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Revisora
Dieniffer de Souza Silva Lemes
N848
Novos paradigmas do direito de familia e sucessões//, Carlos Eduardo Lamas, Ana
Luiza Berg Barcellos, Victor de Abreu Gastaud, Alexandre Torres Petry.
(Organizadores). – Porto Alegre: OABRS, 284p.
ISBN: 978-65-88371-29-9
1. Direito de família. 2. Sucessões. I. Título
CDU: 347.6
Bibliotecária Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB 10º 1.5717
CDU:cccc
DIRETORIA/GESTÃO 2022/2025
CONSELHO PEDAGÓGICO
CORREGEDORIA
OABPrev
COOABCred-RS
PREFÁCIO
Com enorme satisfação, a Escola Superior de Advocacia do Rio Grande do Sul e demais
organizadores deste e-book me honraram com convite para redigir o prefácio desta
relevantíssima obra, denominada “Novos paradigmas do direito de família e sucessões”.
Trata-se, pois, de projeto vanguardista, ponderado conjuntamente pela ESA/RS, por
intermédio de Alexandre Torres Petry – diretor de e-books e da revista eletrônica da instituição
–, e pela Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da Subseção de Pelotas,
capitaneada pelos ilustres e operosos presidente e vice-presidente: Carlos Eduardo Lamas
Santos da Silva e Ana Luiza Berg Barcellos, respectivamente.
Este importante material contempla dezoito artigos, redigidos por advogados e
advogadas dedicados ao estudo e à prática do direito de família e sucessões, a partir dos temas
mais contemporâneos acerca da matéria. Formou-se, assim, um substancioso compilado de
textos, os quais, certamente, engrandecerão o conhecimento dos profissionais voltados às
questões que tangenciam essa sensível área do direito e do pensamento jurídico.
Nesse sentido, cumprimento, muito efusivamente, não apenas os seus organizadores,
mas, também, cada uma das pessoas que dedicou parcela relevante de seu tempo para elaborar
os excelentes artigos selecionados. Da mesma forma, agradeço, em nome da Subseção de
Pelotas, o pronto acolhimento da ESA/RS à proposta formulada.
Esta iniciativa, certamente, suscitará outros projetos desta natureza, que virão para
proporcionar espaço genuinamente de valorização e capacitação da advocacia, sem descuidar
de admirável mister da ESA/RS: ascender o nível cultural de advogadas e advogados gaúchos.
Invito, assim, às leitoras e aos leitores, que usufruam deste e-book, e empreguem o seu
conteúdo no exercício da advocacia, bem como na academia, pois, a toda evidência, será de
enorme proveito. Esta é, seguramente, uma proposta da Subseção de Pelotas, da ESA/RS e da
Seccional gaúcha, liderada pelo presidente Leonardo Lamachia, comprometido a atender, sem
medir esforços, aos pleitos da classe e, sobretudo, ao aprimoramento intelectual e profissional
daqueles que compõem o quadro de advogadas e advogados de nosso Estado.
APRESENTAÇÃO
São cada vez mais intensas e constantes as mudanças ocorridas na família brasileira, o
que implica em uma necessária transformação também no direito de família e sucessões.
O percurso percorrido pela legislação (mesmo que atrasada às demandas
contemporâneas) e jurisprudência bem exemplifica este dinamismo: em menos de um século,
saímos de um patriarcado e caminhamos à possibilidade de famílias poliafetivas, multiparentais
e até mesmo multiespécie.
Incontestável que a doutrina familista é uma das grandes responsáveis pelos avanços no
reconhecimento dos direitos aplicados aos sujeitos destes núcleos familiares, uma vez que
muitas das transformações se deram em âmbito jurisprudencial, com fundamento único e
exclusivo em teses doutrinárias, tendo em vista a legislação em total atraso com a sociedade
contemporânea.
O interesse que a advogada e o advogado familista despertam ao estudo constante é o
que nos impulsionou, como representantes da Comissão Especial de Direito de Família e
Sucessões da Subseção de Pelotas, a criar este projeto, automaticamente abraçado pela diretoria
da OAB Pelotas, na qual agradecemos na pessoa de seu presidente, Victor Gastaud.
Diante destes motivos, a Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB
Pelotas, em conjunto com a Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil
– Seccional do Rio Grande do Sul, resolveram lançar o E-book Novos Paradigmas do Direito
de Família e Sucessões.
Novos paradigmas desafiam novos modelos, abordagens contemporâneas. Os autores
se desincumbiram deste desafio, com um olhar sensível ao que os temas exigem.
O E-book Novos Paradigmas do Direito de Família e Sucessões agrega trabalhos que
contemplam tanto as questões existenciais, como as matérias do direito de família e sucessório,
com reflexões voltadas às complexidades doutrinárias e jurisprudenciais em assuntos
controvertidos e inovadores.
Os dezoito artigos permeiam os mais diversos e atuais assuntos. Destacamos nesta
apresentação alguns ramos de reflexão que o leitor encontrará neste E-book.
A temática da autonomia de vontade e da contratualização no direito de família vem se
mostrando de grande relevância às famílias contemporâneas, as quais, por força de suas
especificidades, inclusive patrimoniais, precisam fixar cláusulas que regrarão a relação de
forma personalizada, impondo-se, pois, reflexão acerca da mitigação das interferências estatais
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frente a autonomia privada. Na seara das questões patrimoniais no âmbito familiar, a obra
contempla, também, o estudo acerca do regime de bens aplicável à união estável nos casos de
causa suspensiva ao casamento.
Outros temas sobre os quais o E-book não poderia se furtar na abordagem são os
pertinentes ao abandono afetivo e à alienação parental, assuntos de imensa relevância psíquica,
social e jurídica, e sobre os quais os operadores do direito precisam estar atentos e zelosos em
seu trato, visando, assim, o melhor atendimento dos interesses das crianças e adolescentes, os
quais são as vítimas das práticas desta natureza.
Aspectos relacionados à prática profissional e à morosidade de procedimentos na seara
do direito de família também permeiam o E-book ora lançado. No primeiro tópico, a discussão
acerca da advocacia colaborativa e a necessária abordagem interdisciplinar são expostas para
contribuir com a atuação profissional dos advogados das áreas de direito de família e sucessões.
E, na segunda temática, são expostas as necessárias reflexões acerca dos procedimentos de
adoção no Brasil e sua morosidade, que tantos danos causam aos adotandos em potencial.
Ainda no campo do direito das famílias, temáticas relacionadas à prestação alimentar de
natureza compensatória e, também, acerca da possibilidade da ação de exigir contas para
fiscalização da destinação da verba alimentar, estão contempladas no presente E-book.
Por fim, a reflexão acerca dos papéis sociais familiares, o estudo das famílias como
sistema social à luz da teoria luhmanniana e, ainda, a investigação sobre a construção de
relações de multiparentalidade e da paternidade socioafetiva post mortem, contribuem para
reflexão dos leitores.
Já no campo no direito sucessório os assuntos expostos igualmente se mostram atuais,
com a exposição de temáticas relacionadas à herança digital e a constituição de legados.
Visando, pois, a colaborar para o aperfeiçoamento técnico dos profissionais direito na
área do de família e sucessões, rogamos que o presente E-book auxilie na necessária atuação
técnica que se impõe aos operadores do direito.
Agradecemos aos envolvidos nesta produção, em especial aos autores e autoras.
Votos de uma excelente leitura!
RESUMO
A união estável, nas últimas décadas, consolidou-se como um dos formatos de constituição das
famílias. Ao longo do tempo, o ordenamento jurídico foi sendo constituído e atualizado para
acompanhar os anseios sociais neste campo. O Poder Judiciário, por sua vez, pronunciou-se de
forma inédita em inúmeras circunstâncias, assegurando proteção jurídica aos indivíduos. Os
operadores do Direito desafiam-se, diariamente, na investigação e constituição de mecanismos
capazes de protegerem os direitos dos cidadãos. A fixação da retroatividade do regime de bens
na união estável representa um dos desafios para o tormentoso tratamento patrimonial nas
uniões estáveis, encontrando-se, contudo, resistência no Poder Judiciário. Os profissionais do
Direito, porém, seguem defendendo os interesses dos conviventes, argumentando - respeitosa
e fortemente - o equívoco dos Julgadores. Neste artigo, então, o tema da autonomia privada no
Direito das Famílias é objeto de breves reflexões, sendo associado ao assunto da retroatividade
do pacto de convivência no que tange ao regime de bens.
1 INTRODUÇÃO
Todos sabemos que nas últimas décadas muito se vem discutindo acerca da intervenção
do Estado no Direito das Famílias. As mudanças sociais demonstram a necessidade de serem
revistas as normas não mais compatíveis com as características e anseios sociais, especialmente
porque o Direito das Famílias ainda se via vinculado ao modelo do Código Civil de 1916,
inobstante o Código Civil de 2003 tenha apresentado inúmeros avanços. Neste ponto, sublinha-
se que ainda seguimos sofrendo com influências históricas de natureza cultural e jurídica no
Direito das Famílias, mas desenvolvendo e ampliando novas conjecturas, as quais se propõem
a atender as demandas e necessidades da sociedade contemporânea.
1
Advogada (OAB/RS 55626); Coordenadora do Curso de Direito das Faculdades João Paulo II – Polo Pelotas;
Vice-Presidente do Núcleo Pelotas do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM); Especialista em
Direito Processual Civil pela PUCRS; Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de
Direito Mestre em Educação pela UFPEL e Doutora em Política Social e Direitos Humanos pela UCPEL. E-mail
analuiza@mmouraadvogados.com.
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Atentando, assim, a evolução do Direito das Famílias, aos anseios e receios da sociedade
atual, especialmente decorrentes das alterações na forma como as relações afetivas se
constituem, é que observamos a necessidade de nos debruçarmos sobre os aspectos de liberdade
contratual e autonomia privada focados no Direito das Famílias.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O Direito, por sua vez, em especial o Direito das Famílias, deve acompanhar tal
conjuntura, transformando, promovendo e acolhendo mecanismos técnicos que confiram
segurança jurídica.
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Há uma passagem de Miguel Reale (2001), abordando o teor do Código Civil de 2002,
que tomamos a liberdade de compartilhar no início deste artigo por ser, sem dúvida, expressão
dos desígnios desta norma e contributivo para a abordagem aqui proposta. Vejamos:
Quando entrar em vigor o novo Código Civil, perceber-se-á logo a diferença entre o
código atual, elaborado para um país predominantemente rural, e o que foi projetado
para uma sociedade, na qual prevalece, em grande parte, a vida urbana. Haverá uma
passagem do individualismo e do formalismo do primeiro para o sentido socializando
do segundo, mais aberto às mutações sociais, com substancial mudança no paradigma
jurídico-social.
Além disso é superado o apego a soluções estritamente jurídica, reconhecendo-se o
papel que na sociedade contemporânea voltam a desempenhar princípios de boa-fe e
correção, para que possa haver real concreção jurídica.
Sociedade e eticidade condicionam os preceitos do novo Código Civil, no qual
desempenham grande papel as normas ou cláusulas abertas.
O atual Código Civil está assentado em três diretrizes que nortearam a sua construção
legislativa, e seguem orientando sua interpretação, quais sejam: socialidade, eticidade e
operabilidade. Muita sinteticamente, temos que princípio da socialidade está relacionado ao
preceito constitucional de solidariedade social, visando compor os interesses individuais e
sociais nas relações constituídas. O princípio da eticidade visa preservar relações pautadas pela
ética, pela confiança nas relações instituídas e, em especial, pela boa-fé objetiva, que pressupõe
conduta leal, que permita a manutenção da confiança e das expectativas do negócio. Por fim, o
princípio da operabilidade visa proporcionar caráter de fácil manejo do Código Civil, com
estrutura hermenêutica, por exemplo, que se vale de cláusulas abertas, visando, também,
contemplar tratamento jurídico também aos avanços e às mudanças sociais. Há uma situação
de Judith Martins Costa (2002, p. 160) que bem pontua tal viés:
[...] é preciso ter presente sua nova racionalidade, que, não mais pretendendo tudo
regular, requer as contribuições da doutrina e da jurisprudência para continuar e
completar a sua força normativa, postulando, por igual a consciência de todos os
cidadãos, destinatários do Código – os reais construtores de sua normatividade – de
que ‘não existe a plenitude do Direito escrito, mas sim a plenitude ético-jurídica do
ordenamento.
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O respeitado e tradicional doutrinador Paulo Lobo (2008, p. 47/48) é quem cunhou, pela
primeira vez, em 1999, o status de princípio jurídico ao afeto, sendo sua lição no sentido de que
o princípio da afetividade consolida o Direito das Famílias com atenção na estabilidade das
relações afetivas e na comunhão de vida, sobrepondo-se estas sobre os aspectos relacionados
aos vínculos biológicos ou, ainda, questões de natureza patrimonial.
Nesta linha de pensamento, Ricardo Calderón (2017, p. 153) organiza tal tema nos
seguintes termos:
Percebe-se, pois, que tanto a afetividade, como a socioafetividade, são assinaladas como
condição exteriorizada e percebida no meio social, sendo, em consequência deste
reconhecimento pela coletividade, que as implicações jurídicas e o tratamento pelo Direito
merece atenção.
No caso concreto, o STJ deu provimento ao recurso especial que pretendia a reforma de
acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, no qual houve o pronunciamento no sentido do
cabimento da retroatividade da escolha do regime de bens feita pelo casal, no caso, separação
convencional de bens.
A união estável, na hipótese sob julgamento, vigorava faticamente desde maio de 2000,
sendo apenas em 2008 que as partes formalizaram a relação, fixando, então, o regime de
separação de bens de forma retroativa ao início da união. Quando, porém, realizada a dissolução
da relação, uma das partes buscou no Poder Judiciário anular a cláusula acerca do regime de
bens, não obtendo êxito nas instâncias ordinárias, mas vendo a tese acolhida no Superior
Tribunal de Justiça.
analogia, as regras do art. 1639, §2º, Código Civil, no qual restam previstas as exigências para
alteração do regime de bens no casamento.
de bens como o regime legal, o qual vigora independentemente da manifestação de vontade das
partes. Independentemente desta ressalva, entendemos, todavia, que a interpretação do Ministro
é coerente e razoável na perspectiva de que a união estável sempre esteve pautada, desde o seu
surgimento, pela informalidade. Por conseguinte, sendo a matéria do regime de bens direito
disponível, foge à plausibilidade o tratamento igualitário que o Poder Judiciário tenta conferir
entre casamento e união estável, equiparando institutos que historicamente pautaram-se pela
distinção no viés da (in)formalidade.
O que percebemos é que, embora nas últimas décadas haja um movimento para o Direito
das Famílias mínimo, ou seja, cada vez mais a intervenção do Poder Judiciário nas relações
privadas seja diminuta, por vezes, o Judiciário surpreende a sociedade com decisões do gabarito
da exposta, a qual, inclusive, não é exatamente uma posição inovadora, pois em anos anteriores
já tivemos pronunciamentos desta estirpe.
De todo modo, o ponto central neste assunto é: diante deste tipo de entendimento,
exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, como restam, os princípios da autonomia privada,
da liberdade contratual neste contexto?
Parte considerável da doutrina brasileira vem se posicionando no sentido de ser
perfeitamente viável a contratualização no Direito das Famílias, justamente por respeito à
autonomia privada, devendo, entretanto, respeitar-se as normas cogentes, como é premissa
básica do direito pátrio.
A título ilustrativo, Flávio Tartuce (2021) arrola algumas matérias cujas cláusulas serão
nulas se previstas em pacto antenupcial ou em contrato de convivência:
No que tange ao primeiro item acima referido, devemos ponderar que a autonomia
privada vem sendo tão profundamente fortalecida que a autocomposição está legalmente
assegurada até mesmo acerca de direitos indisponíveis que admitam transação. Tal previsão
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está contemplada na Lei de Mediação, Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, a qual fixa no
art. 3º que “pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre
direitos indisponíveis que admitam transação”.
Se o pacto apresentar agentes capazes, objeto lícito e formação prescrita ou não defesa
em lei, bem como manifestação de vontade pronunciada isenta de quaisquer vícios, temos
atendidos os pressupostos contratuais, tal como previsto no art. 104, Código Civil. Importante
ponderação sobre o assunto encontramos por Francisco Cahali (2002), para quem a liberdade
dos conviventes em disciplinar o tratamento de seus bens, sejam os preexistentes ou os futuros,
merece ser preservada sob pena de estarmos impondo limitações ao exercício pleno da
capacidade civil dos conviventes, bem como ao exercício dos poderes inerentes ao direito de
propriedade, o que implica em ofensa à Carta Magna, especificamente ao art. 5º, incisos XXII,
XXIII e art. 170, inciso III, os quais versam, o primeiro, sobre garantia do direito de
propriedade, e os dois últimos, acerca exigência de que a propriedade atenda sua função social.
Rolf Madaleno, de outro lado, posiciona-se em sua consistente obra Direito das Famílias
com firme crítica à possibilidade de alteração do regime legal de bens da união estável de forma
retroativa. Vislumbra sérios riscos de convalidação de fraudes, assinalando que a admissão da
renúncia indireta de bens após a aquisição do patrimônio “só poderia ser considerar válida
quando não prejudicasse terceiros e quando não atentasse contra a ordem pública, tampouco
prejudicasse o próprio convivente atingido pela súbita perda de sua meação”. Ademais, destaca
Madaleno (2020, p. 1233):
Cabe, ademais, considerar que a união estável tem sua origem nas relações fáticas, sendo
sua instituição fruto do desejo dos conviventes em constituírem uma conexão sem as
formalidades do casamento. Se o anseio dos sujeitos fosse formalizar o liame desde seu início,
optariam pelo casamento, sendo a união estável instituto eleito justamente para escaparem dos
formalismos. Assim, geralmente, quando deliberam por formalizar a união estável, o fazem em
um momento de maturidade do relacionamento e opção em registrar o vínculo estabelecido,
sendo a escolha do regime de bens de forma retroativa o mecanismo de cautela e segurança
desejável nestes casos.
3 CONCLUSÃO
Face aos elementos expostos, devemos sublinhar que o Direito das Famílias inclinou-se
nos últimos anos para a intervenção mínima do Estado, priorizando-se o respeito à autonomia
privada.
Além disso, havendo vícios de consentimento nesta espécie negocial, terá o convivente
lesado os meios próprios para declarar a nulidade ou pleitear a anulabilidade do ato jurídico, a
depender do vício existente. Alguns estudos sobre o tema ponderam o risco de coação no âmbito
das relações familiares, o que implicaria na produção de contratos lesivos a um dos conviventes.
Contudo, mais uma vez, não podemos pautar como não retroativos os pactos sob o argumento
da existência de risco de sujeitos mal-intencionados, pois, nesta circunstância, estamos
deixando desamparados outros tantos conviventes que de forma livre e consciente elegem o
regime de bens e pretendem sua incidência de modo retroativo.
De todo modo, considerando que a celeuma sobre o assunto está instaurada, e que em
face do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, os Tabelionatos de Notas não mais vêm
lavrando escrituras de união estável com fixação do regime de bens de modo retroativo, tem-se
a possibilidade de que os sujeitos firmem tais pactos pela via dos instrumentos particulares.
Neste caso, se a opção dos conviventes for o regime da separação convencional de bens, podem,
também, fixar no ato contratual que, reciprocamente, conferem quitação patrimonial até aquele
momento.
REFERÊNCIAS
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RESUMO
O presente estudo parte da inexistência de legislação que regulamente os efeitos das causas
suspensivas matrimoniais à união estável e por consequência, a aplicabilidade ou não da
obrigatoriedade do regime de separação de bens aos companheiros. Desta forma, o trabalho
busca a partir do reconhecimento da inexistência da previsão legal compreender qual tem sido
a forma como a doutrina e a jurisprudência tem entendido adequado suprir esta lacuna legal e
qual regime de bens tem entendido aplicável aos companheiros que estão sob efeito das causas
suspensivas matrimoniais. A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi a pesquisa
bibliográfica, utilizando-se como apoio às contribuições de diversos autores sobre o assunto,
assim como, tomou-se por base o entendimento jurisprudencial.
1 INTRODUÇÃO
O casamento, regulamentado no Código Civil, a partir do artigo 1.511,, traz entre outros
1
Advogada na área de Direito de Família e Sucessões. Mestre em Filosofia, Professora de Direito Civil e Mediadora
Judicial. OAB/RS 24.651, e-mail ana.martins@ucpel.edu.br.
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tópicos, as causas suspensivas, ou seja, as situações em que o legislador aconselha que não deve
se realizar o casamento, trazendo como consequência para aqueles que não deixam de casar a
imposição do regime de separação de bens. A grande questão, sobre a qual o presente trabalho
pretende se debruçar, é verificar se tais imposições também se aplicam à união estável
Diante dessa realidade, o trabalho em questão tem por problema de pesquisa analisar se
a lacuna da lei vem sendo suprida adequadamente pela doutrina e pela jurisprudência, bem
como se há uma definição sedimentada e se esta traz a segurança jurídica pretendida.
Desse modo, a fim de elucidar a questão, o presente trabalho foi dividido em três
momentos. Primeiramente, se faz um apanhado sobre o casamento e a união estável.
