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AS DESPESAS PÚBLICAS NA VIRADA DOS EXERCÍCIOS FINANCEIROS

Public expenditure as at the turn of financial years

Vera Wolff Bava Moreira1

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Conceitos e normas de Direito Financeiro aplicáveis à espécie. 2.1.


Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e Leis Orçamentárias Anuais. 2.2.
Execução Orçamentária. 2.3. Despesas públicas. 3. Dos restos a pagar. 4. A Lei Fede-
ral no. 4.320/64, os decretos de execução orçamentária e financeira e as Leis Estaduais
Paulistas no. 10.320/68 e no 13.578/09. 4.1. A Lei Federal 4.320, de 17 de março de
1964. 4.2. Decretos Paulistas de Encerramento da Execução Financeira e Orçamentá-
ria. 4.3. A Lei Estadual 13.578, de 08 de julho de 2009. 4.4. A Lei Estadual 10.320,
de 16 de dezembro de 1968. 5. A teoria na prática. 5.1. Jurisprudência. 5.2. Doutrina.
5.3. Doutrina e situações concretas. 5.4. Orientações institucionais da Procuradoria
Geral do Estado de São Paulo. 6. Ressalvas à obrigatoriedade de previsão dos recursos
orçamentários. 7. O último esercício de um mandato: o caso específico do artigo 42
da LRF. 8. Conclusão. Bibliografia.

RESUMO O presente estudo analisa o tema das despesas públicas da virada dos exercícios finan-
ceiros, através da interpretação sistemática e teleológica dos dispositivos constitucio-
nais e legais pertinentes à matéria (Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000;
Lei Federal no 4.320, de 17 de março de 1964 e a Lei Federal no 8.666, de 21 de junho
de 1993), da doutrina atual e da jurisprudência dos Tribunais de Contas da União
e o Paulista. Ao final, aponta soluções práticas de cunho eminentemente gerencial,
dentro do campo do Direito, com ênfase na conta especial “restos a pagar”.

ABSTRACT: This study examines the issue of public expenditure at the turn of the financial years
through systematic and teleological interpretation of the relevant matter (Comple-
mentary Law Nº 101 of May 4, 2000 constitutional and legal provisions;. Federal
Law no 4320 of March 17, 1964 and Federal Law no 8,666 of June 21, 1993 ); the
current doctrine and the jurisprudence of the Federal Court of Auditors and the Pau-
lista Court of Auditors. At the end, pointing eminently practical solutions managerial
nature, within the field of law.
Palavras-chaves: Créditos orçamentários. Dotação orçamentária. Vigência dos con-
tratos administrativos. Restos a pagar. Ano civil.
Keywords: Budget credits. Budget allocation. Validity of administrative contracts. Re-
mains payable. Calendar year

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho partiu da análise dos artigos 41 e 42 da Lei Complemen-


tar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), como mecanismos
de planejamento, controle de gastos e de programação financeira da Administração

1
Procuradora do Estado de São Paulo. Bacharel em Direito pela USP. Especialista em Direito Tributário
pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado.
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Pública, sob o enfoque de seu estudo em conjunto e no espírito da Lei no 8.666, de


21 de junho de 1993, Lei de Licitações, que coíbe realização de despesas que com-
prometam orçamentos futuros, sem adequada programação.
O orçamento público tem sua vigência coincidente com o exercício financei-
ro, havendo, portanto, um prazo em que as despesas devem ser feitas, que é o ano
civil (de 1º de janeiro a 31 de dezembro), de acordo com o art. 34 da Lei no 4.320,
de 17 de março de 1964, diploma este que estabeleceu as normas gerais de Direito
Financeiro destinadas à elaboração e controle dos orçamentos e balanços públicos.
Já para a Lei Federal no 8.666, de 21 de junho de 1993, a duração dos
contratos celebrados pela Administração ficará adstrita à vigência dos respectivos
créditos orçamentários (artigo 57, caput), que são anuais, somente se admitindo que
obras e serviços sejam licitados quando houver previsão de recursos que assegurem o
pagamento destas no exercício financeiro em curso (artigo 7º, § 2º, incisos III e IV).
Há, naturalmente, exceções previstas tanto na Lei de Licitações, quanto na
própria Lei de Responsabilidade Fiscal, como no caso de serviços contínuos ou na
transferência de parte do pagamento para o exercício seguinte, desde que haja dispo-
nibilidade de caixa, ou ainda a promoção de empreendimentos cuja execução ultra-
passe os limites de um exercício orçamentário, caso em que “... o projeto deverá constar
do Plano Plurianual, de modo que os custos correspondentes já se encontram previstos no
planejamento de médio e longo prazo do Estado.”2
A regra básica, todavia, é a de que a vigência dos ajustes está condicionada à
vigência dos respectivos créditos orçamentários.
As grandes dúvidas, porém, concentram-se fora das hipóteses excepcionadas
pela lei. É o caso, por exemplo, das contratações por escopo, cuja execução ultrapasse
o exercício financeiro em que foram celebradas, cujos serviços não sejam contínuos,
que não representem despesas de investimento, ou relativas a projetos que não este-
jam contempladas no Plano Plurianual.
Um contrato assim poderia ultrapassar 31 de dezembro do ano em que foi
celebrado se toda a despesa já foi empenhada e está onerando o orçamento deste exer-
cício? Nesta hipótese, o empenho da totalidade do valor do contrato prorrogaria “a
vigência dos respectivos créditos orçamentários”? E, na virada do exercício financeiro,
o remanescente a pagar poderia ser incluído em “Restos a Pagar não processados”?
E em oposição, ou seja, sendo desnecessário o empenho da integralidade do
valor da contratação, poderia ser inserida no contrato uma cláusula resolutiva, con-
dicionando a continuidade da sua vigência à existência de recursos para a finalidade
na dotação orçamentária seguinte?

2
JUSTEN FILHO, Marçal, Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13. ed., São Paulo:
Dialética, 2009, p. 144.

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Seriam viáveis tais contratações? E se não o forem, de que modo os gestores


poderiam suprir as prementes necessidades da unidade pela qual são responsáveis
nessa época do ano?
Ora, tomando-se as regras com rigidez excessiva não se poderá celebrar qua-
se nenhum contrato ao final dos exercícios financeiros. Será isto que se deseja?
A questão não é fácil, mas é algo muito presente no dia-a-dia da Administra-
ção Pública. Necessita ser estudada, sistematizada e equacionada, para que fique mais
clara para quem se preocupa em fazer uma boa gestão da coisa pública.
Fato inconteste é que é necessário haver planejamento, controle e fiscaliza-
ção nos gastos públicos.
Na prática, todavia, quem trabalha diretamente na área de gestão pública
ou conhece um pouco dela, sabe que as leis orçamentárias demoram a ser aprovadas
pelas Casas Legislativas, que as dotações orçamentárias demoram a chegar a seus
destinatários (entidades ou órgãos públicos), que recursos previstos e solicitados são
contingenciados no início do exercício financeiro pelo Executivo, sendo liberados
pouco a pouco e que, por tudo isso, fica difícil a programação de modo a distribuir,
ao longo de todo o ano, a realização das despesas necessárias.
E o inevitável acontece: as licitações acumulam-se no final do ano e acabam
ocorrendo sem planejamento e racionalidade, pois, a princípio, não se pode jogar
para o exercício seguinte a realização daquela despesa, salvo nas exceções já mencio-
nadas e que serão adiante tratadas.
Enfim, como agir, se aquele dinheiro que chegou de última hora não pode
ser utilizado apenas no ano seguinte? Afinal, o orçamento é anual, iniciando-se em
1º de janeiro e terminando em 31 de dezembro. E o que não for gasto, voltará para o
Tesouro. Ou seja, está-se, decididamente, diante de um grande dilema.
Para a Administração Pública em geral, as despesas aqui chamadas “da vira-
da”, ou seja, as compras e contratações, que têm que ser realizadas no final dos exer-
cícios financeiros, são um tema particularmente tormentoso, pois ao mesmo tempo
em que a máquina administrativa não pode parar, face ao princípio constitucional da
continuidade do serviço público, os prazos e os limites impostos pela lei têm que ser
respeitados e, no mais das vezes, o que seria para trazer organização e racionalidade
na gestão pública, acaba por representar engessamento, paralisação, obstáculos à ple-
na realização do interesse público.
Nesse cenário, surgem os artigos 41 e 42 da Lei de Responsabilidade Fiscal,
como mecanismos impositivos de programação financeira e limitação de empenhos
nos casos de insuficiência de recursos.
Estando ambos na mesma Seção VI, denominada “Dos Restos a Pagar”, o
artigo 41 tinha como finalidade cuidar mais diretamente dos chamados Restos a
Pagar. Foi vetado, mas mesmo assim permaneceu “vivo” como objeto de discussão
na doutrina, especialmente por conta de haver previsão a respeito do tema na Lei
4.320, de 17 de março de 1964 que, como acima comentado, estabelece normas

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gerais de Direito Financeiro e que, embora “antiga”, continua muito atual e em


pleno vigor.
Já o artigo 42 trata da vedação aos Chefes dos Poderes Executivo, Legislativo
e Judiciário, seus respectivos órgãos e Ministério Público (conforme definição de “ór-
gãos” contida no artigo 20 da LRF), de contraírem, nos últimos dois quadrimestres
de seus mandatos, despesas que não possam ser integralmente cumpridas dentro
dele, ou que tenham parcelas a serem cumpridas no exercício seguinte sem que haja
disponibilidade de caixa.
Teoricamente, busca-se uma gestão financeira responsável, em que são ve-
dadas as transferências de despesa de um exercício para o outro sem que haja corres-
pondente recurso para saldá-la, especialmente quando se tratar de final de mandato
eletivo, em que um mandatário poderia tentar deixar suas despesas, não raro “eleito-
reiras”, para o seu sucessor.
Básica será a análise dos artigos da Lei de Responsabilidade Fiscal pertinentes
à matéria, em conjunto com o artigo 36 da Lei no 4.320, de 17 de março de 1964,
que traz justamente a definição do que são Restos a Pagar, dentre outros dispositivos
do mesmo diploma legal, e o artigo 57 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, que
limita a realização das despesas em função do orçamento existente e em vigência.
Ademais, o estudo da jurisprudência dos Tribunais de Contas, bem como da doutrina
desenvolvida a respeito do assunto.
Finalmente, para a correta leitura, compreensão e aplicação das normas
constitucionais e legais atinentes à espécie, será necessária, além de sua interpretação
sistemática, uma breve análise histórica da matéria, assim como os esclarecimen-
tos sobre os conceitos técnicos envolvidos na sua abordagem. É o que dará início à
exposição.

2. CONCEITOS E NORMAS DE DIREITO FINANCEIRO APLICÁVEIS À ESPÉCIE

O artigo 163, I, da Constituição Federal assevera que lei complementar dis-


porá sobre finanças públicas. O artigo 169 da Carta Magna, por sua vez, estabelece
que a despesa com pessoal de todos os entes federativos não poderá exceder aos
limites estabelecidos em lei complementar.
Surge, neste toar, a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, a Lei
de Responsabilidade Fiscal ou, simplesmente, LRF.
Pode-se dizer que esta Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000,
constitui, na verdade, uma suplementação à Lei Federal no 4.320, de 17 de março de
1964, que também estabelece normas gerais de Direito Financeiro.
Aliás, muitos dos conceitos necessários à correta compreensão da Lei de Res-
ponsabilidade Fiscal, e com os quais se trabalhará mais adiante, estão justamente na

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Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, norma jurídica esta que, embora datada de
1964, é anterior ao período da ditadura militar e não se caracteriza como uma norma
autoritária, muito menos de “de ocasião”, momentânea ou efêmera. Ao contrário, ela
vem perdurando ao longo de mais de 40 anos, sendo até mesmo elogiada por doutri-
nadores das mais diferentes correntes.
Nesse passo, oportunos os comentários de Eduardo Marcial Ferreira Jardim3
a respeito do relacionamento de ambas as leis enfocadas, frisando os propósitos da
Lei de Responsabilidade Fiscal, embora criticando sua denominação, pois, a seu ver,
o nome “Lei de Responsabilidade Financeira” talvez fosse mais adequado e compatí-
vel com sua natureza:
Com efeito, debalde a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, e outros diplomas
supervenientes já cuidassem do mesmo assunto, o controle orçamentário
ainda afigurava-se insatisfatório e, por esse motivo, o referido diploma veio
a lume com o desígnio de redimensionar a transparência no gerenciamento
do orçamento. Sua denominação depara-se inadequada, pois tem por objeto
normas de direito financeiro e regras de responsabilidade cível, administrativa
e penal, não guardando, pois, qualquer nexo direto com o âmbito fiscal. Por
isso, seria compatível com sua natureza a denominação Lei de Responsabilidade
Financeira.

Fato é que se buscou, com a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal, o


equilíbrio das contas públicas, ou seja, entre as receitas e as despesas. O maior intuito
é que o ente federativo só gaste aquilo que efetivamente arrecadou. Ou, exemplifican-
do, que em uma conta simples de subtração, receita efetivamente arrecadada, menos
as despesas efetivamente realizadas, chegue-se a resultado igual a zero.
Deve-se ter em mente uma época não muito distante em que, em razão das
contas públicas altamente desequilibradas, atingiram-se níveis inflacionários quase
insuportáveis, gerando enormes endividamentos dos entes políticos. Assim, a esta-
bilidade daquelas contas era condição essencial para a estabilidade do padrão mo-
netário nacional que então surgiu (o chamado “Real”), e para a contenção do déficit
público.
De outro lado, a LRF também tem como objetivo a gestão fiscal responsável,
isto é, o agente público ou o administrador da coisa pública, que cumpra o seu dever
funcional e aja com probidade, entendendo-se por responsável aquele que assume
seus atos e omissões e responde por estes e, entendendo-se por gestão fiscal, a rea-
lização da receita e da despesa no sentido da correta preservação dos bens públicos.
Assim, no dizer de Flávio Cruz, contido nas páginas de apresentação do livro
por ele coordenado para comentar a Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964:

3
JARDIM, Eduardo Marcial Ferreira, Manual de Direito Financeiro e Tributário. 10 ed., São Paulo: Saraiva,
2009, p. 89/90.

