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Organizadores

Alexandre Torres Petry


Eduardo Lemos Barbosa
Fernanda Pimentel da Silva

RESPONSABILIDADE CIVIL EM PAUTA

Porto Alegre, 2023


Copyright © 2023 by Ordem dos Advogados do Brasil
Todos os direitos reservados

Recebimento dos textos, diagramação, ficha catalográfica


Jovita Cristina Garcia dos Santos

Projeto Gráfico e Capa


Victor Baldez Silva

Revisora
Dieniffer de Souza Silva Lemes

R342
Responsabilidade civil em pauta//, Alexandre Torres Petry, Eduardo
Lemos Barbosa, Fernanda Pimentel da Silva (Organizadores). –
Porto Alegre: OAB/RS, 244p.

ISBN: 978-65-88371-27-5
1. Responsabidade civil – Brasil. I. Título

CDU: 347.51
Bibliotecária Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB 10º 1.5717

A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos


assinados, serão de inteira responsabilidade do(s) autor(es).

Escola Superior de Advocacia da OAB/RS


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COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

PREFÁCIO – Eduardo Lemos Barbosa .................................................................................. 8

APRESENTAÇÃO – Fernanda Pimentel da Silva ................................................................ 9

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO CAUSADO EM PACIENTE ATRAVÉS DE


CIRURGIA ASSISTIDA POR ROBÔ - Ana Cristina Oliveira Mahle e Clair Kemer de
Melo ......................................................................................................................................... 11

A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS CAUSADOS PELO TRATAMENTO


INDEVIDO DE DADOS PESSOAIS NAS DECISÕES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DE SÃO PAULO – Angela Cristina de Sales Parra, Cláudio Daniel de Souza e
Luan Christ Rodrigues........................................................................................................... 23

PROVA DO DANO IMATERIAL E A (DES) NECESSIDADE DA EXISTÊNCIA DE DOR,


HUMILHAÇÃO E SOFRIMENTO COMO SITUAÇÕES FÁTICAS QUE O
CARACTERIZAM – Felipe Cunha de Almeida ................................................................... 42

DANO MORAL E PRESCRIÇÃO À LUZ DOS PRAZOS PREVISTOS NO CÓDIGO DE


DEFESA DO CONSUMIDOR E DO CÓDIGO CIVIL – Felipe Cunha de Almeida e Emily
Cristini de Vargas Sartori...................................................................................................... 56

VAZAMENTO DE DADOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL: ANÁLISE DE


JULGAMENTOS NO TJRS - Fernanda Pimentel da Silva e Janine Mariel Massing
Buogo ....................................................................................................................................... 69

RESPONSABILIDADE CIVIL E PUBLICIDADE DIGITAL NAS RELAÇÕES DE


CONSUMO – Giórgia de Lima Sberse e Andressa Brum Gibicoski ............................... 88

RESPONSABILIDADE CIVIL: DANO MORAL OU MERO DISSABOR NOS CASOS DE


DESCONTOS NÃO AUTORIZADOS DO BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA -
BPC DE PESSOAS IDOSAS – Iara Sabina Zamin, Bruna Laís da Veiga Kazmirczuk e
Solange Beatriz Billig Garces .............................................................................................. 109

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO PELA FALHA NO DEVER DE


INFORMAÇÃO – Karina Salort Larruscaim, Sheila Salort Larruscaim e Lívia Haygert
Pithan ..................................................................................................................................... 125

RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL: REFLEXÕES SOBRE O DEVER DE REPARAÇÃO DE


DANOS OCORRIDOS NO CONTEXTO DA UTILIZAÇÃO DOS ESTACIONAMENTOS
PÚBLICOS E PRIVADOS – Leandro Barbosa de Araújo e Francineide Barbosa de Araújo
Costa ...................................................................................................................................... 143
A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GENERATIVA E A RECONSTRUÇÃO DA IMAGEM
POST MORTEM: IMPLICAÇÕES SOB A ÓTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL –
Marcelle Blanche. ................................................................................................................. 160

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A RESPONSABILIDADE CIVIL DE


PROVEDORES DE INTERNET: LEI 12.965/2014, O CONFRONTO ENTRE AS NOÇÕES
JURÍDICAS TRADICIONAIS DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O
USO ABUSIVO DA INTERNET – Nayane Santana de Oliveira e Laís Santana de
Oliveira .................................................................................................................................. 173

A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS EM GOLPES


SOFRIDOS POR CLIENTES – Pavlova Perizzollo Leonardelli e Renato de Almeida.... 189

RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO DIREITO PENAL: ANÁLISE ACERCA DA


PUNIÇÃO DO INFRATOR E A REPARAÇÃO DOS DANOS CAUSADOS À VÍTIMA –
Roberta Eggert Poll e Aline Pires de Souza Machado de Castilhos ................................ 210

A ADVOCACIA VÍTIMA DE RACISMO RELIGIOSO NO PODER JUDICIÁRIO :


RESPONSABILIDADE CIVIL E JUSTIÇA REPARATÓRIA – Ulisses Soares
Passos ..................................................................................................................................... 228
8

PREFÁCIO

E com muita honra, satisfação que escrevo esse brevíssimo prefácio dessa obra, pioneira
de responsabilidade civil, organizada pela Comissão Especial.
Foi em meados de 2022, que abordei o Presidente Leonardo Lamachia, e propus a
criação da Comissão Especial de Responsabilidade Civil, da OAB/RS.
Como sempre, o Presidente Leonardo, sempre solicito e sensível às necessidades da
advocacia gaúcha, determinou a criação da referida comissão.
E assim, em 28 de setembro de 2022, foi realizada a primeira reunião da Comissão, que
até então não existia.
Após, logo vieram dois Simpósios.
O primeiro, foi em 22/11/2022, realizado no auditório Cubo da ESA/RS, em Porto
Alegre, com enorme sucesso de público, e com palestrantes locais e de fora do Estado.
Após, em 01 de junho de 2023, foi realizado o segundo Simpósio, na cidade de Caxias
do Sul, que contou com público expressivo da serra gaúcha (e na via on-line, de todo o Estado)
e palestrantes do Rio Grande do Sul, e de fora.
E agora, seguindo nesta trajetória de sucesso, vem o primeiro ebook da Comissão, onde
desde já agradeço ao Alexandre Petry e à Fernanda Pimentel pela dedicação nesta obra, que
sem dúvida, agregará como importante contribuição ao estudo da responsabilidade civil.
A obra é composta de 14 artigos, tratando dos mais diversos temas, com os mais diversos
autoras e autores. Os quais, desde já, eu deixo meu agradecimento a todos vocês.
E ao Presidente Leonardo Lamachia, que tão exitosa e marcante gestão, deixo meus
mais sinceros votos de gratidão, por ter oportunizado a criação desta Comissão.
Por fim, meus sinceros agradecimentos e a todos os integrantes da Comissão Especial
de Responsabilidade Civil da OAB/RS (Gestão 2022/2024).
Segue ilustre nominata dos membros:

Eduardo Lemos Barbosa – Presidente


Josana Rosolen Rivoli – Vice-Presidente
Eliane Chalmes Magalhães – Secretária-Geral
Fernanda Pimentel da Silva – Secretária-Geral Adjunta
Alexandre Torres Petry
Antonio Carmelo Zanette
Arodi de Lima Gomes
Artur da Fonseca Alvim
Augusto Solano Lopes Costa
Domingos Henrique Baldini Martin
Felipe Cunha de Almeida
Jair Pereira Coitinho
Juliane Müller Korb
Cassio Augusto da Silva
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APRESENTAÇÃO

A responsabilidade civil é matéria interdisciplinar, que dialoga com a vida cotidiana e


também com as diferentes ramificações do direito. E é através das possibilidades criadas pela
interação entre áreas surge o presente e-book, que é construído a partir da Responsabilidade
Civil, mas com olhares plurais.
A ideia da obra surgiu em nossa Comissão Especial de Responsabilidade Civil, com o
propósito de materializar os debates e estudos fomentados ao longo de nossos Simpósios,
eventos e reuniões. Juntamente com o II Simpósio da Comissão iniciamos o movimento de
interiorização de nossas ações e também o lançamento do Edital de chamamento da comunidade
jurídica. Para facilitar a compreensão de nosso objetivo, enquanto Comissão, a escolha do título:
Responsabilidade Civil em pauta!
Lendo os artigos, conforme seguia nas páginas, entendia que nossa meta estava sendo
cumprida, afinal vinte e sete autores entregaram o que tem de mais valioso para viabilizar a
publicação: conhecimento que será compartilhado entre todos os leitores!
Nosso e-book conta com trabalhos oriundos de diversas fontes. Contamos com artigos
escritos a partir da atuação profissional na advocacia e também escritos a partir de trabalhos de
conclusão de curso, no qual os colegas advogados atuaram como orientadores. Há textos
elaborados de modo colaborativo entre quem está ainda na graduação e uniu esforços com
profissionais que já atuam na linha de frente da Advocacia.
A obra conta com estudos versando sobre a responsabilidade civil no direito médico,
em artigo elaborado pela autora Karina Salort Larruscaim em coautoria com as advogadas
Sheila Salort Larruscaim e Lívia Haygert Pithan, versando sobre o dever de indenizar quando
há falha na informação. Sobre a pauta médica, também encontramos artigo escrito pelas
advogadas Ana Cristina Oliveira Mahle e Clair Kemer de Melo, debatendo acerca dos reflexos
das inovações tecnológicas no campo médico e apresentando como é a tratada a
responsabilidade civil em decorrência de danos causados através de procedimentos cirúrgicos
assistidos por robotização.
As professoras e pesquisadoras do Direito Penal, Aline Pires de Souza Machado de
Castilhos e Roberta Eggert Poll, também contribuíram com o debate multidisciplinar ao
compartilhar para publicação obra inédita versando sobre responsabilidade civil à luz do direito
penal. No estudo elas promovem reflexões sobre a efetividade da reparação civil para as vítimas
de demandas penais.
Eu Fernanda Pimentel, em conjunto com minha orientanda da graduação em direito, a
aluna Janine Mariel Massing Buogo, também escrevi artigo que é parte deste e-book. No artigo
apresentamos parte de estudo que está em curso, aportando resultados obtidos com a análise de
julgados do TJRS, que versam sobre vazamento de dados, discorrendo sobre a responsabilidade
civil e aspectos que remetem para a procedência do dever de indenizar.
O membro da Comissão, professor e advogado Felipe Cunha de Almeida também nos
brinda com dois textos. Em um deles, tratando da prova no dano imaterial e elementos que
interferem no dever de indenizar e no outro, escrito em conjunto com a acadêmica de direito
Emily Cristini de Vargas Sartori, versando sobre os prazos e prescrição do dano moral a partir
dos dispositivos previstos no Código de Defesa do Consumidor.
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Na seara consumeirista, o e-book conta com artigo escrito pela professora e advogada
Pavlova Perizzollo Leonardelli em conjunto com seu aluno e orientando da graduação em
direito Renato de Almeida. Eles trouxeram ao debate a responsabilidade civil das instituições
bancárias diante de golpes sofridos por clientes.
O advogado Ulisses Soares Passos, escreve texto de suma importância, trazendo a
responsabilidade civil em decorrência de racismo religioso contra advogados no âmbito do
Poder Judiciário. Seu artigo analisa dispositivos existentes e ao mesmo tempo remete para
reflexão de caminhos necessários para a proteção da advocacia, nas suas diferentes e
pluralidades.
Os autores Leandro Barbosa de Araújo e Francineide Barbosa de Araújo Costa,
apresentam estudos acerca da responsabilização civil e o dever de reparação de danos ocorridos
durante a utilização de estacionamentos, comparando o contexto de locais públicos e privados.
O e-book conta também com artigo escrito pelos advogados e professores de direito
Cláudio Daniel de Souza e Luan Christ Rodrigues, em conjunto com a graduada em Direito
Angela Cristina de Sales Parra. No texto, os autores apresentam posicionamento do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo em demandas envolvendo a responsabilidade civil por danos
causados pelo tratamento indevido de dados pessoais.
As advogadas Nayane Santana de Oliveria e Laís Santana de Oliveira apresentam estudo
que analisa a responsabilidade civil de provedores de internet, especialmente a partir de
ensinamentos do STF envolvendo os direitos fundamentais.
Circulando pelos desafios da atualidade, a autora Marcelle Blanche, participa da obra,
com artigo acerca da imagem post mortem. No texto, ela apresenta implicações da
responsabilidade civil, diante de reconstruções de imagem com uso de ferramentas de
inteligência artificial.
As autoras Iara Sabina Zamin, Bruna Laís da Veiga Kazmirczuk e Solange Beatriz Billig
Garces, fomentam o debate acerca da responsabilidade civil e o mero dissabor, tratando de
casos envolvendo pessoas idosas que sofrem com descontos não autorizados em benefícios de
prestação continuada.
Nosso e-book conta ainda com a participação das advogadas Giórgia de Lima Sberse e
Andressa Brum Gibicoski, abordando a publicidade digital e questionando como se dá a defesa
dos consumidores na sociedade digital, especialmente quando comparamos impactos
publicidade e reflexos na responsabilidade civil.
Observando as obras apresentadas visualizamos as diferentes conexões realizadas, e
entregas inovadoras através dos artigos ora publicados. Com isso, a prova da importância da
temática e também o universo de possibilidades que a responsabilidade civil oferece para os
que de dela se aproximam.

Fernanda Pimentel da Silva


Secretária-Geral Adjunta da Comissão Especial de Responsabilidade Civil
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RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO CAUSADO EM


PACIENTEATRAVÉS DE CIRURGIA ASSISTIDA POR ROBÔ

Ana Cristina Oliveira Mahle1


Clair Kemer de Melo2

RESUMO

A cirurgia assistida por robô é uma das mais recentes inovações tecnológicas no campo médico,
trazendo promessas de procedimentos mais precisos e menos invasivos. No entanto, a adoção
dessa tecnologia também apresenta desafios legais relacionados à responsabilidade civil, tanto
do médico quanto do fabricante do robô cirúrgico. Este artigo examina os aspectos da
responsabilidade civil nessas cirurgias, considerando a perspectiva do direito do consumidor e
do direito médico. Serão abordados os fundamentos teóricos e a jurisprudência relevante para
analisar a responsabilidade do médico e do fabricante em casos de danos decorrentes de
cirurgias assistidas por robôs. Além disso, o artigo discute medidas para mitigar riscos e garantir
a segurança do paciente. O tema é inovador e abrangente, pois envolve tecnologia, direito do
consumidor, direito médico, responsabilidade civil do médico que irá utilizar o produto e
responsabilidade civil do fabricante.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Dano; Direito Médico; Inteligência Artificial, Robô.

1 INTRODUÇÃO

A cirurgia assistida por robô é uma área em rápido crescimento na medicina, com
sistemas robóticos cada vez mais presentes em hospitais e centros cirúrgicos ao redor do mundo.
Essa tecnologia oferece vantagens significativas, como maior precisão nos procedimentos e
menor tempo de recuperação para os pacientes. No entanto, com o aumento do uso desses
dispositivos, surgem preocupações sobre a responsabilidade civil em casos de complicações e
danos ao paciente. Neste sentido, a discussão apresentada é direcionada para analisar aspectos
relevantes da responsabilidade civil do fabricante por dano em cirurgia assistida por robô.

2 DA RESPONSABILIDADE CIVIL E CARACTERIZAÇÃO DO PRODUTO ROBÔ

Destaca-se que a responsabilidade civil é um conceito essencial no campo do direito,

1
Mestre e Doutoranda em Ciência e Tecnologia pela UFSCar (pesquisa na área de Proteção de Dados e Inteligência
Artificial), pesquisadora voluntária do CEDIS-IDP e da Universidade de Lisboa (NELB). OAB/SP nº 228.974. E-
mail: anamahleadv@gmail.com.
2
Mestre em Desenvolvimento pela UNIJUÍ/RS, Doutoranda em Direito pela UC/PT Universidade de Coimbra,
Data Protection Officer pela ITCERTS, Gestora, Consultora e Auditora em Privacidade e Proteção de Dados,
Advogada inscrita na OAB/MT nº 13.575B. E-mail: kemer.adv@gmail.com.
12

referindo-se à obrigação legal de reparar danos causados a terceiros em decorrência de ações


ou omissões consideradas negligentes, imprudentes ou ilícitas. Neste sentido, os artigos 186,
187 e 927 do Código Civil vigente são determinantes para essa compreensão (BRASIL, 2002,
p. 1):

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
ilícito.
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé
oupelos bons costumes.
(...)
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,
nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

E quando aplicada ao contexto da tecnologia, a responsabilidade civil assume uma


relevância especial, especialmente no que diz respeito aos dispositivos robóticos, que têm
ganhado destaque em diversas áreas, incluindo a medicina, indústria e serviços.

A caracterização do produto robô é um aspecto fundamental na análise da


responsabilidade civil. Os robôs são máquinas programáveis que possuem autonomia para
realizar tarefas complexas de forma automática ou semiautomática. Eles podem ser
classificados em diferentes tipos, desde robôs industriais até robôs sociais e assistentes virtuais.
A crescente aplicação desses dispositivos em setores críticos, como a saúde e a indústria,
levanta questões sobre a atribuição de responsabilidade em caso de falhas ou danos.

Para que a responsabilidade civil seja estabelecida em relação a um produto robô, alguns
elementos devem ser considerados, tais como o defeito do produto, em que a caracterização do
robô como "defeituoso" é fundamental para estabelecer a responsabilidade do fabricante ou
fornecedor. Um defeito pode surgir de várias maneiras, incluindo falhas no projeto, fabricação
ou informações insuficientes sobre o uso adequado. Outro elemento é a causalidade, pois é
necessário comprovar que o defeito do robô foi a causa direta ou contribuinte para o dano
ocorrido. Caso contrário, a responsabilidade não será atribuída ao fabricante ou fornecedor.

Ainda, há que se analisar se o uso é adequado e previsível, pois a utilização correta e


previsível do robô é fundamental para determinar a responsabilidade. Se um dano resultar do
uso indevido do robô, a responsabilidade pode ser atribuída ao usuário em vez do fabricante

No que tange as teorias da responsabilidade, é necessário frisar que existem diferentes


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teorias de responsabilidade civil que podem ser aplicadas a produtos robóticos. A


responsabilidade pode ser baseada em negligência, responsabilidade objetiva ou teorias de
responsabilidade do produto, com base na melhor doutrina civilística.

Neste diapasão, imperioso é a que as regulamentações e normas específicas para


produtos robóticos sejam estabelecidas, pois também podem ser determinantes na análise da
responsabilidade civil. O cumprimento de padrões de segurança e qualidade pode influenciar a
atribuição de responsabilidade, na análise do caso concreto.

A caracterização do produto robô envolve questões complexas, pois sem adentrar em


questões éticas, sabe-se que esses dispositivos frequentemente operam com certo grau de
autonomia, o que pode tornar difícil estabelecer a responsabilidade em caso de falhas. Além
disso, a rápida evolução tecnológica muitas vezes ultrapassa as normas e regulamentações
existentes, exigindo uma constante atualização dos padrões de segurança e responsabilidade.

Em suma, a responsabilidade civil relacionada a produtos robóticos é uma área em


desenvolvimento, com desafios significativos em termos de definição de responsabilidade entre
fabricantes, fornecedores e usuários.

Neste sentido, a caracterização adequada do produto robô, juntamente com a análise de


sua aplicação e cumprimento das regulamentações, é essencial para determinar a
responsabilidade em casos de danos causados por esses dispositivos avançados. A fim de
promover o avanço seguro e ético da tecnologia robótica, é necessário um contínuo debate
jurídico e normativo sobre essa questão em constante evolução.

3 NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DE ROBÔS QUE AUXILIAM EM


CIRURGIAS: EXPLORAÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE A RÁPIDA ADOÇÃO DA
TECNOLOGIA E A NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÕES ADEQUADAS

Assentada a vertente de discussão acerca da determinação do grau de responsabilidade


possível, adentramos no caso concreto, pois uma cirurgia assistida por robôs é uma inovação
tecnológica que vem ganhando cada vez mais espaço na medicina, oferecendo aos profissionais
de saúde a capacidade de realizar procedimentos cirúrgicos com maior precisão e menor
potencial invasivo.

Essa tecnologia promissora tem o potencial de revolucionar a prática médica,


proporcionando melhores resultados e recuperação mais rápida para os pacientes.

No entanto, a rápida adoção desses dispositivos traz consigo uma série de desafios e
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preocupações relacionadas à sua regulamentação. A ausência de normas claras pode levar a


lacunas na responsabilização em casos de incidentes ou danos ocorridos durante procedimentos
cirúrgicos assistidos por robôs. Portanto, a necessidade de regulamentações adequadas se torna
essencial para garantir a segurança dos pacientes e o desenvolvimento ético dessa tecnologia.

A vertiginosa evolução da tecnologia robótica, combinada com sua crescente demanda


no campo da medicina, como já mencionado, impulsiona a aceleração de legislações
importunas. A ausência de uma legislação específica para robôs cirúrgicos pode resultar em
riscos para os pacientes, bem como em litígios envolvendo a responsabilidade dos fabricantes
e médicos.
Na União Europeia, os fabricantes são obrigados a demonstrar que seus “robôs
cirúrgicos” foram projetados e produzidos de acordo com requisitos técnicos exigidos pelo
regulamento, além de garantir que eles sejam seguros e eficazes para a finalidade prevista,
mesmo após a sua venda, por meio do estabelecimento de um rigoroso sistema de
monitoramento pós-comercialização, conforme previsto nas normas e regulamentos, como o
Regulamento Europeu (RU) 2017/745 (EUROPA, 2017) e a norma ISO 14971 (ISO, 2019),
que dispõe sobre a gestão de riscos de dispositivos médicos. Esse dever de fiscalização contínua
permite ao fabricante identificar de imediato quaisquer problemas ou eventos adversos que
possam surgir durante o uso da tecnologia, garantindo uma maior segurança aos pacientes além
de demonstrar conformidade às regras estabelecidas.

De acordo com esse entendimento, quando se fala em responsabilidade civil envolvendo


o fabricante do dispositivo médico, é fundamental que o fabricante seja submetido a padrões
rigorosos de qualidade e segurança, garantindo que o robô cirúrgico atenda a todos os requisitos
necessários para a realização de procedimentos médicos complexos e seja devidamente
monitorado. A negligência no processo de fabricação e de pós-venda que leva a complicações
durante os procedimentos cirúrgicos, poderá expor o fabricante a ações judiciais.

A literatura de Bianchi (2019) aborda a responsabilidade civil do fabricante de


dispositivos médicos na cirurgia assistida por robô, enfocando a importância de assegurar que
esses fabricantes sejam devidamente responsabilizados em caso de falhas técnicas ou defeitos
no produto.

Além disso, a responsabilidade do médico que utiliza o robô cirúrgico também é um


ponto crucial. Os médicos têm o dever de informar adequadamente os pacientes sobre os riscos
associados à cirurgia assistida por robôs, bem como demonstrar competência na operação do
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dispositivo. A falta de treinamento adequado e a não divulgação de informações relevantes


podem levar a resultados negativos e acarretar litígios de responsabilidade civil.

Para embasar a discussão sobre a responsabilidade civil do fabricante e do médico na


cirurgia assistida por robô, a análise de casos precedentes de tecnologias médicas emergentes é
fundamental. Estudos de casos anteriores envolvendo outras tecnologias médicas podem
fornecer insights importantes sobre os desafios legais enfrentados por fabricantes e
profissionais de saúde em situações semelhantes.

Pesquisas realizadas por Bianchi (2019), Carvalho e Santos (2020), Fonseca e Oliveira
(2021), Silva e Lima (2019) e Oliveira e Sousa (2020) apresentam análises sobre a
responsabilidade civil do fabricante de dispositivos médicos e a responsabilidade do médico e
do hospital em procedimentos cirúrgicos assistidos por robôs. Essas obras examinam casos reais
e jurisprudências brasileiras relacionadas à tecnologia médica e oferecem subsídios valiosos
para a compreensão das implicações legais e éticas dessa prática médica inovadora.

No Brasil, um hospital foi condenado por infecção contraída por idoso operado por um
robô não esterilizado, juíza Ana Paula Amaro da Silveira, atuando na 4ª Vara Cível da comarca
de Florianópolis, proferiu uma decisão condenatória contra um hospital localizado em São
Paulo, reconhecido como a unidade de saúde privada mais avançada da América Latina. A
condenação se refere a uma indenização por danos morais concedida a um idoso residente em
Florianópolis, vítima de um erro médico durante um procedimento cirúrgico realizado na
referida instituição.

O paciente, que sofria de um tumor renal, foi submetido a uma nefrectomia no renomado
hospital, sendo informado pela equipe médica de que a cirurgia, realizada com o auxílio de um
robô, havia sido bem-sucedida. Entretanto, após um dia e meio da alta hospitalar, o idoso
retornou à sua cidade natal apresentando intensas dores abdominais e febre alta. Diante da
ausência de melhora em seu quadro clínico, ele foi internado novamente, desta vez em um
hospital na capital de Santa Catarina.

Conforme constatado nos exames mais detalhados, o paciente estava com uma infecção
urinária causada pela presença da bactéria "complexo burkholderia cepácia". O responsável
médico apontou que a infecção ocorreu devido à falta de esterilização adequada do robô
utilizado durante a cirurgia. O prontuário médico registrou que o idoso apresentava anemia,
falta de ar, calafrios, sudorese noturna e febre vespertina.

Ao enfrentar o processo judicial, o hospital alegou que a infecção resultante da cirurgia


16

é uma questão médica, e, portanto, não poderia ser responsabilizado. Argumentou ainda que
não havia provas que o ligassem ao problema de saúde do requerente, buscando a realização de
perícia e a improcedência do pedido. A seguradora não apresentou manifestações ao longo do
processo.

Entretanto, a perícia realizada constatou que o idoso havia seguido corretamente as


orientações médicas no período pós-operatório e não houve quaisquer fatores externos ou
pessoais que pudessem predispor à infecção adquirida.

Com base nas provas apresentadas no processo, a juíza concluiu que a bactéria
"burkholderia cepácia" foi adquirida nas dependências do hospital durante o procedimento
cirúrgico, estabelecendo assim o nexo causal necessário para a responsabilização da instituição.
A magistrada destacou que caberia ao hospital desconstituir essa premissa, mas como o ônus
da prova foi invertido em benefício do consumidor, a demandada não conseguiu comprovar sua
inocência. Por essa razão, a juíza proferiu a sentença condenatória, passível de recurso.
(SANTA CATARINA, 2019).

É importante destacar que, embora a cirurgia assistida por robôs represente um avanço
significativo no campo da medicina, a responsabilidade civil tanto do fabricante, do hospital e
do médico, é real e deve ser analisada diante do caso concreto.

É fundamental, para que ocorra uma regulamentação adequada, todos os fatores devem
ser considerados e ainda que seja feito de forma ética e transparente por parte dos envolvidos
para garantir a segurança e a eficácia desses procedimentos, protegendo assim os interesses dos
pacientes e da sociedade como um todo.

Em suma, a cirurgia assistida por robôs apresenta um potencial revolucionário na prática


médica, mas também requer uma abordagem cautelosa para lidar com questões legais e éticas,
dessa forma essa discussão é fundamental para assegurar o uso seguro e responsável dessas
tecnologias inovadoras, sem deixar de promover a inovação e proteger direitos dos pacientes.
O terceiro e crucial ponto de discussão é sobre a responsabilidade civil do fabricante por
dano em cirurgia assistida por robô, quando não pode deixar de ser observada igualmente a
responsabilidade civil do hospital e do profissional técnico habilitado, qual seja o médico que
está operando com o auxílio desse mecanismo de tecnologia.

4 A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANO EM CIRURGIA ASSISTIDA


POR ROBÔ
17

A responsabilidade civil do fabricante de dispositivos médicos é um tema crucial no


contexto da crescente utilização de robôs cirúrgicos e outras tecnologias médicas avançadas.
Assim, a análise dos princípios da responsabilidade civil objetiva e subjetiva se tornam
fundamentais para compreender como a lei atribui a responsabilidade aos fabricantes por danos
causados por seus produtos.

No ordenamento jurídico brasileiro, notadamente no âmbito da legislação consumerista


a responsabilidade civil objetiva é um princípio legal em que o fabricante pode ser
responsabilizado pelo dano causado por seu produto, independentemente de haver culpa ou
negligência comprovadas. Nessa modalidade, basta que o dano esteja relacionado ao produto
defeituoso para que a responsabilidade seja atribuída ao fabricante.

Destaca-se que a responsabilidade civil objetiva no CDC - prevista nos arts. 12 e 14 - é


a imposição que obriga o fornecedor a reparar os danos causados aos consumidores decorrentes
de vício do produto, informações insuficientes ou inadequadas ou, ainda, de falhas na prestação
de serviços, independentemente da existência de culpa.

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o


importadorrespondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento deseus produtos, bem como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua utilização e riscos.

(...)

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de


culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos
à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas
sobresua fruição e riscos (BRASIL, 1990, p. 1).

No contexto dos robôs cirúrgicos e dispositivos médicos, a responsabilidade civil


objetiva é aplicável quando há defeitos no projeto ou fabricação que causem danos ao paciente
durante uma cirurgia assistida por robô. Esses defeitos podem incluir falhas mecânicas, erros
no software ou problemas na interface de comunicação, que levam a procedimentos mal-
sucedidos ou complicações pós-operatórias.

Outra classificação é a responsabilidade civil subjetiva, sendo aquela que requer a


comprovação de culpa ou negligência por parte do fornecedor de serviço, sendo aplicada no
caso da responsabilidade pessoal dos profissionais liberais, no caso, os médicos e/ou operadores
do robô, onde a responsabilidade será apurada mediante a verificação de culpa (art.14, § 3º, II).
18

Isso significa que o requerente deve demonstrar que o prestador de serviço agiu com
imprudência, imperícia ou negligência, como por exemplo, não seguiu os padrões de segurança
adequados, não teve o treinamento necessário ou que descumpriu obrigações legais.

Para melhor compreensão dos tipos de responsabilidade civil apresentados, ao serem


aplicadas ao fabricante de robôs cirúrgicos, algumas situações relevantes podem ser
consideradas. Vejamos que em um caso específico, um fabricante de robô cirúrgico foi
considerado responsável objetivamente por danos causados a um paciente durante uma cirurgia.
Ficou comprovado que o robô apresentava defeitos no sistema de controle, que resultaram em
erros de movimentação durante o procedimento, causando danos ao paciente. Nessa situação,
entende-se que a responsabilidade do fabricante foi baseada na relação direta entre o defeito do
produto e o dano causado.

Em outra situação, um médico operou um robô cirúrgico sem ter tido o devido
treinamento e aconteceu um erro médico durante a cirurgia. Nesse contexto, com a
comprovação desse fato, o médico será considerado responsável, isentando o fabricante da
responsabilidade nos termos do art. 14, § 3º, inciso II do CDC. Nesse caso, o hospital poderá
ser responsabilizado juntamente com o médico, se deixou de adotar as diligências necessárias
sobre a confirmação da qualificação do profissional.

Os exemplos apresentados ilustram como os princípios da responsabilidade civil


objetiva e subjetiva podem ser aplicados a casos reais envolvendo fabricantes de robôs
cirúrgicos, hospitais e médicos. A análise cuidadosa de situações análogas pode fornecer
orientação para fabricantes, profissionais de saúde e pacientes, destacando a importância da
qualidade, segurança e transparência na fabricação e utilização desses dispositivos médicos
avançados.

A crescente utilização da tecnologia médica, especialmente em procedimentos


cirúrgicos assistidos por robôs, tem levantado questões importantes relacionadas à
responsabilidade civil do médico e sua obrigação de informar adequadamente o paciente sobre
os riscos associados. Neste contexto, a análise de decisões judiciais relacionadas a esse tema
pode oferecer insights valiosos sobre como a lei tem tratado casos de litígios envolvendo a
responsabilidade do médico em procedimentos cirúrgicos com uso de robôs.

As obras de Carvalho e Santos (2020), Fonseca e Oliveira (2021), Silva e Lima (2019)
e Oliveira e Sousa (2020) têm abordado questões sobre a responsabilidade do médico e do
fabricante de dispositivos médicos, incluindo os robôs cirúrgicos. A análise dessas publicações
19

nos permite observar como a responsabilidade tem sido atribuída em casos reais e como a
obrigação de informar o paciente tem sido tratada pela justiça brasileira.

No que diz respeito a responsabilidade civil do médico na utilização de tecnologia,


destaca-se que o médico tem o dever de utilizar a tecnologia, como os robôs cirúrgicos, de

forma competente e responsável. Isso inclui obter o treinamento adequado para operar o
dispositivo e entender seus limites e capacidades. Casos em que o médico demonstrou
negligência ou falta de habilidade no uso do robô cirúrgico, como o mencionado, têm resultado
em sua responsabilização por danos causados ao paciente.

Outro ponto relevante trata das obrigações relativas à informação e ao consentimento


informado, que se traduz inclusive na utilização do TCLE – Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, representando a obrigação do médico de informar adequadamente o paciente sobre
os riscos associados ao procedimento cirúrgico assistido por robôs.

O consentimento informado é uma parte crucial do processo, pois permite que o paciente
tome decisões conscientes sobre sua saúde. Decisões judiciais têm demonstrado que a falta de
informação adequada ou a obtenção do consentimento informado de forma insatisfatória podem
levar à responsabilização do médico por danos resultantes do procedimento.

Em que pese, o judiciário brasileiro tem levado em consideração esse tipo de abordagem
em casos específicos envolvendo procedimentos cirúrgicos com uso de robôs. Algumas dessas
decisões, o médico foi considerado responsável quando ficou comprovado que ele não informou
adequadamente o paciente sobre os riscos envolvidos no procedimento com o robô cirúrgico.
A falta de consentimento livre informado ou a omissão de informações relevantes foram fatores
determinantes para a responsabilização do médico.

Outras decisões judiciais têm apontado a responsabilidade civil do médico por utilizar
a tecnologia sem o treinamento apropriado, resultando em erros durante o procedimento e danos
ao paciente. Situações que ilustram como a competência do médico na utilização da tecnologia
médica e a obrigação de informar adequadamente o paciente têm sido critérios cruciais na
atribuição de responsabilidade, que pode eventualmente afastar ou mitigar a responsabilidade
civil do fabricante.

Em síntese abordar responsabilidade civil em danos ocorridos em cirurgias assistidas


por robôs, é sem dúvida um tema relevante e complexo. Porém, é imprescindível destacar a
obrigatoriedade de informar o paciente sobre os riscos associados, como um pilar fundamental
20

da ética médica e que deve ser considerada relevante em decisões judiciais envolvendo
procedimentos cirúrgicos assistidos por robôs. É crucial que os médicos recebam treinamento
adequado, compreendam os limites da tecnologia e forneçam informações transparentes aos
pacientes para garantir uma prática médica segura e responsável, e que o fabricante possa dar
essas condições.

5 CONCLUSÃO

A cirurgia robótica é uma inovação tecnológica e está em constante evolução, trazendo


avanços significativos para a área médica proporcionando procedimentos menos invasivos, mas
ao mesmo tempo traz diversos desafios para o direito.

Essa tecnologia estimula um amplo entendimento sobre à responsabilidade civil entre


os atores envolvidos: médico, fabricante e hospital. A reparação de danos decorrentes de
cirurgias assistidas por robôs, deverá observar o caso concreto, para verificar se se trata de
responsabilidade civil objetiva ou subjetiva.

A responsabilidade civil objetiva, prevista na legislação consumerista, impõe ao


fabricante a obrigação de reparar os danos causados pelo produto defeituoso,
independentemente de culpa comprovada. Esse princípio é aplicável quando falhas no projeto,
de fabricação do robô cirúrgico ou de falta de informações que resultem em danos aos pacientes
durante os procedimentos. Já a responsabilidade civil subjetiva exige a comprovação de culpa
ou negligência por parte do médico, que deve ser responsabilizado caso não tenha cumprido as
obrigações de informar adequadamente o paciente sobre os riscos associados ao procedimento
ou tenha utilizado a tecnologia sem o treinamento apropriado.

A jurisprudência tem demonstrado a importância do consentimento informado do


paciente e do treinamento adequado do médico na utilização de robôs cirúrgicos. A falta de
informações adequadas e a negligência no uso da tecnologia têm levado à responsabilização
tanto do fabricante quanto do médico em casos de danos aos pacientes. É fundamental que tanto
o fabricante quanto o médico atuem de forma ética e transparente para garantir a segurança e
aeficácia desses procedimentos, protegendo os interesses dos pacientes e da sociedade como
umtodo.

Portanto, por se tratar de um tema relativamente novo e diante do avanço contínuo da


tecnologia robótica na medicina, a discussão sobre a responsabilidade civil do fabricante por
danos em cirurgias assistidas por robôs deve continuar sendo ampliada e aprofundada. A
21

regulamentação adequada, baseada em normas de segurança e qualidade, é essencial para


garantir a proteção dos pacientes e promover o avanço seguro e ético dessa tecnologia
inovadora.

Em última análise, a responsabilidade civil do fabricante, do hospital e do médico na


cirurgia assistida por robôs é uma questão complexa, que envolve diversos aspectos legais e
éticos. A análise criteriosa de cada caso, considerando as circunstâncias específicas e a

aplicação dos princípios da responsabilidade civil, é fundamental para garantir uma prática
médica responsável, segura e inovadora. A busca por regulamentações adequadas, o constante
debate jurídico e a atualização dos padrões de segurança são passos necessários para garantir
odesenvolvimento ético e responsável dessa tecnologia, proporcionando benefícios reais aos
pacientes e à sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS

BIANCHI, A. L. Responsabilidade Civil do fabricante de dispositivos médicos na cirurgia


assistida por robô. Revista Brasileira de Direito Médico e da Saúde. [S.l.], 2019.

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o código civil. Brasília:


Presidência da República, 2002.

BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor edá
outras providências. Brasília: Presidência da República, 1990.

CARVALHO, R. S.; SANTOS, L. M. A Responsabilidade do Médico e do Fabricante nos


Procedimentos Cirúrgicos com Robôs. Revista de Direito do Consumidor, [S.l.], 2020, págs.
68-87.

CAVALIERI FILHO, S. Programa de Responsabilidade Civil. Barueri: Grupo GEN, 2011.


Ebook. ISBN 9786559770823. Disponível em:
<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559770823/>. Acesso em: 1 jul. 2023.

DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico
Journal of Law [EJJL], Chapecó, v. 12, n. 2, p. 91-108, 2011. Disponível em:
<https://periodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/1315>. Acesso em: 31 jul. 2023.

EUROPA. Regulamento (UE) 2017/745 do parlamento europeu e do conselho de 5 deabril de


2017. Relativo aos dispositivos médicos, que altera a Diretiva 2001/83/CE, o Regulamento
(CE) n.o 178/2002 e o Regulamento (CE) n.o 1223/2009 e que revoga as Diretivas 90/385/CEE
e 93/42/CEE do Conselho. Jornal Oficial da União Europeia, 2017.Disponível em: <https://eur-
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FONSECA, A. B.; OLIVEIRA, P. S. Tecnologia Médica e Responsabilidade Civil: Análise de


Casos em Cirurgia Robótica. Revista de Direito Médico e Saúde, [S.l.], 2021. págs. 219-236.
22

ISO - INTERNATIONAL ORGANIZATION FOR STANDARDIZATION. ISO


14971:2019. Medical devices — Application of risk management to medical devices, 3. ed.
2019. Disponível em: <https://www.iso.org/standard/72704.html>. Acesso em: 31 jul. 2023.

OLIVEIRA, C. A.; SOUSA, L. M. Cirurgia Robótica e a Responsabilidade do Médico e do


Fabricante: Análise de Jurisprudências Brasileiras. Revista de Direito e Saúde, [S.l.], 2021.
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SANTA CATARINA. Hospital condenado por infecção contraída por idoso operado por robô
não esterilizado. Poder Judiciário de Santa Catarina, 2019. Disponívvel em:
<https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/hospital-condenado-por-infeccao-contraida-por-
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SCHREIBER, Anderson. Responsabilidade Civil na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais:


Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Barueri: Editora Forense, 2020.

SILVA, M. A.; LIMA, F. R. Responsabilidade Civil dos Fabricantes de EquipamentosMédicos:


O Caso da Cirurgia Assistida por Robô. Revista Brasileira de Direito da Tecnologia e da
Informação, [S.l.], 2019, págs. 56-74.
23

A RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS CAUSADOS PELO


TRATAMENTO INDEVIDO DE DADOS PESSOAIS NAS DECISÕES
DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Angela Cristina de Sales Parra1


Cláudio Daniel de Souza2
Luan Christ Rodrigues3
RESUMO

Objetivo: estudar o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo sobre a


responsabilidade civil por danos causados pelo tratamento indevido de dados pessoais.
Metodologia: mune-se de pesquisa analítico-descritiva, com vertente conceitual e exploratória,
que se utiliza do método de abordagem dedutivo para realizar revisão conceitual e contextual
da autodeterminação informativa e o consentimento como elemento essencial no processo de
proteção dos dados, relacionando-os com a responsabilidade civil dos agentes de tratamento no
âmbito das decisões judiciais do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo no ano de 2021,
momento em que a Lei Geral de Proteção de Dados tem vigência e eficácia plena. Resultados:
os acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo prezaram majoritariamente pela
proteção dos dados simultaneamente com o resguardo dos direitos da personalidade no contexto
da Lei Geral de Proteção de Dados. Conclusão: em que pese a aplicação da Lei Geral de
Proteção de Dados nas decisões do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ainda esteja em
paulatina evolução, foi possível observar os limites e possibilidades interpretativos no ano de
vigência e eficácia plena do referido diploma.
Palavras-chave: Dados pessoais; Privacidade; Proteção de dados; Responsabilidade Civil;
Tribunal de Justiça de São Paulo.

1 INTRODUÇÃO

O direito à proteção de dados pessoais é alicerçado primeiramente nos direitos à


privacidade, à intimidade e ao sigilo dos dados pessoais. Há pouco tempo, o direito à proteção
de dados pessoais foi alçado ao nível de direito e garantia fundamental autônomo, uma vez
inserido na Constituição Federal de 1988 por meio da Emenda Constitucional nº 115/2022. O
direito à proteção de dados pessoais é regulamentado no âmbito infraconstitucional pelo Marco

1
Graduada em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso. E-mail: angela_c_sales@hotmail.com.
2
Professor do curso de Direito do Centro Universitário Ritter dos Reis - UniRitter. Doutorando em Direito e
Sociedade pela Universidade La Salle com bolsa CAPES/PROSUC. Mestre em Direito e Sociedade pela
Universidade La Salle. Graduado em Direito pela Universidade La Salle. Advogado – OAB 105.110/RS. E-mail:
claudio.daniel.adv@gmail.com.
3
Professor do curso de Direito da Universidade do Estado de Mato Grosso. Doutorando em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito e Sociedade pela Universidade La Salle.
Graduado em Direito pela PUCRS. Advogado – OAB 105.390/RS. E-mail: luan.christ@unemat.br.
24

Civil da Internet – Lei nº 12.965/2014, bem como pela Lei Geral de Proteção de Dados ou
LGPD – Lei n.º 13.709/2018.

Na conjuntura dos desdobramentos normativos dessa área, a LGPD passa a ter vigência
e eficácia plena ano de 2021. Levando em consideração esse aspecto, o problema de pesquisa
do presente trabalho é o seguinte: qual foi o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo sobre a responsabilidade civil por danos causados pelo tratamento indevido de dados
pessoais no ano de 2021?

Dessa forma, o objetivo geral desta pesquisa é estudar o entendimento do Tribunal de


Justiça do Estado de São Paulo sobre a responsabilidade civil por danos causados pelo
tratamento indevido de dados pessoais no ano de vigência em eficácia plena da LGPD. Foram
delineados os seguintes objetivos específicos: a) analisar os elementos histórico-evolutivos e
conceituais da autodeterminação informativa e do consentimento como elementos essenciais na
conjuntura da proteção dos dados; b) entender qual é o regime de responsabilidade adotado pela
Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, sobretudo no contexto dos agentes de tratamento; c)
estudar os acórdãos do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre a responsabilidade civil no
contexto do tratamento de dados pessoais no ano de 2021.

No segundo capítulo da presente pesquisa, buscou-se analisar a importância conferida


ao consentimento do titular no tratamento de seus dados pessoais por intermédio da tutela da
autodeterminação informativa.

No terceiro capítulo, o foco foi investigar o regime de responsabilidade civil adotado


pela LGPD, especialmente em situações envolvendo agentes de tratamento.

Por fim, realizou-se a análise jurisprudencial para verificar de que forma o TJSP
interpreta e aplica a LGPD no contexto da responsabilidade civil em casos concretos
envolvendo o tratamento indevido de dados pessoais.

2 AUTODETERMINAÇÃO INFORMATIVA E O CONSENTIMENTO COMO


ELEMENTO ESSENCIAL NO PROCESSO DE PROTEÇÃO DOS DADOS

O uso de dados pessoais na sociedade da informação e em suas relações de consumo


virtuais necessitam de tutela específica. Uma questão importante para essa proteção é a
autonomia dos titulares sobre suas informações, especialmente no tocante à autodeterminação
informativa, considerando a necessidade de instituir o consentimento efetivo e válido do titular
dos dados, que não é uma tarefa fácil.
25

Com o intuito de garantir maior proteção às informações dos indivíduos, muitos países
inseriram ao longo do tempo o direito à autodeterminação informativa em suas constituições,
como Áustria em 2018, ou em legislações específicas de proteção de dados, como no caso da
Alemanha, Portugal e Brasil. O que ambas as legislações têm em comum é a previsão expressa
do direito de cada cidadão controlar e proteger de forma autônoma e consentida os seus dados
pessoais. Nesse sentido:

Trata-se da proteção da privacidade individual e dos dados pessoais, que se tornaram


extremamente vulneráveis na era da Revolução Digital e da internet. Entidades
públicas e, sobretudo, empresas privadas detêm uma ampla gama de informações
acerca da população em geral, que incluem dados pessoais (nome, estado civil,
filiação, endereço, ocupação, CPF etc.), como, também, gosto, preferências e padrões
de consumo, extraídos da navegação de cada um pela internet. Como intuitivo, o uso
indevido desses dados é altamente invasivo da autonomia privada (BARROSO, 2022,
p. 224).

O Marco Civil da Internet, em seu art. 3º inciso III, prevê a proteção dos dados como
um dos princípios essenciais na utilização da internet no Brasil. Nos incisos VII, VIII e IX do
art. 7º do mesmo diploma são assegurados os seguintes direitos: a) o direito ao consentimento
livre, expresso e informado; b) o direito às informações claras e completas sobre coleta, uso,
armazenamento, tratamento e proteção de seus dados; c) a proibição do fornecimento a terceiros
dos dados pessoais.

No mesmo sentido, a recente Lei Geral de Proteção de Dados consolidou no artigo 2º,
inc. II, a autodeterminação informativa como um de seus fundamentos, fortalecendo a
necessidade do livre acesso e da transparência em relação aos titulares dos dados, proibindo o
tratamento de dados pessoais sem o consentimento específico de seu titular, nos termos do art.
11, caput e inciso I da referida lei.

Compreende-se como dados pessoais as informações que permitem identificar uma


pessoa de maneira direta. Sensíveis são os dados que podem gerar algum tipo de discriminação
dos indivíduos, levando em consideração suas ideologias, religião, origem racial, vida sexual
etc. Isso porque

quanto maior o potencial discriminatório adstrito ao tratamento de determinado dado,


maior deve ser a assertividade do consentimento, a participação, informação e ciência
do titular. Isto é, quanto maior o potencial discriminatório, maior deve ser a carga
participativa da pessoa no contexto da manifestação de vontade [...] esse cuidado
perfaz-se como reflexo de uma consciência que há um certo tempo aflige a ordem
internacional (ESPOLADOR & FERRARI, 2022, p. 1010).
26

Com o intuito de promover a proteção de direitos fundamentais, discorrem


TEPENDINO & TEFFÉ (2020) que é essencial definir quando, onde, como e para que fins
poderão ser coletados dados pessoais, de forma a restringir a sua utilização como ativo do
mercado ou como expressão do poder político do Estado.
Também é necessário entender a diferença entre dados e informações. DONEDA (2011)
elucida que o conteúdo de ambos se sobrepõe em várias circunstâncias, o que justifica certa
confusão na sua utilização. Ambos os termos servem para representar um fato, determinado
aspecto de uma realidade.

Assim, DONEDA (2011) explica que o “dado” apresenta conotação um pouco mais
primitiva e fragmentada, isto é, uma informação em estado potencial. Nesses aspectos, o dado
estaria associado a uma espécie de “pré-informação”, anterior à interpretação e ao processo de
elaboração. A informação, por sua vez, refere-se, na visão do autor, a algo além da
representação contida no dado, chegando ao escopo da cognição.

Em síntese, os dados são elementos que constituem a matéria-prima da informação,


podem ser definidos como conhecimento bruto ainda não tratados e processados. Já as
informações representam os dados devidamente tratados e analisados, passíveis de serem
comunicados e de porventura gerarem conhecimento relevante (CRUZ & RODRIGUES, 2021).
Podem ser utilizadas para cruzar padrões e estabelecer tendências de consumo, sendo
imprescindível nesses casos o livre e efetivo consentimento do titular para o tratamento e a
utilização dessas informações pessoais.

Segundo o artigo 5º, inciso XII, da LGPD, o consentimento é caracterizado como “[...]
manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de
seus dados pessoais para uma finalidade determinada”.

Como dispõe BIONI (2021, p. 188), “[...] o adjetivo livre nos remete à ideia de uma
ação espontânea que não é objeto de pressão, mas, pelo contrário, de livre-arbítrio caracterizado
pela tomada de uma escolha em meio a tantas outras que poderiam ser feitas por alguém”.

Diante desse cenário, TEFFÉ & TEPEDINO (2020) referem que o consentimento deve
ser interpretado de forma restritiva e que o autorizado não pode estender a autorização de
tratamento de dados concedida a outros meios que não o acordado com o titular, por exemplo
para uma finalidade ou um contexto diferente do que foi pactuado e informado ao titular. Além
disso, o titular deve expressar seu consentimento antes que a informação seja processada.
27

O titular de dados assumiu um papel de destaque desde a segunda geração de leis de


proteção de dados. Foi escolhida uma estratégia regulatória que coloca sobre ele uma parcela
da responsabilidade pela proteção de seus dados pessoais. Esta instrução normativa baseou-se
no direito do indivíduo de controlar seus dados pessoais e, portanto, recorreu à técnica
legislativa de exigir o consentimento do titular dos dados pessoais para serem coletados, usados,
compartilhados, enfim, em toda e qualquer etapa do processamento de dados.

A partir disso, o direito à autodeterminação informativa surge como um


desmembramento do direito à privacidade, com o objetivo de tutelar de forma efetiva o conjunto
de dados considerados pessoais dos cidadãos, garantindo-lhes não só o controle, como também
conferindo ao sujeito uma postura ativa na tutela de seus dados pessoais, dando-lhes formas de
controle oponíveis contra o Estado e particulares.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil integra o ramo do direito obrigacional, relativo ao dever,


segundo o qual a conduta humana está vinculada ao seu fim, e na eventualidade do
descumprimento de uma obrigação, surge então, o dever de compensar o dano causado.

Acerca da responsabilidade civil, ela pode ser classificada como objetiva ou subjetiva.
STOLZE & PAMPLONA (2023) descrevem que a responsabilidade subjetiva decorre do dano
culposo ou doloso, já a responsabilidade civil objetiva é aquela em que não é necessário sequer
caracterizar a culpa, sendo dolo ou culpa irrelevante juridicamente, tendo apenas que haver
causalidade entre o dano e a conduta do agente responsável pelo ato.

Quer dizer que a responsabilidade civil objetiva via de regra se baseia na teoria do risco
inerente à atividade praticada, enquanto a responsabilidade civil subjetiva é fundamentada pela
comprovação de culpa do agente pela prática de uma conduta ilícita ensejadora de dano.

No entendimento de STOLZE & PAMPLONA (2023), a reparação civil possui três


funções principais: a) uma compensação de dano à vítima; b) uma função punitiva para o
ofensor; c) uma função de desmotivação social da conduta praticada.

3.1 Responsabilização dos agentes de tratamento e a natureza da obrigação

Os "agentes de tratamento", termo utilizado pela LGPD, referem-se aos responsáveis


pelo tratamento de dados, como descreve KRENER (2020), sendo eles o controlador e o
28

operador. Tanto o controlador quanto o operador podem ser pessoas físicas ou jurídicas, de
direito público ou privado, mas se diferenciam em suas funções operacionais. O controlador é
responsável por tomar as decisões relacionadas ao processamento de dados pessoais quanto às
finalidades, condições e métodos a serem utilizados. Por sua vez, o operador é encarregado de
executar o processamento dos dados em nome do controlador, seguindo as instruções fornecidas
por ele.

A LGPD impõe obrigações aos agentes de tratamento de dados pessoais, dentre elas
destacam-se: a) ter uma base legal para o tratamento dos dados; b) fornecer informações claras
aos titulares dos dados; obter consentimento válido quando necessário; c) implementar medidas
de segurança adequadas para proteger os dados; d) respeitar os direitos dos titulares dos dados;
e) garantir o cumprimento das regras ao compartilhar dados com terceiros e notificar a
Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e os titulares em caso de incidentes de
segurança.

O descumprimento dessas obrigações pode resultar em responsabilidade civil para o


agente de tratamento. Isso significa que a pessoa ou organização pode ser processada e
responsabilizada por danos causados aos titulares dos dados pessoais. Essa responsabilização é
trazida pela LGPD em seus artigos 31 e 32, dentro da Seção II denominada “Da
Responsabilidade”, bem como no artigo 37, do Capítulo VI intitulado “Dos Agentes de
Tratamento de Dados Pessoais, assim como nos artigos 42 a 45.

De maneira geral, a LGPD estabelece as regras referentes à responsabilidade civil dos


agentes de tratamento de dados pessoais, porém a lei não esclarece expressamente se adota a
responsabilidade civil objetiva ou subjetiva.

Sobrevém, portanto, um debate doutrinário sobre o regime adotado para a


responsabilidade no tratamento de dados pessoais. Esse debate é pautado no sentido de entender
se a responsabilidade é de natureza subjetiva, exigindo a comprovação de culpa por parte do
agente de tratamento que não cumpriu um dever de conduta imposto, ou de natureza objetiva,
embasada no risco inerente à atividade desenvolvida pelos agentes, exigindo apenas a
comprovação do dano sofrido pelo titular dos dados pessoais.

Existe também uma terceira interpretação minoritária, segundo a qual a LGPD não teria
adotado nem a responsabilidade civil objetiva, nem a responsabilidade civil subjetiva. De
acordo com essa corrente doutrinária, a intenção da LGPD é sobretudo evitar que ocorram
danos. Esse seria o regime de responsabilidade proativa.
29

MULHOLLAND (2021) menciona que as autoras Gisela Sampaio da Cruz Guedes e


Rose Melo Vencelau Meireles entendem que a LGPD adotou a teoria subjetiva da
responsabilidade civil, devendo haver a comprovação da culpa do responsável pelo tratamento
no momento do dano, uma vez fundamentada nos seguintes aspectos: (i) na omissão na adoção
de medidas de segurança para o tratamento adequado dos dados (“quando não fornecer a
segurança que o titular dele pode esperar,”); (ii) no descumprimento das obrigações impostas
na lei – “em violação à legislação de proteção de dados pessoais” ou “quando deixar de observar
a legislação”. Nesse contexto, “o legislador criou uma série de deveres de vigilância que devem
ser respeitados pelo responsável pelo tratamento e pelo operador, sob pena de
responsabilização” (GUEDES & MEIRELES apud MULHOLLAND, 2021).

As autoras destacam que o Capítulo VII da LGPD, que aborda as regras de conduta a
serem seguidas pelos agentes de tratamento de dados em relação à segurança, sigilo, boas
práticas e governança, seria a base para o reconhecimento da responsabilidade subjetiva.

Além disso, na análise das exceções de responsabilidade do artigo 43 da LGPD, o inciso


II parece indicar que uma exclusão é tipicamente adotada em relação às hipóteses de
responsabilidade subjetiva. Esta cláusula específica que os agentes de processamento de dados
não são responsáveis apenas se não houver violação da legislação de proteção de dados, mesmo
que haja danos.

Em contraponto, defendendo a teoria objetiva, DONEDA & MENDES (2018)


argumentam que as atividades de processamento de dados apresentam riscos inerentes, pois a
possível violação dos dados é consideravelmente potencial, tendo por consequência a violação
de direitos que são caracterizados como personalíssimos e básicos.

Os autores partem da constatação de que a legislação de proteção de dados tem como


um de seus principais fundamentos a redução do risco de dano. Para tanto, a LGPD consagra a
necessidade como princípio em seu artigo 6.º, inciso III, estabelecendo a limitação do
tratamento ao mínimo necessário para a realização de suas finalidades, com abrangência dos
dados pertinentes, proporcionais e não excessivos em relação às finalidades do tratamento de
dados.

Além do disposto em todo art. 6º da LGPD, as considerações sobre a finalidade da lei e


os princípios por ela adotados (necessidade, minimização, responsabilidade e prestação de
contas, etc.), levam os autores a concluir que o legislador optou por um regime de
responsabilidade objetiva que vincule o exercício das atividades de tratamento às pessoas
30

singulares, respaldando que o material utilizado no tratamento de dados é inerente ao sujeito e


podem causar danos ao seu titular. Trata-se

[...] de uma regulação que tem como um de seus fundamentos principais a diminuição
do risco, levando-se em conta que o tratamento de dados apresenta risco intrínseco
aos seus titulares. Assim justifica-se o legislador optar por um regime de
responsabilidade objetiva no art. 42, vinculando a obrigação de reparação do dano ao
exercício de atividade de tratamento de dados pessoais (DONEDA & MENDES,
2018, p. 477).

Compartilhando da mesma visão que MENDES & DONEDA, NOVAKOSKI & NASPOLINI
(2020), ao analisarem a natureza da responsabilidade civil estabelecida pela LGPD, observam que a
expressão "em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais", presente no artigo 42
da LGPD, não pode ser interpretada de forma isolada. De acordo com esses autores, o referido artigo
reconhece que a atividade de tratamento de dados pessoais envolve riscos, os quais são explicitamente
admitidos, em diferentes graus, em diversos outros dispositivos da lei, como o art. 5º, XVII; art. 38, §
único; art. 44, II; art. 48, caput c/c § 1º, IV; art. 50, caput c/c §1º; art. 55, XIII.

A presunção de irregularidade no tratamento prevista no Art. 44 da LGPD é quando o


agente de tratamento descumprir a legislação, admitir que haverá tratamento irregular de dados,
ou não fornecer as garantias que seus titulares possam esperar (expectativa legal). Em síntese,

A atividade de tratamento de dados pessoais, por envolver um atributo do direito de


personalidade do titular, apresenta riscos potenciais, que são explicitamente
mencionados pela LGPD, cuja interpretação sistemática evidencia a adoção da teoria
da responsabilidade civil objetiva, decorrente da violação das obrigações de resultado
previstas na lei, que somente pode ser excepcionada nas hipóteses de ruptura do nexo
causal reguladas na própria LGPD (NOVAKOSKI & NASPOLINI, 2020, p. 15).

De maneira diversa das duas teorias adotadas, MORAES (2019) defende a teoria da
responsabilidade civil ativa ou proativa. Parte-se do pressuposto de que a responsabilidade civil
precisa ser vista de forma positiva, que os agentes de tratamento precisam adotar uma atitude
protetora e preventiva e que a obrigação de indenizar é uma medida excepcional.

Feitas as considerações anteriores sobre a multiplicidade de interpretações quanto ao


regime jurídico adotado na LGPD, cientes de que os artigos 42 a 45 da referida norma não
fazem referência expressa à culpa ou risco da atividade, fica evidente a necessidade de
comprovação da existência ou não do descumprimento da LGPD, conforme disposto nos artigos
43 e 44. Diante disso, analisar-se-á a seguir o entendimento do Tribunal de Justiça de São Paulo
acerca da questão levantada.
31

4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL SOBRE A RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL POR


DANOS CAUSADOS PELO TRATAMENTO INDEVIDO DE DADOS PESSOAIS
NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Neste capítulo, será realizada uma análise de conteúdo dos acórdãos julgados no âmbito
do Tribunal de Justiça de São Paulo durante o ano de 2021, no período de 01/01/2021 a
31/12/2021. O objetivo dessa análise é verificar como a LGPD foi aplicada nos casos julgados
e se houve de fato responsabilização pelos danos decorrentes do tratamento indevido de dados
pessoais. Além disso, será investigada a natureza da responsabilização adotada nessas decisões.

O ano de 2021 foi escolhido por representar um marco significativo para a proteção de
dados e privacidade no Brasil. Foi um período inicial da vigência e eficácia plena da LGPD,
bem como o consequente início da construção jurisprudencial relacionada à privacidade e
proteção de dados no país.

Primeiramente, estabeleceu-se que a instituição a ser analisada seria o Tribunal de Justiça do


Estado de Mato Grosso. Porém, após uma análise preliminar, constatou-se que havia uma escassez de
casos julgados relacionados ao tema nesse tribunal. Diante disso, optou-se por fazer uma análise de
conteúdo dos acórdãos julgados no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, pois este tem
sido um dos precursores em termos de aplicação e interpretação da LGPD.

Para a seleção dos acórdãos, utilizaram-se as seguintes palavras-chave de busca:


"dados", "violação", "responsabilidade", "operador" e "LGPD". Essa abordagem teve como
objetivo reduzir a amplitude da pesquisa e de direcionar a busca por resultados que abordassem
o tema pesquisado de forma direta.

Foram identificados um total de 11 acórdãos que abordavam o tema em questão. No


entanto, um desses acórdãos foi excluído da análise devido ao fato de o dano ter ocorrido antes
da entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Dois outros acórdãos foram desconsiderados da análise, pois, apesar de tratarem do uso
indevido de dados, não estavam diretamente relacionados ao tema em questão. Ademais, foram
identificados seis acórdãos que abordavam a mesma causa de pedir, pedido e réu, que
envolviam o vazamento de dados e a solicitação de indenização por danos morais devido a esse
vazamento, com a empresa Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo S.A,
atualmente conhecida como Enel Distribuição São Paulo, como ré. Diante da divergência de
entendimento nos acórdãos repetidos, optou-se em selecionar apenas dois deles, descartando os outros
quatro. Portanto, restam quatro acórdãos que serão efetivamente utilizados para a análise. São eles:
32

1. Apelação Cível nº:1060525-24.2020.8.26.0100 (20ª Câmara de Direito Privado);

2. Apelação Cível nº:1016844-03.2020.8.26.0068 (5º Câmara de direito Público);

3. Apelação nº: 1005347-71.2020.8.26.0268 – A (34ª Câmara de Direito Privado);

4. Apelação nº: 1025180-52.2020.8.26.0405 (36ª Câmara de Direito Privado).

A análise das decisões judiciais foi realizada por meio de método qualitativo. Nesse
processo, foram examinados registros de arquivo e coletados documentos originais, visando
compreender e caracterizar cientificamente os dados analisados. O principal objetivo foi
entender o contexto e a interpretação dos dados (MOURA & FERREIRA, 2005).

4.1 Apelação Cível nº:1060525-24.2020.8.26.0100

O primeiro caso a ser analisado nesta pesquisa cuida de uma Apelação Cível interposta
por Hugo Leonardo Figueiredo Bezerra contra uma decisão parcialmente procedente julgada
pela 12ª Vara da Comarca de São Paulo. O apelado nesse caso é a Telerisco Informações
Integradas de Riscos S.A.

A decisão analisada foi proferida no contexto de uma ação declaratória de


inexigibilidade de débito. O autor da ação recebeu em seu nome um boleto no valor de
R$152,66, que correspondia à aquisição de uma certificação de segurança utilizada por
motoristas. Além disso, o autor também pleiteou indenização por danos morais. Um aspecto
relevante do caso é o repasse dos dados pessoais do autor para uma empresa terceira à ré, sem
o consentimento prévio do autor, o que ocasionou no recebimento do boleto de cobrança.

O julgado conta com a seguinte ementa:

AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITOCUMULADA


COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS

NÃO CONFIGURADOS. O autor narrou ter recebido um boleto de cobrança em


02/06/2020 no valor de R$ 152,66, correspondente à aquisição de certificação de
segurança, utilizada por motoristas. Ressaltou que não possuía relação contratual
com a ré e nem tinha conhecimento de como conseguiu acesso a seus dados. Os
documentos colacionados aos autos demonstram que o débito correspondente ao
boleto era facultativo e não foi quitado pelo autor. Ademais, restou demonstrado
pela ré a origem da cobrança e não houve informação de inadimplência nos bancos
de dados de proteção ao crédito, o que afastava a indenização por ele pretendida.
Precedentes da Turma julgadora e do Egrégio Tribunal de Justiça. Por fim,
inexistente motivo outro bastante para reconhecimento dos danos morais, inclusive
33

nos atendimentos telefônicos ou supostaviolação de dados pessoais. Na instrução


processual, também nãose verificou cobrança abusiva e insistente da ré. E o boleto
foi retirado da cobrança sem qualquer problema ou desassossego maior para autor.
Os fatos não atingiram patamar de transtornos e aborrecimentos capazes de
qualificação como danos morais. Oportuno mencionar que o contato da ré com os
dados pessoais do autor foi episódico e justificável, até porque ele não negou na
réplica (item "15", fl. 115) que tenha passado por entrevista à DHL e para a última,
autorizado pesquisa sobre riscos com acesso aos seusdados. Esse ponto, frise-
se, não era suficiente para afirmação dos danos morais. Ação parcialmente
procedente – apenas para declarainexigível o débito. SENTENÇA MANTIDA.
RECURSO IMPROVIDO. (TJ-SP - Apelação Cível nº:1060525-
24.2020.8.26.0100, Relator: Alexandre David Malfatti, Data de Julgamento:
23/08/2021, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 23/08/2021).

Na contestação, a ré alegou que tal cobrança se referia à renovação de cadastro


de seguro, cadastro este que foi solicitado pela transportadora terceira à lide DHL, para que
seus motoristas tenham seguro no transporte de mercadorias. Nesse sentido, o juízo entendeu
que a ré se trata de uma mera intermediadora entre as partes, denominando-a como operadora.

Na sentença proferida em primeira instância, o magistrado reconheceu, no mérito, o uso


indevido de dados pessoais pela ré. O magistrado destacou que a ré deveria ter solicitado o
consentimento do autor antes de utilizar seus dados.

Fora enfatizado na decisão que é necessário o consentimento prévio do requerente para


proceder com o processo de cadastro de dados de determinado titular no seu sistema, conforme
disposto em art. 7º, inciso I da LGDP, mesmo que este tenha sido solicitado pela transportadora
terceira à lide DHL. No presente caso, fora ressaltado que a legislação impõe por força do art.
42, inciso I da Lei 13.709/2018, que a operadora possui responsabilidade solidária com a
controladora, quando descumprir com as obrigações da LGPD.

Como consequência, devido à má prestação de serviços tanto pela ré quanto pela


empresa terceira, elas são responsáveis pelos danos resultantes do tratamento inadequado dos
dados e devem indenizar o autor. A declaração de inexistência de débito foi concedida por meio
de uma tutela provisória. Isso significa que o autor não efetuou o pagamento do boleto em
questão, sendo destacado no próprio boleto que o pagamento era facultativo. Dessa forma,
entendeu-se que não foram comprovados danos morais, uma vez que o autor não demonstrou
qualquer abalo em seus atributos pessoais, sendo considerado apenas um mero aborrecimento.