Por fim, serão analisados os julgados mais recentes do Superior Tribunal de Justiça,
considerando seus posicionamentos favoráveis e desfavoráveis, para após, chegar-se às
considerações finais.
Pode-se definir o casamento como um ato complexo, como ensina Silvio Rodrigues,
dependente em parte, é verdade, da autonomia privada dos nubentes, mas
complementado com a adesão dos noivos ao conjunto de regras preordenadas, para
vigerem a contar da celebração do matrimônio, este como atoprivativo do Estado;
tanto que o artigo 1.514 do Código Civil informa que o casamento civil só se realiza
depois que o homem e a mulher (ou entre pessoasdo mesmo sexo) manifestam
perante o juiz a sua vontade de estabelecer o vínculo conjugal, e o juiz declara-os
casados.
O Código Civil Brasileiro, trata o casamento no Livro IV, definindo que o casamento
estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges,
tratando da capacidade nupcial, impedimentos, causas suspensivas, processo de habilitação para
o casamento, celebração do matrimônio, provas do casamento, invalidade e eficácia das
núpcias, dissolução do vínculo conjugal e proteção da pessoa dos filhos (MADALENO, 2022,
p. 59).
O casamento está atrelado à categoria de ato jurídico lato sensu, formal e complexo,
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Desta forma a União Estável vem regulada no Código Civil a partir do artigo 1.723 que
assim estabelece: "Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família."
Não necessita de qualquer manifestação de vontade para que produza seus efeitos
jurídicos. Basta sua configuração fática, para que haja incidência das normas
constitucionais e legais cogentes e supletivas e a relação fática converta- se em
relação jurídica.
A esse ato-fato que reconhece o relacionamento de duas pessoas como entidade familiar,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir
família chamamos união estável. Quando os companheiros não dispuserem por escrito arespeito, o
regime de bens será o da comunhão parcial.
Nesse sentido, fica evidente que ambas formas de constituição de família, que tem sua
aferição e de modo objetivo a partir dos elementos que a lei traduz como sendo aqueles que vão
validar juridicamente tanto o casamento como a união estável, impõe que tratemos estes
institutos de forma diversa, como de fato o são, permitindo inclusive a lei a conversão da união
estável em casamento, por força do que preceitua o artigo 1.726 do Código Civil assim
referindo: "a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos
companheiros ao juiz e assento no Registro Civil", e ainda nossa Constituição Federal no seu
artigo 226 § 3º, dispõe que além de proteger a união estável como entidade familiar,
estabelece que deverá "a lei facilitar sua conversão em casamento", e nenhum sentido faria
converter algo naquilo que já o é.
Ainda, sobre o casamento e a união estável, impende destacar que ambos decorrem
da comunhão de vida entre os cônjuges ou companheiros, gerando, desta feita, efeitos
pessoais e patrimoniais.
O art. 1.640 do Código Civil preceitua “Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou
ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial”.
Na união estável de fato, por força do art. 1.725 do nosso diploma civilista, aplica-se às
relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
3 CAUSAS SUSPENSIVAS
Em que pese a propalada liberdade e autonomia das partes, em especial no que respeita
a sua vida privada, em nosso diploma civilista, estão elencadas as causas suspensivas, que nada
mais são do que recomendações aos pretensos nubentes para que não se casem, em
determinadas situações que a lei discrimina. A justificativa para tal recomendação é a existência
de algum fator que deva manter em suspenso o processo de celebração do matrimônio.
Mas, estas orientações nem sempre são acatadas, como apontado por Maria Berenice
Dias (2021, p. 484), em Manual de Direito das Famílias:
Segundo Barros (2009, p. 435), “as causas suspensivas tem como finalidade evitar, além
de confusão patrimonial, dubiedade com relação à filiação”.
Referido artigo do Código Civil, mencionado acima, preceitua que não deve casar:
a. - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário
dos bens do casal e der partilha aos herdeiros. Aqui, a preocupação dolegislador foi evitar
a confusão de patrimônios, pois o casamento precedido de inventário poderia dificultar
a identificação do patrimônio entre o das proles existentes e o das vindouras;
I. - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado,
até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal. A
intenção foi evitar a confusão de sangue, a dúvida no casode a mulher estar grávida, e
de quem seria o filho;
II. - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos
bens do casal. Da mesma forma que no inciso I, a preocupação é quanto a evitar a
confusão de patrimônios;
III. - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou
sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela,
e não estiverem saldadas as respectivas contas. Justifica-se pela possibilidade de o
tutelado ou curatelado ser compelido a contrair matrimônio, de modo a livrar o
administrador dos bens da prestação de contas.
Desta forma se percebe que não se trata de proibir o casamento mas sugerir que não venham
a contrair os nubentes, em razão das causas supracitadas, que trazem como consequência uma
sanção na esfera patrimonial, que se traduz na obrigatoriedade de que o casamento realizado nestas
condições tenha como regime patrimonial a separação total de bens.
A grande questão que tem inquietado significativa parte da doutrina do direito de família,
e que se mostra como objeto de estudo do presente trabalho, é sobre a aplicação ou não da
obrigatoriedade da adoção do regime de separação de bens quando estivermos frente à união
estável.
Desse modo, Danúbia Patrícia de Paiva e Daniel Monteiro Neves (2021, p. 106) aduzem
com irretocável pertinência:
De acordo com a previsão legal e doutrinária, as normas que tratam do regime debens da
união estável foram cunhadas com referência na forma paradigmática doregime de bens
do casamento. Contudo, pela natureza distinta dos institutos civisdo direito de família, a
adequação é imprescindível para a própria coerência interna e tratamento igualitário
externo, ou seja, entre o casamento e a união estável deve haver normas que preservem e
respeitem as diferenças, mas que, ao mesmo tempo, não estabeleçam hierarquias ou
privilégios.
Pelo trecho constante do Código Civil, mais precisamente nos parágrafos do artigo 1.723,
percebe-se que de forma distinta aos dispositivos que se referem aos impedimentos, os quais, tanto
para o casamento como para a união estável tem a mesma previsão, ou seja, impedem de contrair
casamento ou unir-se estavelmente , no que concerne à união estável o legislador não traz a mesma
conclusão. Vejamos:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.
§ 1 o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não
se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de
fato ou judicialmente.
§ 2 o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização daunião
estável.
De acordo com Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2019, p. 520), tem- se a
seguinte reflexão:
Há uma instigante discussão a ser travada em relação ao regime de bens da uniãoestável.
Discute-se sobre a incidência ou não, das regras limitadoras da escolha do regime de
bens no casamento, previstas no art. 1.641 da norma codificada.Em linha de princípio,
há de se concluir pela não incidência na união estável do regime de separação obrigatória
de bens. A uma, porque não incidem as causas suspensivas na relação convivencial
(CC/02, art. 1.523). A duas, porque não há necessidade de autorização judicial para
constituí-la. A três, porque, em se tratando de norma limitadora de direitos, a
interpretação da lei há de ser, necessariamente, restritiva.
Neste sentido, não se pode reconhecer a existência de uma união estável na presença dos
impedimentos previstos no artigo 1.521, ressaltando o § 2º que não interferem na configuração da
convivência como se casados fossem, a presença das causas suspensivas previstas no artigo 1.523,
uma vez que seu único efeito, em termos matrimoniais, é a adoção compulsória do regime da
separação total de bens, por força do que preceitua o art. 1.641 do Código Civil. (XAVIER, 2015,
p. 62).
Por todos estes argumentos é que Madaleno (2022, p. 1.275) assevera ser inapropriado e
sem razão que justifique "o tratamento discriminatório atribuído ao casamento pelo legislador no
§ 2º do artigo 1.723 do Código Civil, ao externar que as causas suspensivas do artigo 1.523 do
Código Civil não impedirão a caracterização da união estável".
De notar-se que impor aos cônjuges a adoção obrigatória do regime da total separação de
bens, pela dicção do art. 1.641, inc. I, e não determinar nenhuma referência ou restrição ou
recomendação em relação às causas suspensivas na união estável estará ou por
privilegiar um instituto em relação ao outro, ou descuidar dos companheiros em relação
aos nubente, o que obviamente não pode ser o objetivo do legislador, evidenciando ou a
imprestabilidade da norma existente ou sua brecha que precisa ser superada.
Não se olvida que o casamento pressupõe ato complexo, e, tendo às partes liberdade para
dele não se utilizarem, evitando burocracias e podendo unirem-se estavelmente sem terem
sequer vontade de registrar essa união junto ao tabelionato, constituindo-se em ato-fato tão
somente. O que argumentam os doutrinadores é a necessária segurança jurídica das partes
envolvidas, e mais, dos terceiros que eventualmente venham a sofrer as consequências desta
escolha seja dos consortes, seja dos companheiros.
Mas será que as causas suspensivas do casamento, que trazem como consequência
patrimonial a imposição do regime de separação legal de bens, ao deixar de atribuir aos
conviventes esta mesma imposição estaria de fato protegendo a sociedade, os terceiros e
trazendo a propalada segurança jurídica almejada, na medida em que as causas suspensivas
previstas no artigo 1.523 não impedirão a caracterização da união estável?
Se por um lado, encontramos justificativas para a manutenção do que hoje consagra nosso
sistema legislativo, por outro justificativas existem para se restringir a aplicação das causas
suspensivas à união estável, o que se observa pela redação do artigo 9º-D, § 4º do novo
Provimento do CNJ em que fica evidente que o regime adotado pelas partes, estará sujeito a
3
possível mudança a depender do quadro do casal.
Por esta razão não faria qualquer sentido entender que as causas suspensivas são
aplicáveis por analogia à união estável, pois se assim fosse, qualquer disposição que
disciplinasse manter um regime patrimonial, já vigorante entre os companheiros seria
impróprio, desnecessário e inócuo, ou seja se as causas suspensivas realmente se aplicassem à
união estável, a convivência seria desde o início regida pela separação de bens, e, no ato da
conversão para o casamento, o regime não seria imposto, mas sim mantido, preservado,
perpetuado (LIBERATO, 2023).
3
2Art. 9º-D. O regime de bens na conversão da união estável em casamento observará os preceitos da lei civil,
inclusive quanto à forma exigida para a escolha de regime de bens diverso do legal, nos moldes do art. 1.640,
parágrafo único, da Lei nº 10.406, de 2002 (Código Civil).§ 1º A conversão da união estável em casamento implica
a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto
antenupcial em sentido contrário§ 2º Quando na conversão for adotado novo regime, será exigida a apresentação
de pacto antenupcial, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá
declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido.§ 3º Não se aplica o regime da separação legal
de bens do art. 1.641, inciso II, da Lei nº 10.406, de 2002, se inexistia essa obrigatoriedade na data indicada como
início da união estável na forma do inciso III do art. 9-C deste Provimento ou se houver decisão judicial em sentido
contrário.§ 4º Não se impõe o regime de separação
Segundo Silva (2010, p. 52), ao pontuar que a finalidade protetiva da lei é a mesma para
ambos os casos "não faria qualquer sentido a lei tratar diversamente a pessoa que se casa com
causa suspensiva submetendo-a obrigatoriamente ao regime da separação de bens, e aquela que
passa a viver em união estável, nas mesmas circunstâncias".
4.1 Recurso Especial nº 2060732 da Relatoria do Ministro Humberto Martins, com data
de publicação no DJ em 19/06/2023
4.2 Agravo em Recurso Especial nº. 2138572 da Relatoria do Ministro Marco Buzzi, com
data de publicação no DJ em 13/10/2022
O segundo acórdão sobre o qual nos debruçamos entende que na hipótese em que ainda
não se decidiu sobre a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a adoção
do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio, com aplicação do
disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02.
4.3 Agravo em Recurso Especial nº. 2084238 da Relatoria da Ministra Nancy AndrighiI,
com data de publicação no DJ em 28/09/2022
Percebe-se que o terceiro julgado que se apreciou foi no sentido de entender que deve ser
declarada a incidência do regime de separação legal de bens à união estável mantida entre a
companheira e o falecido.
5 CONCLUSÃO
O direito evolui com a sociedade que reclama novas formas de proteger direitos,
equilibrar deveres e têm privilegiado o direito pessoal em detrimento do patrimonial. Entretanto,
e por questões óbvias se faz necessário estabelecer regras objetivas, claras no que tange as questões
que versem sobre o patrimônio.
Nesse sentido, ainda que hoje a patrimonialização do direito tenha sofrido relativização,
é preciso, para que se traga a segurança jurídica às pessoas, regras claras sobre a forma como o
direito irá tratar os bens amealhados pelos envolvidos.
O direito brasileiro hoje tem buscado permitir às partes o máximo de liberdade nas suas
escolhas, no que respeita às questões da sua vida privada, em família, evitando desnecessárias
interferências do Estado, quando isto se faz possível.
Não significa que o Estado pode descuidar do que lhe compete, seja legislando, seja
aplicando a Lei.
Assim, no casamento, a lei deixa extreme de dúvidas que se aplica quando da existência
de causas suspensivas, o regime de separação de bens aos nubentes.
A grande questão surge, quando existe união estável e que também tem, no plano prático,
idêntica situação que a enquadra nas causas suspensivas matrimoniais.
Não podemos descuidar do fato de que as pessoas têm a liberdade de casar ou unir-se
estavelmente e ainda apenas de fato, sem que busquem a segurança que a propalada burocracia do
casamento impõe e isto, com toda certeza também traz consequências diversas, aliás estas podem
inclusive serem as motivações de quem opta por uma ou outra forma de constituir sua família.
A lei não é clara quanto ao regime a ser aplicado na união estável, quando se trata de
relação que envolvam causas suspensivas. Aliás, se superada a causa suspensiva antes de realizada
a conversão da união estável em casamento, não haverá imposição do regime legal, pela obviedade
de a norma do Código Civil não ser mais aplicável.
Por tudo que se pontuou, podemos interpretar que antes da conversão em casamento, os
companheiros podem adotar qualquer regime de bens. É o que também se conclui do Provimento
do CNJ, que traduz que podemos nos afastar do que vem entendendo o STJ, no sentido de aplicar
às uniões estáveis as causas suspensivas matrimoniais, na medida em que estas seriam imprestáveis
em matéria de união estável. Não é o que vem entendendo nossos Tribunais Superiores.
Pela análise feita nos dois últimos anos, percebe-se que o STJ tem entendido que ainda não
tendo sido decidida a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a adoção
do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio, com aplicação do
disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02.
Acresce-se que também privilégios, diferenças não se mostram adequadas, sequer toleradas
pelo direito, que busca incessantemente igualar direitos na medida de suas diferenças.
A lei tem lacunas, não há dúvidas, o CNJ editou o Provimento 141 em março de 2023, em
seu Art. 9º-D em sentido oposto ao que vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça.
Isto posto, conclui-se que o papel dos magistrados tem sido fundamental ao analisarem os
casos concretos tentando buscar o melhor entendimento dentro desta que é uma situação ainda sem
disciplina legal.
Não podemos descuidar do fato de que as pessoas têm que ter a liberdade de casar ou unir-
se estavelmente - seja de fato ou de direito-, sem que busquem a segurança que a propalada
burocracia do casamento impõe, e isto, com toda certeza também traz consequências diversas,
aliás, estas podem inclusive ser as motivações de quem opta por uma ou outra forma de constituir
38
sua família.
Acredito que, como em outras tantas situações, quando a lei é omissa, precisamos buscar
sua regulamentação, sob pena de estarmos correndo o risco de algumas pessoas terem decisões
que façam justiça e outras não, bem como por não haver qualquer segurança jurídica quanto ao
tema, em especial para que aqueles que analisam a forma como pretendem constituir família e se
debruçam em saber quais as consequências da sua escolha.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº. 2138572 da Relatoria
do Ministro Marco Buzzi, com data de publicação no DJ em 13/10/2022 - SP (2022/0165999-3)
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial nº. 2084238 da Relatoria
da Ministra Nancy AndrighiI, com data de publicação no DJ em 28/09/2022 -PR (2022/0065144-
9).
CARVALHO BARROS, André Borges de; BRANDÃO AGUIERRI, João Ricardo. Elementos
do Direito – Direito Civil. 2ª Ed. São Paulo:Ed. Premiere Máxima, 2009.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª. ed. rev. ampl. e atual. Salvador:
Editora JusPodivm, 2021.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito Civil. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2007.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. 11ª. ed.
rev. e atual. Salvador: Juspodivm, 2019
GROENINGA, Giselle. Entre o público e o privado. Boletim IBDFAM nº.25, 2004. Disponível
em: <https://ibdfam.org.br/index.php/artigos/138/
Entre+o+p%C3%BAblico+e+o+privado,+fam%C3%ADlias>. Acesso em: 10 ago.2023
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus
39
c l a u s u s , 2 0 0 4. Disponível em: <h t t p s : / / i b d f a m . o r g . b r / a r t i g o s / 1 2 8 / E n t
i d a d e s + f a m i l i a r e s + c o n s t i t u c i o n a l i z a d a s:
+para+al%2525252525C3%2525252525A9m+do+numerus+clausus>. Acesso em: 10 ago.
2023.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: famílias. Vol. 5, 8ª ed. São Paulo:Saraiva, 2018.
MADALENO, Rolf. Manual de direito de família. 4. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2021.
PAIVA, Danúbia Patrícia; NEVES, Daniel Monteiro. O regime dos companheiros: a anomia
sobre o regime de bens que regula a união estável inquinada por causa suspensiva matrimonial
Revista Brasileira de Direito Civil em Perspectiva, vol. 7, n. 1, 2021. Disponível em:
<https://www.indexlaw.org/index.php/direitocivil/article/view/7834/0>. Acesso em 10 ago.
2023.
TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz, Curso de direito civil, direito de família. Washington
de Barros Monteiro. 40ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
40
LEGADOS NO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO DE DEPENDENTES
ECONÔMICOS
RESUMO
A presente pesquisa pretende perquirir acerca dos legados de renda, alimentos e usufruto no
planejamento sucessório de dependentes econômicos. Com esse propósito, serão demonstrados os
conceitos, aplicabilidade, e características de cada legado mencionado. Desta forma, o artigo
propõe o uso destes instrumentos jurídicos como alternativa em casos de planejamento sucessório
de indivíduos economicamente dependentes de pessoa falecida que lhes sustentava, de modo a
garantir melhor segurança financeira e manutenção da qualidade de vida ao dependente.
1 INTRODUÇÃO
1
Advogada, inscrita na OAB/RS 106.830, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUCRS, pós-graduada em Contratos, Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário - PUCRS. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito das Famílias - IBDFAM.
2
Advogada, inscrita na OAB/RS 128.791, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUCRS, Pós-graduada em LLM Direito e Processo Tributário - FMP-RS, MBA Planejamento Financeiro -
EABanking School e Gestão Bancária -ESAB.
41
Os dados supracitados indicam que aproximadamente dois terços da população brasileira
é composta por pessoas em idade potencialmente ativa, e, portanto, responsáveis economicamente
pelos demais (crianças, adolescentes e idosos), que compõem quase um terço da população total
do país.
2 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO
Tratar do plano de sucessão em vida é uma tarefa complexa e desafiadora. Isso porque,
além do indivíduo contemplar a finitude da vida, precisa perscrutar como será a vida de seus entes
em sua falta. Para isso, terá de analisar questões financeiras, além de questões emocionais,
culturais, pessoais dos herdeiros e daquele que planeja a sucessão (MADALENO, 2014).
Giselda Hinoraka e Flavio Tartuce referem que o planejamento sucessório é uma soma de
ações e negócios jurídicos realizados por aqueles que possuem uma relação jurídica familiar e
sucessória, com a finalidade de realizar a partilha do patrimônio para impedir discussões e
concretizar a vontade do autor da herança (HINORAKA, TARTUCE, 2022, p. 449). Um dos
propósitos do planejamento sucessório, segundo Simone Tassinari Cardoso Fleischmann e Valter
42
Tremarin Junior, é constatar de forma prévia as necessidades da família, a fim de que seja realizado
a organização patrimonial em momento mais cômodo e adequado do que logo após o falecimento
de quem administrava o patrimônio (FLEISCHMANN, TREMARIN, 2022, p. 631).
Dessa forma, sendo existentes filhos maiores, menores ou com deficiência, pais, irmãos,
tios(as), pessoas queridas que são economicamente dependentes, sendo elas herdeiros necessários
ou não, é importante refletir sobre a sucessão daquele que fornece o sustento. Destarte, passa-se a
análise das ferramentas de direito sucessórios aptas a auxiliar no plano de sucessão para os
economicamente dependentes.
3 LEGADOS
Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira define legado como a porção certa e determinada da
herança deixada pelo testador a alguém por título singular (ITABAIANA DE OLIVERA, 1952, p.
143). O legado é instituído por meio de testamento, através da separação pelo testador de bens ou
direitos sobre a universalidade de seu patrimônio. É uma parte determinada da herança, atribuída
pelo testador ao legatário, que assim se fará beneficiário de um direito pinçado dentre o universo
de bens deixados pelo sucedido (MADALENO, 2004, p. 308).