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Compromissos assumidos no âmbito das finanças públicas internacionais


e outras variáveis políticas e socioeconômicas causaram forte determinação
do Poder Executivo federal no sentido de criar uma lei de conduta para a
administração pública. O ponto preferido foi estabelecer limites para alguns
aspectos de gestão e responsabilizar os dirigentes que se envolverem em
transgressões e abusos. A lei de responsabilidade fiscal foi a denominação
assumida para tais mudanças.4

Para Mario Engler Pinto Junior, a Lei de Responsabilidade Fiscal “contribui


para o refinamento do quadro institucional orçamentário, embora o seu foco principal sejam
as finanças públicas sob a ótica da gestão fiscal responsável.”5
Em suma, a LRF, como uma lei de conduta, visou trazer à Administração
Pública, portanto, planejamento, organização na arrecadação, controle, fiscalização e
responsabilidade nos gastos públicos.

2.1 Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias e


Leis Orçamentárias Anuais

A ideia de planejamento em matéria orçamentária veio realçada na Constitui-


ção Federal de 1988, mais precisamente no artigo 165, parágrafos 1º, 2º, 5º e 8º. Por
ela, os entes federativos são obrigados a elaborar Planos Plurianuais (PP ou PPA), Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Leis Orçamentárias Anuais (LOA).
O Plano Plurianual (PP ou PPA) deve estabelecer as diretrizes, os objetivos
e as metas da Administração Pública (cada ente federativo elabora o seu, de forma
regionalizada), para as despesas de capital, e outras delas decorrentes, e para as re-
lativas aos programas de duração continuada. É um plano de trabalho de governo,
onde são reunidas as ações governamentais relativas às obras e investimentos pro-
gramadas para um período trienal de gestão e não de um único exercício financeiro,
como ocorre com o orçamento anual. A LDO, por sua vez, é elaborada anualmente,
e compreende as metas e prioridades da administração pública para o exercício sub-
sequente, orientando a elaboração da LOA e escolhendo quais as parcelas do PP que
serão objeto de execução no ano seguinte. Assim, a LOA, que também é um programa
de trabalho de governo, reúne todas as ações governamentais relativas às obras, aos

4
CRUZ, Flávio da (Coord). Comentários à Lei nº 4.320 – Normas Gerais de Direito Financeiro – Orçamen-
tos e Balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2008,
apresentação.
5
PINTO Jr, Mário Engler. Desafios para Adoção do Orçamento Impositivo. In: Revista da Procuradoria da
Procuradoria Geral do Estado. São Paulo: nº 61/62, p. 78, jan/dez. 2005.

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investimentos e às prestações de serviços a serem executados pela Administração


durante aquele exercício financeiro.
O orçamento público nada mais é do que um documento oficial onde cons-
tam todas as receitas e todas as despesas de um determinado ente político.
A propósito, vem bem a calhar o trecho a seguir transcrito de artigo publi-
cado em periódico eletrônico, à medida que explica o porquê da denominação do
orçamento como “lei de meios”:
O Estado sempre manterá sua atuação, interferindo através do orçamento
público na economia com o fim de mantê-la em funcionamento correto. O
orçamento, portanto, tem caráter instrumental – por isso é chamado de ‘lei
de meios’ – e serve para sustentar a atuação e intervenção concreta estatal.
Para tanto, devem ser analisadas algumas formas de intervenção e de atuação
que são custeadas pelas finanças públicas e que possuem papel importante na
manipulação da economia.6

Cuida-se de uma visão mais holística do orçamento, ou seja, enquanto ins-


trumento regulador da atividade estatal e, ao mesmo tempo, regulador da atividade
econômica.
Ele possibilita, de fato, um maior controle do Poder Legislativo e da cole-
tividade (conforme artigos 48 e 48-A da LRF) sobre o Executivo. E ainda deve ser
considerada, para esta colocação, a importância da anualidade orçamentária como
facilitadora desta fiscalização, pois renova ano a ano o planejamento, a execução e
o controle, racionalizando a atuação desses dois Poderes, cada qual na sua esfera de
competência.
A pergunta que fica é se o orçamento tem caráter apenas autorizativo em rela-
ção às despesas nele previstas ou se haveria imposição legal para sua efetiva realização.
Mario Engler Pinto Junior faz esta indagação, tratando ele mesmo de respon-
dê-la, afirmando que o entendimento jurídico predominante é o de que não há im-
posição legal para a efetiva realização das despesas nele previstas, tendo o orçamento
caráter apenas autorizativo. Sua explicação é a seguinte:
A existência de dotação orçamentária é condição necessária (embora não
suficiente) para a assunção de obrigação de pagamento pela Administração
pública (direta, autárquica e fundacional), conforme sugerem os dispositivos
da Lei nº 4.320/64, ao exigirem o prévio empenhamento da despesa, nos
limites dos créditos concedidos. O ato administrativo de empenho pressupõe
a identificação da dotação orçamentária que irá suportar a despesa, seguida da
sua reserva formal para aquela finalidade.

6
KANAYAMA, Rodrigo Luís. Os efeitos da despesa pública na economia: uma visão com fundamento no
Direito Financeiro contemporâneo. Biblioteca Digital Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo
Horizonte, ano 6, nº 24, out./dez. 2008. Disponível em: <http://www.editoraforum.com.br>. Acesso em: 26
dez. de 2009.

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A Lei de Responsabilidade Fiscal segue a mesma estrutura lógica, reforçando


a idéia da existência de previsão orçamentária para realização de qualquer
tipo de despesa, não só quando tenham por objeto a criação, expansão ou
aperfeiçoamento da ação governamental, mas também quando consideradas
obrigatórias e de caráter continuado. O artigo 16 induz o conceito de adequação
orçamentária, assim entendida a despesa objeto de dotação específica e suficiente,
ou que esteja abrangida por crédito genérico, de forma que, somadas todas
as despesas da mesma espécie, realizadas e a realizar, previstas no programa
de trabalho, não sejam ultrapassados os limites estabelecidos para o exercício.
No caso da despesa obrigatória de caráter continuado referida no artigo 17,
além dos requisitos previstos no artigo 16, faz-se necessário comprovar a
origem dos recursos para o seu custeio, ou seja, que a nova despesa gerada
poderá ser suportada nos exercícios subseqüentes em que subsistir a respectiva
obrigação de pagamento, pelo aumento de receita ou pela redução permanente
de despesa.7

E conclui seu raciocínio dizendo que:


o efeito mandatório da previsão de gasto contida no orçamento público ocorre
excepcionalmente em relação às dotações para pagamento de precatórios
judiciais, conforme disposto no artigo 100 da Constituição Federal.8

2.2 Execução orçamentária

Após a apresentação do conceito de orçamento e os diversos enfoques sobre


a sua natureza jurídica, pode-se dizer que os atos que estão compreendidos na exe-
cução orçamentária são: de um lado, todos os atos praticados durante as três fases
ou estágios da execução da receita (lançamento, arrecadação e recolhimento) e, de
outro lado, todos os atos referentes às três fases ou estágios da execução (realização)
da despesa (empenho, liquidação e pagamento). Anualmente, ao final dos exercícios,
é editado um decreto de encerramento orçamentário e, no início de cada exercício,
um decreto de execução orçamentária. Eles regulamentam os procedimentos de en-
cerramento e execução, datas e prazos para a realização dos atos necessários à gestão
orçamentária.
A Lei no 4.320, de 17 de março de 1964 utiliza-se de dois regimes jurídico-
-contábeis denominados regime de caixa e regime de competência para identificar a
qual exercício financeiro pertence cada receita e cada despesa. Em verdade, diz-se

7
PINTO Jr, Mário Engler. Desafios para Adoção do Orçamento Impositivo. In: Revista da Procuradoria da
Procuradoria Geral do Estado. São Paulo: nº 61/62, p. 79/80, jan/dez. 2005.
8
Ibidem, p. 80.

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que o regime adotado no Brasil é um regime misto, pois vale o regime de caixa para
as receitas e o de competência para as despesas.
Assim, nas palavras de Afonso Gomes Aguiar, “[...] pertence ao exercício finan-
ceiro a receita nele arrecadada, não se levando em consideração a época, o exercício em que
ela se gerou, mas sim a data de sua efetiva arrecadação.”9 Já a despesa, por conta de seu
regime de competência, pertence ao exercício em que foi empenhada, não importan-
do a data de seu pagamento, mas o exercício em que foi criada.

2.3 Despesas públicas

Para este trabalho, interessam, basicamente, as despesas.


Sabe-se que as despesas públicas possuem, na doutrina, várias classificações.
Não será necessário comentar sobre cada uma delas, porquanto a opção aqui feita foi
pela classificação dada pela Lei no 4.320, de 17 de março de 1964.
Segundo referida Lei, a despesa pública subdivide-se em despesas correntes e
despesas de capital. Estas últimas são aquelas que têm como contrapartida o ingresso
de um bem de capital, ou seja, há aumento do patrimônio na proporção do que foi
gasto. Já as despesas correntes são aquelas realizadas na manutenção dos órgãos para
a prestação dos serviços públicos.
Dentro destas chamadas correntes, por sua vez, subdividem-se as despesas
de custeio, aquelas que têm como objetivo manter o aparelhamento administrativo
no serviço prestado à coletividade (material de consumo, despesas de pessoal, con-
tratação de serviços, etc.), bem como as transferências correntes, que são as dotações
transferidas de uma entidade de direito público a outra, com o objetivo de auxiliar
esta última na manutenção de seus respectivos órgãos, ou seja, para atender às despe-
sas correntes desta (entram aqui as subvenções e as contribuições).
Importante observar que toda despesa pública depende de autorização legal
e de ato do administrador autorizando a sua realização. É o que dispõe o artigo 15 da
Lei de Responsabilidade Fiscal, quando descreve quais são as despesas consideradas
autorizadas, regulares e não lesivas ao patrimônio público.
E, mais uma vez fechando o leque temático, vamos nos circunscrever à sub-
divisão “despesas de custeio”.
São três os atos constitutivos do procedimento administrativo denominado
realização da despesa pública: o empenho, a liquidação e o pagamento.
E o que é que se entende por empenho de despesa?

9
AGUIAR, Afonso Gomes de. Lei de Responsabilidade Fiscal – Questões Práticas. 2.ed., Belo Horizonte:
Fórum, 2006, p. 67.

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Diz o artigo 58, da Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, que empenho “é


o ato emanado da autoridade competente que cria para o Estado a obrigação de pagamento
pendente ou não de implemento de condição”. Ou seja, é espécie de ato jurídico e, como tal,
pressupõe-se que tenha sido editado por agente capaz (quem esteja legalmente instalado
nas funções de ordenador de despesa, na forma do artigo 80, § 1º, do Decreto-lei no 200,
de 25 de fevereiro de 1967); tratando de objeto lícito (obrigação contraída decorrente de
situação amparada por lei), obedecendo à forma prescrita ou não defesa em lei (forma es-
crita) e criando, assim, direitos e obrigações para as partes envolvidas (natureza bilateral).
Entre o empenho da despesa e o seu efetivo pagamento há, como se viu, o
ato da liquidação da despesa, que é o estágio da realização da despesa que tem como
objetivo apurar se o contratado cumpriu totalmente sua obrigação.
Assim, se empenho é o ato da autoridade administrativa que cria a obrigação
financeira para ser paga, liquidação é a verificação, a constatação na forma da lei de
que o material foi entregue ou que o serviço foi devidamente prestado e que, por-
tanto, pode-se atestar o quanto deve ser pago e para quem deve ser pago. Por fim,
o terceiro estágio do procedimento que é o pagamento propriamente dito, ou seja, a
extinção da obrigação por parte da Administração.
Somente, portanto, quando concretizados os três atos constitutivos da realiza-
ção da despesa pública é que se pode chamar um gasto público de despesa realizada.
E mais, pelo que se depreende das regras financeiras aqui analisadas, ao
menos em tese, deve a Administração Pública não somente empenhar, mas também
liquidar e pagar a despesa dentro do respectivo exercício financeiro, ou seja, até o dia
31 de dezembro de cada ano. É o que ensina Afonso Gomes de Aguiar.10
A regra é, portanto, a de que o pagamento se dê no mesmo exercício em que
a despesa foi empenhada. Porém, por vezes pode ocorrer de uma despesa empenhada
não vir a ser paga até 31 de dezembro. O valor do débito do Poder Público, neste
caso, será lançado (inscrito), com a devida motivação, em uma conta especial chama-
da “Restos a Pagar”, para ser a obrigação (pagamento) extinta no exercício seguinte.
Mais uma vez recorrendo às lições de Afonso Gomes de Aguiar:
Saiba-se, pois, que o arrolamento de débitos financeiros decorrentes de despesa
empenhada e não paga até o final do exercício, na conta Restos a Pagar, é
um artifício que a legislação criou como solução de pagamento para aqueles
gastos que, excepcionalmente, não foram pagos dentro do exercício de sua
competência. É, assim, uma forma de excepcionalidade encontrada pela lei
para dotar a Administração Pública de mecanismo necessário a solucionar
questões dessa natureza.11

10
AGUIAR, Afonso Gomes de. Lei de Responsabilidade Fiscal – Questões Práticas. 2.ed., Belo Horizonte:
Fórum, 2006, p. 213.
11
Idem.

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 353

E o exame desse ponto, “Restos a Pagar”, enquanto exceção à regra do paga-


mento ter que ocorrer no mesmo exercício em que a despesa foi empenhada, apresen-
ta-se como imprescindível para o prosseguimento e conclusão deste trabalho.