O autor apelou buscando o reconhecimento de danos morais indenizáveis e requereu a


quantia de R$10.000,00 como compensação. No entanto, o relator negou provimento ao recurso
do autor e manteve a sentença de primeira instância por seus próprios fundamentos jurídicos.
34

4.2 Apelação Cível nº:1016844-03.2020.8.26.0068

Trata-se de um caso de Apelação Cível apresentada pela Prefeitura Municipal de Barueri


e por E.T.S., onde ambas as partes atuam como apelante/apelado simultaneamente, contestando
a decisão prolatada em sede do juízo da Comarca de Barueri.

A referida decisão se deu em sede de ação de obrigação de fazer com pedido de tutela
provisória c/c indenização por danos morais e materiais proposta por E.T.S. Nesse conflito, o
autor alega ter sido exposto no ambiente de trabalho devido a informações confidenciais
relacionadas à sua infecção pelo vírus HIV. Esses dados foram acessados por seu superior
hierárquico no site da prefeitura, utilizando apenas o CPF e a data de nascimento, sem a
necessidade de senha. Por esse motivo, foi posteriormente demitido da empresa.

O julgado conta com a seguinte ementa:

APELAÇÕES CÍVEIS. DANOS MORAIS. DANOS MATERIAIS.


DIVULGAÇÃO DE PRONTUÁRIO MÉDICO. HIV. Dados médicos do autor
disponibilizados ao público no site da prefeitura mediante a simples inserção de seu
CPF e sua data de nascimento, informaçõesessas de fácil acesso. Ausência de senha
de acesso que torna a informação, na prática, pública. O vazamento do prontuário
médicodo requerente (fls. 31/35), ao indicar ser ele portador do vírus do HIV, gerou
situação embaraçosa e degradante no ambiente de trabalho. A responsabilidade
civil objetiva exige apenas a ocorrência do dano, a existência de nexo causal entre
a conduta e este dano e a ausência de culpa excludente da vítima (art. 37, § 6º CF).
O sigilo dos dados pessoais ganha contornos cada vez mais sensíveis, sendo matéria
cada dia mais regulada na seara legislativa. Eventuais vazamentosde dados
particulares são evidentes fatos geradores de danos, seja de ordem moral ou
material, e o legislador tende a protegê-los, especialmente quando digam respeito
aos direitos de personalidade. Art. 5º, X, Constituição Federal, art. 42 da Lei nº
13.709/2018 (LGPD) e art. 4º da Lei 13.787/2018. Danos morais configurados.
Quantum indenizatório majorado. Danos materiais não configurados. Ausência de
prova de nexo de causalidade entre a exposição dos dados médicos e a efetiva
demissão do autor. Honorários advocatícios readequados. Recurso do autor
parcialmente provido. Recurso do réu desprovido. (TJ-SP - Apelação Cível nº:
1016844- 03.2020.8.26.0068, Relatora: Heloísa Mimessi, Data de Julgamento:
05/07/2021, 5ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 07/07/2021).

Na primeira instância, o pedido foi julgado parcialmente procedente, condenando o


município ao pagamento de indenização por danos morais no importe de R$10.000,00, e
quanto aos danos materiais, considerou que não podem ser imputados ao município requerido,
mas sim àquele que efetivamente deu causa à demissão discriminatória.

Vale salientar que o pedido de tutela provisória de urgência para a exclusão dos dados
pessoais do portal do município na Internet foi deferido liminarmente,para que o requerido
providenciasse, imediatamente, a exclusão do acesso indiscriminado dos dados pessoais
35

sensíveis concernentes à saúde do requerente.

Em suas razões, a apelante E.T.S sustenta a existência de dano material em razão de sua
demissão. Alega que deve se aplicar ao caso a responsabilidade civil objetiva, pois estão
presentes todos os elementos para sua configuração, além de requerer a majoração da
indenização por dano moral.

Já a apelante Prefeitura Municipal de Barueri, alega que não tem responsabilidade no


ocorrido, que os dados sensíveis do autor não foram acessadosindevidamente por terceiros
por estarem expostos indevidamente no portal médicoou por não estarem protegidos por
critérios de segurança, mas sim por alguém que detinha os dados pessoais do requerente.
Defende que não há que se falar em dano moral, uma vez que o município não pode controlar
e ser responsabilizado por atos praticados por terceiros. Sustenta, assim, que o caso concreto
deve ser investigado segundo critérios subjetivos e que nesta matéria não se provou culpa do
município.

A relatora fundamentou sua decisão nos seguintes dispositivos legais: parágrafo 6º do


artigo 37 da CF, que considera objetiva a responsabilidade das pessoas jurídicas de direito
público, pelos danos causados a terceiros, com base na teoria do risco administrativo; artigo
42 da Lei nº 13.709/2018que traz prescrição direta acerca da responsabilização pela divulgação
indevida de dados; artigo 4º Lei 13.787/2018 que dispõe sobre a proteção ao acesso de
documentos digitais pelos meios de armazenamento.

Pelos fatos narrados, a magistrada entendeu evidente a relação de causalidade entre o


dano e a falha do serviço público, tornando inafastável o reconhecimento da responsabilidade
(objetiva) do ente público à reparação do dano, concedendo parcial provimento ao recurso do
autor para majorar a indenização à título de danos morais em R$20.000,00 (vinte mil reais) e
negou provimento ao recurso do município requerido.

4.3 Apelação nº 1005347-71.2020.8.26.0268 – A

Nesta Apelação Cível interposta por Alessandra Tonelli Villapiano Garcia contra
decisão proferida que julgou improcedente os pedidos da autora. A parte apelada é Enel
Distribuição São Paulo S/A.

A decisão se deu no âmbito da ação de obrigação de fazer c/c danos morais, fundada em
alegada ocorrência de vazamento de dados pessoais da autora. Vale salientar que o incidente
atingiu milhões de consumidores no âmbito do Estado de São Paulo.
36

O precedente julgado está assim ementado:

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C DANOS MORAIS –Contrato


de prestação de serviços – Energia elétrica – Pretensão fundada em vazamento de
dados pessoais da autora, em razão de "invasão" no sistema da concessionária –
Responsabilidade objetiva da empresa no tratamento de dados nos termos da Lei
Geral de Proteção de Dados (art. 42 da Lei n. 13.709/2018) – Situação retratada nos
autos, todavia, que não basta para configurar dano de natureza imaterial – Pretensão
indenizatória calcada em presunção/expectativa de danos – Ausência de
comprovação de efetiva ocorrência de prejuízos pela autora – Indenização indevida
– Precedentes jurisprudenciais, inclusive desta E. 34ª Câmara de Direito Privado –
Sentença de improcedência mantida – Recurso não provido. (TJ-SP - Apelação Cível
nº: 1005347-71.2020.8.26.0268–A, Relatora: Lígia Araújo Bisogni, Data de
Julgamento: 08/11/2021, 34ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação:
16/11/2021).

Em suas razões, a apelante alega que, através do Instituto de Proteção de Dados


Pessoais, recebeu notícia de que seus dados pessoais haviam vazado dos sistemas da recorrida,
que estariam na posse de terceiros e ainda sendo comercializados em uma rua localizada no
coração de São Paulo capital.Afirmou que o vazamento de suas informações pessoais a tornou
vulnerável apossíveis fraudes, o que a deixou angustiada e com medo.

Entende que, de acordo com o disposto na LGPD, a responsabilidade do réu é de


natureza objetiva. Refere que o tratamento anormal de dados pessoais constitui dano moral in
re ipsa. Devido à violação de privacidade, não são necessárias consequências externas ou uso
fraudulento de dados pessoais para determinar os danos.

Em sua decisão, a relatora reconheceu a responsabilidade objetiva da ré por eventuais


danos causados aos consumidores em decorrência de acesso indevido de dados, nos termos dos
arts. 14 do CDC, como também do art. 42 da Lei Geral de Proteção de Dados, além de salientar
que cabe a empresa ré zelar pela total e efetiva segurança de seu sistema, visando a proteção
dos dados pessoais de qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito como dispõe art. 46,
da LGPD.

Arguiu a relatora que logo após a ocorrência do vazamento dos dados, a empresa ré
tomou as seguintes precauções: a ) se prontificou em adotar as medidas de segurança
necessárias a fim de evitar danos aos titulares dos dados; b) que os dados vazados não se
enquadram como dados sensíveis, pois podem ser facilmente encontrados em outros meios; c)
que a autora não comprovou nos autos que os dados vazados foram efetivamente utilizados de
modo a acarretar danos; d) que apesar da LGPD e do CDC preverem situações relacionadas à
inversão do ônus da prova, isso não exime a autora de ao menos alegar os danos causados em
decorrência do vazamento de dados.
37

A relatora ao entender que a pretensão inicial está pautada em mera possibilidade de


ocorrências danosas, negou provimento ao recurso.

4.4 Apelação nº: 1025180-52.2020.8.26.0405

O último caso a ser analisado cuida da Apelação Cível interposta pela Debora de Moura
Quintela Lima contra a sentença proferida em sede da 2ª Vara Cível de Osasco – SP. O apelado
é Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de S.P.

A sentença julgou improcedente a ação ajuizada pela apelante, a fim de obrigar a


concessionária a informar com quais entidades ela compartilhou informação sobre os dados
pessoais da autora e recolher tais informações, assim como a lhe pagar indenização pelos danos
morais advindos daquela situação.

O precedente julgado, está assim ementado:

Ação de indenização por dano moral. Apropriação por terceiros de dados pessoais
do consumidor, extraídos dos cadastros de concessionária de energia elétrica.
Ocorrência versada nas Leis nºs 12.414/2011, 12.965/2014 e 13.709/2018.
Responsabilidade dos controladores e operadores que é objetiva, mas dela se
eximem se não houve violação à legislação de proteção de dados ou o dano decorreu
de culpa exclusiva de terceiro. Artigo 43 da LGPD. Caso emque inexistia base para
se reconhecer que a empresa deixou de adotar medida de segurança recomendada
pela Ciência ou determinada pela ANPD de modo a com isso ter dado causa a que
terceiros tivessem acesso àqueles dados. Ação improcedente. Recurso não provido.
(TJ-SP - Apelação Cível nº: 1025180- 52.2020.8.26.0405 Relator: Arantes
Theodoro, Data de Julgamento: 26/08/2021, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de
Publicação: 26/08/2021).

Negados os pedidos da exordial, a apelante sustenta que “[...] em razão do vazamento


dos seus dados, a apelante passou a enfrentar inúmeros problemas que até então não tinha, como
o recebimento de mensagens indesejadas e propagandas pelo celular e no seu e-mail, ligações
de centrais telefônicas desconhecidas, etc.”, quadro que autorizava reconhecer configurado o
dano moral ante “[...] a dor da angústia e o sofrimento com o sentimentode insegurança, a
certeira lesão aos seus sentimentos íntimos que tem causado mal estar e uma tristeza profunda,
o medo passou a fazer parte do seu dia a dia”.

A apelante alega que a responsabilidade da concessionária é objetiva nos termos da


LGPD, do CDC e da Lei n. 12.965/2014, já tendo o STJ reconhecido que o compartilhamento
de dados pessoais, sem autorização do titular, configura dano in re ipsa.

O relator trouxe em seu relatório os dispositivos da LGPD, tais como: artigo 42,
38

referente à responsabilidade dos representantes; artigo 46, que dispõe sobre as medidas de
segurança a serem tomadas no tratamento; o disposto no artigo 7º da Lei nº 12.965/2014, que
se refere à não divulgação de seus dados pessoais a terceiros; Lei nº 12.414/2011, que disciplina
a formação e consulta a bancos de dados com informações de adimplemento, de pessoas
naturais ou de pessoas jurídicas, para formação dehistórico de crédito, bem como dispositivos
do CDC.

No contexto em que afirma que a responsabilidade dos controladores e operadores é


objetiva, o relator entendeu que diante do ocorrido, a apropriação dos dados por um terceiro, e
com todos os documentos acostados nos autos, comprovaram que a ré não foi responsável pelo
vazamento, haja vista que tinha adotado as medidas de segurança recomendadas pela ciência
ou determinadas pela ANPD. Entendeu que diante dos fatos, o artigo 43, inciso II, da LGPD
exime os agentes de responsabilidadequando “não houve violação à legislação de proteção
de dados”, bem como quando o dano é decorrente de culpa exclusiva “de terceiro” (inciso III),
fundamenta assim pelo não provimento do recurso.

4.5 Síntese das decisões analisadas

Ao analisar as decisões acima, observa-se que os acórdãos em sua grande maioria


prezaram pela proteção dos dados, trazendo em seu bojo a LGPD, reconhecendo a importância
de seus dispositivos para proteção não só dos dados, como também dos direitos de
personalidade.

Verificou-se que essa proteção se acentua em casos de violação dos dados sensíveis,
onde a exposição de tais, reflete prejudicialmente a intimidade a vida privada a honra e a
imagem de seus titulares, sendo assim considerado dano in re ipsa.

A natureza da responsabilidade entendida em sua maioria pelo TJSP foi a objetiva, com
base no risco administrativo (art. 42, LGPD) e a necessidade de cumprir dispositivos legais
concernentes ao tratamento dos dados (art. 46, LGPD).

Ficou esclarecido que a comprovação do dano causado reflete na responsabilização, não


sendo concedido danos morais aos procedimentos que não comprovaram quaisquer danos
concretos acarretados pelo vazamento, violação ou tratamento indevido de dados.

Observou-se ainda uma divergência de entendimentos dos julgadores ao analisarem


casos parecidos, como o vazamento de dados de uma empresa de energia. Embora ambos os
casos tenham sido considerados improcedentes, os argumentos utilizados pelos julgadores
39

divergiram. Um magistrado fundamentou sua decisão na falta de comprovação de danos,


enquanto outro alegou que a ré não era responsável pelo dano, pois este decorria de culpa
exclusiva de terceiros.

Ainda que a LGPD tenha sido aplicada em todos os casos analisados, foi notado que
essa aplicação ocorreu de forma subsidiária a outras legislações também aplicadas nos casos
julgados. Essas leis incluem o Código de Defesa do Consumidor, o Código Civil, a Lei nº
12.965/2014, a Lei 13.787/2018, entre outras. Esse fato pode ser explicado pela recente
implementação da LGPD, que, embora tenha gerado uma produção doutrinária intensa, sua
efetiva aplicação para responsabilizar os envolvidos ocorreu de forma limitada no primeiro ano
de vigência e eficácia plena do referido diploma.

Outro elemento digno de nota é a natureza regulamentadora da lei, alicerçada pelo seu
núcleo essencial revestido de critérios e fundamentos para uma possível responsabilização
civil. Destaca-se o viés preventivo na proteção dos direitos dos titulares dos dados,
garantindo maior segurança e privacidade no tratamento de informações pessoais, que envolve
uma revisão e ajuste de políticas e práticas internas das organizações, além da implementação
de medidas técnicas e organizacionais para a proteção de dados pessoais.

5 CONCLUSÃO

Destacamos a importância da autodeterminação informativa e do consentimento no uso


de dados, considerando um mundo cada vez mais conectado e dependente da tecnologia. Os
indivíduos devem ter controle sobre seus dados pessoais, podendo decidir como eles serão
coletados, utilizados e compartilhados.

Abordamos a responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados. Nesse


contexto, discutimos a natureza da responsabilidade, se objetiva ou subjetiva. Notou-se que a
doutrina apresenta diferentes posicionamentos sobre o assunto, enquanto alguns defendem a
responsabilidade com base na culpa, outros defendem a responsabilidade com base nos riscos
inerentes às atividades de tratamento de dados.

Ao analisarmos o entendimento jurisprudencial em relação à LGPD, constatamos que,


com base nos casos examinados, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo estabelece, na
maioria das decisões, a responsabilidade objetiva dos agentes de tratamento de dados. Quer
40

dizer que tais agentes são considerados responsáveis pelos danos decorrentes do tratamento
inadequado dos dados, independentemente da existência de culpa.

Em que pese se constate a aplicação da LGPD nos casos analisados, observou-se que
sua aplicação ocorreu de forma subsidiária em relação a outras legislações, tais como o Código
de Defesa do Consumidor, o Código Civil, a Lei nº 12.965/2014 e a Lei 13.787/2018, entre
outras. Isso pode ser explicado pela recente vigência e eficácia plena da LGPD, mas também
indica que a lei já está influenciando o cenário jurídico brasileiro. A tendência é que sua
aplicação seja cada vez mais abrangente e efetiva, especialmente a partir da conscientização
sobre a importância da proteção de dados para preservação dos direitos de personalidade.

Conclui-se que a autodeterminação informativa e o consentimento são elementos


fundamentais na utilização de dados pessoais. A responsabilidade civil dos agentes de
tratamento, disciplinada pela LGPD, busca garantir a proteção dos direitos dos titulares. Com
base no aumento da produção bibliográfica e na evolução jurisprudencial, podemos prospectar
cenários no sentido de que a Lei Geral de Proteção de Dados está caminhando para se tornar
efetiva na realidade social brasileira.

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41

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v.3. Editora Saraiva, 2023.

TEFFÉ, Chiara Antônia Spadaccini de; TEPEDINO, Gustavo. O consentimento na circulação


de dados pessoais. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 25, n. 03, p. 83-83, 2020.
42

PROVA DO DANO IMATERIAL E A (DES) NECESSIDADE DA


EXISTÊNCIA DE DOR, HUMILHAÇÃO E SOFRIMENTO COMO
SITUAÇÕES FÁTICAS QUE O CARACTERIZAM

Felipe Cunha de Almeida1

RESUMO

Este artigo analisou a prova do dano imaterial à luz da necessidade, ou não, da comprovação
da dor, da humilhação, do sofrimento, permitindo concluir que a necessidade reside, apenas e
tão somente, na demonstração da violação a direitos da personalidade. Caso aqueles fatos
venham a ser comprovados, terão influência na fixação do valor arbitrado.

Palavras-chave: Dano imaterial; Prova; Direitos da personalidade; Necessidade; Dor,


humilhação, sofrimento.

ABSTRACT

This article analyzed the proof of non-pecuniary damage in the light of the need, or not, to
prove the pain, humiliation, suffering, leading to the conclusion that the need resides, only and
solely, in demonstrating the violation of personality rights. If those facts are proven, they will
influence the setting of the arbitrated amount.

Keywords: Immaterial damage. Proof. Personality rights. Need. Pain, humiliation, suffering.

INTRODUÇÃO

O convívio em sociedade proporciona uma série de situações envolvendo os seres


humanos. Relações contratuais, a formação de casais e suas famílias, acontecimentos como a
morte e o destino do patrimônio do de cujus, relações de consumo, como alguns exemplos,
demonstram o que é efetivamente fazer parte de uma sociedade.

Por outro lado, muitos acontecimentos acabam por ocasionar diversos conflitos entre as
pessoas. Muitos desentendimentos acabam por dar entrada no Poder Judiciário, sob o prisma
de um pedido de reparação de danos, estes, que podem ser os mais variados possíveis, tal e qual
os danos materiais (emergentes, lucros cessantes). Também os danos imateriais (dano estético,
dano existencial), dentre outros. Contudo, quando a discussão tem como causa de pedir uma

1
Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Processual
Civil e Direito Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor, advogado, parecerista. E-mail:
felipecunhaprofessor@gmail.com.
43

condenação por danos extrapatrimoniais, nossa experiência no cotidiano forense revela que, por
muitas vezes, a parte sente-se ofendida, humilhada; alega ter passado por um vexame em
determinada situação ocasionada por alguém e, em sua subjetividade, entende ser merecedora
de uma compensação a título de danos morais.

O contexto acima trazido, como o título destas linhas já revela, mostra-nos um contexto
fático de reparação por danos imateriais dentro do estudo da responsabilidade civil. De sorte
que a pergunta a ser feita e respondida é a seguinte: deve a vítima de um dano extrapatrimonial
comprovar a existência da dor, humilhação, sofrimento, como situações essenciais à reparação
ou, em contrapartida, demonstrar ao juiz, à magistrada que julgará a sua pretensão, uma ofensa
a direitos da personalidade? Ainda, caso a ofensa aos mencionados direitos da personalidade
esteja comprovada, mas somada a dor, humilhação, sofrimento, estas situações terão alguma
influência do julgamento?

Bem, as indagações supra trazidas serão objeto de estudo no presente trabalho. De sorte
que, para a boa resposta às perguntas feitas, em termos da técnica jurídica, dividiremos o estudo,
inicialmente, analisando a responsabilidade civil à luz da dignidade da pessoa humana. Em um
segundo momento, a abordagem envolverá o dano imaterial em sua previsão constitucional e
infraconstitucional, ao passo que, etapa seguinte, estudaremos as correntes que analisam o dano
extrapatrimonial também à luz das lições sobre o ônus da prova para, aí então, identificarmos a
questão da dor, da humilhação, com reflexos na quantificação do dano, formando, então, a
conclusão sobre a pesquisa ora desenvolvida.

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, ao ensinar sobre a evolução da reparação dos
danos imateriais, observa que se trata de um tema “[...] que se revelou, senão o maior, um dos
maiores desafios da teoria da responsabilidade civil desde as últimas décadas do século XX
[...].” (2023, p. 71).

De sorte que, como observa Paulo Lôbo, se nem todo o dano é objeto de reparação, ou
seja, nem todo o dano se ocupa o Direito é justamente pelo fato de que a vida em sociedade tem
justamente como uma de suas características as perdas e danos. (2019). Havendo, segundo o
mestre, “[...] um limite do suportável, que é variável e adaptável pelo direito aos valores da
sociedade segundo as vicissitudes do tempo. (LÔBO, 2019, p. 346). Mas, por outro lado, como
leciona Carlos Alberto Bittar, não podemos perder de vista que, em “Havendo dano, produzido
injustamente na esfera alheia, surge a necessidade de reparação, como imposição natural da
44

vida em sociedade e, exatamente, para a sua própria existência e para o desenvolvimento normal
das potencialidades de cada ente personalizado. (2015, p. 20).

1 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E RESPONSABILIDADE CIVIL

Falar sobre a dignidade da pessoa humana não é tarefa das mais fáceis. Afinal o que
seria, em termos de definição, ou de conceito, aquele princípio previsto constitucionalmente? 2
E mais: como contextualizá-lo à responsabilidade civil e aos danos imateriais, haja vista que a
reparação de tais danos também é prevista constitucionalmente?3

A responsabilidade civil, segundo as lições doutrinárias de Pablo Stolze Gagliano e


Rodolfo Pamplona Filho, trata-se de:

[...] uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de assumir as


consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem variar (reparação
dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses
lesados. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 47).

Pois bem, para melhor responder a indagação inserida acima, no início desta seção, o
ser humano, como explicam Nelson Nery Jr. e Georges Abboud se tornou o centro de atuação
do Direito, deixando de ser simplesmente um objeto do Direito (2019). Tais lições miram a
proteção |à dignidade da pessoa humana no seguinte sentido:

Esse princípio não é apenas uma arma de argumentação, ou uma tábua de salvação
para a complementação de interpretações possíveis de normas postas. Ele é a razão de
ser do Direito. Ele se bastaria sozinho para estruturar o sistema jurídico. Uma ciência
que não se presta para prover a sociedade de tudo quanto é necessária para permitir o
desenvolvimento integral do homem, que não se presta para colocar o sistema a favor
da dignidade humana, que não se presta para servir ao homem, permitindo-lhe atingir
seus anseios mais secretos, não se pode dizer Ciência do Direito. (NERY JR.;
ABBOUD, 2019, p. 163).

2
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
3
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à
imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
45

De sorte que completam os mestres que a correta aplicação dos direitos e garantias
fundamentais previstos no art. 5º da Carta configura-se como “[...] elemento indispensável à
realização do princípio da dignidade da pessoa humana”. (NERY JR.; ABBOUD, 2019, p. 163).

Já em relação à dignidade contextualizada à responsabilidade civil assim ensina a


doutrina:

A dignidade é protetiva e promocional. É protetiva no sentido de garantir a todo o ser


humano um tratamento respeitável, não degradante, tutelando a sua integridade
psicofísica. É promocional no sentido de viabilizar as condições de vida para que uma
pessoa adquira a sua liberdade e possa projetar a direção que queira conceder a sua
existência. (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, 2015, p. 19).

Paulo Lôbo, a seu turno, refere que:

A responsabilidade desponta como um dos mais importantes objetos de análise dos


especialistas e aplicadores do direito na atualidade. Sem responsabilidade não se pode
assegurar a realização da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social.
(LÔBO, 2018, p. 321).

Maria Celina Bodiu de Moraes assim contextualiza a responsabilidade civil à luz da


dignidade da pessoa humana e da personalidade em uma interpretação civil-constitucional:

[...] decorre logicamente que a unidade do ordenamento é dada pela tutela à pessoa
humana e à sua dignidade, como já exposto, portanto, em sede de responsabilidade
civil, e, mais especificamente, de dano moral, o objetivo a ser perseguido é oferecer a
máxima garantia à pessoa humana, com prioridade, em toda e qualquer situação da
vida social em que algum aspecto de sua personalidade esteja sob ameaça ou tenha
sido lesado. (MORAES, 2017, p. 182).

Das lições doutrinárias trazidas nesta parte, não há dúvidas de que em havendo a
violação a um interesse jurídico da vítima, o dano em sede de reparação à luz da
responsabilidade civil vem em proteção à dignidade da pessoa humana. Sendo que, como ensina
Flávio Tartuce, a finalidade do dano moral é a de compensar a vítima “[...] pelos males e lesões
suportados. (2023, p. 351).

2 DANO IMATERIAL, PREVISÃO CONSTITUCIONAL E


INFRACONSTITUCIONAL
46

A seção supra nos trouxe a previsão constitucional da reparação por danos imateriais. O
Código Civil, por sua vez, prevê aquela espécie de danos em seu artigo 1864 sendo que, como
consequência dos pressupostos da responsabilidade civil surge então a obrigação de reparação
do dano.5 Dano que, segundo as lições de Caio Mário Pereira da Silva, é a “[...] circunstância
elementar da responsabilidade civil. (2015, p. 53).

A presente seção se justifica notadamente pela inicial previsão constitucional e


infraconstitucional da reparação dos danos extrapatrimoniais, sendo que, pelas seguintes lições
doutrinárias, o direito constitucional: “[...] privilegiadamente encabeça o ordenamento jurídico,
traçando as regras básicas do sistema normativo”. (BONAVIDES, 2018, p. 47).

Na visão da doutrina, “Os danos extrapatrimoniais decorrem de lesão a atributos da


personalidade”. (MIRAGEM, 2021, p. 88).

Sobre o artigo 186, do Código Civil, presente está a figura do ato ilícito, que compreende
a culpa ou o dolo do agente, a existência de um dano e também a presença do nexo de
causalidade justamente entre a conduta e o dano verificado (2019). E, sobre o ilícito a que se
refere a norma ora em estudo, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto ensinam que: “O ilícito
é um conceito fundamental. Conceito fundamental é aquele sem o qual não há condição de
possibilidade de um sistema jurídico. (2020, p. 273).

Em relação à previsão contida no artigo 927, também da legislação civil, Carlos Alberto
Menezes Direito e Sergio Cavalieri Filho lecionam que:

A inserção da obrigação de indenizar, como modalidade autônoma de obrigação, com


a extensão que lhe foi dada nos arts. 927 e seguintes, constitui justificada inovação do
Código Civil, na trilha seguida de vários outros países. (DIREITO; CAVALIERI
FILHO, 2011, p. 43).

A obrigação de indenizar, portanto, seguem os mestres, prevista no dispositivo ora em


análise decorre justamente da lei, não se tratando da vontade, de manifestação de vontade
(2011). Tal obrigação como veremos no próximo item pode ter como efeitos a reparação de
danos materiais e extrapatrimoniais, sendo esta última espécie a que tem como veremos a partir
do próximo momento, relação com as correntes subjetiva e objetiva.

4
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano
a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
5
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em
lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem.
47

3 CORRENTES SUBJETIVA E OBJETIVA DO DANO IMATERIAL

Anderson Schreiber nos remete à previsão constitucional acerca da reparação dos danos
imateriais conforme texto do art. 5º, incisos V e X, da Constituição Federal.6 No tocante ao
tema, observa que há duas correntes sobre o dano imaterial: a corrente subjetiva e a corrente
objetiva. (2018). E segue:

As discussões se voltam atualmente para o próprio conceito de dano moral. Duas


grandes correntes doutrinárias se contrapõem nesse campo: (a) a corrente subjetiva,
que compreende o dano moral como dor, sofrimento e humilhação; e (b) a corrente
objetiva, que define o dano moral como a lesão a um interesse jurídico atinente à
personalidade humana e, por isso, insuscetível de valoração econômica.
(SCHREIBER, 2018, p. 626).

Sobre a corrente objetiva do dano extrapatrimonial assim já se pronunciou o Superior


Tribunal de Justiça:
No que tange à reparação pela lesão extrapatrimonial, o dano moral se associa apenas
a violações efetivas à dignidade humana, em algum de seus quatro corolários. Com
efeito, se revela mais acertada e harmônica ao modelo constitucional pátrio a corrente
objetiva, segundo a qual o prejuízo extrapatrimonial se caracteriza diante de ofensa a
direito da personalidade em qualquer de suas espécies, prescindindo-se, assim, de
eventuais perquirições atinentes a questões de foro íntimo da vítima. 7

Voltando aos direitos da personalidade, Pontes de Miranda assevera que como base do
dever de reparação “[...] está o interesse do ofendido, isto é, a pessoa cujo patrimônio ou
personalidade sofreu o dano [...]”. (2002, p. 240). Daniela Courtes Lutzky, por sua vez, ensina
que pela violação aos direitos da personalidade é que dá “[...] ensejo à reparação por danos
imateriais [...]”. (LUTZKY, 2012, p. 73).

As lições trazidas até este momento servirão de fundamento para o estudo do julgamento
mais abaixo proferido pelo Superior Tribunal de Justiça. No julgamento anterior (acima
trazido), percebemos a fundamentação no sentido da desnecessidade de análise de questões de
foro íntimo, desde que provada a violação a direitos da personalidade da vítima.

6
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à
imagem;
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 2288177.Rel. Min: João Otávio de Noronha. Disponibilizado em:
19/05/2023. Acesso em:
https://processo.stj.jus.br/processo/dj/documento/mediado/?tipo_documento=documento&componente=MON&s
equencial=182247268&tipo_documento=documento&num_registro=202300285048&data=20230519&formato
=PDF. Acesso em: 28 mai. 2023.
48

Na próxima seção vamos trazer a discussão do dano imaterial para o âmbito das regras
do direito processual civil enquanto necessidade da abordagem à luz do ônus da prova.

3.1 Ônus da prova

Em oportunidade anterior trouxemos a análise, estudo e aplicação do ônus da prova


também em relação aos danos imateriais, mas nas relações de consumo, ou seja, se possível a
sua inversão ou, então, se ônus do autor (mesmo consumidor), conforme as regras previstas
pelo Código de Processo Civil. (ALMEIDA, 2023).

Revistando aquele tema, mas agora aplicado ao objeto das presentes linhas,
perguntamos: para a procedência do pedido de condenação por danos extrapatrimoniais deve o
interessado, à luz do ônus da prova previsto no inciso I, do art. 373, do Código de Processo
Civil, alegar e provar: a) tão somente a violação a direitos da personalidade; b) tão somente a
presença da dor, de uma humilhação ou vexame; ou c) ambas as hipóteses (a) e (b)?

Pois bem, para bem responder as indagações acima, os fatos discutidos em determinado
processo civil sobre a ocorrência de danos imateriais passarão, necessariamente, pelo ônus da
prova, nos termos das regras previstas pelo Código de Processo Civil8 naquele sentido.

Quando o CPC é expresso no sentido de que cabe ao autor alegar e comprovar os fatos
constitutivos do seu direito a doutrina leciona que:

A palavra ônus vem do latim onus, que significa carga, fardo, peso, gravame. Não
existe obrigação que corresponda ao descumprimento do ônus. O não atendimento do
ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho da
causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus de
condição de parte. (NERY JUNIOR; NERY, p. 1.081).

Os danos imateriais em sede de sua reparação também são previstos pelo Código de
Defesa do Consumidor, inclusive, como direito básico.9 A doutrina ressalta ser o consumidor
um titular de direitos fundamentais, como explicam Claudia Lima Marques, Antonio Herman
V. Benjamin e Bruno Miragem, (2019), além ser o consumidor “[...] um sujeito de direitos
especiais [...]”. (MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM, 2019, p. 333). De sorte que:

8
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito;
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
9
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;
49

Cumulação de danos morais e materiais. O ressarcimento do dano moral foi


assegurado ao consumidor pelo art. 6.º, inciso VI, do CDC, mas não se limita ao
ressarcimento de danos morais em relações extracontratuais. No novo sistema de
direito brasileiro, a jurisprudência está aceitando a cumulação de pretensões de
indenização de danos materiais (entrega de produto falho) e de danos morais (envio
do nome do cliente para o SPC durante as conversações para conserto do produto ou
durante a discussão judicial da dívida). (MARQUES; BENJAMIN; MIRAGEM,
2019, p. 345).

Enfrentada a questão do ônus da prova, o próximo tópico irá analisar o fato dor,
sofrimento e humilhação e o seu contexto com o dano imaterial.

4 DOR, SOFRIMENTO E HUMILHAÇÃO

Quantificar o dano imaterial não é tarefa fácil. Nesse sentido a doutrina nos ensina que:
“[...] os danos extrapatrimoniais têm-se constituído em um dos temas mais controvertidos na
responsabilidade civil, sendo que, até recentemente, discutia-se sua própria indenizabilidade”.
(SANSEVERINO, 2010, p. 257).

Mas, em (in) existindo dor, humilhação, por exemplo, como fica o dano imaterial em
termos de sua comprovação? Aqueles critérios influenciam na prova do dano extrapatrimonial?
Sobre o critério da dor, em especial, Anderson Schreiber ressalta que:

[...] a concreta lesão a um interesse extrapatrimonial verifica-se no momento em que


o bem objeto do interesse é afetado. Assim, há lesão à honra no momento em que a
honra da vítima vem a ser concretamente afetada, e tal lesão em si configura dano
moral. A consequência (dor, sofrimento, frustração) que a lesão à honra possa vir a
gerar é irrelevante para a verificação do dano, embora possa servir de indício para a
análise de sua extensão, ou seja, para a quantificação da indenização a ser concedida.
Nem aí, todavia, é imprescindível. (SCHREIBER, 2013, p. 134).

Gustavo Tepedino, Aline de Miranda Valverde Terra e Gisela Sampaio da Cruz Guedes
ponderam que a reparação do dano imaterial deve ser vista de forma objetiva, ou seja: “[...]
surgindo a partir da lesão a direito da personalidade, independentemente do impacto que tenha
causado nos sentimentos da vítima”. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES, 2020, p. 43).

Em momento diverso tivemos a oportunidade de analisar julgamento também no âmbito


do Superior Tribunal de Justiça que discorreu sobre a questão do dano imaterial à luz do
descumprimento do dever de fidelidade recíproca. Segundo a Corte, para que o pedido tenha
procedência deve haver, ao lado do descumprimento do dever de fidelidade, situação
comprovada de colocar a parte em constrangimento, humilhação, parecendo, então, que a
50

corrente subjetiva do dano extrapatrimonial deve existir para aquele tipo de violação.
(ALMEIDA, 2021, p. 134).

Em outro julgamento, desta vez, proferido no âmbito do Tribunal de Justiça do Rio


Grande do Sul, embora a alusão à corrente subjetiva do dano imaterial não esteja presente de
forma expressa na fundamentação do voto condutor, podemos claramente perceber sua
presença através das palavras dor, sofrimento, vexame, como critérios para a configuração do
dano, e que venham, ainda, acima da normalidade dos fatos:

Para a caracterização do dano moral, impõe-se seja a vítima do ilícito abalroada por
uma situação tal que a impinja verdadeira dor e sofrimento, sentimentos esses capazes
de incutir-lhe transtorno psicológico de grau relevante. O vexame, humilhação ou
frustração ― se é que existiram ― devem interferir de forma intensa no âmago do
indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. [...].
(BRASIL, 2023).

Em relação à questão trazida nesta seção (arbitramento), encontramos posicionamento


do Superior Tribunal de Justiça no seguinte sentido:

Com efeito, se os elementos anímicos, como já analisados anteriormente, não servem


à caracterização do dano existencial, aqui eles desempenham um importante papel,
haja vista que a angústia e o sofrimento se apresentam como elementos negativos
capazes de influenciar no arbitramento. (BRASIL, 2023).

O Superior Tribunal de Justiça também se manifestou em outra decisão sobre o


denominado preço da dor (pretium doloris) considerando justamente a dor para fins de
reparação civil. (BRASIL, 1995). Neste outro julgamento, a Corte assim se pronunciou:

A reparação do dano moral tem nítido propósito de minimizar a dor experimentada,


além de também servir de desestímulo à prática de atos contrários ao direito,
prevenindo a ocorrência de situações assemelhadas. Nesse sentido:
(...)
Repita-se que a prestação pecuniária, no caso, tem função meramente satisfatória,
procurando suavizar o mal, não por sua própria natureza, mas pelo conforto que o
dinheiro pode proporcionar, compensando até certo ponto o dano que foi injustamente
causado.
É certo que não há critérios para que se estabeleça o "pretium doloris". A doutrina
pondera que inexistem "caminhos exatos" para se chegar à quantificação do dano
extrapatrimonial, mas lembra também que é muito importante a atuação do juiz, a fim
de que alcance" a equilibrada fixação do 'quantum' da indenização", dentro da
necessária "ponderação e critério". (BRASIL, 2023).

Em Minas Gerais o preço da dor serviu de fundamento para a estimativa do dano


extrapatrimonial. (BRASIL, 2023).
51

De sorte que a análise da dor, do vexame, da angústia como percebemos de algumas


decisões trazidas são sim situações fáticas extremamente importantes na análise do todo fático
em sede de danos imateriais, mas entendemos, por outro lado, que eventual ausência, por si só,
não pode afastar condenações por violações a direitos da personalidade se com esta não se
confundem.

5 CONCLUSÃO

Além do direito material tratado nestas linhas, quando se fala na configuração do dano
imaterial, se fala, no aspecto do direito processual civil, em causa de pedir e pedido,10 e também
em ônus da prova como mencionado anteriormente.

Ingo Wolfgang Sarltet pondera que, se no direito positivo constitucional de nosso país
a inserção positiva do princípio da dignidade da pessoa humana veio com demora (2019),
entendemos que não pode o sistema da responsabilidade civil exigir, por si só, uma dor, uma
humilhação acima da normalidade para a vítima ser reparada a título de danos
extrapatrimoniais, justamente sob pena violação à dignidade da pessoa humana do ofendido.

Fernando Noronha, por sua vez, nos remete ao passado a título de tramitação do
Anteprojeto do atual Código. Observa o mestre que a legislação de 2002 não veio formada por
muitas inovações (2013). Ainda, afirma o mestre que:

Os preceitos que em 2002 foram convertidos em lei foram praticamente os mesmos


que já constavam no Anteprojeto de 1972, tendo passado este aos Anteprojetos de
1974 e 1975, assim, pode-se dizer que o Código novo retrata um momento da evolução
da responsabilidade civil, na melhor das hipóteses, correspondente ao final dos anos
sessenta do século XX. (NORONHA, 2013, p. 573-574).

A doutrina acima nos inspira, sob nossa conta e risco, a se entender que, se a humilhação,
a dor ou o vexame, por exemplo, forem essenciais à caracterização dos danos imateriais,
oriundas de uma interpretação muito antiga, cujos danos extrapatrimoniais não eram bem vistos,
o direito de danos em sua atualidade restará comprometido. Nesse sentido acentua Yussef Said
Cahali: “Na reciclagem periódica do tema da reparação do dano moral, a presente fase é de
superação de antinomias anteriores, com sua consagração definitiva, em texto constitucional e
enunciado sumular que o asseguram”. (2011, p. 17).

10
Art. 319. A petição inicial indicará:
III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;
IV - o pedido com as suas especificações;
52

Inclusive, já afirmava Aguiar Dias em relação às novas tendências da responsabilidade


civil que: “[...] mais do que apontar o responsável pelo dano, optaram legisladores e aplicadores
do direito em dizer como ele será reparado”. (2012, p. 39).
Pelas razões expostas nesta pesquisa é que ganham força as lições de Maria Celina
Bodin de Moraes, ao ensinar sobre os danos imateriais e a questão da dor, do vexame e da
humilhação, de um constrangimento, (2017), no seguinte sentido:

Através destes vocábulos, não se conceitua juridicamente, apenas se descrevem


sensações e emoções desagradáveis, que podem ser justificáveis, compreensíveis,
razoáveis, moralmente legítimas até, mas que, se não forem decorrentes de danos
injustos, ou melhor, de danos a situações merecedoras da tutela por parte do
ordenamento, não são reparáveis. (MORAES, 2017, p. 130).

Como se falar em segurança jurídica em decisões que dependem da subjetividade do


julgador decidindo sobre a subjetividade da vítima ao analisar um fato que, segundo aquela, lhe
teria colocado em estado de constrangimento e, por sua, vez, à luz do entendimento do
magistrado, não seria considerado constrangimento, ou humilhação, por exemplo? Nesse
sentido ensina Francisco Amaral, justamente sobre a segurança jurídica, que esta tem relação
com a estabilidade, consistindo “[...] na certeza de realização do direito”. (2018, p. 66).

Inspirados nas lições doutrinárias de Flaviana Rampazzo Soartes, ensinando sobre o


nexo de causalidade e o dever de reparação (2023), mas por nossa conta e risco, aplicados os
ensinamentos ao objeto deste trabalho, surge a necessidade de definição da causa (dor,
humilhação, vexame e/ou ofensa a direitos da personalidade, contextualizando as lições da
autora) e, a partir de então, chegando-se à delimitação “[...] do dano juridicamente qualificado
que será indenizado pelo imputado”. (SOARES, 2023, p. 80).

A pesquisa nos mostrou que dor, humilhação, vexame, não são critérios que, segundo a
doutrina, formam os danos imateriais, mas, sim, efeitos que, muitas vezes, podem se configurar.
Por tal razão, entendemos que a análise do caso concreto passa pelo estudo da violação a direitos
da personalidade como configuração do dano extrapatrimonial. Passo seguinte é a checagem se
fatores como a dor, a humilhação, o vexame, estão inseridos na mencionada violação. De sorte
que, sem eles, não podem objetivamente ver improcedente um pedido de condenação por danos
imateriais quando, no caso, verificar-se a ofensa a direitos da personalidade como visto ao longo
destas linhas.
53

REFERÊNCIAS

AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. 12 ed. DIAS, Rui Berford (atual). Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2012.

ALMEIDA, Felipe Cunha de. Descumprimento do dever de fidelidade recíproca e o julgamento


do agint no ARESP 1673702/SP: conclusão da humilhação como isolada e extra causa
configuradora do dano imaterial. In: REVISTA IBERC. v. 4, n. 3, p. 125-146, set./dez. 2021, p.
134. Disponível em: <https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/183>.
Acesso em: 28 mai. 2023.

ALMEIDA, Felipe Cunha de. Inversão do ônus da prova, lesão a direitos de personalidade a
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56

DANO MORAL E PRESCRIÇÃO À LUZ DOS PRAZOS PREVISTOS


NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E DO CÓDIGO
CIVIL

Felipe Cunha de Almeida1


Emily Cristini de Vargas Sartori2

RESUMO

Este artigo analisou o estudo do tema relativo à prescrição da pretensão envolvendo as ações
que têm como pedido a condenação por danos morais e os prazos previstos pelo Código de
Defesa do Consumidor (cinco anos) e pelo Código Civil (especificamente, três e dez anos) à
luz das diferentes causas de pedir, estas, que terão influência decisiva na análise e incidência
do respectivo prazo enquanto fundamento para a ação e para a decisão judicial que os apreciar.

Palavras-chave: Dano moral; Prescrição; Prazos; Código de Defesa do Consumidor; Código


Civil.

Abstract: This article analyzed the study of the subject related to the prescription of the
pretension involving the actions that have as a request the condemnation for moral damages
and the deadlines foreseen by the Consumer Protection Code (five years) and by the Civil Code
(specifically, three and ten years) in light of the different causes of action, these, which will
have a decisive influence on the analysis and incidence of the respective term as a basis for the
action and for the judicial decision that assesses them.

Keywords: Moral damage. Prescription. Deadlines. Consumer Protection Code. Civil Code.

INTRODUÇÃO

Mais do que ficar atento às espécies de responsabilidade civil (objetiva, subjetiva,


contratual e extracontratual), além, é claro, da busca pela pesquisa dos pressupostos da
responsabilidade, também é de suma importância o estudioso estar atento aos prazos
prescricionais quanto à pretensão de reparação.

A afirmativa acima ganha maio relevo quando nos deparamos com o Código Civil e
seus diversos prazos prescricionais conforme veremos mais adiante. Afinal de contas, qual e

1
Mestre em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Processual
Civil e Direito Civil com ênfase em Direito Processual Civil, professor, advogado, parecerista. E-mail:
felipecunhaprofessor@gmail.com.
2
Acadêmica do curso de Direito das Faculdades Integradas de Taquara – FACCAT. E-mail:
emilysartori@sou.faccat.br.
57

como saber o prazo que vamos lidar no caso concreto? Três anos, dez anos? Ou, cinco anos,
como prevê o Código de Defesa do Consumidor?

Pois bem, as palavras de Pontes de Miranda, “[...] o valor do objeto que foi ofendido é
o do momento em que se deu a perda, destruição ou não-prestação”. (2003, p. 258).

O Código Civil prevê que, violado o direito, surge a pretensão da reparação,3 apontando
os respectivos prazos prescricionais, nos termos dos arts. 2054 e 206.5

Nesta seara, pode-se definir o dano moral, de acordo com a doutrina contemporânea,
como uma lesão ao direito de personalidade e, portanto, uma reparação se mostra necessária

3
Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que
aludem os arts. 205 e 206.
4
Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
5
Art. 206. Prescreve:
§ 1º Em um ano:
I - a pretensão dos hospedeiros ou fornecedores de víveres destinados a consumo no próprio estabelecimento, para
o pagamento da hospedagem ou dos alimentos;
II - a pretensão do segurado contra o segurador, ou a deste contra aquele, contado o prazo:
a) para o segurado, no caso de seguro de responsabilidade civil, da data em que é citado para responder à ação de
indenização proposta pelo terceiro prejudicado, ou da data que a este indeniza, com a anuência do segurador;
b) quanto aos demais seguros, da ciência do fato gerador da pretensão;
III - a pretensão dos tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários judiciais, árbitros e peritos, pela percepção de
emolumentos, custas e honorários;
IV - a pretensão contra os peritos, pela avaliação dos bens que entraram para a formação do capital de sociedade
anônima, contado da publicação da ata da assembléia que aprovar o laudo;
V - a pretensão dos credores não pagos contra os sócios ou acionistas e os liquidantes, contado o prazo da
publicação da ata de encerramento da liquidação da sociedade.
§ 2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.
§ 3º Em três anos:
I - a pretensão relativa a aluguéis de prédios urbanos ou rústicos;
II - a pretensão para receber prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias;
III - a pretensão para haver juros, dividendos ou quaisquer prestações acessórias, pagáveis, em períodos não
maiores de um ano, com capitalização ou sem ela;
IV - a pretensão de ressarcimento de enriquecimento sem causa;
V - a pretensão de reparação civil;
VI - a pretensão de restituição dos lucros ou dividendos recebidos de má-fé, correndo o prazo da data em que foi
deliberada a distribuição;
VII - a pretensão contra as pessoas em seguida indicadas por violação da lei ou do estatuto, contado o prazo:
a) para os fundadores, da publicação dos atos constitutivos da sociedade anônima;
b) para os administradores, ou fiscais, da apresentação, aos sócios, do balanço referente ao exercício em que a
violação tenha sido praticada, ou da reunião ou assembléia geral que dela deva tomar conhecimento;
c) para os liquidantes, da primeira assembléia semestral posterior à violação;
VIII - a pretensão para haver o pagamento de título de crédito, a contar do vencimento, ressalvadas as disposições
de lei especial;
IX - a pretensão do beneficiário contra o segurador, e a do terceiro prejudicado, no caso de seguro de
responsabilidade civil obrigatório.
§ 4º Em quatro anos, a pretensão relativa à tutela, a contar da data da aprovação das contas.
§ 5º Em cinco anos:
I - a pretensão de cobrança de dívidas líquidas constantes de instrumento público ou particular;
II - a pretensão dos profissionais liberais em geral, procuradores judiciais, curadores e professores pelos seus
honorários, contado o prazo da conclusão dos serviços, da cessação dos respectivos contratos ou mandato;
III - a pretensão do vencedor para haver do vencido o que despendeu em juízo.
58

para compensar a lesão sofrida, não sendo o seu objetivo o de trazer acréscimos ao patrimônio.
Isso ocorre porque o dano não é contra o patrimônio, ou seja, um dano material, mas trata-se de
um prejuízo imaterial, contra a honra, à imagem, à privacidade, à dignidade e etc.

Desta forma, como qualquer outro instituto presente em nosso ordenamento jurídico,
existem prazos a serem observados, seja para a propositura da ação ou demais atos relativos à
matéria. É neste ponto que um cuidado maior deve ser tomado, pois pode-se encontrar possíveis
divergências.

Entretanto, conforme demonstrado até o fim do presente artigo, a questão principal deste
assunto está na identificação da causa de pedir, elemento fundamental na propositura de
qualquer ação. Desta forma, passa-se a análise dos quesitos essenciais para a compreensão do
tema.

1 CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E CÓDIGO CIVIL

O Código de Defesa do Consumidor, a Lei nº 8.078/90, nasce com o objetivo de


preencher as lacunas deixadas pelos demais diplomas legais, ao mesmo tempo que buscava
acompanhar os novos rumos que a sociedade vinha tomando, tanto no quesito cultural como
legislativo. A Lei buscou compreender que a dignidade humana também precisa abranger as
relações privadas comerciais, bem como da multiplicidade de indivíduos alcançados pela
mesma relação de fato e de direito (SILVESTRINI, NETO, VILELA, 2019).

Pode-se dizer que ele é um complemento do que já estava previsto no Código Civil,
simultaneamente que preenche aquilo que não era tratado em seu texto.

Mas um fato é que com as mudanças ocorridas no novo Código Civil de 2002, ambos
os textos legais passaram a tratar os direitos de personalidade com mais preocupação e clareza.
Agora, à luz da Constituição cidadã, elevaram o princípio da dignidade da pessoa humana ao
patamar mais alto, principalmente por meio dos institutos que estão sendo trabalhados, a saber
responsabilidade civil e danos morais, além é claro dos danos materiais e patrimoniais.

Portanto, como já dito anteriormente, atentando-se ao pedido de indenização, bem como


a causa de pedir, não importa apenas ao devido prazo prescricional, mas também no que tange
ao seu enquadramento no que se pretende alcançar com a ação. Deste modo, o maior foco de
ambos os Códigos e dos institutos citados, é o de defender a pessoa em todas as esferas de sua
59

personalidade dignidade, para que o que está escrito nos textos legais seja de fato efetivo em
seu propósito, conforme continuaremos observando e compreendendo.

2 RESPONSABILIDADE CIVIL E DANO MORAL

A responsabilidade, segundo a doutrina e para o Direito:

[...] é, portanto, que uma obrigação derivada – um dever jurídico sucessivo – de


assumir as consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem varias
(reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os
interesses lesados. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 47).

Em termos de ofensas a direitos de personalidade e a dignidade da pessoa humana, assim


ensina Fernando Noronha:

A primeira categoria de lesões que geram responsabilidade civil em sentido estrito é


constituída pelas violações de direitos da personalidade. Estes são os direitos que,
pode dizer-se, constituem a versão civil dos direitos fundamentais da pessoa humana,
tutelando esta, na esfera privada: têm por objeto salvaguardar o respeito devido ao
corpo (vida, saúde), à imagem, ao nome, pensamento, honra, liberdade e mais
atributos da pessoa. Os princípios gerais aplicáveis a tais direitos são objeto de
expressa previsão nos arts. 11 e s. do Código Civil. (NORONHA, 2013, p. 466).

Entende-se, portanto, a proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana atrelados


a essência da responsabilidade civil e do dano moral, tendo em vista que este pode ser visto
como um dano que pode ser causado restritamente a pessoas naturais, podendo também as
regras deste instituto serem aplicadas, no que couber, em casos de danos causados a pessoas
jurídicas no que tange a proteção relativa aos direitos da personalidade, conforme o art. 52, do
Código Civil.

Sobre o dano e sua importância assim as lições doutrinárias de Agostinho Alvim:

Como regra geral, devemos ter presente que a inexistência de dano é óbice à pretensão
de uma reparação, aliás, sem objeto.
Ainda mesmo que haja a violação de um dever jurídico e que tenha existido culpa e
até mesmo dolo por parte do infrator, nenhuma indenização será devida, uma vez que
não se tenha verificado prejuízo. (ALVIM, 1980, p. 181).

Em continuidade, a título de complemento:

O dano é elemento essencial do ato ilícito e da responsabilidade civil. Cuidando-se de


elemento essencial do ato ilícito, fonte da responsabilidade civil, sem dano não há ato
60

ilícito, ainda que se esteja de conduta antijurídica. (TEPEDINO; BARBOZA;


MORAES, 2014, p. 338).

Portanto, o dano nada mais é do que um dos pressupostos da responsabilidade civil, pois
sem ele não existe o que responsabilizar e consecutivamente o que reparar por meio da
indenização. O dano causado pode ser patrimonial ou material (prejuízos de natureza
econômica) ou moral (prejuízos de natureza não econômica).

Sobre o dano moral Humberto Theodoro Júnior aponta:

De maneira mais ampla, pode-se afirmar que são danos morais os ocorridos na esfera
da subjetividade, ou no plano valorativo da pessoa na sociedade, alcançando os
aspectos mais íntimos da personalidade humana (“o da intimidade e da consideração
pessoal”), ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua (“o da
reputação ou da consideração social”).3 Derivam, portanto, de “práticas atentatórias
à personalidade humana”.4 Traduzem-se em “um sentimento de pesar íntimo da
pessoa ofendida”5 capaz de gerar “alterações psíquicas” ou “prejuízo à parte social
ou afetiva do patrimônio moral” do ofendido. (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 1)

Desta forma, o instituto da responsabilidade civil se apresenta aqui através da obrigação


que o agente do dano possui de compensar a ofensa causada a outrem por meio de uma
indenização pecuniária que tem por objetivo compensar a pessoa lesada e não a de aumentar o
seu patrimônio. Trata-se de uma retratação devido à ilicitude da conduta do agente e da
gravidade da lesão suportada pela vítima. (THEODORO JÚNIOR, 2016).

No que tange ao dano moral no âmbito dos direitos inerentes ao consumidor, dentre as
situações que podem ser consideradas como danos morais na relação de consumo identifica-se
a venda de produtos com defeito, a prestação de serviços inadequados, a propaganda enganosa,
a violação da privacidade do consumidor, a cobrança indevida, o descumprimento de prazos e
condições de entrega, entre outras, além, é claro, de inscrição no Serviço de Proteção ao Crédito
– SPC ou na SERASA, seja de forma indevida ou por motivos vexatórios e de constrangimento.
(THEODORO JÚNIOR, 2016).

Entretanto, é necessário observar que o constrangimento constante no Código de Defesa


do Consumidor, em seu art. 42, tem o foco de impedir a cobrança de dívidas de forma abusiva,
ilegal ou constrangedora, não sendo impedido ao cobrador que a realize a cobrança ou procure
meios de que a obrigação devida seja efetuada, através de ações judiciais ou a inscrição nos
serviços de proteção ao crédito. (THEODORO JÚNIOR, 2016).
61

2.2 Causa de pedir e pedido

O Código de Processo Civil em especial no tocante à inicial elenca a exigência de uma


série de requisitos. Um desses é justamente que a parte apresente os fatos e fundamentos de
direito, que se traduz na causa de pedir: “Art. 319. A petição inicial indicará: III - o fato e os
fundamentos jurídicos do pedido” (BRASIL, 2015).

Sobre os elementos da ação Cassio Scarpinella Bueno aponta:

Os elementos da ação são os seguintes: (i) partes (o autor, que pede a tutela
jurisdicional, e o réu, em face de quem tal tutela é pedida); (ii) pedido (que
corresponde ao bem da vida pretendido pelo autor, geralmente denominado de pedido
mediato, e à providência jurisdicional apta a outorgá-lo, usualmente chamado de
pedido imediato); e (iii) causa de pedir (que corresponde às razões de fato e de direito
que embasam o pedido, usualmente denominadas, respectivamente, de causa de pedir
remota e causa de pedir próxima). (BUENO, 2022, p. 44)

Neste sentido o pedido não existe sem a causa de pedir, ele se torna inócuo, tendo em
vista que um pedido não acompanhado de seus devidos fundamentos jurídicos e motivo fático
não possui nenhuma consistência ou força.

O estudo da causa de pedir como veremos mais adiante é de muita importância para se
concluir sobre o prazo adequado a título de prescrição da pretensão de reparação por danos
imateriais. É que se a causa de pedir reside em um acidente de trânsito entre particulares, por
exemplo, o Código Civil apresenta um determinado prazo prescricional. Por outro lado, se a
causa de pedir tiver como fundamento um acidente de consumo, a matéria será regida pelo
Código de Defesa do Consumidor, que apresenta outro prazo.

Ainda, se não houver prazo estabelecido em lei, a reparação terá como prazo a regra
geral estabelecida pelo Código Civil.

Mas, se por um lado os fatos podem apresentar causas de pedir diferentes como acima
afirmado, a um aspecto todas elas se sintonizam, ou seja: que o pedido será o da condenação
do réu por danos morais.

3 PRESCRIÇÃO

Segundo a doutrina:

A manutenção de situações jurídicas pendentes, indefinidamente, por lapsos


temporais prolongados, importaria, sem dúvida, em insegurança e seria fonte de
conflitos e prejuízos diversos. Consequentemente, surge a necessidade de controlar,
62

temporariamente, o exercício de pretensões, propiciando segurança jurídica e


pacificação social (FARIAS; NETTO; ROSENVALD, 2015, p. 411).

Ao nos deparamos com uma ação contendo pedido de reparação por danos imateriais
e/ou materiais, como visto na introdução deste artigo, vimos que, dentre os vários prazos que o
Código Civil apresenta, a pretensão pode prescrever em 10 anos, em três anos e, na sistemática
do Código de Defesa do Consumidor, em cinco anos. Para fins de direito, seja qual for o prazo,
se o juiz entender prescrita a pretensão do demandante, o Código de Processo Civil é muito
claro quanto ao resultado da ação “Art. 487. Haverá resolução de mérito quando o juiz: [...]II -
decidir, de ofício ou a requerimento, sobre a ocorrência de decadência ou prescrição;”
(BRASIL, 2015).

Paulo Lôbo, por sua vez, alerta que: “A pessoa tem de exercer e exigir seu direito em
tempo razoável, máxime quando se tratar de bens econômicos”. (2017, p. 354). De sorte que,
em determinada ação ou omissão acarretar na violação a bem jurídico de cunho não patrimonial,
como no caso da violação a direitos da personalidade, faz-se necessário estudo e aplicação da
prescrição de formas diferentes, pois previstos prazos distintos como vimos até aqui e
seguiremos sustentando.

Mas quando podemos verificar o início da prescrição, independentemente do prazo a


ser aplicado ao caso concreto? Bem, para começar a responder adequada e tecnicamente aquela
indagação, devemos observar as disposições do Código Civil em especial ao art. 189: “Art. 189.
Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos
a que aludem os arts. 205 e 206”. (BRASIL, 2002).

4 CÓDIGO CIVIL: PRAZOS DE TRÊS E DEZ ANOS

Identificamos no Código Civil a previsão de dois prazos prescricionais muito


importantes, um de dez anos e outro de três. Contudo, o que expressamente o Código não indica
é no tocante à espécie de responsabilidade civil, se contratual ou extracontratual tais prazos se
aplicariam: “Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo
menor.”. (BRASIL, 2002). Ainda: “Art. 206. Prescreve: § 3º Em três anos: V - a pretensão de
reparação civil” (BRASIL, 2002). Conforme aponta Flávio Tartuce:

O prazo da prescrição, como se sabe, é o espaço de tempo existente entre seu termo
inicial e final. Como antes demonstrei, ao contrário da codificação anterior, o Código
Civil de 2002 optou por um critério simplificado de dez anos para o prazo
prescricional geral, tanto para as ações pessoais como para as reais, salvo quando a lei
lhe tenha fixado prazo menor (art. 205).
63

Nesse contexto, pode-se dizer que os prazos de prescrição recebem a seguinte


classificação: a) prazo ordinário ou comum – quando não houver previsão de prazo
especial, tem-se o citado prazo prescricional de dez anos, tanto para as ações pessoais
quanto reais; e b) prazos especiais – prazos mais exíguos para possibilitar o exercício
de certos direitos subjetivos, em situações especiais previstas nos cinco parágrafos do
art. 206 do Código Civil. Como demonstrado, os prazos de prescrição, no Código
Civil de 2002, estão todos previstos no citado art. 206 e são de 1, 2, 3, 4 ou 5 anos, de
acordo com o número do parágrafo correspondente. (TARTUCE, 2022, p. 1100)

Por sua vez, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é o de incidência do prazo


prescricional de três anos previsto pelo Código Civil para as pretensões de reparação civil
extracontratual:

Ementa: INCIDENTE DE ASSUNÇÃO DE COMPETÊNCIA. RECURSO


ESPECIAL. SEGURO DE VIDA. PRETENSÕES QUE ENVOLVAM SEGURADO
E SEGURADOR E QUE DERIVEM DA RELAÇÃO JURÍDICA SECURITÁRIA.
PRAZO PRESCRICIONAL ÂNUO. 1. Nos termos da jurisprudência da Segunda
Seção e da Corte Especial, o prazo trienal do artigo 206, § 3º, inciso V, do Código
Civil de 2002 adstringe-se às pretensões de indenização decorrente de
responsabilidade civil extracontratual — inobservância do dever geral de não lesar —
, não alcançando as pretensões reparatórias derivadas do inadimplemento de
obrigações contratuais (EREsp 1.280.825/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi,
Segunda Seção, julgado em 27.6.2018, DJe 2.8.2018; e EREsp 1.281.594/SP, relator
Ministro Benedito Gonçalves, relator para acórdão Ministro Felix Fischer, Corte
Especial, julgado em 15.5.2019, DJe 23.5.2019). 2. Em relação ao que se deve
entender por "inadimplemento contratual", cumpre salientar, inicialmente, que a visão
dinâmica da relação obrigacional — adotada pelo direito moderno — contempla não
só os seus elementos constitutivos, como também as finalidades visadas pelo vínculo
jurídico, compreendendo-se a obrigação como um processo, ou seja, uma série de atos
encadeados conducentes a um adimplemento plenamente satisfatório do interesse do
credor, o que não deve implicar a tiranização do devedor, mas sim a imposição de
uma conduta leal e cooperativa das partes (COUTO E SILVA, Clóvis V. do. A
obrigação como processo. São Paulo: Bushatsky, 1976, p. 5). 3. Nessa perspectiva, o
conteúdo da obrigação contratual (direitos e obrigações das partes) transcende as
"prestações nucleares" expressamente pactuadas (os chamados deveres principais ou
primários), abrangendo, outrossim, deveres secundários (ou acessórios) e fiduciários
(ou anexos). 4. Sob essa ótica, a violação dos deveres anexos (ou fiduciários)
encartados na avença securitária implica a obrigação de reparar os danos (materiais
ou morais) causados, o que traduz responsabilidade civil contratual, e não
extracontratual, exegese, que, por sinal, é consagrada por esta Corte nos julgados em
que se diferenciam "o dano moral advindo de relação jurídica contratual" e "o dano
moral decorrente de responsabilidade extracontratual" para fins de definição do termo
inicial de juros de mora (citação ou evento danoso). 5. Diante de tais premissas, é
óbvio que as pretensões deduzidas na presente demanda — restabelecimento da
apólice que teria sido indevidamente extinta, dano moral pela negativa de renovação
e ressarcimento de prêmios supostamente pagos a maior — encontram-se
intrinsecamente vinculadas ao conteúdo da relação obrigacional complexa instaurada
com o contrato de seguro. 6. Nesse quadro, não sendo hipótese de incidência do prazo
prescricional de dez anos previsto no artigo 205 do Código Civil de 2002, por existir
regra específica atinente ao exercício das pretensões do segurado em face do
segurador (e vice-versa) emanadas da relação jurídica contratual securitária, afigura-
se impositiva a observância da prescrição ânua(artigo 206, § 1º, II, "b", do referido
Codex) tanto no que diz respeito à pretensão de restabelecimento das condições gerais
da apólice extinta quanto em relação ao ressarcimento de prêmios e à indenização por
dano moral em virtude de conduta da seguradora amparada em cláusula supostamente
abusiva. 7. Inaplicabilidade do prazo prescricional quinquenal previsto no artigo 27
64

do CDC, que se circunscreve às pretensões de ressarcimento de dano causado por fato


do produto ou do serviço (o chamado "acidente de consumo"), que decorre da violação
de um "dever de qualidade-segurança" imputado ao fornecedor como reflexo do
princípio da proteção da confiança do consumidor (artigo 12). 8. Tese firmada para
efeito do artigo 947 do CPC de 2015: "É ânuo o prazo prescricional para exercício de
qualquer pretensão do segurado em face do segurador — e vice-versa — baseada em
suposto inadimplemento de deveres (principais, secundários ou anexos) derivados do
contrato de seguro, ex vi do disposto no artigo 206, § 1º, II, "b", do Código Civil de
2002 (artigo 178, § 6º, II, do Código Civil de 1916)". 9. Tal proposição não alcança,
por óbvio, os seguros-saúde e os planos de saúde — dada a natureza sui generis desses
contratos, em relação aos quais esta Corte assentou a observância dos prazos
prescricionais decenal ou trienal, a depender da natureza da pretensão — nem o seguro
de responsabilidade civil obrigatório (o seguro DPVAT), cujo prazo trienal decorre
de dicção legal específica (artigo 206, § 3º, inciso IX, do Código Civil), já tendo sido
reconhecida pela Segunda Seção a inexistência de relação jurídica contratual entre o
proprietário do veículo e as seguradoras que compõem o correlato consórcio (REsp
1.091.756/MG, relator Ministro Marco Buzzi, relator para acórdão Ministro Marco
Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 13.12.2017, DJe 5.2.2018). 10. Caso
concreto: (i) no que diz respeito às duas primeiras pretensões — restabelecimento das
condições contratuais previstas na apólice de seguro e pagamento de indenização por
danos morais em virtude da negativa de renovação da avença —, revela-se inequívoca
a consumação da prescrição, uma vez transcorrido o prazo ânuo entre o fato gerador
de ambas (extinção da apólice primitiva, ocorrida em 31.3.2002) e a data da
propositura da demanda (6.2.2004); e (ii) quanto ao ressarcimento de valores pagos a
maior, não cabe ao STJ adentrar na análise da pretensão que, apesar de não ter sido
alcançada pela prescrição, não foi objeto de insurgência da parte vencida no ponto.
11. Em razão do reconhecimento da prescrição das pretensões autorais voltadas ao
restabelecimento da apólice extinta e à obtenção de indenização por danos morais,
encontra-se prejudicado o exame da insurgência remanescente da seguradora sobre a
validade da cláusula contratual que autorizava a negativa de renovação, bem como da
discussão sobre ofensa a direito de personalidade trazida no recurso especial dos
segurados. 12. Recurso especial da seguradora parcialmente conhecido e, nessa
extensão, provido para pronunciar a prescrição parcial das pretensões deduzidas na
inicial. Reclamo dos autores julgado prejudicado, devendo ser invertido o ônus
sucumbencial arbitrado na sentença, que passa a ser de integral improcedência.
(BRASIL, 2021).