O legado possui até três sujeitos: i) legante (também denominado testador) é aquele que
dispõe de uma liberalidade em testamento; ii) legatário é aquele em cujo favor o testador dispõe
de valores ou de objetos determinados, ou de certa parte deles; e iii) onerado é aquele que deve
cumprir o legado. O onerado pode ser herdeiro legítimo ou testamentário e o legado pode ser
cumprido de forma individual ou coletiva. Isso é, todos os herdeiros podem vir a cumprir o legado
na proporção de suas quotas hereditárias.
Consigna-se que o legado é ato de liberalidade do legatário (DIAS, 2013, p. 417), inexiste
obrigação para sua instituição independente do objeto do legado. Existem diversos objetos que
podem ser instituídos por meio do legado, a título exemplificativo, tem-se legado de imóvel, de
coisa genérica, de coisa singularizada, de coisa localizada, de crédito ou quitação de dívida. Para
fins do presente estudo se irá analisar os legados de renda, alimentos e usufruto e sua aplicabilidade
no planejamento sucessório de pessoas economicamente dependentes do legante, passa-se a
análise de cada instituto.
43
pelo testador ou constantes na parte disponível da herança, advindos, por exemplo, de aluguéis,
dividendos, participações acionárias, aplicações financeiras (RIZZARDO, 2018, p. 452).
O testador tem liberdade para determinar a forma de recebimento das parcelas do legado
de renda. Assim podem ser mensais, semestrais, anuais, mediante termo (receberá o legado após
completar 20 anos) ou condição (receberá a renda depois de passar na universidade). Ademais, as
parcelas podem ser de montantes diferentes. Na prática, por exemplo, poder-se-ia ter: deixo ⅓ (um
terço) do valor legado para quando Cláudia passar na universidade (condição), 3/10 (três décimos)
para quando ela terminar a universidade (condição) e o restante receberá quando completar 30
anos (termo) (MIRANDA, 2012, p. 311).
Consta destacar que o encargo perdura após a partilha, devendo os herdeiros (onerados)
continuarem a realizar o pagamento sem comprometimento da legítima, até o término da parte
disponível da herança ou falecimento do contemplado em caso de pessoa física. Como referido, o
legado de renda pode ter termo ou condição especificadas pelo testador, porém, poderá ser também
vitalício, caso nenhuma outra referência seja imposta no testamento.
Cumpre ressaltar que os legados de renda também se distinguem dos legados de usufruto.
Isso porque, no usufruto percebe-se a renda do bem e seu uso, enquanto na renda recebe-se a renda
fixada, que deve ser atendida por meio do rendimento do bem. Nesse sentido, salienta-se que o
testador poderá designar pessoa para diligenciar a fonte de renda a fim de assegurar o
adimplemento do legado. Em não o fazendo, ficará a cargo do herdeiro essa incumbência (DIAS,
2013, p. 417).
3
CÓDIGO CIVIL Art. 1.926. Se o legado consistir em renda vitalícia ou pensão periódica, esta ou aquela correrá da
morte do testador.
44
3.2 Legado de alimentos
Entende Rolf Madaleno que o legado de alimentos se distingue do legado de renda vitalícia
justamente em razão da subsistência. O objetivo dos alimentos é garantir um mínimo existencial
para uma vida digna. Ao passo que o legado de renda não se correlaciona com essa finalidade
alimentar (MADALENO, 2004, p. 316).
Dessa forma, o legado de alimentos não se convalida caso o beneficiado tenha como se
sustentar, disponha de moradia e aufira rendimentos de modo a conseguir meios de tratar-se em
caso de doença, ou atender necessidades próprias e naturais da subsistência. Nesse contexto, não
há sentido em estabelecer um legado de alimentos para quem não padece de carências econômicas
(RIZZARDO, 2018, p. 448).
Importa destacar que essa espécie de legado pode ser instituída inclusive quando inexistia
em vida a obrigação alimentar com o beneficiário (DIAS, 2013, p. 417). Sérgio Porto esclarece
que o objetivo do legado de alimentos é o sustento material para enfrentar as adversidades da vida.
Reforça o autor que o legatário pode ser parente ou não do testador (PORTO, 2011, p. 50). em
geral, o testador prestava auxílio para o beneficiário ainda em vida (parente ou não), fato que
justifica a continuidade do sustento após o falecimento do testador (RIZZARDO, 2018, p. 447).
Registra-se que quando o testador define critérios, forma e valores dos alimentos, ainda
que exista mudança fática na vida do legatário beneficiário, tal situação não autoriza modificação
45
no valor dos alimentos. Isso porque, nas circunstâncias narradas, os alimentos derivados do direito
sucessório são inalteráveis, respeitadas as forças da herança (PORTO, 2011, p. 51).
Nas hipóteses em que o testador não estipula quantia, caberá ao juiz determinar o montante
da verba legada, considerando as forças da herança e a necessidade do alimentando (RIZZARDO,
2018, p. 447). Para isso, aplica-se por analogia o § 1º do artigo 1.694, CC4, averiguando-se a
proporção entre a necessidade do legatário e a possibilidade do espólio. Ressalta-se que nessa
hipótese será considerado o nível social do legatário contemplado pelo benefício (MIRANDA,
2012, p. 251).
Ademais, cumpre ressaltar que o legado de alimentos deve ser pago no começo de cada
período aquisitivo, conforme redação do art. 1.928, parágrafo único, se não estipulado de forma
diversa pelo testador5. Ainda, por sua natureza, os alimentos são devidos desde o falecimento do
testador. A regra é que os legados são cumpridos após a partilha de bens, quando já concluído o
inventário. Porém, pelo caráter alimentar, deve-se iniciar quando do compromisso do
inventariante, sendo injustificado aguardar o término da inventariança (DIAS, 2013, p. 418).
O legado deve ser satisfeito dentro das forças da herança e no limite da parte disponível do
patrimônio hereditário. Dessa forma, esvaziada a fonte pagadora, exauridos estão os alimentos,
4
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos
de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades
de sua educação.§ 1 o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da
pessoa obrigada.
5
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.928. Sendo periódicas as prestações, só no termo de cada período se poderão exigir.
Parágrafo único. Se as prestações forem deixadas a título de alimentos, pagar-se-ão no começo de cada período,
sempre que outra coisa não tenha disposto o testador.
46
cessando a obrigação de pagamento, ainda que existente a necessidade. Por isso é importante
destinar bens com rendimentos que possam suprir as necessidades do legatário ao longo do tempo,
como aluguéis ou quantias depositadas em bancos, investimentos aplicados em ações, fundos,
renda fixa. Nesse sentido, implementa-se cláusula no testamento que estabelece que os
rendimentos provenientes de bens ou investimentos se prestam em favor do legatário
(RIZZARDO, 2018, p. 447).
O contemplado, verificando que a obrigação não está sendo cumprida, poderá pedir sua
satisfação por meio de ação própria. Conduto, apenas após a determinação pelo juiz do montante
devido, se for o caso de não houver sido estipulado no testamento. Cumpre ressaltar que se o
legatário constatar perigo de insolvência por alienação dos bens da herança, poderá preservar seu
direito com medidas constritivas, a depender do caso, como sequestro de bens e medida de tutela
provisória para proibição de venda (RIZZARDO, 2018, p. 447).
O usufruto é um direito real sobre coisa alheia, em que o titular da propriedade do bem
transfere a outrem (usufrutuário) a faculdade de uso, gozo e percepção dos frutos por determinado
período6. Assim, o proprietário torna-se nu-proprietário, pois conserva a condição jurídica de
senhor do bem, podendo alienar, instituir ônus real, bem como reivindicar o bem de quem
injustamente o detenha, desde que respeitando o usufrutuário (CARNACCHIONI, 2021, p. 1716).
6
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.
47
O objetivo do legado de usufruto é deixar ao legatário o direito real de retirar de
determinado bem (coisa alheia) os frutos e utilidades que esse bem produzir durante certo período
sem alterar a essência da coisa legada (CAHALI, 2003, p. 403). Existem duas modalidades do
usufruto: vitalício e temporário. No primeiro, o usufruto perdura por toda a vida, no segundo há
uma limitação por meio termo prefixado pelo testador.
Trata-se de um direito real de fruição das utilidades e frutos de um bem móvel ou imóvel,
sem interferência na sua propriedade. O usufruto pode abranger bem singular, todo o acervo da
herança ou toda a parte disponível da herança se houver herdeiros necessários7.
O legatário pode ser pessoa física ou jurídica. O usufruto de pessoa física será vitalício ou
até o momento que o legante (testador) determinar. Enquanto, o legado de usufruto da pessoa
jurídica, por sua vez, se extingue uma vez extinta a pessoa jurídica ou pelo decurso do prazo de 30
anos da data em que se começou a exercer8.
A instituição do legado de usufruto deve ser por meio de testamento, como os demais
legados em geral, contudo, sua determinação pode ser com o termo “usufruto” ou outro do qual se
possa exprimir o conceito - vocábulos “uso”, “fruição”, “gozo”. Caso não exista indicação do nu-
proprietário será a quem caberia o bem - herdeiro legítimo ou testamentário (MIRANDA, 2012,
p. 281).
Se existe termo ou condição para início do usufruto, a coisa legada é nesse espaço de tempo
dos herdeiros, podendo, inclusive, ser adjudicada se realizar a partilha. Todavia, uma vez
implementada o termo/condição reverte ao beneficiário (MIRANDA, 2012, p. 259). Ademais,
inexiste óbice para o testador deixar a nua propriedade ao seu herdeiro e legar o usufruto do bem
a outra pessoa beneficiária ou ao contrário. Também há possibilidade de o legado de usufruto de
forma simultânea, sendo instituído dois ou mais legatários usufrutuários (CAHALI, 2003, p. 403).
7
CÓDIGO CIVIL: Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Art. 1.857.
Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua
morte.§ 1 o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.
8
Código Civil: Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis: II -
pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o usufruto foi constituído, ou, se ela perdurar, pelo decurso de
trinta anos da data em que se começou a exercer;
48
Com efeito, assemelha-se ao legado de alimentos, pois possui como finalidade natureza
alimentar, auxiliando na subsistência do usufrutuário. Contudo, distingue-se dele, pois ainda que
o beneficiário não tenha necessidade dos rendimentos provenientes dos bens dados em legado de
usufruto, a carência financeira não é condição para sua continuidade. Portanto, se não fixado termo
para o usufruto, em que pese inexistir dependência econômica, o legado de usufruto é válido e se
extingue apenas com o falecimento do usufrutuário, se pessoa física e se pessoa jurídica da sua
dissolução ou pelo decurso de 30 anos, conforme anteriormente exposto.
3.4 CADUCIDADE
A primeira situação consiste na mudança substancial da coisa legada, se ela for certa,
singularizada e individualizada. No caso, o testador pessoal e conscientemente ou pessoa por sua
ordem ou consentimento realiza a transformação do bem, por exemplo, joias transformadas em
barras de ouro, tábuas de madeiras que viraram móveis. Se a(s) alteração(ções) não foram
realizadas pelo testador ou não tiveram seu consentimento, bem como se forem decorrentes do
caso fortuito ou força maior, o legado não irá caducar (VELOSO, 2017, p. 735). Além disso, na
modificação parcial recai a caducidade. Ou seja, se o testador legar um terreno e determine que
seja construído um prédio nele, se possível destacar área do terreno que havia o legado, ele será
eficaz sobre a parte em que não existe construção (RIZZARDO, 2018, p. 477).
9
Código Civil, Art. 1.939. Caducará o legado: I - se, depois do testamento, o testador modificar a coisa legada, ao
ponto de já não ter a forma nem lhe caber a denominação que possuía; II - se o testador, por qualquer título, alienar
no todo ou em parte a coisa legada; nesse caso, caducará até onde ela deixou de pertencer ao testador; III - se a coisa
perecer ou for evicta, vivo ou morto o testador, sem culpa do herdeiro ou legatário incumbido do seu cumprimento;
IV - se o legatário for excluído da sucessão, nos termos do art. 1.815; V - se o legatário falecer antes do testador.
49
parcial a venda, o legado irá caducar na parte em que não mais pertence ao testador (VENOSO,
2017, p. 735).
O perecimento da coisa legada é a sua destruição, o legatário ficará com parte da coisa se
essa tiver sido parcial. Se o perecimento ocorrer antes da morte do testador, não há indenização,
posto que o legado não subsiste, assim como se houver desaparecimento em virtude de caso
fortuito ou força maior. No entanto, caso o herdeiro ou onerado tiverem culpa pelo perecimento,
caberá indenização ao legatário (DIAS, 20013, p. 420). Com relação à evicção, existe decisão
judicial declarando que o bem pertence a terceiro. Nesse caso, o bem não era do testador, sendo
ineficaz o legado (RIZZARDO, 2018, p. 478).
Outra hipótese é a indignidade do legatário. Esse dispositivo teve como propósito excluir
o legatário ingrato, aquele que atentou contra a vida, honra ou liberdade do testador, conforme art.
1.814 do Código Civil10. Para isso, é necessária ação sucessória de indignidade a fim de que em
sentença seja decretada a prática de indignidade. Observa-se que os atos de indignidade devem ter
ocorrido antes da realização do testamento para serem aptos a caducar o legado. Entende-se que
se o testamento foi escrito posteriormente, o testador perdoou o legatário (RIZZARDO, 2018, p.
478).
10
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I - que houverem sido autores,
co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge,
companheiro, ascendente ou descendente; II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou
incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III - que, por violência ou meios
fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
50
testamentária que mais de herdeiro irá ser legatário de um bem em parte não determinada, se um
herdeiro falece, ficam os demais com a parte que seria de outro herdeiro, previamente morto
(MIRANDA, 2012, p. 416).
3.5 APLICABILIDADE
Nesse caso, considerando que os únicos herdeiros necessários são os dois filhos, a partilha
de bens será de 50% para cada um deles, se nada dispuser o pai em contrário em testamento. Assim,
ainda que o pai tenha custeado a vida do filho maior até a idade de 28 anos, provendo-lhe todo seu
sustento com moradia, pensão, um carro por ter passado na universidade, a forma de divisão da
herança entre os dois filhos será de 50% (cinquenta por cento) para cada filho da herança existente
no momento do falecimento, se não houver estipulação diferente.
Em razão disso, a fim de tentar igualar essa disparidade entre os filhos, seria possível
utilizar os legados respeitando a legítima e utilizando a parte disponível do patrimônio. Para isso,
pode-se determinar em testamento o uso de um apartamento até os 28 anos do filho menor, além
de uma renda mensal em valor pré-determinado, com índice de atualização escolhido até a idade
de 28 anos, como despendido pelo pai ao filho maior.
51
Outra hipótese poderia ser de um irmão idoso que não possui condições de se sustentar e
na qualidade de irmão não é herdeiro do testador, pois esse último possui esposa e filhos. Nesse
caso, com o intuito de não deixar desamparado irmão que inclusive ajudava em vida, porém, de
forma informal, poderá em testamento determinar um legado de alimentos, a fim de contribuir para
a subsistência do irmão.
4 CONCLUSÃO
Demonstrou-se que os legados podem ser utilizados como dispositivo para o planejamento
sucessório, em especial, aqueles que visam a subsistência para pessoas economicamente
dependentes da matriarca ou do patriarca da família.
Assim, foi analisado o legado de renda, legado de alimentos e legado de usufruto. O legado
de renda consubstancia-se em renda ou pensão sem finalidade de subsistência, não estando atrelada
a sua prestação unicamente à sobrevivência do legatário. Em contrapartida, o legado de alimentos
está umbilicalmente relacionado ao sustento do legatário. Dessa forma, uma vez que o
contemplado possua condições de garantir a si o mínimo existencial, suspender-se-ia a benesse.
Ainda, no âmbito dos legados, foi analisado o instituto do usufruto, em que se verificou sua
utilização principalmente em imóveis, para garantia do sustento ou moradia de dependentes do
falecido.
Ademais, foram referidas as hipóteses de caducidade dos legados de forma geral, ou seja,
causas supervenientes à sua instituição que os tornam ineficazes. Cumpre ressaltar que todas as
hipóteses analisadas são aplicáveis aos legados mencionados no estudo.
Ao final, foram analisadas hipóteses de aplicação dos legados referidos, sendo utilizados
exemplos para demonstrar a sua possibilidade de utilização prática, destacando-se que os legados
podem ser utilizados para filhos menores, filhos com deficiência, pais, irmãos, tios, sobrinhos,
conforme a vontade e necessidade do autor da herança.
52
Por todo o exposto, manifesta a relevância de desenvolver um olhar acurado para as
ferramentas de legados de renda, alimentos e usufruto, que podem ser utilizadas de forma
personalizada a cada caso de planejamento sucessório, a fim de realizar um plano de proteção e
manutenção da qualidade de vida, em especial para os economicamente dependentes do falecido.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acessado em: 29 set.
2023.
CAHALI, Francisco José. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. Gisela Maria
Fernandes Novaes Hironaka. [coordenação Everaldo Augusto Cambler] - São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. V.6. Giselda Hinoraka informa que em virtude da finalidade do legado de
alimentos, ele será sempre inalienável e impenhorável.
CARNACCHIONI, Daniel. Manual de direito civil: volume único. 5ed.rev.ampl. e atual. - São
Paulo: JusPodivm, 2021.
DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos Bocados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
MADALENO, Rolf. Legados e direito de acrescer entre herdeiros e legatários. In: HIRONAKA,
Giselda Maria Fernandes Novaes e PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords). Direito das sucessões
e o novo código civil/ Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Rodrigo da Cunha Pereira,
coordenadores. - Belo Horizonte: Del Rey, 2004.
MALUF, Carlos Alberto Dabus; FREITAS, Adriana Caldas do Rego. Curso de direito das
sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013.
53
MIRANDA, Pontes de, 1892-1979. Direito das Sucessões: sucessão testamentária, disposições
testamentárias em geral. Atualizado por Giselda Hinoraka, Paulo Lôbo. - São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. - (coleção tratado de direito privado: parte especial; 57).
PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e prática dos alimentos. 4ª ed. rev.e atual. com notas a respeito
do projeto de um novo CPC. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. 10. ed., rev. atua. amp.- Rio de Janeiro: Forense,
2018.
VELOSO, ZENO. Disposições testamentárias e legados. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (coords.) Manual de direito das famílias e das sucessões - 3ª
edição revista e atualizada de acordo com o novo CPC/ Ana Carolina Brochado Teixeira e Gustavo
Pereira Leite Ribeiro (coordenadores) - Rio de Janeiro: Processo, 2017.
54
ALIENAÇÃO PARENTAL E SUA NECESSÁRIA REGULAMENTAÇÃO
LEGAL
RESUMO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não nos resta dúvida que a Lei da Alienação Parental – Lei 12.318/2010 -, surgiu como
um importante instrumento legal para combater e prevenir essa prática danosa, com o intuito de
assegurar o equilíbrio das relações entre os pais e mães que não convivem entre si, no melhor
interesse efetivo dos filhos e da necessidade de assegurar a manutenção dos vínculos de
convivência para um bom desenvolvimento psicossocial das crianças e dos adolescentes.
Ao longo dos anos a lei tem sido atacada através de um movimento que clama por sua
revogação, evidenciando e distorcendo sua aplicação, sob a “falsa” alegação de que é uma lei que
protege pais abusadores, uma lei sobre um tema sem comprovação científica e que serve para
desprestigiar a maternidade.
Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar os principais fundamentos
que embasam a Lei da Alienação Parental, com base na vasta doutrina e jurisprudência,
1
Advogado, especialista em Direito de Família Formação em Psicologia Jurídica. Presidente do Núcleo de Pelotas do
IBDFAM/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS.
Conselheiro da OAB Subseção Pelotas/RS. OAB/RS 73976. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com.
55
compartilhando a reflexão sobre sua manutenção.
Contudo, insta destacar que a Alienação Parental vinha sendo estudada e pesquisada há
muito tempo, com destaque para dois autores, Wilhelm Reich, 1949, que já afirmava no seu livro
“Análise do Caráter”, que alguns pais divorciados se defendem contra os narcisistas feridos
lutando pela custódia de seus filhos e difamando seu ex conjuge e em 1952, Louise Despert, em
seu livro “Filhos do Divórcio”, indica que existe, por vezes, uma tentação de um dos pais de
decompor o amor do filho pelo outro pai.
Existiram outras nomenclaturas nefastas para o fenômeno, que talvez tenham contribuído
para a não aceitação por parte da sociedade, como Sindrome da Mão Silenciosa, Síndrome da
Interferência Grave, Síndrome de Medeia, baseado na mitologia grega, quando os pais separados
adotam a imagem dos filhos como extensão deles mesmo.
Até o início do século XX a custódia paterna era a preferência clara das decisões judiciais,
baseadas no entendimento de que o homem era o chefe da família. Já no final dos anos 70, a justiça
norte americana destinava cerca de 80% das guardas às mães. A mudança do paradigma à época
se deu pela construção do chamado “mito do amor materno” (WAQUIM, 2021), em que o amor
de uma mãe pelos filhos seria inato, incondicional e inerente à sua condição feminina. Após este
período de total encantamento com a guarda materna, passou-se a utilizar-se a doutrina do melhor
interesse da criança, em que não se utilizou mais a ideia de presunção de que a guarda materna se
sobreporia à paterna, entendendo-se pela a igualdade dos pais à custódia. Este era o cenário de
evolução jurídica e cultural na qual Gardner se encontrava quando nomeou a Síndrome da
Alienação Parental.