3. DOS RESTOS A PAGAR

Conforme já mencionado, Restos a Pagar é a denominação de uma conta espe-


cial onde são arrolados débitos financeiros decorrentes de despesa empenhada e não paga
até o último dia do exercício.
Utilizando, mais uma vez, as palavras de Afonso Gomes Aguiar12, esta conta es-
pecial “[...] é um artifício que a legislação criou como solução de pagamento para aqueles gastos
que, excepcionalmente, não foram pagos dentro do exercício de sua competência”.
Dentre os Restos a Pagar, distinguem-se os processados (ou liquidados), dos não
processados (ou não liquidados). Os processados são aqueles em que já houve o recebi-
mento do material, da obra ou do serviço (e ainda que estes venham a se consumar após o
encerramento do exercício de origem da obrigação), mas o pagamento é transferido, justi-
ficadamente, para o exercício seguinte. Já os não processados são aqueles provenientes da
despesa simplesmente empenhada, em que o fornecedor do órgão público não entregou
a mercadoria, nem forneceu o serviço, ou seja, caso em que não houve liquidação. Nesta
segunda hipótese, há quem sustente que poderia e deveria a Administração cancelar o
empenho, uma vez que não há direito líquido e certo do credor ao recebimento.
Mas fato é que a Lei no 4.320, de 17 de março de 1964 expressamente alberga
estas duas situações, ao conceituar Restos a Pagar como despesas legalmente empenhadas
e não pagas até o final do exercício, distinguindo-as ainda entre processadas e não proces-
sadas, ou seja, conforme estejam, ou não, liquidadas.
“Tal distinção faz com que o administrador público dê prioridade ao pagamento de Res-
tos a Pagar relativamente às despesas processadas no exercício anterior.”13, pois se pressupõe
que se tratem de empenhos de contratos que se encontram em execução, não existindo,
ainda, o direito líquido e certo do credor.
Importante, todavia, realçar que em ambos os casos a despesa tem que ter sido
legalmente empenhada. Despesa legalmente empenhada é aquela que “... para sua realiza-
ção, existe no momento do empenho da despesa, não só a autorização do crédito orçamentário

12
AGUIAR, Afonso Gomes. Lei de Responsabilidade Fiscal. Questões Práticas. 2. ed., Belo Horizonte: Fó-
rum, 2006, p. 213.
13
CRUZ, Flávio da (Coord). Comentários à Lei nº 4.320 – Normas Gerais de Direito Financeiro – Orçamentos
e Balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 75.

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354 Vera Wolff Bava Moreira

com saldo suficiente para atendê-la, como, também, a existência dos recursos financeiros, e
em montantes suficientes para saldá-la”.14
Anteriormente à edição da Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, não se
exigia a efetiva disponibilidade financeira para a realização de despesas.
É o que nos conta Afonso Gomes Aguiar:
Porém, corrigindo erro do passado, quando aquela legislação submetia o em-
penho de despesa apenas à existência da autorização de crédito orçamentário,
com saldo suficiente para atendê-la, sem, contudo, esboçar o menor cuidado
com a existência das disponibilidades financeiras correspondentes, a Lei nº
4.320/64 instituiu uma programação financeira, impondo, ao Poder Executi-
vo, a obrigação de aprovar um quadro de quotas trimestrais para as despesas
que cada unidade orçamentária fica autorizada a utilizar, com a finalidade de
assegurar a estas, no momento certo, a soma das disponibilidades financeiras
suficientes à execução dos seus programas, e de manter, dentro da medida do
possível, o equilíbrio entre a despesa de fato realizada e a receita efetivamente
arrecadada. (arts. 47/50).
A partir de 1º de janeiro de 1965, data em que a Lei nº 4.320/64 entrou em
vigor, só se poderia empenhar qualquer despesa, se as correspondentes dispo-
nibilidades financeiras já se encontrassem depositadas na conta bancária aberta
em nome de cada unidade administrativa ou unidade orçamentária, à sua in-
teira disposição e obedecidos os limites destes depósitos.[...] O certo é que, se
tivessem as Administrações Públicas aplicado corretamente as disposições da
lei em referência, nunca se teria realizado o arrolamento, como Restos a Pagar,
de despesas que não contassem com suas respectivas disponibilidades finan-
ceiras, em Caixa, desde o momento de sua criação, em montantes necessários
aos seus pagamentos, em razão do que, não se teria, também, a dívida pública
que se tem na atualidade.15

Em uma interpretação literal, portanto, do regramento atualmente em vi-


gor “[...] a inscrição de débitos em restos a pagar só é possível legalmente, em qualquer
época e exercício, quando comprovada a existência de disponibilidade financeira.”16
A inscrição em Restos a Pagar, sem atender a tais requisitos, é geradora de
dívida pública e desequilíbrio de contas, daí o porquê do cuidado que hoje tanto o
legislador (ao aprovar as leis), quanto o administrador (ao sancioná-las e, depois,
ao aplicá-las) tomam em relação ao assunto.

14
AGUIAR, Afonso Gomes de. Lei de Responsabilidade Fiscal – Questões Prática. 2.ed., Belo Horizonte:
Fórum, 2006, p. 219.
15
Ibidem, p. 216 a 218.
16
Ibidem, p. 209.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 355

Ao ver de Afonso Gomes de Aguiar, entretanto, a Lei no 4.320, de 17 de mar-


ço de 1964, até hoje, continua sendo mal compreendida e incorretamente aplicada.
Continuaram as Administrações Públicas a empenhar suas despesas funda-
mentadas, apenas, na existência das autorizações de créditos orçamentários,
com saldos suficientes para atendê-las. Com isso, deu-se continuidade à re-
alização de despesas sem a efetiva existência dos recursos financeiros ne-
cessários aos seus pagamentos, bem como depois de encerrado o exercício
financeiro, o arrolamento dessas despesas como Restos a Pagar.17

Com efeito, o artigo 41 da LRF, que tratava diretamente dos Restos a Pagar,
foi vetado. Porém, não obstante o veto, permaneceu intacta a previsão a seu respei-
to no Relatório de Gestão Fiscal (artigo 55, inciso III, da LFR) que deve ser emitido,
ao final de cada quadrimestre, pelos titulares dos Poderes e órgãos referidos no
artigo 20, do mesmo Diploma Legal.
Em tal Relatório, deverão constar as despesas inscritas em Restos a Pagar:
tanto as empenhadas e liquidadas, quanto as empenhadas e não liquidadas (e aqui
se faz referência ao artigo 41, inciso II), as empenhadas e não liquidadas inscritas
até o limite do saldo da disponibilidade de caixa e, finalmente, as não inscritas por
falta de disponibilidade de caixa e cujos empenhos foram cancelados.
Ou seja, na prática, vê-se que continuam a ser realizadas inscrições em
Restos a Pagar de despesas empenhadas com fundamento apenas na existência
de créditos orçamentários com saldos suficientes para atendê-las, mas sem a efe-
tiva existência de recursos financeiros necessários ao pagamento. Tanto é assim,
que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal prevê a hipótese no artigo 55 acima
mencionado.
Desde a entrada em vigor da Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, toda-
via, como já explicado, não mais deveria ser assim.
As razões do veto presidencial ao artigo 41 da Lei de Responsabilidade
Fiscal concentraram-se justamente no fato de que ele, não obstante cuidar de
medidas voltadas a conter o endividamento público, permitiria a inscrição de
despesas sem condicioná-las à existência de recursos em caixa, prática que, nos
termos da justificativa contida no próprio veto, fere o princípio do equilíbrio fis-
cal, cria transtornos para a execução do orçamento e, em última análise, ocasiona
crescimento da dívida pública.

17
Ibidem, p. 217.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


356 Vera Wolff Bava Moreira

A seguir, transcrever-se-á dispositivo vetado, de modo a melhor esclarecer


o que até aqui foi comentado e considerado:
Seção VI
Dos Restos a Pagar
Art. 41. (VETADO) Observados os limites globais de empenho e movimentação
financeira, serão inscritas em Restos a Pagar:
I – (VETADO) as despesas legalmente empenhadas e liquidadas, mas não pagas
no exercício;
II – (VETADO) as despesas empenhadas e não liquidadas que correspondam a
compromissos efetivamente assumidos em virtude de:
a) (VETADO) normas legais e contratos administrativos;
b) (VETADO) convênio, ajuste, acordo ou congênere, com outro ente da Fede-
ração, já assinado, publicado e em andamento.
§ 1º (VETADO) Considera-se em andamento o convênio, ajuste, acordo ou
congênere cujo objeto esteja sendo alcançado no todo ou em parte.
§ 2º (VETADO) Após deduzido de suas disponibilidades de caixa o montante
das inscrições realizadas na forma dos incisos I e II deste artigo, o Poder ou
órgão referidos no art. 20 poderá inscrever as demais despesas empenhadas,
até o limite do saldo remanescente.
§ 3º (VETADO) Os empenhos não liquidados e não inscritos serão cancelados.

Houve o veto deste dispositivo, mas permanecem plenamente vigentes,


cuidando dos Restos a Pagar, os conceitos, regras e critérios estabelecidos pela Lei
no 4.320, de 17 de março de 1964. Persistiu, outrossim, o artigo 42, da Lei de
Responsabilidade Fiscal, a respeito do qual se tratará mais adiante. Por meio dele,
enfatiza-se a idéia que já vem prescrita em lei, como se viu, desde 1965, de que
só se pode deixar pendente para o exercício subsequente, a despesa que puder ser
efetivamente saldada, ou seja, para a qual houver disponibilidade de caixa, não
bastando a previsão orçamentária.
É verdade que o artigo 42 cuida apenas da limitação de gastos a serem fei-
tos nos últimos oito meses do último exercício dos mandatos eletivos. Todavia, ao
menos teoricamente (já que na prática, como demonstrado, nem sempre a regra é
rigidamente seguida), conclui-se pelas informações já trazidas que o mandamento
vale para todos os exercícios financeiros, até porque a inscrição de despesas em
Restos a Pagar pressupõe que estas tenham sido legalmente empenhadas e, por
legalmente empenhada entende-se a despesa para a qual haja simultaneamente o
“orçamentário” e o “financeiro”.
Uma coisa, portanto, é a autorização do crédito orçamentário com saldo
suficiente para atender a despesa (vulgarmente chamado de “orçamentário”), outra,

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 357

bem distinta, é a existência de recursos financeiros em montantes suficientes para


saldá-la (“financeiro”).
E é interpretação dominante nos Tribunais de Contas Estaduais a impossi-
bilidade do cancelamento de empenhos ou de valores inscritos em Restos a Pagar
relativos a despesas liquidadas, salvo se cancelada também a obrigação correspon-
dente junto ao credor, por devolução de materiais em virtude de desconformidade,
ou outro caso que se assemelhe.
Mas há também aqueles doutrinadores que entendem que o cancelamento
de empenhos não caracteriza anulação, tratando-se apenas de ajuste orçamentário no
qual, “[...] ao ser evitada a inscrição em Restos a Pagar, os valores forçosamente comprome-
terão o orçamento (já aprovado) do exercício seguinte, à medida que serão reempenhados
conforme disponibilidade de caixa.”18 .
Na verdade, por este prisma, valores não inscritos em Restos a Pagar, ou
cancelados, correspondentes ao exercício anterior, acabam por comprometer o orça-
mento do próximo exercício, na medida em que reempenhados na rubrica “despesas
de exercícios anteriores”.
Em suma, o que se observa na Administração Pública é que os gestores bus-
cam efetivamente cumprir os dispositivos da LRF relacionados com o controle orça-
mentário e financeiro, até por que estão submetidos aos órgãos de controle interno
(auditorias internas, por exemplo) e externo (dos Tribunais de Contas) e a fiscalização
é hoje muito mais apurada. Todavia, neste esforço de pleno cumprimento de regras,
muitas vezes se deparam com dificuldades na conciliação entre estas e as efetivas
necessidades da sua respectiva unidade de despesa.
Assim, pergunta-se: será que a teoria imposta pela Lei de Responsabilidade
Fiscal, na situação, corresponde exatamente à realidade do dia a dia da Administração
Pública?
Talvez, por se cuidar de uma norma de conduta para a Administração Públi-
ca, as regras impostas aos gestores sejam mais rígidas mesmo, engessando, por vezes,
a atividade administrativa. Porém, a Lei de Responsabilidade Fiscal não pode ser in-
terpretada sozinha. Referido Diploma tem que ser interpretado em conjunto com as
outras leis financeiras pertinentes, a fim de que as situações aqui enfocadas tenham
um melhor equacionamento. Vista assim isoladamente, portanto, a Lei de Responsa-
bilidade Fiscal não consegue trazer maiores luzes para a solução dos problemas aqui
colocados.
O tópico a seguir, destarte, visa demonstrar de que forma a interpreta-
ção sistemática e teleológica das normas financeiras pode auxiliar na tarefa. Elas

18
CRUZ, Flávio (Coord.). Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 170.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


358 Vera Wolff Bava Moreira

ampliam bastante as alternativas de raciocínio nas situações concretas de conflito


aqui apresentadas.
Antes, porém, de partir para as tentativas de conciliação destas situações com
as regras postas em nosso ordenamento jurídico, é necessário um maior aprofunda-
mento da exposição das demais normas jurídicas relativas ao assunto.
Somente assim será justo e eficaz o confronto entre a prática (situações con-
cretas) e a teoria (normas jurídicas que regulam a atividade administrativa).

