relacional
e estrutural de interpretação, uma vez que a estrutura e as correspondentes relações são, elas
próprias, criadas pelo texto, e as inferências extraídas dessas devem, certamente, ser controladas
pelo texto” 36. Quanto ao processo de inferências estruturais, Kent Greenfield explica que
[...] estes argumentos começam por declarar uma premissa, normalmente uma
descrição da estrutura constitucional de um poder particular ou do governo como um
todo, e então sugerem que um certo resultado é ou exigido ou proibido pela estrutura.
ideias diretivas básicas de toda a ordem constitucional. São, por assim dizer, as traves-mestras jurídico-
constitucionais do estatuto jurídico do político. [...] Estes princípios ganham concretização através de outros
princípios (ou subprincípios) que ‘densificam’ os princípios estruturantes, iluminando o seu sentido jurídico-
constitucional e político-constitucional, formando, ao mesmo tempo, com eles, um sistema interno. [...] Os
princípios estruturantes não são apenas densificados por princípios constitucionais gerais ou especiais. A sua
concretização é feita também por várias regras constitucionais, qualquer que seja a sua natureza. [...] Os princípios
estruturantes ganham densidade e transparência através das suas concretizações (em princípios gerais, princípios
especiais ou regras), e estas formam com os primeiros uma unidade material (unidade da Constituição).
35
BOBBITT, Philip. Constitutional Fate. Theory of the Constitution. New York: Oxford University Press, p. 74.
36
BLACK JR., Charle. Structure and Relationship in Constitutional Law. Baton Rouge: Lousiana State University
Press, 1969, p. 31.
20
37
GREENFIELD, Kent. Original Penumbras: Constitutional Interpretation in the First Year of Congress.
Connecticut Law Review Vol. 26 (1), 1993, p. 84.
38
Sobre as três formas distintas de federalismo cooperativo, cf. SHAH, Anwar. Introduction: Principles of Fiscal
Federalism. In: _______. (Ed.) A Global Dialogue on Federalism. Vol. 4: The Practices of Fiscal Federalism –
Comparative Perspectives.Op. cit., p. 5-6. O autor disse que o Brasil é o único país que adota o terceiro modelo:
“[...] com esferas independentes de governo, todas as ordens de governo gozam autonomia e igual status e coordena
suas políticas horizontal e verticalmente”.
39
BENTO, Inês Pisco. Federalismo Fiscal na Constituição Portuguesa? Boletim de Ciências Econômicas Vol. 53,
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2010, p. 190.
21
40
Esse aspecto dos benefícios fiscais envolvendo as contribuições sociais tem sido ignorado pela doutrina. Como
se sabe, os tributos cumprem três importantíssimos papéis: econômico (arrecadação), social (redistributivo) e
interventivo (regulatório) (cf. AVI-YONAH, Reuven S. The Three Goals of Taxation. Texas Law Review Vol. 60
(1), 2006, p. 3 e ss.) No caso das contribuições do artigo 195 da CF/88, essas foram instituídas como principal
fonte de custeio da Seguridade Social. Essa é a razão de ser dessas contribuições, daí serem qualificadas por essa
finalidade. A função arrecadatória se mostrou eminente, apenas admitindo-se algum papel indutor como natural a
todo tributo ante o mito da neutralidade tributária – todo tributo tem algum efeito sobre o comportamento humano,
ainda que esse não seja a sua razão de ser. Aos poucos, a Jurisprudência do STF vinculou essas contribuições à
solidariedade como verdadeiro princípio estrutural. Deixou claro que respondem às lógicas da capacidade
contributiva e da solidariedade social. No entanto, o que se tem visto, há alguns anos, na legislação ordinária dessas
contribuições, não é uma crescente complexidade normativa a fim de atender à mais justa distribuição do ônus
entre os contribuintes. Me parece cada vez mais presente o uso das contribuições de seguridade social como forma
de intervenção da União Federal na economia, prestigiando certos setores em detrimento de outros, buscando
incentivar ou desestimular algumas atividades econômicas, promovendo mudanças urgentes no mercado; enfim:
as contribuições de Seguridade Social cada vez mais se aproximam de um papel extrafiscal absolutamente
incompatível com a ratio pela qual foram instituídas pelo constituinte originário. A complexidade cada vez maior
e a inconstância intolerável da legislação correspondente acusam tal fenômeno. Trata-se de verdadeiro desvio de
finalidade constitucional, realizada pelo legislador ordinário, que merece atenção maior da doutrina.