Um pouco depois, a ideia foi difundida também na Europa, a partir das contribuições de
F. Podevyn (2001), entre outros, despertando interesse tanto da área jurídica como da psicologia.
Além do conceito legal, não se pode deixar de considerar o conceito teórico de Alienação
Parental. Tomemos como fonte de representação teórica os dizeres de Jorge Trindade, que
conceitua o fenômeno como sendo um programar a criança para odiar, sem motivo, um de seus
genitores até que a própria criança ingresse na trajetória de desconstrução deste genitor (Trindade,
2021).
57
Observa-se que os conceitos legal e teórico possuem similitudes e conexões, sendo que o
conceito legal necessita expressar-se por meio de verbos nucleares constitutivos da ação contida
na norma, enquanto o conceito teórico destaca que a alienação parental não constitui um ato
isolado, eventual ou circunstancial, ao contrário, envolve uma programação, um conjunto de
práticas destinadas a atacar a pessoa alienada (TRINDADE, 2014).
O que se pode observar do conceito legal de Alienação Parental é que o fenômeno não se
dá em atos isolados, ou seja, dar-se-á somente quando ocorrerem a partir de um padrão de condutas
que se estende ao longo do tempo com o objetivo inequívoco de enfraquecer os laços com o outro
genitor.
A Lei nos traz ainda, em seu art. 2º, § único, a indicação exemplificativa dos atos
alienadores, o que facilita a averiguação do julgador. Contudo, sabe-se que o alienador é
silencioso, por vezes criativo, de modo que o referido artigo deve ser lido e interpretado sem
amarras, não se prendendo somente naquilo que ali consta.
Acrescenta a referida lei em seu artigo terceiro que a Alienação Parental viola os direitos
fundamentais da criança e do adolescente à convivência familiar e constitui abuso de direito. Sendo
certo que é necessário na ordem jurídica brasileira o reconhecimento do fenômeno
casuisticamente, seja em ação autônoma ou incidental, nos termos de seu art. 4º, assegurando ainda
a intervenção e análise da equipe psicossocial, conforme o art. 5º.
58
assim como pela dificuldade de se estabelecer quem será o responsável por assisti-la.
A suspensão da autoridade parental foi considerada uma punição exagerada para ser tratada
pela Lei de Alienação Parental, não mais podendo ser aclamada pela mesma, contudo, há de se
ressaltar que nada impede que a suspensão ou destituição do poder familiar possa ser decretada
em ação autônoma com base na prática dos atos alienadores, fundamentando-se nos artigos 24 e
155 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com competência do Juízo da Infância e da
Juventude.
Nos parece ter andado mal a nova lei indicando a utilização de depoimento especial em
contexto de alienação parental. Isto porque, se a alienação é considerada uma violência psicológica
e abuso de direito, se equivalendo a uma coação moral, por óbvio o relato da criança será eivado
de vício de nulidade, pois deixa de ser uma narrativa livre, não sendo possível garantir que em
meio a uma discussão de alienação parental a criança estará à vontade para declarar a verdade.
Nosso entendimento é de que a escuta da criança deve se dar diretamente com profissional
habilitado e capacitado para entender aquilo que está entre o dito e o que se deixa de dizer, ou seja,
o psicólogo preparado para interpretar todas as questões subjetivas incorporadas à perícia. Com a
devida vênia, não é o magistrado ou o membro do ministério público que tem a capacidade técnica
de entender e interpretar aquilo que uma criança declara quando está inserida em contextos de
alienação parental. De certa forma, reduzir a análise do caso à escuta da criança e do adolescente
através do depoimento especial pode significar a entrega da decisão aos vulneráveis, que, muitas
vezes, não possuem o discernimento e a maturidade suficientes para a compreensão da dinâmica
familiar em que está inserido (Cysne, 2023).
Para além das alterações acima especificadas, a alteração na lei trouxe um prazo de três
meses para a conclusão dos laudos periciais, o acompanhamento psicológico com relatórios
periódicos (o que não se confunde com laudo) e a nomeação de perito particular.
A alteração da lei caminha no sentido do seu aperfeiçoamento, ainda que ao nosso entender
tenha retrocedido em alguns aspectos, mas, acima de tudo, denota a imprescindível atuação
interdisciplinar, para que as crianças sejam ouvidas de forma técnica, respeitosa, pecando somente
59
no que concerne a possibilidade do depoimento especial.
Ademais, a luta pela manutenção e melhoramento da Lei ganhou força com as alterações,
pois, além de não ser revogada, reforçou a convivência familiar assistida durante a pendência da
investigação de alegações de violência e abuso ao invés de suspender a convivência.
Não resta dúvida que a Lei que trata da Alienação Parental é uma ferramenta que
conscientiza sobre este fenômeno que é social, psicológico e jurídico, dando possibilidade de que
seja reconhecido e a partir de então serem aplicadas as sanções previstas no artigo 6º, de modo a
proteger única e exclusivamente o direito das crianças e adolescente.
Ao que se observa tanto dos textos que propõe a revogação da Lei, bem como em
manifestações sociais (redes sociais, congressos, petições em processos judiciais), há inúmeras
críticas tanto à Lei como à teoria intentada por Richard Gardner. Dentre elas temos que a adoção
do termo “síndrome” não seria o correto, a Alienação Parental não existe pois não está listada no
DSM-V e não é reconhecida pelas associações de psicologia, a alegação de que as mulheres
alienam mais que os homens é sexista, que a Alienação Parental é usada para desacreditar
denúncias reais de abusos sexuais e consequentemente protege pedófilos, que existem outras
causas que podem causar afastamento da criança, que Gardner focou seus estudos no genitor
alienador e não na criança, entre outros.
O projeto de Lei nº 498/2018, advindo da “CPI dos maus tratos”, intenta que a Lei
12.318/2010 fora “aprovada com a melhor das intenções de preservar a criança de brigas entre
familiares, tem sido distorcida para intimidar mães, ou pais, que colocam o amor dos seus filhos
abusados acima da cumplicidade com o parceiro abusador”. Deste projeto observou-se a utilização
da figura de Richard Gardner, mais uma vez, como de um pedófilo estimulador da pedofilia,
contendo ainda críticas quanto a invalidade científica de suas observações.
60
De forma que não conduz a uma mínima tecnicidade jurídica, o autor do projeto de lei
acima citado conclui seu fundamento de revogação da lei que “abusadores que ainda não foram
condenados por insuficiência de provas inequívocas seguem a usufruir da convivência com a
criança, mesmo com todos os sinais de alerta sendo evidenciados em estudos psicossociais e
mesmo por psicólogos que verificam o temor da criança perante o abusador”.
A jurista portuguesa, Maria Clara Sottomayor é uma das vozes mais fortes contra a teoria
de Gardner e a Alienação Parental, sustentando que o trabalho de Gardner sobre a síndrome da
alienação parental põe em risco mulheres e crianças vítimas de violência, e que a síndrome da
alienação parental coloca as mães em uma encruzilhada sem saída: ou não denunciam o abuso e
podem ser punidas pela cumplicidade, ou denunciam o abuso e podem ver a guarda da criança ser
entregue ao progenitor suspeito, ou ainda, serem ordenadas visitas coercitivas (MADALENO,
2021).
Em suma estas são as justificativas para a revogação da lei, contudo, há também por parte
do movimento ataques pessoais, seja a juristas ou psicólogos que trabalham com base na Lei e na
teoria, como se pode constar na mídia eletrônica23.
Os fundamentos utilizados para a revogação da Lei não são de ordem técnica, e não devem
prosperar. Partem de uma análise que ao fim e ao cabo não se preocupam com a proteção da criança
ou adolescente, mas sim, de objetivos individuais ou ideológicos.
Não há dúvidas de que a Alienação Parental, nomeado por Gardner, foi fonte de estudo de
outros grandes profissionais, lhe trazendo, portanto, evidências empíricas sobre sua existência, em
especial Judith Wallerstein, Amy Baker, Willian Bernett e Ira Turkat, entre outros.
Destaca-se que no estudo apresentado por Amy Baker (Baker 2006), ou seja, antes da
promulgação da Lei, logrou estabelecer três padrões de Alienação Parental, sendo que um deles
2
https://www.intercept.com.br/2023/05/18/abuso-glicia-brazil-psicologa-fortalece-defesa-de-acusados/
3
https://etersec.com/pt-br/em-nome-dos-pais-censura-nao/
61
deu-se em relação ao genitor alienador (gênero masculino), em que se utilizava de seu poder para
ganhar a confiança e a aliança com a criança. Portanto, o argumento de que a alienação parental
originalmente é uma ideia sexista, machista, cai por terra.
Silva e Rabaneda (2018), destaca que o argumento utilizado para justificar a necessidade
de revogação através do projeto de lei advindo da CPI dos maus tratos baseia-se em suposições
extraídas de depoimentos e informações não estatísticas colhidas no curso da referida CPI, de que
a Lei estaria sendo distorcida em sua aplicação, contudo, a mera alegação de má aplicação ou
interpretação equivocada de uma lei, em casos isolados, não é motivo suficiente para justificar
atitude tão extremada, sendo muito mais pertinente o aperfeiçoamento da Lei, bem como, capacitar
todos os profissionais e operadores do direito envolvidos na tarefa de interpretar e aplicar tal
legislação.
Até porque Gardner ponderou que não seria possível utilizar o termo alienação parental
para o que chamou de Síndrome de Alienação Parental porque há muitas razões pelas quais a
criança pode ser alienada dos pais, como negligência, abuso parental físico, emocional ou sexual,
entre outros.
Não por outro motivo entendemos que a nomenclatura correta seria Atos de Alienação
Parental, tornando-se uma síndrome a partir dos sintomas e consequências advindas da prática.
Contudo, colocar em xeque o fenômeno da alienação parental por conta de sua nomenclatura é
cegar-se a uma realidade vivida dentro dos processos judiciais.
Neste diapasão, tem-se que a Síndrome de Alienação Parental não se confunde com um ato
alienador praticado por um dos pais, mas configura-se como um conjunto sistemático de
procedimentos que alienam o outro cônjuge e familiares, em um manifesto prejuízo aos filhos,
logo, a Síndrome erroneamente nomeada por Gardner, refere-se tão somente às sequelas
emocionais e comportamentais das crianças que sofrem com esta prática (MOLINARI, 2016).
Portanto, não obstante o estudo ter sua base na teoria de Gardner, que descreveu como um
conjunto de sintomas que supostamente a criança sofreria, em nada se confunde com a vigência
da Lei da Alienação Parental, pois a lei em questão trata das condutas que ferem um direito à
convivência familiar e o exercício do poder familiar, no âmbito cível, e não de consequências
62
fisiológicas ou emocionais, que se limitam ao campo doutrinário jurídico e psicológico. A lei serve
para proteger as crianças e os adolescentes, e não para dispor sobre suposta síndrome.
A Alienação Parental deve ser compreendida de forma ampla e sem banalização, pois, nem
todos os conflitos parentais constituem atos de alienação parental, devendo sua análise ser feita
caso a caso, e de forma muito rigorosa, sob pena de se perder a credibilidade quanto ao tema.
A análise profunda do caso concreto deve passar pelo olhar de todos operadores do direito,
em especial os advogados, primeiros juízes da causa, pois, conforme explicita Sandra Inês Feitor
(FEITOR, 2021):
Ora, o direito ao contraditório e a ampla defesa está garantido, jamais haverá a declaração
de alienação parental e a aplicação de suas penas sem antes haver um estudo minucioso do caso
concreto, com a feitura de perícia biopsicossocial, dando oportunidade de defesa de ambos os
genitores, descartando totalmente qualquer possibilidade de se proteger possíveis genitores
abusadores.
Certo é que tem sido convergente o posicionamento de quem tem feito algum uso
enviesado da lei. E, aqui, não está em causa a falsa alegação do crime ou o uso oportunista da
alienação para camuflar casos de violência ou abuso, ou mesmo abandono afetivo ou autoalienação
– isso faz parte e exige do judiciário conhecimento profundo dos diferentes institutos jurídicos e
suas características – está em causa sim, o enviesamento por má aplicação dos tribunais,
compactuando ora com o reestabelecimento de convívio em cenário de violência ou abuso
comprovado sem sede própria, ou com uma inercia tal que perca o sentido de oportunidade e frustre
as possibilidades de reestabelecimentos dos laços de convivência em casos de alienação parental
(FEITOR, 2021).
A retórica, atécnica, de que a Lei de Alienação Parental abre as portas para a pedofilia, ou
que o Brasil é um paraíso para os abusadores sexuais, é totalmente reprovável tendo em vista que
não contempla nenhum respaldo legal, quer constitucional, quer lei ordinária, constituindo uma
violação do princípio da presunção de inocência. Neste passo, se os processos-crimes com
acusação de abuso sexual de um dos genitores é arquivado por inexistência de indícios ou de prova
sobre o alegado abuso ou violência, não cabe, jamais, ao julgador – vinculado ao respeito,
cumprimento e garantia da lei e direitos fundamentais, guardião que é da Constituição – proferir
qualquer juízo valorativo, pejorativo ou considerandos a respeito da capacidade, competência ou
periculosidade daquele progenitor para os filhos e respectivo regime de convivência, sem que a
sua culpa seja provada mediante sentença condenatória com trânsito em julgado (FEITOR, 2023).
Ora, o mau uso oportunista das Leis não é particular da Alienação Parental, ocorrendo de
igual forma em cenários como da violência doméstica com a alegação de legítima defesa, como
exemplo, e nem por isso se fala em revogação destes institutos ou de sua dignidade perante o
ordenamento jurídico.
A realidade nos impõe tanto as falsas alegações de abuso como efetivos abusos reais,
ambas as situações existem, assim como a alienação parental. Cegar-se a estes fenômenos é negar
a realidade do judiciário. O que se percebe é que muitas das falsas alegações se dão pela falta de
aplicação de instrumentos legais que coíbem as práticas alienadoras, deixando desta forma aquele
que age de má-fé realizando falsa denúncia, em uma posição confortável.
O gênero também não pode ser intentado em face da alienação parental, até porque,
64
invariavelmente existe a possibilidade de estarmos diante de uma alienação parental bilateral, em
que ambos os genitores, homem e mulher são agentes alienadores (ROSA, 2021). Ao que se
observa na prática diária da advocacia familista é que tanto o pai quanto a mãe podem ser
alienadores.
A Lei, em nenhum momento faz menção à gênero. A própria teoria de Gardner não traduz
o que é sustentado pelo movimento contra a Alienação Parental, uma vez que em seu artigo
Parental Alienation Syndrome (2001), sustenta que na década de 80 considerava-se que as mães
alienavam em 90% dos casos, mas que só nos casos severos recomendaria a troca da guarda, pois
as crianças eram mais vinculadas à mãe, afirmando que “apenas nos casos severos (cerca de 10%)
quando a mãe é implacável e/ou paranoica eu recomendei a alteração de guarda primaria para o
pai”.
O estudo atento e ético à teoria elaborada por Gardner demonstra que não existe um viés
sexista ou que viesse a promover discriminação de gênero. Acontece que a indicação de que a
Alienação Parental é mais praticada por mulheres se deu diante de uma época em que quase a
totalidade das guardas eram direcionadas à genitora, que ainda, diante de preconceitos e crenças
sociais, carregavam em seus ombros a responsabilidade de criação dos filhos, o que por
consequência culminou na indicação de práticas alienadoras muito mais ligadas as mães.
A cientificidade dos estudos sobre o tema, colocada em xeque também não deve prosperar.
Ainda que a Alienação Parental não fosse considerada científica, não se pode cegar à realidade
fática de muitas famílias brasileiras. A alienação parental deve ser enfrentada como uma patologia
jurídica, caracterizada pelo exercício abusivo de um dos genitores, inclusive gerando a
possibilidade de indenização por dano moral (ROSA, 2021), conforme já decidiu o Tribunal de
Justiça do Mato Grosso do Sul em que mãe e filha vítimas de alienação parental praticada pelo pai
obtiveram a condenação do alienador em R$ 50.000,00 a título de danos morais4.
Logo, não é o cunho científico da medicina ou até mesmo jurídico, constando ou não no
DSM-5 que irá determinar os rumos das decisões judiciais, servindo apenas o fundamental
multidisciplinar como suporte da compreensão das dinâmicas disfuncionalidades do sistema
familiar que possam constituir situação de mal-estar ou maltrato para com a criança com relevância
jurídica, e não uma patologização ou cientificidade do judiciário. Ora, para o direito é irrelevante
o aspecto científico de certo tema para sua tomada de decisão, o direito debruça-se sobre fatos e
4
TJ/MS, Apelação Cível. 0827299-18-2014.8.12.0001, Primeira Câmara Cível. Relator João Maria Lós, julgado em
03/04/2018.
65
provas e não sobre teorias acadêmicas.
Pode-se concluir que a Lei da Alienação Parental, ainda que necessitando de ajustes,
apresenta-se como um importante instrumento jurídico dotado de eficácia para identificar esse
fenômeno, optando por uma técnica legislativa descritiva e exemplificativa de hipóteses de
conduta que permitem a identificação mais fácil por parte dos operadores do direito, dos
personagens por ventura envolvidos nesse conflito e dos profissionais de saúde mental
responsáveis pelas avaliações periciais, com o intuito de proteger em primeiro plano a criança,
resguardar a pessoa alienada e fazer cessar os atos praticados pelo alienador, atribuindo-lhe as
respectivas responsabilidades (MOLINARI, 2016).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considera-se que a legislação brasileira relativa à alienação parental, que pode ser sim alvo
de melhorias, tem uma harmonia entre direito material e processual que dá a possibilidade, se
utilizadas de forma técnica, com profissionais preparados para tanto, atenuar e inibir os atos
alienadores, bem como, dar a possibilidade de refazimento de vínculos parentais enfraquecidos
pela alienação.
66
contudo, é inegável sua existência, independente da terminologia utilizada ou do seu
reconhecimento científico, pois fenômeno social, psicológico e jurídico, cabendo aos tribunais
analisá-la casuisticamente, aplicando sempre o melhor interesse da criança e do adolescente.
O movimento contrário à lei 12.318/2010 ganha força quando polariza os entendimentos,
não se utilizando do debate construtivo para possível melhoria da lei, trazendo informações
midiáticas sem nenhuma comprovação e de cunho totalmente ideológico. Não à toa que o
IBDFAM – Instituo Brasileiro de Direito de Família e Sucessões, diante dos diversos fundamentos
descontextualizados, que distorcem a aplicação da norma sob falsa acusação de que serviria para
favorecer pais abusadores, sem nenhuma evidência científica, ingressou junto ao Conselho
Nacional de Justiça – CNJ com o Pedido de Providências5 solicitando a realização de coleta de
dados por amostragem, em Varas das cinco regiões do Brasil, sobre processos envolvendo o tema
da alienação parental e seus resultados. Tal pedido é de grande importância para trazer os dados
necessários para melhor análise do tema.
A renovação da Lei 12.318/2010 através da Lei 14.340/2022 revigora a luta pela proteção
das crianças e adolescentes, sem fazer qualquer tipo de prevalência de gênero, reforçando o valor
e o mérito da legislação aplicável no ordenamento jurídico brasileiro, porém, necessário nos
atentarmos ao acrescento de responsabilidades de maior empenho e profundidade no estudo do
tema por todos aqueles que se deparam com o fenômeno no âmbito judicial, para que minimizemos
os erros, não permitindo que tanto a teoria quanto a lei sejam utilizados de forma enviesada dos
reais fundamentos incorporados ao fenômeno da Alienação Parental.
REFERÊNCIAS
BAKER, Amy J. L. Patterns of parental alienation syndrome: a quality study of adults who were
alienated from a parent as a child. 2006. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/228616324_Patterns_of_Parental_Alienation_Syndr
ome_A_Qualitative_Study_of_Adults_Who_were_Alienated_from_a_Parent_as_a_Child>.
Acesso em: 27 jul. 2023.
FEITOR, Sandra Inês. Alienação Parental na esfera internacional – desafios actuais. O direito
fundamental recíproco à convivência familiar. In: Revista IBDFAM: Família e Sucessões. – Belo
Horizonte: IBDFAM, 2021.
FEITOR, Sandra Inês. Alienação Parental e Convivência Familiar sob a perspectiva dos direitos
5
Pedido de Providências n. 0003894-08.2023.2.00.0000
67
da personalidade. Lisboa: Lisbon International Press, 2023.
FREITAS, Douglas Phillips. Alienação Parental: Comentários à Lei 12.318/2010. 4ª. ed. rev.,
atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
MADALENO, Rolf. A revogação da lei da alienação parental no Brasil e no exterior. In: Revista
IBDFAM: Família e Sucessões. Belo Horizonte: IBDFAM, 2021.
ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed. rev., ampl. e atual. –
Salvador: JusPODIVM, 2021
TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do direito. 9º ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
68
FIXAÇÃO DE RESIDÊNCIA BASE NA GUARDA COMPARTILHADA E SUA
RELAÇÃO COM A ALIENAÇÃO PARENTAL
RESUMO
A guarda compartilhada foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro com o intuito de
preservar os vínculos entre filhos de pais separados, indicando um equilíbrio de convivência entre
os genitores, bem como a corresponsabilidade na criação. A lei determina que somente quando os
pais residirem em cidades diferentes deverá ser fixada a cidade base de residência, contudo, as
decisões judiciais vêm fixando o lar de referência mesmo nas situações em que os genitores
residem na mesma cidade, dando uma ideia de que um deles tem mais importância que o outro,
contribuindo para que em contextos de alienação parental a prática seja intensificada, caminhando
na contramão do escopo da guarda compartilhada.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No momento em que ocorre a ruptura conjugal, a autoridade parental segue sendo de ambos
os genitores, independentemente do tipo de guarda estabelecido. Apesar disso, a guarda
compartilhada tem preferência em termos de aplicabilidade, justamente por favorecer a
conscientização dos genitores acerca da igualdade parental.
1
Advogado especialista em Direito de Família. Formação em Psicologia Jurídica. Presidente do Núcleo Pelotas/RS
IBDFAM - RS. Conselheiro Subsecciaonal da OAB Pelotas/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de
Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS. OAB/ 73976. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com.
2
Psicóloga, Especialista em Perícia Psicológica Forense (Universidade Autônoma de Barcelona - UAB). Pós-
graduada em Psicopatologia Clínica (Universidade de Barcelona - UB). Mestre em Psicologia Cognitiva (Escola de
Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS). Membro da Sociedade Brasileira
de Psicologia Jurídica (SBPJ).
69
2 ASPECTOS JURÍDICOS
Não podemos falar sobre guarda sem antes analisarmos minimamente a autoridade
parental, que é a situação jurídica complexa que autoriza a interferência dos pais na esfera jurídica
dos filhos, sempre no interesse destes, a qual é exercida até a maioridade ou emancipação
(SCHREIBER, 2018).
O Código Civil de 2002, seguindo as luzes jogadas pela Constituição Federal, com a
profunda alteração conceitual do pátrio poder, modificou sua terminologia, passando a adotar a
matéria sob o título de poder familiar, nomenclatura ainda criticada por boa parte da doutrina, que
atualmente vem utilizando a autoridade parental como melhor significante ao instituto. Conrado
Paulino da Rosa, citando Paulo Lobo (LOBO, 2008), vai além, entendendo que a melhor expressão
seria “função parental”, tendo em vista que “autoridade” poderia evocar uma espécie de poder
físico sobre a pessoa do outro.
Ponto crucial para análise do problema que o presente artigo traz é a titularidade da
autoridade parental. Ela é exercida em igualdade de condição por ambos os pais, e neste sentido o
Código Civil é claro e objetivo em seu artigo 1.632, que merece destaque: “A separação judicial,
70
o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto
ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.”
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno
exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (...)
Art. 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não
perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar,
exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.
Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe
solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.
Desta forma, é possível concluir que tal encargo atribuído simultaneamente aos pais não
decorre do casamento ou da união estável, sendo inerente ao estado de filiação desde o nascimento
do filho, e resulta da paternidade/maternidade, constituindo um atributo irrenunciável, intrasferível
e imprescritível, sendo imperioso frisar que as obrigações desse vínculo são personalíssimas
(FERREIRA, 2021).
Atualmente, a regra quanto à guarda, a partir do advento da Lei 13.058/2014, que alterou
o artigo 1.584, §2º, entre outros, é a compartilhada. O referido artigo versa que “mesmo quando
não houver acordo entre mãe e pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores
aptos a exercer o poder familiar, será instituída a guarda compartilhada”.
Logo, somente em duas situações a guarda não será da forma conjunta, a uma quando um
dos genitores não quiser exercê-la, a outra quando um dos genitores não puder exercê-la – quando
estiver suspenso ou destituído do poder familiar, claro, sempre atendendo o melhor interesse da
criança.
Portanto, a antiga discussão (que infelizmente ainda é levada aos tribunais) de que há
impossibilidade no compartilhamento da guarda no litígio, cai por terra. Ademais, utilizando-se
71
da doutrina sempre didática de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2016), é
justamente nesses casos o “palco mais iluminado para o exercício conjunto da guarda”, sob pena
de se submeter a criança ao crivo potestativo – inexistente, pois, contrário ao escopo da autoridade
parental – de um dos genitores.
Para a análise do instituto da guarda, temos que observar sua origem, que se deu de
legislação estrangeira na qual a autoridade parental normalmente era atribuída pelo juiz
exclusivamente a um dos genitores4. Já no Brasil, conforme explicitado, a autoridade parental não
se modifica com o divórcio ou a dissolução da união estável.
No Brasil, nos parece que a guarda compartilhada tem muito mais uma importância social,
de conscientização de que ambos os genitores têm os mesmos direitos e deveres com relação aos
filhos do que propriamente uma importância jurídica. Isto porque, acaso aplicada a guarda
unilateral, de igual forma a autoridade parental continua intacta, devendo ambos os genitores
3 REsp 1560594/RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 23/02/2016, DJe
01/03/2016.
4
Tomemos como exemplo o Código Civil Francês em vigor até o ano de 2002 e Código Civil Italiano que entrou em
vigor no ano de 2006, passando a ter a guarda compartilhada como regra.
72
participarem das decisões importantes da vida dos filhos, bem como de toda sua educação, de
forma igualitária.
É evidente que embora se estabeleça legalmente competir a ambos os pais o pleno exercício
do poder familiar em relação aos seus filhos, independente da situação conjugal, o estabelecimento
da guarda exclusiva a um dos genitores acaba por enfraquecer o exercício do poder familiar
daquele que não detém a guarda. Nesse sentido, importante considerar que todo o cotidiano da
criança, e sua relação com o meio social, assim como seu direcionamento educacional, proteção,
vigilância, serão exercidos isoladamente pelo genitor guardião, cabendo apenas ao outro a
fiscalização e supervisão do exercício da parentalidade, além do direito à convivência. Ao genitor
não guardião, não raramente o papel parental acaba sendo exercido somente em finais de semanas
alternados, corroborando com o enfraquecimento do vínculo afetivo, aumentando a possibilidade
de que, se existentes, as práticas alienadoras se perfectibilizem e se intensifiquem no decorrer do
tempo.
73
Observa-se que o padrão utilizado nas decisões judicias não contempla o real significado
da guarda compartilhada, sendo aplicada, portanto, de modo incoerente e em desconformidade
com a legislação civil.
Ao observarmos o artigo 1.583 do Codex, temos que não há nenhuma determinação de que
deva ficar registrado qual o lar de referência ou base de moradia. Versa o referido artigo que a
cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender ao interesse destes,
o que não se pode confundir com a determinação de uma residência fixa, como se vem observando
nas decisões judiciais.
Logo, a residência fixa ou lar referencial deverá ser mencionado somente nos casos em
que os genitores residirem em cidades diversas, pois nestas situações fáticas se faz necessário,
conforme determina § 3º do artigo 1.583.5
O que vem se observando através das decisões judiciais é que se acaba criando, por
imposição judicial, o sentimento de que a casa daquele genitor que “não é o da residência fixa” é
5
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos
interesses dos filhos. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
74
um lar de “visita”, indo totalmente na contramão do escopo da guarda compartilhada. Como
consequência, pode-se considerar que tal tipo de fixação favorece a instauração da Alienação
Parental, uma vez que o genitor detentor da residência fixa do filho pode assumir uma postura de
poder e “posse”, alijando o outro genitor do efetivo exercício do poder familiar, ato especificado
no art. 2º, inciso II, da Lei da Alienação Parental – Lei 12.318/2010.
No entendimento de Fernando Salzer6, se tem fixação do lar único, haverá então a “visita”
ao outro genitor, ao passo que quando deixado de indicar o lar referencial, estaremos diante da
verdadeira convivência.
3 ASPECTOS PSICOLÓGICOS
No contexto de separação dos pais, não se pode olvidar que as crianças e adolescentes são
seres em desenvolvimento e se encontram em uma fase crucial da formação de sua personalidade
e base emocional. Um dos fatores primordiais para o desenvolvimento de uma personalidade sólida
e saudável é a formação de vínculos de apego.
6
Advogado familiarista, procurador do Estado de MG e membro do IBDFAM.
75
O apego é um processo calcado nos laços afetivos precoces, que formam a base para a
capacidade que o ser humano tem de criar novas e importantes relações ao longo da vida (ROLIM,
2013). Assim, no relacionamento com as figuras parentais, a segurança e conforto experimentados
permitem que seja desenvolvida uma base segura, a partir da qual a criança ou adolescente poderá
explorar o resto do mundo (RAMIREZ, 2010).
Enquanto o casamento dos pais segue intacto, as crianças e adolescentes costumam contar
com uma referência única de lar, valores, regras, etc. Para que os filhos sigam tendo uma ideia de
continuidade dos vínculos, é fundamental que lhes seja proporcionado um ambiente no qual eles
não sintam que um dos pais é mais ou menos importante do que o outro. Nesse sentido, as crianças
e adolescentes precisam de um “continuum de espaço e tempo, do continuum afetivo e do
continuum social” (DOLTO, 2011).
Assim, cabe destacar que quando a conjugalidade se encerra, a parentalidade deve ter
continuidade. Afinal, os filhos ainda precisarão de cuidados que vão além da alimentação e
higiene, estando intimamente relacionados à segurança e à afetividade.
Do ponto de vista psicológico, a ruptura do casamento, por si só, já pode ser considerada
um evento traumático, principalmente quando há filhos menores de idade. Isto porque, em grande
parte dos casos, a separação naturalmente evoca uma sensação de choque, medo, ambivalência,
vazio, culpa, ansiedade e, muitas vezes, desejo de reparação (TRINDADE, 2021).
76
A separação constitui uma crise emocional que acarreta desestabilização da família,
produzindo frequentemente prejuízos emocionais nos filhos, particularmente nos menores. Isso
ocorre, em função de que qualquer evento que atinja algum membro do sistema familiar acarretará
efeitos sobre os demais e sobre o grupo como tal (DA MOTTA, 2004).
Nas separações conflitivas que envolvem filhos menores, costumam ser discutidos aspectos
como guarda, pensão e convivência. Nesse ponto, muitas vezes há falta de olhar para o bem-estar
dos filhos, que passam a ser utilizados como complemento narcísico dos genitores. Quando ocorre
o emaranhamento dos problemas conjugais, notam-se efeitos diretos no funcionamento
psicológico da criança/adolescente, desfavorecendo o desenvolvimento do self e gerando
significativas consequências no desenvolvimento emocional dos filhos (VIEGAS, 2012).
Ao perceber a disputa entre os genitores, os filhos podem interpretar que devem tomar
partido de um dos pais, gerando conflito de lealdade. Referido conflito se instala quando um filho
se alia a um genitor e imagina que irá traí-lo ou prejudicá-lo caso se aproxime do outro. Quanto
maior a rigidez com que a lealdade se impõe, mais desequilibrado será o triângulo pai-mãe-filho(s)
(NUSKE, 2015).
Ambos os pais são primordiais à criança para que ela vivencie de forma natural os
processos de identificação e diferenciação. Desse modo, quando um deles falta ou tem pouca
participação, a tendência é de que ocorra sobrecarga no papel do outro, produzindo um
desequilíbrio que pode gerar danos na personalidade do filho (EIZIRIK, 2004). Nesse sentido,
existe a necessidade de manutenção do envolvimento de ambos os progenitores no
acompanhamento do desenvolvimento da criança/adolescente, apesar da ruptura da conjugalidade
(DE MATOS, 2018).
77
estipulados os termos da guarda e, justamente por essa razão, precisam ser elevados à principal
preocupação (MADALENO, 2018).
Considerando que não existe um genitor mais importante que o outro, e que ambos são
essenciais ao desenvolvimento dos filhos, a fixação de residência em favor de um não parece
priorizar o bem-estar das crianças/adolescentes. A partir do momento em que se fixa a residência
com apenas um dos genitores, pode-se gerar aos filhos uma sensação de rompimento do continuum
que é fundamental para uma base sólida de desenvolvimento psíquico.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A separação conjugal é uma crise não previsível do ciclo vital da família, que tende a
desestruturar o grupo e seus membros. Geralmente, os maiores prejudicados são os filhos,
considerando que estes são indivíduos em pleno desenvolvimento físico e emocional. Diante da
compreensão do papel das inter-relações, a separação não pode ser considerada unicamente uma
questão de leis, pois não envolve somente uma discussão quanto a direitos e deveres. Os efeitos
psíquicos e psicossociais que a separação pode acarretar também devem ser levados em
consideração.
78
para a guarda compartilhada nestes casos. Nesse sentido, o genitor que tem sua residência como
base fixa da criança tende a abrigar-se do mesmo significante, qual seja, de que no mínimo tem
mais importância e mais ingerência na vida da criança do que aquele que não tem o lar referencial.
Essa sensação de poder favorece a alienação parental, cujos efeitos podem ser irreversíveis.
Observamos, no entanto, que tais decisões não encontram guarita legal e tampouco
fundamentação psicológica. Portanto, nos casos em que é determinada a guarda compartilhada,
deve-se aplicar a pluralidade de domicílio quando os pais residirem na mesma cidade – sendo
determinada a residência fixa ou lar referencial apenas nos casos em que os genitores residirem
em cidades diversas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECKER, Ana Paula Sesti; CREPALDI, Maria Aparecida. O apego desenvolvido na infância e o
relacionamento conjugal e parental: Uma revisão da literatura. Estudos e Pesquisas em Psicologia,
v. 19, n. 1, p. 238-260, 2019.
ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed. rev., ampl. e atual.
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FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: famílias. 8. ed.
rev. e atual. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
DOLTO, Françoise. Quando os pais se separam. Tradução Vera Ribeiro. 2ª Ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSA, Conrado Paulino da. Direito de família na prática:
comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022.
FERREIRA, Petra Sofia Portugal Mendonça. A dupla residência da criança pós-divórcio: Uma
análise de direito comparado e sua aplicação no direito brasileiro. – 1º ed. 1 reimp. – Belo
Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.
79
MAIRAL, Pedro. A Uruguaia. Tradução Heloisa Jahn. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2018.
RAMIRES, Vera Regina Röhnelt; SCHNEIDER, Michele Scheffel. Revisitando alguns conceitos
da teoria do apego: comportamento versus representação?. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 26,
p. 25-33, 2010.
ROLIM, Kamêni Iung; WENDLING, Maria Isabel. A história de nós dois: reflexões acerca da
formação e dissolução da conjugalidade. Psicologia Clínica, v. 25, p. 165-180, 2013.
SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação,
2018.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; COLTRO, Antonio Carlos Mathias; DELGADO, Mario
Luiz. Guarda Compartilhada. 2ª. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método,
2016.
TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (organização Gustavo Tepedino). Direito de Família, 1ª. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2020.
TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 9ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2021.
80
A NATUREZA JURÍDICA DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS E SUA
IMPORTÂNCIA NA APLICAÇÃO PRÁTICA
RESUMO
O presente artigo visa promover a abordagem da natureza jurídica dos alimentos compensatórios,
discorrendo brevemente sobre as aplicações dos diversos tipos de alimentos e suas diferentes
utilizações as quais podem, consequentemente, acarretar nos divergentes entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema. Tal estudo é de suma importância tendo em vista a
necessidade de se estabelecer uma regulamentação a um direito não resguardado pela legislação,
já que não há previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, demonstrar a
necessidade de se pacificar o entendimento da natureza dos alimentos compensatórios para a sua
adequada aplicação ao caso concreto com o intuito de se resguardar o direito do cônjuge ou
companheiro que com o término da relação marital restou em desequilíbrio sócio-econômico em
detrimento do seu ex-consorte. A dificuldade em estabelecer na prática a sua devida aplicação
pode acarretar no desvirtuamento do instituto ao confundir-se com os demais alimentos ou o
desemparo do cônjuge que foi afetado pelo desequilíbrio do término da relação em razão da sua
inaplicabilidade.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Não há dúvida de que muitas decisões se valem de fundamentos equivocados quanto aos
alimentos compensatórios por confundir sua natureza jurídica e o seu fim, causando inegáveis
injustiças àqueles que precisam dos alimentos para se verem compensados da discrepância
econômica existente após o fim do relacionamento conjugal.
Apesar deste caráter íntimo ao direito público, não se retira das relações familiares o
1
Advogado, especialista em Direito de Família. Formação em Psicologia Jurídica. Presidente do Núcleo de Pelotas
do IBDFAM/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS.
Conselheiro da OAB Subseção Pelotas/RS, OAB/RS 73.976. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com.
2
Advogada, civilista, pós-graduanda em Direito Negocial e Imobiliário na Escola de Direito Brasileiro de Direito,
OAB/RS 66.595. E-mail: sonia_fortunato@hotmail.com.
81
caráter privado, uma vez estar disciplinado pelo direito civil, não evolvendo diretamente uma
relação entre o Estado e o cidadão, pois que a relação se dá entre pessoas físicas, sem obrigar o
ente público à solução dos litígios, com exceção de quando for chamado por um desses sujeitos
para a resolução do litígio.
Ainda que hoje em dia clame-se pela menor intervenção estatal ao direito de família –
Direito Mínimo – por ter uma função de proteção às pessoas que fazem parte da família, obriga-
se o Estado a intervir de forma a trazer equilíbrio econômico quando do fim do relacionamento
conjugal, atendendo a dignidade daqueles sujeitos.
Resta que os alimentos compensatórios servem tão somente para equilibrar e preservar a
dignidade da pessoa humana, logo, entender de forma aprofundada sua natureza jurídica é
essencial para evitar distorções e uma má aplicação de um instituto salutar à preservação de uma
vida digna, que é de interesse social.
O conhecer do direito encontra-se no campo da dogmática jurídica, com seu controle sobre
os mecanismos de legitimação, validade e eficácia das normas, porém, ausenta-se desse
formalismo científico o refletir, o pensar o significado do seu conteúdo para que não ocorra adesão
acrítica às condutas positivadas na sociedade, de modo a perpetuar a separação sujeito/objeto e a
racionalidade reducionista das relações entre direito e sociedade (MORIN, 2002), em especial nas
relações privadas do direito de família.
As lacunas legislativas existem cada vez mais no âmbito das novas famílias que se
autodeterminam (escolha de regime de bens, planejamento familiar patrimonial ou existencial,
entre outros) em formas não estritamente previstas na norma escrita, mas que, independentemente
disso, são vivenciadas em sua concretude. É o caso dos alimentos compensatórios, que visa um
82
equilíbrio patrimonial, mas que juridicamente está em uma zona cinzenta entre o vazio (ou quase
vazio) legislativo e a previsão desarticulada, exigindo do aplicador do direito e de seu intérprete
uma postura plural ao compreender a inserção e o reconhecimento dessas práticas na
contemporaneidade e a sua verdadeira natureza jurídica.
A natureza jurídica de uma norma, instituição ou conceito envolve sua essência, sua
caracterização fundamental e suas relações com outros elementos do sistema jurídico.
Cabe salientar, ainda como ponto de partida, que a natureza jurídica não é um conceito
estático ou imutável. Ela está sujeita a debates e revisões no campo da teoria do direito. Diferentes
83
abordagens teóricas podem oferecer diferentes perspectivas sobre a natureza jurídica de um
determinado fenômeno jurídico e claro, os alimentos compensatórios, sendo um instituto
relativamente novo, alcança a perspectiva de mutação à sua interpretação. Portanto, a importância
epistêmica da natureza jurídica está intrinsecamente ligada à evolução e ao debate contínuo na
teoria do direito.
Verifica-se que não houve pelo legislador uma preocupação quanto à definição referente
à modalidade da prestação em tela, estabelecendo apenas que os alimentos “devem ser fixados na
proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”3.
Flávio Tartuce (TARTUCE, 2018), didaticamente nos presenteia com a classificação dos
alimentos, sustentando que enquanto gênero podem ser classificados, visando a categorização
jurídica, observando os seguintes critérios:
3
Art. 1.694, § 1º, Código Civil.
84
certas vantagens decorrentes da relação que deixou de existir. Eles representam um valor que
ressarce ou serve para preencher o vazio trazido pela desconstituição do vínculo marital ou familiar
(RIZZARDO, 2019).
Conforme nos ensina Maria Berenice Dias, os alimentos compensatórios são uma
indenização pela perda da chance experimentada por um dos cônjuges durante o casamento ou
união estável (DIAS, 2017).
A prescrição da pretensão dos alimentos compensatórios ocorre nos termos do art. 205 do
85
Código Civil4, bem como se extingue a obrigação com a morte do devedor não se transmitindo à
sucessão (DIAS, 2017).
Com o devido respeito aos nobres doutrinadores, não nos parece plausível sustentar tal
entendimento, uma vez que os alimentos compensatórios não servem como alimentos de natureza
necessária, mas, sim para o equilíbrio da condição econômica ao fim do relacionamento conjugal.
O entendimento da natureza dos alimentos compensatórios, bem como o fato de não existir
previsão legal em nosso ordenamento jurídico contribuem para as divergências de entendimentos
e afetam, consequentemente, a sua aplicação prática como se passa a abordar a seguir.