4. A LEI FEDERAL no 4.320/64: OS DECRETOS DE EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA E


FINANCEIRA E AS LEIS ESTADUAIS PAULISTAS no 10.320/68 E no 13.578/09

4.1. A Lei Federal no 4.320, de 17 de março de 1964

De acordo com o inciso I, do § 9º do art. 165, da Constituição Federal,


a lei complementar deverá dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os
prazos, a elaboração e a organização do Plano Plurianual, da Lei de Diretrizes
Orçamentárias e da Lei Orçamentária Anual.
Pode-se dizer que, na falta da edição de tal “lei complementar”, a Lei fe-
deral no 4.320, de 17 de março de 1964, embora ordinária e anterior à Constitui-
ção de 1988, foi recepcionada por esta última como lei complementar, porque de
conteúdo complementar, ou seja, formalmente ordinária, porém materialmente
complementar.
O mesmo ocorreu com outros diplomas legais como, por exemplo, o
Código Tributário Nacional, que nascido como uma lei ordinária quando do ad-
vento da Carta Constitucional de 1988, foi recepcionado como lei complementar,
porque materialmente complementar.
Pois bem, esta Lei “complementar” no 4.320, de 17 de março de 1964
estabelece, em cumprimento aos referidos dispositivos constitucionais, normas
gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balan-
ços. Cuida-se de lei federal de abrangência nacional, sendo, por óbvio, de cum-
primento obrigatório por todos os entes federativos.
Já foram mencionados aqui alguns conceitos muito importantes que esta
Lei traz, mas cumpre agora mostrar a importância de seus comandos para melhor
estudo e compreensão do tema aqui tratado.
No dizer do Professor Regis Fernandes de Oliveira, “a decisão de gas-
tar é, fundamentalmente, uma decisão política”19. E completa seu raciocínio com a

19
OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008, p. 252.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 359

seguinte lição, que parte do pressuposto de que as escolhas e decisões tomadas


pelos agentes políticos para a elaboração do plano de gastos passam pela correta
forma de colocar esses planos em prática, chegando, por fim, à própria realização
das despesas:
O administrador elabora um plano de ação, descreve-o no orçamento,
aponta os meios disponíveis para o seu atendimento e efetua o gasto. A
decisão política já vem inserta no documento solene de previsão de despesas.
Dependendo das convicções políticas, religiosas, sociais, ideológicas, o
governante elabora seu plano de gastos. Daí a variação que pode existir de
governo para governo, inclusive diante das necessidades emergentes. As
opções podem variar: hospital, posto de puericultura, escolas, rodovias,
aquisição de veículos, contratação de pessoal, etc.
Uma vez estabelecidas as prioridades, mediante autorização legislativa
(aprovação da lei orçamentária ou de créditos especiais e complementares),
opera-se a despesa (saída de dinheiro) pelas formas estabelecidas em lei e
que serão adiante analisadas. [...] Ao lado da autorização legislativa, torna-se
imprescindível que o Estado realize suas obras, serviços e compras mediante
licitação. [...] Evidente está que há certas despesas que dispensam a licitação.
A própria lei dispõe sobre as causas de exclusão (impossibilidade da licitação)
e de dispensa (hipótese de desnecessidade). [...] Além de tais exigências, todas
as despesas devem estar devidamente documentadas. Toda despesa, além de
prevista, deve estar empenhada. De acordo com o art. 58 da Lei no 4.320/64,
‘o empenho de despesa é o ato emanado de autoridade competente que cria
para o Estado a obrigação de pagamento pendente ou não de implemento
de condição.’ O art. 60, caput, da mesma Lei estabelece taxativamente que ‘é
vedada a realização de despesa sem prévio empenho’.20

De tudo se depreende, portanto, que nenhuma despesa pode ser efetuada


sem prévia autorização legislativa (aprovação do orçamento formal), sem uma decisão
política (autorização), sem licitação (ou sua exclusão, devidamente justificada) e sem
a devida documentação (formalização em processo administrativo).
A propósito da ideia das atribuições/responsabilidades de cada “protagonis-
ta” envolvido na atividade contratual da Administração Pública, sob o ponto de vista
financeiro e orçamentário, segue abaixo trecho de Parecer subscrito pela Procuradora
do Estado Ana Maria Oliveira de Toledo Rinaldi:
A meu ver, é obrigação da autoridade responsável pela elaboração da proposta
orçamentária que sai da Secretaria encaminhar previsão de recursos para
suportar os ajustes firmados, mas não tem obrigação o Chefe do Executivo de
simplesmente submeter-se a tal proposta, nem o Legislativo de simplesmente
referendá-la. De todo modo, a lei exige ‘previsão’ ou ‘indicação’ de recursos

20
Ibidem, p. 252 e 253.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


360 Vera Wolff Bava Moreira

e não ‘provisão’, de modo que não há necessidade de estarem tais recursos


disponíveis nos cofres públicos, bastando que estejam previstos no orçamento.21

Por isso é que a própria autora completa, em trecho posterior do mesmo


Parecer, que:
Ademais, com a abertura de propostas em procedimento licitatório mesmo
recursos orçamentários reservados podem revelar-se insuficientes, ou o
financeiro pode não se concretizar; se ocorrer a primeira hipótese, deverão ser
complementados pelo saldo de dotação orçamentária ou pela abertura de crédito
adicional suplementar (artigo 41, I, L. no 4.320/1964), antes da formalização do
contrato; já se houver suporte financeiro, numa situação de crise de arrecadação
e não realização da receita, as despesas deverão ser cortadas.22

Fato é que a Lei no 4.320, de 17 de março de 1964 apresenta-se como o


diploma legal que dispõe sobre o exercício financeiro, dizendo que ele coincidirá
com o ano civil, a saber, iniciando-se no dia 1º de janeiro e terminando no dia 31 de
dezembro (artigo 34).
Em seu dispositivo seguinte, ou seja, no artigo 35, está escrito que pertencem
ao exercício financeiro, além das receitas nele arrecadadas, as despesas nele legal-
mente empenhadas. Assim sendo, mesmo as despesas inscritas em Restos a Pagar
pertencem ao exercício em que se originou o empenho.
Os artigos 36 e 37 são justamente os que tratam dos Restos a Pagar e das
despesas de exercícios encerrados, estas últimas também conhecidas como despesas
de “exercício findo” ou de “exercícios anteriores”.
A respeito dessas despesas de exercícios anteriores, há esclarecimentos e con-
ceitos importantes de Flávio da Cruz:
Vamos aos conceitos e/ou expressões de ordem técnica:
– exercício encerrado – ano(s) passado(s);
– consignava crédito próprio – tinha recurso explícito para atender à finalidade
referenciada;
– que não tenham se processado na época própria – que não tenham sido em-
penhados dentro do prazo a que se referem;
– restos a pagar com prescrição interrompida – a prescrição significa que restos
a pagar perderam a validade e, conseqüentemente, interromper a perda de
validade da prescrição é reativar a obrigação de pagar;

21
SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Procuradoria Administrativa. Parecer PA 212/2007. Rela-
tora: Ana Maria de Oliveira Toledo Rinaldi. 06 set. 2007.
22
SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Procuradoria Administrativa. Parecer PA 212/2007. Rela-
tora: Ana Maria de Oliveira Toledo Rinaldi. 06 set. 2007.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 361

– discriminada por elementos – significa classificada no nível de elementos (na


forma exigida pelo art. 15), conforme codificação estabelecida pelo Anexo 4
da Lei nº 4.320/64;
– ordem cronológica – significa que aquele fornecedor de material/prestador de
serviço com a conta mais antiga deve receber primeiro.23

Tais despesas, por expressa autorização do artigo 37 da Lei, poderão ser


pagas à conta de dotação específica consignada no orçamento, discriminada por ele-
mentos que, nos termos do parágrafo 1º, do artigo 15, do mesmo Diploma Legal, são
os desdobramentos “[...] da despesa com pessoal, material, serviços, obras e outros meios
de que se serve a administração pública para a consecução dos seus fins”.
A propósito, cabe aqui uma referência aos decretos que estabelecem normas
relativas ao encerramento da execução orçamentária e financeira de cada ente político,
que são editados todo final de ano, por volta do dia 20 de dezembro, considerando,
justamente, as providências que devem ser tomadas, de maneira uniforme e naquela
época do ano, por todos os respectivos órgãos e entidades da Administração Direta e
Indireta de cada ente federativo e em atendimento às normas contidas na Lei no 4.320,
de 17 de março de 1964 e a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000.
Ano findo, um outro decreto é sempre publicado, desta feita no mês de ja-
neiro, para estabelecer normas de execução orçamentária para o exercício financeiro
que se inicia.

4.2 Decretos Paulistas de Encerramento da Execução Financeira e Orçamentária

Importam, realmente, para este estudo, os decretos de encerramento da exe-


cução orçamentária e financeira.
Para melhor análise, tomar-se-á o exemplo paulista, que é o mais próximo.
Analisando os textos de todos os Decretos Paulistas de encerramento da exe-
cução orçamentária, desde o exercício de 2001 até o de 2008 e, portanto, conside-
rados os posteriores ao advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, verifica-se que
seus textos são, como um todo, muito semelhantes, diferenciando-se basicamente nas
orientações para os chamados Restos a Pagar.
Nos Decretos nº 46.407, de 20 de dezembro de 2001; nº 47.473, de 18 de
dezembro de 2002, nº 48.345, de 22 de dezembro de 2003 e nº 49.261, de 17 de
dezembro de 2004, a redação dos artigos 2º era assim: “As licitações, à conta de recursos
do orçamento vigente, fixarão prazos de entrega do material ou da prestação de serviços,

23
CRUZ, Flávio da (Coord). Comentários à Lei nº 4.320 – Normas Gerais de Direito Financeiro – Orçamentos
e Balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 76.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


362 Vera Wolff Bava Moreira

limitados a 31 de dezembro, aplicando-se também aos casos de dispensa e inexigibilidade


de licitação”.
Já a partir de 2005, nos Decretos nº 50.342, de 12 de dezembro de 2005,
nº 51.370, de 14 de dezembro de 2006, nº 52.480, de 17 de dezembro de 2007, nº
53.876, de 23 de dezembro de 2008 e nº 55.208, de 18 de dezembro de 2009, a
redação do mesmo dispositivo passou a ser mais enxuta, estabelecendo que “os com-
promissos decorrentes de licitações, à conta de recursos do orçamento vigente, deverão estar
legalmente empenhados até 31 de dezembro [...]” do exercício respectivo.
As grandes modificações ocorridas, entretanto, concentram-se na seção III,
“Dos Restos a Pagar”. E neste caso, as novidades começaram a aparecer no Decreto
do ano de 2004.
Os primeiros dispositivos que cuidam dos Restos a Pagar permaneceram
praticamente com a mesma redação ao longo de todos os anos analisados. Porém, a
partir de 2005, foi inserida a justificativa de estarem eles adequados ao artigo 30, da
Lei estadual no 10.320, de 16 de dezembro de 1968 (que dispõe sobre os sistemas de
controle interno da gestão financeira e orçamentária do Estado e da qual se cuidará
mais adiante). Já os demais dispositivos que versam sobre o tema “restos a pagar”
foram bastante alterados, como se verá a seguir.
A seção III de todos os decretos estudados começa assim: “As despesas do
exercício financeiro pendentes de pagamento serão inscritas como restos a pagar proces-
sados ou não processados, conforme estejam, respectivamente, liquidadas ou não.” E em
complemento, dispõe: “A inscrição como restos a pagar não processados deverá ser devi-
damente justificada pelas Unidades Gestoras Executoras – UGEs, ficando restrita aos em-
penhos não liquidados referentes a compras e serviços essenciais, necessários à manutenção
da administração.”
A partir do Decreto de 2005, houve apenas a inserção do artigo 30 da Lei
no 10.320, de 16 de dezembro de 1968 apontado acima, em substituição à frase “[...]
conforme estejam, respectivamente, liquidadas ou não”.
Todavia, com relação à baixa (cancelamento) dos compromissos do exercí-
cio, inscritos em Restos a Pagar não processados, bem como daqueles prescritos nos
termos do artigo 33 da Lei estadual 10.320, de 16 de dezembro de 1968, a ser feita
pela Contadoria Geral do Estado e com a finalidade de reverter tais valores à conta
da receita do Estado, houve alteração a partir de 2005, especialmente no tocante à
ocasião em que isto ocorrerá.
De 2001 até 2003, os regulamentos previram que os Restos a Pagar não pro-
cessados seriam cancelados em 31 de março do ano seguinte. A partir de 2004, no
entanto, passaram a sê-lo por ocasião do levantamento do Balanço do ano respectivo
e, a partir de 2006, o tempo fixado “encurtou” para 31 de janeiro, voltando a ser em
31 de março em 2007.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 363

A situação somente ficou mais “aliviada” para os gestores a partir do Decreto


de 2008, que estabeleceu que “os Restos a Pagar inscritos em 2008 terão validade até 31
de dezembro de 2009, inclusive para efeito da comprovação dos limites constitucionais de
aplicação de recursos nas áreas do ensino e da saúde”. A mesma situação veio a se repetir
agora, no Decreto de 2009.
Ao que parece, portanto, foi flexibilizada, sob o ponto de vista prático, a for-
ma com o que o gestor deverá lidar com as despesas inscritas em Restos a Pagar, sem
que isto signifique incorrer em ilegalidade.
A partir desse ano, qumentou bastante o tempo para a baixa/cancelamento
dos valores inscritos em Restos a Pagar, tanto processados, quanto não processados
e, a responsabilidade pelo cancelamento dos Restos a Pagar, cuja obrigação registrada
não guarde real conformidade com os respectivos compromissos, é atribuída às pró-
prias Unidades Gestoras Executoras (UGEs).
O fato de poder lidar com os sistemas (SIAFEM, SIAFÍSICO, SIGEO, etc.) de
forma mais flexibilizada, tendo mais prazo para administrar os chamados Restos a Pa-
gar ao longo de todo o exercício seguinte, possibilita ao gestor trabalhar melhor com
as exceções às regras. Na prática, portanto, como será demonstrado mais adiante, a
regulamentação paulista atual parece mais condizente com a realidade vivenciada nos
órgãos públicos.

4.3 A Lei estadual no 13.578, de 08 de julho de 2009

No caso do Decreto publicado em 2009, o parágrafo único do artigo que es-


tipula a validade dos Restos a Pagar em 31 de dezembro de 2010, traz consigo infor-
mações bastante relevantes. Segundo ele, as disposições do caput devem ser aplicadas
aos saldos de Restos a Pagar inscritos no exercício de 2008, respaldados “...na existên-
cia de disponibilidade financeira para sua cobertura, consoante previsto no parágrafo único
do artigo 35, da Lei nº 13.578, de 08 de julho de 2009.”
Referida Lei estadual é a Lei Paulista de Diretrizes Orçamentárias para o exer-
cício de 2010. E ela prevê no citado artigo 35, o seguinte:
Artigo 35 – As despesas empenhadas e não pagas até o final do exercício
serão inscritas em restos a pagar e terão validade até 31 de dezembro do ano
subseqüente, inclusive para efeito de comprovação dos limites constitucionais
de aplicação de recursos nas áreas da educação e da saúde.
Parágrafo Único – Decorrido o prazo de que trata o ‘caput’ deste artigo e
constatada, excepcionalmente, a necessidade de manutenção dos restos a pagar,
fica o Poder Executivo autorizado a prorrogar sua validade, condicionado à
existência de disponibilidade financeira para a sua cobertura.