Em relação ao prazo prescricional de dez anos, o STJ entende ser aplicável às relações
contratuais (responsabilidade civil contratual, portanto):

Ementa: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO


INDENIZATÓRIA. DECISÃO EXTRA PETITA. AUSÊNCIA DE
PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. RESPONSABILIDADE CIVIL
CONTRATUAL. PRESCRIÇÃO DECENAL. SÚMULA 83/STJ. PLANO DE
SAÚDE. RECUSA DE COBERTURA DE TRATAMENTO. DOENÇA PREVISTA
NO CONTRATO. CARÁTER ABUSIVO. SÚMULA 83/STJ. DANO MORAL.
VALOR INDENIZATÓRIO. REEXAME. SÚMULA 7/STJ. HONORÁRIOS.
OBSERVÂNCIA DOS LIMITES DO ART. 85, § 2º, DO CPC/2015. AGRAVO
INTERNO IMPROVIDO. 1. A Corte Especial do STJ, no julgamento dos EREsp
1.281.594/SP, concluiu que, nas pretensões relacionadas à responsabilidade contratual
(como é o caso), aplica-se a regra geral (art. 205 do CC/2002), que prevê dez anos de
prazo prescricional. 2. “Em regra, a recusa indevida pela operadora de plano de saúde
de cobertura médicoassistencial gera dano moral, porquanto agrava o sofrimento
psíquico do usuário, já combalido pelas condições precárias de saúde, não
constituindo, portanto, mero dissabor, ínsito às situações correntes de inadimplemento
contratual” (AgInt no AREsp 1.876.763/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS
65

BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/11/2021, DJe de 22/11/2021).


3. O valor fixado a título de indenização por danos morais baseia-se nas peculiaridades
da causa. Assim, somente comporta revisão pelo Superior Tribunal de Justiça quando
irrisório ou exorbitante, circunstância não verificada na hipótese, em que a
indenização foi arbitrada em R$ 20.000,00. Incidência da Súmula 7/STJ. 4. Na
hipótese em exame, o quantum fixado a título de verba honorária pela instância
ordinária, em 20% (vinte por cento) sobre o valor da condenação, está dentro dos
parâmetros estabelecidos pelo art. 85 do CPC/2015, e não se caracteriza como
exorbitante ou desproporcional, a justificar a excepcional intervenção do Superior
Tribunal de Justiça. 5. Agravo interno improvido. (BRASIL, 2022).

4.1 Código de Defesa do Consumidor: prazo de cinco anos

Para as relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor também prevê prazo


prescricional na forma do art. 27:

Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por
fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a
contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. (BRASIL,
1990).

Pode-se observar que o prazo estabelecido diz respeito aos casos que envolvem as
hipóteses de fato do produto ou do serviço, o que significa que não existe um prazo específico
para tratar de situações nas quais uma parte não cumpre suas obrigações contratuais, por
exemplo.

Diferentemente do Código Civil, a prescrição no Código de Defesa do Consumidor


possui somente este prazo de cinco anos previsto. Bem como aponta Paulo R. Roque A. Khouri:

Qualquer que seja o acidente de consumo relacionado ao fato do produto ou serviço


de que trata o CDC, o prazo para o consumidor acionar os fornecedores indicados
tanto no art. 12 como no art. 14 é de cinco anos, iniciando-se sua contagem “a partir
do conhecimento do dano e de sua autoria”, conforme prevê o art. 27.
O prazo, como se vê, não começa a fluir a partir do evento danoso, como é a regra,
v.g., do ato ilícito, mas do “conhecimento do dano e de sua autoria”. Pode ocorrer que
a vítima do acidente de consumo não tenha como identificar, em primeiro momento,
quem introduziu o produto ou serviço no mercado, ou que produto ou serviço
específico provocou o acidente. Assim, ficaria impossibilitada de buscar a reparação
do dano. (KHOURI, 2020, p. 228)

Portanto, percebe-se que este é o único prazo previsto no CDC, o qual deve ser
observado em relação ao pedido e à causa de pedir, abrindo margem para que nos demais casos
inerentes ao direito do consumidor sejam aplicados os prazos previstos no Código Civil, tendo
em vista o respeito às regras gerais estabelecidas em seu texto.
66

Nos termos do entendimento do STJ:

Ementa: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO (ARTIGO 544 DO CPC) -


DEMANDA POSTULANDO INDENIZAÇÃO DECORRENTE DO SUPOSTO
CANCELAMENTO INDEVIDO DO CONTRATO DE SEGURO DE VIDA EM
GRUPO - DECISÃO MONOCRÁTICA CONHECENDO DO AGRAVO DA
SEGURADORA PARA DAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL, A FIM
DE PRONUNCIAR A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO AUTORAL. 1. Prazo
prescricional para exercício da pretensão de cobrança de indenização por dano moral
decorrente da recusa da seguradora em renovar contrato de seguro de vida. Lapso ânuo
em atenção ao disposto no artigo 206, § 1º, inciso II, do Código Civil de 2002 (artigo
178, § 6º, inciso II, do Código Civil de 1916). Inaplicabilidade do prazo trienal
atinente aos casos em que se postula reparação civil (artigo 206, § 3º, inciso V, do
Codex vigente). Outrossim, a responsabilidade civil decorrente de inadimplemento
contratual não se assemelha àquela advinda de danos causados por fato do produto ou
do serviço (acidente de consumo), cujo prazo prescricional para exercício da
pretensão à reparação é o quinquenal previsto no artigo 27 do Código de Defesa do
Consumidor. Precedente da Segunda Seção. 2. Agravo regimental desprovido.
(BRASIL, 2014).

De sorte que deve estar atento o operador do Direito na questão trazida nesta seção
conforme o entendimento doutrinário e do STJ trazido.

5 CONCLUSÃO

Encerrando o presente artigo, pudemos identificar a íntima conexão entre as causas de


pedir e pedido em termos de reparação civil, que nos apontam diferentes prazos prescricionais,
como vimos do entendimento do Superior Tribunal de Justiça. De sorte que, por exemplo e
voltando às relações de consumo, o prazo prescricional de cinco anos diz respeito aos acidentes
de consumo. Por outro lado, mesmo que a relação seja de consumo, caso a responsabilidade
seja contratual, o prazo, então, será o de dez anos previsto pelo Código Civil como regra geral,
justamente por não encontrar previsão específica.

Como observa Bruno Miragem, se estamos em uma era da denominada


repersonalização do direito civil cuja concentração passa pela proteção da integridade física e
moral da pessoa e no reconhecimento da proteção dos seus interesses (2021), entendemos que,
no caso de sua violação, o conhecimento sobre a prescrição, seus prazos e se a relação de direito
civil ou de consumo é fundamental para a competente ação judicial de reparação.

De sorte que a pergunta que trouxemos na introdução deste trabalho, para ser
tecnicamente bem respondida, além da causa de pedir, vai nos levar à discussão sobre a
responsabilidade contratual e extracontratual também, como pudemos ter a oportunidade de
analisamos anteriormente.
67

REFERÊNCIAS

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Saraiva, 1980.

BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. DF, 01 jan. 2002. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>.

BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. DF, 11 jan. 1973.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5869.htm>.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. DF, 05 outubro de 1988.


Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Segunda Seção. REsp n. 1.303.374/ES. Rel. Min: Luis
Felipe Salomão. Julgado em: 30/11/2021. Disponível em:
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22 jul. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no AREsp n. 2.019.649/SP. Rel.
Min: Raul Araújo. Julgado em 08/08/2022. Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_t
ipo=integra&documento_sequencial=161009124&registro_numero=202103673543&peticao_
numero=202200140229&publicacao_data=20220826&formato=PDF>. Acesso em: 22 jul.
2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp n. 521.484/SP. Quarta Turma. Rel.
Min: Marco Buzzi. Julgado em: 11/11/2014. Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequenc
ial=1364034&num_registro=201401165524&data=20141117&peticao_numero=2014003640
86&formato=PDF>. Acesso em: 22 jul. 2023.

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 8 ed. São Paulo: SaraivaJur,
2022.

FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. Novo
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:
responsabilidade civil. v. 3. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa


do consumidor em juízo. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2021.

LÔBO, Paulo. Direito civil: parte geral. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade civil 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.


68

NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2013.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte especial:


direito das obrigações: obrigações e suas espécies: fontes e espécies de obrigações. Tomo 22.
1 ed. ALVES, Vilson Rodrigues (atual). Campinas: Bookseller, 2003.

TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.

TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de.
Código civil interpretado conforme a constituição da república: parte geral e obrigações (arts.
1º a 420). v. I. 3 ed. Rio-São Paulo: Renovar, 2014.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

SILVESTRINI, João Pedro; NETO, Zaiden Geraige; VILELA, Thiago Ribeiro Franco. A
Contribuição do Código de Defesa do Consumidor na Tutela de Interesses Individuais e
Coletivos. In: Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas, Santo Ângelo, v. 19. 34 ed,
p. 97-112, 2019. Disponível em: <https://core.ac.uk/download/pdf/322640973.pdf>. Acesso
em: 28 jul. 2023.
69

VAZAMENTO DE DADOS E A RESPONSABILIDADE CIVIL


Análise de julgados no TJRS

Fernanda Pimentel da Silva1


Janine Mariel Massing Buogo2

RESUMO

Os dados são considerados de elevado valor em nosso contexto, visto que permitem não apenas
entabular relações, mas também gerar efeitos. A partir da relevância do tema e constantes
debates acerca da proteção de dados e a responsabilidade civil surgiu o presente trabalho para
analisar o comportamento dos julgados sobre a temática no Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul. A partir de estudo do acervo jurisprudencial produzido no período de junho
de 2022 à maio de 2023, observa-se que não há unanimidade das decisões, mas a comprovação
de adequação por parte da empresa, pode ser fator importante para ações serem julgadas
procedentes.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Vazamento; Dados; Indenização.

1 INTRODUÇÃO

O diálogo entre as diferentes fontes do direito, permite o estudo interdisciplinar, tão


importante para os profissionais do direito que atuam com a responsabilidade civil, e justamente
a partir de tal viés surgem as reflexões do presente estudo. A pesquisa a seguir exposta, está em
fase embrionária e terá a integralidade de seus resultados expostas em trabalho de conclusão de
curso, no qual as autoras laboram, uma como orientadora e a outra como orientanda, porém
dados elementos já identificados, serão aqui apresentados.

O panorama atual das decisões do Poder Judiciário foi relevante para a escolha desse
assunto, bem como a relação da Responsabilidade Civil e o vazamento de dados pessoais. A
partir da pesquisa jurisprudencial é possível conhecer não apenas correntes majoritárias, mas
ainda elementos que se repetem nas lides. Pensando em tal aprendizado, através do repertório
jurisprudencial foi elaborado o presente estudo que analisa os julgados publicados pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, envolvendo vazamento de dados e responsabilidade

1
Advogada. Mestre em Direito pela UFSM. Professora universitária. Coordenadora de Curso. Membro da CERC
OAB/RS. Delegada da ESA/RS – Caxias do Sul. E-mail: baltazaradv@hotmail.com.
2
Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito pela UNIFTEC. E-mail: janinemassing@gmail.com.
70

civil, durante o período de primeiro de junho do ano de dois mil e vinte e dois até trinta e maio
de dois mil e vinte três.

O objetivo é verificar, nos julgados recentes de nosso tribunal, como está figurando a
responsabilidade civil, a partir da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (2018), ordenamento
inspirado no conjunto normativo da Europa, e que surgiu da evolução do Marco Civil da
Internet (2014), que até então era uma área sem normatização específica no cenário brasileiro.

Justamente ante a utilização massificada da internet, seja por parte da pessoa natural ou
não, a exposição de dados passou a ser evidente nas relações econômicas. Isso ocorre posto
que, é imprescindível para as interações sociais que ocorrem através de redes, seja para
utilização de plataformas, interações em aplicativos, contratação de um serviço ou mesmo a
compra de um determinado produto. O fornecimento de informações privadas de si, suas
preferências e dados íntimos passa a ser chave para acesso e atuação na vida pessoal ou mesmo
em atividades profissionais.

Por ser uma temática relativamente nova, muitas variáveis são levadas em consideração
para que a compensação ocorra ao titular dos dados. A submissão das empresas aos critérios
estabelecidos na LGPD torna-se um fator preponderando no cunho compensatório da lei, tal
como a extensão do dano sofrido pelo titular. Difícil, porém a identificação de estudos acerca
dos julgados já existentes, leitura importante para quem pretende trabalhar na prevenção.

Assim sendo, a exploração da temática se faz pertinente, ao passo que, examina a


possível reponsabilidade civil no vazamento de dados pessoais e a efetivação da LGPD pelo
poder judiciário, analisando o cenário recente das decisões proferidas nos principais tribunais
no Brasil. O estudo justifica-se, portanto, não apenas pela relevância na dinâmica social, mas
pela necessidade de identificação dos elementos que podem interferir (ou não) em condenações
que reflitam o ressarcimento pretendido, sem atentar ao equilíbrio, fomentando o caráter
pedagógico que condenações podem implementar.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Proteção dos dados pessoais

Observa-se considerável evolução na utilização da internet no Brasil. Segundo dados do


IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) a utilização vem crescendo rapidamente,
71

em 2016, a Internet era utilizada em 69,3% dos domicílios permanentes do País e este
percentual aumentou para 74,9%, em 2017. Importante considerar que essa estimativa abrangeu
o acesso à Internet para as pessoas de 10 anos ou mais de idade.

Pela conjectura do cenário tecnológico e evolução do mundo digital, tornou-se evidente


a necessidade de regulamentação quanto aos direitos daquele usuário mister, que está envolvido
em todas as camadas desse cenário, o cidadão. Ante essa necessidade, no dia 10 de fevereiro
de 2022, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 115, que incluiu a proteção
de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais. A referida alteração constitucional
além de incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais, também
fixou a competência privativa da União para legislar sobre a proteção de dados pessoais.

O novo direito fundamental expresso no artigo 5º, é mais um direito fundamental


relacionado a Dignidade da Pessoa Humana e passou a vigorar da seguinte forma:

LXXIX - é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais,
inclusive nos meios digitais.

Tal como, outro direito amparado pelo artigo 5º, inciso X “são invioláveis a intimidade,
a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano
material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).

Em que pese a norma constitucional seja recente, pode-se afirmar que a proteção de
dados pessoais de forma geral, não é tema novo no Brasil, conforme afirma TEIXEIRA e
GUERREIRO, 2022, a exemplo disso destacamos as menções na CF/88 (art. 5º, X, XI, XII, LV
e IX), Código Civil (arts. 20 e 21) e no Marco Civil da Internet, cujos artigos foram alterados
pela LGPD.

A preocupação pela tutela de tal bem se justifica. Afinal, inegável que os dados são
informações naturalmente importantes e vulneráveis no espaço digital (PINHEIRO, 2020), e
isso se dá, pois “não há limites materiais e fronteiriços na rede virtual, permitindo que uma
informação pessoal – muitas vezes confidencial e privada – possa ser transferida de um local
ao outro de forma ágil e difícil de ser combatida.” (PINHEIRO, 2020, p. 31)

Nesse cenário, surge a importância da lei especial para dispor sobre o tratamento dos
dados pessoais, inclusive nos meios digitais e validar as especificidades e conceitos que ensejam
a temática. Posto isso, é crucial falarmos da Lei Geral de Proteção de Dados pessoais nº 13.709
72

de agosto de 2018, norma concebida sob influência do regulamento europeu, amparando sobremaneira
a intimidade, conforme afirma TARTUCE, 2022.

O objetivo principal da referida lei, em seu artigo 1º, que visa proteger os direitos
fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da
pessoa natural.

No artigo 5º, inciso I, da LGPD, dado pessoal entende-se como a “informação


relacionada a pessoa natural identificada ou identificável. No próximo inciso foi apresentado
conceito de dado pessoal sensível “dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção
religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico
ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando
vinculado a uma pessoa natural;” (BRASIL, 2018).

Nota-se elevada semelhança (LIMA, 2021) com o Regulamento Geral sobre a Proteção
de Dados (RGPD) da UE, mais conhecido como GDPR (General Data Protection Regulation),
disposto no artigo 9º, inciso I.

Ocorre que, os dados pessoais podem ser considerados mais robustos pela doutrina, no
que se refere a intimidade a ser exposta, esses dados não se limitam a nome, sobrenome, mas
sim podendo incluir dados de localização, placas de automóvel, perfil e histórico de compras
(GARRIDO, 2023).

Verifica-se que os dados pessoais são aqueles relacionados a intimidade da pessoa, ou


seja, da sua rotina no cotidiano, seus hábitos, comportamentos e resultados acadêmicos e/ou
profissionais nas relações perante a sociedade. Além daqueles que o identifiquem diretamente
a pessoa natural, seu nome, sobrenome, endereço entre outros. Os dados pessoais sensíveis,
estão relacionados com as características da personalidade do indivíduo, bem como suas
escolhas pessoais, (GARRIDO, 2023), em vista disso, a doutrina apenas ratifica a legislação.

Outro conceito abordado pela LGPD, é definição de dado anonimizado, no mesmo


artigo art. 5º, inciso III, o qual possui grande relevância numa eventual constatação de nível de
adequação a LGPD.

Na prática, o dado anonimizado é aquele dado, pessoal ou sensível, incluído num bando
de dados, seja virtual ou físico, em que não é possível vincular ao titular dos dados as
informações coletadas do mesmo indivíduo, por meio de uma ocultação parcial dos elementos
que compõem aquele conteúdo.
73

Desse modo, observa-se que LGPD foi proposta como um “sistema protetivo de dados
pessoais” (TEIXEIRA, GUERREIRO 2022, p. 7), que, como afirma o autor ela “estabelece
princípios que devem nortear a coleta, o compartilhamento e o tratamento dos dados pessoais,
direitos básicos dos titulares dos dados pessoais, obrigações impostas aos controladores e
responsáveis pelo tratamento de dados pessoais” (TEIXEIRA, GUERREIRO 2022, p. 7).

Dada evidente proteção aos dados pessoais, é imprescindível que haja uma
conformidade e especial atenção no manuseio desses dados, pelos agentes de tratamento.
Ocorre que o tratamento de dados pode estar vulnerável, tanto na sua esfera física, quanto
digital, pois sua circulação alcança esferas gigantescas, dada proporção das relações humanas
existentes.

Nesse ambiente, torna-se crucial a temática de incidentes aos quais, todos de alguma forma
estão sujeitos, ao manusear esse ativo tão protegido, que são os dados pessoais.

2.2 Vazamento de Dados

No momento em que o usuário utilizar meios tecnológicos, para efetivar qualquer


interação no ambiente virtual, estará de alguma forma trocando informações numa escala sem
dimensionamento exato, no que diz respeito ao vazamento de dados, essa via é sensível, pois
há possibilidade de interceptação ou gravação desse conteúdo, é o que afirma SOUZA, 2023:

“se conectar em uma rede de dados, seu computador troca informações com outros
computadores ou servidores, podendo obter informações externas. Nessa troca, não
há necessariamente um armazenamento das informações; há, porém, a possibilidade
de interceptá-las ou gravá-las, verificando o conteúdo trocado no momento em que
ocorrem”. (SOUZA, Bernardo de Azevedo e. 2023. p. 33)

Ante a intensidade de relações havidas, envolvendo trocas de informações em ambiente


virtual, fundamental discorrer quanto ao conceito de tratamento de dados, o qual é trazido pelo
artigo 5º, inciso X da LGPD, vejamos:

X - tratamento: toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem
a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução,
transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento,
eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação,
transferência, difusão ou extração;

Portanto o tratamento de dados consiste em qualquer operação onde há manuseio de


dados de uma pessoa natural por um agente de tratamento. A exposição não autorizada de dados
pessoais, emerge de condutas praticadas no decorrer do manuseio e tratamento desses dados.
74

Elas podem ser voluntárias ou acidentais, e são chamadas de Incidentes de Segurança com
dados pessoais, conforme ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados).
O conceito de incidente de Segurança com dados pessoais se caracteriza dessa forma:

É um evento adverso confirmado que comprometa a confidencialidade, integridade


ou disponibilidade de dados pessoais. Pode decorrer de ações voluntárias ou
acidentais que resultem em divulgação, alteração, perda ou acesso não autorizado a
dados pessoais, independentemente do meio em que estão armazenados. (ANPD)

Pode-se observar os seguintes comportamentos, que corroboram com o incidente de


segurança com dados pessoais:

Ações
Voluntárias e/ou Acidentais Intencionais
Negligência no tratamento dos dados Condutas ilícitas; subdivididas em
(art. 42 caput, art. 43, I) físicas e virtuais (art. 42, §1, I, art. 43, I (segunda
ex.: perda de documentos, envio de e-mails ao parte))
destinatário errado. ex.; furto, roubo, sequestro (ransomware), ataque
Não conformidade com a LGPD (art. 42 caput) hacker.
Ex.: sem medidas técnicas, inobservâncias das boas
práticas, sem SGSI.
Tabela 1 - Elaborado pelas autoras

Essas ações tornam os ambientes suscetíveis e vulneráveis, expondo sobremaneira os


dados pessoais que foram coletados e estão sob custódia do agente de tratamento,
independentemente do meio em que estão armazenados. Ainda, no que se refere ao ambiente
suscetível, a ANPD faz a seguinte ponderação na redação publicado em 23/12/2022, no site
oficial, “A mera existência de uma vulnerabilidade em um sistema de informação não constitui
um incidente de segurança. A exploração da referida vulnerabilidade, no entanto, pode resultar
em um incidente.”

Para cada comportamento listado acima, deve-se adotar uma medida de correção, ou
medida preventiva, com o intuito de minimizar a exposição indevida de um ambiente, seja ele
físico ou virtual e promover a devida segurança na proteção dos dados pessoais.

Desta feita, é primordial que os agentes de tratamento de dados pessoais, estejam em


conformidade com a LGPD, seguindo suas diretrizes e boas práticas.

A LGPD em seu artigo 46 prevê a obrigatoriedade de implementação de medidas de


segurança e boas práticas, conforme se observa o dispositivo legal:
75

Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e


administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de
situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou
qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito.

O agente que realiza o tratamento de dados possui uma responsabilidade ampla, pois ele
responde em casos de violação a LGPD e em condutas ilícitas, tópico esse que será abordado
no decorrer desse estudo. A não observância no procedimento de tratamento de dados, poderá
incorrer num incidente de segurança com dados pessoais, o qual estará sujeito a sanções
administrativas pelo órgão regulador, a ANPD.

Ante esse incidente, a depender da situação fática, haverá exposição indevida desses
dados num ambiente aberto, a qual é chamada de vazamento de dados pessoais, nesse sentido,
a ANPD, em cartilha, conceitua essa ocorrência:

Vazamentos de dados (data leak) ocorrem quando dados são indevidamente


acessados, coletados e divulgados na Internet, ou repassados a terceiros. Com a
disseminação dos serviços online, seus dados estão cada vez mais expostos e sendo
coletados pelos diferentes serviços disponíveis. (ANPD, MAIO/2021)

A doutrina colabora com a conceituação, apresentando mais conteúdo a essa ocorrência,


ratificando que o vazamento de dados, consiste na exposição indevida de informações, e é um
dos danos de primeiro nível, potencialmente produzidos pela ação bem-sucedida de uma
ameaça que compromete diretamente a confidencialidade em uma organização, conforme
afirma Marcos Sêmola, (PINHEIRO, 2020).

A sua origem pode estar relacionada ao comportamento descuidado de um ativo humano


ou mesmo a partir da falha de um sistema ou de algum ativo físico ou de tecnologia que detém
a informação sensíveis, as quais, inapropriadamente sejam publicadas em ambiente aberto,
podendo ser acessadas por pessoas não autorizadas (PINHEIRO, 2020).

Além dessa forma de exposição indevida de informações, o autor menciona outra


maneira, a qual a empresa estaria sujeita, que é a atividade hacker, ela ocorre por meio da
exploração de vulnerabilidades físicas, tecnológicas ou humanas que tenham levado ao
comprometimento do controle de segurança (PINHEIRO, 2022).

A partir da ocorrência de um vazamento de dados pessoais, fica demostrado o grau de


conformidade e maturidade do agente de tratamento, em relação aos preceitos impostos pela
LGPD. A LGPD preceitua, importantes princípios a serem observados no que tange a proteção
dos dados pessoais, no artigo 6º, inciso VII - Segurança: utilização de medidas técnicas e
76

administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações


acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão; e VIII -
Prevenção: adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento
de dados pessoais;(BRASIL, 2018).

2.3 A Responsabilidade Civil e o Vazamento de Dados

Superada a exposição preliminar acerca dos dados pessoais e a LGPD, necessário voltar
o estudo para a responsabilidade Civil. A responsabilidade civil emerge dessa sociedade que
promulga a ideia de castigar como forma de punição ao causador do dano (TARTUCE, 2022).
Num conceito demonstrado por FILHO, 2011, a Responsabilidade Civil é um dever jurídico
sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico
originário.

Diante disso, a responsabilidade civil está basicamente baseada em duas teorias, de um


lado, a doutrina subjetiva ou teoria da culpa, e, de outro lado, a doutrina objetiva, que faz
abstração da culpa (responsabilidade sem culpa) e se concentra mais precisamente na teoria do
risco (PEREIRA, 2022).

A Responsabilidade Subjetiva ou teoria da culpa, na sua concepção clássica pressupõe


a culpa como fundamento da responsabilidade (GONÇALVES, 2023), sendo assim, a prova da
culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável. Essa teoria, centra-se
no ato ilícito, com os seguintes pressupostos: conduta culposa por parte do agente, dano e nexo
de causalidade entre a conduta e o dano (PEREIRA, 2022).

A Responsabilidade Objetiva não exige a prova de culpa do agente que causou o dano
para que esse seja obrigado a repará-lo, nessa teoria a culpa é prescindível, pois está fundada
no risco (GONÇALVES, 2023).

Em se tratando de responsabilidade objetiva, a teoria do risco é sua principal


justificativa, fundamenta-se, portanto, na ideia de que qualquer pessoa que exerce alguma
atividade e cria um risco de dano para terceiros, este deverá repará-lo, ainda que sua conduta
seja isenta de culpa (GONÇALVES, 2023).

Sendo a culpa elemento dispensável para a configuração do dever de indenizar, uma vez
que nesse caso, observa-se a relação de causalidade, entre a ação e o dano, não sendo possível
responsabilizar quem não tenha dado causa ao evento (GONÇALVES, 2023).
77

A cláusula geral da responsabilidade subjetiva está no artigo 927 do Código: “Aquele


que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” (BRASIL,
2002).

Afirma TATUCE, 2022, que o ato ilícito mencionado nos artigos do parágrafo anterior
é elemento objetivo e somente com a concretização dele, haverá o direito de indenizar, além da
configuração do ato ilícito, sem a presença do dano, não será reconhecido a responsabilidade
civil da parte (TARTUCE, 2022 p. 65).

Pode-se dizer que havendo interrelações, reconhecendo a extensa generalidade do


termo, sendo humanas ou não, digitais ou não, haverá o risco de incidir a responsabilidade civil.

Com a utilização da tecnologia a todo instante, por meio da internet, torna-se inequívoco
a existência de mais um amplo campo originário para novas interrelações, com isso, a sujeição
a novas responsabilidades. Referindo-se a isso, TARTUCE, 2022, vem entendendo pela
aplicação da cláusula geral da responsabilidade objetiva, pelo artigo 927, parágrafo único do
Código Civil (BRASIL, 2002), por oferecer uma série de riscos aos usuários.

Nessa senda, outros autores têm colaborado para essa ideia, assim como PINHEIRO,
2021, na seara digital, a teoria do risco tem maior aplicabilidade, e sua consideração baseia-se
apenas no campo da internet, que é mídia e veículo de comunicação, assim sendo, o potencial
de danos indiretos é muito maior que de danos diretos, e a possibilidade de causar prejuízo a
outrem, mesmo que sem culpa, é real, afirma a autora.

No entanto, em comparação ao entendimento no sistema europeu, essa responsabilidade


objetiva não é aceita, pelo contrário, é entendido que que os prestadores intermediários de
serviços em rede não estão sujeitos a uma obrigação geral de verificar informações que
tramitam em seu ambiente, pois identificada ausência de um dever geral de vigilância, adotada
dessa forma a responsabilidade civil baseada na culpa, explana TARTUCE, 2022.

O panorama jurídico acerca do tema, até a surgimento da Lei 12.965/2014 - Marco Civil
da Internet, era entendido e aplicado pela teoria do risco, porém com o advento da referida
legislação, em seus artigos 18 e 19, pode-se identificar um possível afastamento, quando ao
entendimento dessa teoria.

Aparentemente afastada a teoria objetiva do Marco Civil da Internet, aplicando dessa


forma a Responsabilidade Subjetiva Agravada, existente apenas no caso de desobediência de
ordem judicial (TARTUCE, 2022), quando a ação indevida foi ocasionada por atos de terceiros.
78

Adentrando mais especificamente ao tema aqui proposto, a responsabilidade civil


atrelada ao tratamento de dados pessoais, a LGPD (BRASIL, 2018) prevê, quatro importantes
artigos, os quais serão explanados a seguir.

O art. 42 caput, preceitua: “O controlador ou o operador que, em razão do exercício de


atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual
ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo.”
(BRASIL, 2018), pelo menos em regra a responsabilidade civil dos agentes de tratamento
mencionados no artigo, seria subjetiva (TARTUCE, 2022).

Nesse contexto, ainda como requisito para reparação do dano, está previsto nos
dispositivos seguintes, que é necessário o descumprimento as obrigações impostas pela
legislação de proteção de dados ou ainda existir a negligência quanto as orientações internas e
lícitas propostas pelos agentes de tratamento.

É tratado ainda no parágrafo 2º e destacado por TARTUCE, 2022, a possibilidade de


inversão do ônus da prova, e então, indícios de responsabilidade objetiva, a qual é regra no
Código de Defesa do Consumidor (TARTUCE, 2022), mas não pela teoria do risco, e sim pela
cláusula geral de responsabilidade objetiva, nos moldes da primeira parte do artigo 927, do
Código Civil Brasileiro (BRASIL, 2015).

Ainda no contexto da reponsabilidade adotada pela Lei consumerista (BRASIL, 1990),


a teoria vem da ideia do risco-proveito, aquele que gera a responsabilidade sem culpa
justamente por trazer benefícios, ganhos ou vantagens, conforme abordado por TRATUCE,
2022. Portanto, essa menção ao CDC (BRASIL, 1990) indica uma possibilidade de utilização
da responsabilidade objetiva no âmbito da LGPD (TARTUCE, 2022).

O parágrafo 3º, e 4º artigo 42 da LGPD, mencionam a possibilidade de ações coletivas


tendo como objeto a responsabilização tratada no caput do artigo, bem como eventual, direito
de regresso pela responsabilidade solidária, caso haja, dos agentes de tratamento, na medida de
suas participações no evento danoso (TRATUCE, 2022).

No que concerne ao artigo 43 da LGPD (BRASIL, 2018), há requisitos importantes que


serão levados em consideração para não implicar na reparação do dano, pelos agentes de
tratamento, quando provados os seguintes critérios: a) que não realizaram o tratamento de dados
pessoais que lhes é atribuído; b) que, embora tenham realizado o tratamento de dados pessoais
que lhes é atribuído, não houve violação à legislação de proteção de dados; ou c) que o dano é
decorrente de culpa exclusiva do titular dos dados ou de terceiro (BRASIL, 2018).
79

Ao apontar essas excludentes de responsabilização expressamente em lei, é próprio do


modelo da responsabilidade objetiva (TARTUCE, 2022). A adoção ou não das medidas de
tratamento dos dados pessoais seria uma exceção a esse formato, com ressalvas no caso de
ataques cibernéticos simultaneamente com falta a observância ao artigo 46 da LGPD ou
qualquer conduta ilícita que enseje a indenização ou ainda, a classificação do dado pessoal
exposto (TARTUCE, 2022).

No artigo 44, preceitua o modo que será avaliado a irregularidade no tratamento dos
dados, os quais serão circunstâncias relevantes a serem consideradas numa eventual
indenização, é necessário que os agentes observem a LGPD e forneçam segurança ao titular dos
dados, serão observados, o modo, os riscos esperados e as técnicas para tratamento dos dados
pessoais (BRASIL, 2018).

Vejamos na íntegra o parágrafo único do artigo 44: Responde pelos danos decorrentes
da violação da segurança dos dados o controlador ou o operador que, ao deixar de adotar as
medidas de segurança previstas no art. 46 desta Lei, der causa ao dano (BRASIL, 2018), ou
seja, menção da responsabilidade sem culpa diante da cláusula geral de responsabilidade
objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, segunda parte, do Código Civil (TARTUCE,
2022).

Por fim, o artigo 45 prescreve que as hipóteses de violação do direito do titular no âmbito
das relações de consumo permanecem sujeitas às regras de responsabilidade contidas na
legislação pertinente, quer seja, à responsabilidade objetiva e solidária prevista no CDC.

Apesar do exposto trazer contribuições consideráveis para o entendimento da


responsabilidade civil na LGPD, há de ser destacado uma importante observação, citada por
TARTUCE, 2022, o conflito das responsabilidades adotadas pelas duas importantes legislações
que tratam de assuntos pertinentes a seara protetiva aos dados pessoais, enquanto a LGPD adota
a responsabilidade objetiva o Marco Civil da Internet adota a responsabilidade subjetiva
agravada.

Outro dilema exteriorizado pelo autor e muito pertinente ao presente estudo, diz respeito
aos danos morais suportados no âmbito da LGPD, especialmente no vazamento de dados,
conforme abordado por TARTUCE, 2022 “seriam eles presumidos (in re ipsa) ou dependentes
de prova pelo usuário que os alega.”

Ao que tudo indica, o dilema da responsabilidade ser presumida ou não, em um incidente


de vazamento de dados pessoais, será resolvido pela jurisprudência em tempos futuros, afirma
80

TARTUCE, 2022.Tema esse que será tratado no próximo tópico, por meio da análise das
decisões no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

2.4 Julgados envolvendo Vazamento de dados e a Responsabilidade Civil:

O perigo de vazamento de dados pessoais, está no acesso e manipulação desses dados


por criminosos, que aproveitando-se de um robusto rol de informações pessoais expostas, age
aplicando golpes, contraindo dívidas em nome da vítima, abertura de contas falsas e saques
indevidos, até episódios de extorsão, estelionato e fomenta ainda mais a incidência de crimes
cibernéticos.

A ocorrência de incidentes com vazamento de dados pessoais tem incitado os


profissionais do direito, que buscam a proteção do direito fundamental da proteção aos dados
pessoais. Nesse cenário, buscamos quantificar e analisar as decisões proferidas no Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), com julgamentos publicados no período de
primeiro de junho do ano de dois mil e vinte e dois até trinta e maio de dois mil e vinte três,
envolvendo ações com alegado vazamento de dados. O labor acadêmico tratou de identificar os
julgados sobre o tema, durante o período determinado para coleta, com posterior análise de
aspectos citados para ações procedentes ou improcedentes.

Fazem parte dessa análise, nove decisões, que de forma direta buscam a reparação e/ou
ressarcimento de danos sofridos pela exposição de dados pessoais. A observância dos julgados
ensina que a discussão em suma, está baseada em vincular o nexo de causalidade entre o dano
e a comprovação para incidência da LGPD, no que se refere a inobservância de medidas de
segurança para o tratamento de dados e o próprio vazamento de dados.

Nas decisões analisadas, a incidência do Código de Defesa do Consumidor é constante,


tendo em vista que as lides versam sobre prestação de serviços em relações consumeristas. Nos
julgados, encontramos ainda a afirmação sobre responsabilidade objetiva, mas para que haja o
dever de indenizar, deve configurar a falha na prestação do serviço, o dano e nexo causal.

Nesse interim, ao analisar as decisões improcedentes, verifica-se a reincidente


ocorrência de uma das causas que excluem o nexo causal, a qual está enunciada no artigo 14,
§3, II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. A seguir, em caráter exemplificativo,
apresentamos ementa:
81

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONSUMIDOR. INDENIZAÇÃO POR


DANOS MATERIAIS E MORAIS. ALEGAÇÃO DE FRAUDE E VAZAMENTO
DE DADOS. BOLETO FALSO. INEXISTÊNCIA DO DEVER DE INDENIZAR.
CULPA EXCLUSIVA DE TERCEIRO E DA VÍTIMA. Caso em que a parte
autora atribui ao Banco a responsabilidade pelos danos materiais e morais sofridos em
decorrência de pagamento de boleto falso, emitido a partir de troca de mensagens por
meio de contato obtido nos canais de atendimento do site da instituição financeira. A
relação tratada nos autos é tipicamente de consumo, recaindo sobre a ré a
responsabilidade objetiva por eventuais danos causados aos seus consumidores
decorrentes de falha na prestação dos serviços, bem como das informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. No entanto, do conjunto
probatório, não é possível depreender conduta ilícita praticada pela ré, mostrando-se
presente a excludente de responsabilidade prevista no artigo 14, §3º, inciso II, do
CDC. Da prova coligida, é possível verificar o teor da conversa entre o demandante
e o estelionatário, tendo o apelante fornecido todos os dados necessários ao terceiro
fraudador. o recorrente forneceu as minúcias necessárias para que o estelionatário
pudesse agir, como CPF e dados do veículo. Não há qualquer indício de prova acerca
do liame da instituição financeira com o referido telefone celular, tendo o recorrente
fornecido os danos necessários emissão do boleto falso, não havendo como evidenciar
de qualquer modo a participação do Banco demandado na confecção do indigitado
documento ou mesmo falha na prestação do seu serviço, pelo que inaplicável a Súmula
n.º 479 do STJ. Ademais, o boleto emitido pelo terceiro fraudador consta como
beneficiário, ao lado de Santander “M pago”, mostrando-se nítido o caráter
fraudulento empreendido, o qual não pode ser atribuído à apelada, pois, tudo indica
que, na espécie, a fraude se deu por culpa exclusiva de terceiro e da própria vítima
que não se cercou das devidas cautelas. Sentença improcedente mantida. APELAÇÃO
DESPROVIDA. (Apelação Cível, Nº 50004897920208210166, Décima Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Julgado em: 26-
07-2022). Grifo nosso.

Nesse sentido, a decisão acima versa sobre vazamento de dados pessoais, sinalizando
que os julgadores valoram os atos praticados pelo consumidor na situação fática, para a
configuração do dano material e posterior análise de procedência de pedido de ressarcimento.
Ainda ao observarmos o acervo jurisprudencial estudado, observa-se a dificuldade de um
conjunto probatório eficiente para configuração de vazamento de dados, de igual modo torna-
se impossível para o prestador de serviço apresentar prova de fato negativo, ou seja, provar que
não houve vazamento de dados.

Em consonância com o presente estudo, percebe-se que a abordagem da


responsabilidade civil e a LGPD nas decisões proferidas pelo TJ RS são rodeados de cautela,
por tratar-se de um tema robusto em profundidade e tecnicamente reservado. O levantamento
da tese de prova negativa não exime o fornecedor de uma responsabilização por eventual dano,
até porque a LGPD surge com o objetivo de intensificar as medidas de segurança para o
tratamento de dados.

A adequação a LGPD é uma medida a ser adotada por todas as empresas, esse critério
possui relevância para as decisões a serem proferidas, é o que fica demonstrado na ementa
colacionada abaixo:
82

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


INDENIZATÓRIA. GOLPE DO MOTOBOY. MOVIMENTAÇÃO DE VALORES
NA CONTA CORRENTE DA AUTORA. CONCORRÊNCIA DE CULPAS.
DECLARAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE PARCIAL DA DÍVIDA. DANO MORAL
NÃO CONFIGURADO. SENTENÇA PARCIALMENTE MODIFICADA. As
instituições financeiras respondem objetivamente pelos prejuízos ocasionados ao
consumidor, salvo se restar comprovada a culpa da vítima ou de terceiro,
permanecendo sua responsabilidade em caso de fortuito interno. Súmula 479 do STJ.
Caso concreto em que a parte autora foi vítima do denominado "golpe do motoboy",
fornecendo seus dados pessoais e senha, além de entregar o cartão a terceiro que
movimentou valores elevados em sua conta corrente. Embora a autora tenha
contribuído para a ocorrência do golpe, fornecendo cartão e senha, que são de uso
pessoal e intransferível, sob os quais tem o dever de guarda e zelo, a instituição
financeira falhou na segurança de seus sistemas, pois, além de permitir o
vazamento de dados pessoais sigilosos da consumidora, deixou de detectar
movimentação atípica na conta corrente desta, bem como não adotou mecanismos de
segurança efetivos e capazes de evitar a prática de fraudes, ônus que lhe competia ao
colocar o seu serviço no mercado. Culpa concorrente evidenciada, que autoriza a
declaração de inexigibilidade parcial da dívida, na proporção de 50% do valor
reconhecido em sentença. O dano moral, para ser concedido, depende da prova efetiva
de violação a direito de personalidade, não se aplicando ao mero descumprimento
contratual, salvo se comprovado o prejuízo dele decorrente. Embora os transtornos
sofridos com o golpe, inexistem prejuízos de natureza extrapatrimonial a serem
indenizados, uma vez que, apesar do reconhecimento da cobrança indevida de valores,
era ônus da consumidora comprovar o fato constitutivo do direito pleiteado, nos
termos do art. 373, inciso I do CPC. Ônus sucumbenciais redimensionados, tendo em
vista o maior decaimento da parte autora. APELO PARCIALMENTE PROVIDO.
(Apelação Cível, Nº 50009217520208210109, Décima Quinta Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carmem Maria Azambuja Farias, Julgado em: 29-
06-2022)

O inteiro teor dessa decisão, ratifica a inobservância do artigo 46 da LGPD, destacando


o dever de a empresa prestadora de serviços adotar as providências necessárias na preservação
do sigilo dos dados pessoais de seus clientes. Esse requisito, ratificado pela composição do
acervo probatório, por meio de informativos nas redes sociais e prova testemunhal acerca de
suposta invasão de sistema interno, foram critérios decisivos na apuração da responsabilidade
do fornecedor. Nesse contexto, a decisão foi apenas pela inexigibilidade de cinquenta por cento
da dívida, tendo em vista ter identificado a contribuição da vítima para o efetivo dano material.

O entendimento relativo à indenização pela exposição de dados é justamente voltado a


classificação do dado, e o dano sofrido, em consonância com sólido acervo probatório para
avaliar a responsabilidade, da empresa perante a situação fática, requisitos básicos para
apuração da responsabilidade subjetiva, justamente a exceção referida no capítulo anterior,
quanto a responsabilidade objetiva da LGPD em consonância com o CDC.

Nesse cenário, de adequação a LGPD e a produção de prova de fato negativo, o TJ RS


tem avaliado e julgado procedente as ações que apresentarem fortes indícios de vazamento de
83

dados e não apresentarem medidas de segurança técnicas e administrativas no que se refere ao


tratamento de dados de seus clientes, vejamos a decisão abaixo:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO


INDENIZATÓRIA POR DANO MORAL E MATERIAL. FRAUDE NO BOLETO
BANCÁRIO DE PAGAMENTO. BOLETO FALSO. NÃO RECONHECIMENTO
DA QUITAÇÃO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. CARACTERIZAÇÃO DO
DANO MATERIAL E MORAL NO CASO CONCRETO. PRELIMINAR DE
ILEGITIMIDADE PASSIVA. RECONHECIDA A LEGITIMIDADE DA
FINANCEIRA APELANTE PARA RESPONDER PELAS POSTULAÇÕES DA
PRESENTE LIDE. PRELIMINAR AFASTADA. NA HIPÓTESE,
CARACTERIZADA A RESPONSABILIDADE DA FINANCEIRA, ANTE
FORTE ÍNDICO DE VAZAMENTO DE DADOS DO AUTOR E DO
CONTRATO DE FINANCIAMENTO. ISSO, SEM DÚVIDA ALGUMA,
POSSIBILITOU A APLICAÇÃO DO GOLPE DO BOLETO FALSO SOFRIDO
PELO DEMANDANTE. QUANTUM INDENIZATÓRIO QUE DEVE SER
PROPORCIONAL À OFENSA, SEM GERAR ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA.
MANUNTENÇÃO DO VALOR ARBITRADO NA ORIGEM, PORQUANTO
ADEQUADO, CONSIDERANDO-SE AS PARTICULARIDADES DO PRESENTE
CASO. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº
50358605320218210010, Décima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Elisabete Correa Hoeveler, Julgado em: 27-04-2023). Grifo nosso.

Como observa-se na decisão exposta, há forte indício de vazamento de dados por meio
de contrato celebrado entre as partes, pois ao informar o número de CPF aos estelionatários,
esses tiveram acesso às informações relativas as cláusulas contratuais e conseguiram dessa
forma concretizar o golpe e efetivar o dano aos autores.

Os estudos evidenciam que dentre os casos julgados no período do estudo, a maioria


contava com situações de dano não indenizado, como segue:

Gráfico 1 - Elaborado pelo autor


84

Além disso, o mesmo percentual é exibido na próxima representação gráfica. Constata-se a


relação direta entre a adequação para tratamento de dados ou indícios de vazamento de dados com
procedência ou improcedência de pedidos:

Gráfico 2 - Elaborado pelo autor

Importante destacar que 100% das ações analisadas versam sobre a exposição indevida
de dados de natureza pessoal, conforme rol apresentado pela LGPD.

3 CONSIDERAÇÃO FINAIS

Essa breve análise permite identificar requisitos e importantes critérios que o judiciário
gaúcho tem aplicado nas ações que buscam na responsabilidade civil o amparo na violação do
mais novo bem jurídico, o direito a proteção dos dados pessoais. Permite também identificar o
mesmo percentual das decisões que fixaram indenização com as decisões que apresentaram indícios
de inobservância dos critérios de tratamento de dados pessoais ou de vazamento de dados.

Logo, o investimento em adequação ou provas de adequação, por parte das empresas


envolvidas nos julgados estudados, interferiu no resultado dos julgados, haja vista a relação
entre procedência e ausência de adequação. O que de fato é pertinente aos fornecedores
prestadores de serviço, que busquem por meio de mecanismos de segurança o tratamento
adequado dos dados pessoais que estão sobre sua posse, em atenção aos critérios de boas
práticas estabelecidos na LGPD.

Dado o novo contexto e comportamento social, a Lei Geral de proteção de dados figura
em papel fundamental, regulando o tratamento desses dados pessoais, protegendo-os da
85

exploração e do manuseio indevido, responsabilizando o receptor de dados pela insuficiência


de protocolos para restrição da utilização desses dados. No que se refere a exploração
indevida dos dados pessoais, o titular dos dados busca essa compensação por meio da
Responsabilidade Civil, intentando a reparação do dano moral sofrido ou até mesmo o
ressarcimento de um dano material ocasionado pela inobservância no percurso de tratamento
de seus dados. A LGPD institui duas vias importantes, uma é a constituição de um direito de
proteção e tratamento de dados pessoais, gerando uma possível compensação ao titular do dado,
pelo manuseio indevido do agente de tratamento, a segunda institui a função sancionatória
visando do mesmo modo a função preventiva, implementando dessa relevância no tratamento
de dados pessoais e adequação a lei.

Com a implementação da LGPD em vias de efetivação pelo poder judiciário, a


pacificação do entendimento compensatório ao titular dos dados, está sendo moldada, porém
sem indícios de um final próximo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, de 5 de outubro de 1988.


Diário Oficial da União. Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 26 abr. 2023 às 11h40min.

BRASIL. Emenda Constitucional 15, de 10 de fevereiro 2022. Diário Oficial da União. Brasília,
DF, 11 fev. 2022. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc115.htm#art1>.
Acesso em: 26 abr. de 2023.

BRASIL. Lei Geral de Proteção de Dados, de 15 de agosto de 2018. Diário Oficial da União,
DF 15 ago. 2018. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2018/lei/l13709.htm>. Acesso em: 26 abr. 2023 às 11h40min.

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88

RESPONSABILIDADE CIVIL E PUBLICIDADE DIGITAL NAS


RELAÇÕES DE CONSUMO

Giórgia de Lima Sberse1


Andressa Brum Gibicoski2

RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de analisar a função da publicidade digital nos dias de hoje
e como ela deve ser observada tendo-se em vista os direitos fundamentais dos consumidores a,
também a LGPD. Dessa forma, aborda-se o conceito e definição legal de publicidade, bem
como o seu comportamento dentro da sociedade digital. A partir disso, há a revisão alguns dos
direitos fundamentais dos consumidores, de modo que, a partir deles, foi conferido se e como
a responsabilidade civil pode atuar em defesa dos consumidores lesados por publicidades
digitais abusivas. Além disso, compreende-se que o Judiciário está caminhando no sentido de
preservar a privacidade através da aplicação do instituto da responsabilidade civil.

Palavras-chave: Responsabilidade civil; Direito do consumidor; Direito à privacidade; Direito


ao sossego; Publicidade digital.

1 INTRODUÇÃO

É inegável o avanço tecnológico trazido pela internet e pela sociedade tecnológica,


globalizada e capitalista. A sociedade evoluiu e mutou-se. As redes sociais, em especial,
colaboram para esse cenário. As pessoas compartilham suas opiniões, estilo de vida, conquistas,
aprendizados, dados pessoais e acessam as vidas umas das outras. É um ciclo que transcende o
espaço físico, ultrapassa as fronteiras e permite a conexão de muitos indivíduos.

Se, antigamente, utilizávamos televisão, revistas e jornais para nos informarmos, hoje
temos na tela do celular um arsenal infinito de conteúdos sendo arremessados em nossa direção,
mesmo sem solicitação ou intenção de acesso a tais informações.

Mudou também a forma com que as empresa, marcas e negócios se comunicam com o
público consumidor. Redes sociais, banners cibernéticos e o poder do algoritmo são essenciais

1
Giorgia de Lima Sberse, graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Rio Grande do Sul, pós-graduada em
Direito Contratual, Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário pela PUCRS e pós-graduanda em Direito do
Consumidor pela Legale Educacional, advogada com a OAB/RS 123095. E-mail: sbersegiorgia@gmail.com.
2
Andressa Brum Gibicoski, graduada em Direito pela Universidade Franciscana, pós-graduada em Direito Público,
Advocacia Extrajudicial, Direito Empresarial e LGPD pela Faculdade Legale. Pós-graduanda e Direito do
Consumidor pela Faculdade Legale, advogada com a OAB/RS 95784. E-mail: andressabg.adv@gmail.com.
89

na publicidade digital atual. O comportamento do consumidor usuário da internet é monitorado


e, assim, o conteúdo por ele acessado molda-se a partir de um traço comportamental dele online.

Neste contexto, a proteção de dados pessoais para evitar o assédio ao consumidor e a


perturbação do sossego justificam a importância do tema abordado. Por um lado, a sociedade
digital possibilita enorme avanço nas vidas de todos. Por outro, é lastreada pela ideia de falsa
liberdade e não onerosidade. Nesse sentido, a nova era digital esconde o seu verdadeiro preço:
o fornecimento dos dados pessoais e privados dos indivíduos às empresas e aos servidores de
internet.

O presente estudo, a partir da reflexão acima, busca verificar como a publicidade digital
atual se porta com relação aos direitos dos consumidores, em especial no que diz respeito à
perturbação do sossego e liberdade de escolha. A partir disso, almeja conferir como o instituto
da responsabilidade civil pode atuar para assegurar os direitos dos consumidores dentro de uma
sociedade digital que, cada vez mais, aparenta não ter barreiras ou limites.

Assim, o primeiro capítulo do estudo aborda traz a publicidade dentro do contexto


digital e possui o objetivo de analisar o fenômeno da publicidade como meio de comunicação
e de divulgação de produtos e de serviços através da internet. Em sequência, o segundo capítulo
cuidará dos direitos fundamentais dos consumidores, considerando o desenvolvimento
tecnológico e a influência e reflexo da publicidade digital nos dias de hoje. Por fim, a última
parte do presente trabalho analisará a responsabilidade civil como mecanismo de proteção ao
consumidor no ordenamento pátrio brasileiro, em especial no que diz respeito do direito ao
sossego e privacidade.

Valendo-se de procedimentos técnicos e bibliográficos, a pesquisa se apoiará no método


dedutivo de abordagem, o qual buscará fundamento na legislação, doutrina e jurisprudência. Sendo
assim, a pesquisa será teórica, exploratória e descritiva.

O presente artigo apresenta tema de suma importância para o Direito atualmente, eis que
aborda questões que atingem à sociedade como um todo, uma vez que é praticamente
impossível passarmos alheios à internet e circulação de dados e informações. Além disso,
abordam-se questões que concernem à direitos fundamentais dos indivíduos, como o direito à
privacidade e ao sossego.
90

2 A PUBLICIDADE NA SOCIEDADE DIGITAL

A publicidade, há décadas presente no dia a dia da sociedade, surgiu, embora


timidamente, em épocas de comunicação primitiva, realizada pessoal e diretamente entre
fornecedor e comprador. A partir da Revolução Industrial, com a alteração do modo de vida das
pessoas, expansão na esfera de trabalho, necessidade de mão de obra, produtividade e alterações
nos padrões de consumo, eclodiu também a publicidade, transformando a vida da sociedade de
consumo (CAVALIERI FILHO, 2019, p. 149).

Atualmente, a publicidade está disciplinada no Código de Defesa do Consumidor,


instituído pela Lei nº 8.078/1990. O referido Código prevê, em seu artigo 6, inciso IV, o direito
básico do consumidor à proteção contra a publicidade enganosa e abusiva3. Além disso, a
prática publicitária está disciplinada em diversos artigos dentro do referido diploma legal,
dispondo, também, de seção específica sobre o tema. Por fim, o diploma prevê penalidade em
caso de abuso ou de descumprimento das disposições legais.

Humberto Teodoro Junior (2020, p. 189) indica que existem dois sujeitos envolvidos na
publicidade: o fornecedor e o órgão divulgador da propaganda. Esses sujeitos são,
respectivamente, aqueles que dispõem do produto ou serviço e o emissor do anúncio, da
publicação. Do outro lado, está o receptor, ora consumidor, sendo a pessoa que recebe esta
publicidade. Por sua vez, a livre iniciativa seria o alicerce daqueles que exercem atividade no
mercado, pois correm os riscos do empreendimento.

Neste contexto, as informações de um anúncio publicitário devem ser verdadeiras, claras


e precisas, consoante artigo 37 do CDC. Para Paulo Luiz Netto Lôbo (2001, p. 69), a
publicidade deve ser adequada, suficiente - de modo que contenha todas as informações
relativas ao produto ou ao serviço ofertado - e leal ao produto. No caso de não serem atendidos
tais requisitos,

a publicidade ultrapassa limites positivos e negativos estabelecidos na lei, para defesa


do consumidor, tornando-a ilícita. A publicidade ilícita é enganosa quando divulga o
que não corresponde ao produto ou serviço, induzindo em erro; é abusiva quando
discrimina pessoas e grupos sociais ou agride outros valores morais. A publicidade
ilícita não produz efeitos em face do consumidor, que pode resolver o contrato por
esse fundamento.

3
Art. 6º. São direitos básicos do consumidor: [...] IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos
comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento
de produtos e serviços. (BRASIL, 1990)
91

Atualmente, a publicidade está diante dos indivíduos de forma massiva e permanente


por meio das estratégias de marketing e, principalmente, das mídias sociais. Por isso, o direito
à informação, tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor, adquire ainda mais pertinência
no mercado de consumo contemporâneo.

Neste sentido, é fundamental mencionar que o consumidor possui o direito à informação


e, em contrapartida, o fornecedor terá o dever de informar. Portanto, é possível observar que o
consumidor, “agente de nossos tempos” (MARQUES, 2016, p. 20), é vulnerável frente à
tamanha evolução tecnológica, social e mercadológica. Sendo assim, em realidade, é a boa-fé
objetiva e seus deveres secundários (informação, transparência, lealdade e outros) que
asseguram a autonomia, que permitem a livre e refletida escolha do consumidor e que o
resguarda das massivas ações de marketing das empresas, levando ao consumo impensado e
exagerado.

As estratégias de marketing dentro internet estão cada vez mais aperfeiçoadas, sendo a
rede mundial de computadores o maior experimento psicológico de todos os tempos. Isto,
porque, é um mercado psicológico em que, todos os dias, milhões de designs, fotos e imagens
são lançados e testados com base em milhões de reações comportamentais: cliques. Prova disto
é que as alterações comportamentais provocadas por elas alteraram também as relações de
consumo (BRIDGER, 2018, p. 15).

Há mais de 30 anos, quando o Código de Defesa do Consumidor foi promulgado, a


internet não reunia o alcance que possui hoje, tampouco as redes sociais, uso de smartphones,
computadores e afins. No tocante à proibição da publicidade enganosa, os princípios da
identificação e da veracidade estão diretamente ligados a ela. Para Cristiano Heineck Schmitt e
Fernanda Barbosa (2016, p. 37), os princípios concretizam o direito básico de proteção à
publicidade enganosa. A identificação permite que o consumidor verifique que se trata de uma
publicidade; já, a veracidade exprime informações acerca do bem anunciado e das condições
de contratação, a fim de que elas sejam verdadeiras e passíveis de comprovação.

A publicidade enganosa, definida pelo art. 37 do CDC4, refere-se ao meio pelo qual o
consumidor é induzido ao erro quanto às especificações do produto ou do serviço, visto que a
informação ou a comunicação não foi íntegra e leal ao que fora anunciado. A publicidade

4
Artigo 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação
ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por
omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade,
propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.
92

enganosa deve ser vista, objetiva e independentemente da boa-fé do anunciante, como um fator
carregado de alegações ambíguas, parcialmente verdadeiras ou verdadeiras; porém, enganosas,
dada a ausência de informação. Sendo assim, para o autor a enganosidade não segue um modelo,
podendo variar em cada espécie, a depender do tipo de consumidor (BENJAMIN; MARQUES;
BESSA, 2013, p. 263).

Desse modo, a publicidade enganosa se divide em dois tipos básicos. A publicidade


enganosa por comissão é aquela que o fornecedor declara algo que o produto não é. O segundo
tipo diz respeito à enganosa por omissão, diante da qual o anunciante deixa de informar algo
relevante sobre o bem ou o serviço (BENJAMIN; MARQUES; BESSA, 2013, p. 264). Por
conseguinte, nota-se que, nos dois tipos, o consumidor é induzido a erro. Diante disso, a
publicidade enganosa “encontra amparo na violação da confiança gerada e na consequente
frustração de expectativas legítimas” (SCHIMTT; BARBOSA, 2016, p. 38). Ainda, a má-fé do
fornecedor é fator irrelevante, porque o que se busca é proteger o consumidor.

No âmbito da publicidade enganosa por omissão, importa mencionar que há três


modalidades: i) omissão de dado que era obrigatório por lei; ii) as reticências, as quais
transmitem uma mensagem incompleta, induzindo o consumidor ao equívoco; e iii) as
alegações implícitas, traduzidas em mensagens que não constam expressamente na publicidade,
mas que levam o consumidor a acreditar, por contexto ou indução, naquilo que ficou implícito
no texto (VASCONCELOS, 1996, p. 94).

A proibição da publicidade abusiva visa evitar que as atividades publicitárias ofendam


os consumidores diretos e indiretos. Claudia Lima Marques (2016, p. 913) menciona que a
publicidade abusiva é a “publicidade antiética, que fere a vulnerabilidade do consumidor, que
fere valores básicos, que fere a própria sociedade como um todo”. A autora (2016, p. 936)
esclarece ainda que a abusividade também está na utilização de recursos considerados indevidos
para a promoção da publicidade. Sendo assim, considera-se o abuso como o “exercício irregular
de um direito reconhecido, ou seja, é usar o direito em medida excessiva, vindo a evidenciar
uma infração ao direito de outrem” (FREITAS; MORAES, 1998, p. 302).

A publicidade se tornou tão habitual na vida dos indivíduos da sociedade contemporânea


que, por vezes, sequer notam que estão sendo capitados por uma publicidade implícita. Todavia,
tal prática é vedada pelo CDC5, que busca reprimir e condenar as práticas que disfarçam a

5
Art. 36. A publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente, a identifique
como tal. Parágrafo único. O fornecedor, na publicidade de seus produtos ou serviços, manterá, em seu poder, para
93

publicidade. Exemplo prático e atual é prevenir e evitar que famosos e subcelebridades com
milhões de seguidores divulguem, por meio de postagens nas redes sociais, a utilização e os
benefícios de determinado produto sem, contudo, alertar que o conteúdo é publicitário

O mercado acompanha o desenvolvimento e mudanças da sociedade, adaptando-se e


digitalizando-se, de modo que os fornecedores de produtos e de serviços estão cada vez mais
próximos do dia a dia dos consumidores. Assim, assedia-os de maneira sútil e aperfeiçoada,
seja por meio de disfarçadas publicidades, transmitidas por subcelebridades das redes sociais
seja através de troca de dados, tais como ‘forneça seu e-mail e ganhe 10% de desconto na sua
primeira compra’. O fato é que os dados pessoais se tornaram moeda de troca do mercado, quiçá
o próprio produto.

E é dentro deste contexto em que os consumidores estão inseridos que se deve atentar,
em especial, para uma possível violação do direito à privacidade que pode estar ocorrendo
diariamente, sem que se perceba nesse emaranhado de informações e publicidades veiculados.

3 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS CONSUMIDORES

Acompanhando o desenvolvimento tecnológico e a influência da publicidade virtual na


vida da sociedade de consumo, é possível perceber que o direito à privacidade está cada vez
mais ameaçado, de modo que é preciso buscar no ordenamento jurídico o resguardo e a proteção
do consumidor. O consumidor precisa de proteção, sob pena de ter violada a sua intimidade,
considerando sua exposição e sua vulnerabilidade. Além do mais, esta tutela dos consumidores
é tão importante quanto outras já aplicadas pelas empresas, como a proteção aos trabalhadores,
meio ambiente, etc.

Nesse sentido, o capítulo preocupar-se-á em analisar as garantias previstas no


ordenamento pátrio brasileiro com o objetivo de assegurar a privacidade e o direito do
consumidor de ser deixado em paz.

3.1 Garantias fundamentais dos consumidores

A sociedade contemporânea está sendo construída e estruturada pelas redes digitais e de


comunicação. Atualmente, possuir uma rede social ativa é tão importante quanto o indivíduo

informação dos legítimos interessados, os dados fáticos, técnicos e científicos que dão sustentação à mensagem.”
(BRASIL, 1990)
94

ter o seu documento de identificação em sua posse. Por um lado, as pessoas são observadas
vinte e quatro horas por dia e temem por sua esfera privada. Por outro, a exposição gera riqueza
e movimenta a economia. Por isso, o direito fundamental à privacidade deve coexistir com os
interesses da sociedade

A Constituição Federal de 1988 prevê em seu artigo 5º, inciso X, que a vida privada e a
intimidade são invioláveis6. Logo, é preciso estabelecer limites e interpretar as garantias
constitucionais de acordo com a cenário atual da sociedade. Nessa perspectiva, recentemente,
o Plenário do Senado aprovou a Emenda à Constituição nº 17, de 20197, a qual altera o artigo
5º da Constituição Federal de 1988 para incluir no rol dos direitos e das garantias fundamentais
a proteção de dados pessoais, inclusive nos meios digitais. Com a aprovação da Emenda, resta
nítida a preocupação normativa, reconhecendo a real relevância do tema.

Acerca do direito fundamental à proteção de dados, Laura Schertel Mendes (2020)


expõe duas dimensões. Primeiro, afirma ser um direito subjetivo de defesa do indivíduo
(dimensão subjetiva) e, além disso, o apresenta como um dever de proteção estatal (dimensão
objetiva). Sendo assim, explica que

Na dimensão subjetiva, a atribuição de um direito subjetivo ao cidadão acaba por


delimitar uma esfera de liberdade individual de não sofrer intervenção indevida do
poder estatal ou privado. A dimensão objetiva representa a necessidade de
concretização e delimitação desse direito por meio da ação estatal, a partir da qual
surgem deveres de proteção do Estado para a garantia desse direito nas relações
privadas. Isso significa que os atos do Estado passam a ser controlados tanto por sua
ação, como também por sua omissão.

Destarte, a eficácia das normas fundamentais ante as relações privadas deve ser indireta,
a partir da criação ou da aplicação de legislações específicas de direito privado. Desta forma,
cabe ao Estado promover ferramentas que concretizem os direitos fundamentais das pessoas
(BASAN, 201, p. 90). O Estado é, portanto, um garantidor dos direitos e deve reger as
ferramentas para tanto. Por esse motivo, o artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor8 é

6
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. (BRASIL,
1988).
7
Proposta de Emenda à Constituição n. 17, de 2019. Acrescenta o inciso XII-A, ao art. 5º, e o inciso XXX, ao art.
22, da Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos fundamentais do cidadão e
fixar a competência privativa da União para legislar sobre a matéria. (BRASIL, 2019).
8
Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros,
fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
§ 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil
95

considerado pela doutrina um dos marcos normativos que verifica, neste texto legal, princípios
de proteção de dados pessoais no ordenamento brasileiro.

Ademais, a Lei Geral de Proteção de Dados, norma que regulamenta o uso de dados
pessoais, vai de encontro à Emenda Constitucional nº 17 de 2019 e à inviolabilidade da
intimidade e da vida privada, já presentes na Carta Magna. A lei visa, também, proteger os
direitos fundamentais e, expressamente, prevê sua aplicabilidade no tratamento de dados
pessoais seja por pessoa natural seja por pessoa jurídica de direito público ou privado. Por isso,
é imprescindível assentar a aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas,
principalmente no tocante às publicidades virtuais de consumo, que, atualmente, são capazes
de perturbar o direito à privacidade e ao sossego dos indivíduos expostos ao mercado
(BASSAN, 2021, p. 82). Arthur Pinheiro Basan (2012, p. 85) elucidou que a aplicação dos
direitos fundamentais nas relações privadas se justifica pelas seguintes razões:

i) os direitos fundamentais tomaram grande força expansiva, ii) a aplicação da


Constituição Federal em todos os ramos do Direito, inclusive no Direito Privado,
como forma de determinar a unidade do ordenamento; iii) a crise na dicotomia
público-privado; iv) a intensa desigualdade social brasileira aliada ao fenômeno do
“poder privado”; e, por fim, v) a necessária tutela dos vulneráveis em uma sociedade
de consumo cada vez mais virtual.

No ordenamento jurídico brasileiro, antes mesmo do reconhecimento da proteção de


dados como um direito autônomo e fundamental, o assunto vinha sendo revisado a partir dos
riscos evidenciados pelo tratamento automatizado perante as garantias constitucionais de
dignidade da pessoa humana, tais como igualdade, liberdade, vida privada e intimidade.
Atualmente, foi reconhecida a importância da proteção dos dados pessoais. Danilo Doneda
(2011, p. 93) explica que, através da promoção da proteção de dados pessoais, as garantias
relacionadas à privacidade passaram a ser vista de forma abrangente, pois outros interesses
devem ser considerados, tais como a manipulação de dados. Dessa forma, o autor afirmou que
“para uma completa apreciação do problema, estes interesses devem ser considerados pelo
operador do direito pelo que representam, e não somente pelo seu traço visível – a violação da
privacidade” (DONEDA, 2011, p. 95).