O Supremo Tribunal de Justiça na sua atual ótica entende que os alimentos essenciais entre
cônjuges é excepcional, de caráter assistencial e transitório5, o que nos faz pensar ser um dos
4
Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
5
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ART. 535 DO CPC. VIOLAÇÃO NÃO
CONFIGURADA. ALIMENTOS TRANSITÓRIOS DEVIDOS ENTRE EX-COMPANHEIROS.
86
possíveis motivos para tantas divergências acerca do assunto dos alimentos compensatórios que
em nada possuem relação com o autossustento dos pares da relação marital.
Segundo Maria Berenice Dias (DIAS, 2017), a divergência vivenciada pode se dar em
razão de que a lei chama de “provisórios” tanto os alimentos fixados liminarmente para garantir a
sobrevivência do alimentado, quanto os alimentos derivados da divisão dos frutos e rendimentos
dos bens comuns do casal. Desta forma, fornece a jurisprudência, em sua maioria, o mesmo
tratamento para ambos e os chamam de alimentos compensatórios.
1. Não se viabiliza o recurso especial pela indicada violação do artigo 535 do Código de Processo Civil. Isso porque,
embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de
origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão do recorrente.
2. Entre ex-cônjuges ou ex-companheiros, desfeitos os laços afetivos e familiares, a obrigação de pagar alimentos é
excepcional, de modo que, quando devidos, ostentam, ordinariamente, caráter assistencial e transitório, persistindo
apenas pelo prazo necessário e suficiente ao soerguimento do alimentado, com sua reinserção no mercado de trabalho
ou, de outra forma, com seu autossustento e autonomia financeira.
3. As exceções a esse entendimento se verificam, por exemplo, nas hipóteses em que o ex-parceiro alimentado não
dispõe de reais condições de reinserção no mercado de trabalho e, de resto, de readquirir sua autonomia financeira. É
o caso de vínculo conjugal desfeito quando um dos cônjuges ou companheiros encontra-se em idade já avançada e, na
prática, não empregável, ou com problemas graves de saúde, situações não presentes nos autos. Precedentes de ambas
as Turmas de Direito Privado desta Corte. 4. Os alimentos transitórios - que não se confundem com os alimentos
provisórios - têm por objetivo estabelecer um marco final para que o alimentando não permaneça em eterno estado de
dependência do ex-cônjuge ou ex-companheiro, isso quando lhe é possível assumir sua própria vida de modo
autônomo. 5. Recurso especial provido em parte. Fixação de alimentos transitórios em quatro salários mínimos por
dois anos a contar da publicação deste acórdão, ficando afastada a multa aplicada com base no art. 538 do CPC. (REsp
n. 1.454.263/CE, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/4/2015, DJe de 8/5/2015.)
6
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO
OCORRÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO EXCLUSIVA DE PATRIMÔNIO COMUM BILIONÁRIO. ALIMENTOS
RESSARCITÓRIOS. CABIMENTO. DECISÃO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL
CONHECIDO E DESPROVIDO.1. O Tribunal de origem analisou todas as questões relevantes para a solução da
lide de forma fundamentada, não havendo falar em negativa de prestação jurisdicional. 2. Os alimentos
compensatórios são fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, fundada na dignidade da pessoa humana, na
solidariedade familiar e na vedação ao abuso de direito. De natureza indenizatória e excepcional, destinam-se a
mitigar uma queda repentina do padrão de vida do ex-cônjuge ou ex-companheiro que, com o fim do relacionamento,
possuirá patrimônio irrisório se comparado ao do outro consorte, sem, contudo, pretender a igualdade econômica do
ex-casal, apenas reduzindo os efeitos deletérios oriundos da carência social. 3. Apesar da corriqueira confusão
conceitual, a prestação compensatória não se confunde com os alimentos ressarcitórios, os quais configuram um
pagamento ao ex-consorte por aquele que fica na administração exclusiva do patrimônio, enquanto não há partilha
dos bens comuns, tendo como fundamento a vedação ao enriquecimento sem causa, ou seja, trata-se de uma verba
de antecipação de renda líquida decorrente do usufruto ou da administração unilateral dos bens comuns. 4. O
87
muito bem esclarece a diferença da natureza entre os alimentos compensatórios e os ressarcitórios
baseado na linha da doutrina de Rolf Madaleno. A partir deste momento, se acredita que a
definição dos alimentos compensatórios estabelecida neste acórdão dará azo para que tais
alimentos possam ser tratados como de fato são, sem distorção de sua função.
A jurisprudência vem construindo através das diversas doutrinas acerca do tema, bem como
através dos princípios, a garantia de aplicação do direito daquele que com o término da relação
marital se vê em um abismo social em relação ao seu ex-consorte, visando proteger o direito não
amparado pela legislação. Porém, para que se faça a aplicação adequada e, consequentemente, se
faça justiça em relação ao direito requerido através dos alimentos compensatórios, é preciso
pacificar o entendimento da sua natureza jurídica.
alimentante está na administração exclusiva dos bens comuns do ex-casal desde o fim do relacionamento, haja vista
que a partilha do patrimônio bilionário depende do fim da ação de separação litigiosa que já se arrasta por quase 20
(vinte) anos, o que justifica a fixação dos alimentos ressarcitórios. 5. Não existe decisão fora dos limites da demanda
quando o julgador, mediante interpretação lógico-sistemática da petição inicial, examina a pretensão deduzida em
juízo como um todo, afastando-se a alegação de ofensa ao princípio da adstrição ou congruência. As instâncias
ordinárias apreciaram o pedido em concordância com a causa de pedir remota, dentro dos limites postulados na
exordial, não havendo falar em decisão extra petita. 6. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n.
1.954.452/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 22/6/2023.)
88
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mundo atual nos traz diversos conceitos de família daquele conceito previsto
primordialmente pela legislação, contudo há uma necessidade urgente em regulamentar as
situações decorrentes das novas relações que advém com a modernidade. Apesar de se clamar pela
mínima intervenção estatal nas famílias, se faz necessária a tutela do Estado com o cunho de
equilibrar as desigualdades nas relações para que se resguarde a dignidade humana.
Ao se dizer que o Direito estará sendo assegurado, também se quer dizer que não se estará
deixando de aplicar ao caso o que é característico dele mas, também, que não haveria um
desvirtuamento da sua aplicação contribuindo, desta forma, para a previsibilidade e a estabilidade
do sistema jurídico.
89
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. Alimentos: direito, ação, eficácia e execução. 2. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
RIZZARDO, Arnaldo. Direitos de Família. 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019
TARTUCE, Flávio. Direito Civil. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.v. 5
90
MULTIPARENTALIDADE: A AFETIVIDADE COMO FATOR
DETERMINANTE DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA
RESUMO
O artigo trata das transformações ocorridas na estrutura familiar, antes alicerçada por um modelo
tradicional e que deu espaço a um novo modelo que tem como eixo principal a presença do afeto
como fator determinante da composição familiar. A realização subjetiva e existencial dos entes
familiares passa a ser considerada e dar-se um novo rumo às relações de parentalidade e filiação.
O advento da Constituição Federal de 1988, foi o marco principal no Direito de Família no Brasil,
com a importância dada aos princípios, sobretudo o princípio da afetividade. Nesse contexto, o
objetivo do trabalho é discutir a importância da afetividade como fator determinante da
parentalidade socioafetiva. Adota-se o método hipotético-dedutivo, com pesquisas bibliográficas
centradas no campo das leis, das produções doutrinárias e jurisprudenciais. Ao final, conclui-se
que a afetividade, com o advento da ConstituiçãoFederal de 1988, veio a exercer um papel
importante no contexto da estrutura familiar, como também a decisão do Supremo Tribunal
Federal no RE de nº 898.060/RS e Repercussão Geral nº 622, que reconheceu a multiparentalidade.
Foram instrumentos que demonstraram que o afeto é a mola propulsora das relações e laços
familiares, alicerçado na dignidade da pessoa humana, como fator determinante do agrupamento
familiar.
1 INTRODUÇÃO
Logo, percebe-se que a relevância temática consiste em sua atualidade, bem como por tratar
de elementos abstratos que compõem a dignidade da pessoa humana, promovendo a sua realização
1
Técnico Judiciário do TJCE, Bacharel em Direito pela Faculdade Princesa do Oeste - FPO, e-mail:
ffalcantara@gmail.com.
2
Mestre em Direito Constitucional nas relações privadas (UNIFOR), Especialista em Direito e Processo de família e
Sucessões (DAMÁSIO). Docente e Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Princesa do Oeste, OAB/CE n.
30.335, e-mail: jose.weidson@fpo.edu.br.
91
pessoal e contribuindo para a formação de novos modelos familiares juridicamente reconhecidos
e que, por tal, receberão a proteção especial atribuída pela Constituição Federal de 1988.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Ao tomar por base o estudo do Direito de Família romano, pode-se constatar, no período
considerado do Direito pré-clássico, a existência de cinco modelos de famílias que se vinculavam
através do parentesco consanguíneo ou através do casamento, dentre os quais pode-se citar dois
grupos principais, o da família próprio iure, que denominava o agrupamento familiar em que os
92
seus membros se submetiam ao poder de um pater familia e a família natural, que era constituída
pelos cônjuges e seus filhos(ALVES, 2021).
O poder do pater familia se sobressaía sobre todos os demais poderes familiares, seja sobre
as pessoas, como também sobre as coisas que estavam sobre o seu comando. Era um poder
absoluto que lhe dava o direito de decidir sobre a vida e a morte de todos os que eram subordinados
ao seu poder (ALVES, 2021, p. 601):
Para o ingresso na família próprio iure, primeiro era necessária a sujeição apatria potestas,
aliado a outras exigências, como a procriação em justas núpcias, iustae nuptiae, e a adoção em
uma de suas formas: adoptio ou adrogatio; ou a legitimação (ALVES, 2021).
O que se compreende como justas núpcias para esse período da história romana, era o filho
advindo do casamento e que tivesse nascido num período considerado ideal para o seu nascimento,
como retrata Alves (2021, p. 607):
Nasce de justas núpcias a criança que vem à luz depois de 182 dias de contraído o
casamento legítimo por seus pais, ou a que nasce até 300 dias após a dissolução desse
consórcio. Com relação ao pai – ao contrário da mãe, cuja maternidade é certa- presume-
se que a criança nascida dentro desse espaço de tempo seja seu filho: pater uero is est,
quem nuptiae demonstrant (o pai é aquele que as núpcias atestam).
Verifica-se que o nascimento de uma criança dentro desse modelo de família romana, não
significava a garantia de que seria aceita no seio do grupo familiar, tendo em vista que algumas
poderiam até mesmo serem negociadas para saldar dívidas. Entretanto, é importante ressaltar que
nesse período, mesmo considerado um processo complexo, já existia a adoção, que era o ingresso
na família próprio iure, como filius familia, de crianças que não a tinham como família de origem.
93
Estabelecendo uma comparação entre o que era considerado justas núpcias no direito
romano com a legislação brasileira atual, sobretudo com o artigo 1.5233do Código Civil de 2002,
que trata das causas suspensivas para o casamento, pode-se perceber que mesmo muitos anos
passados, e embora não haja uma relação direta entre o Direito Romano e as causas suspensivas
do casamento no Código Civil de 2002, a tradição jurídica romana influenciou o desenvolvimento
do Direito Civil como um todo, incluindo o conceito de casamento e suas restrições legais.
O matrimônio, em Roma, era uma situação de fato que se iniciava, sem quaisquer
formalidades, com o simples acordo de vontade do homem e da mulher, e que perdurava
apenas enquanto persistia a intenção dos cônjuges em permanecerem casados,
dissolvendo-se, de imediato, no momento em que um deles (ou ambos) deixasse de tê-la.
Assim, ao contrário do que se verifica no direito moderno, em que basta o consentimento
inicial para que surja o status de cônjuge que perdura – ainda que os esposos não mais o
desejem – até a morte ou o divórcio, no direito romano o matrimônio se iniciava com o
acordo de vontades do homem e da mulher no sentido de se casarem e só perdurava
enquanto esse acordo persistisse: não era suficiente, para que o status de cônjuge se
mantivesse, o consentimento inicial, mas, sim, o continuado.
Pode-se perceber, na situação matrimonial de Roma, uma grande semelhança do que temos
em nossa realidade atual brasileira e definido no Código Civil de 2002, em seu artigo 1.7234, como
união estável, que não necessita de formalidades, mas que seja configurada numa convivência
pública e duradoura e sobretudo com o objetivo de constituir família.
3
Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário
dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter
sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado,
enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus
descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar
a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar
ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a
inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada;
no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.
4
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
94
Ao longo da história do Direito de Família romano, muitas modificações ocorreram e
podem ser percebidas claramente no período clássico, quando há um avanço progressivo da
importância da família natural, aquela baseada no casamento e nos vínculos sanguíneos, em
detrimento da família próprio iure, como também dá-se o início da regulamentação das relações
de família através da lei (ALVES, 2021).
Durante a Idade Média, o Direito Canônico exerceu uma grande influência na formação
das famílias. O Direito Canônico é o conjunto de leis e regulamentos da Igreja Católica, que
buscava orientar as relações entre os indivíduos e estabelecer padrões de comportamento moral e
religioso. A Igreja Católica deixava de ser influente somente no campo da hegemonia religiosa,
para adentrar no campo político, estabelecendo um rompimento do poder secular do Imperador
sobre a Igreja (ABEL, 2017).
Na Idade Média, a Igreja Católica tinha um papel central na vida das pessoas, tendo em
vista que se tratava da única estrutura político-administrativa que se mantinha de forma organizada
após a queda do Império Romano e muitas das instituições sociais eram influenciadas por ela,
incluindo a família. O casamento era visto como um sacramento e a igreja exercia controle sobre
os aspectos legais do casamento e da família (MACIEL, 2011).
O Direito Canônico, por sua vez, estabelecia regras para a celebração do casamento
religioso, como a exigência da presença de um padre e de testemunhas, além de definir quem
poderia se casar e quais eram os impedimentos para o matrimônio, como parentesco consanguíneo
e afinidade.
A afetividade começa a se tornar presente e ser notada de fato, mesmo quando se está
falando da família tradicional, pautada na questão biológica e matrimonial, como será abordado
posteriormente.
95
2.2 O direito de família no Brasil
O Direito de Família no Brasil teve sua evolução histórica influenciada por diversos fatores,
como o Direito Canônico, legislação portuguesa e mudanças sociais e políticas ocorridas no país
ao longo dos séculos.
Pode-se perceber que logo nos primeiros anos da colonização, a influência na formação
das famílias foi marcada pela fé religiosa, sobretudo a cristã-católica, como explicitado por Graeff
(2019, p. 24-25):
Como se pode perceber, durante o período colonial, o Direito Canônico exerceu grande
influência sobre o Direito de Família no Brasil, e o casamento era visto como um sacramento
indissolúvel. Ora, por certo que enquanto colônia portuguesa em solo brasileiro, vigoram o direito
português, fortemente marcado pela influência da Igreja Católica da época.
Segundo Tartuce (2018, p. 17), "o Direito Canônico, que predominava em Portugal,
influenciou profundamente o Direito Civil brasileiro, em especial no tocante ao casamento, que
foi considerado sacramento até a Constituição Imperial de 1824. Ou seja, somente quando o Brasil
se torna independente de Portugal, criando sua primeira Constituição, é que há o início do
distanciamento entre as normas religiosas e estatais.
O casamento, nos três primeiros séculos da colonização, por se tratar de algo burocrático e
que demandava um custo alto, se restringia a um grupo seleto de famílias, sobretudo a elite branca,
enquanto para as populações mais despidas de condições, restavam as uniões estáveis que eram
consideradas ilegais pela Igreja Católica e repelidas pela própria sociedade (GRAEFF, 2019).
96
No tocante a filiação, o Código de 1916, tendo em vista que considerava o casamento como
única forma legítima de formação familiar, os filhos que porventura viessem dessa relação seriam
considerados legítimos, pois eram provenientes de “justas núpcias” (LOBO, 2021).
O Código de 1916 trazia em seus dispositivos uma distinção entre os filhos legítimos e os
ilegítimos, considerando no tocante a estes, a possibilidade de reconhecimento de forma conjunta
ou separadamente, entretanto os considerados adulterinos e incestuosos não recebiam o amparo
legal, conforme se comprova no dispositivo legal5.
A adoção, no Código de 1916, era reservada somente aqueles que, embora casados, não
tinham filhos. Era uma espécie de instituto que tinha como base, “dar filho a quem não tem”, com
restrições de idade de adotandos, que deveriam ser maiores de 50 anos e sem filhos e, no tocante
aos adotados, deveria ser pelo menos 18 anos mais novo que o adotante (LOBO, 2021).
É importante ressaltar, ainda na adoção, que era estabelecida diferenças de direito dos
filhos adotados em relação aos filhos legítimos, como também mantinha o vínculo com o
parentesco natural, somente mudando em relação ao pátrio poder, que passava do pai natural para
o pai adotante, podendo ser verificado no art. 3786 do Código Civil de 1916.
Não foram somente as modificações apontadas pelas quais passou o Direito de Família,
mas diversas leis introduzidas ao longo dos anos deram passos de mudanças significativas que, ao
longo do século XX, foram responsáveis por diversas transformações, acompanhando as mudanças
sociais e políticas ocorridas no país. Conforme Graeff (2019, p. 29):
5
Art. 337. São legítimos os filhos concebidos na constancia do casamento, ainda que annullado (art. 217), ou mesmo
nullo, se se contrabiu de boa fé (art. 221). Art. 352. Os filhos legitimados são, em tudo, equiparados aos legítimos.
Art. 353. A legitimação resulta do casamento dos pais, estando concebido, ou depois de havido o filho (art. 229). Art.
355. O filho ilegítimo pode ser reconhecido pelos pais, conjuntas ou separadamente. Art. 358. Os filhos incestuosos e
os adulterinos não podem ser reconhecidos.
6
Art. 378. Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio
poder, que será transferido do pai natural para o adotivo.
97
Essas mudanças ocorridas no pós-guerra geraram mudanças de paradigma, fazendo com
que novos valores fossem considerados nas relações familiares, o que é o caso das relações afetivas
que antes eram suprimidas em face da conveniência. O amor passa a ter importância e a ser espécie
de pilar, isto é, cimento da relação.
Outro fator que influenciou as mudanças atuais foi a separação histórica entre Estado e
Igreja, deixando o Direito de Família de receber influência direta da religião, muito embora o
próprio legislador não tenha se desvinculado totalmente de tal poderio, como se vê em Dias (2016,
p. 70):
Muito embora o legislador traga consigo a tendência de uma moral conservadora e isso
seja refletido na lei, ao se deparar com as novas situações práticas no direito de família, sobretudo
as novas formações familiares, não mais calcadas somente no vínculo biológico, mas sob a égide
da afetividade, e em função da ausência de categorias jurídicas positivadas que dessem as respostas
necessárias a essa situação, a doutrina e a jurisprudência passaram a discutir o assunto e a construir
respostas.
Dentro dessas respostas veio o entendimento de que um vínculo não precisaria excluir o
outro, mas poderiam ser considerados concomitantemente, isto é, o vínculo biológico e o afetivo
não precisariam prevalecer um sobre o outro, mas serem reconhecidos de forma concomitante. Eis
o surgimento da multiparentalidade, pluriparentalidade ou dupla paternidade, dentre outras
denominações existentes para o entendimento do assunto em questão.
Partindo dessa mudança de compreensão das novas formações familiares se conclui que o
Direito de Família no Brasil passou por diversas transformações ao longo dos séculos,
acompanhando as mudanças sociais e políticas do país. Desde a influência do Direito Canônico na
época colonial até as leis mais recentes que buscam proteger mulheres e crianças, o Direito de
Família tem evoluído para se adequar às novas demandas da sociedade brasileira.
98
O marco de maior importância nesse aspecto foi o advento da Constituição Federal de
1988, como se vê em Graeff (2019, p. 31):
A Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar com segurança, foi o marco legislativo
mais importante na história do Direito de Família brasileiro, tendo ampliado a seara dos
direitos e garantias fundamentais [...] foi a Carta Magna que consagrou direitos e garantias
fundamentais à família e aos seus integrantes, modificando substancialmente sua função.
A partir dessas mudanças, pode-se indagar: que caminhos foram percorridos até a realidade
atual e que fatores influenciaram essas mudanças? Qual a importância da afetividade nesse
contexto? É um princípio ou somente um sentimento? Como a lei, a doutrina e a jurisprudência
estão dando respostas para os diversos casos envolvendo novas formações familiares pautadas no
afeto?
Por outro lado, sabe-se que a afetividade é fundamental para o desenvolvimento saudável
das pessoas, pois permite a criação de laços emocionais significativos, que proporcionam apoio,
conforto e segurança.
É importante lembrar que o afeto decorre da liberdade que cada pessoa tem de afeiçoar-se
ao outro, seja em relação ao casal entre si, entre os filhos, parentes e em outros agrupamentos ou
categorias familiares constituídas não obrigatoriamente pelo casamento (CALDERÓN, 2017).