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364 Vera Wolff Bava Moreira

Vê-se, principalmente com a redação do parágrafo único que se é admitida, em


caráter excepcional, a prorrogação da validade dos Restos a Pagar após decorrido todo
o ano subsequente ao de seu empenho e inscrição, com a condição de que haja dispo-
nibilidade financeira para a sua cobertura, isto é sinal de que o legislador sabe que há
situações de inscrição em Restos a Pagar de despesas para as quais não havia, à época do
empenho, disponibilidade financeira. Ou seja, mais uma vez se comprova o raciocínio
exposto no item deste trabalho destinado especificamente aos Restos a Pagar.
Importante comentar, ademais, que os referidos Decretos preveem que os
saldos de contas financeiras de Restos a Pagar cancelados são revertidos à receita
do Estado, ideia que conduz, outra vez, à Lei no 4.320, de 17 de março de 1964,
mais precisamente ao seu artigo 38, segundo o qual “reverte à dotação a importância
de despesa anulada no exercício; quando a anulação ocorrer após o encerramento deste,
considerar-se-á receita do ano em que se efetivar”.
Como se pode ver, além de se reportarem à Lei no 4.320, de 17 de março de
1964, esses Decretos Paulistas referem-se a dispositivos da Lei Estadual no 10.320,
de 16 de dezembro de 1968, sendo, assim, necessário comentar um pouco sobre esta
outra Lei também.

4.4 A Lei Estadual no 10.320, de 16 de dezembro de 1968

A Lei Estadual no 10.320, de 16 de dezembro de 1968 dispõe sobre os siste-


mas de controle interno da gestão financeira e orçamentária do Estado de São Paulo.
Nela se verificam vários dispositivos com o mesmo teor daqueles presentes
na Lei Federal no 4.320, de 17 de março de 1964, dentre estes, os relativos à reali-
zação de despesas, empenho, nota de empenho enquanto documento extraído do
próprio ato de empenhar, anulação de empenho, adiantamento, inscrição em Restos
a Pagar, controle interno e externo.
É também neste diploma que aparece a figura da auditoria permanente junto
à administração direta e indireta, a ser realizada pela Secretaria da Fazenda, para-
lelamente ao controle externo do Tribunal de Contas. E estão ali, ainda, vários dos
dispositivos constantes dos Decretos de Encerramento da Execução Orçamentária
acima analisados, especialmente aqueles que tratam da inscrição em Restos a Pagar.
Pela sua relevância para o presente estudo, desde logo serão transcritos abai-
xo o artigo 12, parágrafos 1º, 2º e 3º e artigo 35 do referido Diploma Legal paulista:
Artigo 12 – Dos contratos deverá constar, além de outros requisitos exigidos
por lei; [...]
1º – O contrato de execução plurianual, que não for integralmente atendível
pelo saldo da dotação onerada, poderá consignar, a juízo do Governador e ad-
ministrador ou dirigente de órgãos da administração indireta, que o restante de
suas obrigações correrá à conta de dotação orçamentária futura, contando que

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 365

a despesa respectiva se distribua em razoável proporção pelos vários exercícios


e dentro das limitações fixadas nos parágrafos seguintes.
§ 2º – Na hipótese do parágrafo anterior, deve o contrato estabelecer especifica-
mente o total das importâncias a serem pagas à conta de dotações de cada um
dos exercícios futuros. Para isso, quando se tratar de contrato de obras, devem
estas fixar-se em cronogramas; quando se tratar de outras contratações, inclusi-
ve de prestação de serviços, constará do ato respectivo o plano de despesa para
cada um dos exercícios onerados.
§ 3º – Tão logo se inicie cada exercício financeiro, deverão ser empenhadas as
importâncias que correrão à conta das respectivas dotações e destinadas ao pa-
gamento dos contratos anteriormente firmados e de que cogita o parágrafo 1º.
Artigo 35 – As despesas de exercícios encerrados para as quais o orçamento res-
pectivo consignava crédito próprio, com saldo suficiente para atendê-las, que
não se tenham processado na época própria, bem como os ‘Restos a Pagar’ com
prescrição interrompida e os compromissos reconhecidos após o encerramento
do exercício correspondente, poderão ser pagos à conta de dotação específica
consignada no orçamento, discriminada por elementos obedecida sempre que
possível, a ordem cronológica.

Como se vê, especialmente neste artigo 35, a Lei no 10.320, de 16 de dezem-


bro de 1968, já tinha como princípio o fato de ser possível o pagamento de despesas
de exercícios encerrados, nos subsequentes, assim como Restos a Pagar, condiciona-
dos à existência de crédito próprio com saldo suficiente para atendê-los.
O parágrafo 5º, do artigo 12, é também bastante relevante porquanto pre-
vê a possibilidade de antecipação de execução do contrato de execução plurianual,
havendo interesse por parte da Administração e desde que haja recursos adequados.
Exceções, portanto, à regra da realização das despesas dentro do exercício financeiro.
Importante consignar que todas as normas pertinentes foram expostas a fim
de que se pudesse fazer a mencionada interpretação sistemática da Lei de Responsa-
bilidade Fiscal, necessária para, enfim, expor as alternativas práticas para lidar com
as despesas da virada dos exercícios financeiros.

5. A TEORIA NA PRÁTICA

5.1 Jurisprudência

Para dar continuidade à abordagem da problemática apresentada de confron-


to entre a teoria imposta pelas normas e a prática ditada pela necessidade de suprir as
unidades administrativas, será apresentado a seguir um trecho de acórdão referencial
do Tribunal de Contas da União, datado de 2005, que trata de hipótese excepcional

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366 Vera Wolff Bava Moreira

de realização de despesas sem previsão orçamentária. Ele traz um raciocínio lógico e


prático, bem condizente com o espírito que se pretendeu empreender neste estudo,
da possibilidade de conciliação entre estes pólos aparentemente opostos (aqui cha-
mados “teoria x prática”):
O art. 167, inciso II, da Constituição Federal veda a realização de despesas ou
assunção de obrigações diretas que excedam créditos orçamentários ou adicio-
nais. Nada obstante, entendo que o aplicador do Direito não pode se ater à letra
fria da lei. Sempre defendo o brocardo que ‘o Direito foi feito para os homens
e não os homens foram feitos para o Direito’. Dessa maneira, entendo que o
art. 167, inciso II, assim como todos os demais dispositivos constitucionais e
legais, devem ser obedecidos em condições de normalidade. O mundo fático
não encontra real semelhança com o mundo jurídico. Dessa forma, a atuação
do homem, em alguns casos, deve ganhar contornos que não correspondem
a mens legis. O caput do artigo 5º da Constituição Federal assegura o direito
mais sagrado de todos os seres humanos: o direito à vida. Nada obstante, en-
contramos em nosso Código Penal uma série de excludente de ilicitude e de
culpabilidade quando este supremo direito é atingido. [...]
Acrescente-se que a própria vedação contida no art. 167, inciso II, da Consti-
tuição Federal foi relativizada no art. 57 da Lei no 8.666/1993, ao prever exce-
ções para vigência de contratos que não tenham previsão orçamentária.
Percebe-se que a Lei de Licitações e Contratos permitiu que fossem realiza-
das despesas, em alguns casos, mesmo sem a previsão orçamentária. Poder-
-se-ia questionar a constitucionalidade desse dispositivo caso se seguisse uma
interpretação literal da Carta Política. Contudo, o que pretendeu o art. 57 da
referida Lei foi assegurar a continuidade do serviço público, princípio macro
que deve ser sempre seguido pela Administração. Por analogia, entendo que
esta Corte de Contas, ao se defrontar com uma conduta em que o gestor tenha
descumprido um dispositivo constitucional ou legal, deve avaliar todas as cir-
cunstâncias que envolvam o caso concreto.
Não cumpre a esta Corte avalizar o descumprimento de dispositivo constitu-
cional, tampouco pode decidir pelo gestor. É inerente da função administrativa
tomar decisões que podem conflitar com o ordenamento jurídico. Uma possível
ilegalidade deve ser justificada no momento da prestação de contas ordinárias.
Para tanto, far-se-á necessário que o gestor inclua no seu relatório a motivação
de todas as medidas adotadas, tentando legitimar os seus atos, demonstrando
que agiu na busca de resguardar o interesse público e de defender o erário.24

24
TCU – Acórdão 1249/2005 – Plenário – Consulente: Presidência da CCSIVAN. Disponível em: <www.
tce.gov.br>. Acesso em: 21 out. 2009.

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 367

5.2. Doutrina

Há também opiniões colhidas na doutrina que bem demonstram os dilemas


enfrentados pelo gestor público para conduzir a realização das despesas e suprimento
do respectivo órgão, sem ferir o ordenamento jurídico. Aponta-se a propósito o pen-
samento de Sidney Bittencourt:
Asseveramos que a interpretação de um regramento estabelecido em um dispo-
sitivo deve ser realizada em consonância com os demais, constantes não só na
mesma norma, mas em todo o ordenamento jurídico, portando-se sempre, aí
sem exceção, nos princípios basilares que regem o direito.
Conseqüentemente, faz-se necessário um minucioso levantamento das regras
dispostas na Lei no 8.666/93 e outras normas, inclusive constitucionais, que, de
alguma forma, influenciam no rumo a ser tomado na apreciação do art. 57 que,
como já dito, trata, com exagerado rigor, da duração do contrato.
Vejamos, então:
a) os contratos têm sua vigência atrelada ao exercício do crédito orçamentá-
rio (caput do art. 57 Lei no 8.666/93). O exercício orçamentário (financeiro)
coincide com o ano civil, isto é, tem início em 1º de janeiro e término em 31
de dezembro (art. 34 da Lei nº 4.320/64). Tal período pode sofrer alterações
através de lei complementar (§ 9º, art. 165, da CF);
b) as obras e os serviços só podem ser licitados (e, obviamente, contratados)
quando houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o paga-
mento das obrigações decorrentes a serem executadas no exercício financei-
ro em curso (art. 7º, § 2º III, Lei no 8.666/93) ou quando o produto delas
esperado constar do elenco das metas estabelecidas no Plano Plurianual de
que trata o art. 165 da CF (inciso IV);
c) para que se iniciem as licitações de obras e serviços é obrigatória a elabora-
ção, também, de um orçamento detalhado em planilhas que expresse a compo-
sição de todos os custos unitários (art. 7º, § 2º, II, Lei no 8.666/93);
d) o art. 167 da Constituição Federal proíbe a instauração de programas ou
projetos que não estejam incluídos na lei orçamentaria;
e) nenhuma compra pode ser realizada sem a precisa indicação dos recursos
orçamentários para o seu pagamento, sob pena de nulidade do ato e respon-
sabilidade de quem lhe deu causa (art. 14, Lei no 8.666/93);
f) constitui-se como cláusula obrigatória em todos os contratos, a que es-
tabeleça o crédito pelo qual correrá a despesa, com a indicação funcional
programática e da categoria econômica.

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368 Vera Wolff Bava Moreira

g) a Lei no 8.666/93 veda a assinatura de contrato com prazo indeterminado


(§ 3º do art. 57)..25

Quem lida na prática com estas questões vê-se constantemente no dile-


ma entre existência de recursos, período de sua geração, regramento rígido e o
princípio da continuidade do serviço público. Mas é em virtude justamente deste
princípio que se pode vislumbrar certa quebra da rigidez da legislação pertinente.
Assim pensa Danilo Antonio Manhani:
O art. 35 encerra o princípio da competência para os registros contábeis de
receita e despesa públicas, criando um liame entre o recurso e o período
de sua geração, ao qual ele deverá ser escriturado a fim de preservar a
ordem da contabilidade pública, trazendo transparência em sua gestão e
previsibilidade financeira.
Esta divisão de competência, todavia, nem sempre é rigidamente observada,
pois pelo princípio da continuidade do serviço público, as obrigações não pagas
em um exercício podem ser transferidas para o próximo exercício financeiro.26
E também Sidney Bittencourt, ao comentar sobre o artigo 57, da Lei no 8.666,
de 21 de junho de 1993, em artigo sobre a duração dos contratos administrativos:
Por este texto legal, a duração dos contratos celebrados pela Administração
ficou rigorosamente adstrita a vigência dos respectivos créditos orçamentários,
ou seja, a princípio, os contratos celebrados pela Administração ficaram
limitados a ter duração anual, não obstante a possibilidade do ‘respectivo
crédito’ ser estendido ao exercício seguinte, adotando-se a providencial regra
dos ‘restos a pagar’, conforme permissivo legal disposto na Lei nº 4320, de 17
de março de 1964.
Os incisos I, II e IV tratam da necessária exceção à regra geral. Estas exceções são
fundamentais, não para manter acesa a chama do velho ditado, mas, sobretudo,
para que a Administração não ficasse ‘engessada’, impossibilitada de, com
base na teoria geral do contrato, alçar voos mais altos em termos contratuais,
celebrando acordos de longa duração para construção de rodovias, edifícios
públicos (hospitais, escolas, etc.) que, normalmente, não se completam em
apenas um ano, mesmo porque, na maioria das vezes, inexistem recursos que
suportem, num só período anual, obras desse porte.27

25
BITTENCOURT, Sidney. A questão da duração do contrato administrativo. Revista Diálogo Jurídico.
Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, ano I, nº 9, dezembro, 2001. Disponível em: <http://
www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 20 de out. 2009.
26
MANHANI, Danilo Antonio. Restos a pagar na Lei de Responsabilidade Fiscal. Jus Navigandi, Teresina:
ano 9, nº 542, 31 dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6145>.
Acesso em: 16 out. 2009.
27
BITTENCOURT, Sidney. A questão da duração do contrato administrativo. Revista Diálogo Jurídico.
Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, ano I, nº 9, dezembro, 2001. Disponível em: <http://
www.direitopublico.com.br>. Acesso em: 20 de out. 2009.