Neste intuito, o CDC, como lei de ordem pública e de interesse social, aliado à Lei Geral
de Proteção de Dados, que dentre suas finalidades busca evitar a prática empresarial abusiva, a
violação de direitos fundamentais e a transgressão da autonomia privada, buscam a efetivação

compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos. [...].”
(BRASIL, 1990)
96

do direito do consumidor, a fim de manter o respeito por sua esfera privada. Essas garantias
fundamentais visam limitar e orientar as novas necessidades da sociedade. Logo, não é possível
admitir a banalização dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, dado que o
Direito Constitucional e o direito privado se complementam e se relacionam, proporcionando
o diálogo de fontes (BASSAN, 2021. p. 83/89).

3.2 Privacidade e respeito à vida privada

A questão da privacidade hoje é mais do que o simples direito à intimidade. Isto, porque,
ela não está adstrita apenas ao direito de não ter sua vida íntima e particular violadas. Na era da
tecnologia, a privacidade transcende a esfera doméstica e alcança qualquer cenário onde os
dados pessoais do indivíduo estejam circulando, ou seja, qualquer informação que possa
identificar a pessoa através de suas características físicas, sua orientação sexual e religiosa, seu
código genético, dentre outras (SCHREIBER, 2014, p. 220). Logo, o respeito à vida privada
atualmente é um mecanismo de proteção dos dados pessoais. Dessa forma, Stefano Rodotà
(2008, p. 17) explicou que é um tipo de proteção dinâmica, pois segue o dado em todos os seus
movimentos. Nesta direção, o autor complementou que “a proteção de dados pode ser vista
como a soma de um conjunto de direitos que configuram a cidadania do novo milênio”.

Diante disso, o direito ao respeito à privacidade não está somente conectado ao sigilo
da vida intima, mas também e, principalmente, ao controle da pessoa acerca dos seus dados.
Portanto, pode ser definida “como o direito ao controle da coleta e da utilização dos próprios
dados pessoais” (SCHREIBER, 2014, p. 139). Neste sentido,

A privacidade, nas últimas décadas, passou a se relacionar com uma série de interesses
e valores, o que modificou substancialmente o seu perfil. E talvez a mais importante
dessas mudanças tenha sido essa apontada por Stefano Rodotà, de que o direito à
privacidade não mais se estrutura em torno do eixo “pessoa-informação-segredo”, no
paradigma da zero-relationship, mas sim no eixo “pessoa-informação-circulação-
controle. (RODOTÁ, 1995 apud DONADE, 2020, p. 39)

Por sua vez, no atual panorama, Anderson Schreiber (2014, p. 141) divide a
problemática da privacidade em duas dimensões: uma dimensão procedimental e outra
dimensão substancial. Nesse sentido, a dimensão procedimental estaria atrelada ao modo como
o dado pessoal é captado e tratado. O autor defende que a vida da sociedade contemporânea é
assinalada por uma troca de dados, pois operações cotidianas, como o uso do cartão de crédito,
check-in em um hotel, abertura de uma conta corrente e cadastro em um aplicativo, tornaram a
coleta de um conjunto mínimo de dados pessoais necessária.
97

Em decorrência disso, a tutela da privacidade é importante, visto que não se limita a


controlar a coleta de dados pessoais, mas também se estende a todas as fases do processo
informativo. Por exemplo, a empresa deverá promover o controle, implantando uma verificação
de autenticidade dos dados fornecidos, o armazenamento seguro, a verificação periódica da sua
atualidade, a utilização limitada à finalidade para a qual os dados foram fornecidos, a destruição
quando cumprida a sua finalidade e o acesso permanente pelo titular dos dados para fins de
conhecimento e alteração. Todos esses procedimentos são impostos pelo direito à privacidade
(SCHREIBER, 2014, p. 141).

Já a dimensão substancial diz respeito ao próprio uso que se faz do dado pessoal
coletado, ou seja, trata-se do seu próprio emprego. Logo, toda pessoa deve ter o direito a
controlar a representação de si, construída a partir de seus dados pessoais. Por esta razão, a
pessoa terá o direito de exigir que tal representação reflita a realidade, impedindo seu uso para
caráter discriminatório. De acordo com Stefano Rodotà, (2008, p. 109) o poder de controlar as
informações que dizem respeito a cada indivíduo é denominado de right of privacy, que se
manifesta como um direito negativo. Por exemplo, o direito de excluir da própria esfera uma
determinada categoria de informação, tal como a opção pela remoção do número de telefone de
cadastros comerciais. Para o autor, “a privacidade especifica-se assim como o direito de
controlar o fluxo de informações relativas a uma pessoa, tanto na saída, como na entrada”
(RODOTÀ, 2008, p. 109).

Por isso, ao consumidor que já está habituado a fornecer seus dados para realizar
compras ou contratar serviços, e, por vezes, não percebe a exposição da esfera privada do seu
perfil, a preocupação deve ser voltada ao direito de ser deixado em paz e à tutela da privacidade
(BLUM, 2018).

Quase todos os passos do cotidiano são acompanhados por um smartphone, notebook


ou assistentes virtuais. Por isso, “qualquer dado que leve à identificação de uma pessoa pode
ser usado para a formação de perfis informacionais de grande valia para o mercado”
(MENDES,2020). Logo, o consumidor deve ser reconhecido para que seja capaz de exercer seu
direito de escolha frente ao mercado de consumo. Nesse aspecto, reside o direito ao acesso e o
direito à informação. Stefano Rodotà (2008, p. 69) apontou que o direito ao acesso supera o
âmbito das informações pessoais, eis que

sua disciplina tende a se conjugar com outra, mais geral, de um “direito à informação”,
também esse encarado em uma versão ativa e dinâmica: não mais, portanto, como
simples direito de ser informado, mas como o direito de ter acesso direto a
determinadas categorias de informações, em mãos públicas e privadas.
98

Nessa linha, o direito à informação devido ao consumidor é um reflexo do princípio da


transparência. Dessa forma, “é possível dizer que o direito à informação é, primeiramente, um
instrumento de igualdade e de reequilíbrio da relação de consumo” (CAVALIERI FILHO,
2019, p. 112). Com isso, reconhece-se a íntima ligação que os direitos relacionados à
privacidade e à comunicação de dados passam a ostentar. Assim, deve-se buscar garantir o
mínimo de liberdade de escolha por consumidor que é perturbado por publicidades massivas
diariamente.

Para tanto, as empresas devem respeitar os limites impostos pelo Código de Defesa do
Consumidor e pela Lei Geral de Proteção de Dados, vez que a liberdade de escolha do
consumidor está limitada àquilo que lhe é oferecido. Nesse sentido, poderá optar por escolher
o preço mais barato, as condições de pagamento, mas a restrição é dada pela própria condição
material do mercado (NUNES, 2018, p. 74). Embora haja uma liberdade limitada, as empresas
que detêm os dados do consumidor, de forma legal ou ilegal, não podem utilizá-los para fins de
discriminação ou de limitação de escolha. Sendo assim, a liberdade envolve a opção do
consumidor em adquirir determinados produtos e serviços. Ocorre que, comumente, as
necessidades são projetadas pelos fornecedores, que são cada vez mais detentores dos dados
dos indivíduos. E, por conseguinte, conseguem gerar os serviços e os produtos futuros voltados
ao perfil do consumidor. Sérgio Cavalieri Filho (2019, p. 112) explicou que

Com efeito, o consumidor não tem conhecimento algum sobre o produto ou serviço
de que necessita; detentor desse conhecimento é o fornecedor, que tem o domínio do
processo produtivo. Este sim sabe o que produziu, como produziu, por que e para
quem produziu, aspectos em que o consumidor é absolutamente vulnerável. Logo, a
informação torna-se imprescindível para colocar o consumidor em posição de
igualdade. Só há autonomia da vontade quando o consumidor é bem informado e pode
manifestar a sua decisão de maneira refletida.

Por outro lado, o consumidor está sujeito a tomar decisões de forma inconsciente, pois
está constantemente influenciado pela economia comportamental e psicológica da sociedade.
Portanto, é passível de ser levado a escolhas, que, por vezes, precisava ou não desejava. Os
principais motivos que os leva a comprar, independentemente da necessidade e/ou do desejo, é
o status, a conduta do fornecedor e as estratégias psicológicas.

Nesse sentido, por mais que a relação jurídica costume depreender uma declaração de
vontade livre e consciente, não se pode deixar de observar que o imperativo de justiça impõe a
proteção das pessoas que “inconscientemente, foram levadas a praticar determinados atos,
99

acreditando que estes eram fruto de sua vontade, quando, na verdade, foram induzidas a certos
comportamentos” (SCHMIDT NETO; FACCHINI NETO, 2018, p. 65-88).

Diante do exposto, é inegável a necessidade de buscarem-se mecanismos no


ordenamento jurídico que visem resguardar os direitos dos consumidores.

4 A RESPONSABILIDADE CIVIL NO CONTEXTO DOS DIREITOS DOS


CONSUMIDORES

Para proteger a vida privada do consumidor e permitir sua liberdade de escolha sem
interferência externa ou discriminação, a legislação brasileira e o Poder Judiciário devem
utilizar as diretrizes limitadoras de poderes dos fornecedores.

O advento da Lei Geral de Proteção de Dados como diretriz limitadora é um marco


histórico, tendo em vista que seu objetivo é proteger os direitos fundamentais de liberdade e de
privacidade, bem como a livre formação de personalidade de cada indivíduo, regulamentando
o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais 9. Dessa forma, o fornecedor que
não agir de acordo com a lei estará sujeito a sanções, devendo, inclusive, ser responsabilizado
civilmente pela perturbação na vida privada do consumidor. Isto poderá ocorrer seja porque fez
inadequada utilização de dados pessoais ou por não os tratar corretamente seja pela interferência
no seu sossego através de publicidades irregulares, visto ser uma das consequências do uso
indevido dos dados pessoais. A partir dessa ótica, será examinado como a Lei Geral de Proteção
de Dados trata tais situações e, também, como ela emprega o instituto da responsabilidade civil.

4.1 A Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil e seus contornos sob o viés do Código de
Defesa do Consumidor

Por meio da Lei Geral de Proteção de Dados, todos os dados pessoais estão sujeitos à
regulamentação e, além disso, deverão ser tratados e utilizados para o fim a que se destinam,
sejam estes dados físicos ou digitais. Contudo, para garantir este direito básico do consumidor,
é necessário o controle do fluxo dos dados que lhe dizem respeito. Da mesma forma, este
controle é necessário para que o tratamento destes dados ocorra de forma leal, não frustrando o

9
Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou
por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade
e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. (BRASIL, 2018)
100

consumidor durante o processamento de dados ou acarretando riscos imprevisíveis e efeitos


discriminatórios (MENDES, 2013, p. 214). Nesse sentido, para todo o tratamento de dados
pessoais, deve ser observado o pressuposto da transparência10. Isso implica no direito do
consumidor de ser informado sobre a forma de utilização de seus dados, tais como

i) quais os dados pessoais são tratados e para quais finalidades; ii) se os dados pessoais
são transmitidos para terceiros; iii) para quais países os dados pessoais são
transmitidos, se for o caso; iv) qual é o período de conservação de dados; e v) quais
os mecanismos de segurança utilizados para garantir a segurança dos dados pessoais
(MENDES, 2013, p. 215).

Dessa forma, um dos pontos chaves é o dever de informar. Ele sempre deverá ser
cumprido de forma correta, clara, precisa, ostensiva e em língua portuguesa (BRASIL, 1990).
Além disso, o tratamento de dados pessoais deve respeitar o fim para o qual se destinam11.
Logo, não podem ser utilizadas para finalidades incompatíveis com aquelas às quais foram
coletadas (MENDES, 2013, p. 216). Outrossim, deve ser garantido ao titular o acesso aos seus
dados, o direito de retificá-los, além de do direito de cancelar aqueles que foram indevidamente
armazenados ou que o consentimento tenha sido revogado.

Todos esses direitos são extraídos da sistemática do Código de Defesa do Consumidor


e da Lei Geral de Proteção de Dados. Nesse sentido, apesar das novas diretrizes extraídas da
Lei nº 13.709, de 2018, a qual veio regulamentar a forma de tratar e de utilizar os dados pessoais
da pessoa natural, o Código de Defesa do Consumidor segue sendo um dos maiores alicerces
para interpretação da lei, exigindo o diálogo das fontes de forma constante pelo legislador.

Sendo assim, é oportuno questionar outro elemento chave: de que forma se dá o controle
sobre o fluxo de dados, ponto crucial no tocante ao direito do consumidor? Pois bem, o referido
controle ocorre a partir do consentimento livre do consumidor, requisito essencial para gerar
legitimidade para o processamento dos dados pessoais. Portanto, isto significa que o indivíduo
tem o direito de autodeterminar suas informações pessoais. Em outras palavras, o consumidor
limita o acesso aos seus dados, emitindo autorizações sobre o fluxo das suas informações
(BIONI, 2019, p. 179). Segundo Danilo Doneda (2020, p. 293), o consentimento é o poder

10
Art. 6º. As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios: VI -
transparência: garantia, aos titulares, de informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização do
tratamento e os respectivos agentes de tratamento, observados os segredos comercial e industrial. (BRASIL, 1990)
11
Art. 6º. As atividades de tratamento de dados pessoais deverão observar a boa-fé e os seguintes princípios: I -
finalidade: realização do tratamento para propósitos legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular, sem
possibilidade de tratamento posterior de forma incompatível com essas finalidades; II - adequação:
compatibilidade do tratamento com as finalidades informadas ao titular, de acordo com o contexto do tratamento.”
(BRASIL, 2018)
101

atribuído à pessoa para modificar sua esfera jurídica, com assento na expressão de sua vontade.
Além disso, o autor acrescentou que há dois aspectos especiais acerca do consentimento

O primeiro é que esse se apresenta como um elemento acessório, sempre ligado a uma
determinada situação que o fundamenta – que pode ser a realização de um contrato, a
inscrição em um concurso ou tantas outras situações. O confronto com situações reais
revela que, em tais situações, a alternativa a não revelação dos dados pessoais pelo
seu titular costuma ser uma – por vezes, brutal – renúncia a determinados bens ou
serviços. A disparidade de meios e de poder entre a pessoa de quem é demandado o
consentimento para utilização dos dados pessoais em contemplação da realização de
um contrato e aquele que os pede faz com que a verdadeira opção que lhe reste seja,
tantas vezes, a de “tudo ou nada”, “pegar ou largar”. Outro fator é que o consentimento
para o tratamento de dados pessoais pode se apresentar como um procedimento
aparentemente inócuo – as consequências que dele podem advir podem ser pouco
nítidas e difíceis de serem identificadas.

Dessa forma, em razão da vulnerabilidade do consumidor e do desequilíbrio entre


consumidor e fornecedor, é necessário observar quando o consentimento é real ou quando é
dissimulado. Assim, para que o consentimento seja válido e constitua real manifestação de
vontade, devem ser atendidos determinados requisitos: ser expresso, livre, específico e
informado. Laura Schertel Mendes (2013, p. 207) propõe critérios que devem ser observados:

(i) se o consentimento para o tratamento de dados era uma condição para a aquisição
de um serviço essencial; (ii) se o consentimento foi dado em uma relação continua de
dependência, como em um contrato cativo de longa duração; (iii) quando o
consentimento estiver formulado em um contrato de adesão e não puder ser separado
das demais cláusulas contratuais. Ademais, o consentimento somente é valido se o
consumidor tiver sido informado de todas as condições do tratamento de dados: quem
é o responsável, qual a finalidade do tratamento, como os dados serão usados etc.

Sem o consentimento do consumidor, o tratamento de dados somente será considerado


legítimo em casos excepcionais, como “a) se o tratamento de dados for indispensável para o
cumprimento da finalidade do contrato; ou b) for necessário para execução de obrigação legal
do fornecedor” (MENDES, 2013, p. 208). Por conseguinte, o consentimento está atrelado ao
tratamento de dados justo e lícito (BIONI, 2019, p. 179). Além do consentimento, a
legitimidade do tratamento de dados deve observar a boa-fé objetiva com o propósito de
resguardar as expectativas do consumidor, assim como os impactos e os riscos do tratamento
de seus dados pessoais. Em síntese, devem ser avaliados os seguintes questionamentos:

i) o tratamento de dados pessoais foi autorizado pelo consumidor ou se enquadra nas


exceções ao consentimento? ii) o consentimento atendeu aos requisitos de validade,
isto é, foi expresso, livre, informado e especifico? iii) o tratamento de dados atende
aos princípios da boa-fé́ e da proteção às expectativas legitimas do consumidor ou
acarreta graves riscos à personalidade do consumidor? (MENDES, 2013, p. 214)
102

Nesse sentido, conclui-se que o consentimento deve ser o elemento normativo central
para a proteção de dados pessoais. Por outro lado, cabe ao fornecedor agir dentro da boa-fé
objetiva, utilizando-se dos dados restritivamente, a fim de cumprir tão somente o propósito para
o qual foram coletados (BIONI, 2019, p. 131).

Em contrapartida, se as inovações tecnológicas têm gerado grandes riscos à


personalidade dos indivíduos, concomitantemente também podem ser verdadeiras ferramentas
em favor da proteção do consumidor. Assim, a doutrinadora discorreu que é preciso alinhar tais
inovações ao direito para um progresso seguro dentro do campo da proteção de dados.

É preciso estimular a incorporação da ideia de autodeterminação informativa nos


sistemas, códigos, arquiteturas e procedimentos tecnológicos: aplicar o direito
fundamental à proteção de dados na concepção e na aplicação das tecnologias que
permeiam os serviços e produtos disponíveis aos usuários. [...] Em especial, ao
máximo tecnologicamente possível, (i) aumentar a confiança dos indivíduos no
sistema utilizado e no tratamento de dados realizado, assegurando que ambos serão
livres e adequados, longe de manipulações, interceptações ou acessos indevidos, bem
como (ii) permitir com que o titular dos dados possa configurar e determinar sua
preferencias aceca do que é feito com os desdobramentos virtuais de sua personalidade
(MENDES; FONSECA, 2020, p. 521).

Sendo assim, cabe observar que haverá situações em que o consentimento do titular de
dados não será protagonizado e tampouco será uma situação de excepcionalidade. Nesse caso,
haverá responsabilidade pelo fornecedor, conforme será analisado a seguir.

4.2 Responsabilidade Civil e o Direito ao Sossego

O uso indevido dos dados pessoais dos consumidores acarreta inúmeros danos, como:
exposição, discriminação, violação da esfera privada, importunação ao sossego, dentre outros.
Assim, é necessário analisar o instrumento jurídico de tutela vigente no sistema brasileiro.

A prática de captação de dados combinada com o poder computacional hodierno, bem


como as práticas publicitárias realizadas podem gerar um “campo propício a abusos e intrusões
desnecessárias, capazes de causas o que equivaleria à perturbação ao sossego no plano físico”
(BASAN, 2021, p. 320). Nesse ínterim, para atender as expectativas do mercado e dos
consumidores, as empresas precisam recorrer aos recursos tecnológicos. Por meio do artifício
das publicidades virtuais, as empresas se tornam onipresentes, visto que é possível comprar
produtos e serviços a qualquer hora, a partir de qualquer local, caracterizando o turbo
consumismo (BASSAN, 2021, p. 323).
103

Desse modo, a responsabilidade civil pela perturbação do sossego, mostra-se como


caminho para a concretização do direito correspondente, instrumentalizado pela proibição da
utilização de dados indevidamente, além da consequente importunação pelas publicidades
virtuais de consumo. Afinal, não é apenas a exposição integral do consumidor às publicidades
que gera a perturbação do sossego, mas também e, principalmente, o desvio de finalidade da
utilização de seus dados pessoais. A título de exemplo, é possível citar ligações inesperadas e
incessantemente recebidas por empresas desconhecidas, sem autorização, e-mails, mensagens,
publicidades programadas, etc.

Logo, a responsabilidade civil, além das suas diversas funções já consagradas –


compensatória, punitiva ou preventiva –, precisa “sempre desempenhar o papel central de
desestímulo a comportamentos antijurídicos e atividades que imponham riscos ou ameaças
desnecessárias à coletividade” (BASSAN, 2022, p. 325). Por esse motivo, a responsabilidade
civil de consumo recebeu uma forma distinta, pois visa flexibilizar diversas exigências outrora
existentes. Neste sentido, sabe-se que, na esfera do consumo, a responsabilidade é objetiva e,
portanto, não é necessária a demonstração da culpa12. Além disso, todos os fornecedores
respondem de forma solidária13. Sobre o tema, Arthur Pinheiro Basan (2021, p. 325) discorreu
que a

Responsabilidade civil de consumo caminha mais no sentido de prevenir os danos


(tutela preventiva), para além de esperar que ocorram para posterior reparação (tutela
repressiva). Inclusive, a prevenção de danos é direito básica do consumidor, nos
termos do artigo 6, inciso VI. Tudo isso indica que a responsabilidade civil de
consumo, apesar de reconhecer ampla liberdade aos fornecedores, impõe uma porção
de limites, especialmente visando a tutela da parte mais fraca da relação.

Diante disso, é possível perceber que, no ordenamento jurídico brasileiro, há novas


situações lesivas, decorrentes de usos indevidos de dados pessoais. A perturbação ao sossego,
sob o viés do abuso de direito, é uma causa apta a gerar responsabilidade civil. É neste sentido
que a jurisprudência brasileira vem reconhecendo os casos sobre essa matéria.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul reconheceu, por unanimidade, a violação


da privacidade, da intimidade, bem como a perturbação ao sossego sofrida por um indivíduo

12
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações
insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. (BRASIL, 1990)
13
Art. 7°. Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções
internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas
autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia,
costumes e eqüidade. Parágrafo único. Tendo mais de um autor a ofensa, todos responderão solidariamente pela
reparação dos danos previstos nas normas de consumo. (BRASIL, 1990)
104

que recebeu excessivas ligações e mensagens por uma operadora de telefonia14. Segundo os
autos, o autor chegou a receber mais de 28 ligações da empresa em uma única manhã. Estas
ligações se tratavam de cobranças de débitos contraídos por terceiro – mãe do autor. Por conta
disto, o órgão julgador entendeu que não havia prova capaz de caracterizar a legitimidade das
cobranças, pois não existia relação contratual entre o autor e a operadora de telefônica e
tampouco comprovação do cadastro da linha telefônica do demandante no sistema interno da
operadora. Sendo assim, a empresa foi condenada a indenizar o autor no montante de R$
1.500,00 a título de danos morais pela violação de sua intimidade, sua privacidade e da
perturbação ao sossego.

A justiça e o legislativo brasileiro caminham para uma evolução no assunto,


principalmente a partir do reconhecimento da proteção de dados como uma garantia
fundamental. Ademais, é incontestável que o assédio ilimitado das empresas interfere na
autodeterminação informativa, na liberdade e na intimidade das pessoas. Com efeito, a
responsabilidade civil é o instituto adequado para não só reparar os abusos provocas, mas
também para combater as práticas de mercado desleais e abusivas, sob o um novo ponto de
vista preventivo.

5 CONCLUSÃO

O atual contexto de sociedade amplamente conectada com as novas projeções e, além disso,
cada vez mais virtualizada, carrega também novos problemas, expondo os indivíduos a novos
riscos. Diante deste panorama, importante revisitar os conceitos de publicidade e de proteção
ao consumidor já dispostos no Código de Defesa do Consumidor e verificar como o
ordenamento jurídico brasileiro vem prospectando caminhos positivos para lidar com as
demandas atuais.

14
Ementa: RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Terceira Turma Recursal
Cível, Turmas Recursais). Recurso Cível nº 71010045805. RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. AÇÃO
INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS. Sentença que extinguiu o feito, sem julgamento de mérito, nos
termos do art. 485, VI, do CPC. Interesse processual que existe. Necessidade de ir a juízo para alcançar a tutela
pretendida. Julgamento de mérito do pedido conforme art. 1.013, §3º, I, do CPC. Cobrança indevida. Relação
contratual não evidenciada. Excesso de ligações e mensagem de texto demonstrado nos autos. Dano moral
configurado excepcionalmente ante a perturbação de sossego que ultrapassa a esfera do mero aborrecimento.
Precedentes. Quantum indenizatório arbitrado em r$ 1.500,00, observando os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. Sentença reformada. Recurso parcialmente provido. Relator: Giuliano Viero Giuliato. Julgado
em: 30/09/2021. (RIO GRANDE DO SUL, 2021).
105

Foi possível verificar-se que a privacidade não se limita à forma material de não ter sua
intimidade violada, mas que também há de se reconhecer sua expansão quanto às relações
virtuais. Para tanto, considera-se que o acesso aos dados pessoais dos indivíduos, possibilitado
através da internet, é utilizado a todo instante para inúmeras situações. Neste caso, por exemplo,
é utilizado para identificar o estilo do consumidor, seus objetivos, suas escolhas, seus desejos
e, até mesmo, suas relações, ou seja, para traçar seu perfil.

Nesse ponto, importante frisar que o direito deve se adequar às novas situações
decorrentes da sociedade tecnológica e aos novos conflitos advindos do ambiente digital. Sendo
assim, a importunação ao sossego, por meio da inadequada utilização dos dados pessoais das
pessoas, é uma nova situação de conflito no ordenamento brasileiro. Tal situação deve ser
enfrentada à luz dos direitos fundamentais. E, assim, a partir do diálogo das fontes, deve-se
aplicar Lei Geral de Proteção de Dados em conjunto com o Código de Defesa do Consumidor.

Todas essas reflexões são essenciais para confirmar que, visando a mais ampla tutela da
pessoa humana, a perturbação provocada pelas publicidades de consumo, atreladas às novas
tecnologias, deve ser enfrentada pela proteção dos dados pessoais, um dos principais
instrumentos para garantir o devido sossego as pessoas. Com efeito, o caminho para garantir a
proteção de dados pessoais e o reconhecimento do direito ao sossego deve ser percorrido com
a colaboração da parte da sociedade que se encontra envolvida na relação, qual seja consumidor
e empresas. Por um lado, o consumidor deve possuir o mínimo de zelo nas suas escolhas e na
divulgação dos seus dados. Por outro lado, as empresas devem seguir as diretrizes impostas
pela Lei Geral de Proteção de Dados e, portanto, comprometer-se a utilizar os dados dos
consumidores para os fins que se destinam, agindo de acordo com a boa-fé objetiva e sempre
promovendo a informação ao consumidor de maneira clara e ostensiva. Em casos de não
obediência aos limites impostos pelo ordenamento jurídico, as empresas deverão reparar os
danos causados aos consumidores, consoante a responsabilidade civil a ser aplicada. Inclusive,
este vem sendo o atual entendimento do Poder Judiciário brasileiro, conforme analisado nos
julgados demonstrados neste trabalho.

Por fim, considerando o exposto, conclui-se que o uso do instituto da responsabilidade


civil, aliado ao Código de Defesa do Consumidor e à Lei Geral de Proteção de Dados, apresenta-
se como via eficaz para assegurar os direitos dos consumidores, em especial no que diz respeito
à privacidade, liberdade de escolha e sossego, nos casos em que se verifica abusividade nas
publicidades digitais.
106

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RESPONSABILIDADE CIVIL: dano moral ou mero dissabor nos


casos de descontos não autorizados do Benefício de Prestação
Continuada - BPC de pessoas idosas

Iara Sabina Zamin 1


Bruna Laís da Veiga Kazmirczuk 2
Solange Beatriz Billig Garces 3

RESUMO

O aumento da população idosa no mundo e no Brasil é uma realidade da sociedade


contemporânea, de forma que o envelhecimento populacional se dá pelo avanço humano em
aprimorar as condições de vida. Diante do cenário capitalista, o crédito surge como
possibilidade de acesso a bens de consumo, aos que ganham menos. Assim, os empréstimos
consignados se tornaram atrativos para esse grupo social, especialmente, aos aposentados e
pensionistas do INSS, e beneficiários idosos do Benefício de Prestação Continuada (BPC). No
entanto, contratos de empréstimo consignado fraudulentos, e consequentemente descontos não
autorizados, estão se tornando cada vez mais comum e causando temor aos beneficiários idosos.
O presente artigo tem objetivo de analisar a situação atual das pessoas idosas, com ênfase
naquelas que estão recebendo BPC, bem como as mudanças nas legislações possuem a
possibilidade de realizar o empréstimo consignado diretamente no benefício, fator que acaba
atraindo atenção de fraudadores, e o assédio por parte de instituições de créditos, que
manipulam pessoas idosas a autorizarem tais serviços. Em razão da hipervulnerabilidade das
pessoas idosas, o grupo é mais suscetível de ser enganado e cair em golpes, todavia não se pode
olvidar da responsabilidade civil objetiva das instituições financeiras nas operações de consumo
realizadas, e principalmente frente aos incidentes. Portanto, no caso de exposição do
consumidor ao abalo moral e psíquico, frente prática abusiva em condições desvantajosas, deve
a instituição financeira ser responsabilizada, e determinada a ressarcir dos danos morais e
financeiros causados, visto que o dano ultrapassa o âmbito do mero dissabor.
Palavras-chave: Pessoa Idosa; Responsabilidade Objetiva; Instituição Financeira; BPC.

1 INTRODUÇÃO

O gradativo aumento da população idosa vem apresentando diversas mudanças ao


quadro social e financeiro dos brasileiros. Isso porque, com o avanço das tecnologias, e o

1
Graduada em Direito pelas Faculdades Integradas Machado de Assis (2016). Discente do Mestrado em Práticas
Socioculturais e Desenvolvimento Social na Unicruz - Direito, Cruz Alta/RS. Inscrita na OAB/RS 103.471. E-
mail:iarazaminn@hotmail.com.
2
Graduada em Direito pela Universidade de Cruz Alta - Unicruz. Discente do curso de Mestrado do Programa de
Pós-Graduação em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social da Unicruz, Cruz Alta/RS. Inscrita na
OAB/RS 125.748. E-mail: kazmirczukbruna@gmail.com.
3
Doutora em Ciências Sociais; Pesquisadora do GIEEH-Grupo Interdisciplinar de Estudos do Envelhecimento
Humano. Docente do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Práticas Socioculturais e Desenvolvimento Social -
Unicruz, Cruz Alta/RS. E-mail: sgarces@unicruz.edu.br.
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número de pessoas idosas, em comparativo às outras faixas etárias ter aumentado, a qualificação
financeira passa a mudar conjuntamente.

A realização de contratos de empréstimo consignado fraudulentos, e consequentemente


descontos não autorizados, está se tornando cada vez mais comum, e causando temor aos
beneficiários idosos do Benefício de Prestação Continuada - BPC. É consabido que o BPC se
trata de benefício assistencial destinado ao grupo social em situação de vulnerabilidade e
dependência, visto que garante um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de
deficiência ou à pessoa idosa, que comprove não possuir meios de prover a própria manutenção
ou de tê-la provida por sua família.

Dessa forma, o presente artigo tem por objetivo analisar a situação atual das pessoas
idosas, com ênfase naqueles indivíduos idosos que estão recebendo benefício assistencial de
prestação continuada, e que, com as mudanças nas legislações, possam ter a possibilidade de
realizar o empréstimo consignado diretamente no benefício.

Ocorre que, a hipótese de haver uma divergência no que tange ao consumidor pedir, está
bem distante do efetivo fato dele ser solicitado, gerando assim uma responsabilidade civil sobre
as instituições financeiras que possuem os dados dos seus clientes, e os utilizam de forma
indevida.

Destaca-se que a responsabilidade civil está prevista nas legislações vigentes, tendo
como principal o Código de Defesa do Consumidor - CDC, que fora incluso nas decisões que
versam sobre contratos financeiros há pouco tempo, o que demonstra haver um impasse nas
decisões que, até o momento, não ocorrem de forma congruente e continua existindo uma
discrepância nos resultados processuais, a depender de cada caso.

Esta pesquisa é qualitativa, com método dedutivo, no qual buscou-se analisar os direitos
dos consumidores idosos, mais especificadamente, a abusividade em contratos de consignados
não contratados realizados em benefícios de prestação continuada, submetidos indevidamente
às pessoas idosas, sendo que, os instrumentos técnicos utilizados para a pesquisa foram
bibliográficos e doutrinários.

Nesse sentido, no presente artigo, buscou-se trazer uma prévia da situação atual da
pessoa idosa no Brasil, com a evolução legislativa do BPC, no qual busca verificar como é
analisada a responsabilidade civil das instituições financeiras quando há cobranças indevidas
de consignados nos benefícios previdenciários.
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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 A situação atual da pessoa idosa no Brasil

Pode-se dizer que “O aumento da longevidade e o envelhecimento demográfico são


conquistas da Humanidade que se iniciaram no século XX e que se vão acentuar no século XXI”
(AZEREDO, 2016, p. 20). Neste sentido, alguns países desenvolvidos tiveram esta conquista
aos poucos e conseguiram se organizar para esse processo, todavia no Brasil chega de forma
acelerada e com grande contingente de população envelhecida a cada nova década.

No censo realizado em 2010 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE,


o país apresentou mais de 26 milhões de pessoas idosas, correspondendo em torno de 13,7% da
população total. Com isso, a estimativas é que as pessoas acima de 60 anos farão parte do maior
grupo populacional no ano de 2030, compondo um número de mais de 64 milhões de idosos,
ultrapassando as crianças de até 14 anos, que na época do estudo correspondia a maior
população (IBGE, 2010).

Segundo pesquisa realizada no ano de 2021, pelo IBGE, a população brasileira está mais
velha, sendo que, na atualidade, são 31,2 milhões de pessoas idosas presentes no país, com
crescimento de 39,8% entre o ano de 2012 e 2021. Em razão da mudança na estrutura etária no
Brasil, associada à vulnerabilidade social, a pessoa idosa enfrenta dificuldades no acesso ao
BPC de forma célere e efetiva (IBGE, 2021).

Atualmente, os dados preliminares do último censo, realizado no ano de 2022,


demonstram que houve um avanço enorme no que se refere ao número de pessoas com mais de
60 anos, quantitativo esse que subiu para 15,1% do total de população idosa no Brasil, sendo
que dez anos antes (em 2012), o percentual era de 11,3%. Sendo assim, a perspectiva para o
ano de 2050 é de mais de 2 bilhões de pessoas idosas no mundo, sendo três vezes maior que as
demais gerações (IBGE, 2022).

Ao caracterizar o envelhecimento humano, pode-se dizer que não há uma distinção


específica, ou um atributo de modo geral que possa identificar o que é o envelhecimento, uma
vez que os resultados do avanço da idade são individuais e dependem das situações em que a
pessoa idosa foi exposta ao longo da vida, particularidade que envolvem o biológico, o psíquico
e o social (AZEREDO, 2016).

Entretanto, no geral, Marchi Neto (2004) diz que, após completar a idade de 60 anos, as
pessoas passam por processos biológicos distintos, os quais acarretam uma maior visibilidade
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na pele mais ressecada, com linhas de expressão aparentes, o cabelo perde a pigmentação, ficam
esbranquiçados e tendem a cair com maior facilidade, da mesma forma a estrutura óssea, que
passa a ser enfraquecida, sucedendo curvaturas na coluna, pernas e ombros.

Dessa forma, ao identificar a pessoa idosa, Rocha (2018, p. 79) diz que “o
envelhecimento é constituído de um conjunto de modificações fisiológicas irreversíveis e
inevitáveis acompanhadas de mudança do nível de homeostasia do corpo”, o que individualiza
cada ser humano de forma única.

O processo de envelhecimento envolve alterações que vai desde o nível dos processos
mentais, da própria personalidade, das motivações que a pessoa tem, das aptidões
sociais, ou seja, o envelhecimento, do ponto de vista psicológico, vai depender de
fatores de ordem genética, patológica (doenças e/ou lesões), de potencialidades
individuais (processamento de informação, memória, desempenho cognitivo, entre
outras); com interferência do meio ambiente e do contexto sociocultural (ROCHA,
2018, p. 80).

Portanto, o processo de envelhecimento é maior que a proporção física do ser humano,


o método também envolve as questões psicológicas, sociológicas e inclusão de adaptabilidade
ao sistema que está integrado, uma vez que as mudanças externas do corpo podem afetar
diretamente os sistema emocional e social das pessoas, principalmente quando envolvem o
convívio com a sociedade, mudança no ritmo de vida, exclusão familiar, desencontro com o
sistema que estava adaptado e outros que, com o acumulo de mudança, podem gerar doenças
da solidão, denominada de depressão (MARCHI NETO, 2004).

O avanço da idade ocasiona mudanças, estas atreladas ao status social, as transições


econômicas e à perda da utilidade e do poder na sociedade, no qual as dificuldades apresentadas
pelas pessoas idosas no momento em que essa situação chega, acarretam divergências nos
projetos de vida, sendo que, a possibilidade de buscar um trabalho, já não é mais “normal”,
trazendo a dificuldade de adaptação nesse ciclo de vida, causando profundos desesperos quando
afrontados com o fato de que não poderão mais prover o próprio sustento, estando totalmente
dependentes financeiramente de auxílios governamentais ou ajuda de amigos e familiares
(ROCHA, 2018).

Azeredo (2016, p. 21) diz que “o desenvolvimento humano se faz ao longo de todo o
ciclo vital, porém não de forma uniforme”, no qual o período adulto se faz a partir das
capacidades físicas e psíquicas do ser humano, que estabilizam a partir dos 30 anos e que
decaem a partir dos 60 anos, em uma fase de declínio, gerando modificação das habilidades.
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No campo biológico, é explicado pela ciência que o envelhecer é um processo de divisão


de células, onde o conjunto de DNA (Ácido Desoxirribonucleico) diminui, gerando uma
carência na renovação da célula mitose de forma progressiva e descendente, no qual o
metabolismo começa a trabalhar de forma mais devagar e a aparência física do indivíduo torna-
se com diferentes expressões, tornando visível as alterações fisiológicas (DANTAS, 2019).

Tratando-se como um processo fisiológico e natural, o envelhecimento é considerado


normal e usual, o qual faz parte do ciclo da vida. Destarte, esse processo não pode ser enfrentado
como um problema na sociedade, tão pouco considerado uma doença ou um problema para
viver, uma vez que, a vida possui diversos métodos e o sistema brasileiro diversas
possibilidades de amparo às pessoas idosas, trazendo para o envelhecimento um amparo de
melhor aproveitamento.

Deve-se ressaltar que, envelhecer é também, a busca diária por fazer valer o direito de
cidadania daquelas pessoas que converteram seu período de vitalidade maior em trabalho e,
agora, ao final deste ciclo vital, necessitam de maior descanso, com qualidade de vida e
dignidade, para poder usufruir de momentos de lazer, prazer e ócio.

No entanto, o envelhecimento humano é causa natural da vulnerabilidade da pessoa


idosa, quando essa pessoa idosa é parte de uma relação de consumo, se torna hipervulnerável,
a qual representa a vulnerabilidade agravada, e essa intensificação da suscetibilidade ao dano
pode provir de distintas fontes, decorrentes de fatores de duração permanente ou temporária, a
considerar condições individuais ou coletivas, com potencialidade de gerar a
hipervulnerabilidade (CAS, 2019). Ainda, Amthauer e Falk (p. 18) ressaltam que:

A velhice é difícil de ser definida, principalmente quando se almeja uma velhice


saudável, desejada por todos e para todos. Portanto, deve ser compreendida em sua
totalidade e em suas múltiplas dimensões, visto que se constitui em um momento do
processo biológico, mas não deixa de ser um fato social e cultural.

Diante da hipervulnerabilidade e da facilidade de conseguir crédito no mercado de


consumo, as pessoas idosas possuem uma propensão ao endividamento, que por sua vez possui
várias causas e passa a ser uma preocupação social quando os empréstimos se tornam a solução
de problemas financeiros por dívidas contraídas ou para satisfação de necessidades básicas
(CAS, 2019).

Diante desse cenário, o superendividamento de pessoas idosas já é realidade no país, de


modo que sopesando que a renda de pessoas idosas pode ser a única fonte de subsistência das
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famílias, a questão do endividamento se torna grave problema que merece a atenção do Estado.
O superendividamento é o excesso de endividamento da pessoa idosa, o qual compromete a
dignidade do devedor (BRASIL, 2021).

Ainda, segundo o Governo Federal (2021), conforme levantamentos do Instituto


Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), mais de cinco milhões de idosos estão
endividados no país, a maioria por meio de empréstimos com o crédito consignado, oferecido
a recém-aposentados por meio de práticas desleais, como assédio para contratação por telefone,
perturbação do sossego com insistentes ligações, venda casada com pagamento de seguros e
títulos de capitalização, entre outras.

Dessa forma, é possível entender que a razão para o superendividamento das pessoas
idosas se dá pela excessiva oferta de crédito com juros exorbitantes, pelo sistema bancário e de
crédito, aliado à ausência de educação financeira dos cidadãos, à exposição à publicidade
abusiva e à falta de políticas públicas efetivas com relação a informação.

Nesse sentido, a preocupação maior está presente nas pessoas idosas que recebem o
BPC, visto que buscam um auxílio governamental com o intuito de assegurar os seus direitos
na sociedade, através do recebimento de um benefício fixo e mensal. Isso porque, a pessoa idosa
que busca perceber um benefício assistencial, nessa etapa da vida, já não dispõe de um aparo
institucionalizado anterior.

Isso quer dizer que, durante toda a jornada da sua vida, a pessoa idosa pode até ter
trabalhado com carteira assinada por algum período e contribuído para a previdência social,
mas não conseguiu atingir um limite de tempo necessário para ser beneficiário de uma
aposentadoria. Ou ainda, sequer o indivíduo teve a oportunidade de trabalhar de forma
regulamentada, laborando em atividades extraordinárias, sem amparo trabalhista, através de
meios diversos, para garantir um meio de sobrevivência na sociedade (BRASIL, 1993).

Apesar desses fatos, restou previsto na Constituição Federal do Brasil, que o Estado
deverá garantir amparo à saúde e assistência social destas pessoas idosas que, ao atingir os 60
anos, buscam o recebimento de um benefício para sobrevivência, que não possuem meios de se
autossustentar, tornando essa situação um desafio continuo desses indivíduos para ter inclusão
perante a sociedade (BRASIL, 1988).

Nesse viés, a Lei nº 8.742 de 1993, em seu artigo 2º, alínea “e”, destacou que a
assistência social tem por objetivo, proteger e amparar as pessoas idosas, com “a garantia de 1
(um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem
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não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família”
(BRASIL, 1993, p. 1).

Ou seja, os beneficiários do BPC, se trata de grupo social em situação de vulnerabilidade


e dependência, que não possuem meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por
sua família, de modo que estão sendo vítimas de contratos de empréstimo consignado
fraudulentos, e descontos não autorizados diretamente do benefício, causando danos psíquicos
e financeiros à essas pessoas.

2.2 O fornecimento do Benefício de Prestação Continuada (BPC) às pessoas idosas

As políticas públicas de proteção social visam resguardar a sociedade dos efeitos dos
riscos inerentes da vida humana e que causam dependência e insegurança, como doença,
velhice, invalidez, desemprego e exclusão. Atualmente, no Brasil, o BPC é garantido como
direito constitucional, previsto no artigo 203 da Constituição Federal vigente, o qual estabelece
que: “A Assistência Social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de
contribuição à seguridade social [...]” (BRASIL, 1988, p. 122).

A assistência social é o segmento autônomo da seguridade social que trata dos


hipossuficientes, ou seja, daqueles que não possuem condições de prover sua própria
manutenção, devendo auxiliar daqueles que têm maiores necessidades, sem exigir deles (seus
beneficiários) qualquer contribuição à seguridade social.

No entanto, foi somente no ano de 1993, sancionada a Lei Orgânica de Assistência


Social – LOAS (Lei nº 8.742/1993), a qual regulamentou e ampliou o conceito da Assistência
Social como política pública de seguridade social, como previsto na Constituição Federal de
1988. A aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS regulamentou e
institucionalizou os avanços alcançados na Carta Magna, estabelecendo a Assistência Social
como direito do cidadão e dever do Estado.

O BPC é benefício da assistência social, integrante do Sistema Único de Assistência


Social (SUAS), e tem respaldo constitucional. A partir de uma nova concepção da Política
Nacional de Assistência Social (PNAS) na perspectiva do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS), em 2004, o BPC passou a constituir parte integrante da Proteção Social Básica,
possuindo o objetivo principal de fornecer às pessoas idosas e/ou com deficiência acesso às
condições mínimas de uma vida digna (GUEDES; ARAÚJO, 2009).
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O BPC, como ordinariamente conhecido, se caracteriza como benefício destinado ao


grupo social em situação de vulnerabilidade e dependência, visto que garante um salário-
mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência ou à pessoa idosa, que comprove
não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.

Assim, os requisitos principais para recebimento do BPC atualmente são: possuir idade
de 65 (sessenta e cinco) anos ou mais; renda familiar deve ser igual ou menor que ¼ do salário-
mínimo, por pessoa do grupo familiar; possuir cadastro atualizado no CadÚnico do governo
federal. Em casos de pessoas portadoras de doenças, pode receber o benefício em qualquer
idade, desde que cumprido os critérios de renda e cadastro. Ainda, o BPC não poderá ser
cumulado com outro benefício da Seguridade Social (como, por exemplo, o seguro-
desemprego, a aposentadoria e a pensão) ou de outro regime, a não ser com a assistência médica,
pensões especiais de natureza indenizatória e a remuneração do contrato de aprendizagem
(GUEDES; ARAÚJO, 2009).

Muito embora reconhecido o papel importante do benefício dentro do sistema de


proteção social e no desenvolvimento econômico do país, o acesso ao BPC implica cadastro no
CadÚnico, avaliação dos requisitos de renda e características do público-alvo, como idade
avançada e/ou deficiência, que muitas vezes são critérios restritivos, causando impedimentos a
pessoas que mais necessitam.

Dessa forma, verifica-se que o BPC se trata de benefício assistencial, diferentemente da


aposentadoria, visto que o benefício pode deixar de ser pago, caso o beneficiário deixe de
atender as exigências da lei, podendo ainda ser revisado. Além disso, por não ser uma pensão
permanente, o BPC não dá direito ao décimo terceiro salário.

Por fim, o BPC não está vinculado à exigência de cotizações ou de vinculação passada
ao mercado de trabalho, o que possibilita atingir pessoas de maior vulnerabilidade, uma vez que
alcança indivíduos que não contribuíram com a previdência durante a vida por qualquer razão,
inclusive pela incapacidade física ao trabalho e à vida independente (GUEDES; ARAÚJO,
2009).

Portanto, o benefício assistencial é um instrumento fundamental para a melhora das


condições de vida da população idosa e dos deficientes brasileiros, não podendo ser alvo de
descontos não autorizados, ou ainda, de empréstimos não solicitados.
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2.3 A responsabilidade civil das instituições bancárias em cobranças indevidas


descontadas diretamente do BPC

Os chamados empréstimos consignados estão se tornando cada vez mais comuns entre
os consumidores idosos, em razão da sua forma célere e promessas de juros baixos, motivo pelo
qual acaba atraindo a atenção de fraudadores, e o assédio por parte de instituições de créditos,
que acabam manipulando pessoas idosas a autorizarem tais serviços.

O empréstimo consignado do Benefício de Prestação Continuada – BPC, foi criado em


março de 2022, através da Medida Provisória nº 1.106/2022, na mesma ocasião da nova
legislação que ampliou a margem consignável para aposentados e pensionistas do INSS,
liberando temporariamente a contratação de empréstimo consignado para beneficiários do BPC
e de programas federais de transferência de renda.

Inicialmente a norma possuía validade de 120 dias e, para que a regra continuasse em
vigor, a medida provisória passou por votação na Câmara dos Deputados, no Senado Federal e,
por fim, pela sanção presidencial, sendo publicada a Lei nº 14.431/2022, estabelecendo a
liberação do consignado para BPC por tempo indeterminado. Dessa forma, desde março de
2022, os titulares BPC estavam com acesso à modalidade de crédito pessoal que é uma das mais
comuns e baratas do mercado.

Com o intuito de regulamentar internamente as normas, o INSS passou a reger, através


da Instrução Normativa – IN 28/2008, algumas normas que promovem proteger os segurados
idosos dos abusos cometidos por instituições financeiras, com o intuito de lucrar sobre os
consumidores aposentados.

A IN 28/2008 promoveu proteções relacionadas ao marketing ativo das instituições


financeiras, proibindo que ocorram negociações jurídicas de empréstimos consignados antes do
decurso do prazo de 180 (cento e oitenta dias) da data da concessão do benefício de
aposentadoria, bem como o fato de permanecer bloqueado a opções de desconto diretamente
em benefício, até que, comprovadamente o segurado solicite o desbloqueio.

No entanto, a possibilidade de o beneficiário contratar o consignado com BPC,


incentivou o endividamento desenfreado entre as camadas da população de renda mais baixa,
visto que a margem consignável era de 40% do valor do benefício previdenciário, ou seja, até
40% do valor do BPC poderia ser descontado para quitação das parcelas do consignado, sendo
que 5% são de uso exclusivo para cartão de crédito consignado.
118

No mês de março de 2023, o governo federal editou a Medida Provisória nº 1.164/2023,


instituindo o Programa Bolsa Família e alterando as leis que tratam do empréstimo consignado,
de forma que a nova norma do governo alterou a Lei 10.820/2023, excluindo o BPC da lista de
benefícios consignáveis. Assim, desde então, as pessoas beneficiárias do BPC estavam
impedidas de realizar empréstimo consignado, cartão de crédito consignado e cartão
consignado de benefício.

Recentemente, no dia 20 de junho de 2023, foi publicada a Lei n. 14.601/2023, a qual


instituiu o programa Bolsa Família e alterou a Lei Orgânica da Assistência Social, onde foi
aprovado o retorno da possiblidade de contratação do empréstimo consignado para
beneficiários do BPC, mas com condições diferentes das anteriores. A nova regra do
empréstimo consignado para quem recebe o BPC prevê uma margem consignável diferenciada
em relação aos demais benefícios consignáveis do INSS.

Enquanto aposentados e pensionistas têm 45% de margem consignável dividida entre


os três produtos, os titulares do BPC poderão contratar crédito com desconto em folha com a
margem de 30% para empréstimo consignado novo; e 5% para cartão de crédito consignado ou
cartão consignado de benefício. Ou seja, além da margem consignável menor, o consignado
BPC também não permite que o titular do benefício tenha, concomitantemente, os dois cartões
consignados existentes no mercado (BRASIL, 2023).

Assim, a possibilidade dos beneficiários do BPC contratar empréstimos consignados


tem atraído os chamados “golpes do consignado” e fraudes de empréstimos não solicitados e
descontos indevidos. De acordo com o Indicador Serasa Experian de Tentativas de Fraude,
pesquisa realizada pelo Serasa Experian no ano de 2018, a cada 16 segundos uma tentativa de
fraude ocorre no Brasil, sendo as instituições bancárias o terceiro segmento mais afetado por
tais tentativas (SERASA, 2018).

O Ministério da Previdência Social (2023) estima que, atualmente, 16.771.221


aposentados e pensionistas têm crédito consignado, sendo que somente no mês de abril/2023,
1.058.282 pessoas requereram essa modalidade de empréstimo. O INSS tem realizado alertas
para que segurados e beneficiários não caiam em golpes e fraudes. Entretanto, não se pode
olvidar da responsabilidade civil objetiva das instituições financeiras nas operações de consumo
realizadas, e principalmente frente aos incidentes.

Silva e Cerewuta (2022, p. 81) dizem que “O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº
8078 de 1990 reconhece a relação de consumo no setor bancário, definindo como uma
119

instituição financeira, em seu artigo 3º, §2, como fornecedora de serviços”. Assim, a
responsabilidade objetiva identifica a hipótese de que há a presunção da culpa do fornecedor,
exigindo ainda o nexo de causalidade.

No artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor – CDC descreve que essa


responsabilidade das instituições financeiras é objetiva, na forma que “O fornecedor de serviços
responde, independentemente da existência de culpa, [...] por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua fruição e riscos” (PROCON, 2022, p. 16).

Logo, a falta de prestação de informações ou informações erradas disponibilizadas aos


consumidores serão responsabilizadas, independentemente de a prestação de serviço ser
defeituosa, bem como, independente da contratação ou não dos serviços, uma vez que a relação
contratual está pacificada no sentido de que o CDC é aplicável aos casos contratuais –
contratados ou não, nos termos da Súmula 297 do Superior Tribunal de Justiça.

Quando se percebe que os fundamentos do instituto da responsabilidade civil estão


vinculados à autonomia da vontade, percebe-se que a reparação deve ser imposta quando há
uma percepção de que a autonomia do ato não foi por vontade e sim por imposição. Nesse
sentido, a busca pela reparação, punição ou precaução, apura-se como a responsabilidade de
regulamentar os atos ilícitos causados “como a primeira forma de reação contra
comportamentos lesivos” (FARIAS, 2019, p. 59).

Por conseguinte, a aplicação de uma reparação em face do descumprimento da


responsabilidade implica no cumprimento de uma pena, trazendo as sanções como uma forma
adequada e compatível de retratação do dano causado a outrem. Nesse viés, a reparação do dano
será realizada na seara civil:

Defendemos a necessidade de o sistema de responsabilidade civil amparado em


valores constitucionais, contar com mecanismos capazes de sancionar
comportamentos ilícitos de agentes econômicos, em caráter preventivo e de forma
autônoma a sua notória vocação ressarcitória de danos (FARIAS, ROSENVALD,
NETTO, 2016, p. 70).

Azevedo caracteriza o fundamento da responsabilidade dizendo que “um ato, doloso ou


gravemente culposo, ou se negativamente exemplar, não é lesivo somente ao patrimônio
material ou moral da vítima, mas sim, atinge a toda a sociedade, num rebaixamento imediato
do nível de vida da população causando dano social” (AZEVEDO, 2004, p. 215).
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Através deste viés, o artigo 927 do Código Civil – CC apresenta a responsabilidade


objetiva das instituições como um caso de risco às atividades financeiras, ou seja, a partir do
momento que as instituições estão no mercado captando clientes e adquirindo os seus bancos
de dados, essas passam a ser responsáveis por tudo aquilo que está sob sua ótica, havendo
qualquer divergência da contratação, no qual descreve que “Aquele que, por ato ilícito (arts.
186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (BRASIL, 2014, p. 113).

Tão logo, essa responsabilidade está percebida no momento em que houver qualquer
divergência nos atos ou fatos, cabendo à instituição financeira o ônus da prova, ou seja, tendo
em vista que consumidor é o elo mais fraco da relação, neste caso, tratando-se de pessoas idosas,
caberá à pessoa jurídica apresentar todas as provas necessárias para comprovar que o
consumidor idoso contratou os serviços, de forma independente e voluntária, sem qualquer
imposição da parte contrária, nos termos do artigo 373, no qual ressalta que o ônus da prova é
do “réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”
(BRASIL, 2021, 78).

Benacchio (2006, p. 431) apresenta uma dúvida relativa à responsabilidade das


instituições financeiras:

[...] Poder-se-ia ter que a concessão de crédito pelo banco encerra atividade de risco?".
Explica o autor que considerando a importância da atividade bancária na sociedade
haverá sempre um controle por parte do Poder Público em face à discricionariedade
do banco decorrente da livre-iniciativa e que por isso estaria a instituição financeira
em posição privilegiada para observar e colher informações das empresas, exigindo
maior rigor de diligência profissional, boa fé e lealdade. Considera o banco como "ator
principal no gerenciamento privado do dinheiro no corpo social, também é o
responsável ideal do ponto de vista jurídico e econômico.

Nesse sentido, deve-se ressaltar que, tratando de responsabilidade civil das instituições,
o princípio da boa-fé dos consumidores deve ser zelado e tratado com prioridade, isso porque
as relações de consumo são tratadas com deveres implícitos, no qual a instituição assume o
risco quando se trata de relação contratual, devendo haver confiança e lealdade na relação.

Portanto, deve-se deixar claro que as instituições financeiras que infringem o Código de
Defesa do Consumidor e o Código Civil, através da imposição de contratos consignados
indevidamente, deverão ser punidas com aplicação de multa e indenização em danos morais
pela responsabilidade civil que lhe compete, sendo que as decisões judiciárias possuem
embasamento jurídico completo para tal decisão.
121

A falha na prestação de informações e/ou inexistência destas, resulta em aplicação da


indenização do dano moral à parte consumidora, devido ao prejuízo financeiro e moral, o qual
foi gerado pela prática abusiva da instituição financeira. Deve-se deixar claro que essa
indenização está caracterizada como um viés de prestação pecuniária, a qual serve para
compensar o prejuízo no direito de personalidade do consumidor e, o caráter pedagógico, que
serve para alertar que futuras fraudes ocorram novamente (SILVA; CEREWUTA, 2022).

Assim, apesar da legislação estabelecer os direitos e as proteções dos consumidores


idosos, os órgãos de proteção e defesa do consumidor trazem um auxilio frente violações
cometidas, entretanto, as medidas aplicadas na seara administrativa não resolvem o conflito na
sua integralidade, devendo o consumidor idoso buscar o Poder Judiciário para acabar totalmente
com a prática abusiva, aplicando-se a responsabilidade civil pelos atos das instituições e a
consequente indenização por dano moral.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Junto com as inovações tecnológicas, a liberação do consignado aos segurados da


previdência social e beneficiários do BPC também apresenta aperfeiçoamento aos novos
modelos de contrato. Com esse fato, a oferta de serviços de contratos consignados aumentou,
permitindo que as instituições financeiras possam abranger de forma geral o mercado de
consumo, trazendo novas oportunidades aos consumidores idosos.

Ocorre que, a partir dessa liberação do crédito consignado, também vieram outros
fatores que, tratando-se de pessoas idosas, não estão inseridas no mercado, que a
hipervulnerabilidade expõe um lado civil que não está inserida no campo desses segurados, que
se tratam de cobranças indevidas e/ou não contratadas.

A partir dessa ideia de inocência, ingenuidade e desconhecimento, as instituições


financeiras acabam possuindo maior conhecimento das situações e usufruindo-se dessas
vantagens para incorporar os contratos consignados às pessoas idosas de maneira que estas não
consigam acompanhar o raciocínio da instituição e acabam caindo em “golpes”.

Este fato apresenta-se como abuso das instituições financeiras, constatados como uma
falha no dever de informação do fornecedor ao consumidor, no qual impostos às pessoas idosas
com condições desvantajosas e indevidas, resultado em uma contratação induzida, diversa
daquela pretendida.
122

Com tais fatores, percebe-se que o fornecedor buscar se aproveitar das pessoas idosas e
não verificar as condições expressas descritas nas legislações, expondo o consumidor ao abalo
moral e psíquico, trazendo uma prática abusiva em condições desvantajosas.

Assim, destaca-se que as medidas eficientes a serem tomadas para auxiliar o consumidor
idoso e a tentativa de acabar com as práticas abusivas é a busca pelo Poder Judiciário, aplicando
a responsabilidade civil das instituições financeiras frente aos consignados não contratados,
ressarcindo a pessoa idosa dos danos morais e financeiros causados, trazendo a tutela
jurisdicional do Estado como um meio para resolver o problema gerado.

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125

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO PELA FALHA NO


DEVER DE INFORMAÇÃO

Karina Salort Larruscaim1


Sheila Salort Larruscaim2
Lívia Haygert Pithan3

RESUMO

O presente trabalho analisou a possibilidade de aplicação do código de defesa do consumidor


na atividade médica e verificou a responsabilidade civil do médico e o dever de indenizar,
quando ocorrer falha no dever de informação. Foram abordados os seguintes temas: a
responsabilidade civil do médico no código civil e no código de defesa do consumidor, o direito
à informação, o dever de informar do médico, e o termo de consentimento informado. O estudo
consistiu em pesquisa básica, qualitativa, quantitativa, documental e bibliográfica através de
livros e legislações sobre o tema, bem como a análise jurisprudencial de julgados oriundos do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Desta forma, concluiu-se que é possível aplicar o
Código de Defesa do Consumidor na atividade médica prestada mediante remuneração, sendo
admitida indenização quando ocorrer dano em virtude da violação do dever de informação.

Palavras-chave: Consentimento informado; Direito do consumidor; Direito à informação;


Direito médico; Responsabilidade civil.

1 INTRODUÇÃO

O avanço da medicina e de suas técnicas trouxe diversos questionamentos na área do


biodireito, principalmente no que diz respeito à autonomia do paciente. O paciente do século
XXI é considerado um paciente-consumidor, sendo mais exigente com relação à atuação
profissional do médico.

1
Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail:
karina.larruscaim@acad.pucrs.br.
2
Pós-graduada em Direito Médico e da Saúde pela Faculdade do Desenvolvimento do Rio Grande do Sul
(FADERGS). Pós-graduada em Ciências Criminais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).
Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP).
Graduada em Direito pela Universidade La Salle, advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 86.580, e-mail:
sslarruscaim@gmail.com.
3
Doutora em Direito Privado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra em Direito pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do SUL (PUCRS), advogada inscrita na OAB/RS sob o nº 50.105, e-mail: lívia.pithan@pucrs.br.
126

A responsabilidade civil do médico com base no código de defesa do consumidor tem


sido objeto de estudos na área jurídica, em virtude do crescente número de demandas judiciais
envolvendo profissionais da área da saúde.

O presente artigo tem por objetivo analisar a responsabilidade civil do médico no código
de defesa do consumidor. Para tanto, será necessário identificar sua aplicabilidade na atividade
médica, bem como verificar a responsabilidade civil do médico e o dever de indenizar, quando
ocorrer ausência ou falha na informação prestada ao paciente.

O atual estudo visa responder as seguintes indagações: Ocorrendo falha na informação


prestada ao paciente, deverá o médico indenizá-lo? Como tem decidido o Tribunal de Justiça
do Estado do Rio Grande do Sul?

A metodologia aplicada na elaboração deste trabalho, consiste em pesquisa básica,


qualitativa, explicativa e bibliográfica, que realizar-se-á a partir do levantamento de referências
teóricas publicadas por meios escritos e eletrônicos, tais como: livros e periódicos. Trata-se
também de uma pesquisa de natureza quantitativa e documental, através da análise de
jurisprudências, consultadas na base de dados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande
do Sul, utilizando-se o seguinte termo de busca: “responsabilidade do médico por falha na
informação”. Na busca foram encontrados 546 registros, sendo, contudo analisados os julgados
correspondentes ao período de 2019 a 2023, totalizando 149 jurisprudências.

Nesta pesquisa primeiramente abordar-se-á a responsabilidade civil do médico no


código civil e no código de defesa do consumidor, posteriormente serão desenvolvidos os
seguintes temas: a responsabilidade civil contratual e extracontratual, a responsabilidade civil
objetiva e subjetiva, a obrigação de meio e a de resultado, o direito à informação no código de
defesa do consumidor, o dever de informar do médico e o termo de consentimento informado.
E por fim apresentar-se-á uma análise quantitativa, referente aos últimos cinco anos de julgados
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul referentes à responsabilidade do médico
por falha no dever de informação.

2 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO NO CÓDIGO CIVIL E NO


CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Inicialmente, faz-se necessário esclarecer que a responsabilidade civil nasce da


necessidade de reparar um dano causado a outrem. Neste sentido, Gagliano e Pamplona Filho
(2019, p. 51) conceituam a responsabilidade civil como sendo a “atividade danosa de alguém
127

que, atuando a priori ilicitamente, viola uma norma jurídica preexistente (legal ou contratual),
subordinando-se, dessa forma, às consequências do seu ato (obrigação de reparar).”

Cabe ressaltar que para que ocorra o dever de indenizar é preciso verificar os
pressupostos que caracterizam a responsabilidade civil, quais sejam: a ação ou omissão, a culpa
ou o dolo, o dano e o nexo de causalidade. Entende-se por ação ou omissão a prática do ato em
si ou a sua omissão; considera-se culpa quando o agente não tem a intenção de causar o dano e
dolo quando o agente intencionalmente o causa; contudo dano é o prejuízo causado a outrem.
E por sua vez o nexo de causalidade é o liame entre a conduta lesante e o efetivo prejuízo.
(Gonçalves, 2018)

O nexo de causalidade é pressuposto indispensável para a caracterização do dever de


indenizar na atividade médica. Assim a conduta do profissional, seja por ação ou omissão,
deverá contribuir para o efetivo resultado danoso, a fim de que esteja configurado o dever
indenizatório. Neste sentido Miragem (2011, p. 19) destaca que no caso da responsabilidade
civil médica, a relação de causalidade é demonstrada a partir de danos em razão de “uma ação
ou omissão do profissional médico ou da falta a deveres realizados por hospitais e clínicas”;
não sendo indenizável o dano decorrente da enfermidade em razão do insucesso do tratamento
ou qualquer outra espécie de procedimento médico. Sendo, contudo, indenizável o dano
decorrente da atuação do profissional que contribua com o agravamento da situação do paciente.

Tecidas essas breves considerações acerca da responsabilidade civil, analisar-se-á na


sequência sua classificação: contratual ou extracontratual, objetiva ou subjetiva, de meio ou de
resultado. E posteriormente a responsabilidade civil do médico no código de defesa do
consumidor.

2.1 Da responsabilidade civil contratual e extracontratual

A responsabilidade civil contratual ocorre quando uma das partes causa dano à outra
pelo inadimplemento da obrigação firmada em contrato; a segunda não deriva de um contrato,
surge em virtude de um ato ilícito. (GONÇALVES, 2018)

O médico ao atender um paciente, em regra presta um serviço de saúde mediante


remuneração, esta relação jurídica estabelecida entre médico e paciente é de natureza contratual.
Policastro (2010, p. 3) afirma: que “a responsabilidade inicia, quando o médico se dispõe a
assistir o enfermo para encontrar a cura, minorar os efeitos da doença ou controlar a
enfermidade, surgindo assim para ambos um vínculo de natureza contratual”.
128

Diz-se que a responsabilidade é contratual quando deriva do inadimplemento de uma


obrigação. O art. 389 do código civil estabelece a responsabilidade do devedor por perdas e
danos, quando não cumprida à obrigação espontaneamente. (BRASIL, 2002)

Entretanto a responsabilidade extracontratual não deriva de um contrato, mas da


infração ao dever jurídico imposto em lei. Policastro (2010, p. 4) explica que a relação jurídica
será de natureza extracontratual:

[...] quando, embora sem prévia existência de contrato, um acontecimento imprevisto


e grave cause situação de emergência tal, que obrigue o médico a intervir para dar
assistência de urgência a alguém, por exemplo, nos casos de desastres, calamidades,
vítimas de mal súbito, acidentes em via pública.

“A natureza jurídica da prestação de serviços médicos, embora sui generis, é contratual,


porém o profissional não se compromete com a obtenção de um determinado resultado, mas
sim com prestar um serviço consciencioso, atento e de acordo com as técnicas [...]”. (Melo,
2023, p. 132).
Diante do exposto constata-se que em geral a responsabilidade médica é de natureza
contratual. No entanto será considerada extracontratual apenas em casos excepcionais, como
no caso do médico que atende um ferido em via pública ou do médico que atende em serviço
público de saúde.

2.2 Da responsabilidade civil objetiva e subjetiva

A responsabilidade civil objetiva fundamenta-se na chamada teoria objetiva ou teoria


do risco da atividade, onde todo dano é indenizável e deve ser reparado por quem a ele se liga
por um nexo de causalidade, independentemente de culpa. (GONÇALVES, 2018). É
considerada uma exceção na lei, tendo previsão legal no art. 927 caput e § único do código civil
(Brasil, 2002) A responsabilidade objetiva também encontra amparo legal na Lei 8.078/90 nos
arts. 12 a 14, que tratam da responsabilidade objetiva em razão de acidentes de consumo.