A afetividade como fato jurídico no Direito de Família vem para provocar mudanças
sobretudo no que diz respeito a liberdade e respeito de seus entes, e a partir dessa liberdade e da
preocupação com a subjetividade, as pessoas busquem sua realização pessoal, de forma que
deixem de lado os modelos preestabelecidos. A ligação entre os entes familiares passa a ser
99
pautada por um sentimento comum, irradiando um núcleo de energia afetiva, o que se pode
perceber nas palavras de Lima (2021, p. 36):
[...] representa o núcleo de irradiação de energia afetiva, que tenta concretizar esse novo
formato de agrupamento familiar e que recebe guarida constitucional normativa, pois
deixa clara a sua relevância, principalmente, em decorrência da carga valorativa que
carrega consigo no âmbito das relações humanas, o que lhe dá o valor jurídico necessário
para a sua proteção, principalmente em decorrência de sua característica como direito
fundamental no que diz respeito à estrutura da entidade familiar e o poder-dever que
resulta deste.
A reduzida família nuclear acabou por aproximar seus integrantes, permitindo um vínculo
efetivo e cada vez mais afetivo entre eles, “a pequena-família, distante da família
patriarcal caracterizada por ser uma unidade de produção, é muito mais um núcleo onde
são dominantes as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação”. A forma de
relacionamento entre os integrantes dessa família acabou por se demonstrar mais
sentimental, igualitária e liberal do que nos períodos anteriores. Houve um decréscimo de
interferências da religião, do meio social e do interesse da família como instituição, para
se conferir maior liberdade para a pessoa deliberar sobre sua opção de vida familiar.
100
Nesse novo núcleo as relações se tornam mais próximas e diferentes do patriarcalismo,
porque se estabelece de forma mais igualitária e seus integrantes interagem mais e demonstram
seus sentimentos, como também passam a sofrer menos interferências diretas do meio social e da
religião, desestimulando o interesse da família somente como instituição e abrindo espaço para
interesses subjetivos, pessoais e particulares.
Pode-se verificar a ênfase a essas mudanças nas palavras de Cavalcanti (2007, p. 191):
7
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
101
Embora a Constituição Federal, de forma implícita, demonstre a importância da afetividade
como princípio, percebida nos artigos que tratam da igualdade entre filhos independente da origem
(artigo 227, §68), na união estável (artigo 226, §3º9), na adoção como escolha afetiva (artigo 227,
§§ 5º e 6º10), na família monoparental (artigo 226, §4º11), na convivência familiar (artigo 22712),
entre outros, a doutrina trava grande discussão acerca de considerá-la ou não um princípio jurídico.
Pelo menos três correntes se destacam, a primeira tendo como referência Maria Berenice
Dias e Flávio Tartuce, que a consideram um princípio jurídico; a segunda, seguida por Maria
Goreth Macedo Valadares e outros, consideram a afetividade um postulado ou de um valor
jurídico, de forma que não se pode exigir ou impor seu cumprimento; e a terceira, seguida por
Breno Mendes Forel Viana e outros, trata a afetividade como um sentimento, sem nenhum valor
jurídico (GRAEFF, 2019).
A corrente que sustenta que a afetividade não deve ser tratada como um princípio do Direito
de Família, demonstra que, tendo em vista que se trata de um sentimento, dessa forma seria um
fator de impedimento para que o direito pudesse se apropriar, como também a constatação da falta
de afeto nas relações familiares inviabilizaria estabelecer a afetividade como papel central das
relações familiares (CALDERÓN, 2017).
Importante demonstrar alguns argumentos pelos quais os precursores das correntes, que
embora acolham a afetividade como um valor relevante, não a consideram princípio, em face de
não ser ela a responsável pela existência ou validade dos fatos familiares, como se verifica em
Fagundes (2018, p. 57):
Não por outro motivo, alguns acreditam que o afeto, que compõe atualmente a
fenomenologia da relação jurídica familiar, não é elemento de existência ou validade dos
fatos jusfamiliares, ponderando, por exemplo, que jamais o juiz de paz perguntará aos
nubentes se eles se amam, mas sim, se estão livremente dispostos a se casar. Igualmente,
o juiz não perguntará, quando da dissolução do vínculo, se o amor diminuiu, para
justificar a separação do casal. Da mesma forma, não se verá um notário perguntar aos
pais, na hora do registro civil do nascimento, se eles amam o filho. Nesse sentido, leciona
8
Art. 227. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
9
Art. 226. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
10
Art. 227. § 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de
sua efetivação por parte de estrangeiros. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão
os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
11
226. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.
12
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
102
Pereira Júnior, afirmando que os afetos são, por natureza, instáveis, e, por isso, não se
mostra razoável que o direito positivo, enquanto norma de ordem social, tome-os por
elemento-cerne da relação familiar.
Esse cenário de discussões teóricas foi provocador de mudanças nas relações familiares,
que passaram a ser vistas sob outra ótica, tendo como consequência o que relata Calderón (2017,
p. 16), “a igualdade e a liberdade foram gradativamente conferidas aos relacionamentos e alteraram
o quadro de estabilidade anterior, uma vez que a qualidade dos vínculos passou a ser objeto de
análise constante”.
Como se percebe, a qualidade dos vínculos, isto é, a forma e a profundidade com que se
davam passou a ser considerada, tendo-se com isso a influência da força construtiva dos fatos
sociais, fazendo emergir a necessidade de reconhecimento jurídico da socioafetividade, embora se
verifique a inexistência da própria lei reconhecendo tal princípio.
Anote-se, desde logo, que foi justamente quando o Direito de Família brasileiro se
aproximou novamente da realidade social que se deparou com a temática da afetividade,
pois ela ressoava intensamente nos diversos relacionamentos familiares. Em vista que,
não foi possível mais aos juristas virar às costas para a necessidade de acolhimento da
afetividade.
A relação entre filiação e parentalidade socioafetiva, bem como suas análises são objetos
de constantes indagações que permeiam as últimas décadas no campo do Direito de Família.
O grande divisor de águas nesse cenário foi a Constituição Federal de 1988 que, através da
importância dos princípios, trouxe novos paradigmas às relações familiares, partindo de uma
família matrimonializada e centrada no privilégio aos filhos advindos de uma relação
heteroafetiva, para a diversidade na forma de filiação, não importando se casados, se vivem em
união estável ou solteiros, como mostra Louzada (2019, p. 25):
103
Essa discussão de vínculos concomitantes, ou multiparentalidade, marca a ascensão dessa
nova realidade e concepção na formação das famílias, fato verificado concretamente no
reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE nº
898.060/SC, bem como os efeitos da Repercussão Geral 622, que demonstram que o direito precisa
dar uma resposta às situações concretas que envolvem a formação das famílias, não dando mais
pra deixar de lado e fingir que elas não existem, discussões essas que são trazidas no presente
estudos por Graeff (2019), Louzada (2019) e Lobo (2021).
Ao completar 16 anos de idade, a adolescente descobriu a sua real história e que o pai
registral não era o seu pai biológico, vindo, anos após a descoberta, ingressar com a Ação de
Investigação de Paternidade com pedido de fixação de alimentos.
O pai biológico foi quem recorreu da decisão do juiz de 1ª instancia na intenção de ver
reformada a sentença, para que prevalecesse a paternidade socioafetiva em detrimento da
paternidade biológica.
Conforme narrado por Louzada (2019), com voto isolado no recurso de apelação, houve a
interposição de embargos infringentes, os quais foram providos em decisão não unânime, fazendo
com que o pai biológico viesse a recorrer em sede de Recurso Extraordinário.
O relator do Recurso Extraordinário nº 898.060, Ministro Luiz Fuz, em seu voto, foi pelo
desprovimento do recurso, mostrando como argumentos o que é trazido por Lobo (2021, p. 78):
Conforme nos mostra Louzada (2019, p. 52), a decisão do STF não foi unânime.
Acompanharam o relator Luiz Fux, a maioria dos ministros, dentre eles, Rosa Weber, Carmen
Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marcos Aurélio de Mello e Celso de Mello.
13
Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a
questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.
105
[...] a multiparentalidade só pode ser reconhecida quando se expressa na realidade da
socioafetividade, o pai biológico quer ser pai, o pai socioafetivo não quer deixar de sê-lo,
e isso atende o melhor interesse da criança – ou é consentido pelo adolescente.
Ao final das discussões e voto de cada ministro, o Supremo Tribunal Federal, com maioria
de votos que seguiram o voto do relator, negou provimento ao Recurso Extraordinário, mas fixou
tese na Repercussão Geral de nº 622, que representa um divisor de águas nas questões relacionados
a filiação. Conforme mostra Calderón (2017, s.p):
Merece destacar também que a tese fixada reconhece a paternidade socioafetiva com todos
os efeitos jurídicos decorrentes de uma filiação, o que permite não estabelecer diferenças entre o
que é socioafetivo e o que é biológico, mesmo que aos olhos da subjetividade, a
paternidade/maternidade socioafetiva decorra de laços profundos de afeto, de amor, de cuidado,
que em grande parte ultrapassam os meros vínculos biológicos.
Era 14 de março de 2007, quando nascia B.E.L.M, no Hospital Maternidade de uma cidade
do interior do Ceará, e tive logo o primeiro contato com a criança quando ainda estava no leito da
maternidade, em face de minha proximidade com os seus genitores e com toda sua família.
Com o passar dos dias, a criança foi se desenvolvendo e eu sempre a acompanhava, fazendo
visitas em sua casa quase todos os dias, tendo logo nos primeiros meses de vida acompanhado a
descoberta médica de que a criança tinha Síndrome de Down, fato que não era de conhecimento
prévio de nenhum familiar. Fiquei preocupado, juntamente com todos os seus familiares,
sobretudo se a criança teria complicações de saúde em face da síndrome descoberta.
106
Aos três meses de idade, a criança perdeu seu genitor em acidente automobilístico, ficando
somente aos cuidados de sua mãe e dos familiares maternos, que lhe dedicavam todo amor e
cuidado.
Um certo dia fui surpreendido com um convite da mãe da criança para que fosse seu
padrinho de batismo que, emocionado de pronto, logo aceitei e a partir desse momento não se
considerava mais somente padrinho, mas um pai para a criança.
Cada conquista sua, seja quando andou pela primeira vez, quando balbuciou as primeiras
palavras, eu estava presente.
Os laços familiares se intensificaram através do afeto que era por mim demonstrado para
com a criança e isso era recíproco. Uma prova desse afeto foi que, ao aprender escrever seu nome
na escola, os professores foram surpreendidos com a criança acrescentando ao seu nome o meu
sobrenome.
A superação de cada obstáculo feito por ela, era por mim e por todos da família,
comemorado. Lembro do dia em que superou o medo do escuro no cinema, pois várias vezes
desistia ao chegar na porta e em um belo dia ela resolveu enfrentar o seu medo e foi comigo que
isso aconteceu e foi emocionante quando ela segurou minha mão bem forte e disse: “palim, eu
consegui!”
O tempo foi passando e com as informações jurídicas de que o Supremo Tribunal Federal,
em 2016, havia fixado tese que estabelecia a possibilidade da multiparentalidade, pois não era
desejo meu suprimir o nome do genitor da criança, mas que fosse feito como ela mesma assinava
na escola, o acréscimo da paternidade socioafetiva. Em conversa com a criança, que já contava à
época com 11 anos de idade e com sua genitora, foi decidido que eu e a genitora da criança
ingressaríamos em conjunto com ação judicial de reconhecimento da Paternidade Socioafetiva.
A ação foi proposta em 19 de fevereiro de 2018, teve seu regular prosseguimento, com
realização de estudos sociais na residência da criança e da minha residência, sendo comprovado
pelas assistentes sociais que conduziram a visita, a presença do afeto e do amor que tanto eu como
107
a criança dispensávamos um ao outro. Era manifesto pela criança o tamanho afeto para com o
“palim”, como assim falava.
3 CONCLUSÃO
Nasce nesse contexto, a importância da afetividade como fator determinante nas novas
relações familiares. A mudança no conceito de família foi forjada pelas situações concretas
apresentadas pela sociedade e que somente foram percebidas quando se valorizou o afeto, o lado
subjetivo dos entes familiares. Essa abstração se deu, tendo em vista que existiam diversas
situações que não se enquadravam no conceito antigo de família, aquele conceito que levava em
consideração apenas os laços biológicos e sobretudo matrimoniais.
108
O primeiro marco histórico no Brasil foi a Constituição Federal de 1988, que trouxe o
reconhecimento expresso de novas modalidades de família, como a monoparental e a informal.
Além disso, traz implícito a valorização à afetividade, inerente à dignidade da pessoa humana num
aspecto abstrato, tornando-se concreto nas relações de família, sem se eximir das responsabilidades
daí decorrentes.
Outro marco histórico que consagrou o princípio da afetividade no Direito de Família foi
o reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar, em 2016, o RE
nº 898.060/SC, bem como os efeitos da Repercussão Geral 622, fixando tese de que não mais
necessitaria que se excluísse um vínculo familiar para que se incluísse outro.
Na realidade atual se faz necessário não somente ter uma visão plural das estruturas
familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos, mas sobretudo, de forma explícita
consagrar a afetividade como princípio basilar das relações familiares na nossa legislação pátria,
estabelecendo seu regramento específico de forma a também garantir segurança jurídica.
REFERÊNCIAS
ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
109
BRASIL. Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil Brasileiro. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm>. Acesso em: 30 abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 30
abr. 2023.
BRASIL. Lei nº 3.133, de 8 de maio de 1957. Atualiza o instituto da adoção prescrita no Código
Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l3133.htm>. Acesso
em: 30 abr. 2023.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 898.060. Santa Catarina, Relator:
Ministro Luiz Fux, Diário da Justiça, Brasília/DF, publicado em 29/05/2019. Disponível em:
<https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13431919#:~:text=Recu
rso%20Extraordin%C3%A1rio%20a%20que%20se,com%20os%20efeitos%20jur%C3%ADdico
s%20pr%C3%B3prios%E2%80%9D>. Acesso em: 28 abr. 2023.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.
LIMA, Francisco Rogério de. A afetividade como bem jurídico fundamental nas relações
familiares: A mediação jurídica em conjunto com a multidisciplinaridade como forma de
recomposição dos laços afeto-familiares no contexto da responsabilidade civil. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2021. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/44556>. Acesso em:
05 mai. 2023.
110
LOBO, Fabíola Albuquerque. Multiparentalidade: efeitos no direito de família. Indaiatuba:
Editora Foco, 2021.
MACIEL, José Fábio Rodrigues. História do Direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil: volume único. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense; São
Paulo: Método, 2018.
111
AÇÃO DE EXIGIR CONTAS COMO MEIO VIÁVEL À FISCALIZAÇÃO
DA PRESTAÇÃO ALIMENTAR DOS FILHOS MENORES
1 INTRODUÇÃO
1
Advogada na área de Direito de Família e Sucessões. Professora e Especialista em Direito Processual Civil.
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural e Doutora em Política Social e Direitos Humanos. OAB/RS
24.323, e-mail: giselaisaacsson@gmail.com.
112
Isto posto, apresenta como objetivo geral compreender o direito aos alimentos,
ressaltando suas características – direito personalíssimo e irrepetibilidade – e o emprego da ação
de exigir contas prevista no atual Código de Processo Civil.
Como objetivos específicos, para alcançar o inicialmente proposto, sinala que buscará
na doutrina os conceitos básicos dos institutos jurídicos em questão a fim de subsidiar o presente
texto, destacando o próprio conceito de alimentos e de ação de exigir contas, bem como propõe-
se a pesquisar jurisprudência sobre o tema, analisando os votos prolatados com o objetivo de
compreender melhor a posição dos tribunais a respeito do assunto, com o intuito de responder
ao questionamento incialmente exposto.
Para tanto, divide o texto em três momentos, quais sejam: um primeiro tópico que
abordará os alimentos propriamente ditos, discorrendo sobre conceitos e características, em
especial serem considerados direito personalíssimo do alimentado bem como configurarem
prestação irrepetível; um segundo tópico que analisará a ação de exigência de contas e um
último tópico que versará sobre o direito-dever de fiscalizar por parte do alimentante com
apresentação e discussão de posicionamentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça
sobre o tema.
2 DOS ALIMENTOS
Podem ser pleiteados entre os parentes, cônjuges ou companheiros que necessitem para
viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de
sua educação, sendo decorrentes da solidariedade social, prevista no art. 3º, inciso I, da
Constituição Federal, que dentro do Direito das Famílias, é tratada como solidariedade familiar
recíproca, entendida como aquela que deve ocorrer entre os membros de uma família, isto é,
todos os membros que compõe o núcleo familiar, para a manutenção digna de uns e outros. A
113
solidariedade, aqui tratada, não tem caráter de mera liberalidade, mas sim de reciprocidade,
uma vez que é um ato bilateral.
Os alimentos também figuram como um direito social, contemplado no art. 6º, da Carta
Magna, no momento em que a Emenda Constitucional n. 64/10, alterou o texto do supracitado
artigo para incluir a alimentação neste rol.
Importante ressaltar, ainda, o entendimento de Maria Berenice Dias (2023a, p. 21) que:
“Não são devidos somente para atender às necessidades básicas de sobrevivência”.
Assim sendo, para melhor delimitar o tema de estudo no presente artigo, sem pretensão,
por óbvio, de esgotar o assunto, opta-se por refletir apenas em relação aos alimentos devidos
pelos pais a seus filhos menores em decorrência do final de um casamento ou de uma união
estável.
Lembra-se, aqui que homem e mulher são equiparados, no texto constitucional (art. 226,
§5º), quanto aos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal. Assim, ambos são,
igualmente, responsáveis pelos direitos e deveres em relação à sua prole, cabendo a eles dar
condições para que os filhos se desenvolvam em todos os níveis, garantindo-lhes tanto a vida,
educação, assistência à enfermidade, vestuário, habitação, lazer, manutenção de padrão social,
entre outros pontos necessários ao desenvolvimento saudável do infante.
114
Os alimentos são um direito personalíssimo (intuito personae), pois cabem somente ao
alimentado, não podendo ser repassado a outra pessoa, pois configuram uma das formas de se
garantir o direito à vida, assegurado no caput do art. 5º, da Constituição Federal.
De outra banda, o segundo ponto que se pretende abordar é que o valor pago a título de
alimentos é irrepetível, ou seja, os alimentos já pagos, passam a integrar a esfera patrimonial
do alimentado e não podem ser restituídos ao alimentante. No dizer de Bénabent, citado por
Cahali (1987a, p. 105), “les versements effectués au titre de la pension alimentaire le sont à
fonds perdus”.
Nas palavras de Maria Berenice Dias (2016b, p. 949), acerca desta característica tem-se
que:
Talvez um dos princípios mais significativos que rege o tema dos alimentos seja o da
irrepetibilidade. Como se trata de verba que serve para garantir a vida e a aquisição
de bens de consumo, é inimaginável pretender que sejam devolvidos. Esta verdade
por tão evidente é difícil de sustentá-la. Não há como argumentar o óbvio.
Provavelmente por esta lógica ser inquestionável é que o legislador não se preocupou
sequer em inseri-la na lei. Daí que o princípio da irrepetibilidade é aceito por todos,
mesmo não constando do ordenamento jurídico.
2
Convém referir, ainda que não seja objeto das presentes reflexões, mas por total dever de lealdade para com o
leitor, que a característica, elevada a princípio, da irrepetibilidade aqui em comento tem sofrido uma certa
mitigação quando comprovada a má-fé e dolo por parte do requerente de alimentos, ensejando, no caso concreto
situações nas quais se concluam que houve locupletamento ou enriquecimento sem justa causa de quem pleiteia e
também referentes a pagamento considerado indevido (arts. 884 e 964, ambos do Código Civil).
115
Assim sendo, o tribunal superior acabou por reforçar a ideia da irrepetibilidade da
verba paga a título alimentar, no momento em que ressalta que até mesmos os efeitos da
sentença, que, por regra retroagem à data da citação, não podem ser alegados para a repetição
dos valores já pagos no decorrer da ação que visava justamente rediscutir a adequação e/ou
necessidade do valor dos alimentos já fixados em outra decisão.
Prevista a partir do artigo 550, do Código de Processo Civil, a ação de exigir contas é
uma ação de procedimento especial que corresponde à antiga ação de prestação de contas
prevista no Código de Processo Civil de 1973 a partir do art. 915.
Ela dirige-se contra todo aquele que administra bens, negócios ou interesses alheios, a
qualquer título, para que preste contas da sua gestão ao detentor do direito (GONÇALVES,
2016a, p. 177).
Tem como sujeito ativo, portanto, aquele que afirma ser titular do direito de exigir contas
e figura no polo passivo da demanda aquele que gerencia os bens, negócios e interesses do
autor. O resultado final da ação pode concluir pela existência de um saldo a receber ou pagar
ou, ainda, inexistência deste (FABRÍCIO, 1988, p. 314).
Diz-se que é uma ação de natureza dúplice, pois o réu pode, por permissão legal,
apresentar defesa e formular pedidos em face do autor, sem a necessidade de manejar
reconvenção (GONÇALVES, 2016a, p. 179).
Assim sendo, percebe-se que se for constatada má aplicação ou mau gerenciamento dos
recursos de terceiro, um saldo devedor será apurado, devendo o gestor dos valores restitui-los
ao titular do direito. De outra banda, se for o caso da gestão ter ocorrido de forma adequada e
for constatado que há saldo credor ao gestor, ao autor será determinado o ressarcimento.