22
financiadoras de campanha por meio de benefícios fiscais do ICMS, comprometendo a cota que
pertence aos municípios. Para citar um exemplo, há o caso envolvendo o ex-governador do Rio
de Janeiro Sérgio Cabral e a empresa Michellin. Nas eleições de 2010, quando disputou sua
recondução ao cargo, Cabral recebeu da empresa a quantia de R$ 200.000,00 (duzentos mil
reais), conforme extraído do portal de prestação de contas do TSE pelo SPCE (Sistema de
Prestação de Contas Eleitorais). Por sua vez, foi possível apurar que nos anos de 2009 e 2010
empresas do grupo da doadora obtiveram benefícios fiscais que somaram respectivamente os
valores aproximados de R$ 16.144.557,00 (dezesseis milhões cento e quarenta e quatro mil
quinhentos e cinquenta e sete reais) e de R$ 33.631.027,00 (trinta e três milhões seiscentos e
trinta e um mil e vinte e sete reais). Esses benefícios se deram preponderantemente através de
isenções fiscais, mas também pela redução da base de cálculo, relativos ao ICMS41.
Feita a defesa da decisão do Supremo sob os três aspectos acima abordados, que
apontei como deficiências das críticas formuladas, revela-se importante agora responder
algumas perplexidades de implementação formuladas perspicazmente pelo professor Fernando
Facury Scaff e por Alexandre Coutinho da Silveira. São problematizações que colocam em
dúvida a possibilidade de a decisão ser generalizável, o que apontaria para uma possível
irracionalidade do discurso decisório. Sem embargo, sem atender a uma pretensão de
41
O relato é feita por minha orientanda Gabriela Rohem de Souza Santos, em seu TCC “Uma Abordagem Sobre
a Legitimidade na Concessão de Benefícios Fiscais e as Respectivas Possibilidades de Controle”, apresentado na
Faculdade de Direito da UERJ em abril de 2018. (mimeografado com o autor)
23
O primeiro questionamento feito pelos autores foi se a decisão pode ser aplicada às
receitas transferidas pela União aos demais entes subnacionais. Essa pergunta foi respondida,
penso que erroneamente, pelo Supremo em caso posterior: o do RE 705.423/SE42, envolvendo
benefícios fiscais do IR e do IPI e o direito dos municípios à participação na receita desses
impostos. Contrariando o que decidido no RE 572.672/SC, a maioria do Tribunal consignou
inexistir direito aos municípios para além do que efetivamente arrecadado, subsistindo pleno
direito da União a conceder benefícios fiscais, mesmo consideradas as cotas dos estados e dos
municípios de que trata o artigo 159 da Carta da República.
42
STF – Pleno, RE 705.423/SE, Rel. Min. Edson Fachin, j. 23/11/2016, DJ 5/2/2018:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. CONSTITUCIONAL, TRIBUTÁRIO E
FINANCEIRO. FEDERALISMO FISCAL. FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS MUNICÍPIOS – FPM.
TRANSFERÊNCIAS INTERGOVERNAMENTAIS. REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS.
COMPETÊNCIA PELA FONTE OU PRODUTO. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA. AUTONOMIA
FINANCEIRA. PRODUTO DA ARRECADAÇÃO. CÁLCULO. DEDUÇÃO OU EXCLUSÃO DAS
RENÚNCIAS, INCENTIVOS E ISENÇÕES FISCAIS. IMPOSTO DE RENDA - IR. IMPOSTO SOBRE
PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS – IPI. ART. 150, I, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. 1. Não se
haure da autonomia financeira dos Municípios direito subjetivo de índole constitucional com aptidão para infirmar
o livre exercício da competência tributária da União, inclusive em relação aos incentivos e renúncias fiscais, desde
que observados os parâmetros de controle constitucionais, legislativos e jurisprudenciais atinentes à desoneração.