Entretanto a responsabilidade civil subjetiva tem previsão legal no código civil nos
artigos 186 e 187 e tem como fundamento o elemento culpa, onde aquele que sofreu um dano
deverá provar que o agente causador do dano agiu com culpa ou dolo. Assim, configurado o
agir culposo e estando presente o nexo causal surge o dever indenizatório. (GONÇALVES,
2018). A responsabilidade subjetiva também, encontra amparo legal na Lei 8.078/90, art.14,
§4º que trata da responsabilidade civil dos profissionais liberais, por falhas na prestação de
serviços.
129

Portanto, para verificar a responsabilidade civil do médico faz-se necessário verificar a


culpa do profissional e o dano causado ao paciente. Assim sendo, comprovada a culpa e o dano,
a este caberá indenizar o paciente.

2.3 Obrigação de meio e obrigação de resultado

O médico ao realizar sua atividade exerce em regra uma obrigação de meio, exceto no
caso do cirurgião plástico que assume uma obrigação de resultado. Almeida (2007, p.18-19)
revela que “a obrigação que o médico contrai é de meio, pois não se compromete a curar, mas,
sim, o de prestar os seus serviços de acordo com as regras e as técnicas consagradas pela
literatura médica, incluindo os cuidados e os conselhos.” Nesta espécie de obrigação só haverá
responsabilização se comprovada à culpa do médico, cabendo ao paciente o ônus de provar que
o profissional agiu com imprudência, negligência ou imperícia. Deste modo, verifica-se na
prática que a obrigação de meio “não reflete apenas no direito material, mas dita regras de cunho
processual também [...]” (Prado, 2023, p. 8872), pois o ônus probatório recai sobre quem alega,
assim o “paciente que recorre ao judiciário para ser indenizado em suposto inadimplemento
médico ou erros deve provar os fatos constitutivos de seu direito”. (PRADO, 2023, p. 8872)

Em contrapartida na obrigação de resultado o profissional se compromete a atingir


determinado fim. Um exemplo clássico de obrigação médica de resultado são as cirurgias
plásticas estéticas, visto que quem procura tal procedimento espera obter um resultado
preestabelecido. Sobre a obrigação de resultado Melo (2023, p. 99-100) aduz:

[...] a obrigação de resultado será aquela em que o profissional venha a assumir,


contratualmente, que determinada finalidade será alcançada, comprometendo-se
assim, com os resultados finais da empreitada. Neste caso, em não sendo alcançado o
resultado, bastará ao credor demonstrar que o objetivo colimado não foi atingido, para
fazer surgir a obrigação de indenizar por parte do prestador de serviços. Trata-se de
presunção de culpa, o que significa dizer que o consumidor se libera do ônus
probatório transferindo este ônus para o profissional que deverá demonstrar, de
maneira cabal, que agiu com prudência, diligência ou perícia desejada ou ainda,
provar a ocorrência de força maior ou caso fortuito.

Aguiar Júnior (2011, p. 6) esclarece que “quando a obrigação é de resultado, cabe ao


autor da ação demonstrar o descumprimento do contrato por parte do prestador dos serviços
médicos, mediante a prova de que o objetivo proposto não foi alcançado.” França (2017, p. 331)
acrescenta que “na obrigação de resultado a prestação do serviço tem um fim definido. Se não
houver o resultado esperado, há inadimplência e o devedor assume o ônus por não satisfazer a
obrigação que prometeu”.
130

Em regra, a relação médico-paciente é de natureza jurídica contratual, cuja obrigação é


de meio, pois o profissional não tem obrigação de obter a cura do doente, mas de empregar de
forma diligente todos os seus conhecimentos técnicos. Sendo considerada a obrigação de
resultado uma exceção na atividade médica, atribuída ao médico cirurgião plástico, por assumir
previamente a obtenção de determinado fim.

2.4 Responsabilidade civil do médico no código de defesa do consumidor

O código de defesa do consumidor, embora tenha adotado a teoria objetiva como regra,
excepcionou expressamente a responsabilidade dos profissionais liberais, como
responsabilidade subjetiva, baseada na verificação da culpa do profissional. De acordo com o
parágrafo 4º do art.14 da Lei 8.078/90, a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será
apurada mediante a verificação de culpa. (BRASIL, 1990).

A referida lei no art. 2° define consumidor como “toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. (BRASIL, 1990). Desta forma,
o paciente é considerado um consumidor por utilizar serviços médicos como destinatário final.

Além disso, o art. 3° da lei consumerista destaca a definição de fornecedor, como sendo
toda pessoa que fornece produtos ou presta serviços a terceiros. Sendo considerado serviço, de
acordo com o parágrafo 2º do referido artigo, “qualquer atividade fornecida no mercado de
consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária”, exceto as de caráter trabalhista. (BRASIL, 1990). Assim, o médico é considerado
um fornecedor de serviços.

À vista disso, toda a atividade médica disponível no mercado, prestada mediante


remuneração direta ou indireta, será considerada prestação de serviço. O entendimento
doutrinário é pacífico e compreende a relação médico-paciente como uma relação de consumo,
onde o paciente é o consumidor e o médico o fornecedor de serviços.

3 O DIREITO À INFORMAÇÃO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

O direito a informação além de ser um direito fundamental com previsão constitucional


no art. 5º, inciso XIV, da Constituição Federal Brasileira, consta também na Lei 8.078/1990
como um dos direitos básicos do consumidor, conforme o art. 6º, inciso III: “a informação
adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre
131

os riscos que apresentam, constitui um direito básico do consumidor.” (Brasil, 1990). O código
de defesa do consumidor também regula a informação como oferta nos artigos 30 e 31.

Nunes (2017, p. 292) ressalta que: “[...] a informação passou a ser elemento inerente ao
produto e ao serviço, bem como a maneira como deve ser fornecida. Repita-se que toda a
informação tem de ser correta, clara, precisa, ostensiva e no vernáculo.” França (2017) destaca
que o paciente tem direito à informação, através de uma linguagem acessível ao seu nível de
conhecimento e compreensão.

O art. 14 do código de defesa do consumidor estabelece que o prestador de serviços


responde objetivamente pela reparação dos danos causados aos consumidores, pelos defeitos
dos serviços prestados e pelas informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição e os
riscos dos serviços. (BRASIL, 1990). Deste modo o consumidor sofrerá dano por defeito não
necessariamente no serviço, mas na informação inadequada ou insuficiente ou, ainda, pela falta
de informação. Cabe ressaltar que o prestador de serviços tem o dever de informar o seu cliente,
assim o médico como um prestador de serviços tem o dever de informar seu paciente.

No caput do art.14 do código de defesa do consumidor, a lei não menciona a falta de


informação, mas ao interpretar-se a norma de forma lógica conclui-se que se a informação
insuficiente causar dano, obviamente que a ausência total de informação acarretará um dano
maior ainda. (NUNES, 2017). Miragem (2019, p. 318) destaca: “[...] a ausência de informação
correta e eficiente do fornecedor pode dar causa à caracterização de vício ou defeito do produto
ou do serviço.” Este doutrinador entende que a falta de informação por si só acarreta o defeito
no serviço.

Cavalieri Filho (2012, p. 411) considera que “a falta de informação pode levar o médico
ou hospital a ter que responder pelo risco inerente, não por ter havido defeito do serviço, mas
pela ausência de informação devida, pela omissão em informar ao paciente os riscos reais do
tratamento.” Para este doutrinador o médico responde pela ausência de informação, por deixar
de informar o paciente e não pelo defeito no serviço.

Melo (2023, p. 143) enfatiza que “sendo o código de defesa do consumidor norma de
ordem pública, portanto de cumprimento obrigatório, o descumprimento do dever de informar,
por si só, caracterizará falha na prestação do serviço e, na ocorrência de dano, ensejará o dever
indenizatório”. O direito a informação é um direito básico do consumidor, devendo, portanto,
ser observado, visto que a inobservância deste configura inadimplemento contratual,
132

acarretando a responsabilidade civil do médico, quando da informação ausente ou viciada


sobrevier o dano.

De acordo com o entendimento doutrinário o médico que deixar de informar o paciente


de forma clara e precisa responderá pela falha na prestação do serviço, e ocorrendo o dano
deverá indenizá-lo. Contudo a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem
se consolidado no sentido de condenar o profissional médico sempre que a violação ao dever
de informação acarretar danos ao paciente.

3.1 O dever de informar do médico

A relação médico-paciente mais do que uma relação de consumo é uma relação de


confiança estabelecida entre o médico e seu paciente. Cavalieri Filho (2012, p. 411) revela: o
dever de informação decorre do princípio da boa-fé objetiva, e se “traduz na cooperação, na
lealdade, na transparência, na correção, na probidade e na confiança que devem existir nas
relações entre médico e paciente”, devendo a informação “ser completa, verdadeira, adequada,
pois somente esta permite o consentimento informado”. Ainda acrescenta que o conteúdo do
dever de informar do médico compreende todas as informações necessárias e suficientes para
o pleno esclarecimento do paciente quanto aos aspectos relevantes para a formação de sua
decisão de submeter-se ou não ao procedimento, tais como: os riscos, consequências do
tratamento, chances de êxito, efeitos colaterais e outros aspectos relevantes. (CAVALIERI
FILHO, 2012, p. 413)

O paciente tem o direito de receber do médico todas às informações necessárias sobre


sua enfermidade, tratamento, procedimentos, e eventuais riscos, além de ter acesso a todas as
informações apontadas em seu prontuário médico, ficha clínica, laudos médicos, e demais
registros. Convém ressaltar que o dever de informação é um dos principais deveres dos médicos
e instituições hospitalares.

A vontade do paciente deve ser respeitada sempre, uma vez que ninguém pode ser
obrigado a submeter-se a tratamento médico ou intervenção cirúrgica salvo nos casos de risco
de vida, conforme estabelece o art.15 do código civil brasileiro: “ninguém pode ser
constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.”
(BRASIL, 2002).

A Resolução nº 1.931/2009 do CFM em seu art.34 determina que seja vedado ao médico
“deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do
133

tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso,
fazer a comunicação ao seu representante legal”. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA,
2009) Ainda na mesma resolução no art.31 é vedado ao médico “desrespeitar o direito do
paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas
diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”. (CONSELHO
FEDERAL DE MEDICINA, 2009).

Dessarte, o médico tem o dever de informar seu paciente de forma clara e precisa, sobre
sua doença, procedimentos e possíveis tratamentos, a fim de que este possa manifestar
livremente sua vontade. Ocorrendo falha ou ausência nas informações prestadas acarretará
defeito no serviço e consequentemente surgirá o dever indenizatório em caso de dano.

3.2 O termo de consentimento informado

A expressão consentimento informado é tradução literal do inglês “informed consent”,


sendo que na língua portuguesa, especialmente no Brasil, usa-se também a expressão
“consentimento livre e esclarecido”, tradução do termo francês “consentement livre et éclairé”,
que é a forma utilizada pela norma nacional de pesquisa com seres humanos. (CLOTET,
GOLDIN, FRANCISCONI, 2000, p. 11).

O consentimento informado encontra previsão na recomendação do Conselho Federal


de Medicina (CFM) nº1/16 e também está previsto no art.22 da Resolução do CFM nº
2.2017/18, o qual determina que seja vedado ao médico “deixar de obter consentimento do
paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado,
salvo em caso de risco iminente de morte”. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2009).

Segundo Fernandez e Pithan (2007, p. 78) o consentimento informado consiste numa


“decisão voluntária, realizada por uma pessoa autônoma e capaz, após um processo informativo
e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico, sabendo da natureza dos
mesmos, suas consequências e dos seus riscos.” Clotet (2000, p. 21) menciona que “todo
paciente tem o direito à inviolabilidade de sua pessoa, podendo escolher o tipo de tratamento,
dentre as alternativas oferecidas, sendo considerada uma invasão corporal ou agressão não
autorizada, qualquer interferência neste direito”.

O termo de consentimento informado é um instrumento escrito pelo qual o médico


informará o paciente, sobre sua enfermidade, possíveis tratamentos, riscos e benefícios, de
134

forma clara e objetiva, a fim de obter o consentimento do paciente para a realização de


procedimentos ou tratamentos médicos. Sobre o assunto Dantas (2014, p. 78) esclarece:

O paciente deve ser informado, de maneira compreensível à sua capacidade cognitiva,


a respeito de seu diagnóstico, riscos, prognósticos e alternativas existentes para seu
tratamento. Importante destacar que o simples ato de ler e assinar um papel, um
documento, não é suficiente para a desoneração do ônus de informar adequadamente
(ainda que a assinatura de um documento seja importante para a comprovação da
conduta diligente).

Facchini Neto e Eick (2015, p. 57) salientam que há situações onde o dever de informar
é mais acentuado, por exemplo, no caso dos “tratamentos experimentais, técnicas novas,
procedimentos que possam acarretar sérios riscos à saúde ou consequências definitivas”, ou
quando se tratar apenas de alcançar uma melhoria estética. Nesses casos “o paciente deverá ser
informado exaustivamente sobre o seu quadro clínico, as alternativas terapêuticas existentes, as
eventuais complicações ou os efeitos colaterais de cada tipo de intervenção, devendo ser
esclarecido quanto às dúvidas que suscitar”, para posteriormente prestar o seu consentimento.

Segundo Diniz (2017, p. 843), “o paciente tem o direito de opor-se a uma terapia, de
optar por tratamento mais adequado ou menos rigoroso, de aceitar ou não uma intervenção
cirúrgica, de mudar ou não de médico ou de hospital”, sendo a obtenção do seu consentimento
um direito de autodeterminação. Facchini Neto e Eick (2015, p. 60) completam: “a referida
autonomia na decisão implica uma devida troca de informações e entendimento entre o médico
e o seu respectivo paciente”.

Cavalieri Filho (2012, p. 412) ensina que somente o consentimento informado afastará
a responsabilidade civil do médico pelos riscos inerentes a sua atividade, e que o ônus da prova
quanto ao cumprimento do dever de informar caberá sempre ao médico ou hospital. Sobre o
assunto, Barros Júnior (2011, p. 110) afirma:

A não obtenção do consentimento constitui-se clara afronta à autonomia do paciente


e aos seus direitos da personalidade. O verdadeiro consentimento é uma escolha
embasada em informações que permitem a avaliação de todas as opções e riscos. O
enfermo tem pouco ou nenhum entendimento da técnica médica e, em regra, conta
somente com seu médico para fins de esclarecer e guiá-lo até a tomada de uma
decisão, inclusive legitimando a não escolha do tratamento como uma das alternativas.

Convém ressaltar que o paciente tem o direito de ser informado e também de escolher o
tratamento, procedimentos e exames, bem como recusá-los, exceto nos casos de urgência.
Contudo, a ausência de consentimento esclarecido apenas gera o dever de indenizar quando
devidamente demonstrado o nexo de causalidade entre o descumprimento do dever de
informação e os danos sofridos pelo paciente.
135

Kfouri Neto (2002, p. 297) comenta que “a obtenção do consentimento informado,


traduzida nos mais diversos termos, que os médicos têm utilizado [...] não implica a exoneração
do profissional, pura e simplesmente, de eventual responsabilidade, atrelada à comprovação da
culpa.” Assim, não se deve confundir termo de consentimento informado com cláusula de não
indenizar, lembrando que um termo de consentimento informado com feições defensivas, por
vezes, pode prejudicar a defesa do médico.

Dantas (2014, p. 79) complementa que “o ato de consentir, não significa uma liberação
automática das responsabilidades profissionais quanto ao dever de informação, como se poderia
pressupor, uma vez que ainda responderia o médico pela incompleta informação”.

Desta forma, quando o profissional médico deixar de informar o seu paciente estará
descumprindo o princípio da boa-fé objetiva, as regras deontológicas do código de ética médica,
além de violar um direito básico do consumidor. Portanto, ocorrendo falha ou ausência de
informação que venha a resultar em dano ao paciente, caberá a este ser indenizado pelos
eventuais danos materiais e/ou morais sofridos. Este é o entendimento majoritário da doutrina
e jurisprudencial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

4 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO POR FALHA NA


INFORMAÇÃO DE ACORDO COM A JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

A pesquisa foi realizada através da consulta online à base de dados do site do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, utilizando-se o seguinte termo de busca:
“responsabilidade do médico por falha na informação”. Como resultados foram encontrados
546 julgados, correspondentes ao período de 2001 a 2023, sendo analisadas somente
jurisprudências do período de 2019 a 2023, totalizando 149 decisões judiciais.

Gráfico 1 – Análise comparativa dos últimos 5 anos sobre a falha no dever de informação do
médico.
136

50

40
Configurada a falha no dever
30 de informação
Não configurada a falha no
20 dever de informação
Outros
10

0
2019 2020 2021 2022 2023

Fonte: Gráfico elaborado pelas autoras


Dados obtidos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2019-2023.

No ano de 2019 foram analisados 51 julgados, 8 versaram sobre o tema, sendo 5


condenações por falha ou ausência na informação, e 3 decisões em que não foi configurada a
violação ao dever de informação do médico. Os demais 43 acórdãos abordaram perda de uma
chance, erro médico, falha na prestação do serviço, responsabilidade civil de hospitais e
inobservância do princípio da boa-fé objetiva.

Em 2020 foram analisadas 24 decisões judiciais, sendo 3 condenações onde verificou-


se a violação ao dever de informação. As demais 21 decisões trataram de falha na prestação do
serviço, erro médico, etc. Posteriormente em 2021 foram analisados 24 acórdãos, 4 versaram
sobre o tema, mas não foi configurada a violação ao dever de informação. As demais 20
decisões versaram sobre falha na prestação do serviço, erro médico, contrato de seguro e
responsabilidade civil hospitalar.

Na sequência em 2022 foram analisados 38 acórdãos, sendo 2 condenações por violação


ao dever de informação, e 4 decisões em que não restou configurada a falha. As demais 32
decisões versaram sobre falha na prestação do serviço, erro médico, etc.

E por fim, em 2023 até o dia 25 de julho, foram analisados 12 acórdãos, contudo apenas
um acórdão versou sobre o tema, mas não foi configurada a falha no dever de informação. As
demais 11 decisões versaram sobre os mesmos temas que as anteriores.
137

Gráfico 2 – Responsabilidade civil do médico pela falha no dever de informação 2019-2023

Responsabilidade Civil do Médico 2019-2023

Total 149

Outros 128

Não configurada a falha na informação 12

Condenações por falha na informação 10

Fonte: Gráfico elaborado pelas autoras


Dados obtidos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2019-2023.

No período de cinco anos, foram verificados 149 acórdãos, sendo que 128 versaram
sobre outros temas. Em 12 casos analisados não foi configurada a falha no dever de informação,
situação em que os magistrados entenderam que os médicos informaram adequadamente os
pacientes; casos de laqueadura tubária, cirurgia reparadora mamária, erro de sexo do bebê na
gravidez e erro de diagnóstico. Em 10 casos houve a condenação do profissional médico por
violar o dever de informação.

Da análise denota-se que o termo de consentimento informado é um elemento


preponderante tanto para condenar o médico quanto para absolvê-lo, mas que na ausência deste,
outros elementos são analisados no curso do processo, tais como: anotações em prontuários,
fichas clínicas, perícias, depoimentos do paciente e de possíveis testemunhas, etc.

Nas jurisprudências analisadas observa-se que o termo de consentimento informado não


é um meio de prova determinante para a condenação ou a absolvição do médico, pois há casos
em que o termo apresentado foi considerado como prova de que o médico prestou as
informações devidas ao paciente, mesmo sendo redigido de forma genérica. No entanto, há
casos onde o magistrado não considerou o termo de consentimento informado genérico, por não
apresentar informações específicas do paciente e acabou por condená-lo por falha no dever de
informação.
138

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa teve por objetivo, verificar a aplicabilidade do código de defesa do


consumidor na prestação de serviços médicos. Sendo analisada a responsabilidade civil do
médico, quando ocorrer falha no dever de informação.

A relação médico-paciente é considerada pela doutrina como uma relação contratual,


típica relação de consumo, onde o médico é o prestador de serviços e o paciente o consumidor.
Considera aplicável o código de defesa do consumidor nas atividades médicas prestadas
mediante remuneração direta ou indireta.

A responsabilidade civil do profissional liberal médico está prevista no código de defesa


do consumidor, é de natureza subjetiva, devendo verificar-se a culpa do profissional e o nexo
de causalidade entre a conduta e o resultado danoso, a fim de que esteja caracterizado o dever
de indenizar.

Em regra, a atividade médica é uma obrigação de meio, em que o profissional busca


empregar toda a técnica disponível para curar o paciente, mas não tem a obrigação de curá-lo.
Exceto no caso das cirurgias plásticas de natureza estética em que o médico assume uma
obrigação de resultado.

O direito a informação é um direito fundamental com previsão constitucional, e também


um direito básico do consumidor. Assim o médico como um prestador de serviços tem o dever
de prestar ao paciente todas as informações possíveis de maneira, clara, precisa, completa,
objetiva, em linguagem acessível e de fácil compreensão, sobre o diagnóstico, formas de
tratamentos e demais procedimentos. Com base nas informações prestadas de forma adequada
que o paciente formará sua convicção e manifestará livremente sua vontade, aceitando ou não,
o tratamento ou procedimento proposto pelo médico.

A doutrina majoritária trata a falha ou ausência na informação como um defeito no


serviço, pois considera que a informação é inerente ao serviço. Assim se o médico deixar de
informar ao paciente algo relevante, que venha a ocasionar-lhe um dano, estará obrigado a
indenizá-lo.

O termo de consentimento informado é uma manifestação voluntária de vontade, escrita,


que visa informar o paciente e obter dele o consentimento esclarecido para a realização de
determinado tratamento ou procedimento. Contudo, este não pode ser redigido de forma
genérica, devendo, portanto, apresentar informações específicas sobre o paciente, para que
139

desta forma seja considerado como prova no caso de futura ação judicial, desconstituindo assim
qualquer demanda indenizatória fundamentada no descumprimento do dever de informação.

Por fim, a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tem se


manifestado no sentido de condenar o profissional médico quando este deixa de informar
adequadamente o paciente, causando-lhe um dano. Embora não comprovado o erro na atuação
do profissional, este será condenado por não ter cumprido com o dever de informação.

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em: 19 jun. 2023.
141

ANEXO
Acórdãos Analisados:

Ano 2019:
70077912467. 70083403626. 70083443622. 70083222083.70082539818. 70082613399.
70083086173. 70082465196. 70082289851. 70082481763. 70082736174. 70082949074.
70080218472. 70082222860. 70081426785. 70081643686. 70080014772. 70082495003.
70081937153. 70082598947. 70082322785. 70081879074. 70081713539. 70081669244.
70080412141. 70081572497. 70081568438. 70081713174. 70080913940. 70081872293.
70081040412. 70080671142. 70081533754. 70080619778. 70080203201. 70080966971.
70080790470. 70080853336. 71008412330. 71008319667. 70079116596. 70079449534.
70079185492. 70080667868. 70080744667.70080227515. 70080000227. 70079806220.
71007915622. 71007957962. 70079829743.

Ano 2020:
50841943720208217000. 50000807120198210091. 70083934158. 70083124362.
70083903468. 70083897272. 50008124020198210095. 71009700105. 70084470350.
70084347715. 50464092320198210001. 70083362079. 70083722751. 70082567108.
70083533349. 70083348961. 70083734756. 70084068048. 70084007095. 70082963075.
71009333907. 70083222794. 70083608091. 70083471136.

Ano 2021:
50016543020208210048.5003216892021821064.50004173420158210048.500466590201682
10021.71010227080.50001779420148210140.70085204428.70084078724.70085113645.
50056040920118210001. 70085155612.
50005431120198210124.50034623120188210019.50006016020198210044.70085193522.50
522162420198210001.70085077386.50005874020138210027.50005051120148210015.5016
3422220128210001.50000951720138210005. 50004438320148210010. 70083654616.
50003189820088210019.

Ano 2022:
50062336520218210022.50000280220088210046.50024055120218210090.50004502720158
210144.50004502720158210144.50920451220198210001.50261270320158210001.5000667
1320168210087.50007727220088210021.50000730420128210163.50109442120178210001.
50001057420148210054.50034974320228210021.50021273120198210022.50007143220088
210001.50138003320208210039.50240412520168210001.50000327320198210007.5001188
0420168210007.50002809720178210075.50020081220158210022.50050990320208210001.
50152437020208210022.50008299020138210029.50011191320148210016.51051388920228
217000.50011350220178210035.50030373420138210001.50000490820128210023.5004813
3820158210021.50017529420148210025.50208238620168210001.50291915520148210001.
50014644020148210028.50030541420178210039.50084627320178210010. 70085203222.
50274610420178210001.
142

Ano 2023:
50000113620128210139.50054619420198210015.50134232320188210010.50000552520198
210102.50171554420158210001.50002840320168210033.50005725520188210008.5000798
8420148210013.51914186320228217000. 50065235920208210008.
50008133320188210039. 50065235920208210008.
143

RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL: reflexões sobre o dever de reparação


de danos ocorridos no contexto da utilização dos estacionamentos
públicos e privados

Leandro Barbosa de Araujo1


Francineide Barbosa de Araújo Costa 2

RESUMO

Muitos estabelecimentos comerciais, a fim de proporcionar mais conforto e segurança a seus


clientes, no intento de fidelização destes, investem em estacionamentos privados. Mas é
importante destacar que a administração pública também costuma disponibilizar
estacionamentos em suas áreas de autarquias para facilitar a vida dos cidadãos em busca de
atendimento a serviços públicos. Porém, com o aumento de crimes patrimoniais em áreas de
estacionamentos públicos e privados, a pergunta que se faz é até onde pode ir à
responsabilização dos estabelecimentos privados, ou da administração pública, quando ocorrem
danos patrimoniais a terceiros em áreas abrangidas por seus estacionamentos? No presente
estudo, observou-se que a doutrina e a jurisprudência dos Tribunais de Justiça com base no
sistema de normas, pacificaram o entendimento no sentido de que os danos ocorridos dentro do
perímetro do estacionamento é de responsabilidade dos estabelecimentos responsáveis por eles,
contudo, um ponto que chama bastante atenção é que em uma decisão recente do Superior
Tribunal de Justiça os responsáveis por um estacionamento foram condenados a pagar por
danos materiais e morais a danos ocorridos a terceiro antes desse adentrar a portaria de acesso
ao estacionamento de um shopping, o que gerou um precedente para uniformização de
jurisprudência, esse, tornando-se temido, possivelmente, por outros estabelecimentos
responsáveis por estacionamentos, onde o receio de situações semelhantes os farão,
provavelmente, tomar novas medidas de segurança e aprimoramentos para evitar possíveis
responsabilizações. Esse estudo foi elaborado com base na doutrina, normas nacionais e
internacionais, jurisprudências e matérias informativas disponibilizadas na internet.

Palavras-chave: Estacionamentos públicos e privados; Danos patrimoniais e morais;


Responsabilização.

1 INTRODUÇÃO

Desde a implementação do Código de Defesa do Consumidor de 1990- CDC houve uma


busca por conceder mais proteção legal, levando em consideração, inclusive, o fato de
consumidores figurarem numa relação de consumo, via de regra, como a parte mais frágil da

1
Graduado em Direito pelo Centro Universitário UniProjeção - Unidade Taguatinga/DF. Graduado em
Licenciatura em Sociologia pelo Centro Universitário UniFAVENI. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual
Civil. Advogado, OAB/DF nº 52.265. E-mail: leandrodireitoejustica@gmail.com.
2
Bacharelanda em Administração pela Universidade Estadual do Piauí-UESPI, Brasil. Graduada em Licenciatura
em Educação Física pela Universidade Federal do Piauí- UFPI, Brasil. Graduada em Licenciatura Plena em
Pedagogia pela Faculdade Intervale. Pós-Graduada em Gestão Pública. E-mail: franzinha25@outlook.com.
144

relação. Essa preocupação mais acentuada é fruto de uma longa jornada que teve influência do
direito internacional no sistema normativo brasileiro, com especial ênfase, a partir da
promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos-DUDH em 10 de dezembro de
1948.

Diante dessa nova realidade, qual seja, maior proteção aos consumidores, muitos
estabelecimentos comerciais e repartições públicas passaram a ter um maior zelo para com a
comodidade desses, assim como com a segurança. No caso dos estabelecimentos particulares,
em síntese, visando também a fidelização de clientes.

Contudo, em que pese haver todo esse cuidado legal em dar mais proteção aos
consumidores, muitos ainda experimentam dissabores em suas vidas, são problemas em relação
a dificuldades na comodidade ainda enfrentados e a necessidade de maior segurança, nesse
contexto, os crimes patrimoniais, sejam eles caracterizados como roubos e furtos tem assustado
muitos cidadãos por todo o Brasil. Cabe destacar, entretanto, essas modalidades de crimes tem
ocorrido com mais frequência em áreas de estacionamentos, sejam eles públicos ou privados,
provocando danos patrimoniais, e a depender, morais aos consumidores e usuários.

Em razão disso, muitos estabelecimentos comerciais têm sido demandados


judicialmente por conta de danos provocados a terceiros em perímetro abrangido por área de
estacionamento, vindo a serem condenados a ressarcir os danos. E em relação a isso, as
jurisprudências dos Tribunais de Justiça, com base legal, têm decidido que danos ocorridos a
terceiros em áreas de estacionamentos são de responsabilidade dos estabelecimentos que por
eles respondem.

Assim sendo, a pergunta que se faz é até onde pode ir à responsabilização dos
estabelecimentos comerciais por danos causados a terceiros em perímetros abrangidos por seus
estacionamentos? Com essas considerações, o presente estudo tem o objetivo de responder à
pergunta supracitada e para isso será utilizado o método de estudo bibliográfico, recorrendo-se
a doutrina, normas de cunho nacional e de direito internacional, jurisprudências, assim como
matérias informativas disponíveis em sítios da internet.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

De acordo a breve síntese introdutória, foi possível observar que o objetivo desse
estudo é responder a uma pergunta que é de interesse não só dos estabelecimentos comerciais,
145

mas da própria administração pública, e para isso a pesquisa será fundada no uso de doutrinas,
normas de contexto nacional e internacional, jurisprudências e matérias disponíveis na
internet. Diante disso, a partir do tópico seguinte se passará a discorrer fundamentadamente
sobre o tema proposto.

2.1 Síntese da responsabilidade civil conforme entendimento doutrinário, sistema de


normas e jurisprudências

O sentimento de responsabilidade e de reparação por danos provocados a outros


indivíduos é inerente ao próprio homem, desde os primórdios dos tempos. Nesse sentido, Bittar
(1984, p. 87) enfatiza que, quanto aos indivíduos “em suas interações na sociedade, ao alcançar
direito de terceiro, ou ferir valores básicos da coletividade, o agente deve arcar com as
consequências, sem o que impossível seria a própria vida em sociedade”.

Em sintonia com o citado autor, importante salientar que essa ótica de que o ser humano
nasce com um senso de desenvolver-se para a responsabilidade pode ser observado no próprio
artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde diz que “todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir
em relação uns aos outros com espírito de fraternidade” (UNICEF BRASIL, online).

Nessa entoada, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ao qual o Brasil é


signatário e, conforme previsto no decreto no 678, de 6 de novembro de 1992 (BRASIL, 1992),
ao abordar a questão de direitos patrimoniais, disciplina no seu artigo 21, 1 que “toda pessoa
tem direito ao uso e gozo dos seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse
social” (BRASIL, 1990).

Os dispositivos acima reforçam o compromisso com o qual o Brasil se compromete a


buscar mecanismos para dar mais segurança e dignidade a todos os indivíduos em solo
brasileiro. Embora haja essas preocupações, muitos danos patrimoniais ocorrem em território
nacional. Nesse sentido, a título de exemplo cita-se a matéria publicada por Reis (2023) no
portal de notícias online do uol, onde trecho da matéria diz que:

O número de roubos e furtos de automóveis, motos e comerciais leves apresentou nos


dois primeiros meses de 2023 alta de 12,7% na comparação com igual período de
2022 no Estado de São Paulo. É o que aponta levantamento da empresa de
rastreamento veicular Ituran, com base no balanço mais recente desse tipo de
ocorrência publicado no site da Secretaria da Segurança Pública do governo paulista.
146

Essa alta no número de crimes patrimoniais no Estado de São Paulo reflete a ineficiência
do poder público em dar proteção a população. Corroborando com essas informações, segundo
trecho de publicação disponível no site do Sindicado dos Médicos do Ceará (2023) um
“Médico” teve um “veículo tomado de assalto no estacionamento do posto de saúde Anísio
Teixeira, em Fortaleza; Sindicato reforça pedido de segurança”.

Casos semelhantes aos apresentados acima se repetem por todo o Brasil. Em razão disso,
especialmente no tocante às garantias voltadas à proteção patrimonial, a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988- CF/88 possibilitou a responsabilização do Estado em
face a danos a terceiros. Contudo é preciso que se observe em quais situações isso pode
acontecer.

Diante disso, importante mencionar, nos termos do artigo 37, caput e parágrafo 6º, da
citada Carta (BRASIL, 1988), no que se refere a responsabilidade do Estado, esse responderá
por danos provocados a terceiros pela modalidade objetiva. A esse respeito, os citados
dispositivos disciplinam explicitamente que:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998); § 6º
As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços
públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a
terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou
culpa.

Importante destacar que o artigo 43 do Código Civil de 2002- CC/2002 também discorre
sobre o assunto, segundo o qual diz que “as pessoas jurídicas de direito público interno são
civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros,
ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa
ou dolo” (BRASIL, 2002).

É possível observar que o artigo 927 do CC/2002 dispõe ainda que “aquele que, por ato
ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Acrescenta ainda no
parágrafo único que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos
casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (BRASIL, 2002). O citado
artigo 927, caput abre a possibilidade para a responsabilidade objetiva, já o seu parágrafo único,
na segunda parte é possível observar a flexibilização da norma, mitigando a responsabilidade.
147

No contexto do Código de Defesa do Consumidor-CDC (BRASIL, 1990), também é


possível observar preceitos de responsabilização, isso pode ser encontrado no artigo 12 e 14,
onde fala sobre a responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, nesse caso,
responsabilidade objetiva. Vejamos o que dispõe os artigos 12 e 14:

Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador


respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos
causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação,
construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de
seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua
utilização e riscos. [...] Art. 14. O fornecedor de serviços responde,
independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos
consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

No caso da responsabilização da administração pública, importante enfatizar ainda que


essa pode ser responsabilizada não só por danos materiais, como em danos morais, e a título de
exemplo cita-se trecho de acórdão nº 1437892 nos autos de apelação cível nº 0702574-
31.2020.8.07.0018 julgada pela 1ª Turma cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios, vejamos:

ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO


CÍVEL. AÇÃO INDENIZATÓRIA POR DANOS MORAIS.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. DISPOSITIVO CONTRACEPTIVO
ESSURE. LAUDO PERICIAL. PRINCÍPIO DA PERSUASÃO RACIONAL.
VALIDADE DO LAUDO. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM
INDENIZATÓRIO. MANUTENÇÃO. 1. A responsabilidade civil do Estado é
objetiva, na forma do artigo 37, §6º, da Constituição Federal, aplicando-se a teoria do
risco administrativo, através da qual exsurge a obrigação estatal de indenizar sempre
que vier a causar prejuízo a terceiros, sendo imperiosa, para este fim, a comprovação
do dano e do nexo causal. 2. De acordo com o entendimento exarado pelo Supremo
Tribunal Federal, a responsabilidade civil do Estado, tanto na prática de conduta
comissiva, quanto omissiva, deve ser pautada pela teoria do Risco Administrativo.
Precedentes. [...] 9. Apelação conhecida e não provida. Honorários recursais
majorados (Acórdão nº 1437892, apelação cível nº 0702574-31.2020.8.07.0018,
relator: Carmen Bittencourt, 1ª Turma cível, publicada em 08/08/2022).

De acordo o citado acórdão, o Estado responde de forma objetiva sempre que um agente
público ou investido em função pública provoque danos a terceiros, e nessa seara, aplicando-se
a teoria do risco administrativo. Cavaleiro Filho (2015, p. 216) ao tecer comentários sobre a
teoria do risco administrativo diz que “[...]a doutrina do risco pode ser, então, assim resumida:
todo o prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem o causou,
independentemente de ter ou não agido com culpa[...]”.

Em relação a empresas prestadoras de serviços públicos, conforme mencionado no


parágrafo 6 do artigo 37 da CF/88, essas também respondem de forma objetiva, e para melhor
148

exemplificar, cita-se trecho do acórdão nº 1362951 nos autos de apelação cível 0004031-
05.2016.8.07.0011 julgada pela 7ª Turma cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios, vejamos:

Em se tratando de empresa privada prestadora de serviços públicos de transporte, a


responsabilidade da empresa prestadora de serviço é objetiva, cuja comprovação da
culpa é prescindível nos termos do artigo 37, §6º da Constituição da República. A
responsabilidade pode ser ilidida diante da existência de culpa exclusiva da vítima ou
mitigada quando presente a culpa concorrente[...]10. Recurso parcialmente provido
(Apelação cível nº 0004031-05.2016.8.07.0011, acórdão nº 1362951, relatora:
Desembargadora Leila Arlanch, 7ª Turma cível, publicada em 30/08/2021).

Conforme observado pela jurisprudência acima mencionada, se uma empresa prestadora


de serviços públicos provocar danos a terceiros sem que esses tenham concorrido para os
referidos danos, a empresa deve ser responsabilizada de forma objetiva, sem a necessidade da
parte que sofreu o dano fazer prova de culpa em relação a empresa prestadora de serviços
públicos. Diniz (2004, p. 48), ao tecer comentários sobre a responsabilidade civil objetiva,
enfatiza que essa se baseia no “princípio de eqüidade, existente desde o direito romano: aquele
que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes”.

Faz-se necessário enfatizar que a responsabilização por danos a terceiros, pode se dar
tanto por omissão quanto por ação, contudo, para que isso fique evidenciado é primordial que
haja, de fato, danos, nesse sentido ensina Rafael Quaresma Viva (2013). Corroborando ainda
com esse entendimento, Cavalieri Filho (2003, p. 35) ensina que “o dano causado pelo ato ilícito
rompe o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre o agente e a vítima”, e em
razão disso deve essa ser ressarcida dos seus danos, se possível, na sua integralidade quanto ao
status antes dos danos sofrido. Cavalieri Filho (2015, p. 102) menciona ainda que “alguém
pratica ato ilícito e causa dano a outrem” tem a obrigação de ressarcimento do ofendido.

Gonçalves (2016, p. 20) alerta que “na responsabilidade há um dever jurídico


sucessivo”, ou seja, ocorrendo o dano, posterior a esse surge o dever de reparação. Entretanto,
alerta Venosa (2016, p. 492) que é preciso haver nexo causal, segundo o autor, refere-se ao
vínculo “que une a conduta do agente ao dano”.

Importante enfatizar que as responsabilizações podem ocorrer tanto quando houver


danos materiais, como em caso de haver ofensa de cunho íntimo à pessoa do ofendido, nesse
último caso, podendo caracterizar danos morais. A respeito de danos materiais, Reis (2010, p.
7) relaciona esse aos danos que ocorrem em “bens” de acervo efetivo do “patrimônio da vítima”
149

No caso de ocorrência de danos de cunho moral, Bittar (2015, p. 44) ensina no sentido
de que esse está ligado a “valores da moralidade pessoal ou social” da pessoa do ofendido. Em
outras palavras, esse tipo de dano atinge o estado de espírito do ofendido, provocando danos de
cunho sentimental, que pode se estender drasticamente para a vida profissional.

Ainda no tocante aos danos morais, cabe ressaltar que é possível a administração pública
ser penalizada em danos morais no contexto da responsabilidade objetiva, e a título de exemplo
cita-se trecho de acórdão nº 1394500 nos autos de apelação cível nº 0707813-
16.2020.8.07.0018 julgada pela 5ª Turma cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios, vejamos:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSO CIVIL E CIVIL.


RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR FALHAS DA AUTORIDADE
POLICIAL NA CONDUÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE CRIMES QUE
CULMINARAM EM INJUSTA CONDENAÇÃO PENAL. ABSOLVIÇÃO EM
REVISÃO CRIMINAL. VIABILIDADE. ART. 37, § 6º, DA CF. DANOS MORAIS
CONFIGURADOS. CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO DO QUANTUM
INDENIZATÓRIO. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. 1.
Evidenciada a falha no aparato estatal na prestação de serviço público, aqui
identificada pelos equívocos da polícia judiciária na fase preliminar de persecução
criminal, dando ensejo a uma série de equívocos que, por fim, induziram à injusta
condenação penal do apelante, não há como afastar o reconhecimento do dano moral
decorrente da responsabilização civil da Administração prevista pelo art. 37, § 6º, da
CF[...] 4. Recurso conhecido e provido. Sentença reformada (Acórdão nº 1394500,
apelação cível nº 0707813-16.2020.8.07.0018, relator: Josapha Francisco dos Santos,
5ª Turma cível, Publicação em 09/02/2022).

Em relação a responsabilidade civil subjetiva do estado, é necessário haver a


comprovação de culpa, e nesse caso cita-se, como exemplo, trecho do acórdão nº 1417749 nos
autos do processo nº 0751562-55.2021.8.07.0016, julgado pela 1ª Turma recursal do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios, vejamos:

[...]. Nos casos em que a responsabilidade é subjetiva, decorrendo o dano de uma


omissão estatal, se faz necessária a comprovação da conduta negligente do agente
público, bem como do nexo de causalidade entre esta e o evento danoso. V. Na
espécie, pelo conjunto fático-probatório posto nos autos, extrai-se que a parte autora
teve veículo de sua propriedade apreendido pela Polícia Civil em razão da prisão de
seu genro que o conduzia no momento do flagrante. Durante o período em que se
encontrava no depósito da Polícia Civil o veículo foi incendiado e danificado.
Sobressai dos autos que há fortes indícios de que o incêndio tenha sido causado por
vizinhos do local, havendo documentos nos autos que relatam ter o incêndio se
iniciado às 09h30 e atingido maiores proporções por volta das 11h30, limitando-se o
plantonista a acionar o Corpo de Bombeiros e o IBRAM, sem ter tomado qualquer
iniciativa a fim de impedir que o incêndio atingisse os veículos guardados no depósito
da instituição. É certo que a inércia dos agentes públicos possibilitou que o fogo
atingisse o veículo do autor, caracterizando sua responsabilidade civil por omissão.
VI. Desse modo, a vigilância de bem que se encontra sob sua guarda é dever do Poder
Público e, restando evidente o nexo de causalidade e a culpa da Administração (que
não observou seu dever de guarda), surge o dever de indenizar pelos danos causados.
[...]. Recurso conhecido e não provido (Acórdão nº 1417749, processo nº 0751562-
150

55.2021.8.07.0016, relator: Flávio Fernando Almeida da Fonseca, 1ª Turma recursal,


publicada em: 13/05/2022).

O caso acima apresentado como Jurispudência diz respeito a um veículo que se


encontrava no pátio da Policia Civil e foi incendiado, em que pese o Distrito Federal manifestar
discordância do pedido de condenação a reparação dos danos feito pelo autor da ação, o DF
teve seu recurso não provido. A respeito da responsabilidade subjetiva, Pereira (1990, p. 350)
diz que “a teoria da responsabilidade subjetiva erige em pressuposto da obrigação de indenizar,
ou de reparar o dano, o comportamento culposo do agente, ou simplesmente a culpa,
abrangendo no seu contexto a culpa propriamente dita e o dolo do agente”.

No contexto da citada teoria, Reale (1978) manifesta seus ensinamentos no sentido de


que a responsabilização sob o aspecto da subjetividade deve ser reconhecida de acordo ao
sistema normativo, levando em consideração que aquele que cause o dano a terceiros dever
repará-lo. O citado autor ensina ainda no sentido de que, no caso do indivíduo que trabalha no
contexto da justiça, o fato desse trabalho poderá fazer com que “[...] a sua responsabilidade
passa a ser objetiva e não mais subjetiva” (REALE, 1986, p. 10-11).

Em relação a responsabilização por danos ocorridos dentro do perímetro de


estacionamentos, a jurisprudência consolidada tem acatado os pedidos de reparações feitas por
donos de veículos que sofreram algum tipo de dano provocado no ambiente de estacionamento,
e nesse caso vejamos o que dispõe a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo-TJSP,
vejamos:

Ementa: Consumidor e processual. Responsabilidade civil. Ação de reparação de


danos materiais e morais. Sentença de parcial procedência da ação e de procedência
da lide secundária. Pretensão à reforma manifestada pela seguradora e pela corré
Infinity. Recurso da corré Infinity. Roubo de veículo entregue ao manobrista. Fortuito
interno. Risco da atividade. Não configuração das excludentes de responsabilidade.
Inteligência da Súmula n. 130 do C. Superior Tribunal de Justiça e do artigo 14, do
Código de Defesa do Consumidor. Valores relativos às multas e IPVA corretamente
considerados na sentença. Recurso da seguradora. Direito à sub-rogação.
Transferência dos salvados. Recurso da corré infinity desprovido e da seguradora
provido (Apelação civil nº 1006502-41.2019.8.26.0011, Comarca: São Paulo, relator:
Mourão Neto, Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado, publicação em
31/05/2023).

O caso em tela, diz respeito a um veículo que foi roubado enquanto estava na posse do
manobrista em área de estacionamento, e nesse caso o Egrégio Tribunal de Justiça entendeu
que por conta do risco da atividade, nos termos da súmula 130 do STJ, a empresa responsável
pelo estacionamento deve ser responsabilizada pelo roubo do veículo. Nesse sentido, a referida
151

súmula diz que “a empresa responde, perante o cliente, pela reparação de dano ou furto de
veículo ocorridos em seu estacionamento”.

Ainda sobre a responsabilidade por danos em área dos estacionamentos, conforme a


jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul-TJRS, quando o veículo
se encontra em estacionamento controlado de autarquia ou empresa terceirizada por essa e
ocorre danos a veículos sob a guarda, seja direta da autarquia ou da terceirizada, haverá
responsabilização e no caso da terceirizada, poderá responder concorrentemente com a
autarquia, vejamos o que diz a jurisprudência:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE


INDENIZAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS E EXTRAPATRIMONIAIS.
INCÊNDIO DE MOTOCICLETA ESTACIONADA EM DEPÓSITO
CREDENCIADO PELO DETRAN. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA
AUTARQUIA ESTADUAL. BEM MÓVEL QUE JÁ SE ENCONTRAVA EM
ESTADO PRECÁRIO QUANDO FOI DEPOSITADO. PREPOSTOS DO
DEPÓSITO QUE NÃO ADOTARAM AS MEDIDAS DE SEGURANÇA
ESPERADAS PARA O TIPO DE SERVIÇO PRESTADO. CULPA
CONCORRENTE. DANOS MATERIAIS PARCIALMENTE VERIFICADOS.
CONSECTÁRIOS LEGAIS. LUCROS CESSANTES E DANOS MORAIS NÃO
DEMONSTRADOS. REDIMENSIONAMENTO DA CONDENAÇÃO
SUCUMBENCIAL. PAGAMENTO DE CUSTAS PROCESSUAIS PELO RÉU
QUE DEVE SER ARCADA POR METADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1.
Caso em que motocicleta do autor, que havia sido avariada em acidente de trânsito, é
levada até depósito credenciado pelo DETRAN e lá entra em processo de combustão.
2. Inteligência do artigo 37, §6º, da Constituição Federal, a responsabilidade civil do
DETRAN é de natureza objetiva, trate-se de atos comissivos ou omissivos.
Precedentes locais e do Supremo Tribunal Federal. 3. Prova dos autos que demonstra
ter o incêndio decorrido não só do estado precário em que se encontrava a motocicleta
após o acidente sofrido, como também da falta de condições adequadas de segurança
no depósito credenciado pelo DETRAN. Prepostos do local que não esvaziaram o
tanque de gasolina do veículo, tampouco desativaram a bateria, o que acabou por
permitir a ocorrência da reação em cadeia que culminou com a combustão. [...]
APELO PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº
70067573766, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Iris Helena
Medeiros Nogueira,15-02-2016).

De acordo ao que se observa, o dever de cuidado tem o propósito de resguardar os


direitos do cidadão, e este não sendo prestado de forma eficiente, gerando danos, cabe a
indenização. Nesse sentido, Melo (2002, p. 829) ao se referir a administração pública diz que
essa “exime-se apenas se não produziu a lesão que lhe é imputada ou se a situação de risco
inculcada a ele inexistiu ou foi sem relevo decisivo para a eclosão do dano”.

Além da administração pública poder ser responsabilizada, conforme já observado, o


particular também pode sofrer responsabilização, em especial quem tem o dever de cuidado, de
acordo a algumas ponderações já contempladas. E para exemplificar, cita-se, conforme
Jurispudência do Tribunal de Justiça de São Paulo-TJSP, o caso em que uma loja de materiais
152

de construção foi condenada a indenizar um consumidor por esse ter sofrido furto em seu bem
em área de estacionamento da empresa, vejamos o que diz a jurisprudência:

EMENTA: CONSUMIDOR. FURTO EM ESTACIONAMENTO. Hipótese em que


o estacionamento foi disponibilizado por loja de materiais de construção como efetivo
facilitador de negócios, a atrair a responsabilidade objetiva da fornecedora. Art. 14
CDC e Súm. 130 do STJ. Ré que não exibiu as imagens do circuito interno de câmeras
instaladas no seu estacionamento, mesmo após as conversas entre o autor e o gerente
da loja. Ônus da prova que apenas a ela interessava. Prejuízo material evidenciado.
Sentença mantida. Recurso desprovido (Apelação civil nº 1002179-
98.2019.8.26.0655, Comarca: Várzea Paulista, relator: Ferreira da Cruz, Órgão
julgador: 28ª Câmara de Direito Privado, publicação em 23/05/2023).

Assim sendo, a responsabilização por danos provocados em áreas abrangidas por


estacionamentos, sejam públicos ou privados, podem vincular os responsáveis por tais
estacionamentos, em caso de danos provocados dentro do perímetro desses, a responder pela
reparação, conforme as jurisprudências acima apresentadas.

Entretanto, o ponto que mais chama a atenção, em especial dos responsáveis por áreas
de estacionamentos, diz respeito a uma decisão recente (2023) emanada pelo Egrégio Superior
Tribunal de Justiça- STJ onde esse reconheceu o direito de indenização de um indivíduo que
foi roubado em frente uma portaria de acesso a um estacionamento de um shopping, contudo,
sem ter completado o ingresso para o perímetro físico do estacionamento. Vejamos trecho da
jurisprudência:

EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. VIOLAÇÃO DO ART. 1.022
DO CPC/15. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO, CONTRADIÇÃO,
OBSCURIDADE OU ERRO DO ACÓRDÃO EMBARGADO. AUSÊNCIA.
VIOLAÇÃO DO ART. 489, § 1º, DO CPC/15. NÃO OCORRÊNCIA.
RESPONSABILIDADE CIVIL. SHOPPING CENTER E UNIDADE GESTORA
DO ESTACIONAMENTO. ROUBO A MÃO ARMADA NA CANCELA.
ABRANGÊNCIA DA PROTEÇÃO CONSUMERISTA. ÁREA DE PRESTAÇÃO
DO SERVIÇO. PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA PROTEÇÃO
CONTRATUAL DO CONSUMIDOR. BARREIRA FÍSICA IMPOSTA PARA
BENEFÍCIO DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL. LEGÍTIMA
EXPECTATIVA DE SEGURANÇA. DEVER DE FISCALIZAÇÃO.
POSSIBILIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO. ROUBO A MÃO ARMADA.
FATO DE TERCEIRO INCAPAZ DE EXCLUIR O NEXO CAUSAL. NEXO DE
IMPUTAÇÃO VERIFICADO. FORTUITO INTERNO. RESPONSABILIDADE
DO SHOPPING CENTER. SÚMULA 130/STJ. LEGÍTIMA EXPECTATIVA DE
SEGURANÇA AO CLIENTE. ACRÉSCIMO DE CONFORTO
(ESTACIONAMENTO) AOS CONSUMIDORES EM TROCA DE BENEFÍCIOS
FINANCEIROS INDIRETOS. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DESTA CORTE.
RESPONSABILIDADE DO ESTACIONAMENTO. CIRCUNSTÂNCIAS
OBJETIVAMENTE CONSIDERADAS A INDICAR A EXISTÊNCIA DE
RAZOÁVEL EXPECTATIVA DE SEGURANÇA. CONTROLE DE ENTRADA E
SAÍDA. CANCELA. RISCO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL. HIPÓTESE EM
QUE O CONSUMIDOR FOI VÍTIMA DE ROUBO À MÃO ARMADA AO PARAR
O VEÍCULO NA CANCELA PARA INGRESSO NO ESTACIONAMENTO DE
153

SHOPPING CENTER. MANUTENÇÃO DA DECISÃO CONDENATÓRIA.


DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. SIMILITUDE FÁTICA. AUSÊNCIA.
QUANTUM INDENIZATÓRIO. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA
7/STJ. [...] ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os
Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos
votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar
provimento ao recurso especial interposto por Condomínio Downtown e conhecer em
parte do recurso especial interposto por Center Park Estacionamentos LTDA - EPP
(GEPARK) e, nessa extensão, negar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra.
Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas
Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram com a Sra. Ministra Relatora
(REsp 2031816 / RJ, relatora: Ministra Nancy Andrighi, órgão julgador: T3 - Terceira
turma, publicação em 16/03/2023).

A referida decisão cria precedente para situações semelhantes que possam acontecer, e
por conta disso, provavelmente, as empresas privadas que detenham responsabilidades sobre
áreas de estacionamentos, ou a própria administração pública, a partir da citada decisão,
passarão a criar mais mecanismos de segurança, ou aperfeiçoar os já existentes com o intento
de evitar possíveis responsabilizações futuras.

Importante ressaltar que para fundamentar a decisão emanada pelo STJ, conforme acima
citada, a Ministra Nancy Andrighi, relatora do Recurso Especial nº 2031816 / RJ, entre suas
fundamentações para conceder o direito a indenização ao indivíduo que sofreu o roubo,
argumentou no sentido de que empresas estão inseridas na teoria do risco da atividade
empresarial.

A citada relatora manifestou ainda no sentido de que o fato de o motorista estar na frente
da portaria representa uma circunstância objetivamente considerada a indicar maior sentimento
de segurança a ele, o que representa, segundo o entendimento emanado no citado recurso, um
nexo de causalidade, somado aos demais requisitos, o que torna os responsáveis pelo
estacionamento passíveis de responsabilização pelo roubo sofrido pelo indivíduo.

Diante disso, os limites para a responsabilização de responsáveis por áreas de


estacionamentos, sejam públicos ou privados, vão desde a aplicação das normas disciplinadoras
do instituto da responsabilidade civil, como da própria interpretação no caso em concreto pelos
Tribunais de Justiça e Cortes Superiores. Cumpre destacar, em especial no contexto da
administração pública, essa se esquiva de qualquer responsabilidade quando a culpa é exclusiva
da vítima. Fora essa possibilidade a responsabilidade pode ser mitigada. Importante enfatizar
que tanto no contexto da administração pública quanto da iniciativa privada é possível a
responsabilização dessas em danos matérias e morais em razão de prejuízos provocados a
terceiros.
154

Cumpre ressaltar, no que concerne a responsabilização por danos materiais em ambiente


de estacionamentos privados, em caso de pertences pessoais furtados de dentro de veículos, por
exemplo, as responsabilidades por esses danos, recaem, em tese, sobre os responsáveis pelos
estacionamentos. Em razão disso, Pereira (1992, p. 24) ensina que, quem, “em razão de sua
atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova
de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo”.

Em outras palavras, quando os estabelecimentos comerciais, ou a administração


pública, constroem estacionamentos para que os usuários possam usufruir deles e acessar seus
serviços, devem proporcionar segurança, sob pena da possibilidade de responsabilização por
danos causados aos clientes em suas áreas de estacionamentos.

3 CONCLUSÃO

Diante o exposto, foi possível observar que desde a influência do direito internacional
no sistema de normas brasileiro, especialmente com a Declaração Universal de Direitos
Humanos, da qual, muitos mecanismos semelhantes foram inseridos na CF/88, há uma busca
em oferecer maior segurança e proteção aos cidadãos brasileiros, especialmente no contexto de
proteção a seus bens materiais, objeto desse estudo.

Contudo, foi possível observar também que mesmo com muitos mecanismos
normativos há elevado número de casos de roubos e furtos de veículos, gerando grandes
prejuízos materiais a seus donos, que acabam, em muitos casos, suportando todo o prejuízo.
Diante disso, desde a CF/88, assim como em aprimoramentos através do CC/2002 e CDC/1990,
muitas normas de proteção e defesa de indivíduos, em especial no contexto das relações de
consumo passaram a se tornar mais evidenciadas, trata-se da possibilidade de reparação civil
por parte do Estado, assim como por parte dos particulares em caso de danos provocados a
terceiros.

Importante destacar também, no que se refere aos danos provocados no contexto dos
estacionamentos públicos, conforme as doutrinas, normas e jurisprudências apresentadas,
verificou-se ser possível a responsabilização da administração pública. E no caso da
responsabilidade objetiva dessa se caracteriza quando o particular que tenha sofrido o dano não
necessita provar a culpa, mas comprovando o nexo causal e o dano. Também foi possível
observar que o Estado pode responder por danos morais em relação a danos provocados a
terceiros, assim como pode deixar de ser responsabilizado quando a culpa for exclusiva da
155

vítima. Em relação aos estabelecimentos privados, ficou evidenciado que é possível a


responsabilização desses em relação aos particulares, quanto a danos provocados no contexto
de seus estacionamentos, e nesse caso usando-se a teoria do risco da atividade.

Ressalta-se, um dos principais pontos de atenção nesse estudo, pode ser atribuído a
decisão recente do STJ (2023) em reconhecer direitos a indenização a motorista que em frente
a portaria de um Shopping sofreu roubo, antes de adentrar o veículo no estacionamento. Nesse
contexto, a relatora do recuso especial que tratava da matéria em discussão entendeu que o fato
dele está em frente a portaria transmitia maior sentimento de segurança a ele, o que pode
representar um nexo de causalidade, assim como apresentou outros argumentos, entre os quais
o risco da atividade, no qual o estabelecimento assume os riscos inerentes aos serviços
prestados.

Por fim, esse estudo possibilitou uma reflexão sobre o campo normativo e sua estrutura
lógica, que encontra complemento nos Tribunais de Justiça e em Cortes Superiores,
responsáveis por interpretar as normas no caso em concreto. Além disso, possivelmente, a partir
da decisão do STJ muitos estabelecimentos comerciais e a própria administração pública
tomarão mais medidas de segurança ou aprimoramento nas já existentes, na tentativa de evitar
danos patrimoniais a terceiros dentro de áreas de estacionamentos sobre suas responsabilidades,
a fim de evitarem penalizações em situações futuras.

REFERÊNCIAS

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Yussef Said (Coord.). Responsabilidade civil – doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva.
1984. p. 85-103, p. 87.

______. Reparação Civil por Danos Morais. 4. Edição rev. aum. e mod. Por Eduardo C. B.
Bittar. São Paulo: Saraiva, 2015.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


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em: 26 mai. 2023.

BRASIL. Decreto no 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre


Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível
em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>. Acessado em: 10 mai. 2023.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e


dá outras providências. Disponível em:
156

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acessado em: 06 jun.


2023.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil 2002. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acessado em: 10
mai. 2023.

BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e


dá outras providências. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acessado em: 06 jun.
2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 130. A empresa responde, perante o cliente,
pela reparação de dano ou furto de veículo ocorridos em seu estacionamento (SÚMULA 130,
SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 29/03/1995, DJ 04/04/1995, p. 8294).

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios-TJDFT. Administrativo e


constitucional. Processual civil. Apelação cível. Ação indenizatória por danos morais.
Responsabilidade civil do estado. Dispositivo contraceptivo essure. Laudo pericial. Princípio
da persuasão racional. Validade do laudo. Dano moral configurado. Quantum indenizatório.
Manutenção. [...] 9. Apelação conhecida e não provida. Honorários recursais majorados
(acórdão nº 1437892, apelação cível nº 0702574-31.2020.8.07.0018, relator: Carmen
Bittencourt, 1ª Turma cível, publicada em 08/08/2022).

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios-TJDFT. Direito constitucional,


civil, processual civil, consumidor. Ação de conhecimento. Sentença de improcedência.
Apelação cível. Preliminar. Cerceamento de defesa. Ausência de fundamentação. Afastada.
Indenização. Acidente de trânsito. Atropelamento por ônibus. Comprovação. Responsabilidade
civil objetiva. Prestadora de serviços públicos. Culpa concorrente. Configurada. Danos
materiais. Danos morais. Comprovados. Sentença parcialmente reformada. 1. Ação de
conhecimento em que se busca indenização por danos materiais e morais relativos à falha na
prestação de serviço público por atropelamento de ônibus. [...] 9. No caso vertente, reconhece-
se a responsabilidade civil da ré pelos danos materiais emergentes e por pensão enquanto durar
a debilidade, além de danos morais, ainda que minorados em razão da concorrência de culpa
imputável à vítima. 10. Recurso parcialmente provido (Apelação cível nº 0004031-
05.2016.8.07.0011, acórdão nº 1362951, relatora: Desembargadora Leila Arlanch, 7ª Turma
cível, publicada em 30/08/2021).

BRASIL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios-TJDFT. Constitucional.


Administrativo. Processo civil e civil. Responsabilidade civil do estado por falhas da
autoridade policial na condução de investigação de crimes que culminaram em injusta
condenação penal. Absolvição em revisão criminal. Viabilidade. Art. 37, § 6º, da cf. Danos
morais configurados. Critérios para fixação do quantum indenizatório. Recurso provido.
Sentença reformada. 1. Evidenciada a falha no aparato estatal na prestação de serviço público,
aqui identificada pelos equívocos da polícia judiciária na fase preliminar de persecução
criminal, dando ensejo a uma série de equívocos que, por fim, induziram à injusta condenação
penal do apelante, não há como afastar o reconhecimento do dano moral decorrente da
responsabilização civil da Administração prevista pelo art. 37, § 6º, da CF[...]4. Recurso
conhecido e provido. Sentença reformada (acórdão nº 1394500, apelação cível nº 0707813-
157

16.2020.8.07.0018, relator: Josapha Francisco dos Santos, 5ª Turma cível, Publicação em


09/02/2022).

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul-TJRS. Ementa: apelação cível.


Responsabilidade civil. Ação de indenização por danos patrimoniais e extrapatrimoniais.
Incêndio de motocicleta estacionada em depósito credenciado pelo Detran. Responsabilidade
objetiva da autarquia estadual. Bem móvel que já se encontrava em estado precário quando
foi depositado. Prepostos do depósito que não adotaram as medidas de segurança esperadas
para o tipo de serviço prestado. Culpa concorrente. Danos materiais parcialmente verificados.
Consectários legais. Lucros cessantes e danos morais não demonstrados. Redimensionamento
da condenação sucumbencial. Pagamento de custas processuais pelo réu que deve ser arcada
por metade. Honorários advocatícios. [...] APELO PARCIALMENTE PROVIDO.
UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº 70067573766, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira,15-02-2016).

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Ementa: Consumidor e processual.


Responsabilidade civil. Ação de reparação de danos materiais e morais. Sentença de parcial
procedência da ação e de procedência da lide secundária. Pretensão à reforma manifestada
pela seguradora e pela corré Infinity. Recurso da corré Infinity. Roubo de veículo entregue ao
manobrista. Fortuito interno. Risco da atividade. Não configuração das excludentes de
responsabilidade. Inteligência da Súmula n. 130 do C. Superior Tribunal de Justiça e do artigo
14, do Código de Defesa do Consumidor. Valores relativos às multas e IPVA corretamente
considerados na sentença. Recurso da seguradora. Direito à sub-rogação. Transferência dos
salvados. Recurso da corré infinity desprovido e da seguradora provido (Apelação civil nº
1006502-41.2019.8.26.0011, Comarca: São Paulo, relator: Mourão Neto, Órgão julgador: 35ª
Câmara de Direito Privado, publicação em 31/05/2023).

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Ementa: consumidor. Furto em estacionamento.


Hipótese em que o estacionamento foi disponibilizado por loja de materiais de construção
como efetivo facilitador de negócios, a atrair a responsabilidade objetiva da fornecedora. Art.
14 CDC e Súm. 130 do STJ. Ré que não exibiu as imagens do circuito interno de câmeras
instaladas no seu estacionamento, mesmo após as conversas entre o autor e o gerente da loja.
Ônus da prova que apenas a ela interessava. Prejuízo material evidenciado. Sentença mantida.
Recurso desprovido (Apelação civil nº 1002179-98.2019.8.26.0655, Comarca: Várzea Paulista,
relator: Ferreira da Cruz, Órgão julgador: 28ª Câmara de Direito Privado, publicação em
23/05/2023).

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Ementa: processual civil e consumidor. Recurso


especial. Ação de reparação de danos materiais e morais. Violação do art. 1.022 do CPC/15.
Embargos de declaração. Omissão, contradição, obscuridade ou erro do acórdão embargado.
Ausência. Violação do art. 489, § 1º, do CPC/15. Não ocorrência. Responsabilidade civil.
Shopping center e unidade gestora do estacionamento. Roubo à mão armada na cancela.
Abrangência da proteção consumerista. Área de prestação do serviço. Princípios da boa-fé
objetiva e da proteção contratual do consumidor. Barreira física imposta para benefício do
estabelecimento empresarial. [...] Acórdão: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam
os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e
das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, negar provimento ao recurso
especial interposto por Condomínio Downtown e conhecer em parte do recurso especial
interposto por Center Park Estacionamentos LTDA - EPP (GEPARK) e, nessa extensão, negar-
lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de Tarso
158

Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro votaram
com a Sra. Ministra Relatora (REsp 2031816 / RJ, relatora: Ministra Nancy Andrighi, órgão
julgador: T3 - Terceira turma, publicação em 16/03/2023).

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 5. Edição São Paulo:


Malheiros, 2003, p. 35.

______. Programa de responsabilidade civil. 12. Edição São Paulo: Atlas, 2015. pp. 215-216.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2004, v. 7,
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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 11. Edição
São Paulo: Saraiva, 2016.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo:
Malheiros,14. Edição 2002, p. 829.

______. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense,1990, p. 35.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. 3. Edição Rio de Janeiro:


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REALE, Miguel. Estudos de filosofia e ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 1978.

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mais visados. Disponível em: <https://www.uol.com.br/carros/listas/roubos-e-furtos-de-
veiculos-tem-alta-em-sp-veja-os-10-modelos-mais-visados.htm?cmpid=copiaecola>.
Acessado em: 04 jun. 2023.

REIS, Clayton. Dano Moral. 5. Edição atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

SINDICATO DOS MÉDICOS DO CEARÁ. Médico tem veículo tomado de assalto no


estacionamento do posto de saúde Anísio Teixeira, em Fortaleza; Sindicato reforça pedido de
segurança (2023). Disponível em:
<https://sindicatodosmedicosdoceara.org.br/2023/03/06/medico-tem-veiculo-tomado-de-
assalto-no-estacionamento-do-posto-de-saude-anisio-teixeira-em-fortaleza-sindicato-reforca-
pedido-de-seguranca/>. Acessado em: 07 jun. 2023.