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 369

Na verdade, o art. 57 da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, em interpre-


tação sistemática com os dispositivos já apontados da Lei de Responsabilidade Fiscal,
traz consigo exceções àquelas mesmas regras. Senão, vejamos o que diz a respeito
Lucas Furtado Martins:
Em relação à segunda vedação, que impede que se contraia despesa que te-
nha parcelas a serem pagas no exercício seguinte, se houver disponibilidade
de caixa para esse exercício seguinte, a vedação da LRF deixa de existir. Essa
hipótese – em que se admite contrair despesa a ser paga no exercício seguinte
– deve ser examinada, contudo, em confronto com o que dispõe o art. 57, da
Lei nº 8.666/93. Nesse dispositivo, é estabelecido, como regra, que os con-
tratos deverão ter seus prazos de vigência limitados aos respectivos créditos
orçamentários, ressalvadas as hipóteses expressamente indicadas nos incisos do
caput do art. 57, da Lei de Licitações. Assim, somente para contratos relativos
a projetos contemplados no plano plurianual (art. 57, I), ou de prestação de
serviços contínuos (art. 57, II), ou se aluguel de equipamentos e de programas
de computador (art. 57, IV), ou ainda para os contatos regidos predominante-
mente pelo direito privado (art. 62, § 3º, I – todos da Lei nº 8.666/93), e desde
que haja disponibilidade de caixa para o exercício seguinte, a despesa poderá
ser contraída. Vemos, portanto, que as vedações da LRF, nesse tocante, devem
ser acrescidas àquelas já constantes na Lei de Licitações. Haja vista serem elas
cumulativas e não alternativas.28

São exceções expressamente contempladas por tal dispositivo: os contratos


relativos a projetos previstos no Plano Plurianual, os de prestação de serviços con-
tínuos, os de aluguel de equipamentos ou programas de informática e os regidos
predominantemente pelo Direito Privado (este último, conforme artigo 62, parágrafo
3º, inciso I, da Lei de Licitações).
Todavia, há ainda situações práticas para as quais a simples aplicação de tais
exceções não resolve, pois ali não se enquadram. É o que se verá a seguir, a partir de
uma exposição onde a situação problemática é descrita simultaneamente à proposi-
tura das soluções concretas.

5.3 Doutrina e situações concretas

É possível vislumbrar alternativas à rigidez das regras, sem deixar de


cumpri-las?
A resposta é afirmativa e as situações que serão citadas a seguir, são exemplos
destas hipóteses:

28
MARTINS, Lucas Furtado. Curso de Licitações e Contratos Administrativos. São Paulo: Atlas, 2001, p. 147
-148.

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370 Vera Wolff Bava Moreira

A terceira e última hipótese é a de compromissos reconhecidos após o encerra-


mento do exercício correspondente.
Neste caso, é necessário que a autoridade competente reconheça a despesa a
pagar, mesmo que não empenhada no exercício de origem, e admita a ocor-
rência, neste exercício, de sua contrapartida, que é o implemento da condição
exigida.
Uma ocorrência prática desta terceira possibilidade é a prestação de um serviço
contínuo, como provedor de internet à Administração, que, tendo disponibili-
zado o serviço em dezembro, portanto último mês de um exercício financeiro,
apenas cobrará do órgão público no início do próximo exercício. Tratando-se de
obrigação líquida e certa, o administrador deveria empenhá-la por estimativa e
incluí-la no item orçamentário ‘despesas contratadas/ conveniadas em execução’.
Não o fazendo, o gestor público a pagará com suplementação da dotação me-
diante inclusão nas ‘despesas de exercícios anteriores’, que contará com reserva
de contingência, cuja utilização obedecerá às normas da LDO, como previsto
na LRF.29

Flávio Cruz, no mesmo livro em que coordena os comentários de outros au-


tores a respeito da Lei no 4.320, de 17 de março de 1964, traz também um exemplo
prático bastante apropriado de despesa de um exercício paga no subsequente, na do-
tação Despesas de Exercícios Anteriores, o que muitas vezes ocorre por razões alheias
à vontade e às possibilidades do administrador. Senão, vejamos:
Despesa de exercício encerrado onde o orçamento respectivo consignava cré-
dito próprio
Despesa realizada em X1, com veículo oficial em viagem fora da sede que,
embora fosse contemplado com um adiantamento na ordem de R$500,00
(quinhentos reais), este se mostrou insuficiente para cobrir despesas com
conserto, em oficina mecânica, da ordem de R$1.200,00 (mil e duzentos reais).
No caso, a dotação própria era material de consumo (elemento 3120) que
apresentava, para a mesma atividade e unidade orçamentária movimentada, um
saldo disponível para empenhamento da ordem de R$ 3.000,00 (três mil reais).
Por motivo de retardamento do regresso da viagem e por problemas de ordem
meteorológica e meios de comunicação, o retorno do veículo ocorreu em X2,
quando já haviam sido processadas as despesas de X1. Para sanar o problema,
há necessidade de empenhar em X2 a referida despesa na dotação Despesas de
Exercícios Anteriores (R$700,00).30

29
MANHANI, Danilo Antonio. Restos a pagar na Lei de Responsabilidade Fiscal. Jus Navigandi. Teresina,
ano 9, nº 542, 31 dez. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6145>.
Acesso em: 16 out. de 2009.
30
CRUZ, Flávio da (Coord). Comentários à Lei nº 4.320 – Normas Gerais de Direito Financeiro – Orçamentos
e Balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2008, p. 78.

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 371

5.4 Orientação institucional da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo

Há poucos, porém profícuos pareceres proferidos por Procuradores da Pro-


curadoria Geral do Estado de São Paulo que abordam este tema. Neles são apontados,
senão soluções, caminhos para se lidar na prática com os impasses aqui demonstrados.
É o caso, por exemplo, do Parecer PA 212/2007, da lavra da Procuradora Ana
Maria de Oliveira Toledo Rinaldi e aprovado pelo Procurador Geral do Estado, onde
se faz uma análise bastante completa da duração dos contratos quando a sua vigência
ultrapassa o exercício financeiro:
Dentre as exceções que contempla a Lei no 8666/1993, é objeto de questiona-
mento a que trata de contratos relativos a projetos cujos produtos estejam con-
templados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual (PPA), os quais poderão
ser prorrogados se houver interesse da Administração e desde que isso tenha
sido previsto no ato convocatório (inciso I do citado artigo), comportando pre-
visão genérica de que o saldo de despesas correrá à conta de dotação própria nos
orçamentos futuros (artigo 12, § 1°, Lei estadual no 10.320, de 16.12.1968). A
inserção no plano plurianual faz presumir que determinada contratação retrata
uma avaliação meditada e planejada do Estado, com garantia de cautela adequa-
da para assumir encargo de longo prazo, e evita uma superposição da atividade
contratual da Administração às demais funções do Estado.
Nenhum Estado pode administrar a coisa pública tendo em vista o curto prazo
o que implica abrir exceções à regra de que as contratações têm de ser feitas em
função do orçamento existente e em vigência. Admitindo que a interpretação
estrita dos artigos 167, II, da CF, e 57 da Lei no 8666/1993, poderia afetar a
continuidade do serviço público, com a paralisação ainda que parcial da ativi-
dade administrativa, o Procurador do Estado ANTONIO JOAQUIM FERREIRA
CUSTÓDIO sustentou poder a Administração contratar por tempo superior ao
exercício financeiro, desde que, relativamente aos exercícios subseqüentes ao
da contratação, a vigência do ajuste ficasse sujeita a condição resolutiva expres-
sa no contrato, qual seja, a inexistência de recursos orçamentários.31

O último parágrafo acima transcrito é bastante relevante, pois nele se veri-


fica a existência de solução prática para o conflito exposto, esta trazida por outros
pareceres mais antigos (Pareceres PA 301/95 e 176/96, proferidos pelo Procurador
do Estado Antonio Joaquim Ferreira Custódio). De fato, é possível, porque razoável,
a Administração contratar por período de tempo superior ao do exercício financeiro,
desde que, relativamente aos exercícios subsequentes ao da contratação, a vigên-
cia contratual fique condicionada à existência de recursos orçamentários próprios. É

31
SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Procuradoria Administrativa. Parecer PA 212/2007. Rela-
tora: Ana Maria de Oliveira Toledo Rinaldi. 06 set. 2007.

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372 Vera Wolff Bava Moreira

necessário, para tanto, que se faça uma cláusula expressa a fim de que a vigência do
ajuste fique sujeita à condição resolutiva.
Obviamente, é muito importante que se trabalhe com esta hipótese devida-
mente justificada. De qualquer forma, tem-se aqui uma situação na qual é desneces-
sário o empenho da integralidade do valor da contratação, uma vez que inserida no
contrato cláusula resolutiva condicionando a continuidade da sua vigência à existên-
cia de recursos para a finalidade na dotação orçamentária seguinte.
A parte final do Parecer PA 212/2007 é também bastante esclarecedora, por-
quanto resume de maneira completa a possibilidade já comentada, ou seja, aquela em
que há recursos na totalidade do valor do objeto, porém aqueles relativos ao exercício
subsequente onerarão orçamento futuro, desde que haja cláusula resolutiva expressa
no contrato “consubstanciada na existência de recursos orçamentários legalmente aprova-
dos pela respectiva lei de meios”:
Ante todo o exposto, em resposta às indagações da CJ, concluo:
(a) é possível celebrar contrato de prestação de serviços não contínuos, e que não
represente despesa de investimento, com vigência que ultrapasse o exercício finan-
ceiro, na hipótese prevista no artigo 57, inciso I, da Lei no 8.666, de 21.06.1993;
(b) é viável, no último ano de vigência de lei instituidora de Plano Plurianual,
celebrar contrato de prestação de serviços não contínuos, e que não represente
despesa de investimento, com vigência que ultrapasse o exercício financeiro,
não sendo o caso de haver empenho da totalidade do valor do contrato a ser
celebrado, onerando recursos do orçamento do ano da celebração, se disponí-
veis, inclusive quanto aos valores referentes aos serviços a serem prestados no
exercício subseqüente, os quais ficariam inscritos em ‘restos a pagar’ (artigos
36 da Lei no 4.320/1964 e 29 a 35 da Lei estadual no 10.320/1968). Consoante
parecer GPG n° 003/2006, deverá haver inscrição em Restos a Pagar dos recur-
sos financeiros que deverão suportar as despesas se ocorrer atraso no cumpri-
mento do cronograma e as despesas previstas no cronograma para realização
e liquidação em exercício financeiro posterior (2008) onerarão o orçamento
do exercício futuro. Anoto que a possibilidade contemplada no § 5o do art. 12
da Lei estadual no 10.320/1968 diz respeito à antecipação de execução, que
pode acontecer se houver interesse e desde que haja recursos adequados, nos
contratos plurianuais;
(c) é necessário estipular cláusula resolutiva ‘consubstanciada na existência de
recursos orçamentários legalmente aprovados pela respectiva lei de meios’, nas
hipóteses levantadas nas letras ‘a’ e ‘b’ supra, como já anteriormente definido
pela PGE por ocasião da aprovação dos pareceres PA-3 n° 301/1995 e Subg.
Cons. 173/2006.32

32
SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Procuradoria Administrativa. Parecer PA 212/2007. Relatora:
Ana Maria de Oliveira Toledo Rinaldi. 06 set. 2007

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 373

Em outra ocasião, a mesma Procuradora sustentou ser possível a realização


de licitação apenas com indicação dos recursos previstos na proposta orçamentária,
em caráter excepcional, nas hipóteses de não haver legislação orçamentária aprovada
ou quando houver início de exercício do ano civil. Veja-se a propósito:
Foi, então, proferido o parecer Subg. Cons. n° 173/2006 adotando a definição
de J. Teixeira Machado Jr. e Heraldo da Costa Reis segundo os quais a expressão
‘realização da despesa’ significa ‘pagamento’, sendo admissível fazer licitação
apenas com a indicação dos recursos previstos na proposta orçamentária,
estipulando o contrato cláusula resolutiva para a hipotética situação de não haver
legislação orçamentária aprovada por período superior a 90 dias — neste passo,
lembro que em 2006 a LOA veio apenas em março, o que se repetiu em 2007.
Foi acentuado (a) que era tratamento excepcional de situação também
excepcional, pois a regra é fazer a reserva prévia à licitação e o empenho prévio
ou simultâneo à assinatura do contrato. Neste sentido, os artigos 8o e 9o da
Lei estadual 10.320/1968, (b) só se admitir a excepcionalidade quando houver
início de exercício do ano civil sem que esteja em vigor a necessária legislação
(LDO, LOA e decreto de execução orçamentária e financeira), (c) ser sempre
responsável o ordenador da despesa pelos contratos que assinar, razão pela
qual deve sempre instruir os procedimentos com a necessária justificativa,
apresentando a motivação dos atos praticados.33

Em seus Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Marçal


Justen Filho contribui bastante com o presente estudo ao abordar situações em que o
Estado pode promover a contratação de empreendimentos cuja execução ultrapasse
a vigência do crédito orçamentário.
“Em alguns casos, haverá uma única contratação com prazo mais longo de exe-
cução. Em outros, poderá concluir-se que a solução mais adequada é a execução parcial,
em etapas”34. E, para ele, não se confundem os conceitos de fracionamento e programa-
ção parcial, ainda que o resultado prático possa ser assemelhado. Esta última, que deve
ser devidamente justificada, porquanto excepcional, dá-se por razões de inviabilidade
técnica ou insuficiência de recursos. Veja-se a propósito, a explicação sobre a opção de
cunho material, mais afeita às questões orçamentárias tratadas neste trabalho:
Por outro lado, pode existir limitações econômicas. São os casos em que a
estimativa de recursos inserta na lei orçamentária é insuficiente para execução
completa do objeto. Diversas alternativas podem conduzir a essa situação.
Uma delas seria a própria inviabilidade material de execução do objeto ao longo
de um único exercício. Sempre que a execução contratual pressupuser prazo

33
SÃO PAULO. Procuradoria Geral do Estado. Procuradoria Administrativa. Parecer PA 173/2006. Relatora:
Ana Maria de Oliveira Toledo Rinaldi. nov. 2006
34
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13 ed. São Paulo:
Dialética, 2009, p. 151.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


374 Vera Wolff Bava Moreira

superior ao da vigência dos créditos orçamentários surgirá dificuldade para


desencadear a licitação. Existindo recursos para executar apenas parcialmente
o objeto seria possível promover a licitação? Como regra e tal como se extrai do
caput do art. 8º, a resposta é negativa, mas não se pode interpretar tal previsão
em termos absolutos o que produziria resultados extremamente maléficos. Isso
impossibilitaria a execução pela Administração Pública de projetos de longo
prazo. Somente poderiam ser contratados objetos que comportassem execução
no próprio exercício, o que excluiria obras, serviços e fornecimentos de grande
envergadura. Ora, essa interpretação seria desarrazoada. Observe-se que o
próprio art. 57, inc. I, alude à possibilidade de extensão do prazo contratual de
certos contratos além da vigência do crédito orçamentário.35

Ou seja, podem ser encontradas na doutrina, na jurisprudência e também


institucionalmente na Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, orientações no
sentido da viabilidade de empenho de despesas e contratações que não possam ser
realizadas integralmente no mesmo exercício financeiro, inclusive admitindo-se a re-
alização de licitação apenas com indicação dos recursos previstos na proposta orça-
mentária, em caráter excepcional, nas hipóteses de não haver legislação orçamentária
aprovada ou quando houver início de exercício do ano civil.