2. A expressão “produto da arrecadação” prevista no art. 158, I, da Constituição da República, não permite
interpretação constitucional de modo a incluir na base de cálculo do FPM os benefícios e incentivos fiscais
devidamente realizados pela União em relação a tributos federais, à luz do conceito técnico de arrecadação e dos
estágios da receita pública. 3. A demanda distingue-se do Tema 42 da sistemática da repercussão geral, cujo
recurso-paradigma é RE-RG 572.762, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em
18.06.2008, DJe 05.09.2008. Isto porque no julgamento pretérito centrou-se na natureza compulsória ou voluntária
das transferências intergovernamentais, ao passo que o cerne do debate neste Tema reside na diferenciação entre
participação direta e indireta na arrecadação tributária do Estado Fiscal por parte de ente federativo. Precedentes.
Doutrina. 4. Fixação de tese jurídica ao Tema 653 da sistemática da repercussão geral: “É constitucional a
concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre
Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas
quotas devidas às Municipalidades.” 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
24
43
STF – Pleno, ACO 758/SE, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 19/12/2016, DJ 1º/8/2017:
FUNDO – ESTADOS – PARTICIPAÇÃO – ARTIGO 159, INCISO I, ALÍNEA “A”, DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL – ALCANCE – PROGRAMAS PIN E PROTERRA – SUBTRAÇÃO – IMPROPRIEDADE. A
participação dos Estados, no que arrecadado pela União, faz-se segundo o figurino constitucional, sendo impróprio
subtrair valores destinados aos Programas PIN e PROTERRA. PRESCRIÇÃO – OBRIGAÇÃO DE DAR –
QUINQUÊNIO. Uma vez reconhecido certo direito, cumpre observar o prazo prescricional.
44
SCAFF, Fernando Facury; SILVEIRA, Alexandre Coutinho da. Competência Tributária, Transferências
Obrigatórias e Incentivos Fiscais. In: CONTI, José Maurício; __________.; BRAGA, Carlos Eduardo Faraco
(Org.). Federalismo Fiscal: Questões Contemporâneas. Op. cit., p. 301.
45
Sobre a não tributação do mínimo existencial como imunidade implícita, cf. TORRES, Ricardo Lobo. O direito
ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
25
seja por meio da abstenção de impor tributos. Há aqui a necessidade de bem delimitar a
interpretação dessas hipóteses: é preciso que esteja configurado caso de vera imunidade
constitucional, e não simplesmente de benefício que atenda a algum fim de desenvolvimento
econômico ou social compatível com a Constituição. Em se tratando de tutela do mínimo
existencial, pode-se falar mesmo em um dever constitucional de legislar.
46
Sobre falácias argumentativas, cf. BUSTAMANTE, Thomas; DAHLMAN, Christian (ed.) Argument Types and
Fallacies in Legal Argumentation. New York: Springer, 2015.
26
8. Conclusão.
No cenário mundial, há forte tendência a arranjos institucionais que promovam
responsabilidade fiscal e estabilidade orçamentária. Ao mesmo tempo, “a descentralização
fiscal está em voga”, presente “a esperança que governos estaduais e locais, sempre mais
próximos ao povo, serão mais responsivos às preferências particulares de seus eleitores e
capazes de encontrar novos e melhores meios de prover serviços públicos”47. Essas duas
perspectivas compõem o federalismo fiscal estruturado na Constituição de 1988. Há de
imaginar essa estrutura como uma divisão original e coerente de competências,
responsabilidades e recursos que viabilize o atendimento, na melhor medida possível,
equilibrado dessas duas tendências. Práticas institucionais e interpretativas que venham a
desnaturar essa estrutura não se mostram adequadas. Por esse motivo, este artigo foi voltado a
defender a solução adotada pelo STF no RE 572.672/SC. Essa foi, segundo penso, a
interpretação correta de nosso direito constitucional estrutural.
47
OATES, Wallace E. An essay on fiscal federalism. In: BAIMBRIDGE, Mark; WHYMAN, Philip. (Ed.) Fiscal
Federalism and European Economic Integration. Op. cit., p. 13.