UNICEF BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:


<https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>. Acessado em: 07
jun. 2023.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Responsabilidade Civil. Vol.4. 16.Edição rev. atual.
e ampl. São Paulo: Atlas, 2016.
159

VIVA, Rafael Quaresma. Responsabilidade civil objetiva: código civil versus código de defesa
do consumidor. 2ª edição Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013. p. 10
160

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL GENERATIVA E A


RECONSTRUÇÃO DA IMAGEM POST MORTEM: IMPLICAÇÕES
SOB A ÓTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

Marcelle Blanche1

RESUMO
O uso da IA generativa tem permitido a recriação realista de personalidades falecidas,
levantando questões éticas e legais sobre o direito de imagem após o óbito. O direito de imagem
é garantido constitucionalmente e requer consentimento ou autorização para divulgação. No
entanto, a legislação atual não previu a utilização da IA para recriar imagens pós-morte do
indivíduo, assim, a responsabilidade civil inerente aos usos indevidos da tecnologia é um
desafio nesse contexto. Assim, a aplicação da IA na recriação de imagens pós-morte tem sido
mais frequente, especialmente na indústria do entretenimento, levantando debates sobre a
dignidade humana e o respeito à imagem dos falecidos. Surgem então, necessidades de reavaliar
as leis e regulamentações sobre o uso da IA para reconstrução de imagens post mortem, visando
proteger os direitos fundamentais e preservar a dignidade das pessoas falecidas. As implicações
éticas e morais também merecem atenção, pois a ressurreição digital pode suscitar debates sobre
a manipulação da história, personalidade do indivíduo recriado e exploração comercial não
autorizada ou inadequada. Em conclusão, o uso da IA para reconstrução da imagem post
mortem apresenta desafios que requerem abordagens cautelosas das leis e princípios éticos.
Proteger o direito de imagem e abordar a responsabilidade civil são fundamentais para preservar
os valores da sociedade em meio à revolução digital da inteligência artificial.

Palavras-chave: Inteligência artificial; Reconstrução da imagem; Responsabilidade civil.

1. INTRODUÇÃO

Em um mundo cada vez mais digital e interconectado, a interação entre a tecnologia


avançada, especificamente a inteligência artificial (IA) generativa, e o direito tem ganhado
crescente destaque. As inovações tecnológicas avançam a um ritmo tão rápido que,
frequentemente, ultrapassam as capacidades da legislação em vigor, lançando luz sobre novas
problemáticas éticas e jurídicas que desafiam nossa compreensão de conceitos fundamentais de
direito e sociedade.

Dentre tais questões emergentes, o uso e a reconstrução da imagem por meio da IA


generativa, particularmente após a morte de uma pessoa, têm gerado debate tanto na
comunidade jurídica quanto na sociedade em geral. A possibilidade de replicar a imagem e

1
Pós-graduada em Processo Civil. Encarregada de Dados com certificações ISO 27.001, ISO 27.005, LGPD e
GDPR Foundation. Inscrita na OAB/SE 10.084 e OAB/RJ 209.714. E-mail: marcelle.blanche@outlook.com.
161

comportamentos de uma pessoa após a sua morte levanta uma série de perguntas: Como a
permissão para uso dessa imagem é obtida? Como isso se estende após a morte do indivíduo?
E, em casos de uso indevido, quais são as consequências no âmbito da responsabilidade civil?

Este artigo tem como objetivo explorar esses dilemas à luz da legislação brasileira,
procurando fornecer uma visão do quadro jurídico atual e avaliar se, e em que medida, ele pode
acomodar tais avanços tecnológicos. Ademais, pretende-se analisar se a regulamentação atual
protege adequadamente o direito de imagem, e qual a responsabilidade daqueles que infringem
tal direito, em particular no que tange ao uso de imagens para gerar novos conteúdos por IA
após a morte do titular do direito.

O objetivo final é esboçar um panorama das implicações jurídicas da interseção entre


IA e a responsabilidade civil, trazendo contribuições para o debate jurídico atual e promovendo
uma reflexão sobre os ajustes necessários na legislação brasileira.

2. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E A RECONSTRUÇÃO DIGITAL DA IMAGEM


POST MORTEM

A inteligência artificial (IA) é uma área da ciência da computação que visa simular a
inteligência humana, permitindo que as máquinas realizem tarefas que tradicionalmente
requerem habilidades cognitivas humanas, como aprendizado, percepção e criatividade. O
campo da IA tem progredido a passos largos, tornando possível a realização de tarefas cada vez
mais sofisticadas, desde análises de dados complexas até a criação de obras de arte originais.

A IA generativa é uma subcategoria da inteligência artificial que utiliza algoritmos


complexos para criar novos conteúdos realistas, como imagens, áudio ou texto. Ao contrário da
IA convencional, que é treinada em dados existentes para tomar decisões ou prever resultados,
a IA generativa é capaz de criar conteúdo originalmente novos, muitas vezes imitando o estilo
ou características de dados previamente analisados.

Essa capacidade única torna a IA generativa amplamente aplicável em campos como


arte, design, entretenimento e simulação, mas também traz desafios éticos e legais,
especialmente quando se trata de recriar personalidades falecidas ou manipular conteúdo de
forma potencialmente enganosa.

Uma aplicação cada vez mais comum dessa tecnologia é a reconstrução da imagem. Os
algoritmos de IA podem usar imagens e informações existentes para criar representações visuais
162

hiper-realistas de indivíduos. Tal tecnologia tem sido usada para recriar a imagem de pessoas
que já faleceram, resultando em simulações incrivelmente precisas e reais, que vêm sendo
amplamente utilizado no meio artístico e jornalístico com um todo.

A reconstrução de imagem pós-morte pela IA pode ter várias aplicações. Em alguns


casos, ela pode ser usada para criar "lembranças" digitais de entes queridos, em outros, ela pode
ser usada para recriar a imagem de celebridades ou personagens históricos para fins de
entretenimento, comerciais ou educacionais.

No contexto do uso da IA generativa para a reconstrução da imagem, através da


aprendizagem de máquina e do processamento de imagens e voz a IA pode criar representações
visuais altamente precisas de indivíduos, com possibilidades que vão além da vida de uma
pessoa.

Isso é particularmente relevante quando consideramos o crescente uso da tecnologia


para recriar digitalmente personalidades públicas após a morte. Esse fenômeno, que alguns
chamam de "ressurreição digital", tem sido visto com cada vez mais frequência, principalmente
na indústria do entretenimento.

Inicialmente, vale ressaltar que a reconstrução digital de imagem e/ou voz não ser um
fenômeno tão recente. Um caso pioneiro ocorreu no filme “O Corvo” de 1994, onde o ator
Brandon Lee, que interpretava o protagonista do filme, faleceu abruptamente em 1993 durante
as gravações do longa. Para finalizar a produção, foi utilizado o corpo de um dublê, juntamente
com a reprodução digital do rosto do falecido sobreposta ao seu.

Já em 2015, também em outra produção cinematográfica, no filme “Velozes e Furiosos


7”, o uso da tecnologia de reconstrução digital em foi aplicada para homenagear e concluir as
cenas do ator Paul Walker, que morreu tragicamente antes do término das filmagens.2

No entanto, há uma distinção clara entre utilizar a tecnologia para completar um projeto
que um ator começou enquanto estava vivo e utilizar sua imagem para criar conteúdos diversos
como, filmes, propagandas e músicas novas, com base nas imagens do falecido em
empreendimentos que, muitas vezes, nem mesmo existiam ou poderiam ser imaginados pelo
titular antes de sua morte. A despeito disso, o titular de tais imagens jamais teria a opção de

2
SADOVSKI, Roberto. Como a tecnologia criou um dilema insolúvel ao reviver artistas mortos. UOL. 07 jul.
2023. Disponível em: <https://www.uol.com.br/splash/colunas/roberto-sadovski/2023/07/07/como-a-tecnologia-
criou-um-dilema-insoluvel-ao-reviver-artistas-mortos.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.
163

escolher qualitativamente ou determinar se queria mesmo estar em tais projetos, inviabilizando


um dos direitos mais inerentes à dignidade humana: a autodeterminação.

Os avanços nas ferramentas digitais, que vão desde imagens geradas por computador
até deep fakes, aliados à aplicação da inteligência artificial generativa, criaram um cenário no
qual qualquer indivíduo, esteja ele vivo ou falecido, pode ser replicado.

Um exemplo conhecido desta prática para a criação de conteúdo inédito, se deu no filme
Em “Rogue One – Uma História Star Wars”, que “ressuscitou” o ator Peter Cushing, morto em
1994, para interpretar o governador Moff Tarkin. No mesmo filme, a Princesa Leia, interpretada
pela estrela Carrie Fisher também teve seu rosto e feições reconstruído digitalmente para
sobrepor ao corpo de dublês, retratada, porém anos mais jovem, neste último caso, a atriz ainda
estava viva durante a produção.3

No cenário musical, quase uma década após sua morte, cantora Whitney Houston, foi
recriada mediante o uso de hologramas para uma nova turnê, o show "An Evening With Whitney:
The Whitney Houston Hologram Concert", estreou em 2020 em Las Vegas com a recriação digital
da artista4. A apresentação, que pode até ser considerada ‘assombrosa’ em vista do nível de
realismo transmitido, foi envolvida em diversas problemáticas éticas e jurídicas, chegando a ser
cancelada várias vezes, porém segue com ingressos à venda para as exibições do ano 2023 até
o encerramento deste estudo.5

No entanto, a reconstrução digital da imagem post mortem levanta sérias preocupações


legais e éticas. Primeiro, há de se considerar a questão do consentimento. A permissão para usar
a imagem de uma pessoa é um direito fundamental protegido pela Constituição Brasileira (Art.
5º, inciso X). Como então, seria possível obter o consentimento de uma pessoa que já faleceu?
E, em caso de uso indevido da imagem, quem é responsável e que medidas podem ser tomadas?

Mais recentemente, no Brasil, a propaganda de uma montadora de automóveis virou


alvo de inúmeros debates. O comercial em questão utilizou uma reconstrução digital de imagem
e voz da cantora Elis Regina, falecida na década de 1908, para participar de um dueto inédito

3
CAFÉ COM NERD. Rogue One: como o deepfake poderia ter melhorado o CGI da Princesa Leia.
CafeComNerd.com.br. Disponível em: <https://cafecomnerd.com.br/rogue-one-como-o-deepfake-poderia-ter-
melhorado-o-cgi-da-princesa-leia/>. Acesso em: 23 jul. 2023.b
4
UOL. Holograma de Whitney Houston une perfeição técnica a imagem idealizada. UOL Entretenimento. 05 mar.
2020. Disponível em: <https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/05/holograma-de-
whitneyhouston-une-perfeicao-tecnica-a-imagem-idealizada.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.
5
ENTRADAS.COM. Whitney Houston Hologram Tour. Disponível em:
<https://www.entradas.com/en/artist/whitney-houston-hologram-tour/>. Acesso em: 23 jul. 2023.
164

com a sua filha Maria Rita6. Ocorre que, neste caso particularmente, gerou-se uma grande
discussão sobre a personalidade da pessoa falecida, bem como, se ela, em vida, aceitaria realizar
tal ação publicitária, eis que os ideais defendidos pela cantora poderiam divergir dos da marca
em questão, levando-se em conta acontecimentos da época em que a cantora estava viva.

Aqui é relevante ressaltar o quanto o uso da inteligência artificial generativa vem


alterando a nossa percepção sobre vida e morte, e expandindo o conceito de realidade. Questões
como estas, trazem a reflexão: Como conciliaremos o uso da IA e conceitos como autonomia e
dignidade?

Faz-se necessário ainda, memorar que a Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD, define
dados pessoais como informações relacionadas a um indivíduo identificado ou identificável, o
que inclui imagem, traços faciais e a voz, que são consideradas dados pessoais, e
consequentemente são protegidos por esta legislação. No contexto em discussão, a manipulação
dos dados pessoais para a recriação digital, via de regra, exige o prévio consentimento do titular
(artigo 7°, inciso I da LGPD).

No Brasil, permissão para o uso da imagem de uma pessoa, viva ou morta, é um direito
protegido constitucionalmente e a necessidade de consentimento para a utilização da imagem
de uma pessoa é clara durante a sua vida, mas após a sua morte, as coisas tornam-se mais
complexas. Entretanto, como se sabe, o consentimento, deve ser específico e está vinculado à
finalidade determinada para o qual foi coletado (artigo 5°, XII da LGPD).

Aqui poderíamos mencionar como tentativa de assegurar a efetivação das escolhas


determinadas pelo indivíduo, para além do consentimento, o uso de disposições testamentárias,
expressando as vontades ainda em vida, para fazer valer os desejos do titular. Alguns exemplos
notórios em que pessoas famosas dispuseram sobre o desejo de permitir ou vetar reconstrução
da imagem após a morte através do uso de IA já podem ser observados internacionalmente,
como:

a) Robin Williams7: em seu testamento, o ator proibiu o uso de sua imagem por até
25 anos após sua morte, deixando instruções específicas para não ser digitalmente
inserido em nenhum filme ou propaganda contra a sua vontade até a data

6
SADOVSKI, Roberto. Como a tecnologia criou um dilema insolúvel ao reviver artistas mortos. UOL. 07 jul.
2023. Disponível em: <https://www.uol.com.br/splash/colunas/roberto-sadovski/2023/07/07/como-a-tecnologia-
criou-um-dilema-insoluvel-ao-reviver-artistas-mortos.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.
7
EL PAÍS. Por que os hologramas emocionam tanto? El País Brasil. 31 mar. 2015. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2015/03/31/cultura/1427813184_083287.html>. Acesso em: 23 jul. 2023.
165

determinada. Além disso, os direitos de seu nome, assinatura, e imagens foram


passados para a instituição de caridade Windfall Foundation.
b) Madonna8: recentemente, enquanto se recuperava após uma internação, foi
amplamente divulgado que a cantora pop atualizou o seu testamento, e dentre outras
disposições, também proibiu o uso de hologramas para a recriação da sua imagem
após a morte. Dentre os motivos apontados para a decisão, foi apontado o exemplo
ocorrido com a cantora Whitney Houston, bem como, a artista pretende proteger sua
relevância cultural e evitar que o seu trabalho seja manchado.
c) Whoopi Goldberg9: Em entrevista concedida durante sua participação em um
Talk Show, a atriz revelou que seu testamento há mais de 15 anos já proíbe criação
de holograma com sua imagem após morte. Neste caso a artista reiterou que não quer
vir a ser um holograma, referindo-se também à celebridade Whitney Houston.

Embora seja notável o quão longe a tecnologia avançou, conforme se mostrou, a


possibilidade de recriar a imagem de uma pessoa após a morte não é isenta de desafios éticos e
legais.

A lei brasileira reconhece que o direito à imagem é um direito personalíssimo, o que


implica que ele é intransferível e irrenunciável. No entanto, o direito de imagem post mortem
entra em uma área cinzenta e não é imediatamente claro se, e como, o consentimento para a
utilização da imagem de uma pessoa pode ser concedido ou considerado válido após a sua
morte, particularmente quando essa imagem é recriada através da mecanismos de Inteligência
Artificial, para indeterminados propósitos.

3. RECRIAÇÃO DIGITAL POST MORTEM E AS IMPLICAÇÕES NA


RESPONSABILIDADE CIVIL

A princípio, cumpre destacar que o direito de imagem e a proteção dos dados pessoais
são direitos fundamentais protegidos pela Constituição Brasileira. O artigo 5º, inciso X, da

8
R7. Madonna atualiza testamento, divide herança bilionária e proíbe uso de hologramas após morte. R7 Famosos
e TV. 11 jul. 2023. Disponível em: <https://entretenimento.r7.com/famosos-e-tv/madonna-atualiza-testamento-
divide-heranca-bilionaria-e-proibe-uso-de-hologramas-apos-morte-11072023>. Acesso em: 23 jul. 2023.
9
ESTADÃO. Testamento de Whoopi Goldberg diz que ela não pode ser transformada em holograma após a morte.
Estadão. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/emais/gente/testamento-de-whoopi-goldberg-diz-que-ela-
nao-pode-ser-transformada-em-holograma-apos-morte-nprec/>. Acesso em: 23 jul. 2023
166

Constituição estabelece que: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação", já o inciso LXXIX assegura que “é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção
dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. Tais direitos são inerentes a todos os
indivíduos, independentemente de serem celebridades ou cidadãos comuns.

Adicionalmente, o Código Civil Brasileiro, no seu artigo 20, determina que:

Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da


ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a
exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu
requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a
boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais

A reconstrução da imagem de uma pessoa após a morte pela IA generativa pode se


enquadrar nesta disposição legal, principalmente quando considerada a exploração comercial
potencial e a possível violação à honra e à imagem da pessoa.

No entanto, a aplicação dessas disposições legais no cenário pós-morte é complexa e


desafiadora, eis que o direito de imagem é classificado como um direito da personalidade, de
acordo com o artigo 11 do Código Civil, que prevê: "Com exceção dos casos previstos em lei,
os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício
sofrer limitação voluntária". Mas o que acontece com esse direito após a morte do titular?

O parágrafo único do artigo 20 do Código Civil afirma que:

Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa medida,
em ordem preferencial: I - o cônjuge sobrevivente, ou o convivente; II - qualquer
parente em linha reta, ou na linha colateral até o quarto grau

Ou seja, após a morte, os herdeiros legítimos têm o direito de proteger a imagem do


falecido.

Assim, sendo o direito à imagem é considerado um direito da personalidade, de natureza


extrapatrimonial, e, portanto, intransmissível e irrenunciável, ele subsiste mesmo após a morte
do titular, sendo protegido no interesse de seus herdeiros. No entanto, apesar de intransmissível,
os herdeiros podem, todavia, consentir ou proibir a utilização da imagem do falecido.

Sendo assim, caberia a estes, nos casos de recriação de imagem sem o devido
consentimento, os eventuais pleitos jurídicos para cessação das divulgações de imagens e
demais conteúdos criados a partir dos dados da pessoa falecida e até mesmo a reparação prevista
167

no caput do artigo 12 do Código Civil, com fundamento em direito dos próprios herdeiros, eis
que a personalidade se extingue com a morte, conforme alude artigo 6° do CC.

Então, no contexto da IA, surgem questões significativas: É suficiente obter o


consentimento dos herdeiros legítimos para a reconstrução digital de uma pessoa? E o que
acontece se a imagem de uma pessoa for usada sem consentimento? Quais são as
responsabilidades inerentes ao uso da imagem em situações contrárias à personalidade do
indivíduo? É aqui que a responsabilidade civil entra em cena.

A cláusula geral de responsabilização civil objetiva, estabelecida no artigo 927 do


Código Civil, obriga aquele que causar dano a outrem a repará-lo. Se a utilização da imagem
de uma pessoa pela IA após a sua morte for considerada prejudicial à honra, à imagem ou à
respeitabilidade dessa pessoa, isso poderia levar a uma demanda por danos. Entretanto, a
aplicação desse princípio a situações em que a imagem é recriada por IA é uma questão legal
nova e não testada.

É importante ainda analisar se e como a Autoridade Nacional de Proteção de Dados -


ANPD, poderá monitorar o uso da IA, principalmente, quando a aplicação tiver respeito ao
direito fundamental à proteção de dados pessoais, como é o caso das recriações de pessoas após
a sua morte, quer seja mediante uso de hologramas ou demais artifícios de manipulação de
imagens e demais características pessoais.

Além disso, a decisão de usar a imagem de uma pessoa após a morte não deve ser tomada
levianamente, posto que uso da imagem de uma pessoa, mesmo após a morte, tem implicações
éticas e morais significativas. Pode-se argumentar que o uso de uma imagem pós-morte sem o
consentimento expresso do indivíduo é uma violação da dignidade humana e do respeito devido
à pessoa após a morte.

No cenário da aplicação e ferramentas de IA generativa essas considerações são ainda


mais pertinentes, pois a IA tem o poder de criar uma representação incrivelmente realista de
uma pessoa (vide o já mencionado holograma da cantora Whitney Houston), mas não tem a
capacidade de entender a complexidade da personalidade humana ou os nuances da interação
humana, o que pode levar a representações que, embora se pareçam com o indivíduo, não
refletem a sua verdadeira personalidade ou desejos.

Como resultado, é fundamental abordar a questão do consentimento ou expressão da


vontade do falecido e do direito de imagem na reconstrução da imagem post mortem através do
uso da IA. Como se observa, a legislação brasileira precisa considerar esses desafios e trabalhar
168

para proteger o direito de imagem mesmo após a morte, ao mesmo tempo que permite o
progresso e a inovação na área da IA.

Para tentar sanar esta questão, conforme apontado em estudo sobre o tema, é interessante
ponderar alguns critérios, tais como: a previsão expressa em contrato em vida e autorização da
família; a finalidade da reconstituição da imagem e; a adequação da imagem criada post mortem
à imagem-atributo construída em vida pela pessoa. (MEDOM, 2021).

Neste sentido, ao explanar sobre o tema, Bruno Zampier defende:

Toda e qualquer liberdade, da qual deriva diversos tipos de autonomias, exige a


articulação da consequente responsabilidade. E assim também irá ocorrer na seara da
inteligência artificial. É inconcebível imaginar uma gama infindável de aplicações de
IA sem que se possa estipular regimes de imputação de responsabilização, seja na
esfera cível, criminal ou administrativa. Um Estado Democrático de Direito não se
compatibiliza com qualquer tipo de anarquia tecno-digital.

E aqui cumpre memorar que os perigos do uso desregrado da reconstrução digital de


imagens já foram evidenciados com pessoas vivas, como quando foram usadas para disseminar
desinformação nas eleições mais recentes, para a realização de fraudes e até mesmo em casos
de pornografia de vingança.

Além disto, recentemente, estes recursos vêm sendo empregados em diversos vídeos na
internet para que pessoas falecidas em mortes trágicas ou violentas venham a contar a história
do evento que lhes ceifou a vida, o que traz sérios problemas relacionados à memória do de
cujus e aos sentimentos dos entes queridos, que necessitam de tutela relativa à responsabilização
decorrente da criação e propagação de tais conteúdos.10

No Brasil, o Projeto de Lei 2.338/2023, conhecido como o Marco Regulatório da


Inteligência Artificial, continua em processo legislativo, e pretende estabelecer regras para o
uso desta tecnologia de maneira abrangente.

Entretanto, até lá, é importante notar que a legislação brasileira atual não foi
desenvolvida com a IA em mente. Embora os princípios gerais da responsabilidade civil possam
ser aplicados a essa nova tecnologia, eles não são necessariamente adequados para abordar suas
particularidades. Portanto, é evidente que os intérpretes da lei e tribunais brasileiros enfrentarão
desafios significativos ao aplicar a legislação existente a esses casos.

10
TILT. Em tendência macabra no TikTok, mortos retornam para contar seu fim. UOL. 28 jun. 2023. Disponível
em: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/06/28/em-tendencia-macabra-no-tiktok-mortos-
retornam-para-contar-seu-fim.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.
169

Como resultado, é essencial um maior debate sobre como a lei deve evoluir para
acomodar eficazmente a interação entre a IA, os direitos fundamentais e personalíssimos do ser
humano e as responsabilidades advindas de tal interseção. Este é um tema de extrema relevância
e urgência, que requer uma análise cuidadosa, educação digital dos titulares e uma abrangente
discussão ético-social e jurídica.

4. CONCLUSÕES

Na era moderna, onde a inteligência artificial tem cada vez mais capacidade de recriar
a imagem e a personalidade humanas, o conceito de direito de imagem e a responsabilidade
inerente a esta prática ganha novas dimensões. Este artigo explorou a problemática do uso da
IA para recriar a imagem de uma pessoa após a sua morte, analisando questões relacionadas à
obtenção de permissão para esse uso e à responsabilidade civil resultante da violação desse
direito, tudo isso à luz da legislação brasileira.

Pela análise feita, fica evidente que estamos diante de um desafio jurídico. Os avanços
da IA generativa na recriação da imagem de uma pessoa, mesmo após a morte, criam desafios
únicos e sem precedentes para o direito de imagem e a responsabilidade civil no Brasil.

O direito de imagem é um direito personalíssimo, profundamente ligado à dignidade


humana e protegido pela Constituição Federal e pelo Código Civil brasileiro. A aplicação da
lei a situações pós-morte, no entanto, não é clara e pode levar a interpretações divergentes, eis
que a extensão do direito de imagem após a morte, especialmente no que diz respeito ao uso de
IA para a reconstrução da imagem, é questão que requer atenção cuidadosa da comunidade
jurídica e dos legisladores.

O consentimento do titular vem sendo levantado como possível viés de solução. No


entanto, a questão do consentimento torna-se ainda mais complexa após a morte do titular do
direito de imagem, trazendo o testamento como outro viés de resolução e proteção. Embora os
herdeiros tenham o direito de proteger a imagem do falecido, como se dá essa proteção no
contexto da IA e como se garante que a imagem não seja usada de forma prejudicial à imagem,
dignidade, honra e interesses do falecido? E como ficam tais implicações no caso do uso
inadequado?

A lei brasileira, tal como muitas outras ao redor do mundo, foi escrita em uma época em
que tais tecnologias não existiam, apesar do esforço do legislador em abarcar um vasto conjunto
de situações, não se poderia prever a emergência e o desenvolvimento da IA e suas aplicações,
170

especialmente no que diz respeito à recriação de imagens post mortem. Consequentemente,


nossa atual legislação não parece estar adequadamente equipada para lidar com tais desafios,
abrindo um espaço de incertezas e possíveis violações de direitos.

Quanto à responsabilização civil, a questão é igualmente complexa. Aqueles que usam


a IA para recriar a imagem de uma pessoa após a morte poderiam potencialmente ser
considerados responsáveis se isso for prejudicial à honra, à imagem ou à respeitabilidade do
falecido.

Os danos decorrentes do uso indevido da imagem podem ser significativos, contudo, a


reparação, especialmente no contexto da IA, é uma tarefa complicada. Não se trata apenas de
danos materiais, mas também de danos morais e, em muitos casos, do respeito devido à
dignidade humana após a morte. Assim, a aplicação da lei em tal contexto tem inúmeros vieses
e se mostra incerta e não testada no cenário da IA.

Ademais, a recriação da imagem post mortem através da IA generativa levanta questões


éticas significativas. O uso da imagem de uma pessoa após a sua morte deve ser considerado
cuidadosamente, levando em conta não apenas o potencial para exploração comercial, mas
também o respeito devido à pessoa após a morte. Ademais, o respeito à personalidade e à
dignidade do falecido é uma consideração fundamental que deve ser priorizada, mesmo na
busca pelo progresso tecnológico.

Diante dessas questões, parece claro que precisamos reavaliar e talvez reformular nossa
compreensão e aplicação do direito de imagem no contexto da inteligência artificial. Os avanços
da tecnologia estão reformulando nossa sociedade e, consequentemente, exigem uma revisão
de nossas leis e regulamentos. O desafio para o legislador é equilibrar o avanço tecnológico
com a proteção de direitos humanos fundamentais, como o direito de imagem e a
responsabilização inerentes aos casos das aplicações de inteligência artificial.

Portanto, é imperativo que continuemos a investigar, debater e buscar soluções para


essas questões complexas. A intersecção da IA com a responsabilidade civil é apenas uma das
muitas áreas onde a tecnologia está pressionando os limites de nossa estrutura jurídica existente.
Ao enfrentarmos esses desafios, teremos a oportunidade de não apenas proteger e reparar
juridicamente os direitos individuais, mas também de moldar o futuro de nossa sociedade digital
de uma maneira que reflete nossos valores mais fundamentais.

Em suma, é fundamental que a legislação brasileira se adapte para abordar


adequadamente as questões emergentes apresentadas pela IA e para definir claramente a
171

extensão da responsabilidade civil neste contexto. Enquanto a jurisprudência e a legislação não


evoluem, cabe a cada um de nós, operadores do direito, estudar e debater esses desafios
contemporâneos, antecipando possíveis conflitos e trabalhando por soluções que equilibrem os
avanços tecnológicos com os direitos e garantias fundamentais de cada cidadão.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Diário Oficial da União, Brasília, DF, 15 ago. 2018.

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Brasília, DF, 11 jan. 2002.

BRASIL. Marco Civil da Inteligência Artificial. Projeto de Lei nº 2.338/2023. Autoria: Senador
Rodrigo Pacheco. Senado Federal, Brasília, DF. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/157233>. Acesso em: 30 jul.
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pode-ser-transformada-em-holograma-apos-morte-nprec/>. Acesso em: 23 jul. 2023.

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categorias e conceitos, a busca por marcos regulatórios. Indaiatuba/SP: Editora Foco, 2022.

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172

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MIGALHAS. A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem. Migalhas de


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responsabilidade-civil/350356/a-reconstrucao-digital-postuma-da-voz-e-da-imagem>. Acesso
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morte. R7 Famosos e TV. 11 jul. 2023. Disponível em:
<https://entretenimento.r7.com/famosos-e-tv/madonna-atualiza-testamento-divide-heranca-
bilionaria-e-proibe-uso-de-hologramas-apos-morte-11072023>. Acesso em: 23 jul. 2023.

SADOVSKI, Roberto. Como a tecnologia criou um dilema insolúvel ao reviver artistas mortos.
UOL. 07 jul. 2023. Disponível em: <https://www.uol.com.br/splash/colunas/roberto-
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mortos.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.

TILT. Em tendência macabra no TikTok, mortos retornam para contar seu fim. UOL. 28 jun.
2023. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/06/28/em-tendencia-
macabra-no-tiktok-mortos-retornam-para-contar-seu-fim.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.

UOL. Holograma de Whitney Houston une perfeição técnica a imagem idealizada. UOL
Entretenimento. 05 mar. 2020. Disponível em:
<https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/03/05/holograma-de-
whitneyhouston-une-perfeicao-tecnica-a-imagem-idealizada.htm>. Acesso em: 23 jul. 2023.
173

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A RESPONSABILIDADE


CIVIL DE PROVEDORES DE INTERNET
Lei 12.965/2014, o confronto entre as noções jurídicas tradicionais de
proteção dos direitos fundamentais e o uso abusivo da internet

Nayane Santana de Oliveira1


Laís Santana de Oliveira2

RESUMO

O presente trabalho visa discutir a responsabilidade civil dos provedores de internet diante do
cenário atual a respeito de um trecho do conhecido Marco Civil da Internet, o artigo 19 da
referida Lei de nº 12.965/2014. Tal lei disciplina os princípios, as garantias, bem como os
direitos e deveres para o uso da internet no país, tendo o seu teor um relevante impacto social,
principalmente com reflexos nos Direitos Fundamentais, no Estado Democrático de Direito, a
exemplo da livre manifestação, do pluralismo e da livre manifestação. O dispositivo determina
que os provedores de internet, websites e redes sociais somente terão a responsabilidade civil
por postagens e mensagens que contenham teor ilícitos, caso não tomem providências para a
remoção desses conteúdos após decisão judicial, o que na visão de especialistas, o teor desse
artigo geraria conflitos e danos irreparáveis a terceiros afetados por publicações, que somente
no caso de descumprimento da decisão judicial, a lei autoriza a responsabilização do provedor,
excetuando-se somente a divulgação de material de cunho sexual ou que envolva nudez, ambos
em caráter privado, estes não necessitam de decisão judicial. O tema tem se mostrado cada vez
mais relevante no decorrer dos anos, principalmente quando se analisa a evolução da internet e
seu poder de transmissão de informações, consequentemente a Corte máxima debate formas de
coibir a circulação de material impróprio, de caráter golpista ou criminoso, através da análise
do dispositivo citado. Desde 2020, casos como estes vem sendo analisados e debatidos pelo
plenário do STF, a exemplo dos temas de repercussão geral de nº 987 e 533.

Palavras-chave: Responsabilidade civil; Direitos fundamentais; Provedores de internet; Marco


civil da internet; Supremo Tribunal Federal.

1 INTRODUÇÃO

A tecnologia está em constante mutação, evoluindo gradativamente de forma fluida e


concreta, tornando-se uma ferramenta usada por praticamente toda a população mundial. A
internet é a responsável por revolucionar a forma como nos relacionamos uns com os outros,
nos comunicamos, nos informamos e fazemos negócios. A rede de computadores trouxe

1
Nayane Santana de Oliveira. Advogada e Consultora Jurídica, nº 14.124, Seccional Sergipe. especialista em
Direito Público (UNIAMÉRICA/2021); especialista em Direito Tributário (UNIAMÉRICA/2022); especialista
em Advocacia Cível (ESA/2023). E-mail: nayanesantana.adv@gmail.com.
2
Laís Santana de Oliveira. Advogada e Consultora Jurídica, com inscrição nº 15.185, Seccional Sergipe. Pós-
graduanda em Direito Civil e Processo Civil; Pós-graduanda em Penal e Processo Penal. E-mail:
laissantana.adv@gmail.com.
174

diversas facilidades, bem como também enormes desafios para os titulares de direitos autorais,
que nela encontraram um ambiente de fácil violação e de difícil controle, o que ocasionou um
ambiente crítico quando se fala de eficácia no âmbito jurídico. (LIMA, 2019).

Consequentemente as relações contemporâneas foram fortemente atingidas pela


tecnologia em meio a sua grande evolução, que após mudanças tecnológicas de grande vulto,
vê-se uma desproporção entre a legislação atualmente vigente e as relevantes evoluções
tecnológicas ocorridas no decorrer dos anos.

Vasconcelos (2003) leciona que:

O crescimento da internet é espantoso e atinge o cotidiano das pessoas de uma forma


tão intensa que aquelas que não estão conectadas passarão a sentir-se à margem da
evolução. Assiste-se a uma verdadeira revolução tecnológica e, como não poderia
deixar de ser, ao surgimento de inúmeras questões jurídicas, oriundas dessas novas
formas de inter-relacionamento.

Na internet, inevitavelmente, há excessos, e diante das redes, esses excessos podem


tomar proporções variadas e incalculáveis. Ocorre que qualquer ato ou declaração exposto na
rede de computadores, se propaga com bastante facilidade e rapidez, comparado aos meios de
dispersão de informações usuais, como jornais, por exemplo. Sendo assim, crimes como a
difamação, injúria, difusão de matérias pornográficos, e até mesmo atentados contra o Estado
Democrático de Direito, quando praticados nas redes, tendem a alcançar dimensões colossais,
pela facilidade de dispersão de informações que a internet proporciona.

Nesse sentido, reiteradamente, surgem argumentos relacionadas a quem assume a


responsabilidade por esses danos ocorridos nas redes. Quando se trata de um conteúdo ofensivo,
que foi disseminada por terceiros dentro de plataformas de grandes empresas, conhecidas como
provedores, os questionamentos tornam-se mais expressivos quando se trata de esclarecer se
esses terceiros responderiam sozinhos pelos danos que ocasionam ou se responderiam em
concorrência com os provedores de internet, averiguando assim se estes teriam alguma
responsabilidade ou obrigação relacionada a esses casos de invasão de privacidade. Se o
questionamento for positivo, e os provedores sejam responsáveis, é preciso estabelecer em que
condições se dará essa responsabilização e em que grau e tipo de responsabilização seria essa.

A relevância da pesquisa deriva de dois aspectos. O primeiro é expor uma breve


evolução histórica da criação da internet, que ocorreu no decorrer de 1989, assim como
demonstrar a regulamentação da rede de computadores através do ordenamento jurídico
brasileiro, bem como, analisar o entendimento aclarado pelos Ministros do Supremo Tribunal
175

Federal a respeito da constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo 19 da Lei conhecida


como Marco Civil da Internet.

O nosso ordenamento jurídico, com o intuito de atualizar-se e se adequar a evolução


social e tecnológica, sancionou a lei 12.965/2014, mais conhecida como o Marco Civil da
Internet, que regulamenta o uso da Internet no Brasil, e que atualmente está em analise pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), seu artigo de número 19. Portanto o presente artigo objetiva
a analisar a responsabilidade civil dos provedores de internet, que de acordo com a Lei,
respondem subsidiariamente ao causador direto do dano, somente quando cientes do ilícito civil
ocorrido, e assim não tomaram nenhuma providencia para a remoção do conteúdo ou torná-lo
inacessível.

Essas são algumas das reflexões que esta dissertação vai procurar indicar posições
doutrinárias e jurisprudenciais que apontem para um esclarecimento desses questionamentos.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Breves considerações acerca da evolução da internet e dos provedores de internet

A internet chegou ao Brasil no ano de 1988, com o fito primário da utilização da rede
mundial de computadores somente para fins acadêmicos, ou seja, o intuito principal da vinda
da internet era fomentar a pesquisa nacional, razão pela qual esse novo ambiente virtual foi
nomeado de “Internet Acadêmica” pelos seus usuários. Posteriormente com o crescente uso da
tecnologia e tendo resultados positivos diante da evolução da efetiva troca eletrônica de dados,
o Estado brasileiro designou a empresa Embratel para que o acesso à rede pudesse ser explorado
com um intuito comercialmente, consequentemente foram adquiridos outros pontos de acesso
da tecnologia originária do exterior, de modo que assim fosse possibilitada à comunicação
brasileira estar também interligada com o tráfego de dados internacional.

No decorrer dos anos, a internet evoluiu para o que pode ser vista nos dias atuais, uma
ferramenta de uso indispensável no dia a dia, com a popularização do uso dos smatphones, seu
uso se faz cada vez mais comum, sendo um dispositivo que auxilia todas as áreas de atuação,
seja privada ou estatal, usada em residências, hospitais, tribunais, bancos, empresas de pequeno
e grande porte, dentre muitos outros estabelecimentos, ela pode ser utilizada em qualquer lugar
e por qualquer pessoa.
176

No decorrer da explanação acerca do que é internet, é oportuno falar a respeito dos


provedores de internet. O que seria um provedor de internet? Para que serve? Provedor de
internet seria qualquer pessoa natural ou jurídica que forneça serviços relacionados ao
funcionamento da internet ou por meio dela. (LEONARDI, 2005). Através dessa explanação,
entende-se que para o autor, pode-se afirmar que provedor de internet é um gênero, do qual
ramificam-se as demais categorias.

Em uso, estão os principais tipos de provedores de internet, são eles: Provedor de


backbone; Provedor de Hospedagem; Provedor de acesso ou conexão; provedor de correio
eletrônico; e Provedor de conteúdo.

Para nossa pesquisa, o provedor que se destaca são os Provedores de acesso e conexão,
estes provedores possuem um importante papel no que se chama de cadeia de transporte de
dados eletrônicos, influindo diretamente na possibilidade de rastreamento do ponto de origem
utilizados para propagar os ilícitos cometidos na internet, permitindo a adoção das medidas
legais cabíveis pelas pessoas que se sentirem ofendidas.

Tal provedor é de tamanha importância, pois o usuário, para acessar a rede mundial de
computadores, precisa, necessariamente, ser autorizado por um provedor de acesso, como aduz
(MELO e GUTIERREZ, 1999), ficando assim necessário somente que uma empresa forneça o
acesso à internet a um usuário para ser considerada um provedor de acesso, não restando
necessário oferecer nenhum outro produto. (LEONARDI, 2005).

2.2 A responsabilidade civil a luz do Código Civil vigente

Ao estudar o instituto da responsabilidade civil, entende-se que através dela há uma


ideia primária de reparação social, de resposta estatal para um ato que foi indevidamente
realizado e que consequentemente causou danos que devem ser reparados, tendo um olhar
efetivo do Estado. Responsabilidade é a tradução jurídica de uma regra meramente social
segundo a qual “a vítima de uma ofensa a seus direitos e interesses receberá reparação [dos
danos que sofreu por parte do ofensor” (PEREIRA, 2018).

O termo “responsabilidade” se origina do Latim “respondere”, que direciona a ideia de


garantia de restituição, de segurança ou até de compensação. Diante disso há a confirmação de
que quem violar uma obrigação ou dever jurídico ocasionado por um ato ilícito, ou até mesmo
um ato lícito, tem o dever de reparar, partindo da premissa de que um indivíduo não deve causar
dano a outro, e caso viole, este estará obrigado a reparar. Segundo Cavalieri Filho, a estrutura
177

da dessa responsabilidade se dá da seguinte forma e em torno de dois deveres jurídicos: um


chamado de originário, que estabelece determinada conduta, e um outro, chamado de sucessivo,
que visa reparar o dano, surgido da violação do dever originário (CAVALIERI FILHO, 2020).

Sob o entendimento de Maria Helena Diniz (2006), entende-se que:

Poder-se-á definir a responsabilidade civil como a aplicação de medidas que obriguem


alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato do
próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob
sua guarda (responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal
(responsabilidade objetiva).

De acordo com o artigo 186 do Código Civil vigente, “Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

O conceito de ato ilícito, inclusive seus elementos essenciais de tipificação, aduz, como
exposto acima, que todo aquele que causar dano a outrem estará obrigado a reparar o dano a
este causado, se presentes os elementos classificadores da responsabilidade, que são: a ação e
a omissão; culpa ou dolo do agente, relação de causalidade e o dano sofrido pela vítima.

A Responsabilidade Civil se apresenta, como leciona Maria Helena Diniz (2015).

Como medida que obriga uma pessoa a reparar dano moral ou patrimonial causado a
terceiros em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por quem ele responde, ou
de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal.

Segundo Monteiro (apud GONÇALVES, 2020), o requisito da culpa contido no art. 186
do Código Civil vigente, deve ser considerado em sentido amplo, para abranger e incluir tanto
a culpa stricto sensu, que consiste na violação de um dever que o agente podia conhecer e
observar, segundo o padrão de comportamento médio, e ainda no entendimento do autor, o
dolo, é o pleno conhecimento do mal e perfeita intenção consciente de praticá-lo, ou ao menos
a aceitação do risco de produzi-lo.

A responsabilidade objetiva irá ocorrer mediante a prática de algum ato ilícito ou diante
da violação do direito pertencentes a terceiros e que, para ser comprovada, independerá da
comprovação de culpa ou dolo do agente causador do dano ou da lesão. Assim, o agente que
causou o dano deverá ser responsabilizado independente de culpa. É tido a título de exemplo,
o exposto nos artigos 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor, basta comprovar o prejuízo
causado e a conexão (nexo de causalidade) com os produtos ou serviços prestados para que haja
178

obrigação em reparar o dano ao consumidor, independente de culpa do fornecedor de produtos


ou serviços.

O artigo 927 do Código Civil que estabelece a responsabilização independentemente de


culpa em razão do risco da atividade.

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,
nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Destaca-se acerca da responsabilidade civil, a hipótese legal de responsabilidade


objetiva inserida no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, aduz o fato de que as relações
jurídicas entre os provedores e os usuários geralmente serão relações de consumo. Em outros
termos, o fornecedor de produtos e de serviços respondem independentemente de culpa nos
termos da lei. Partindo desse entendimento, não resta dúvida de que haverá uma relação de
consumo entre os provedores e o usuário destas ferramentas e serviços.

Para externar a responsabilidade por um ato praticado, é indispensável a presença do


nexo causalidade entre o dano e o ato ilícito, ou seja, deve haver obrigatoriamente “uma
interligação entre a ofensa à norma e o prejuízo sofrido, de tal modo que se possa afirmar ter
havido o dano ‘porque’ o agente procedeu contra direito” (PEREIRA, 2018). No nosso
ordenamento jurídico, a aferição desse requisito é embasada na teoria da causa adequada, que
conceitua causa jurídica como o evento que, de todos os fundamentos causais possíveis, direta
e imediatamente causou o dano, em outras palavras, que tinha necessariamente as condições de
produzi-lo (PEREIRA, 2018).

3 A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PROVEDORES ANTES DO ADVENTO DA


LEI 12.965/2014

Anterior a entrada em vigor da Lei 12.965/2014, a jurisprudência brasileira era bastante


inconstante e mutável quando se tratava do tema acerca da responsabilidade civil dos
provedores. Diante dessa incerteza, surgiram três posicionamentos que regiam tais relações
oriundas do assunto, objeto do nosso estudo.

O primeiro posicionamento, se dá através da convicção de que o provedor não responde


de nenhuma forma pelos atos de seus usuários, sendo esses atos independentes, ou seja, de total
responsabilidade do próprio autor da publicação. Tal posicionamento se estabeleceu e
179

encontrou respaldo em decisões jurídicas que identificaram a figura do provedor como mero
intermediário entre o usuário que causou a ofensa e a vítima do dano, não tendo relação com o
ofensor, sendo somente o mero provedor. De modo que, nesses casos não haveria conduta do
provedor na ação ilícita, não estaríamos diante de responsabilidade deste pela conduta de
outrem, restando somente ao provedor apenas colaborar com a vítima para a identificação do
agente causador do dano, conforme leciona Souza. (SOUZA, 2014).

O segundo entendimento, traz a apreciação da responsabilidade objetiva do provedor,


não havendo a necessidade de ponderação da existência do elemento culpa, o que já direcionava
e se fundamentava na tese de risco da atividade desenvolvida, exposta no artigo 927, parágrafo
único do Código Civil, onde se embasa a teoria, ou no de defeito da prestação do serviço em
uma relação de consumo, como se lê no artigo descrito abaixo:

Art. 927, parágrafo único do Código Civil: “Haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade
normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para
os direitos de outrem”.

Sob outro ponto de vista, e trazendo em consideração as situações em que não há


interferência no conteúdo que o usuário coloca na internet, surgiu uma terceira concepção,
corrente esta que defende que a responsabilidade dos provedores diante de postagens ilícitas
somente terá lugar se ocorrer alguma modalidade de culpa.

Ao analisar esse entendimento, existem estudiosos que entendem já haver o nascimento


de uma responsabilidade após o provedor, a partir do momento em que este tenha tomado
ciência do conteúdo lesivo e não ter tomado providências para promover a sua exclusão. Já
outros doutrinadores expõem que o provedor somente poderá ser responsabilizado em caso de
não cumprimento de decisão judicial que determinou a exclusão do material ofensivo da
internet.

Avalia-se que havia uma quantidade massiva de entendimentos dos tribunais julgadores
acerca da responsabilização dos provedores. Cada ideia se sobrepondo as demais,
entendimentos contrários aos anteriormente utilizados, ocasionando uma incerteza de
julgamentos dispersos e dissemelhantes.

Observou-se que, tais entendimentos se faziam bastantes discutíveis e contestáveis,


porém a concepção que considerava que o provedor tinha o dever de fiscalizar, de monitorar e
de filtrar os conteúdos colocados na rede por seus usuários, era considerada a mais viável e
difundida entre as demais. Em vista disso, como o provedor era o responsável por viabilizar
180

tecnicamente a atividade do usuário e, diante desse uso, se beneficia economicamente ao


fornecer os serviços, nada mais justo que também seja considerado o responsável pelo controle
e fiscalização de eventuais abusos e pela garantia dos direitos da personalidade. Ao seguir nessa
trajetória de entendimento, avalia-se que o provedor seria responsável da mesma forma que os
usuários, mas em proporções diferentes, que divulgam informações e imagens ofensivas à
personalidade alheia, se tratando de uma hipótese de responsabilidade objetiva.

Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça, em sua análise, entendeu que não cabe
ao provedor de internet, o exame prévio de todo o conteúdo do material que transita pelo site,
já que o provedor é somente um intermediador, ou seja, apenas disponibiliza as informações
inseridas por terceiros. Desta forma, conforme o egrégio Tribunal, não haveria que se falar em
responsabilidade objetiva do provedor pelo conteúdo ilegal incluído pelo usuário, avaliando
que não se pode obrigar o provedor a exercer um prévio monitoramento das informações
incluídas por terceiros que inviabilizaria a atividade econômica em questão.

Avaliou-se que exercer o monitoramento prévio não se compatibilizava com o serviço


prestado pelo provedor, motivo pelo qual a ausência de tal fiscalização não poderia ser
tida como falha do serviço. Firmou-se entendimento nos tribunais e também no Superior
Tribunal de Justiça, norteando de que a responsabilidade objetiva somente seria aferida se a
atividade desenvolvida apresentasse um risco extraordinário e próprio da conduta típica em
questão, o que não era o caso das atividades realizadas pelos provedores de serviço. (SOUZA,
2014).

A jurisprudência do Tribunal havia se consolidado, ocorrendo a chamada estabilização


jurisprudencial, no sentido de que, a partir do momento em que o provedor tomasse
conhecimento da existência de conteúdo ilegal e abusivo, este, deveria promover a sua imediata
remoção (PINHEIRO, 2013), no caso de desobediência, o provedor poderia ser
responsabilizado pelos danos decorrentes da sua omissão ou morosidade.

Conforme o entendimento do STJ, diante da simples notificação de conteúdo


inadequado apontada por qualquer usuário seria suficiente para a responsabilização do
provedor, como assevera Cintia de Lima. (LIMA, 2015).

Diante disso, o provedor deverá dispor de meios que permitissem a identificação dos
usuários, de forma a coibir qualquer forma de anonimato, sob pena de ser responsabilizado
subjetivamente pelo que se entende por ‘culpa in omittendo’, onde o agente tinha a obrigação
181

de intervir em uma atividade, mas nada faz. Até o advento da Lei 12.965/2014, era está a
posição da jurisprudência brasileira.

4 O MARCO CIVIL DA INTERNET E A RESPONSABILIDADE DOS PROVEDORES


4.1 Dos pressupostos da responsabilidade civil na internet e o teor do artigo 19 da Lei
12.965/2014

Superadas as dúvidas nos conceitos iniciais, o foco da pesquisa volta ao universo virtual,
à Lei nº 12.965, de 23 de abril 2014. Conhecida como o Marco Civil da Internet, esta lei foi
criada com a participação de diversos setores da sociedade “empresas, organizações da
sociedade civil, ativistas e comunidade técnica" (SOUZA e LEMOS, 2016) tendo como escopo
a garantia e preservação dos direitos dos usuários, bem como proteger suas liberdades no âmbito
da internet (SOUZA e LEMOS, 2016). Essa lei não apresenta caráter repressivo, mas sim,
caráter de natureza principiológica com o propósito da aplicabilidade de seus artigos não se
esvaírem com o tempo (SOUZA e LEMOS, 2016).

A Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, é resultado do Projeto de Lei nº 2.126/2011 e


ficou conhecida como “Marco Civil da Internet” desde sua tramitação na Câmara dos
Deputados em razão de servir como referencial, ou seja, um marco inicial para a sociedade civil
em relação à rede mundial de computadores, mais conhecida como “internet”. Concerne
originalmente, de uma lei que estabelece preceitos gerais para o uso e regulamentação da
internet e que objetiva exercer um papel de “Constituição da Internet”, como leciona Tarcísio
Texeira (TEXEIRA, 2020).

Assim, mesmo estando em vigor a poucos anos, a Lei continua causando demasiados
conflitos e debates doutrinários, sobretudo no que tange a responsabilização dos provedores de
internet.

A Lei, faz uma diferenciação entre dois tipos de provedores: i) os Provedores de


Conexão, que tem como exemplo as Operadoras de telefonia, como a Claro, Oi, Tim e; ii) os
Provedores de Aplicações, que se exemplificam pelas mídias sociais como Facebook, Youtube,
Instagram e WhatsApp.

Nesse sentindo explicam os professores Souza e Lemos: (SOUZA e LEMOS, 2016)

o Marco Civil faz uma distinção entre provedores de conexão (os que dão acesso à
rede) e os de aplicações (como pesquisa, hospedagem, redes sociais e etc). Os
primeiros não respondem pelos atos de seus usuários (art. 18) e os segundos apenas
182

se não cumprirem ordem judicial (com exceção dos direitos autorais e de materiais de
"pornografia de vingança”, conforme os artigos 19 e seguintes).

Após essa análise, entende-se que somente o provedor de conexão não será
responsabilizado pelo conteúdo, mesmo que este conteúdo seja disponibilizado por terceiro
através das redes. Segundo entendimento dos professores supracitados, ao provedor de
aplicações de internet, em regra, como foi estabelecido em texto legal, foi-lhe atribuída a
responsabilidade subjetiva, conforme o artigo 19 do Marco Civil da Internet.

Nota-se que, mesmo no âmbito de postagem de conteúdo danoso como os tratados no


Art. 21, o Marco Civil da Internet procura proteger os provedores de uma responsabilização
mais direta, incisiva ou claramente objetiva, objetivando o acautelamento da liberdade de
expressão, apesar de em outros trechos, a lei venha apresentar uma flexibilização maior do que
nos outros casos, quando faz incidir a responsabilidade após simples notificação extrajudicial.

O Art. 19 traz a luz, a preocupação do legislador em assegurar a liberdade de expressão,


bem como impedir a censura quando da responsabilização do provedor de aplicações, conforme
fez constar esse objetivo expressamente no dispositivo legal:

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o


provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente
por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial
específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu
serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como
infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário .

Conforme expresso no artigo 19 do Marco Civil, para o provedor de aplicações de


internet, há uma peculiaridade, este só poderá responsabilizado pelos ilícitos cometidos por
terceiro em sua plataforma a partir do descumprimento de uma decisão judicial, ou seja, a
responsabilização só ocorrerá se o mesmo foi notificado judicialmente, com ordem expressa
para que tal conteúdo seja retirado de sua plataforma. Entende-se que a responsabilização ocorre
somente se houver a negativa do pedido judicial. Esta é a chamada responsabilidade subjetiva,
que é a regra nesse caso em tela, porém existem outras possibilidades de aplicação da
responsabilidade em sua forma objetiva.

Conforme Souza e Lemos, uma exceção a responsabilidade subjetiva advém da Lei de


Direitos Autorais, Lei nº 9.610/98, que traz no seu bojo, a previsão de responsabilização do
provedor que após notificação extrajudicial, não retirar conteúdo gerado por terceiros, este
provedor será responsabilizado objetivamente, ou seja, independente de culpa, conforme o
parágrafo 2º do artigo 19 da Lei do Marco Civil da Internet.
183

§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos


conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de
expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.

Também responderá objetivamente o provedor que não remover, assim que notificado,
mesmo que extrajudicialmente, os vídeos relacionados a conhecida prática de “pornografia de
vingança”, sob pena de ser responsabilizado pelos danos causados à vítima, conforme disposto
no art. 21 da Lei do Marco Civil.

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por
terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade
decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de
vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter
privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu
representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites
técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Sousa e Lemos (SOUZA e LEMOS, 2016), entendem que a responsabilidade objetiva


dos provedores deriva da tese do risco empresarial do empreendimento e no defeito da prestação
do serviço. Partindo dessa premissa que o provedor, ao assumir o risco de seu negócio, seria
responsabilizado por qualquer conteúdo ilícito que possa ser produzido por terceiro,
independente de culpa, pois seria caracterizado defeito ao falhar na fiscalização do que é
postado em sua plataforma.

Conforme Lemos e Waiserg (LEMOS e WAISERG, 2003), um dos impactos discutidos


e minuciosamente avaliado à época foi a demasiada onerosidade que seriam ocasionadas nas
empresas teriam ao decidir atuar neste ramo, já que seriam responsáveis por qualquer dano
causado por terceiro. Já Sousa e Lemos, debatem como resultado da repercussão a criação de
relação de consumo entre o provedor e o usuário e, consequentemente, "seria aplicado o regime
de responsabilização por defeito do serviço prestado", o que na visão dos provedores não era
cabível, já que os mesmos não se veem como fornecedores, já que prestam um serviço que é
gratuito.

5 DOS DEBATES QUANTO A MUDANÇAS AO ATUAL MODELO DE RESOLUÇÃO


DE DEMANDAS

Ao analisar o Art. 19 do Marco Civil da Internet, vê-se a desproteção da vítima quando


se trata de danos ocasionados por conteúdos compartilhados nas redes, é preciso apenas
observar que a opção do legislador foi de implementar um regime de responsabilidade subjetiva
do provedor, que significa dizer, que o provedor apenas vai responder pelos danos causados
quando descumprir ordem judicial de retirada do conteúdo, quando, anteriormente, essa
184

responsabilidade dos provedores de aplicações por conteúdos criados por terceiros parecia
tomar um rumo a responsabilidade objetiva, pois se atrelava a simples notificação extrajudicial.
Os prejuízos causados às vítimas e a violação aos seus direitos fundamentais parecem evidentes,
conforme aduz João Quinelato de Queiroz.

Através das críticas tecidas ao Art. 19 da Lei nº 12.965/14, persistem ainda, brechas para
um debate quanto à sua inconstitucionalidade, não somente pelo excesso de ressalvas,
principalmente pela exigência de que a notificação para a retirada de conteúdo seja feita por
meio de ordem judicial específica, sob a menção de que acaba por proteger de forma exacerbada
os interesses dos provedores do internet, enquanto adormece a ideia de tutela dos direitos dos
usuários, possibilitando a ocorrência de uma ausência de responsabilização. Além disto, o
aguardo pela interrupção do dano após notificação judicial específica é de decorrência
naturalmente lenta, o que prolonga os danos e lesões ocasionados em uma rede em que as
informações se espalham rapidamente. Quando se avalia o contexto, percebe-se que é
preocupante, sobretudo no que tange à violação de direitos fundamentais como a dignidade, a
honra, a privacidade e a imagem de um indivíduo que carrega os danos causados pela
morosidade do Direito, e a rapidez da internet.

Diante do exposto trazido pelo Art. 19 do Marco Civil da Internet, Anderson Schreiber
(SCHREIBER, 2015), aduz que existe a defesa de que o dispositivo é inconstitucional,
considerando-se minuciosamente três aspectos para avaliar a questão: a violação à garantia
constitucional da reparação integral e plena por danos à honra, à privacidade e à imagem,
conforme Art. 5º, X da CF/88; a violação à dignidade da pessoa humana, Art. 1º, III da CF/88,
com foco na prevalência da tutela conferida ao direito patrimonial do autor em detrimento da
tutela da pessoa humana; e a violação ao princípio de livre acesso à justiça, Art. 5º, XXXV da
CF/88, em razão da instituição de regime compulsório de acesso ao judiciário para a retirada de
material ofensivo da rede.

Diante de diversos questionamentos que imergiram em torno do Art. 19 do Marco Civil


da Internet, a constitucionalidade desse artigo se encontra sub judice no Supremo Tribunal
Federal, com repercussão geral. Trata-se da análise do RE n. 1.037.396/SP e do RE n.
1.057.258/RJ, que se direciona ao regime de responsabilidade de provedores de aplicativos ou
de ferramentas de internet por conteúdo gerado pelos usuários e a possibilidade de remoção de
conteúdos que possam ofender direitos oriundos da personalidade, incitar o ódio ou difundir
notícias fraudulentas a partir de notificação extrajudicial.
185

Expõe a respeito o tema 533118 o “dever de empresa hospedeira de sítio na internet, ou


seja, o provedor, fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado
ofensivo, sem intervenção do Judiciário”; e aduz o tema 987119 a “discussão sobre a
constitucionalidade do Art. 19 da Lei n. 12.965/2014 - Marco Civil da Internet que determina
a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a
responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes
sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros” da gestão por temas da
sistemática da repercussão geral.

A despeito do STF obter a possibilidade de desempenhar papel preponderante no


esclarecimento da controvérsia, sendo primordial uma definição sobre a inconstitucionalidade
do Art. 19 do Marco Civil da Internet, no que diz respeito à responsabilização civil dos
provedores por danos causados por terceiros em seus domínios, o que envolve a proteção de
direitos fundamentais de milhões de usuários, até o presente momento, ainda não foi julgado
aos temas de repercussão geral citados. No entanto, muito tempo decorreu desde que o tema
987 teve reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada em
março de 2018 e o tema 533, antes mesmo da vigência do Marco Civil da Internet, englobando
a questão da responsabilidade dos provedores, desde 2012, em Agravo em Recurso
Extraordinário n. 660.861/MG substituído pelo RE n. 1.057.258/MG, de relatoria do Ministro
Luiz Fux.

Quanto à temática abordada, sobrepõe-se a posição de João Quinelato de Queiroz, que


defende a inconstitucionalidade do Art. 19 do Marco Civil da Internet, sendo de grande potência
as alegações utilizadas de que esse artigo trespassa os princípios da reparação integral,
transgredindo também o princípio do acesso à justiça e da vedação ao retrocesso. O estudioso
Quinelato de Queiroz, ao aplicar a teoria geral da responsabilidade civil, aponta mecanismos
técnicos hábeis que fundamentam a responsabilização em sua variante solidária do provedor
pelos danos gerados pelo conteúdo criado por terceiros, com destaque para as condições que
permitem identificar se esse provedor, que ao disseminar o conteúdo, também colaborou do
dano na qualidade de coautor do ato lesivo, principalmente no tocante aos casos que envolvem
o recebimento de notificação extrajudicial da pessoa lesada (QUINELATO DE QUEIROZ,
2019). O autor, em suas análises sobre o tema, objeto do estudo, assevera demonstrar que o já
citado dispositivo normativo não traz qualquer benefício ou proteção para os usuários da
internet e pessoas que possam ser afetadas por conteúdo lesivo dos seus direitos fundamentais.
186

Outrossim, pondera que o Art. 19 simboliza um verdadeiro retrocesso quando em confrontação


aos caminhos que vinham sendo trilhados pela jurisprudência brasileira na matéria.

CONCLUSÃO

Este estudo sobre a evolução da responsabilidade civil buscou compreender a trajetória


de como esse instituto tem sido aplicado atualmente aos provedores. Averiguou-se os desafios
advindos dessa responsabilização, que tem como decorrência o embate de princípios, as
divergências doutrinárias e jurisprudenciais que impactam pontualmente na ação de reparação
de danos causados no meio virtual e visando a proteção de direitos fundamentais.

No Brasil, o Marco Civil da Internet estabeleceu um regime de responsabilização que


privilegia a omissão dos provedores, atitude que não é comumente vista em outros países,
diferentemente do que ocorre no nosso país, não se faz necessário aguardar a ordem judicial e
seu descumprimento para que haja a responsabilidade civil do provedor.

Esse aspecto, se faz, um dos pontos mais problemáticos da Lei 12.965/2014. Os


provedores deveriam, em uma primeira análise mais concreta do tema, ser responsabilizados a
partir do exato momento em que tomam ciência da existência de conteúdo evidentemente ilícito
e abusivo, principalmente quando esse conteúdo tem a forma de imagens, e diante disso, não
tomam as providências para a sua remoção. De outra forma, mesmo que se mantenha um regime
de responsabilização privilegiada, possivelmente as situações que se enquadrem na exceção,
poderiam ser ampliadas, de forma que abrangessem a tutela de direitos da personalidade, no
que incluiria o direito à imagem.

Diante dos principais pontos controvertidos direcionados no estudo, foi o da


responsabilidade subjetiva condicionada à notificação judicial, essa maneira de
responsabilização torna o processo de exclusão de conteúdo danoso da internet, que por si só é
um meio que permite uma propagação frenética e em tempo real das informações, mais moroso,
o que intensifica e propaga a extensão das lesões ocasionadas aos direitos e garantias dos
ofendidos.

O Supremo Tribunal Federal, que através do julgamento, poderia aclarar esses pontos
controvertidos com a análise da inconstitucionalidade do Art. 19 do Marco Civil da Internet,
prolonga por anos o julgamento da questão, ficando cada vez mais distante o aclaramento da
demanda, o que definiria os rumos da responsabilização dos provedores. É necessário promover
formas de equilibrar a liberdade de expressão com os demais direitos fundamentais, sempre
187

visando evitar ameaças de lesões a direitos e garantias fundamentais e com atenção aos
mandamentos constitucionais.

De qualquer modo, conclui-se que ainda nesse ponto, o Marco Civil da Internet expresse
uma sensação de não cumprimento de finalidade, deixando de proteger adequadamente os
direitos da personalidade, compensatoriamente, é evidente que há maior preocupação com o
direito à informação e com a liberdade de expressão. Diante do exposto, resta-nos observar e
aguardar a solução de casos concretos que estão à espera de julgamento pelo Judiciário para
podermos avaliar se as alterações realizadas serão, na prática, positivas ou negativas em uma
visão ampla do tema abordado.

REFERÊNCIAS

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Saraiva, 2006.

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LIMA DE SOUSA, Evaristiane. Responsabilidade civil dos provedores de aplicações e o


procedimento prático para a responsabilização de geradores de conteúdo ilícito na internet no
Brasil. Caderno de Pós-graduação em Direito. Responsabilidade civil dos provedores de
internet. Brasília, 2021. p. 153-174.

LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A responsabilidade civil dos provedores de aplicação de internet
por conteúdo gerado por terceiro antes e depois do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14).
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 110, p. 157, jan./dez. 2015.

ZANINI, Leonardo Estevam de Assis. Responsabilidade civil dos provedores de internet e a


proteção da imagem.

NETO, Leonardo Lima Mota. Responsabilidade civil dos provedores de internet diante da
ameaça de lesão a direitos fundamentais. 2022. 126. Dissertação (mestrado em Direito) –
Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Direito de Alagoas. Programa de Pós-
Graduação em Direito. Maceió, 2022.
189

A RESPONSABILIDADE CIVIL DAS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS


EM GOLPES SOFRIDOS POR CLIENTES

Pavlova Perizzollo Leonardelli 1


Renato de Almeida2

RESUMO

O tema apresentado aborda a responsabilidade civil das instituições bancárias em relação aos
golpes sofridos por seus clientes, os excludentes de responsabilidade, bem como quem são os
responsáveis pelos danos patrimoniais e extrapatrimoniais advindos desta situação. Da mesma
forma, demonstra a aplicação da responsabilidade civil objetiva e a incidência do Código de
Defesa do Consumidor nessa relação. A abordagem dos conceitos é realizada através da revisão
bibliográfica e a análise dos dados é baseada em acórdãos advindos do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, tanto das Câmaras Cíveis quanto das Turmas Recursais Cíveis. As decisões
analisadas abordam os golpes mais comuns, tais como o golpe do motoboy, WhatsApp, troca
do cartão do cliente, falso leilão, PIX e falsa central de atendimento e qual o entendimento dos
tribunais acerca da responsabilidade das instituições bancárias diante desses golpes.

Palavras-chave: Instituições bancárias; Responsabilidade Civil; Golpes.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho visa analisar a responsabilidade civil bancária diante dos golpes que os
clientes têm sofrido por terceiros. A análise consiste em conceituar a responsabilidade civil das
entidades bancárias, qual a relação entre clientes e bancos e a incidência do Código de Defesa
do Consumidor, bem como qual a responsabilidade envolvida nos diversos tipos de golpes
aplicados por terceiros.

Nota-se que o avanço tecnológico é inegável e tem trazido muitas facilidades e conforto
para os clientes com o internet banking, o mobile banking e os meios de pagamentos como
cartão de crédito, débito e PIX. Tais facilidades proporcionam a diminuição dos custos
operacionais das instituições bancárias e aumentam a sua lucratividade, diminuem a circulação
de numerário, contudo, também trazem o ônus operacional dos danos causados por terceiros.

1
Mestra em Direito (UCS). Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho (UNINTER). Graduada em Direito
e Administração de Empresas (UCS). Advogada e Professora do Curso de Direito (UNIFTEC). Inscrita na
OAB/RS sob nº 80.539. E-mail: pavlova@ppladvocacia.com.br
2
Pós-graduado em Gestão de Pessoas (UNISUL). Graduado em Processos Gerenciais (UNIVERSIDADE
CASTELO BRANCO). Graduando em Direito (UNIFTEC). E-mail: renato.almeida.falconi@gmail.com
190

Mesmo com a tecnologia trazendo facilidades através dos meios de pagamento, não
havendo movimentação de dinheiro em espécie, existem outros problemas, tais como os crimes
cibernéticos, golpes e fraudes, que acabam por trazer prejuízos tanto para os clientes, quanto
para as instituições bancárias.

Dentro desta ótica, a doutrina e a jurisprudência abordam a responsabilidade civil


bancária e seus excludentes. Ao abordar tais conceitos, há que se verificar quais deles estão
sendo mais aplicados pelos Juízes e Desembargadores. Outrossim, analisar quais das teorias
está mais adequada à realidade dos golpes praticados e sobre quem recai a responsabilidade
civil de reparar pelo dano patrimonial e extrapatrimonial que o cliente venha a sofrer.

2 A RESPONSABILIDADE CIVIL

Para que se possa aferir se o cliente do banco tem direito à indenização quando da
ocorrência de golpes bancários, necessário que se verifique a existência de responsabilidade
civil.

Conforme afirma Cavalieri Filho (2021), a violação de um dever jurídico é o ilícito que
acarreta um novo dever jurídico, ou seja: a violação de um dever jurídico pode gerar um dano,
seja moral, seja estético ou material, criando um direito de reparação do dano causado.