6. RESSALVAS À OBRIGATORIEDADE DE PREVISÃO DE RECURSOS ORÇAMENTÁRIOS

A conclusão a que se chega até agora é


Qualquer contratação que importe dispêndio de recursos públicos depende
da previsão de recursos orçamentários. Assim se impõe em decorrência do
princípio constitucional de que todas as despesas deverão estar previstas no
orçamento (art. 167, incs. I e II).36
A Lei de Licitações, por sua vez, no artigo 7º, parágrafo 2º, inciso III, esta-
beleceu o liame entre as licitações e o orçamento, ao prever que obras e serviços so-
mente poderão ser licitados quando houver previsão de recursos orçamentários que
assegurem o pagamento das obrigações delas decorrentes.
E o atendimento a esta exigência dá-se justamente através da juntada ao pro-
cesso administrativo do documento chamado “reserva”, através do qual o “[...] órgão
técnico encarregado do acompanhamento orçamentário informa que a dotação existe e que
os recursos para aquele determinado processo foram ‘separados’ da dotação respectiva.”37

35
Ibidem. p. 151.
36
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13 ed., São Paulo:
Dialética, 2009, p. 139.
37
FERRARI FILHO, Sérgio Antonio. Aproveitamento de licitações iniciadas em exercício financeiro anterior. In:

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 375

Oportunas, a propósito, as palavras de Mauro Roberto Gomes de Mattos, que


bem expressam as preocupações aqui comentadas:
Com o surgimento de normas de finanças públicas voltadas para a responsabilida-
de na gestão fiscal, pressupondo uma ação planejada e transparente, onde os riscos
e desvios, que afetem o equilíbrio das contas públicas, são combatidos, tanto as
licitações, quanto os contratos administrativos, passaram a ser mais controlados.
Todas as licitações e contratações públicas, após a edição da Lei Complementar
nº 101/2000, deverão ser regidas também por seus comandos, tanto no procedi-
mento administrativo (fase interna) como na execução da aludida despesa. É de
curial importância a conjunção da LRF e a Lei de Licitações, para que em um fu-
turo próximo o administrador público não seja responsabilizado pelo incumpri-
mento de normas essenciais para o equilíbrio das contas e das receitas públicas.
Deve o processo licitatório percorrer o caminho traçado pela Lei de Responsa-
bilidade Fiscal, bem como o comprometimento com a contratação (despesa)
guardar sintonia com os níveis permitidos, sob as penas da lei.38
É, porém, no já citado livro Comentários à Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, de Marçal Justen Filho, que encontramos as situações de ressalva à
obrigatoriedade de previsão de recursos orçamentários.
Para licitação de concessão de serviço público, quando a Administração não
assumir obrigação financeira de custeio da atividade, por óbvio, não será obrigatória
a previsão de recursos orçamentários. E, ainda que haja o surgimento de encargos
para os cofres públicos, “poderá ser dispensada a exigência se houver uma previsão de
recursos específicos. O caso mais evidente relaciona-se com atividades custeadas por meio de
taxas (de serviço público ou pelo efetivo exercício do poder de polícia)”39, situação em que
pagarão os próprios beneficiários do serviço.
Outra hipótese de desnecessidade de previsão de recursos orçamentários
encontra-se na licitação para sistema de registro de preços.
A ata de registro de preços não se encerra, necessariamente, em 31 de dezem-
bro, portanto, pois não está adstrita à vigência do crédito orçamentário.
Veja-se, a propósito, as explicações de Joel de Menezes Niebuhr, quando
trata da flexibilidade do sistema de registro de preços em relação às regras de dura-
ção dos contratos administrativos (artigos 7º, parágrafo 2º, inciso III e 57, da Lei no
8.666, de 23 de junho de 1993), distinguindo claramente a ata de registro de preços

Revista de Direito da Procuradoria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: v. 4, nº 7, jan/jun.
2000. Disponível em: <www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc>. Acesso em: 16 dez. 2009.
38
MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Licitação e a Lei de Responsabilidade Fiscal. In: Revista de Direito
Administrativo, vol 230, pp. 357/387, out/dez 2002.
39
Ibidem, p. 140.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


376 Vera Wolff Bava Moreira

(um pré-contrato), dos eventuais e futuros contratos dela decorrentes, o que explica
que ora não incida, ora incida o artigo 57 da Lei no 8.666, de 23 de junho de 1993:
Tome-se como exemplo o contrato de fornecimento de combustíveis. O prazo
final deste contrato é o dia 31 de dezembro. Isto significa que, antes do dia 31
de dezembro, a Administração é obrigada a concluir licitação, para que ela tenha
condições de abastecer os seus veículos no dia 1º de janeiro. E o mesmo acontece
com material de expediente, material de limpeza, insumos de informática, etc.
Todos eles vencem, no mais tardar, dia 31 de dezembro, o que gera inconvenientes
de monta para a Administração e, muitas vezes, algo próximo do caos.
Com o registro de preços esses inconvenientes são atenuados.
Como dito, a ata de registro de preços não se confunde com o contrato. O
registro de preços abrange três etapas: licitação, ata de registro de preços e
contrato. Encerrada a licitação, o fornecedor assina a ata de registro de preços
e, depois disto, de acordo com a demanda da Administração, contratos.
O prazo da ata de registro de preços não se sujeita às regras do artigo 57 da Lei
nº 8.666/93, que dizem respeito, diga-se mais uma vez, aos contratos. Ou seja,
a Administração pode dispor de ata que vá de julho a julho, de março a março,
conforme a conveniência dela. Dentro desse prazo, de validade da ata de registro
de preços, a Administração poderá firmar vários contratos, de acordo com a sua
demanda, que serão regidos, por sua vez, pelo artigo 57 da Lei nº 8.666/93.40

Esta é, por sinal, uma das grandes vantagens do sistema de registro de pre-
ços: não há necessidade de se fazer a reserva de recursos orçamentários para deflagrar
e realizar o procedimento licitatório que constituirá a Ata de Registro de Preços.
Mas voltando ao tema propriamente dito nesta pesquisa, a questão orçamen-
tária, até aqui bem melhor equacionada, terá ainda que ser complementada com a
abordagem das despesas da virada no último ano dos mandatos eletivos.

7 O ÚLTIMO EXERCÍCIO FINANCEIRO DE UM MANDATO: O CASO ESPECÍFICO DO


ARTIGO 42 DA LRF

Viu-se que é possível conciliar as aqui denominadas “teoria” (regramento) e “prá-


tica” (realidade), esta última nem sempre totalmente albergada pelas previsões legais.
Há soluções de caráter gerencial; há outras que se circunscrevem no campo
do Direito. Para tanto, existe amparo na jurisprudência dos Tribunais de Contas Pau-
lista e da União, na doutrina, bem como orientação normativa advinda da própria
Procuradoria Geral do Estado de São Paulo.

40
GUIMARÃES, Edgar; NIEBUHR, Joel de Menezes. Registro de Preços – Aspectos Práticos e Jurídicos. 1
ed. Belo Horizonte: Fórum, 2008, pp. 32/33.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 377

Ocorre, no entanto, que no último exercício financeiro de um mandato eleti-


vo o tema deve ser tratado especificamente, pois possui contornos particulares.
De fato, o art. 42 da LRF diz:
Art. 42. É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, nos últimos
dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não
possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem
pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa
para esse efeito.
Parágrafo único. Na determinação da disponibilidade de caixa serão conside-
rados os encargos e despesas compromissadas a pagar até o final do exercício.

Efetivamente, a situação se complica, em virtude de restrições legais mais


rígidas.
E, talvez por conta da falta consenso sobre a exata interpretação deste dispo-
sitivo, ele tem gerado bastante controvérsia.
Para demonstrar isso, seguem os comentários feitos por Flávio Cruz, que
bem descrevem a dicotomia “teoria-prática”, distanciamento “lei-realidade” acima
abordadas, porém, agora, sob a ótica de um ano eleitoral. Uma coisa é o que a lei
prega, o que os agentes políticos devem fazer, outra coisa, bem diferente, é o que as
necessidades da coletividade demandam e como supri-las sem contrariar as normas
jurídicas:
Provoca, também, uma quebra de paradigma, já que, tradicionalmente, o ano
eleitoral, principalmente no caso dos municípios, muitas vezes é marcado por
desmandos na geração de despesas e até mesmo pela desídia administrativa,
como por exemplo, com a falta de conservação do patrimônio público e a
suspensão do pagamento aos servidores, deixando para a próxima Adminis-
tração um Déficit Financeiro elevadíssimo e a necessidade de despesas adicio-
nais para colocar a entidade em funcionamento.
Por outro lado, surgem questionamentos sobre até que ponto essa orientação
legal é praticável, tendo em vista que a função precípua da administração públi-
ca não é de acumular valores em contas bancárias, mas, de aplicar os recursos
disponíveis nos fins a que se destinam, sob pena de não cumprirem seu papel
institucional. Ou seja, para resolver a questão do Déficit Financeiro, a Lei criou
obrigações cuja observância, por ser de difícil aplicabilidade, podem colocar
em risco a efetividade, criando a oportunidade de torná-la inócua. 41

Um dos problemas avistados não é novidade, pois ele vem permeando


quase todo este trabalho: como promover um real equilíbrio entre as aspirações da

41
CRUZ, Flávio (Coord.). Lei de Responsabilidade Fiscal Comentada. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 175.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


378 Vera Wolff Bava Moreira

sociedade e os recursos que esta coloca à disposição do Estado (enquanto Adminis-


tração Pública), evitando déficits desarrazoados e reiterados, sem engessar em dema-
sia as possibilidades de realização das despesas necessárias?
Como conciliar a comumente prática no Poder Legislativo Brasileiro de retar-
dar a aprovação das leis orçamentárias, com o rígido controle que a Lei de Responsa-
bilidade, a Lei de Licitações e a Lei que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro
impõem e, ainda assim, conseguir o bom funcionamento da máquina administrativa
ou, ao menos, que esta funcione normalmente?
Como realizar de forma legal e racional as despesas necessárias ao bom fun-
cionamento da Administração se o dinheiro, não raro, chega com atraso às unidades
de despesa, impedindo que se faça uma programação de modo a efetuar gastos ao
longo do ano, sem deixar tudo para a última hora, ou seja, na virada dos exercícios
financeiros?
A determinação contida no artigo 42 da LRF não é nova, pois já havia dispo-
sição a respeito na Lei no 4.320/64 que, em seu art. 59, previa-o para os municípios.
Vê-se, portanto, que a LRF estendeu a aplicabilidade deste, tanto aos demais entes
políticos, como também dilatou o seu prazo.
Na verdade, como já dito anteriormente, o que o dispositivo veda é a ins-
crição em Restos a Pagar sem a suficiente provisão de caixa. Aliás, e reiterando a
lição de Afonso Gomes Aguiar já exposta acima, “[...]a inscrição em restos a pagar só
é possível legalmente, em qualquer época e exercício, quando comprovada a existência de
disponibilidade financeira”.42 O que se deseja é que o ente público só gaste aquilo que
efetivamente arrecadou, sem gerar desequilíbrios ou inflação.
José Ribamar Caldas Furtado, auditor fiscal da Receita Federal, faz um co-
mentário bastante apropriado a respeito, complementando a idéia:
Desse modo, pode-se dizer que os elementos históricos presentes na formula-
ção da LRF, bem como sua interpretação lógico-sistemática, conduzem à idéia
de que não é possível o gestor público, nos últimos dois quadrimestres do seu
mandato, inscrever despesas em restos a pagar sem suficiente provisão de caixa.
Aliás, a aceitação de tal prática negaria toda a finalidade da LRF.
Bom, se não é possível inscrever despesas em restos a pagar nessas condições,
como ficaria a situação do fornecedor de bens ou serviços que, de boa fé – mas
nessa situação –, negociou com o ente da Federação? Na hipótese de persistir o
interesse do poder público ou o direito do credor, a despesa será regularmente
orçada e empenhada no exercício subseqüente à conta da rubrica DESPESAS
DE EXERCÍCIOS ANTERIORES (Lei nº 4.320/64, art. 37). Desse modo, fica
preservado o equilíbrio nas contas públicas. Assim, a LRF quer também que