Depreende-se desse entendimento que a obrigação é considerada como dever jurídico


originário ou primário e a responsabilidade, por sua vez, como o dever jurídico sucessivo,
advindo da violação do dever jurídico originário. Nessa senda, menciona-se o que dispõe o Art.
389, do Código Civil Brasileiro, quando refere: “aquele que não cumprir com a obrigação
responde por [...]”, denotando que a “obrigação” é principal e o termo “responde” se refere à
responsabilidade, ou seja, a obrigação secundária.

No que diz respeito à responsabilidade objetiva, refere-se que para que se configure o
dever de indenizar com base na responsabilidade objetiva, basta que se demonstre o dano e o
nexo de causalidade, sendo esse último a relação entre o dano e o fato. A culpa somente deverá
ser aferida quando houver excludente de responsabilidade, como é o caso de ocorrência de culpa
exclusiva da vítima ou concorrente, bem como culpa exclusiva de terceiros.

Importante ressaltar que a responsabilidade pode se dar por culpa de outrem, quando de
forma omissiva este deixar de cumprir com seu dever de guarda, vigilância e custódia. Tal
responsabilidade pode ser atribuída às instituições bancárias em relação aos golpes sofridos
191

pelos clientes nos ambientes da instituição bancária, por estarem sob a proteção do dever de
guarda e vigilância desta.

Pereira (2022) apresenta o fato de terceiro como responsabilidade pelo evento culposo,
ou seja, o terceiro será exclusivamente culpado pelo fato, atraindo para si a responsabilidade e
por consequência afastando do agente a responsabilidade e excluindo a responsabilidade
desse. Assim, quando for provado qualquer pessoa além do agente ou da vítima der causa ao
dano, será considerado fato de terceiro, excluindo a responsabilidade civil.

Além desta forma de exclusão, Pereira (2022) aduz sobre a culpa exclusiva da vítima,
caso em que exclui qualquer responsabilidade do causador do dano, tendo a vítima que arcar
com o dano sofrido. Se a vítima contribuir para o resultado danoso e ficar provada a sua culpa
exclusiva, inexiste o dever de indenizar, rompendo-se o nexo causal do agente e atraindo para
a vítima a responsabilidade civil.

Ademais, para a análise da responsabilização civil das instituições bancárias, referem-


se o caso fortuito interno e externo, bem como a culpa concorrente.

O caso fortuito externo é entendido por Cavalieri Filho (2021) como um fato que não
guarda causalidade com a atividade do fornecedor do produto ou serviço, absolutamente
estranho a esses, e nem poderia ser examinada como defeito do serviço. Pode ser utilizado e
analisado como excludente de responsabilidade civil nos serviços prestados pelas instituições
bancárias.

O caso fortuito interno, por sua vez, é fato imprevisível, mas que se liga à organização
da empresa, integra a atividade desenvolvida pelo fornecedor do serviço, e porquanto não pode
ser usado como excludente de responsabilidade civil nos serviços prestados pelas instituições
bancárias, critério este utilizado pelos magistrados para fundamentar suas decisões e sentenças.
A Súmula nº 479 do Superior Tribunal de Justiça é clara quanto ao caso fortuito interno nas
fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito bancário.

No que diz respeito à culpa concorrente, Pereira (2022) afirma que esta atenua a
responsabilidade, atraindo para a vítima parte dessa responsabilidade. Assim, pode-se entender
que, se a vítima contribui para o resultado, é de se imputar a ela parte da responsabilidade,
compensando as perdas e danos, haja visto que não seria justo o agente arcar com todo o
prejuízo da vítima.
192

Outrossim, para que se configure o dever de indenizar, imprescindível a ocorrência do


dano ao bem jurídico e para que haja a reparação deste, seja material ou extrapatrimonial, é
imperativa que haja a prova real do dano. Todavia, quanto ao dano extrapatrimonial, se a ofensa
for grave e de repercussão, por si só a ofensa se basta para uma indenização pecuniária,
configurando o dano moral “in re ipsa”.

2.1 A Responsabilidade Civil das Instituições Bancárias

Nesta atividade tão importante que as instituições bancárias têm de gestão dos meios de
pagamento, disponibilizar facilidades tecnológicas a fim de acompanhar a modernização dos
serviços, custodiar os recursos financeiros dos clientes e disponibilizá-los de forma segura com
a prestação de serviços diversos, também estão incluídas as responsabilidades que tais
instituições têm para com seus clientes. Vale ressaltar que Para Abrão (2019, p. 44) “Banco é:
a) uma organização empresária; b) que se utiliza de recursos monetários próprios, ou de
terceiros; c) na atividade creditícia (toma e dá emprestado)”.
Com as modernidades tecnológicas, smartphones, aplicativos bancários para efetuar
transações financeiras, cartão de crédito e de débito, transferências bancárias, TED, PIX,
WhatsApp, Telegram, sites fraudulentos, phishing3, entre tantas outras tecnologias existentes e
que estão por vir, como aplicar o direito nos possíveis danos que possam advir destas
tecnologias?

Pelo olhar de Rosenvald et al. (2019), o Brasil é conhecido internacionalmente por ter
um sistema bancário com tecnologia bastante avançada, sendo conveniente tanto para os
clientes que utilizam os meios digitais, quanto para as próprias instituições bancárias que
conseguem minimizar custos e otimizar os lucros.

Com o advento da Lei nº 8.078/90, denominada Código de Defesa do Consumidor, as


instituições financeiras foram consideradas fornecedoras de serviços, conforme disciplina o
Art. 3º, § 2º: “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, [...]”. Nesse
sentido, Cavalieri Filho (2022) afirma que o Código de Defesa do Consumidor incluiu
expressamente as atividades bancárias no conceito de serviço e estas respondem objetivamente
pelas falhas no serviço prestado. É justamente nesse sentido a norma insculpida no Art. 14 do
Código de Defesa do Consumidor, quando refere que:

3
Técnica de engenharia social usada na internet para obter informações.
193

O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela


reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos
serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição
e riscos.

Nesse cenário, existe uma relação de consumo estabelecida no Código de Defesa do


Consumidor, reafirmada pelo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado
na Súmula nº 297, bem como do Superior Tribunal Federal, conforme ADI nº 2.591.

Em relação à jurisprudência pátria, o Superior Tribunal de Justiça se pronunciou quanto


à responsabilidade civil objetiva dos bancos, que respondem pelos danos causados aos
consumidores neste ambiente digital. A prova disso é a Súmula nº 479 desta corte, a qual
demonstra que as instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos gerados por
fortuito interno relativo a fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações
bancárias. Tendo como pressuposto que a fraude foi cometida contra o banco, não contra o
correntista, e que o sistema e o dinheiro sacado também são de propriedade ou domínio da
instituição bancária, ou está sob a custódia deste, caberia à instituição arcar com o defeito.
Todavia, quando o correntista fornece o cartão e a senha para terceiro, configura-se culpa
exclusiva da vítima, não havendo a aplicação da mencionada súmula.

Pelo entendimento de Tartuce (2022), no que diz respeito à responsabilidade dos bancos
em razão da súmula supracitada, pode-se afirmar que os bancos respondem pelas fraudes
praticadas por terceiros em casos de clonagem de cartão, clonagem da conta do cliente e ilícitos
praticados pela internet que podem gerar dano. Todavia, a Corte Superior não reconhece casos
de golpes ou fraudes envolvendo a apresentação do cartão físico original e a senha pessoal do
cliente.

Diante de numerosos golpes bancários envolvendo crimes de estelionato, crimes


cibernéticos e crimes comuns mediante fraude junto aos clientes das instituições bancárias,
aliados ao número de ações contenciosas existentes, é mister identificar os principais golpes
bancários. Ainda neste contexto, é importante verificar quais as variáveis e circunstâncias que
ensejam a responsabilidade civil das instituições bancárias, culpa concorrente das vítimas,
responsabilidade exclusiva das vítimas ou fato exclusivo de terceiro.

Assim, as instituições bancárias respondem independente de culpa, não sendo


necessário o ônus da prova, somente restando a estas provarem a existência de culpa exclusiva
da vítima ou concorrente, bem como a culpa exclusiva de terceiros como excludentes da sua
responsabilidade.
194

Em análise à Lei nº 12.965/2014, que é considerada como o marco legal da internet, em


seus artigos, 2º, inciso V e 7º, inciso XIII, fica claro que o Código de Defesa do Consumidor é
considerado o diploma legal para dirimir conflitos relacionados às relações de consumo do
comércio eletrônico, as quais utilizam-se deste meio digital, incluindo-se aqui o internet-
banking e mobile-banking.

Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à


liberdade de expressão, bem como:
V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
Art. 7º O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são
assegurados os seguintes direitos:
XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de
consumo realizadas na internet.

Diante da doutrina e da jurisprudência dominante, as relações dos bancos com seus


clientes são consideradas consumeristas, atraindo o Código de Defesa do Consumidor para
dirimir eventuais crises de relacionamento. Outrossim, tal diploma legal estabelece a
responsabilidade objetiva das instituições bancárias, respondendo pelo defeito do serviço e
absorvendo as teorias do risco.

3 OS GOLPES APLICADOS AOS CLIENTES DAS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS

Atualmente, se está diante de tantos avanços tecnológicos em relação aos serviços


bancários, como as mídias sociais, tecnologias de aplicativos de comunicação online tais como:
WhatsApp, Telegram, Messenger do Facebook, Facebook, Instagram, Twitter, home-banking,
office-banking, Apps bancários, PIX, TED (transferência eletrônica disponível), transferências
bancárias entre contas do mesmo banco, pagamento por boletos bancários, cartão de crédito e
débito, dentre outros.

Os avanços tecnológicos trazem facilidades para a movimentação de recursos


financeiros e para a comunicação, tanto para os clientes e usuários, como para golpistas e
estelionatários, os quais podem manter-se anônimos sem contato direto com a vítima, tornando
difícil a identificação destes. Em razão disso, importante mencionar pesquisa efetuada pela
revista Radar, editada pela FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos), que consiste em
uma revista digital que faz levantamento de dados em conjunto com o IPESP (Instituto de
Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas).
195

Diante dos dados da revista Radar FEBRABAN, 30% da população entrevistada já


sofreu tentativa de golpes bancários ou caiu em golpes bancários. Nesse contexto, os golpes
mais aplicados foram o da clonagem de cartão de crédito ou troca de cartão, na faixa de 48%;
seguido pelo golpe do WhatsApp, com 30% no país. Em terceiro, figura o golpe da falsa central
telefônica, com 24% das ocorrências; em quarto lugar o golpe do falso leilão, com 9% e em
quinto e sexto lugares encontram-se os saques indevidos e outros golpes, com 4% e 3%,
respectivamente.

Percebe-se que alguns golpes não foram citados, tais como o golpe do motoboy, o golpe
do falso boleto e do link falso. Esses golpes ainda estão sendo aplicados com variações e
aperfeiçoamentos, inclusive devido às novas tecnologias.

4 ANÁLISE DOS JULGADOS ADVINDOS DAS CÂMARAS E DAS TURMAS


RECURSAIS CÍVEIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

Analisando os acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nota-se


nitidamente que existem divergências quanto ao golpe do motoboy, sendo que os julgados, por
vezes, são em desfavor das vítimas. Tal fato ocorre pelo fato de que os golpes utilizam a senha
pessoal e os cartões da vítima, comprovando que além de concorrer para o golpe, esse aconteceu
à revelia da instituição financeira; em outras situações, podem os julgadores entender que houve
falha na prestação do serviço.
Importante frisar que os pedidos de reparação de dano patrimonial e extrapatrimonial, a
depender do caso concreto, podem gerar decisões favoráveis à vítima, a favor do réu ou até
mesmo dividir a responsabilidade de ambos. Em alguns julgados o dano material é
completamente excluído ou dividido, por entender que houve responsabilidade concorrente e
excluído o dano moral. Por outro lado, em outros o dano material e o dano moral são concedidos
em virtude da responsabilidade civil da instituição financeira.
O que está estampado nos julgados é que a instituição financeira somente será
responsabilizada se após a comunicação da ocorrência não efetuar os devidos procedimentos
de bloqueio do cartão e da conta corrente para estancar os prejuízos advindos do golpe. Se assim
não o fizer, a instituição financeira acaba por ser condenada a indenizar a vítima. Depreende-
se do julgado a seguir, proferido pela Vigésima Quarta Câmara Cível do Excelso TJRS, que a
comunicação à instituição bancária ocorreu posteriormente à ocorrência do fato, afastando o
dever de indenizar:
196

APELAÇÕES CÍVEIS. CONTRATOS DE CARTÃO DE CRÉDITO. AÇÃO


DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C/C REPETIÇÃO DE
INDÉBITO E INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. “GOLPE DO
MOTOBOY”. COMPRAS REALIZADAS COM CARTÕES DOTADOS DE CHIP
E SENHA NUMÉRICA FORNECIDO A TERCEIROS. COMUNICAÇÃO
POSTERIOR DO FATO À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. INEXISTÊNCIA DE
FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO EM RELAÇÃO AO VALOR
UTILIZADO DENTRO DO LIMITE DE CRÉDITO DISPONÍVEL NA DATA DO
FATO. INEXIGIBILIDADE DO VALOR EXCEDENTE. DANO MORAL.
INOCORRÊNCIA. APELAÇÃO DA PARTE AUTORA DESPROVIDA E APELO
DA PARTE RÉ PARCIALMENTE PROVIDA, REJEITADA A PRELIMINAR.
UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº 50365126820198210001, Vigésima Quarta Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cairo Roberto Rodrigues Madruga, Julgado
em: 29-03-2023)

Por outro lado, em outro julgado que aborda o mesmo tipo de golpe, as provas não são
contundentes quanto à falha na prestação do serviço, mas desconstituem a culpa exclusiva da
vítima e declaram a culpa concorrente, mantendo a responsabilidade civil da instituição quanto
ao dano material e excluindo o dano moral. Observa-se tal situação na ementa da decisão
advinda da Vigésima Terceira Câmara Cível do TJRS:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÍVIDA COM PEDIDO DE
RESTITUIÇÃO. "GOLPE DO MOTOBOY". CULPA EXCLUSIVA DA
VÍTIMA NÃO CARACTERIZADA.FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO
FORNECIDO PELO BANCO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO
FORNECEDOR DO SERVIÇO. OBRIGAÇÃO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA
DE GARANTIR SEGURANÇA NO TRATAMENTO DOS DADOS DOS SEUS
CLIENTES/CONSUMIDORES. ATIVIDADES BANCÁRIAS REALIZADAS
PELOS ESTELIONATÁRIOS NAS CONTAS DOS APELANTES QUE
DESTOAM DAQUELAS USUALMENTE PRATICADAS PELOS
CONSUMIDORES. DANO MATERIAL CONFIGURADO. PRECEDENTES DO
TRIBUNAL. Caso dos autos em que configurada a culpa concorrente das vítimas, o
que não elide a responsabilidade objetiva do fornecedor do serviço, conforme
preceitua o art. 14, § 3º, do CDC. APELAÇÃO PROVIDA (Apelação Cível, Nº
50012861220208210051, Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Fernando Antônio Jardim Porto, Julgado em: 20-04-2023) (grifo nosso).

Analisando os casos dos golpes do falso leilão, a vítima, por livre iniciativa, acaba
comprando algum objeto móvel em site de leilão virtual e deposita voluntariamente o valor
exigido pelo golpista em alguma conta bancária aberta em nome deste.
A princípio, o banco emissor não tem responsabilidade pelo golpe, sendo tão somente
custodiante do dinheiro depositado e com o dever de disponibilizar para o cliente os meios de
pagamento do valor solicitado.
Em análise ao voto do relator e às ementas dos acórdãos a seguir colacionados, conclui-
se que a instituição financeira que recebe o depósito em nome do estelionatário pode ser
acionada judicialmente como parte legítima da demanda, atribuindo-lhe a essa a
197

responsabilidade objetiva pela falha na prestação do serviço. A instituição financeira pode ter
aberto uma conta corrente com documentos falsos e liberado os serviços bancários.

APELAÇÃO E RECURSO ADESIVO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. GOLPE DO


LEILÃO VIRTUAL FALSO. CASO FORTUITO INTERNO. DANOS
FINANCEIROS PRATICADOS POR ESTELIONATÁRIO COM
INTERMEDIAÇÃO DO RÉU. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
VOLTADO À SEGURANÇA DAS TRANSAÇÕES FINANCEIRAS EM
COMPRA E VENDA PELA INTERNET. RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL DA
PRESTADORA DO SERVIÇO COM RESTITUIÇÃO DA QUANTIA PAGA PELO
CONSUMIDOR. DANOS MORAIS NÃO VERIFICADOS. RECURSOS NÃO
PROVIDOS. (Apelação Cível, Nº 50005467120218210034, Décima Sexta Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Vivian Cristina Angonese Spengler,
Julgado em: 14-07-2022) (grifo nosso).

RECURSO INOMINADO. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO


REPARATÓRIA. GOLPE DO FALSO LEILÃO. SUPOSTA ARREMATAÇÃO DE
VEÍCULO. PAGAMENTO MEDIANTE TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA.
LEGITIMIDADE PASSIVA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. APLICAÇÃO
DA TEORIA DA ASSERÇÃO. AUSENTE LITISCONSÓRCIO ATIVO
NECESSÁRIO. CONTA CONJUNTA. COTITULARES. INTERESSE DE AGIR
INDIVIDUAL OU EM CONJUNTO. FRAUDE PERPETRADA. CULPA
EXCLUSIVA DE TERCEIRO. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 479 DO
STJ. FORTUITO EXTERNO. EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL
DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. ART. 14, §3º, II, DO CDC. SENTENÇA
REFORMADA. AFASTARAM AS PRELIMINARES E, NO MÉRITO, DERAM
PROVIMENTO AO RECURSO.(Recurso Cível, Nº 71010171726, Segunda Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Elaine Maria Canto da Fonseca, Julgado
em: 27-10-2021) (grifo nosso).

No que diz respeito ao golpe de WhatsApp, analisa-se ementa de recentíssimo acórdão


julgado pela Nona Câmara Cível do egrégio TJRS, a seguir colacionado.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR


DANO MORAL E MATERIAL. GOLPE DO WHATSAPP. TRANSFERÊNCIA
REALIZADA PARA CONTA ABERTA JUNTO AO BANCO RÉU. CULPA
CONCORRENTE. RESTITUIÇÃO DE METADE DO VALOR TRANSFERIDO.
DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. GOLPE DO WHATSAPP. QUANDO
TANTAS PESSOAS, DOS MAIS DIVERSOS PERFIS, SÃO VÍTIMAS DE UM
MESMO TIPO DE CONDUTA ARDILOSA, COM A UTILIZAÇÃO DE UM
MESMO MEIO, QUASE NUNCA ENVOLVENDO BENEFÍCIO PRÓPRIO, MAS
SIM AJUDAR ALGUM CONHECIDO PELO QUAL O FALSÁRIO SE FAZ
PASSAR, O MUNDO JURÍDICO DEVE TER ALGUM TIPO DE OBSERVAÇÃO
DIFERENCIADA, POIS RESTA EVIDENTE QUE AS PRÁTICAS BANCÁRIAS,
SE VALENDO DE APLICATIVOS E DO MEIO DIGITAL, ESTÃO SE
MOSTRANDO VULNERÁVEIS E FACILITANDO NÃO SÓ A VIDA DOS
USUÁRIOS, MAS PRINCIPALMENTE A DE CRIMINOSOS, QUE SE VALEM
DA FALTA DE SEGURANÇA PARA PRATICAR DELITOS EM SÉRIE. HÁ
UMA CADEIA DE CONSUMO ENVOLVIDA NA PERPETRAÇÃO DO ILÍCITO
E, COMO TAL, PODE O CONSUMIDOR BUSCAR REPARAÇÃO PELO
PREJUÍZO TANTO JUNTO AO BANCO, COMO CONTRA O WHATSAPP OU
CONTRA AMBOS, FICANDO, É CLARO, SEMPRE A POSSIBILIDADE DE QUE
ESSAS EMPRESAS BUSQUEM ENTRE SI A DEVIDA REPARAÇÃO POR
REGRESSO. CULPA CONCORRENTE. 1. AS TRANSAÇÕES BANCÁRIAS,
NA ATUALIDADE, MARCADAS PELA FACILIDADE NA CONTRATAÇÃO
198

E INSTANTANEIDADE NA EXECUÇÃO, ESTÃO SE MOSTRANDO UM


CAMPO FÉRTIL E PROMISSOR PARA GOLPES DE TODA ORDEM.
ASSIM, MESMO COMPROVADO QUE INEXISTAM MOTIVOS PARA
SUSPEITAR DA IRREGULARIDADE DA ABERTURA DA CONTA
DESTINO DA TRANSFERÊNCIA, CABIA AO BANCO RÉU ADOTAR
ESTRATÉGIAS E METODOLOGIAS PARA A VERIFICAÇÃO DE
TRANSAÇÕES SUSPEITAS. 2. RECONHECIDA A COLABORAÇÃO DO
AUTOR NO DESLINDE DO GOLPE, EIS QUE NÃO SE CERTIFICOU DA
VERACIDADE E REGULARIDADE DOS FATOS ANTES DE EFETUAR
TRANSFERÊNCIA DE QUANTIA SIGNIFICATIVA DE DINHEIRO PARA
CONTA DE PESSOA DESCONHECIDA. RESTITUIÇÃO. EVIDENCIADA A
CULPA CONCORRENTE ENTRE O BANCO RÉU E O AUTOR, CABE À
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA ARCAR COM A DEVOLUÇÃO DE METADE DO
VALOR DEPOSITADO PELA VÍTIMA NA CONTA DO FALSÁRIO. DANOS
MORAIS. DEVER DE INDENIZAR NÃO CONFIGURADO, UMA VEZ QUE,
EMBORA DE TRATE DE SITUAÇÃO LAMENTÁVEL, O AUTOR
CONCORREU PARA O PREJUÍZO SUPORTADO, NÃO PODENDO SER
PREMIADO POR SUA FALTA DE ZELO AO NÃO SE CERTIFICAR DA
VERACIDADE DOS FATOS ANTES DE EFETUAR A TRANSFERÊNCIA.
APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível, Nº
51188515020208210001, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Carlos Eduardo Richinitti, Julgado em: 29-03-2023) (grifo nosso).

Nas palavras do desembargador e relator Carlos Eduardo Richinitti, nota-se um tom de


preocupação com o descaso das instituições financeiras no desdobramento de casos fortuitos
externos e da comodidade dessas instituições diante dos golpes, que envolvem contas abertas
de forma indiscriminada, bem como a transferência de toda a responsabilidade para a vítima do
golpe.

O desembargador critica a ação das instituições financeiras e questiona a postura destas


diante da abertura de contas por estelionatários, mesmo que com documentos autênticos de
terceiros. Da mesma forma, critica a inércia do próprio judiciário quanto a essas situações
fáticas.

Ainda, o desembargador clama pela mudança de paradigma no referido julgado. Nas


frases do desembargador, ele indica a lucratividade obtida pelas instituições financeiras pela
facilidade na abertura de contas. Declara que são necessárias duas contas para a
perfectibilização do golpe e a facilidade dos estelionatários na abertura de contas digitais
aumenta o volume de golpes e prejuízos. Também refere a dificuldade de identificação dos
dados da conta recebedora, coberta pelo sigilo bancário.

Aduz ele que, imputar a responsabilidade às instituições financeiras é uma forma de


pressionar essas instituições a adotar medidas mais rigorosas na validação dos documentos, a
fim de garantir fidedignidade e segurança das informações prestadas na abertura de contas
correntes e assim dificultar a ação dos estelionatários, freando de algum modo a ascensão dos
golpes.
199

Nessa seara, outros julgadores encaram a situação fática como culpa exclusiva da
vítima, excluindo a responsabilidade civil da instituição financeira, como infere-se do
entendimento do desembargador relator Ricardo Pippi Schmidt, da Vigésima Quinta Câmara
Cível do TJRS, no julgado a seguir colacionado.

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE


INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. GOLPE DO
"WHATSAPP". FRAUDE. TRANSFERÊNCIA DE VALORES, DE FORMA
VOLUNTÁRIA, POR PARTE DOS AUTORES. GOLPE PERPETRADO POR
TERCEIRO. FALTA DE CAUTELA DO CONSUMIDOR, QUE AFASTA A
RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR DO SERVIÇO. APLICAÇÃO DO
ART. 14, §3º, II, DO CDC. INOCORRÊNCIA DE FALHA NA PRESTAÇÃO DO
SERVIÇO BANCÁRIO. SENTENÇA CONFIRMADA. AUTORES QUE,
ACREDITANDO ESTAREM EM CONTATO COM SEU FILHO, POR MEIO DO
APLICATIVO WHATSAPP, EFETUARAM DUAS TRANSFERÊNCIAS
BANCÁRIAS, VIA TED, PARA CONTAS DE PESSOAS ESTRANHAS.
SEGUNDA TRANSFERÊNCIA REALIZADA TRES HORAS APÓS A
PRIMEIRA. INEXISTÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS DEMANDADOS
PELOS DANOS DECORRENTES DOS FATOS DESCRITOS NA INICIAL,
AINDA QUE ANALISADOS SOB A LUZ DA LEGISLAÇÃO CONSUMERISTA.
HIPÓTESE EM QUE CARACTERIZADA CULPA EXCLUSIVA DO
CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE DA SÚMULA 479 DO STJ AO CASO.
INCIDÊNCIA DO DISPOSTO NO ART. 14, §3º, II, DO CDC. EXCLUDENTE DE
RESPONSABILIDADE DAS APELADAS RECONHECIDA. RECURSO
DESPROVIDO. UNÂNIME.
[...] É fato que, nos termos da Súmula 479/STJ 1, as instituições financeiras são
responsáveis por reparar os “danos gerados por fortuito interno relativo a
fraudes e delitos praticados por terceiros no âmbito de operações bancárias”.
Todavia, tal responsabilidade objetiva da Instituição financeira diz respeito a
fortuito interno relacionado com à atividade bancária, como nos casos de
extravio de cartão remetido pelo banco por correio ao cliente, por exemplo, caso
que o Banco possui sim responsabilidade no momento que envia o cartão.[...] Voto
do Desembargador Relator. (Apelação Cível, Nº 50019636620218210064, Vigésima
Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Pippi Schmidt,
Julgado em: 28-03-2023) (grifo nosso).

Em outro julgado, prolatado pela Nona Câmara Cível do TJRS, há o entendimento de


que se configura culpa concorrente da vítima, imputando a responsabilidade em parte para a
vítima e em parte para o banco réu, que recebeu os valores provenientes do golpe, afastando o
dano moral postulado na ação. É nítida a divergência dos desembargadores e das câmaras
julgadoras.

APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR


DANO MORAL E MATERIAL. GOLPE DO WHATSAPP. TRANSFERÊNCIA
REALIZADA PARA CONTA ABERTA JUNTO AO BANCO RÉU. CULPA
CONCORRENTE. RESTITUIÇÃO DE METADE DO VALOR
TRANSFERIDO. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. GOLPE DO
WHATSAPP. QUANDO TANTAS PESSOAS, DOS MAIS DIVERSOS PERFIS,
SÃO VÍTIMAS DE UM MESMO TIPO DE CONDUTA ARDILOSA, COM A
UTILIZAÇÃO DE UM MESMO MEIO, QUASE NUNCA ENVOLVENDO
200

BENEFÍCIO PRÓPRIO, MAS SIM AJUDAR ALGUM CONHECIDO PELO QUAL


O FALSÁRIO SE FAZ PASSAR, O MUNDO JURÍDICO DEVE TER ALGUM
TIPO DE OBSERVAÇÃO DIFERENCIADA, POIS RESTA EVIDENTE QUE AS
PRÁTICAS BANCÁRIAS, SE VALENDO DE APLICATIVOS E DO MEIO
DIGITAL, ESTÃO SE MOSTRANDO VULNERÁVEIS E FACILITANDO NÃO
SÓ A VIDA DOS USUÁRIOS, MAS PRINCIPALMENTE A DE CRIMINOSOS,
QUE SE VALEM DA FALTA DE SEGURANÇA PARA PRATICAR DELITOS
EM SÉRIE. HÁ UMA CADEIA DE CONSUMO ENVOLVIDA NA
PERPETRAÇÃO DO ILÍCITO E, COMO TAL, PODE O CONSUMIDOR BUSCAR
REPARAÇÃO PELO PREJUÍZO TANTO JUNTO AO BANCO, COMO CONTRA
O WHATSAPP OU CONTRA AMBOS, FICANDO, É CLARO, SEMPRE A
POSSIBILIDADE DE QUE ESSAS EMPRESAS BUSQUEM ENTRE SI A
DEVIDA REPARAÇÃO POR REGRESSO. CULPA CONCORRENTE. 1. AS
TRANSAÇÕES BANCÁRIAS, NA ATUALIDADE, MARCADAS PELA
FACILIDADE NA CONTRATAÇÃO E INSTANTANEIDADE NA EXECUÇÃO,
ESTÃO SE MOSTRANDO UM CAMPO FÉRTIL E PROMISSOR PARA GOLPES
DE TODA ORDEM. ASSIM, MESMO COMPROVADO QUE INEXISTAM
MOTIVOS PARA SUSPEITAR DA IRREGULARIDADE DA ABERTURA DA
CONTA DESTINO DA TRANSFERÊNCIA, CABIA AO BANCO RÉU ADOTAR
ESTRATÉGIAS E METODOLOGIAS PARA A VERIFICAÇÃO DE
TRANSAÇÕES SUSPEITAS. 2. RECONHECIDA A COLABORAÇÃO DO
AUTOR NO DESLINDE DO GOLPE, EIS QUE NÃO SE CERTIFICOU DA
VERACIDADE E REGULARIDADE DOS FATOS ANTES DE EFETUAR
TRANSFERÊNCIA DE QUANTIA SIGNIFICATIVA DE DINHEIRO PARA
CONTA DE PESSOA DESCONHECIDA. RESTITUIÇÃO. EVIDENCIADA A
CULPA CONCORRENTE ENTRE O BANCO RÉU E O AUTOR, CABE À
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA ARCAR COM A DEVOLUÇÃO DE METADE DO
VALOR DEPOSITADO PELA VÍTIMA NA CONTA DO FALSÁRIO. DANOS
MORAIS. DEVER DE INDENIZAR NÃO CONFIGURADO, UMA VEZ QUE,
EMBORA DE TRATE DE SITUAÇÃO LAMENTÁVEL, O AUTOR
CONCORREU PARA O PREJUÍZO SUPORTADO, NÃO PODENDO SER
PREMIADO POR SUA FALTA DE ZELO AO NÃO SE CERTIFICAR DA
VERACIDADE DOS FATOS ANTES DE EFETUAR A TRANSFERÊNCIA.
APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA.(Apelação Cível, Nº
51188515020208210001, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Carlos Eduardo Richinitti, Julgado em: 29-03-2023) (grifo nosso).

De toda a forma, há uma lacuna na legislação quanto aos bancos digitais, quando
recebedores dos recursos onde o estelionatário abriu conta com documentos de terceiros ou
falsos, através de selfies,4 ilegíveis ou não.
Embora os bancos digitais tenham as mesmas exigências para abertura de contas,
conforme o que estabelece a Resolução nº 2.025 do Banco Central do Brasil, tais exigências
parecem não ser atendidas por algumas instituições que abrem contas digitais.
No Art. 3º, § 2º, da Resolução nº 2.025, consta a expressão “conheça seu cliente”. De
tal termo depreende-se o entendimento de que as instituições financeiras devam conhecer o seu
cliente, a fim de prevenir práticas ilícitas ou fraudulentas. Considerando a falta de contato

4
Fotografias de si mesmo segurando o documento de identidade.
201

presencial do cliente com a instituição financeira, acaba havendo um distanciamento desta


norma.

Já nos julgados que envolvem os golpes de engenharia social5, ou o golpe do vírus do


PIX (meio de pagamento instantâneo), entendem os Tribunais que há falha da instituição
financeira em proteger o cliente, atribuindo a responsabilidade civil e atraindo a Súmula nº 479
do STJ. Observam-se ementas de decisões proferidas pela Vigésima Terceira e Vigésima
Quarta Câmaras Cíveis do TJRS, que demonstram tal entendimento:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


INDENIZATÓRIA. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE INTERESSE
PROCESSUAL. "GOLPE DE ENGENHARIA SOCIAL". OPERAÇÕES VIA PIX.
FRAUDE EVIDENCIADA. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DA
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. SÚMULA N.º 479 DO STJ. 1. Preliminar de
ausência de interesse processual que resta afastada, ante a verificação do
preenchimento do binômio necessidade-utilidade, relativamente ao ingresso em Juízo,
pela requerente, com vistas ao recebimento do montante que entende ter sido
indevidamente debitado de sua conta bancária. 2. Em havendo elementos probatórios,
nos autos, que indicam a utilização indevida da conta bancária de titularidade da parte
autora para a realização de operações indevidas, via PIX, é cabível a restituição dos
valores indevidamente debitados. Culpa da parte autora não identificada.
Aplicabilidade da Súmula n.º 479 do Superior Tribunal de Justiça. 3. Honorários
advocatícios redimensionados com fundamento no art. 85. §11, do Código de
Processo Civil vigente. APELAÇÃO DESPROVIDA.(Apelação Cível, Nº
50024662720218216001, Vigésima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do
RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em: 18-04-2023) (grifo nosso).

REGIME DE EXCEÇÃO. APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS


BANCÁRIOS. AÇÃO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES CUMULADA COM
INDENIZATÓRIA. SAQUES NÃO AUTORIZADOS. REPETIÇÃO DO
INDÉBITO. Não logrou o réu afastar as alegações apontadas pelo demandante de que
as operações denominadas SAQUE, realizadas em sua conta, não haviam sido por ele
autorizadas, ônus que lhe competia, a teor do art. 373, inciso II, do CPC. Ademais, a
partir do momento em que o banco lucra com operações realizadas por meio
eletrônico e/ou contratações facilitadas, cumpre que forneça, aos seus
consumidores, serviços à prova de fraudes. Em não o fazendo, impõe-se que arque
com os prejuízos causados pela inobservância dessa conduta, não podendo transferi-
los ao consumidor. Não fosse isso, sequer restou esclarecido a que tipo de operação
os lançamentos nos extratos se referia. Assim, em respeito ao princípio que veda o
enriquecimento sem causa, cabe a restituição dos valores, de forma simples. (...)
APELAÇÃO CÍVEL PARCIALMENTE PROVIDA. (Apelação Cível Nº
70077562064, Vigésima Quarta Câmara Cível - Regime de Exceção, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Altair de Lemos Junior, Julgado em 29/08/2018) (grifo nosso).

Em comento, alguns acórdãos aduzem que, pelo “risco proveito” da atividade, ou seja,
pelo fato das instituições lucrarem com as contratações facilitadas dos serviços, devem fornecer
um sistema ou serviços à prova de fraudes. Não bastando, para as instituições cumprirem com

5
É um artifício intelectual capaz de enganar e induzir as pessoas ou vítimas a fornecer informações sigilosas, não
utilizando necessariamente tecnologia, mas sim meios de comunicação.
202

o dever de informação, devem também se cercar de todos os meios possíveis para evitar falhas
na prestação dos serviços.

Aduzem ainda que as instituições bancárias deveriam observar as transações que se


afiguram fora do padrão de perfil do cliente, como contratações de empréstimos, transferências
bancárias consecutivas e de valor elevado. A inércia da instituição financeira em bloquear as
transações ou ter procedimentos de segurança com a finalidade de inibir os possíveis golpes, é
considerada como indício da falha na prestação dos serviços.

Em análise dos julgados que tratam do golpe da falsa central de atendimento, menciona-
se posicionamento do relator Luis Antonio Behrensdorf Gomes da Silva, que aduz não haver
prova do vazamento de informações pessoais por parte da instituição bancária, e que mesmo
invertendo o ônus da prova seria inviável a constituição negativa da prova, imputando ao autor
a responsabilidade pelo golpe e lhe atribuindo “ingenuidade” ao acreditar na ligação e que os
procedimentos solicitados seriam mesmo da instituição financeira. Eis a ementa e trecho do
acórdão em comento, advindo da Quarta Turma Recursal Cível do TJRS:

RECURSO INOMINADO. AÇÃO INDENIZATÓRIA. AUTOR QUE FOI VÍTIMA


DE GOLPE ATRAVÉS DE LIGAÇÃO RECEBIDA DO FRAUDADOR,
INFORMANDO QUE ESTARIAM SENDO EFETUADAS TRANSFERÊNCIAS
DE SUA CONTA BANCÁRIA, INFORMANDO NÚMERO FALSO DA
CENTRAL DE ATENDIMENTO DO RÉU, A FIM DE SER BLOQUEADA A
TRANSFERÊNCIA. AUTOR QUE ACABOU POR DIGITAR A SENHA NO
CELULAR, ATRAVÉS DO APLICATIVO. CONDUTA QUE CONTRIBUIU
DECISIVAMENTE PARA O GOLPE. AUSÊNCIA DE CUIDADOS PELO
REQUERENTE QUE NÃO PODE SER IMPUTADO AO RÉU, POIS ENTROU NO
APLICATIVO DO BANCO E EFETUOU AS TRANSFERÊNCIAS,
ACREDITANDO QUE ESTARIA FAZENDO O BLOQUEIO. CULPA
EXCLUSIVA DO DEMANDANTE A AFASTAR A RESPONSABILIDADE
OBJETIVA DO BANCO. PRECEDENTES. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA
MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
[...] Os golpes envolvendo operações bancárias têm acontecido das mais diversas
formas, mas conta sempre com o mesmo modus operandi, no que diz com a
confirmação de dados, que é solicitada ao correntista, que acaba fornecendo as
informações. Embora o autor alegue ter ocorrido o contrário, de que as pessoas que
efetuaram a ligação possuíam seus dados e apenas confirmaram para o autor,
não há indício de prova nos autos, sendo inviável atribuir ao réu demonstrar se
tal ocorreu ou não, ainda que invertido o ônus da prova.
Assim, da narrativa da inicial, bem como do depoimento pessoal prestado pelo autor,
o que se conclui é que os fraudadores informaram a ocorrência de transferências não
autorizadas, e induziram o autor a entrar no aplicativo instalado no celular, para
efetuar o ?bloqueio?. O autor, no entanto, acabou efetuando as transferências para
terceiros, através dos dados informados pelos fraudadores, digitando a senha no
celular, o que evidentemente concluiu a operação.
Ora, o autor foi inegavelmente ingênuo ao não perceber que as ligações recebidas
não poderiam ser do Banco réu. (grifo nosso) A afirmação na inicial de que tal
prática é usual, de que funcionários costumam ligar para confirmar a compensação de
cheques, é totalmente desconexa da realidade, uma vez que é sabido que as
instituições bancárias não utilizam esse tipo de expediente, divulgando, aliás, aos
203

correntistas, que não devem fornecer senhas, tampouco efetuar operações por
telefone, pois funcionários não ligam para clientes.
O autor, aliás, afirma ser correntista do réu há 40 anos, o que exige que tenha
conhecimento da forma como as transações são efetuadas. É cliente Itaú
Personalité.[...] Voto do Relator. (Recurso Cível, Nº 71009823105, Quarta Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Luis Antonio Behrensdorf Gomes da
Silva, Julgado em: 24-09-2021) (grifo nosso).

Exatamente no mesmo sentido, ementa de decisão proferida pela Quarta Turma


Recursal Cível do TJRS, sob a relatoria de Oyama Assis Brasil de Moraes:

RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. AÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE


DÉBITO C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INCOMPETÊNCIA DO
JEC AFASTADA, ANTE A DESNECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE
PERÍCIA. LIGAÇÃO PARA A CASA DA AUTORA INFORMANDO SOBRE A
REALIZAÇÃO DE COMPRAS NO CARTÃO DE CRÉDITO E QUESTIONANDO
SE RECONHECIA A COMPRA. COM A NEGATIVA, FOI OFERECIDO O
BLOQUEIO DO CARTÃO E SOLICITADA A DEVOLUÇÃO DO PLÁSTICO.
AUTORA QUE ENTREGOU O CARTÃO A PESSOA QUE FOI ATÉ SUA
CASA BUSCÁ-LO SEM TOMAR AS DEVIDAS CAUTELAS ANTES DE
ENTREGAR O CARTÃO DE CRÉDITO A TERCEIRO QUE SE PASSAVA
POR FUNCIONÁRIO DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. FRAUDE
EVIDENTE. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DA INSTITUIÇÃO
FINANCEIRA, A TEOR DO ARTIGO 14, § 3°, II, CDC. SENTENÇA
REFORMADA PARA JULGAR IMPROCEDENTE A AÇÃO. RECURSO
PROVIDO.(Recurso Cível, Nº 71009721366, Quarta Turma Recursal Cível, Turmas
Recursais, Relator: Oyama Assis Brasil de Moraes, Julgado em: 11-12-2020) (grifo
nosso).

Quanto aos golpes de troca de cartão, a ementa da decisão proferida pela Décima
Segunda Câmara Cível do TJRS demonstra que o tribunal ratifica o entendimento dos juízes a
quo e que o caso se deu por culpa exclusiva da vítima, a qual não demonstrou minimamente a
possível responsabilidade da instituição financeira.

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


INDENIZATÓRIA. GOLPE PERPETRADO POR CRIMINOSOS NO
INTERIOR DE AGÊNCIA BANCÁRIA. DEFEITO DE SEGURANÇA NÃO
EVIDENCIADO. FORTUITO EXTERNO. DEVER DE INDENIZAR NÃO
CONFIGURADO. A relação jurídica existente entre as partes é regida pelas normas
do Código de Defesa do Consumidor, que, além de preconizarem a responsabilidade
objetiva do fornecedor pelos danos resultantes de defeito no serviço prestado, também
conferem ao consumidor o direito da facilitação da defesa de suas prerrogativas em
juízo, inclusive com a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, inc. VIII do
CDC. Atividade do banco que se sujeita à teoria do risco do empreendimento, segundo
a qual todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de
consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e
serviços fornecidos. Caso concreto em que não evidenciado o apontado defeito de
segurança. Na hipótese, a autora foi distraída enquanto sacava valores em caixa de
autoatendimento, tendo seu cartão trocado por outro sem que percebesse, o que só foi
notado dias depois. Destarte, a autora não teve a devida cautela com a guarda do
seu cartão bancário, que é de uso pessoal e intransferível, contexto que não pode
ser atribuído ao banco, caracterizando o fortuito externo. Responsabilidade
objetiva da instituição financeira que abarca somente as ações e omissões relacionados
204

ao serviço prestado, o que não ocorreu no caso. Sentença confirmada em sua


integralidade. APELAÇÃO DESPROVIDA.(Apelação Cível, Nº
50373086120218210010, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 22-09-2022) (grifo nosso).

No mesmo sentido, decisão exarada pela Terceira Turma Recursal Cível do TJRS:

RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE


DANOS. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA AFASTADA. GOLPE DA
TROCA DE CARTÃO DE CRÉDITO. AUSÊNCIA DE PROVA DE
NOTIFICAÇÃO TEMPESTIVA À INSTITUIÇÃO FINANCEIRA.
TRANSAÇÕES EFETUADAS ANTES DO BLOQUEIO DO CARTÃO.
AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO RÉU. DEVER DO AUTOR DE
GUARDA DO PLÁSTICO E DA SENHA. DÍVIDA EXIGÍVEL. NÃO
CARACTERIZAÇÃO DE FORTUITO INTERNO, MAS, SIM, EXTERNO, QUE
AFASTA A APLICAÇÃO DA SÚMULA 479 DO STJ. PROLIFERAÇÃO DE
GOLPES QUE EXIGE DILIGÊNCIA REDOBRADA DOS CONSUMIDORES.
SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (Recurso
Cível, Nº 71010172088, Terceira Turma Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator:
Luís Francisco Franco, Julgado em: 08-03-2022) (grifo nosso).

No que diz respeito ao golpe do cartão virtual, onde é ativado o aplicativo no aparelho
de telefone celular do estelionatário, a instituição normalmente demandada é a da vítima, na
qual mantém a conta corrente.
O entendimento é de que a vítima contribuiu diretamente para a ativação do cartão
virtual, em alguns casos dirigindo-se até um caixa eletrônico para efetuar os procedimentos que
os estelionatários estão orientando. A vítima autoriza o aplicativo ou cartão virtual no
dispositivo de celular dos golpistas, os quais passam a transferir os valores através de PIX ou
outro meio disponível para isso, bem como realizam empréstimos automatizados, pagamento
de contas e compras, entre outras formas de desviar os recursos da conta corrente da vítima.
Considerando a forma como o golpe é engendrado, configura-se a culpa exclusiva da
vítima, conforme demonstrado através das ementas de julgados proferidos pela Décima
Segunda e Vigésima Quarta Câmaras Cíveis do TJRS:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO


INDENIZATÓRIA. FRAUDE INCONTROVERSA. CARTÃO VIRTUAL
FORNECIDO A TERCEIRO. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA E DE
TERCEIRO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DO RÉU.
IMPROCEDÊNCIA DA DEMANDA MANTIDA. Caso dos autos em que a autora,
vítima de fraude, forneceu seus dados bancários de cartão virtual a terceiro fraudador,
o que não constitui fortuito interno e afasta a responsabilização do banco pelo
infortúnio. Precedentes jurisprudenciais desta Corte. Sentença de improcedência
mantida. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível, Nº 50841624320218210001,
Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza,
Julgado em: 15-12-2022) (grifo nosso).

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE


INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. OPERAÇÕES EM
205

CONTA CORRENTE. HABILITAÇÃO DE APLICATIVO EM DISPOSITIVO


DE FRAUDADOR. AUSÊNCIA DE COMUNICAÇÃO DO FATO AO BANCO.
CONDUTA DO CONSUMIDOR QUE AFASTA A RESPONSABILIDADE
OBJETIVA DO FORNECEDOR DO SERVIÇO. APLICAÇÃO DO ARTIGO 14,
§ 3º, II, DO CDC. INEXISTÊNCIA DE FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO.
I - O Código de Defesa do Consumidor adota a teoria do risco do empreendimento,
da qual deriva a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos e serviços,
independentemente de culpa, pelos riscos decorrentes de sua atividade lucrativa,
bastando ao consumidor demonstrar o ato lesivo perpetrado, o dano sofrido e o liame
causal entre ambos, somente eximindo-se da responsabilidade o prestador, por vícios
ou defeitos dos produtos ou serviços postos à disposição dos consumidores, provando
a inexistência de defeito no serviço, a culpa exclusiva da vítima ou fato de terceiro
(art. 14, § 3º, I e II, do CDC). II - A narrativa dos fatos indica que a parte autora foi
vítima de uma fraude, na qual recebeu ligações telefônicas de um fraudador
informando que seu cartão virtual estaria vencido, recebendo instruções para o
desbloqueio e, realizando o procedimento informado, acabou por habilitar o aplicativo
do banco em dispositivo pertencente ao fraudador, o que possibilitou que o criminoso,
de posse desse mecanismo de segurança, lograsse realizar operações em sua conta
indevidamente. III - Como se sabe, o uso da senha eletrônica é exclusivo do titular e,
portanto, eventual utilização irregular por terceiros somente gera responsabilidade à
instituição financeira, após ser comunicada da fraude, pois compete ao titular a
escolha da senha pessoal e a preservação de seu sigilo, a qual foi franqueada ao
estelionatário, ainda que haja negativa nesse sentido, pois consabido que, para a
realização de operações com o aplicativo, é imprescindível a utilização de senha. IV
- As operações impugnadas (contratação de linhas de crédito e pagamentos de títulos)
ocorreram antes de o banco ser cientificado da ocorrência da fraude, de modo que não
tinha ele motivos para impedir sua realização, a qual se deu fora das dependências da
instituição financeira e dentro dos limites disponíveis para tais operações, não se
tratando, portanto, de fortuito interno, mas sim de culpa exclusiva da vítima, o que
afasta a responsabilidade da instituição pelo fato. APÓS O VOTO DO RELATOR,
DESEMBARGADOR JORGE MARASCHIN DOS SANTOS, DANDO PARCIAL
PROVIMENTO AO RECURSO, O DESEMBARGADOR CAIRO ROBERTO
RODRIGUES MADRUGA LANÇOU DIVERGÊNCIA, PARA NEGAR
PROVIMENTO AO APELO. O DESEMBARGADOR ALTAIR DE LEMOS
JÚNIOR ACOMPANHOU O RELATOR. EM PROSSEGUIMENTO, SEGUNDO A
TÉCNICA DO ART. 942 DO CPC, VOTOU O DESEMBARGADOR JORGE
ALBERTO VESCIA CORSSAC, ACOMPANHANDO A DIVERGÊNCIA. O
JULGAMENTO RESTOU SOBRESTADO PARA AGUARDAR O VOTO DO
DESEMBARGADOR FERNANDO FLORES CABRAL JÚNIOR. RETOMADO O
JULGAMENTO, O DESEMBARGADOR FERNANDO FLORES CABRAL
JÚNIOR ACOMPANHOU A DIVERGÊNCIA. RESULTADO, POR MAIORIA,
NEGARAM PROVIMENTO AO APELO, VENCIDOS OS
DESEMBARGADORES JORGE MARASCHIN DOS SANTOS E ALTAIR DE
LEMOS JÚNIOR, QUE O PROVIAM EM PARTE. REDATOR PARA O
ACÓRDÃO: DESEMBARGADOR CAIRO ROBERTO RODRIGUES
MADRUGA. (Apelação Cível, Nº 51194412720208210001, Vigésima Quarta
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Maraschin dos Santos,
Redator: Cairo Roberto Rodrigues Madruga, Julgado em: 14-12-2022) (grifo nosso).

Diante da diversidade de julgados e entendimentos, tem-se claro que as Câmaras Cíveis


e as Turmas Recursais têm entendimentos convergentes em alguns pontos e divergentes em
outros pontos, sendo que os princípios utilizados são os mesmos. Contudo, o que prepondera é
o livre convencimento na decisão, que advém de convicções pessoais, da complexidade do caso
em si e da construção do processo em questão.
206

5 CONCLUSÃO

Os bancos são um meio essencial para a circulação de recursos e meios de pagamento,


eis que facilitam consideravelmente as operações bancárias, agilizam as operações de
pagamento, diminuem o tempo e aumentam a segurança. Por outro lado, facilitam a vida dos
estelionatários que se beneficiam de tais instrumentos para abrirem contas sem muitas
exigências, manterem-se anônimos e impunes.

As instituições financeiras, a partir do alto índice de golpes e ações deste tipo, tomam
medidas junto aos setores de Tecnologia da Informação, desenvolvimento de softwares,
compliance, gestão de risco, auditoria, setor jurídico, entre outros, numa ação conjunta,
objetivando de todas as formas proteger os clientes.

No presente estudo teve-se por análise a conceituação de responsabilidade civil pelos


doutrinadores, os golpes aplicados com maior frequência, a legitimidade passiva dos processos,
bem como os julgados proferidos pelos juízes a quo e o entendimento jurisprudencial das
Câmaras Cíveis e das Turmas Recursais Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Em regra, o que se vê é a utilização dos conceitos teóricos ao fato concreto,


evidenciando as excludentes de responsabilidade elencadas neste arrazoado, bem como a
utilização das súmulas e incidência do Código de Defesa do Consumidor nos casos em espécie,
ressaltando a aplicação da responsabilidade civil objetiva.

A quebra do nexo causal é a base para que não se configure a responsabilização das
instituições bancárias em relação aos golpes. Quando o cliente tem responsabilidade exclusiva
pelo golpe ou quando é fato exclusivo de terceiros, ocorre o afastamento da responsabilidade
civil das instituições, deixando de atrair a responsabilidade civil objetiva elencada na Súmula
nº 479 do STJ.

O caso fortuito interno, por sua vez, é constantemente mencionado nos acórdãos para
que seja aplicada ou não a Súmula nº 479 do STJ, a qual determina a responsabilidade civil
objetiva da instituição financeira diante da falha na prestação do serviço. Contudo, o caso
fortuito interno, como falha na prestação do serviço, em alguns casos, surge como
responsabilidade concorrente, dividindo a responsabilidade entre a vítima e a instituição
financeira, elidindo o dano moral.

Quanto aos danos patrimoniais e extrapatrimoniais, o entendimento é o de que se há


culpa concorrente da vítima, existe um quantum indenizatório a ser suportado pela instituição
207

financeira e pela vítima, ou seja, ambos respondem pelo caso fortuito interno, porque sem a
ajuda da vítima o golpe não se concretiza.

Nessa seara, nota-se uma “insegurança” dos julgadores quanto ao seu livre
convencimento, eis que, aparentemente, não tiveram clareza e elementos necessários para
decidir sobre as responsabilidades dos atores da demanda, dividindo a responsabilidade como
forma de compensação.

Apesar de decisões pouco pacificadas e dos julgados às vezes controversos, o TJRS tem
preocupação com a proliferação e a facilidade de abertura de contas correntes para
estelionatários de forma pouco segura, com documentos e informações pouco consistentes.
Enseja que em virtude da facilidade em abrir contas virtuais com poucas exigências, pode-se
abrir um precedente para aumento de golpes e por consequência o aparecimento de um
problema social.

Diante de um emaranhado de casos, informações e julgados, outro coadjuvante de suma


importância é o advogado, diante de sua atuação e construção do processo ou defesa. A
produção de provas contundentes, a narrativa dos fatos de forma detalhada e o estudo da
legitimidade das instituições podem construir uma demanda plausível de êxito. Ademais, os
advogados podem trazer subsídios de forma a modificar o entendimento dos tribunais para
coibir atitudes abusivas por parte das instituições financeiras, promovendo mais segurança na
prestação dos serviços ou até mesmo criando barreiras e dificuldades na abertura de contas de
depósito para movimentações financeiras em nome de terceiros. Por outro lado, podem atuar
na defesa das instituições financeiras e ajudar a criar entendimentos diversos para o julgamento
de alguns golpes.

A tecnologia é algo irrefreável e está na vida das pessoas, bem como inegavelmente as
contas de depósito digitais e os arranjos de pagamento vieram para ficar e os golpes estarão
presentes no cotidiano e nas ações contenciosas, levando os operadores do direito a se
aperfeiçoarem neste assunto. A minúcia de detalhes de cada caso, a construção do processo e a
produção de provas, bem como defesas bem elaboradas, levam a sentenças distintas, contudo
não previsíveis por não ser um assunto pacificado pelos julgadores.
208

REFERÊNCIAS

ABRÃO, Nelson. Direito Bancário. 18. ed.. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. Disponível na
Base de Dados Minha Biblioteca.

BRASIL. Banco Central do Brasil, Resolução nº 2.025, de 24 de novembro de 1993. Disponível


em:< https://www.bcb.gov.br/pre/normativos/res/1993/pdf/res_2025_v5_L.pdf >. Acesso em:
27 mai. 2023.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078compilado.htm>. Acesso em: 18 mai. 2023.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 19 mai.
2023.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 12.965 de 23 de abril de 2014. Disponível em:<


https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 19
de mai. 2023.

BRASIL. Revista RADAR FEBRABAN - IPESP. Disponível em: <https://noomis-files-


hmg.s3.amazonaws.com/content/47b4b470-7ca0-11ed-922f-41eabcc92873.pdf>. Acesso em:
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 297. Disponível em:


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TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil. 4. ed.. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Disponível
na Base de Dados Minha Biblioteca.
210

RESPONSABILIDADE CIVIL À LUZ DO DIREITO PENAL:


ANÁLISE ACERCA DA PUNIÇÃO DO INFRATOR E A
REPARAÇÃO DOS DANOS CAUSADOS À VÍTIMA

Roberta Eggert Poll1


Aline Pires de Souza Machado de Castilhos2

RESUMO

Este ensaio científico tem por objetivo responder ao seguinte problema de pesquisa: quais as
pretensões indenizatórias poderão ser exercidas pela vítima de um delito? O tema do artigo
recai sobre os interesses da vítima e/ou de seus sucessores em obter a reparação de danos diante
da ocorrência de um crime. A hipótese de pesquisa relaciona-se aos sistemas legais de reparação
de danos à vítima no ordenamento jurídico brasileiro, conjugados com o tema da
responsabilidade civil. O método de abordagem será o hipotético-dedutivo, adotando-se como
procedimento o bibliográfico. Estruturalmente o texto se divide da seguinte forma: em primeiro,
propõe uma leitura sobre a sentença penal condenatória e ação civil ex delicto para, ao depois,
analisar a indenização mínima na sentença penal condenatória; ao final serão tecidas as
considerações finais da pesquisa.

Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Direito Penal; Reparação de Danos; Crime.

1 INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil por danos causados a terceiros é um tema central no âmbito


jurídico, buscando garantir a reparação adequada às vítimas de atos ilícitos, inclusive em casos
de crimes. Nesse contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar as disposições dos
principais diplomas legais brasileiros que regem a responsabilização civil em casos criminais à
luz do Direito Penal.

A relação entre o Direito Penal e a responsabilidade civil é complexa, visto que, ao


mesmo tempo em que o processo criminal busca punir o infrator pelo ato praticado, a vítima
tem o direito de ser indenizada pelos danos sofridos. Deste modo, o presente estudo visa
aprofundar a compreensão dos mecanismos legais que asseguram a reparação dos prejuízos

1
Doutora em Direito pela PUCRS. Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Advogada Criminalista – OAB/RS
nº 92.658B. Professora de Criminologia e Introdução ao Direito na Faculdade Dom Alberto. Professora de Direito
na ESCOOP. Advogada Criminalista inscrita na OAB/RS nº 92.658B. E-mail: roberta@poll.adv.br.
2
Doutoranda e mestre em Ciências Criminais pela PUCRS. Especialista em Política Criminal e Direitos Humanos
pela UFRGS. Pós-graduada pela Ajuris. Professora Titular de Direito Penal e Psicologia Jurídica na UNIFTEC.
Professora convidada do CJED – Centro de Estudos do Poder Judiciário. Pesquisadora e Funcionária Pública do
TJRS. E-mail: alinepirescastilhos@gmail.com.
211

experimentados pelas vítimas, bem como identificar eventuais lacunas ou desafios na


efetivação desse direito.

Se conjeturarmos a prática de um crime de estelionato, por exemplo, (art. 171, do


Código Penal – “Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo
ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”),
para além da deflagração da persecutio criminis, cujo objetivo será, em última análise, a
imposição da pena prevista no Código Penal – de 01 (um) a 05 (cinco) anos, e multa – daí
também poderá sobressair o interesse da vítima e/ou seus sucessores em obter a reparação dos
danos causados por este delito.3

Em Direito Civil, por outro lado, existe um dever legal de não lesar, a que corresponde
a obrigação de indenizar sempre que de um comportamento contrário ao disposto no artigo 186,
do Código Civil “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, surta
algum prejuízo a outrem, seja moral seja material. Na mesma esteira, por força do art. 927, do
Código Civil “aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a
repará-lo” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2019, p. 58-59), impõe-se um dever de
compensação pelos prejuízos advindos de uma conduta lesiva a esfera individual alheia.

Como se vê, o convívio social demanda posições de não ataque a bens e direitos que
constituem o patrimônio indisponível tutelado pela ordem jurídica; é, portanto, direito do ser
humano, se manter livre de ataques ou moléstias, assim como preservar a incolumidade de sua
personalidade. Existe, portanto, uma relação natural e evidente entre a configuração de um
ilícito penal e o possível prejuízo patrimonial que dele poderá advir à vítima, facultando-lhe o
direito à reparação. Não por outro motivo, que ao tratar dos efeitos automáticos da condenação,
o próprio Código Penal assegura que um deles é o de tornar certa a obrigação de indenizar o
dano causado pelo crime (art. 91, inciso I).

Nesse passo, o presente estudo pretende abordar a temática dos efeitos da condenação
criminal na esfera da responsabilidade civil, seja por meio da ação de execução ajuizada pelo
ofendido, na esfera cível, para a obtenção da indenização anteriormente imposta pelo
magistrado, via sentença penal condenatória, (art. 387, inciso IV, do CPP), denominada de ação

3
O Código de Processo Penal informa que são sucessores da vítima o cônjuge, ascendente, descendente ou
irmão – art. 31.
212

civil ex delicto, seja via da ação de responsabilidade civil própria, a fim de apurar efetivamente
os danos causados pela infração penal – art. 927, do CC (TARTUCE, 2018, p. 986).

Com relação a metodologia empregada, embora não seja obrigatório e, na prática,


referencial teórico e metodologia, às vezes, contradizem-se ou nem se cumprimentam, o
presente trabalho buscará unir de forma lógica o seu referencial teórico com a sua metodologia.
Por se tratar de um trabalho interdisciplinar e adotar a visão moderna de ciência, em que se
busca explicar um fenômeno a partir de uma visão circular de seu conhecimento, utilizou-se
como técnica de pesquisa a revisão bibliográfica, e, como método, empregou-se dedutivo e, no
mesmo talante, o hipotético, consistente na construção de conjecturas, isto é, premissas com
alta probabilidade, cuja construção seja similar, baseada nas hipóteses, ou seja, caso as
hipóteses sejam verdadeiras, as conjecturas também o serão.

Nesse passo, pretendeu-se, com o texto, responder ao seguinte problema de pesquisa:


quais as pretensões indenizatórias poderão ser exercidas pela vítima de um crime? O tema do
artigo recaiu, portanto, sobre os interesses da vítima e/ou de seus sucessores em obter a
reparação de danos diante da ocorrência de uma infração penal. A hipótese de pesquisa girou
em torno da questão relativa aos sistemas legais de reparação de danos à vítima no sistema
jurídico brasileiro.

Com base nessas considerações, aponta-se que o texto enfrentará o tema lançado em
dois tópicos, partindo-se, inicialmente da sentença penal condenatória e da ação civil ex delicto
para, ao depois, analisar a indenização mínima que poderá ser concedida pelo juízo da
condenação criminal. Serão abordados, assim, os fundamentos da responsabilidade civil e sua
evolução histórica, contextualizando-a no âmbito dos crimes e delitos. Ademais, analisaremos
as particularidades e requisitos previstos no Código de Processo Penal, Código Civil e Código
de Processo Civil em relação à reparação dos danos causados às vítimas, considerando, por
exemplo, a responsabilidade objetiva e subjetiva, o nexo de causalidade e a extensão da
reparação.

A pesquisa também se deterá sobre o papel do Ministério Público e do Poder Judiciário


na condução dos processos de responsabilidade civil em concomitância com a ação penal,
destacando a importância de uma atuação coordenada e eficiente para a plena proteção dos
direitos das vítimas. Além disso, serão apresentados exemplos jurisprudenciais que ilustram
como os tribunais têm interpretado e aplicado essas normas em situações concretas. Ao fim se
trará as conclusões da pesquisa.
213

Por fim, a expectativa é que este estudo possa contribuir para uma melhor compreensão
do sistema jurídico brasileiro no que tange à responsabilidade civil em casos de crimes,
oferecendo subsídios para aprimorar as práticas judiciais e, consequentemente, proporcionar
uma maior proteção às vítimas, alinhando-se aos princípios da justiça e do Estado de Direito.

2 COMPREENDENDO O INSTITUTO DA REPARAÇÃO MÍNIMA DE DANOS


ADVINDO DE UMA INFRAÇÃO PENAL

São quatro os sistemas que dispõe sobre a relação entre a ação civil para a reparação dos
danos e a ação penal para a punição do autor de um crime: sistema da confusão, sistema da
solidariedade, sistema da livre escolha e sistema da independência.

O sistema da confusão atribuía a própria vítima a busca pela reparação civil e punição
do autor do delito, sendo aplicado na antiguidade [fase de vingança privada].

Na antiguidade, antes da evolução dos sistemas jurídicos formais que conhecemos hoje,
a vingança privada era uma prática comum aplicada aos crimes. Essa forma de justiça era
caracterizada pela ausência de um sistema de justiça institucionalizado, cabendo aos próprios
indivíduos ou grupos afetados a responsabilidade de fazer justiça por conta própria.

A ideia de vingança privada estava enraizada em diversas sociedades antigas, sendo um


reflexo da mentalidade da época. Nesse contexto, quando alguém sofria um dano, seja físico ou
moral, como resultado de um crime ou agressão, era permitido e até esperado que a vítima ou
seus familiares tomassem ações retaliatórias contra o ofensor.

Os objetivos da vingança privada variavam de acordo com o contexto cultural e social.


Em algumas culturas, a vingança visava restaurar o equilíbrio social, promovendo uma sensação
de justiça e reparação aos danos causados. Em outros casos, a vingança podia ser uma forma de
retribuição cruel e desproporcional, muitas vezes resultando em um ciclo interminável de
violência entre famílias ou grupos.

Contudo, é importante ressaltar que a vingança privada tinha algumas limitações.


Geralmente, havia um código de honra ou regras não escritas que orientavam as ações
retaliatórias. Por exemplo, o princípio da proporcionalidade poderia ser observado, limitando a
magnitude da vingança ao dano sofrido. Além disso, em algumas sociedades, existiam
mecanismos de mediação que buscavam resolver conflitos e evitar a escalada da violência.
214

Com o tempo, à medida que as sociedades evoluíram e se tornaram mais complexas, as


práticas de vingança privada foram sendo substituídas gradualmente por sistemas de justiça
mais organizados e institucionalizados. Surgiram, então, os primeiros códigos legais e tribunais,
responsáveis por aplicar punições e resolver conflitos de maneira mais imparcial e organizada.

A transição para sistemas de justiça formais também buscou estabelecer um monopólio


estatal da violência, onde a aplicação da lei e a punição aos infratores passaram a ser
prerrogativas exclusivas das autoridades. Essa mudança teve como objetivo principal evitar os
excessos e arbitrariedades comuns na vingança privada, além de estabelecer critérios mais
racionais e justos para a resolução de disputas.

Hoje, a vingança privada é considerada ilegal na maioria dos países, uma vez que vai
contra o Estado de Direito e os princípios fundamentais do sistema judicial moderno. A justiça
passou a ser tratada como uma responsabilidade coletiva do Estado, garantindo que os crimes
sejam investigados, os infratores sejam julgados por um tribunal imparcial e, quando
condenados, cumpram suas penas de acordo com a lei.

Em suma, a fase de vingança privada na antiguidade reflete uma época em que o poder
do Estado para impor a lei e a ordem ainda não estava estabelecido. Com o passar do tempo e
a evolução das sociedades, a vingança privada foi gradualmente substituída por sistemas de
justiça mais estruturados, garantindo uma abordagem mais racional e justa para a punição dos
crimes e a reparação dos danos causados.

Pois bem.

O segundo sistema que visa estabelecer a relação entre a ação civil para a reparação dos
danos é o sistema da solidariedade, no qual recairia sobre o ofendido a obrigação de ajuizar
perante o juízo criminal uma ação de natureza penal e outra de natureza civil na busca de suas
pretensões.

Veja-se que a solidariedade no Direito Civil é vista de forma diferente, eis que se refere
a uma forma de responsabilização conjunta de mais de uma pessoa pela reparação dos danos
causados a terceiros. Nesse contexto, a ação civil para a reparação de danos busca
responsabilizar todos os envolvidos na causa do dano, de forma solidária, ou seja, cada um deles
pode ser obrigado a arcar integralmente com a reparação ou apenas parte dela, mas a vítima tem
o direito de exigir o cumprimento da obrigação de qualquer um dos responsáveis.
215

Esse sistema é aplicado quando várias pessoas contribuem de alguma forma, para a
ocorrência de um mesmo dano, sendo consideradas coautoras ou participantes do evento
danoso. Dessa maneira, a solidariedade busca evitar que a vítima fique desamparada na busca
pela reparação, permitindo que ela escolha quem responsabilizar pela reparação, ou até mesmo
acionar todos os envolvidos em conjunto.