42
AGUIAR, Afonso Gomes. Lei de Responsabilidade Fiscal. Questões Práticas. 2 ed., Belo Horizonte:
Fórum, 2006, p. 209.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 379

aqueles que contratam com o governo atuem como fiscais da aplicação do di-
nheiro público no último ano do mandato do governante. Nessa época, por
força do período eleitoral, a propensão a gastos imoderados tende a crescer.43

Por esta linha distintiva de situações práticas também caminhou a Procura-


dora do Estado Maria Emília Pacheco. Ao discernir casos de fornecimento de bens ou
prestação de serviços motivados pela essencialidade e emergência, serviços de natureza
contínua, e contratações de projetos contemplados no Plano Plurianual, ela explica as
exceções à rigidez da regra da proibição de contrair despesas nos últimos oito meses de
mandato, em parecer proferido para solucionar caso concreto trazido à sua consideração:
A regra imposta pelo art. 42 da LRF comporta três exceções, que exporemos em
seqüência, acompanhadas dos motivos que as justificam.
a) A contratação para fornecimento de bens ou prestação de serviços, motivada
em essencialidade e emergência, nas condições e prazos estabelecidos no inciso
IV, do art. 24, da Lei no 8.666/93.
A continuidade do serviço público é princípio subjacente à gestão da coisa pú-
blica. Não há princípio ético que sustente eventual paralisação de um serviço
que a Constituição consignou como essencial, ou que vede a adoção de me-
didas visando à restauração da normalidade em face de situações inesperadas,
cuja mantença poderá ocasionar prejuízo a pessoas ou bens. Por isso, essas são
hipóteses-padrão que, juridicamente, amparam o desvio da regra normativa
estabelecida em lei.
[...]
b) Contratação de serviços de natureza contínua, que podem ser realizados à
conta de empenhos fracionados por até cinco anos, nos termos do inciso II, do
art. 57, da Lei no 8.666/93.
Serviços contínuos, entre os quais limpeza e vigilância são exemplos mais co-
muns, são necessários ao funcionamento da máquina administrativa, e as res-
trições da LRF, posta em seu artigo 42, não pretende, nem poderia pretender
porque incompatível com a atividade pública, a impossibilidade de sua contra-
tação porque o mandato do governante estaria em fase final. Tampouco teria
sentido a contratação de serviços contínuos até 31 de dezembro do ano em
curso, pois isso implicaria que, quando da assunção do novo governante, não
haveria serviço necessário em ritmo contínuo sendo prestado. Assim, desde
que o contrato, celebrado nos últimos 8 meses de mandato, contenha cláusula
de denúncia unilateral até um determinado período de tempo do primeiro ano
de mandato, estar-se-á resguardando a gestão futura, sem impor-lhe quaisquer
ônus financeiros.

43
FURTADO, José de Ribamar Caldas. Os restos a pagar de final de mandato. Jus Navigandi. Teresina,
ano 9, nº 607, 7 mar. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6414>.
Acesso em: 16 out. 2009.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


380 Vera Wolff Bava Moreira

c) Contratação que tenha por objeto a realização de projetos cujos produtos


estejam contemplados nas metas estabelecidas no Plano Plurianual.
Por fim, não estão submetidos à restrição do art. 42 da LFR, que exige a dispo-
nibilidade de caixa para cobertura de despesas relativas às parcelas vincendas
no ano exercício seguinte, os projetos cujos produtos estejam contemplados
nas metas estabelecidas no Plano Plurianual.
É que, nesse caso, a par de não se tratar de despesa nova, sem implicações
eleitoreiras, o novo governo estará compelido a cumprir as metas do Plano
Plurianual, como decorre do disposto no artigo 35, § 2º, inciso I, do Ato de
Disposições Transitórias da Constituição Federal.
[...]
Bem por isso, o artigo 57 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, permite a
execução de projetos cujos produtos estejam contemplados no Plano Plurianual,
seja contratada por período superior ao respectivo crédito orçamentário (inc. I).44
Portanto, há sim exceções também ao artigo 42 da lei de Responsabilidade
Fiscal. São os casos de fornecimento de bens ou prestação de serviços motivados pela
essencialidade e emergência (e a retrospectiva nos faz ver que têm sido, infelizmen-
te, comuns as grandes tragédias nas viradas dos anos, principalmente em função da
quantidade de chuvas, tempestades de verão, etc.), os serviços de natureza contínua
e as contratações de projetos contemplados no Plano Plurianual. Nestas últimas, são
apenas indicados os créditos por conta dos quais correrão as parcelas a serem exe-
cutadas no(s) próximo(s) exercício(s) financeiros(s). Cuidam-se de “hipóteses-padrão
que, juridicamente, amparam o desvio da regra normativa estabelecida em lei.”45

8. CONCLUSÃO

As regras pertinentes ao assunto não apresentam maiores dificuldades para a


exata compreensão de seu alcance e aplicação. Porém, elas são rígidas e, muitas vezes,
de difícil aplicação na prática.
Há, obviamente, justificativas muito razoáveis para esta rigidez, até porque é
necessário planejamento e racionalidade nos gastos e não gestão do dinheiro público.
Todavia, as necessidades prementes dos órgãos muitas vezes não podem ser
atendidas por questões relacionadas justamente aos obstáculos, burocráticos, ou não,
que essas normas impõem.

44
Procuradoria Geral do Estado. Gabinete do Procurador-Geral. Parecer GPG 003/2006. Relatora: Maria
Emília Pacheco. 10 mai. 2006.
45
Procuradoria Geral do Estado. Gabinete do Procurador-Geral. Parecer GPG 003/2006. Relatora: Maria
Emília Pacheco. 10 mai. 2006.

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 381

No período compreendido entre novembro e janeiro, as despesas se con-


centram, a pressão aumenta, o tempo se restringe e o planejamento vai por água
abaixo.
O que é necessário, no entanto, é um maior cuidado na elaboração e aprova-
ção das leis orçamentárias, maior critério no estabelecimento de prioridades, melhor
planejamento na realização de licitações, melhor gerenciamento dos gastos. E como
atingir todas estas metas?
A primeira providência pode ser um conhecimento mais amplo e uma me-
lhor compreensão da lei por parte de todos aqueles que estão envolvidos com a gestão
da coisa pública. Ademais, a elaboração de uma racional previsão orçamentária, com
o planejamento dos gastos efetivamente necessários para o bom funcionamento do
órgão, de modo a racionalizar as despesas e a não incorrer em desperdício de dinheiro
público.
Espera-se também um melhor planejamento de modo que as despesas pos-
sam ser feitas ao longo de todos os meses do ano, com planejamento, sem pressa
ou afogadilho, bem como critérios mais objetivos no contigenciamento (controle na
liberação de verbas) que é feito pelo Poder Executivo.
De fato, aqueles que são gestores, ou seja, os ordenadores de despesa, di-
rigentes de unidades de despesa ou os servidores das áreas de suprimentos, muitas
vezes se veem de mãos atadas, sem poder iniciar os procedimentos licitatórios porque
o dinheiro para a necessária reserva orçamentária não chegou quando deveria, ou
seja, ao longo do ano. E o adiamento da realização destas despesas para o final do ano
acaba por acarretar o enfrentamento do problema da virada dos exercícios financei-
ros, bem como as imposições constitucionais e legais, como as das normas jurídicas
apontadas neste trabalho.
O cerne da questão, portanto, está no planejamento e na racionalidade das
despesas por parte de todos os envolvidos na tarefa de gestão. Cumprir a lei e, ao
mesmo tempo, dar conta das necessidades das unidades administrativas.
O espírito que se pretendeu empreender neste estudo foi justamente o da
possibilidade de conciliação entre estes pontos aparentemente opostos, aqui chama-
dos “teoria” (regramento) e “prática” (realidade).
Para tanto, buscou-se no estudo das próprias leis dos decretos de execução
orçamentária, interpretados sob o prisma dos princípios constitucionais da razoabi-
lidade, da proporcionalidade e da continuidade do serviço público, assim como na
doutrina, na jurisprudência dos Tribunais de Contas e na orientação normativa tra-
çada pela Procuradoria Geral do Estado, as possibilidades de empenho de despesas
e contratações que não se realizem integralmente no mesmo exercício financeiro,
inclusive admitindo-se a realização de licitação apenas com indicação dos recursos
previstos na proposta orçamentária, em caráter excepcional, nas hipóteses de não
haver legislação orçamentária aprovada ou quando houver início de exercício do
ano civil.

RESPGE - SP São Paulo v. 4 n. 1 jan./dez. 2013 p. 343 a 386


382 Vera Wolff Bava Moreira

Assim, a par das exceções expressamente contempladas no artigo 57 da Lei


de Licitações, chegou-se à conclusão de que outras situações que não se enquadrem
nas exceções expressamente previstas também podem ser viabilizadas, porquanto
respaldadas em princípios constitucionais relacionados com a matéria ou na interpre-
tação teleológica das regras existentes.
Destarte, uma contratação de prestação de serviços por escopo, na qual a
execução ultrapasse o exercício financeiro em que foi celebrada, cujos serviços não
sejam contínuos, que não representem despesas de investimento, ou relativas a pro-
jetos que não estejam contemplados no Plano Plurianual, poderá, sim, ultrapassar 31
de dezembro do ano em que foi celebrada.
Pode acontecer isso sob dois procedimentos distintos: o primeiro deles com
toda a despesa já legalmente empenhada e onerando o orçamento do exercício, hi-
pótese em que o empenho da totalidade do valor do contrato acaba por prorrogar
a vigência do respectivo crédito orçamentário. Na virada do exercício financeiro, as
parcelas remanescentes serão incluídas em Restos a Pagar não processados.
Para tanto, o Decreto Paulista atual de encerramento da execução financeira
e orçamentária prevê não só a possibilidade de se lidar com os “Restos a Pagar” até o
final do exercício seguinte,46 como o também, e inclusive, de se prorrogar a vigência
dessa conta para o exercício subsequente, em caráter excepcional e justificado.
Em outra hipótese, de cunho eminentemente gerencial, sendo considerado
desnecessário o empenho da integralidade do valor da contratação, poderá ser inseri-
da no contrato uma cláusula resolutiva, condicionando a continuidade da sua vigên-
cia à existência de recursos para a finalidade na dotação orçamentária seguinte. São
duas situações perfeitamente viáveis, conforme exame dos Pareceres aqui analisados

46
Decreto n.º 59.650, de 25/10/2013: Dos Restos a Pagar - Artigo 9º - As despesas do exercício fi-
nanceiro pendentes de pagamento poderão ser inscritas como restos a pagar processados ou não
processados, até 10 de janeiro de 2014. § 1º - O registro dos restos a pagar far-se-á por credor e
empenho correspondente. § 2º - Os restos a pagar não processados serão inscritos pelas próprias
Unidades Gestoras Executoras - UGEs, restritos às despesas de caráter essencial, devidamente justi-
ficada e condicionada à existência da disponibilidade financeira necessária à sua cobertura. § 3º - O
empenho da despesa não inscrito em restos a pagar será automaticamente anulado no SIAFEM/SP.
Artigo 10 - Os restos a pagar inscritos em 2013 terão validade até 31 de dezembro de 2014, inclusive
para efeito da comprovação dos limites constitucionais de aplicação de recursos nas áreas do ensino
e da saúde. § 1º - Os saldos de restos a pagar inscritos em exercícios anteriores a 2013, exceto os das
vinculações constitucionais, serão bloqueados no SIAFEM/SP em 30 de dezembro de 2013. § 2º - As
Unidades Gestoras Executoras - UGEs poderão assegurar a manutenção dos saldos de restos a pagar
inscritos em exercícios anteriores a 2013 providenciando os seus desbloqueios até 10 de janeiro de
2014, condicionada a real conformidade da obrigação com os respectivos compromissos e respaldada
na existência de disponibilidade financeira para sua cobertura, nos termos previstos no parágrafo único
do artigo 37 da Lei nº 14.837, de 23 de julho de 2.012. § 3º - Os saldos desbloqueados pelas UGEs,
nos termos do parágrafo anterior, terão validade até 31 de dezembro de 2014.§ 4º - Os saldos que per-
manecerem bloqueados em 11 de janeiro de 2014 serão automaticamente cancelados no SIAFEM/SP.

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As despesas públicas na virada dos exercícios financeiros 383

e orientação traçada pela Procuradoria Geral do Estado, desde que, repita-se, em ca-
ráter excepcional e devidamente justificado.
E ainda há as ressalvas à necessidade de previsão de recursos orçamentários,
como ocorre com a licitação de concessão de serviço público, quando a Adminis-
tração não assumir obrigação financeira de custeio da atividade. Ainda que haja o
surgimento de encargos para os cofres públicos, poderá ser dispensada a exigência
se houver uma previsão de recursos específicos, como, por exemplo, nas atividades
custeadas por meio de taxas, situação em que pagarão os próprios beneficiários do
serviço. Na licitação para sistema de registro de preços também não há que se falar em
previsão de recursos orçamentários, pois, somente após constituída a Ata, por ocasião
de cada contratação é que tal necessidade surgirá.
Efetivamente, o estudo de forma sistemática da matéria (por sinal, muito
pouco enfrentada), assim como das exceções às regras que obstaculizam as aqui de-
nominadas despesas da virada dos exercícios financeiros, tanto as expressamente pre-
vistas, quanto as que dependem de uma maior e mais profunda interpretação, podem
trazer o conhecimento e os esclarecimentos necessários para o efetivo cumprimento
da Constituição Federal e das leis infraconstitucionais pertinentes, organizando me-
lhor o trato da coisa pública e sendo de grande valia para que a máquina administra-
tiva possa funcionar normalmente, sem interrupções.
Enfim, o necessário para uma holística abordagem a respeito das despesas
públicas na virada dos exercícios financeiros, ao que parece, foi colocado.
As viradas dos exercícios financeiros vão continuar sendo complicadas en-
quanto as leis não forem devidamente compreendidas e interpretadas de forma siste-
mática e com bom senso, de modo a que sejam adequadas à realidade prática.
Procurou-se, contudo, com esta pesquisa, estudar a questão e buscar al-
gumas respostas concretas. Eis aqui, portanto, uma pequena contribuição para
estimular a empreitada.

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