No Código Civil Brasileiro, a solidariedade é tratada nos artigos 942 a 945. O artigo
942, por exemplo, estabelece que "são também responsáveis pela reparação civil: I - os pais,
pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia; II - o tutor e o
curador, pelos pupilos e curatelados que se acharem nas mesmas condições; III - o empregador
ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes
competir, ou em razão dele".

Desta forma, quando há mais de um responsável pelo dano, seja por ação direta ou
indireta, o prejudicado pode ingressar com a ação civil contra qualquer um deles ou contra todos
simultaneamente, buscando a reparação do prejuízo sofrido. É importante ressaltar que, em caso
de pagamento por um dos responsáveis, este terá o direito de buscar o ressarcimento dos demais,
para que não seja prejudicado ao cumprir a obrigação em nome do grupo.

Além disso, o sistema da solidariedade não impede que a vítima, uma vez ressarcida
pelo prejuízo, exija a respectiva quota-parte de cada um dos responsáveis, evitando que haja
um enriquecimento injusto de qualquer um deles. Em outras palavras, o sistema da
solidariedade estabelece que, em casos de danos causados por mais de uma pessoa, todos os
envolvidos podem ser responsabilizados de forma conjunta, permitindo que a vítima escolha
quem acionar para obter a devida reparação. Trata-se de uma importante ferramenta do direito
civil que busca garantir o ressarcimento adequado aos prejuízos sofridos, evitando que a vítima
fique desamparada na busca por justiça.

O sistema da livre escolha, por sua vez, assegura à vítima um poder de escolha, ou seja,
poderá ou não promover a ação de reparação dos prejuízos na esfera civil, devendo, no entanto,
o processo cível permanecer suspenso até a decisão final do juízo criminal, evitando-se, desta
forma, decisões conflitantes (TARTUCE, 2018, p. 986-987).

Por força do art. 63, do CPP o ordenamento jurídico brasileiro adotou o sistema da
independência das instâncias; isto significa dizer que o ofendido poderá ajuizar ação civil, que
verse sobre questão de direito privado, em face do suposto autor do crime, ao mesmo tempo em
que o Ministério Público (titular da ação penal pública – art. 129, inciso I, da CF) oferece
216

denúncia em face do mesmo indivíduo (LIMA, 2017, p. 314). Note-se, neste sentido e
corroborando as disposições do Código de Processo Penal, o disposto no art. 935, do Código
Civil: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais
sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem
decididas no juízo criminal”.4

Não obstante, o § único do art. 63, do CPP prevê que uma vez transitada em julgado a
sentença penal condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do
inciso IV, do caput, do art. 387, do CPP, sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano
efetivamente sofrido. De seu turno, a redação do art. 387, assegura que, por ocasião da prolação
da sentença penal condenatória, deverá o juiz fixar valor mínimo para reparação dos danos
causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pela vítima (REIS; GONÇALVES,
2018, p. 125-126).

Ou seja, o Código de Processo Penal prevê que a sentença penal condenatória servirá de
título executivo líquido, permitindo à vítima ou seus sucessores procederem, de imediato, à
execução por quantia certa, sem prejuízo de ulterior liquidação para apuração do dano
efetivamente suportado. Para tanto, deverá o ofendido ingressar com a ação de execução ex
delicto no juízo cível, exigindo do réu condenado o pagamento do quantum arbitrado na
sentença penal (AVENA, 2018, p. 380).

Esse arbitramento do quantum indenizatório realizado na esfera penal, obviamente, não


impede a vítima de apurar, no juízo cível, o prejuízo efetivamente suportado por ocasião da
infração penal (REIS; GONÇALVES, 2018, p. 125). Á título de ilustração, considere-se que,
em condenação definitiva, tenha o juiz criminal arbitrado, como indenização mínima à vítima,
o valor de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil Reais) a ser pago pelo réu condenado. Nesse
contexto, poderá o ofendido ajuizar, desde logo, no juízo cível, a ação de execução ex delicto
em relação ao montante fixado na sentença criminal e, simultaneamente, deduzir, também no
juízo cível, a liquidação da sentença penal condenatória para quantificar o prejuízo efetivamente
sofrido com a prática criminosa.

Imaginando-se que, em decisão da liquidação cível, o prejuízo total seja calculado em


R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), poderá a vítima, agora, exigir a diferença entre o valor

4
Como primeira e principal explicação doutrinária sobre o sentido da norma, o Enunciado nº 45 da I Jornada de
Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2002, estabelece que, “no caso do art. 935,
não mais se poderá questionar sobre a existência do fato ou sobre quem seja o seu autor se estas questões se
acharem categoricamente decididas no juízo criminal”.
217

apurado na sentença penal como indenização mínima (já objeto de execução) e o valor total do
que foi apurado em liquidação civil. Nesse caso, a nova execução será movida em relação aos
R$ 25.000,00 (vinte e cindo mil reais) remanescentes.

Evidentemente, nada impede que a vítima, em vez de executar imediatamente o valor


arbitrado na condenação criminal, opte por liquidar a sentença penal na esfera cível e, após,
ingressar com uma só execução em relação ao valor total do prejuízo (REIS; GONÇALVES,
2018, p. 125).

Veja-se, portanto, que por força do regramento constante nos arts. 63 e 64 do CPP a
vítima tem duas formas alternativas e independentes de buscar o ressarcimento do dano causado
pela infração penal: a) ação de execução ex delicto, com fundamento no art. 63, do CPP, esta
ação de natureza executória, pressupõe a existência de título executivo, consubstanciado na
sentença penal condenatória com trânsito em julgado; b) Ação civil ex delicto, por força do art.
64, do CPP, independentemente do oferecimento da denúncia em face do suposto autor do fato
delituoso ou da fase em que se encontrar eventual processo penal. Neste caso, a vítima, seu
representante legal ou sucessores podem promover, no âmbito cível, uma ação de natureza
cognitiva, objetivando a formação de um título executivo cível consubstanciado em sentença
condenatória cível transitada em julgado (TAVORA; ALENCAR, 2017, p. 342).

O Código Penal ainda complementa, asseverando no art. 91, inc. I, que um dos efeitos
da condenação é tomar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo delito. Cuida-se,
portanto, de efeito extrapenal obrigatório (ou genérico), aplicável por força de lei,
independentemente de expressa declaração por parte da autoridade jurisdicional, uma vez que
é inerente à condenação, qualquer que seja a pena imposta – privativa de liberdade, restritiva
de direitos ou multa – (NUCCI, 2016, p. 227).

Na verdade, a única condição para o implemento deste efeito é o trânsito em julgado da


sentença penal condenatória e, evidentemente, a constatação de que o delito tenha efetivamente
gerado um dano a ser indenizado em favor de determinada pessoa. Afinal, há delitos que não
acarretam qualquer prejuízo ao ofendido, daí por que seria inviável a incidência desse efeito
como, por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo (crime de perigo abstrato) (LIMA, 2017, p.
320).

Desta feita, caso o juiz não tenha elementos suficientes para fixação desse montante,
sequer em seu mínimo legal, poderá deixar de fazê-lo, devendo constar da sentença
condenatória fundamentação expressa quanto aos motivos que o impossibilitaram de fixar o
218

valor mínimo a título de indenização como, por exemplo, a complexidade da causa, a ausência
de provas em relação ao dano, entre outros (LIMA, 2017, p. 324).

A despeito de a sentença condenatória transitada em julgado reconhecer o an debeatur


(CP, art. 91, I), ou seja, a obrigação de indenizar, resta ainda definir o quantum debeatur, é
dizer, o valor da indenização devida. Isto porque, se os valores íntimos da personalidade são
tutelados pela ordem jurídica, haverá, necessariamente, de munir-se o titular de mecanismos
adequados de defesa contra as agressões injustas que, eventualmente, possa sofrer no plano
subjetivo ou moral. Pode-se, em suma, afirmar, que o objetivo da teoria da responsabilidade
civil pelos danos morais não é apagar os efeitos da lesão, mas reparar os danos da “melhor
forma possível”.

Como observa a literatura especializada, a menção a um "valor mínimo" e a


possibilidade de se buscar, no âmbito cível, a complementação deste montante, não significam
dizer que o juiz deva arbitrar um valor meramente simbólico, como efeito da sentença
condenatória por ele proferida. Na verdade, incumbe ao juiz averiguar o alcance do prejuízo
causado à vítima para, a partir daí, arbitrar um valor que mais se aproxime do devido,
propiciando, assim, uma reparação que seja satisfatória e que, ao mesmo tempo, desestimule a
propositura de liquidação no cível, com toda demora e dissabores que lhe são peculiares
(GOMES; CUNHA; PINTO, 2008, p. 315).

Em Direito Civil, quanto à extensão da reparação do dano (seja patrimonial ou moral) o


regime é o da reparação integral (art. 944), ou seja, o valor deve proporcionar à vítima a
recolocação em situação equivalente a em que se encontrava antes de ocorrer o fato danoso.
Em tese, essa reposição pode ocorrer de duas maneiras: (i) in natura, mediante recomposição
do mesmo bem no patrimônio do lesado ou por sua substituição por coisa similar; ou (ii) por
reparação pecuniária, consistente em pagamento de soma equivalente aos prejuízos do lesado.

Ocorre que, para que esse montante seja fixado pelo juízo criminal, devem constar dos
autos elementos probatórios comprovando o prejuízo sofrido pela vítima e a relação desse dano
com a conduta imputada ao acusado na peça acusatória (LIMA, 2017, p. 325). Em fiel
observância à garantia da razoável duração do processo, o ideal é que a fixação do valor mínimo
referente a indenização dos danos causados pelo delito seja objeto de capítulo próprio da
sentença penal condenatória. Nesse caso, na hipótese de o réu e a vítima entenderem ser
indevido o montante arbitrado pelo juízo criminal, poderão recorrer apenas contra este capítulo
da sentença. Isso significa dizer que, transitando em julgado o capítulo da sentença que versa
219

sobre a pena, será possível a expedição imediata de guia definitiva da execução, com o
subsequente início do cumprimento da pena. Lado outro, caso o capítulo referente à condenação
seja impugnado em eventual recurso de apelação, não será possível a imediata execução do
quantum fixado pelo juízo a título de indenização. Isso porque a execução desse montante está
condicionada ao trânsito em julgado da sentença condenatória (LIMA, 2017, p. 325-326).

No entanto, em que pese a notável evolução trazida pelo legislador em matéria de


responsabilidade civil no âmbito criminal, nenhum procedimento foi previsto para a apuração
dos danos, nem o seu grau de abrangência (moral ou material); nada se mencionou acerca da
legitimidade ativa para pleitear a reparação dos danos: somente a vítima ou também o
Ministério Público, atuando em seu nome? Ou ainda, poderia o juiz agir ex ofício? Qual a
solução a ser conferida no caso de a vítima, ou quem de direito, já ter interposto a ação civil
reparatória no juízo cível (art. 64 do CPP) antes da fixação do valor mínimo de reparação no
âmbito penal?

É necessário estabelecer ao réu a garantia do contraditório como condição para o


reconhecimento do dano provocado pela infração penal e para a quantificação de seu valor na
sentença penal condenatória? Todas estas questões poderiam ter sido esclarecidas pelo bem do
novo instituto, no entanto, padecem de resposta legislativa, encontrando somente na doutrina o
amparo necessário.

Tais temáticas, pela importância e particularidades, serão abordadas no próximo


capítulo.

3 SOBRE A INDENIZAÇÃO MÍNIMA NA SENTENÇA PENAL CONDENATÓRIA

A sentença penal condenatória de um crime de estupro, por exemplo, é proferida pelo


Poder Judiciário após a conclusão do processo criminal, no qual o acusado foi considerado
culpado pelo cometimento do delito contra a dignidade sexual. O estupro é uma grave violação
dos direitos fundamentais da vítima e está previsto no Código Penal Brasileiro, no artigo 213,
como o ato de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal
ou praticar outro ato libidinoso.

Durante o processo penal, são apresentados provas e argumentos tanto pela acusação
quanto pela defesa, e, ao final, o juiz avalia todos os elementos para determinar se o acusado é
culpado ou inocente. Caso a decisão seja pela condenação, o juiz proferirá a sentença penal
condenatória, que impõe ao réu a pena correspondente ao crime de estupro cometido [Pena:
220

reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. A pena poderá variar conforme a gravidade do delito,
podendo incluir reclusão em regime fechado, semiaberto ou aberto, de acordo com o que dispõe
o Código Penal.

Ao dispor que na sentença penal condenatória o magistrado fixará o valor mínimo para
reparação dos danos causados pelo crime, considerando os prejuízos sofridos pela vítima o art.
387, inc. IV, do CPP não restringiu essa indenização tão somente aos danos patrimoniais,
referindo-se, ao contrário e genericamente, à “reparação dos danos”.

Nesse contexto, não há razão para excluir do juízo penal a possibilidade de arbitrar valor
destinado à reparação, também, de danos de ordem moral, eventualmente causados pela
infração penal (TARTUCE, 2018, p. 991). Afinal, não há dúvidas de que o legislador,
permitindo ao juízo criminal, por ocasião da sentença condenatória, estabelecer indenização
mínima devida à vítima, objetivou possibilitar a esta ter satisfeito o prejuízo que lhe foi causado
pela conduta criminosa com maior prontidão, sem a necessidade de aguardar as delongas de
uma fase liquidatória prévia ao ajuizamento da ação executória. Tal arbitramento, então, apenas
visa antecipar, em parâmetros mínimos, o valor que, em liquidação de sentença, seria apurado
no juízo cível. E, no juízo cível, pela exegese do art. 186 do Código Civil, fica evidente que
tanto o dano moral quanto o patrimonial sujeitam-se à reparação.

Trilhando a mesma orientação – possibilidade de arbitramento de indenização mínima a título


de dano moral –, deliberou o STJ que:

“o juiz que se sentir apto, diante de um caso concreto, a quantificar, ao menos o


mínimo, o valor do dano moral sofrido pela vítima, não poderá ser impedido de fazê-
lo”, sem embargo de advertir que “ao fixar o valor mínimo de indenização previsto
no art. 387, IV, do CPP, o juiz deverá fundamentar minimamente a opção, indicando
o quantum que refere-se ao dano moral” (REsp 1.585.684/DF, Relatoria Ministra
Maria Thereza de Assis Moura. Sexta Turma. DJe 24.08.2016).

Como visto, o entendimento jurisprudencial é no sentido de que a indenização arbitrada


na sentença penal poderá sim abarcar essas duas ordens de prejuízos – moral e patrimonial. E,
no tocante à quantificação, na decisão condenatória, do valor mínimo devido à título de dano
moral, entende-se que deve ser realizada a partir de um critério de proporcionalidade, detectável
com base nas circunstâncias do caso concreto.

Ademais, não há que se falar na possibilidade de ser conflitante a sentença penal


condenatória que fixar a indenização mínima a título de dano moral e a decisão eventualmente
proferida em futuro processo cível de indenização, porque, de acordo com o art. 91, inc. I, do
221

CP, a decisão penal condenatória faz coisa julgada na esfera cível quanto à obrigação de
indenizar. Logo, se, no âmbito penal, for estabelecida indenização mínima em decisão
transitada em julgado, isso não poderá, mais tarde, ser questionado na órbita civil. Em outras
palavras, estará vinculado o juízo cível ao dano reconhecido em sede de condenação criminal,
cabendo-lhe, então, no máximo, considerar suficiente o valor imposto ao acusado no juízo
penal, mas não isentá-lo de tal obrigação ou quantificar o dano em montante inferior ao que foi
decidido na esfera criminal (LIMA, 2017, p. 332-333).

Quanto à legitimidade ativa para pleitear a reparação dos danos: somente a vítima ou
também o Ministério Público, atuando em seu nome; ou ainda, o juiz agindo ex ofício, parece-
nos que somente a vítima poderia solicitar a indenização e o juiz não teria condições de fixá-la
de ofício, sem nenhum pedido. Afinal, não tendo havido requerimento expresso, inexistiria
discussão nos autos em relação ao valor, motivo pelo qual seria incabível a fixação de um
montante qualquer, que não foi objeto de debate entre as partes interessadas (NUCCI, 2016, p.
227-228). Há posição em contrário, nos seguintes termos:

“entendemos que não há necessidade que este pedido venha expresso na denúncia ou
queixa, pois o dever de reparar é um dos efeitos da sentença, de modo que o juiz está
autorizado na sentença condenatória a estipular o valor mínimo da reparação,
bastando para tal que, ao fundamentar a sua decisão, demonstre os elementos
objetivos que o levaram ao valor da condenação” (SANTOS, 2008, p. 299).

Sobre tal entendimento, duas considerações básicas: a) o pedido não poderia vir
expresso na denúncia, oferecida pelo Ministério Público, pois inexiste legitimidade para o
Parquet se manifestar em nome da vítima com fundamento em interesse puramente civil, como
é a indenização pleiteada; b) o dever de reparar o dano, em virtude do crime, é consagrado pelo
art. 91, inc. I, do CP; porém, o montante da indenização sempre foi discutido sob o crivo do
contraditório, permitindo-se a ampla defesa.

Se o juiz da condenação, sem prévio debate das partes, simplesmente, fixar um valor
qualquer, ter-se-á rompido o tradicional e indeclinável devido processo legal (LOPES Jr., 2014,
p. 302). Nesse sentido, muito bem decidiu o STJ no REsp 1.185.542/RS, Relatoria do Ministro
Gilson Dipp. Quinta Turma. DJe 16/05/2011.

Igualmente, qual seria a solução a ser conferida no caso de a vítima ou quem de direito
já tivesse interposto a ação civil reparatória no juízo cível (art. 64 do CPP) antes da fixação do
valor mínimo de reparação no âmbito penal? Se por ocasião da sentença condenatória, já houver
decisão definitiva proferida no juízo cível, estabelecendo no âmbito de ação ordinária de
222

indenização o quantum devido pelo autor da infração penal à vítima, restará prejudicada a
aplicação, no juízo penal, do art. 387, inc. IV, do CPP.

Contudo, se naquela sede (civil) ainda não houver decisão definitiva, a superveniência
do trânsito em julgado da sentença penal condenatória não obstará, necessariamente, o
prosseguimento da demanda cível, o que pode se justificar, por exemplo, na hipótese de o seu
autor (a vítima do crime), na petição inicial, ter postulado a condenação do réu ao pagamento
de quantia certa, superior à fixada na condenação penal a título de valor indenizatório mínimo.

Agora, se a inicial da ação cível limitou-se a pleitear a condenação do réu ao pagamento


de indenização, relegando para uma fase liquidatória posterior a quantificação do dano a ser
reparado, nesse caso, efetivamente, não haverá a menor razão para o prosseguimento da
demanda cível, que poderá ser extinta ou prosseguir apenas em relação a eventuais
corresponsáveis civis que não tenham sido condenados criminalmente. Isso porque, por meio
da sentença penal, logrou o ofendido alcançar, em relação ao condenado, o título executivo
judicial que estava buscando obter na esfera civil (AVENA, 2018, p. 385).

E, por fim, quanto à temática da necessidade de estabelecer ao réu a garantia do


contraditório como condição para o reconhecimento do dano provocado pela infração penal e
para a quantificação de seu valor na sentença penal condenatória, o tema é objeto de
controvérsias, subsistindo duas correntes: para uma parcela da doutrina é necessário que se
instaure contraditório específico, facultando-se ao réu o insurgimento quanto à existência de
um dano indenizável e a sua quantificação. Adepto deste entendimento, Nucci assevera que o
interessado no estabelecimento da indenização:

“precisa indicar valores e provas suficientes a sustá-los. A partir daí, deve se


proporcionar ao réu a possibilidade de se defender e produzir contraprova, de modo a
indicar valor diverso ou mesmo a apontar que inexistiu prejuízo material ou moral a
ser reparado. Se não houver formal pedido e instrução específica para apurar o valor
mínimo para o dano, é defeso ao julgador optar por qualquer cifra, pois seria nítida
infringência ao princípio da ampla defesa” (NUCCI, 2016, p. 227-228).

Outra parcela da doutrina entende que diante do que dispõe o inc. IV do art. 387, do
CPP, a verificação quanto à existência de um dano indenizável e a quantificação de seu valor
mínimo deverá ocorrer a partir da instrução normal do processo penal, independente da
instauração de contraditório voltado especificamente a esse fim. Portanto, o contraditório
facultado ao réu em relação a tais aspectos é o mesmo que lhe é inerente em relação às demais
provas do processo, mesmo porque o art. 387, inc. IV, do CPP, estabelece a fixação da
223

indenização como parte integrante da sentença condenatória, vale dizer, um de seus requisitos
(AVENA, 2018, p. 384).

Apesar de reconhecermos que a tendência da jurisprudência é aderir a primeira corrente,


concordamos com a segunda orientação. Compreendemos que a partir da redação determinada
ao art. 387 do CPP pela Lei nº 11.719/2008, o reconhecimento da existência do dano e a
quantificação mínima da indenização devida à vítima constituem parte da sentença
condenatória. Logo, sabedor da possibilidade desta fixação, cabe ao réu, no decorrer da
instrução processual, independentemente de uma provocação específica neste sentido, produzir
as provas necessárias, buscando, por exemplo, convencer o juiz de que, ainda que seja
condenado, inexiste um dano a ser indenizado. E mais: Se, condenado o réu, não se conformar
ele com a indenização fixada, poderá insurgir-se por meio de apelação lastrada no art. 593, inc.
I, do CPP, visando modificar a sentença.

Observe-se, por fim, que não é a primeira vez que a previsão de indenização no âmbito
de sentença penal condenatória aparece no ordenamento jurídico brasileiro. Com efeito, na lei
dos crimes ambientais (Lei nº 9.605/1998), o art. 20 preceitua que “a sentença penal
condenatória, sempre que possível, fixará o valor mínimo para a reparação dos danos causados
pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido ou pelo meio ambiente”. E,
neste enfoque, compreende-se que a fixação de valor mínimo destinado à reparação, sempre
que possível, deverá ser interpretada como uma regra a ser observada pelo magistrado, enquanto
a não fixação seria uma exceção, uma vez que a responsabilidade civil, em matéria ambiental,
possui um enfoque bem mais amplo que a noção a ela atribuída na esfera do direito civil,
constituindo, na realidade, um importante corolário da tutela constitucional à vida e à qualidade
de vida, conforme disposto no art. 225 da CF.

Por tal razão, ao estipular um valor pecuniário destinado à reparação, o juízo criminal
não esgota a discussão em torno da responsabilidade civil, mas, tão somente, garante a
efetivação dos primeiros passos tendentes à reparação do dano ambiental. Ora, a nosso ver,
idêntico raciocínio deve ser aplicado em matéria penal, já que também, nesta órbita, a legislação
é taxativa ao dispor que a sentença penal transitada em julgado importa em reconhecimento
irrefutável da obrigação de indenizar de parte do réu, conforme se infere dos arts. 91, inc. I, do
CP; 515, inc. VI, do CPC; e 63 do CPP.

Lado outro, a possibilidade de reparação de danos em forma de dinheiro para a vítima


de um crime de estupro, como visto acima, possui diversos objetivos fundamentais no sistema
224

jurídico. Essa reparação tem como propósito trazer compensação e justiça para a vítima, além
de cumprir importantes funções no contexto de combate à impunidade, prevenção de novos
delitos e reconhecimento da dignidade humana. A seguir, apresentamos alguns dos principais
objetivos da reparação de danos em dinheiro para a vítima de um crime de estupro:

1. Compensação pelos Danos Sofridos: A reparação em forma de indenização busca


compensar a vítima pelos danos físicos, psicológicos e emocionais sofridos em decorrência do
crime de estupro. A experiência traumática de um estupro pode deixar marcas profundas na
vida da vítima, afetando sua saúde mental, autoestima, relacionamentos e outras áreas
importantes de sua vida. A indenização, embora não seja capaz de apagar completamente as
sequelas do crime, é uma forma de reconhecimento do sofrimento enfrentado e pode contribuir
para uma eventual recuperação.

2. Reparação Moral: Além da reparação material, a indenização também possui uma


dimensão moral significativa. Ao conceder uma compensação financeira à vítima, o sistema
jurídico reconhece a violação dos seus direitos fundamentais, garantindo o respeito à sua
dignidade e integridade como ser humano. Isso é especialmente importante em casos de estupro,
em que a vítima frequentemente enfrenta estigmatização, julgamentos sociais e culpabilização
indevida. A reparação moral busca reforçar o princípio de que nenhuma pessoa merece ser
vítima de violência sexual e que a sociedade repudia tais atos.

3. Combate à Impunidade: A possibilidade de indenização às vítimas de estupro


contribui para o combate à impunidade. Muitos casos de estupro enfrentam dificuldades na
produção de provas ou nas etapas do processo penal, o que pode levar à absolvição do acusado
por falta de elementos suficientes para a condenação. A ação civil de reparação de danos oferece
à vítima outra via de busca por justiça, independentemente do desfecho do processo penal.
Dessa forma, mesmo que o autor do crime não seja condenado criminalmente, ele pode ser
responsabilizado civilmente e obrigado a reparar o dano causado.

4. Prevenção de Novos Delitos: A indenização à vítima de estupro também desempenha


um papel preventivo. Ao impor uma consequência financeira ao autor do crime, isso pode
desencorajar outros potenciais agressores de cometerem atos semelhantes. Além disso, ao
oferecer suporte e proteção à vítima, a reparação pode encorajá-la a denunciar o crime,
contribuindo para a investigação e punição de estupradores, o que, por sua vez, pode inibir
novas agressões.
225

Em suma, a reparação de danos em forma de dinheiro para a vítima de um crime de


estupro possui objetivos importantes e multifacetados. Além de buscar compensar os prejuízos
sofridos e reconhecer a violação dos direitos da vítima, essa indenização atua como uma
ferramenta no combate à impunidade, na prevenção de novos delitos e na promoção de uma
sociedade mais justa e solidária, onde as vítimas são amparadas e suas dignidades respeitadas.

4 CONCLUSÃO

Paralelamente ao processo penal, a vítima de um crime de estupro pode buscar reparação


pelos danos causados por meio de uma ação civil ex delicto. Essa ação é independente da ação
penal e tem como finalidade obter a reparação dos prejuízos sofridos pela vítima, sejam eles de
ordem material, moral ou psicológica.

A ação civil ex delicto é regida pelo Código Civil Brasileiro, que estabelece as normas
sobre responsabilidade civil e reparação de danos. O artigo 186 do Código Civil dispõe que
aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo. No caso do crime de estupro, o dano causado à vítima é evidente, o
que legitima o ajuizamento da ação civil para buscar a devida compensação pelos prejuízos
sofridos.

Ao ingressar com a ação civil ex delicto, a vítima pode pleitear indenização por danos
morais, que visam compensar as consequências emocionais e psicológicas do crime, e por danos
materiais, que abrangem prejuízos financeiros decorrentes do estupro. A indenização tem o
propósito de proporcionar à vítima uma compensação justa pelos danos sofridos, buscando
também reestabelecer, na medida do possível, a sua dignidade e integridade.

É importante ressaltar que a ação civil ex delicto não depende da sentença penal
condenatória para ser ajuizada, uma vez que é um processo independente com objetivos
próprios. Mesmo que o acusado seja absolvido no processo criminal, a vítima ainda pode buscar
reparação por meio da ação civil, desde que comprove a ocorrência do dano e a relação de
causalidade com o crime de estupro.

Como visto, a condenação penal irrecorrível produz efeitos principais e secundários. O


efeito principal é a imposição da sanção privativa de liberdade (reclusão, detenção ou prisão
simples), restritiva de direitos ou de multa, no caso de condenação. Dentre os efeitos
secundários, no que toca ao dever de reparar o dano causado pela infração penal, o art. 91, inc.
I, do CP estabelece que a sentença penal condenatória torna certa a obrigação de indenizar o
226

dano. Isso não significa, por si só, que haja um título executivo cível. Especificamente no
tocante ao conteúdo civil, na sentença penal condenatória há uma mera declaração do dever de
reparar o dano, sem que haja a imposição de uma sanção civil. Tal dispositivo, porém, é
complementado pelo art. 63 do CPP e pelo art. 784, inc. XII, do CPC, que atribuem à sentença
penal condenatória transitada em julgado a natureza de título executivo judicial.

Verificou-se que existe independência entre as instâncias penal e civil, desta forma o
autor de um dano poderá ser responsabilizado, cumulativamente, na jurisdição civil e penal. No
entanto, o juízo penal poderá fixar um valor mínimo para reparação dos danos na sentença
condenatória, que após o trânsito em julgado, constituirá título executivo judicial na esfera
cível, de maneira que a parte interessada (vítima, seu representante legal ou sucessores) poderá
ajuizar ação de execução na jurisdição cível – denominada de ação de execução ex delicto (art.
63, do CPP). Poderá, no entanto, a vítima proceder a uma ação ordinária de indenização, movida
na esfera cível e que, no âmbito penal, recebe a nomenclatura de ação civil ex delicto. Tal
modalidade reparatória encontra guarida no art. 64, do CPP. Neste último caso a vítima não
precisará aguardar o desiderato do processo crime, propondo imediatamente a ação ordinária
de indenização para a obtenção de um título executivo civil. Todavia, o magistrado da vara
cível poderá suspender o curso desta ação até o julgamento definitivo daquela.

Em suma, não há qualquer reflexo dos efeitos penais e dos efeitos extrapenais
específicos com a obrigação de indenizar o dano causado pelo réu à vítima, em razão da prática
criminosa. O que releva neste aspecto é tão somente o efeito extrapenal genérico previsto no
art. 91, inc. I, do CP, ao estabelecer que a condenação criminal torna certa a obrigação de
indenizar o dano causado pelo crime. Em decorrência das regras incorporadas aos precitados
dispositivos, é possível concluir que, uma vez condenado por sentença penal imutável, estará o
acusado obrigado a indenizar o dano provocado pelo crime, não podendo se esquivar desta
obrigação.

REFERÊNCIAS

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BRASIL, Enunciado n. 45 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça


Federal, 2002.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.185.542/RS, Relatoria do Ministro Gilson Dipp.
Quinta Turma. DJe 16/05/2011.
227

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.585.684/DF, Relatoria Ministra Maria Thereza
de Assis Moura. Sexta Turma. DJe 24/08/2016.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Vol.
3. Responsabilidade civil. 17. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

GOMES, Luiz Flávio; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às
reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 5. ed. Salvador: JusPodivm, 2017.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 13. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2016.

REIS, Alexandre Cebrian Araújo; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito processual
penal esquematizado. 7. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

SANTOS, Leandro Galluzzi dos. As reformas no Processo Penal. In: MOURA, Maria Thereza
Rocha de Assis. (coord). As Reformas no Processo Penal - As novas Leis de 2008 e os Projetos
de Reforma: Júri (Lei 11.689/2008), Provas (Lei 11.690/2008), Procedimentos (Lei
11.719/2008), Recursos (Projeto de Lei 4.206/2001), Medidas Cautelares (Projeto de Lei
111/2008). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

TARTUCE, Flávio. Manual de responsabilidade civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense;
São Paulo: Método, 2018.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12. ed.
Salvador: JusPodivm, 2017.
228

A ADVOCACIA VÍTIMA DE RACISMO RELIGIOSO NO PODER


JUDICIÁRIO: responsabilidade civil e justiça reparatória

Ulisses Soares Passos1

RESUMO
O presente estudo examina a responsabilidade civil em decorrência de racismo religioso contra
advogados(as) no âmbito do Poder Judiciário. Nesse contexto, são abordados os conceitos e os
impactos da intolerância religiosa e racismo religioso, evidenciando a importância de se
prevenir e combater tais práticas discriminatórias como garantia da livre atuação da advocacia,
função indispensável a uma democracia plena e essencial ao Estado Democrático de Direito. A
partir de casos concretos vivenciados por advogados(as) discute-se os impactos negativos que
essas experiências podem trazer ao exercício profissional, entre eles os danos emocionais,
morais, profissionais e psicológicos. Além disso, o estudo se propôs a analisar resoluções
existentes da Ordem dos Advogados do Brasil e do Conselho Nacional de Justiça sobre a
temática, identificando as diretrizes e normativas adotados no enfrentamento do racismo
religioso no ambiente jurídico. Por fim, através da análise bibliográfica, o estudo examina as
possibilidades de responsabilização civil do Estado em decorrência de atos de racismo religioso
contra advogados(as).
Palavras-chave: Racismo Religioso; Responsabilidade Civil; Advocacia; Poder Judiciário.

1 INTRODUÇÃO

A plena atuação dos advogados e das advogadas no sistema de justiça é um pilar


essencial para a garantia do Estado Democrático de Direito, cujo compromisso reside na defesa
dos direitos fundamentais e na busca pela igualdade material perante a lei. No entanto, o cenário
jurídico contemporâneo ainda enfrenta desafios complexos e significativos relacionados à
intolerância religiosa e ao racismo religioso, que comprometem negativamente a advocacia e
ameaçam a busca por uma sociedade mais inclusiva, diversa e equitativa.

O presente estudo tem o propósito de examinar as possibilidades de aplicação da


responsabilidade civil decorrente do racismo religioso direcionado aos advogados e às
advogadas no âmbito do Poder Judiciário, especialmente em suas instalações. A intolerância
religiosa não apenas afeta a livre atuação dos (as) profissionais do Direito, mas também desafia
os alicerces da sociedade ao confrontar os princípios constitucionais da dignidade humana e da
igualdade perante a lei, princípios basilares para a coesão e equidade social. Ainda, serão

1
Advogado OAB/BA 34.509. Mestrando em Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro da
Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa e da Comissão Especial de Relações África e Diáspora,
ambas da OAB/BA. Especialista em Direito e Processo Civil (LEGALE). E-mail: ulisses_soares@hotmail.com.
229

analisadas resoluções da OAB e do CNJ que podem servir como direcionamento tanto para
promoção de construção de um ambiente jurídico mais inclusivo e igualitário quanto para
fundamentar os pleitos de ressarcimento por via judicial.

2 RACISMO RELIGIOSO CONTRA ADVOGADOS NO ÂMBITO DO PODER


JUDICIÁRIO E DA RESPONSABILIDADE CIVIL

2.1 Proteção constitucional à liberdade religiosa no exercício da advocacia

A Constituição Federal Brasileira de 1988 assegura a liberdade religiosa como um dos


direitos fundamentais garantidos a todos os cidadãos. O artigo 5º, inciso VI, da Constituição,
estabelece que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença", garantindo a todos o direito
de professar a religião de sua escolha e praticar seus ritos e cultos, assim como de não possuir
religião. Além disso, o mesmo artigo protege a manifestação da crença ou descrença, vedando
qualquer forma de discriminação por motivo de religião. Notadamente, além de direito
fundamental, a liberdade religiosa também compõe o rol de direitos humanos (SILVA NETO,
2013, p. 86).

Portanto, à falta de respeito e aceitação das crenças religiosas de outras pessoas,


manifestando-se em atitudes discriminatórias e preconceituosas, consiste no fenômeno da
intolerância religiosa. Não obstante, no Brasil, a intolerância religiosa muitas vezes está
intrinsecamente ligada ao racismo, pois as vítimas frequentes desses atos discriminatórios são
membros de grupos étnico-raciais específicos, cuja identidade cultural e religiosa é
desvalorizada, em especial àqueles que professam religiões de matrizes africanas. A esse
fenômeno dá-se o nome de racismo religioso, pois, direcionada à religião ou origem religiosa
de um indivíduo ou grupo, refletindo uma forma de discriminação com base na raça, a partir da
fé, dos símbolos e dos valores religiosos.

O racismo religioso pode ser manifestado por meio de ofensas verbais, agressões físicas
e exclusão de oportunidades profissionais com base na religião ou aparência física relacionada
à fé. Todavia, sua manifestação mais perversa consiste na limitação da individualidade plena
do indivíduo em toda sua potencialidade.
São os negros – primeiros africanos, depois criolos, em seguida pretos, por último
pardos – que têm conformado o que entendemos por ralé, gentinha, povão. São eles
os destituídos de individualidade e, portanto, de direitos. Ora, é exatamente esta a
expressão mais perversa do racismo, que consiste em negar, a uma parcela dos
nacionais, a igualdade e a individualidade plenas desfrutadas por outras, segregando-
230

as e discriminando-a no acesso a bens, serviços e emprego, ou ainda limitando-a nos


seus direitos à cidadania (GUIMARÃES, 1999, p. 200).

Assim, o racismo religioso é um fenômeno que afeta negativamente a convivência social


e o exercício pleno dos direitos humanos, em todas as áreas e papeis sociais, incluindo a
advocacia. Sua origem, e ainda mais sua perpetuação, está intimamente ligada ao mito da
neutralidade jurídica2 e ao estado de coisas estabelecido por duas ideologias imbricadas e
interrelacionadas na sociedade brasileira: a supremacia branca e o monoculturalismo
eurocêntico.

A supremacia branca é uma ideologia que busca afirmar a superioridade da raça branca
sobre outras raças, perpetuando uma hierarquia racial injusta, por meio do disfarce de ideias,
teorias e conceitos europeus como universais, normais e naturais (MAZAMA, 2009). Essa
mentalidade influencia toda a sociedade de modo determinando como certos grupos religiosos
são tratados em todos os espaços, favorecendo certas crenças e desfavorecendo outras.

A cor escura da pele se tornou um código visível de classificação social, que,


historicamente, foi imposto pelo branco colonizador. Tal fenômeno social perdura até
os nossos dias (TELLA, 2018, p. 159).

O monoculturalismo, por sua vez, está relacionado à crença na superioridade e


homogeneidade de uma única cultura, desconsiderando ou desvalorizando a diversidade
cultural existente na sociedade. Essas perspectivas levam à marginalização de práticas
religiosas e culturais diversas, perpetuando a discriminação e a intolerância religiosa.

(...) do próprio conhecimento jurídico, que historicamente fechado à visão da


modernidade, apegou-se a um paradigma de cultura jurídica influenciada pelo
positivismo jurídico, pelo monoculturalismo eurocêntrico, pela dominação masculina
e pela invisibilização de outras narrativas que fujam ao estatuto de dominação política
que atravessa os séculos (SANTOS, 2016, p. 13).

A conjunção da supremacia branca e do monoculturalismo jurídico reforça estereótipos


e preconceitos, definindo os padrões das instituições jurídicas, alimentando uma cultura de
discriminação em toda sociedade:

O descarte de todo o potencial provido pela multiculturalidade e pela diferença,


sobretudo no campo das ciências, fortaleceu os “arquétipos ideais”, os padrões dentro
das instituições jurídicas, onde a inequidade, no que tange à garantia da diversidade
racial, de gênero e de outras identidades, é a regra (SANTOS, 2016, p. 13).

2
A defesa da neutralidade racial parece algo muito razoável para inúmeros juristas brancos, mas a vasta maioria
das pessoas negras a compreende como mais uma estratégia para a manutenção de uma ordem social baseada na
hegemonia branca (MOREIRA, 2019, p. 187)
231

Por outro lado, a Constituição Federal de 1988 consagra o exercício da advocacia como
um dos pilares fundamentais da democracia brasileira em seu artigo 133, reconhecendo a
advocacia como uma profissão essencial para a garantia dos direitos e a busca pela justiça. No
entanto, a intolerância religiosa e o racismo religioso representam sérios obstáculos ao pleno
exercício da advocacia por profissionais que são alvos de discriminação por sua fé e cultura.
Não há advocacia livre com o impedimento de advogados(as) de utilizarem elementos culturais
e religiosos que expressem sua identidade, tais atos discriminatórios desrespeitam os princípios
constitucionais da dignidade humana, da igualdade e da liberdade religiosa.

Portanto, a proteção constitucional à liberdade religiosa torna-se um baluarte para a


defesa dos advogados(as) que são vítimas de racismo religioso e intolerância no exercício de
sua profissão. A Constituição reforça a importância de se combater todas as formas de
discriminação religiosa nos tribunais, garantindo a plena participação e igualdade desses
profissionais no sistema de justiça e na sociedade como um todo. Ao proteger a liberdade
religiosa, a Constituição busca consolidar uma sociedade plural, inclusiva e respeitosa com as
diversas manifestações de fé e cultura presentes no país.

2.2 Dos casos de racismo religioso no acesso de advogados e advogadas às instalações


do poder judiciário

No âmbito do sistema de justiça, onde a igualdade e o respeito aos direitos fundamentais


deveriam ser pilares inquestionáveis, infelizmente, os casos de racismo religioso têm emergido
e se constituído como um desafio preocupante para advogados(as) no exercício de suas funções.
Essas experiências discriminatórias revelam como estereótipos e preconceitos profundamente
enraizados na sociedade ainda encontram espaço para perpetuar a intolerância religiosa no
ambiente jurídico. Através da imposição de restrições à vestimenta e símbolos religiosos,
esses(as) profissionais são submetidos a atos que violam não apenas sua liberdade de crença,
mas também sua identidade cultural e sua capacidade de exercer a advocacia plenamente. É
fundamental compreender a gravidade dessas práticas e o quanto elas contradizem os valores
essenciais da nossa Constituição Federal, que preza pela igualdade de direitos e oportunidades
para todos os cidadãos, independentemente de sua religião ou crença.
232

Diversos desses casos de intolerância religiosa e racismo religioso no exercício da


advocacia nos tribunais são conhecidos3. No entanto, para fins desse estudo foram selecionados
e abordados dois casos com ampliada repercussão na mídia.

No primeiro deles, ocorrido em março de 2019, um advogado foi impedido pela Polícia
Militar e por um funcionário do Poder Judiciário do Estado da Bahia de acessar dois fóruns
diferentes, na presença do seu cliente: o Ruy Barbosa, em Salvador/BA, e o João Mendes, em
Lauro de Freitas/BA, por utilizar um terno branco e um eketé4. O caso foi noticiado pelo jornal
de maior circulação no estado da Bahia:

Dessa vez, um funcionário do fórum questionou o uso do eketé, novamente tratado


como se fosse um objeto qualquer - bonés e chapéus são proibidos, segundo o Tribunal
de Justiça da Bahia (TJ-BA). “Ele disse: Tire o chapéu para poder entrar”. Eu disse
que estava no exercício de minha função e não poderia ter meu acesso restrito. É
lamentável que um profissional indispensável à justiça seja tratado como uma questão
de polícia", reclama o advogado (SANTANA, 2019, p. 1).

O segundo caso, ocorreu em junho de 2023, em Brasília, quando um advogado negro e


baiano foi impedido pela 7ª Turma Cível da 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal e Territórios (TJDFT) de realizar uma sustentação oral em defesa de seu cliente por
utilizar elementos referentes ao candomblé em suas vestimentas.

O desembargador em questão iniciou várias argumentações para o qual eu não podia


falar, mas inicialmente, citando o regimento, dizendo que a roupa do advogado deve
ser compatível com a liturgia e deve ser compatível com o respeito à Corte, que pôr
aquela razão [eu] estaria desrespeitando. Por óbvio, [ele disse] à Corte, que ele era
muito católico, mas que não trazia aquelas questões para o tribunal, e que não se
tratava de preconceito religioso ou racial, no entanto, aquilo não era lugar para isso,
que não era um lugar para essas questões. Portanto, não poderia falar porque minhas
roupas eram inadequadas e era um desrespeito à Corte, contou o advogado (CNN
BRASIL, 2023).

Entrevistado, o referido advogado manifestou sua indignação e o prejuízo moral e


emocional decorrente da ação do desembargador:

Me senti violentado, desrespeitado e impedido de exercer a minha profissão. (…) [O


desembargador] falou que aquilo não se tratava de um preconceito racial ou religioso,
mas que era uma questão de respeito à corte. Ele chegou a falar que se eu tivesse
trazido uma beca mais composta, que ‘eles não perceberiam’. Acho que ele se referiu
às minhas guias5, certamente. (DUTRA, 2023).

3
VIDA, 2023, p.1
4
Eketé é uma indumentária religiosa, de origem africana, utilizada, em determinadas situações religiosas, por
homens de religiões de matrizes africanas no Brasil.
5
São colares utilizados, em determinadas situações, nas religiões africanas e de matrizes africanas no Brasil por
homens e mulheres.
233

Embora o caso tenha sido amplamente noticiado pela mídia, não foi objeto de qualquer
manifestação oficial por parte da OAB/DF. Por outro lado, o acolhimento do profissional vítima
de racismo institucional ocorreu por meio de outra seccional, a OAB/BA, que através do seu
site divulgou uma nota pública:

A Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa da OAB da Bahia vem a


público manifestar seu apoio e solidariedade a todas as pessoas, no exercício de sua
cidadania e busca por acesso à justiça ou no exercício na nobre profissão da advocacia,
que tiveram seus direitos fundamentais violados em repartições públicas,
especialmente, unidades do poder judiciário, em virtude da intolerância religiosa e do
racismo religioso (VIDA, 2023).

Por sua vez, apesar da ampla cobertura, em ambos os casos, os respectivos tribunais não
se manifestaram oficialmente. É importante demarcar que essas ações discriminatórias não
apenas afetam a vida profissional dos advogados, mas também têm reflexos na sua saúde mental
e emocional, além de atentarem contra o direito à igualdade e ao devido processo legal.

A diversidade é um valor intrínseco ao exercício da advocacia, pois representa a riqueza


de perspectivas e experiências que contribuem para a construção de uma sociedade mais justa
e inclusiva. A exclusão de advogados(as) com base em suas crenças religiosas, nega a
pluralidade que deve permear o sistema jurídico, fragilizando a representatividade e a confiança
no acesso à justiça.

Nesse contexto, faz-se necessário promover mudanças estruturais e conscientização no


sistema de justiça. Os casos de racismo religioso no acesso de advogados(as) aos tribunais
ressaltam a urgência de se estabelecer políticas de inclusão e combate à discriminação religiosa,
garantindo um ambiente jurídico mais acolhedor e igualitário para todos os profissionais do
direito.

Além disso, é imprescindível que se discuta a responsabilização civil do Estado diante


do envolvimento de seus agentes nesses atos discriminatórios. A falta de medidas efetivas pode
perpetuar tais práticas e enfraquecer o sistema de justiça como um todo. A conscientização
sobre o impacto devastador que a discriminação religiosa causa na advocacia fortalece a busca
por uma sociedade mais inclusiva e respeitosa com a diversidade religiosa e cultural.

Dessa forma, a promoção da igualdade no acesso e exercício da advocacia deve ser


acompanhada pela necessidade de responsabilização daqueles que praticam ou permitem tais
atos discriminatórios. A efetivação dos princípios constitucionais da igualdade, liberdade
religiosa e dignidade humana exige ações concretas para combater e reparar os danos causados
234

por essas práticas discriminatórias. A responsabilidade civil do Estado é um passo importante


na construção de uma sociedade mais justa e equitativa, onde os profissionais do direito possam
exercer suas atividades livremente, sem qualquer forma de discriminação. A conscientização, a
responsabilização e a implementação de políticas inclusivas são também pilares essenciais para
a consolidação de um sistema jurídico verdadeiramente democrático e respeitoso com as
diversas manifestações religiosas e culturais presentes em nossa sociedade.

2.3 Do conflito entre as resoluções dos tribunais e as resoluções da Ordem dos


Advogados do Brasil

Antes do aprofundamento do estudo da responsabilidade civil do Estado nos casos de


racismo religioso contra advogados(as) nos tribunais, faz-se necessária uma análise cuidadosa
do flagrante conflito que muitas vezes surge entre as normas dos tribunais e as diretrizes
estabelecidas pela própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) relacionadas à vestimenta
para acesso ou exercício da advocacia no âmbito do Poder Judiciário. Essa incompatibilidade
histórica tem gerado reações por parte da OAB, que reafirma sua posição de que a definição da
vestimenta dos advogados(as) é de competência exclusiva da entidade, nos termos do art. 58,
XI, do Estatuto da Advocacia. Nesse contexto, compreender a dinâmica desse embate é
essencial para uma análise aprofundada da responsabilidade do Estado diante de atos
discriminatórios que afetam o exercício pleno da advocacia e desafiam os princípios
fundamentais de igualdade e respeito à diversidade.

Essas divergências entre as normas dos tribunais e as diretrizes da OAB têm se


manifestado em diferentes situações, incluindo casos relacionados ao acesso de advogadas
cujas vestimentas são consideradas incompatíveis com as normas de alguns tribunais. Por
exemplo, pode-se citar o caso, em 2017, de uma advogada grávida que foi barrada em um Fórum
em Tocantins, cujo vestido foi considerado curto pelos funcionários do tribunal, o que resultou
em seu impedimento de entrar nas dependências do Fórum. A OAB/TO se manifestou acerca
de sua competência exclusiva de definir a vestimenta dos profissionais:

Por estes motivos, a OAB-TO se dirigiu à Diretoria do Foro de Palmas na tarde de


ontem, 12/04/2017, e expôs a impossibilidade de o TJ-TO disciplinar a forma como
se traja a advogada no exercício da profissão, pugnando para que não mais fosse
realizada qualquer vistoria à saia e/ou vestido utilizado pelas profissionais inscritas na
OAB-TO, sendo que eventuais excessos devem ser noticiados para o Conselho
Seccional, o qual possui competência exclusiva para dispor sobre vestimenta e,
eventualmente, disciplinar, se for o caso. ( GRILLO, 2017)
235

Em caso similar, e igualmente preocupante, uma advogada foi proibida de entrar no


Fórum Clóvis Beviláqua, em Fortaleza/CE, no ano de 2022, porque supostamente estaria
usando uma saia considerada curta demais. Indignado, o presidente da OAB/CE levantou
questionamentos sobre a quem cabe julgar o tamanho da saia de uma mulher advogada:

Primeiro a saia dela não era curta e caso fosse isso não era um problema. A quem cabe
julgar? Não foi uma apenas violação da prerrogativa profissional, porque o advogado
tem direito a entrar em qualquer recinto e a quem cabe dizer a vestimenta da advocacia
pela Lei, é a Ordem dos Advogados do Brasil. Esse ato, acima de tudo, foi uma
discriminação por ela ser mulher, disse o presidente da OAB-CE. (DE MELO, 2022)

Esses casos demonstram, em analogia ao foco desse trabalho, que a imposição de


restrições arbitrárias à vestimenta no ambiente jurídico vai de encontro aos princípios
constitucionais já elencados, reforçando a necessidade de garantir a liberdade de escolha e
expressão dos advogados(as) em relação à sua vestimenta, sem que isso seja motivo para
impedimentos injustificados em sua atuação profissional.

No contexto abordado, a discriminação de gênero, cuja abordagem intersecional não é


o foco desse estudo, e a intolerância religiosa e o racismo religioso são manifestações de
preconceito e exclusão que desafiam os princípios fundamentais da liberdade, igualdade e
respeito à diversidade. Tais situações destacam a importância de se promover um ambiente
jurídico inclusivo, que respeite e valorize a diversidade cultural, de gênero e religiosa,
garantindo que todas as pessoas, sejam advogados(as) ou partes envolvidas em processos
judiciais, tenham seus direitos e dignidade plenamente respeitados.

Dentre as várias implicações desses atos discriminatórios, também merece atenção a


forma como as normas de vestimenta dos tribunais se relacionam com os(as)
jurisdicionados(as). Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) teve a oportunidade
de se manifestar, em 2014, em virtude do Pedido de Providências nº 0004431-
53.2013.2.00.0000, do requerente Hélcio José da Silva Aguiar, advogado e mestre em direito,
cuja dissertação abordou a inefetividade de acesso à justiça em decorrência das normas
restritivas às instalações do poder judiciário. O voto da relatora, a Conselheira Luiza Cristina
Frischeisen, seguido à unanimidade, julgou parcialmente procedente o pedido de providência
para expedir recomendação aos tribunais que observem os costumes e tradições locais no
momento de regulamentar tal matéria, bem como das comunidades que pretendem o acesso à
justiça.
236

Na fundamentação, a Conselheira do CNJ descreveu com ênfase que as normas para as


vestimentas no âmbito do poder judiciário teriam se ampliado, o que revelaria, segundo ela,
uma razoabilidade e proporcionalidade dos tribunais:

Assim, mesmo em respeito ao princípio da autonomia garantido aos Tribunais pela


Constituição Federal, entendo que já há nítida tendência à uniformização de
procedimentos e atos administrativos na esfera do Poder Judiciário, e isso inclui as
normas aplicadas ao uso de vestimentas nas dependências de juizados, fóruns e
tribunais. Ainda, enfatizo que as normas para as vestimentas têm se demonstrado mais
elásticas em alguns Tribunais do país, alicerçado na razoabilidade e
proporcionalidade, bem como no respeito aos costumes e tradições locais.
(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014).

Além disso, o próprio CNJ editou a Resolução 440 de 2020, a qual institui a Política
Nacional de Promoção à Liberdade Religiosa e Combate à Intolerância no âmbito do Poder
Judiciário e em que no art. 3º, inciso IV, dispõe entre seus princípios norteadores:

IV - A adoção de medidas administrativas que garantam a liberdade religiosa no


ambiente institucional, adotando medidas de incentivo à tolerância e ao pluralismo
religioso entre os seus membros, servidores, colaboradores e público externo, sem
comprometimento da prestação jurisdicional e rotinas administrativas (CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA, 2020).

Apesar da recomendação expedidas pelo CNJ aos presidentes dos tribunais em 2014 e
da Resolução nº 440 de 2020, que buscam promover um ambiente mais inclusivo e respeitoso
à diversidade religiosa, os casos de racismo religioso relatados neste estudo evidenciam que
ainda há desafios e obstáculos a serem superados. O resultado tem se mostrado ineficaz à
preservação da dignidade do exercício da advocacia, como ficou explícito nos casos de racismo
religioso elencados nesse estudo.

De acordo com o cenário atual, observa-se que a maioria das seccionais da OAB não
estabeleceu normas ou resoluções específicas para proteger os advogados(as) contra o racismo
religioso e a intolerância religiosa no âmbito do poder judiciário. Quando houve ações por parte
das seccionais, estas se limitaram a flexibilizar o uso de paletó e gravata para homens e blazers
para mulheres, adotando normas de vestimenta mais "elásticas"6, que já foram implementadas
por alguns tribunais. Essas medidas indicam uma postura ainda insuficiente e cunhada no
universalismo, diante da gravidade dos casos de racismo religioso enfrentados pelos(as)
profissionais do Direito nos tribunais.

6
Referência a expressão utilizada pela Conselheira Relatora em seu voto no Pedido de Providências nº 0004431-
53.2013.2.00.0000
237

Jurista brancos não reconhecem algo de extrema importância para a análise das formas
de reprodução da subordinação negra. Eles argumentam que medidas universais
podem promover a inclusão de todos os grupos raciais (...). Eles não reconhecem que
a convergência de fatores de discriminação situa membros desses grupos em situações
inteiramente distintas. (...) eles não sofrem danos psíquicos decorrentes da
representação universal de dos membros do seu grupo como inferiores. (MOREIRA,
2019, p. 97)

Diferentemente das outras seccionais, o Conselho Pleno da OAB/BA adotou uma


postura assertiva e inclusiva ao editar a Resolução 003/2023. Esta resolução reconhece as
vestes, adereços e indumentárias religiosas africanas como compatíveis com o decoro, respeito
e urbanidade necessários para o exercício da advocacia:

Art. 1º Esta Resolução disciplina sobre a permissão e respeito ao uso de turbante, o


ojá, o eketé, o kufi, ao lado de outras formas de expressão religiosas e/ou culturais nos
documentos de identificação da Ordem, bem como a permissão de uso no acesso e
permanência de pessoas nos espaços do sistema OAB/BA, bem como o
reconhecimento das vestes e adereços como compatíveis com o decoro, respeito e
urbanidade necessários para o exercício da advocacia. (...)
Art. 7º. Reconhecimento das vestes, adereços e indumentárias das religiões de
matrizes africanas como compatíveis com o decoro, respeito e urbanidade necessários
para o exercício da advocacia. (ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL-
SECCIONAL BAHIA, 2023)

Essa iniciativa da OAB/BA contribui para a construção de um ambiente mais igualitário


e acolhedor para advogados(as) que pertencem a essas religiões, possibilitando que exerçam
sua profissão sem enfrentar discriminação ou restrições arbitrárias baseadas em suas crenças
religiosas. Além disso, ao reconhecer e valorizar as expressões religiosas e culturais dos(as)
profissionais da advocacia, a OAB/BA fortalece os princípios constitucionais da liberdade
religiosa e da igualdade, reafirmando o compromisso do Estado com o respeito à diversidade
cultural e religiosa.

Por fim, cabe comentar que, embora o Conselho Federal da OAB tenha Comissões
Especiais dedicadas à liberdade religiosa e às prerrogativas dos(as) advogados(as), ainda não
existe uma resolução específica dessa instância que estabeleça medidas de proteção contra o
racismo religioso no âmbito do Poder Judiciário.

Essas lacunas e divergências demonstram a necessidade de uma abordagem mais


aprofundada sobre a responsabilidade civil do Estado diante de casos de discriminação religiosa
que afetem os profissionais da advocacia. A discussão sobre a responsabilização do Estado e
de seus agentes pode garantir que a justiça seja efetivamente acessível e inclusiva, respeitando
os princípios fundamentais da Constituição Federal e assegurando a dignidade e a igualdade de
todos os advogados (as) em seu exercício profissional.
238

2.4 A responsabilidade civil do estado quanto à prática de racismo religioso contra


advogados (as)

Diante dos casos de racismo religioso relatados, torna-se evidente a necessidade de


responsabilização do Estado pelos atos de seus agentes que perpetuam a intolerância religiosa
e o racismo religioso. Além da responsabilização criminal, é possível analisar o racismo
religioso sob a ótica da responsabilidade civil:

Por fim, é possível concluir que, além de crime, a intolerância religiosa é também
analisada sob a ótica do direito civil, por violar direito garantido na Constituição da
República Federativa do Brasil e afrontar, notadamente, os Direitos Humanos.
(RAGASINI, 2019)

A responsabilidade civil do Estado é uma medida essencial para garantir que as vítimas
desses atos sejam devidamente indenizadas pelos danos emocionais, profissionais e
psicológicos causados, bem como para incentivar a implementação de políticas e práticas
institucionais que promovam um ambiente jurídico mais inclusivo, respeitoso e igualitário.

A responsabilidade civil do Estado pode ser subdividida em dois regimes: a


responsabilidade objetiva e a responsabilidade subjetiva.

No regime de responsabilidade objetiva, o Estado é responsabilizado


independentemente da comprovação de culpa ou dolo por parte de seus agentes. Basta que haja
o dano e o nexo de causalidade entre a conduta do agente público e o prejuízo sofrido pela
vítima. Já no regime de responsabilidade subjetiva, é necessário comprovar a culpa ou dolo do
agente público para que o Estado seja responsabilizado pelos danos causados.

No contexto da prática de intolerância religiosa e racismo religioso contra


advogados(as) nos tribunais, a responsabilidade civil do Estado é analisada sob o prisma da
responsabilidade objetiva. Isso porque, em casos de discriminação e violação de direitos
fundamentais, o Estado é considerado responsável pelos atos de seus agentes,
independentemente de culpa.

A responsabilidade civil do Estado nesses casos está fundamentada na teoria do risco


administrativo, que estabelece que o Estado responde pelos danos causados a terceiros em
virtude de atos ou omissões de seus agentes, independentemente da comprovação de culpa. Isso
significa que a vítima não precisa provar que o Estado agiu com dolo ou culpa, bastando
comprovar o nexo causal entre a conduta discriminatória e o dano sofrido.
239

Nos casos de responsabilidade objetiva, o Estado só se exime de responder se não


houver nexo causal entre o seu comportamento e o dano causado. A responsabilidade do Estado
é incontestável, exceto quando não é comprovada a produção da lesão que lhe é imputada, ou
quando a situação de risco a ele atribuída não existiu ou não teve relevância decisiva para o
surgimento do dano. Em suma, se os pressupostos da responsabilidade objetiva estiverem
presentes, não há possibilidade de escapar da responsabilização (MELLO, 2021).

Nesse contexto, a busca pela responsabilização do Estado é essencial para proteger os


direitos fundamentais dos(as) advogados(as) contra atos de discriminação no ambiente jurídico.
Quando agentes públicos agem de forma discriminatória, impedindo o acesso e a atuação dos
advogados nos fóruns e tribunais com base em elementos culturais e religiosos, configuram-se
casos de intolerância religiosa e racismo religioso. A responsabilização do Estado torna-se
imprescindível para assegurar a livre atuação da advocacia, que constitui um pilar indispensável
do Estado Democrático de Direito, promovendo uma advocacia verdadeiramente inclusiva e
democrática.

Nos casos citados de racismo religioso contra advogados(as), houve uma clara violação
dos princípios constitucionais da igualdade perante a lei e da liberdade religiosa, assegurados
pela Constituição Federal de 1988. O Estado, enquanto detentor do poder e responsável por
garantir o acesso à justiça e a igualdade de tratamento a todos os cidadãos, deve zelar para que
seus agentes ajam de forma imparcial, respeitosa e inclusiva, sem praticar qualquer forma de
discriminação.

Ao impedir que os(as) advogados(as), utilizem vestimentas ou elementos culturais


relacionados ao candomblé, os(as) agentes do Estado ferem a diversidade religiosa e cultural
da sociedade brasileira, restringindo o pleno exercício dos direitos dos(as) advogados(as) e
perpetuando a marginalização de práticas religiosas de matriz africana.

O respeito às autonomias das diversas populações através de suas etnias e povos


traduz em agendas as lutas de igualdade a partir da constatação da diferença em sua
acepção mais abrangente que alcança direitos de equidade. Isso leva inevitavelmente
a políticas de processos e procedimentos equitativos. As condições de igualdade falam
mais alto que a própria igualdade formalizada invocando a sua plena realização, a
materialidade, através de dispositivos que garantam situações iguais para pessoas
diferentes. (SÃO BERNARDO, 2022, p. 196)

Os danos morais, emocionais e profissionais decorrentes do racismo religioso podem


ser profundos e abrangentes, afetando significativamente a vida pessoal e a carreira do(a)
advogado(a) vítima de discriminação nos tribunais. Esses danos podem manifestar-se de
240

diversas formas e podem ter um impacto duradouro na saúde mental, no bem-estar emocional
e no desempenho profissional da vítima. Alguns aspectos importantes a serem considerados são
o sofrimento psicológico, estresse e trauma, impacto na saúde mental e prejuízos nas relações
interpessoais.

O estigma racial afeta diretamente a honra pessoal, uma dimensão da personalidade


de tamanha importância que passou a ser considerada como um bem jurídico ao longo
de toda a história. Esse conceito tem uma dimensão subjetiva e também uma dimensão
objetiva, sendo que ambas são construídas por meio de um processo intersubjetivo.
(MOREIRA, 2019, p. 161)

A comprovação dos danos sofridos em decorrência de atos discriminatórios é


fundamental para a responsabilização civil do Estado nos casos de intolerância religiosa e
racismo religioso contra advogados(as) nos tribunais. Para isso, os(as) advogados(as) podem
utilizar diversos elementos e meios de prova para demonstrar a ocorrência do prejuízo causado
pela conduta discriminatória. Alguns desses elementos incluem: depoimentos e testemunhas,
provas documentais, perícias técnicas, laudo psicológico e pareces técnicos e registros
institucionais.

Por fim, a responsabilização civil do Estado nos casos de intolerância religiosa e racismo
religioso reveste-se de essencialidade não somente para a reparação das vítimas, mas também
para fomentar uma transformação estrutural no âmbito jurídico. Por meio do reconhecimento e
enfrentamento dos atos discriminatórios, o Estado evidencia seu comprometimento com a
salvaguarda dos direitos fundamentais e a consolidação de um sistema de justiça mais inclusivo
e equitativo.

Acrescenta-se, ainda, que a responsabilização figura como uma relevante engrenagem


preventiva, ao advertir que condutas discriminatórias não serão condescendidas e que ações
corretivas serão aplicadas aos transgressores. Destarte, a busca pela responsabilização do
Estado consubstancia-se como um passo primordial na edificação de uma sociedade mais justa
e respeitosa para com a diversidade étnico-racial, religiosa e cultural.

3 CONCLUSÃO

O presente estudo buscou examinar a responsabilidade civil do Estado diante dos casos
de intolerância religiosa e racismo religioso contra advogados(as) nos tribunais. Através da
análise de casos concretos, observou-se como essas experiências discriminatórias refletem a
perpetuação de estereótipos e preconceitos arraigados na sociedade, impactando negativamente
241

a participação desses(as) profissionais no sistema de justiça. Nesse contexto, destacou-se a


importância de políticas institucionais e medidas preventivas para combater tais atos
discriminatórios e promover um ambiente jurídico mais inclusivo e igualitário.

A análise do conflito entre as normas dos tribunais e da OAB relacionadas à vestimenta


para o acesso e exercício da advocacia no poder judiciário revelou a existência de divergências
significativas. Enquanto algumas seccionais da OAB adotaram normas mais elásticas,
reconhecendo a compatibilidade das vestes e adereços religiosos africanos com o exercício da
advocacia, outras ainda não dispõem de resoluções específicas sobre a proteção dos advogados
contra a intolerância religiosa e o racismo no ambiente judiciário. Neste cenário, a Resolução
003/2023 do Conselho Pleno da OAB/BA representa um avanço significativo no combate à
intolerância religiosa e ao racismo religioso no ambiente jurídico, promovendo a valorização
da diversidade cultural e religiosa no exercício da profissão cuja iniciativa serve como exemplo
para outras seccionais e tribunais, incentivando a implementação de políticas mais inclusivas
que garantam a igualdade de direitos e oportunidades para todos os advogados(as),
independentemente de sua religião ou crença.

Nesse cenário, discutiu-se a relevância da responsabilização civil do Estado como


instrumento dissuasório e reparatório diante desses atos discriminatórios. A responsabilidade
objetiva do Estado se estabelece quando presentes os pressupostos da relação de causalidade
entre a conduta comissiva e o dano, e a inexistência de excludentes de responsabilidade. A
comprovação dos danos sofridos pelos(as) advogados(as) em decorrência dessas condutas
discriminatórias se mostrou crucial para a responsabilização do Estado.

Dentre os danos frequentemente enfrentados pelos(as) advogados(as), destacaram-se os


danos emocionais e profissionais. A violência simbólica e a negação do exercício pleno da
advocacia com base em vestimentas ou símbolos religiosos comprometem a dignidade e a
identidade cultural desses profissionais, gerando consequências emocionais e psicológicas.
Além disso, tais atos discriminatórios impactam negativamente a carreira dos (as) advogados
(as), prejudicando sua reputação e oportunidades profissionais.

É fundamental que o Poder Judiciário e a advocacia trabalhem em conjunto para


combater a intolerância religiosa e o racismo religioso, assegurando que todos os cidadãos e
profissionais do Direito tenham seus direitos e dignidade plenamente respeitados. A busca por
um sistema de justiça mais justo e igualitário requer o compromisso de todos os envolvidos
para garantir que atos discriminatórios sejam prontamente identificados, enfrentados e
242

reparados, contribuindo assim para a construção de uma sociedade mais justa e respeitosa com
a diversidade cultural e religiosa de seu povo.

Em síntese, a busca pela responsabilização do Estado por atos discriminatórios é um


passo fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, respeitosa e inclusiva. A
preservação da dignidade do exercício da advocacia e o combate à intolerância religiosa e ao
racismo religioso no âmbito do Poder Judiciário requerem ações efetivas e contínuas para
assegurar a plena garantia dos direitos fundamentais dos profissionais e dos demais cidadãos
envolvidos no sistema de justiça. O compromisso do Estado é essencial para a construção de
um ambiente jurídico que reafirme a proteção da diversidade cultural e religiosa, promovendo
a igualdade de direitos e oportunidades para todos os cidadãos.

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