116
Pois bem. No caso ora em discussão, no presente artigo, pretende-se discutir a primeira
hipótese, qual seja, se, na ação de exigência de contas for constatado a malversação dos recursos
geridos pelo réu e surgir a necessidade de ressarcir o credor destes valores. A repetibilidade dos
valores, uma vez apurados como devidos, está no resultado final da ação, configurando o seu
pedido mediato, acaso haja apuração deste saldo.
Dito isso e com o objetivo de tirar-se uma primeira conclusão tendo em vista todo o
exposto, tem-se que: primeiro, os alimentos possuem a irrepetibilidade como uma de suas
características, elevada essa à categoria de princípio fundamental; segundo, os alimentos são
direito personalíssimo figurando no polo ativo da ação, que pleiteia o pagamento da verba, o
menor e no polo passivo encontra-se o genitor que não possui a guarda física; e terceiro, a ação
de exigir contas pode vir a apurar saldo devedor à favor do autor que, por óbvio, deverá ser
ressarcido
Assim exposto, pode-se entender que a ação de exigência de contas seria uma via
inadequada a ser utilizada pelo genitor não-guardião que arca com a obrigação de prestação
alimentícia contra o genitor que possui a guarda física do infante e, por isso, gerencia os valores
percebidos a título de pensão alimentícia, pois: primeiro, o titular dos alimentos é o(a) filho(a)
e não o(a) genitor(a) que detém a guarda física, não podendo pleitear-se direito sobre quem não
o possui (art. 18, do CPC); e segundo, uma vez apurado qualquer saldo a favor do autor este
não poderá ser repetido, tendo em vista a irrepetibilidade dos alimentos.
Posto isso questiona-se: haverá algum caminho judicial cabível ao genitor que não
detenha a guarda física do filho menor, poder fiscalizar a aplicação dos valores que paga a título
de alimentos a este para verificar se estão sendo realmente aplicados de fato em proveito do seu
destinatário final?
117
Tendo em vista tal questionamento, responde-se, de imediato que sim, conforme o que
será exposto na sequência do presente texto.
Também é fato, já comentado acima, que no momento em que são pagos os valores a
título de pensão alimentícia, esses passam a pertencer exclusivamente à parte alimentada
(obrigação personalíssima) e se exaurem no próprio sustento desta, não cabendo qualquer
pedido de repetição.
Assim sendo, importante referir-se, de início, que a ação eventualmente proposta por
alimentante não deve, em hipótese nenhuma, buscar a verificação algum crédito em favor do
autor, para pleitear a devolução, mas tão somente presta-se a supervisionar o interesse do filho
verificando a aplicação dos valores pagos no bem-estar do menor por meio do essencial direito
e dever de fiscalização.
Assim sendo, o pedido mediato, que se busca com a ação em tela, é exclusivamente
no sentido de ter-se acesso aos gastos mensais da criança/adolescente bem como verificar se os
valores, que estão sendo pagos a título de alimentos, estão sendo empregados para o fim
pretendido, qual seja, a subsistência do bem-estar do menor, no mais puro exercício do direito-
dever de fiscalização. Leia-se aqui, transparência.
O resultado da ação pode acarretar, acaso se constate o mau uso dos recursos pagos a
título de alimentos, em novo processo, discussões como a suspensão ou extinção do poder
familiar do ascendente guardião (arts. 1.637 c/c 1.638, ambos do Código Civil).
118
Sendo assim, o genitor que não possui a guarda física do infante e que paga alimentos
a este é parte perfeitamente legítima para solicitar informações do outro genitor que se encontra
com a guarda física do menor e gerencia os valores recebidos no seu único e exclusivo interesse,
pois é detentor do direito-dever de fiscalizar.
Além disso, conforme o texto do artigo 1.589, do Código Civil tem-se, verbis: “Art.
1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua
companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como
fiscalizar sua manutenção e educação.”.
119
Assim sendo, nenhuma dúvida paira sobre a legitimidade genitor que não detém a
guarda física do infante ajuizar demanda neste sentido, contra quem a detém, uma vez que a lei
autoriza sua fiscalização, criando inclusive um poder-dever neste sentido.
O interesse de agir, condição da ação inicialmente pensada pelo italiano Enrico Tulio
Liebman e hoje expresso no Código de Processo Civil de 2015, mais precisamente no art. 17, é
constituído pelo binômio necessidade e adequação, ou seja, para que se tenha interesse de agir
é preciso que o provimento jurisdicional seja útil a quem postula. A necessidade é demonstrada
pela imprescindibilidade de recorrer-se ao Judiciário para se obter o objetivo final pretendido.
Se este puder ser alcançado, sem a necessidade do ajuizamento de uma ação, ausente figura-se
a referida condição da ação. Por outro lado, a adequação refere-se à escolha do meio processual
pertinente, que produza um resultado útil, sendo que a escolha da via inadequada conduz à
extinção do feito sem resolução do mérito (GONÇALVES, 2016b, p. 118).
Sinala-se, que não há necessidade de que o autor invoque algum suposto crédito
existente ou desfalque efetuado pelo requerido, bastando que ostente o direito de ter as contas
prestadas, para que a demanda seja procedente.
120
O Ministro Luis Felipe Salomão, como relator do REsp n. 1.911.030, apreciou a questão.
Vejamos a ementa do julgado, verbis:
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=110681843&nu
m_registro=201801368931&data=20200609&tipo=5&formato=PDF
121
firmado, por maioria de votos, afirmando que a função supervisora, por qualquer um dos
detentores do poder familiar, em relação ao modo pelo qual a verba alimentar fornecida é
empregada, além de ser um dever imposto pelo legislador, é um mecanismo que dá concretude
ao princípio do melhor interesse e da proteção integral da criança ou do adolescente.
Por isso, os pais que não detém a guarda com exclusividade sempre serão partes
legítimas para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em
assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a
educação de seus filhos.
Sinala-se o voto do Ministro Moura Ribeiro4, que lavrou o acórdão nos termos da sua
divergência apresentada, tendo sido vencidos os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e
Ricardo Villas Bôas Cueva, superou os entraves do procedimento especial da ação de exigir
contas, previsto nos artigos 550 a 553 do Código de Processo Civil, para admitir a prestação de
contas no caso semelhante ao tratado nos autos, nos seguintes termos:
O instituto jurídico da ação de exigir contas, disciplinada nos arts. 550 a 553 do NCPC
(arts. 914 a 919 do CPC/73), no qual, em regra, quem administra patrimônio alheio
tem o dever de prestar constas de sua gestão e aquele que afirmar ser titular do direito
de exigir contas especificará detalhadamente as razões pelas quais a exige, a meu ver,
não exige, necessariamente, que o autor afirme a existência de algum crédito, mas sim
que ele demonstre que tem direito de ter as contas prestadas, ou seja, de que é titular
de interesse gerido e administrado por outrem.
[...]
Isso posto, me parece que a natureza irrepetível da obrigação alimentar, por si só, não
pode servir de óbice para o ajuizamento da ação de exigir contas, pois nela, já dizia
ERNANE FIDÉLIS SANTOS, o objeto da lide é o acertamento (esclarecimento das
contas), sem importar o resultado (Manual de Direito Processual Civil. Vol. III. 10
ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 894).
[...]
Assim, com suporte em tais lições doutrinárias, reforço o meu entendimento de que,
para a manuseio da ação de exigir contas de verba alimentar, não há necessidade que
se busque ou que se indique a existência de um crédito, mas sim que se demonstre a
titularidade de um interesse legítimo, como na hipótese em que o alimentante não-
guardião visa esclarecimentos sobre o emprego da verba alimentar prestada a menor,
que deve ter seu real melhor interesse garantido. Desse modo, a questão da
irrepetibilidade dos alimentos não pode ser fator determinante para impedir o
ajuizamento da ação .
4
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=110227504&n
um_registro=201801368931&data=20200609&tipo=64&formato=PDF
123
Assim sendo, mostra-se parte legítima o genitor que que não detém a guarda física do
infante, pleitear a prestação de contas para conhecimento e fiscalização do uso dos valores
pagos a título de pensão alimentícia ao filho em comum, no caso da administração destes estar
sendo feita com exclusividade pelo genitor guardião, embasado em seu direito-dever de
supervisionar os interesses do menor.
Convém lembrar que sempre o meio consensual é a melhor via na solução dos conflitos.
Desta forma, um contato anterior com o genitor guardião mostra-se necessário inclusive para
configurar o interesse de agir da demanda, lembrando-se sempre ser esta uma situação
excepcional.
5 CONCLUSÃO
Ante todo o exposto, conclui-se ser perfeitamente viável a ação de exigência de contas
interposta pelo genitor não-guardião contra o genitor guardião com o intuito de exercer seu
direito-dever de fiscalização dos valores pagos a título de pensão alimentícia ao filho menor,
com as ponderações tecidas no exposto acima, uma vez que, não se pretende com a aludida
ação repetir-se valor eventualmente malversado, mas apenas verificar o bom uso do numerário
que, em caso negativo, poderá ensejar nova ação de inversão de guarda, por exemplo.
Lembra-se, por fim, que o bem maior que se visa proteger é o bem-estar do menor e
sua dignidade para que tenha a segurança de uma vida saudável e de um desenvolvimento
adequado de pessoa em formação, não servido tal ação como retaliação ou perseguição do
genitor guardião por questões outras que não o essencial cuidado e bem-estar do filho comum.
124
REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos, 1ªed., 4ª tiragem, São Paulo:Revista dos Tribunais,
1987a.
CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos, 1ªed., 4ª tiragem, São Paulo:Revista dos Tribunais,
2003b.
DIAS, Maria Berenice. Alimentos. Direito Ação Eficácia Execução. 4ª ed., Salvador:Ed. Jus
Podivm, 2023a.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias: De Acordo com o Novo CPC, 4° ed.
em e-book baseado na 11° ed. Impressa.São Paulo:Thomson Reuter Revista dos Tribunais,
2016b.
FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de Direito e Processo das Famílias – Novidades e
Polêmicas, Salvador:Ed. Jus Podivm, 2013.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2, 12ª ed.
São Paulo:Ed. Saraiva, 2016a.
GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1, 13ª ed.
São Paulo:Ed. Saraiva, 2016b.
MADALENO, Rolf. Direito de Família, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020.
MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MIDITIERO, Daniel. Novo Curso
de Direito Processual Civil: Tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. Vol. 3,
2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
RIBEIRO, Moura. Voto proferido nos autos do REsp 1.814.639 Relator Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, j.26/05/2020, DJe 09/06/2020, disponível em
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequenci
al=110227504&num_registro=201801368931&data=20200609&tipo=64&formato=PDF,
acesso em 12 ago. 2023.
125
CONSTRUINDO PONTES: ADVOCACIA COLABORATIVA E A
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR NO ÂMBITO DO DIREITO DE
FAMÍLIA E SUCESSÕES
RESUMO
1
Advogada capacitada em Práticas Colaborativas, Mediadora Extrajudicial, Mestre em Direito pela UFRGS,
membro da Comissão de Mediação e Práticas Restaurativas da OAB/RS, membro da Comissão de Ética do
Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas - IBPC, OAB/RS 33.370 - E-mail: grasielathomsen@gmail.com.
2
Empresária, Conselheira de Administração, Coach, Mediadora de Conflitos e Profissional de Finanças
Colaborativo, Especialista em Finanças e em Gestão Empresarial pela FGV/RJ, integrante da Equipe de Mediação
da Clínica de Psicoterapia e Instituto de Mediação – CLIP e membro da Comissão de Ética do IBPC. E-mail:
mis.severo@gmail.com.
3
Psicóloga, Terapeuta de Casais e Famílias, Profissional de Saúde Mental Colaborativa, Mediadora Privada,
Conselheira e membro da Comissão de Ética do IBPC; Coordenadora do Curso de Mediação da Clínica de
Psicoterapia e Instituto de Mediação – CLIP, Superintendente Regional do CONIMA. E-mail:
marodin@terra.com.br.
126
1 INTRODUÇÃO
127
O presente artigo aborda diversas áreas-chave relacionadas à advocacia colaborativa.
Inicialmente, no Capítulo II, será explorada a Origem da Advocacia Colaborativa, traçando sua
evolução e contexto histórico. Na seção subsequente, Capítulo III, serão analisadas as Práticas
Colaborativas e Princípios Norteadores, examinando os fundamentos e diretrizes que sustentam
essa abordagem. No Capítulo IV, serão detalhados os papéis desempenhados pelos membros
da equipe colaborativa: no subcapítulo 4.1, Advogado Colaborativo; no subcapítulo 4.2,
Profissional de Saúde Mental Colaborativo; e no subcapítulo 4.3, Profissional de Finanças
Colaborativo. O enfoque então se voltará à Equipe Interdisciplinar nas Práticas Colaborativas,
no Capítulo V, onde serão discutidos os aspectos da colaboração entre esses especialistas. No
final, a Conclusão, consolidará os benefícios e implicações das práticas colaborativas.
A advocacia colaborativa teve sua origem nos Estados Unidos no final da década de
80 e no início da década de 90. Foi concebida por Stuart Webb, um advogado especializado
em direito de família, que reconheceu as limitações do processo litigioso tradicional. Ele
percebeu que as famílias envolvidas em disputas judiciais enfrentavam batalhas intermináveis
que não apenas eram emocionalmente exaustivas, mas também causavam danos significativos
aos filhos.
Diante dessa realidade, Stuart Webb propôs uma abordagem alternativa: a advocacia
colaborativa, que buscava evitar os conflitos destrutivos e os impactos negativos do processo
litigioso convencional. Em 1º/01/1990 ele se declarou um advogado colaborativo e passou a
apresentar o conceito a alguns advogados de divórcio da sua localidade, dentre eles, Ron
Ousky, que em vez de adversários em um tribunal, começaram a advogar em seus escritórios,
fora dos tribunais, ajudando clientes, envolvidos em conflitos, com incentivo para trabalharem
juntos de maneira cooperativa, buscando soluções que atendessem aos interesses de todas as
partes (WEBB & OUSKY, 2017, p. 13).
128
cada caso de maneira ampla e eficaz (TESLER & THOMPSON, 2017, p. 14).
Após esse marco, diversos profissionais uniram-se para realizar a primeira capacitação
nacional voltada para profissionais das áreas jurídica, de saúde mental e de finanças e para tal
e contaram com a docência das Dras. Pauline H. Tesler, Peggy Thompson e Lisa Schneider,
com grande experiência nos EUA.
Nos Estados Unidos, duas organizações desempenham um papel central nesse cenário.
A INTERNATIONAL ACADEMY OF COLLABORATIVE PROFESSIONALS – IACP (IACP,
2018) estabelece os Padrões de Conduta e Ética no âmbito do direito de família. Já o GLOBAL
COLLABORATIVE LAW COUNCIL – GCLC (GCLC, 2020) concentra-se nas esferas cível e
empresarial, proporcionando diretrizes igualmente importantes. No Brasil, o Instituto Brasileiro
de Práticas Colaborativas foi fundado em 2014 e em 2020 criou seus próprios Padrões Éticos e
os Requisitos Mínimos para os Profissionais Colaborativos (IBPC, 2020). Essas organizações
têm sido pilares na promoção de uma abordagem colaborativa e ética na resolução de conflitos.
129
As Práticas Colaborativas também alcançaram reconhecimento da Advocacia em todo
país, contando atualmente com a Comissão Especial de Práticas Colaborativas em nove
Seccionais da OAB, pelas quais foram elaboradas sete Cartilhas de Práticas Colaborativas4
(OAB/RJ, 2018; OAB/SP, 2020; OAB/MG, 2020; OAB/ES, 2021; OAB/PR, 2021; OAB/PE,
2021 e OAB/PI, 2022), além dos respectivos Grupos de Estudo que estão espalhados por todo
o país, tanto do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas quanto nas Seccionais da OAB e
de grupos independentes como o PRATICARE, da CLIP no Rio Grande do Sul.
4
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL ES. Cartilha de Práticas Colaborativas. Vitória:
OAB/ES, [2021?]. Disponível em: https://www.oabes.org.br/arquivos/Cartilha_Praticas_Colaborativas_-_OAB-
ES_1.pdf. Acesso em 26 nov. 2022.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL MG. Advocacia em Tempos de Crise. Belo
Horizonte: OAB/MG, 2020. Disponível em: https://www.oabmg.org.br/pdf_jornal/Cartilha-
AdvocaciaColaborativa351.pdf. Acesso em 26 nov, 2022.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL PE. Cartilha de Práticas Colaborativas. Pernambuco:
OAB/PE, [2021?]. Disponível em https://oabpe.org.br/comissoes/comissao-especial-de-praticas-colaborativas-da-
oab-pe/. Acesso em 19 jun, 2023.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL PI. Cartilha de Práticas Colaborativas. Piaui:
OAB/PI, [2022?]. Disponível em: https://www.oabpi.org.br/2019/wp-content/uploads/2022/11/Cartilha-
pra%CC%81ticas-Colaborativas.pdf. Acesso em 19 jun. 2023
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL PR. Cartilha de Práticas Colaborativas. Paraná:
OAB/PR, [2021?]. Disponível em: https://www.oabpr.org.br/comissao-de-advocacia-colaborativa-lanca-cartilha-
digital-sobre-praticas-colaborativas/ Acesso em 19 jun, 2023.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL RJ. Cartilha de Práticas Colaborativas. Rio de
Janeiro: OAB/RJ, [2018?]. Disponível em:
https://www.oabrj.org.br/arquivos/files/Cartilha_de_Praticas_Colaborativas_-_OABRJ.pdf. Acesso em 26 nov.
2022.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL SP. Cartilha – Comissão de Práticas Colaborativas.
São Paulo: OAB/SP, 2020. Disponível em: https://www.oabsp.org.br/comissoes2010/gestoes2/2019-
2021/praticas-colaborativas/cartilhas. Acesso em 26 nov. 2022.
130
Trata-se de um método estruturado para resolver conflitos, que pode ser utilizado por
advogados juntamente com seus clientes, de maneira voluntária, sem recorrer a processos
judiciais. A sua definição conforme os Padrões Éticos do IBPC:
Neste capítulo iremos analisar a atuação dos profissionais que compõem a equipe
colaborativa, quais sejam: advogados colaborativos, profissionais de saúde mental - PSMC e
o profissional de finanças - PFC.
5
O "Termo de Participação" é um contrato entre profissionais colaborativos e participantes, com três principais
requisitos: a transparência na negociação, a inclusão de uma cláusula de não litigância para evitar ações judiciais
durante as negociações e a retirada da equipe caso um acordo não seja alcançado, vedando a participação em
processos judiciais ou arbitrais futuros envolvendo a mesma causa e os mesmos participantes.
131
4.1 Advogado Colaborativo
Essa orientação encontra eco no parágrafo único do artigo 694 do CPC/15 (BRASIL,
2015), que permite a suspensão do processo caso as partes optem por se submeter à mediação
extrajudicial ou a atendimento multidisciplinar. Tanto o §3º do artigo 3º quanto o parágrafo
único do artigo 694 demonstram um enfoque coeso na busca por resoluções amigáveis e
colaborativas em situações de disputa, enfatizando a importância de criar um ambiente propício
para a resolução de conflitos de maneira mais eficaz e harmoniosa.
132
O Código de Ética da Advocacia, em seu artigo 2º, caput, ressalta a essência do papel
do advogado como defensor do Estado Democrático de Direito e dos valores fundamentais que
sustentam a sociedade. Nesse contexto, a advocacia não é apenas uma profissão, mas uma
missão enraizada na promoção dos direitos humanos, da cidadania, da justiça e da paz social.
O parágrafo único do mesmo artigo estabelece os deveres do advogado, os quais têm profunda
relevância para a abordagem colaborativa no processo legal.
Este suporte envolve a explicação clara das opções disponíveis para realização do
divórcio e da partilha de bens, desde uma simples negociação direta, ou através de conciliação,
mediação, de forma extrajudicial, ou através da judicialização e os possíveis desdobramentos e
as consequências de cada escolha (MAZIERO, 2016, p. 124).
133
Destacamos o benefício na saúde mental do advogado, quando não necessita mais estar
envolvido com as emoções do casal que busca o divórcio apresentando um “stress” primário,
onde os sintomas são diretamente, decorrentes de suas vivências. No momento que o PSMC
assume auxiliar os clientes na administração destas emoções, ele alivia e protege o advogado
do risco de se colocar no papel de psicólogo, que não é, e de que ocorra um “stress” secundário,
que é o vivenciado pelos profissionais que atendem situações de intensas cargas ansiogênicas,
chegando a ter distúrbios sérios e, inclusive, podendo apresentar sintomatologias decorrentes
desta carga emocional, com quadros de ansiedades, taquicardias, insônias entre outros
(MARODIN & BREITMAN, 2002).
Pesquisas indicam que o profissional advogado pode ter seu desempenho prejudicado
pelos efeitos traumáticos de uma conflitologia que não é sua. O trabalho em equipe
interdisciplinar abre um espaço de prevenção e de promoção de saúde mental para todos,
clientes e profissionais.
134
Entretanto, não havendo acordo, ele não estará habilitado para atuar judicialmente sobre o
mesmo conflito (WEBB & OUSKY, 2017, p. 22).
Essa autora define o trabalho do PSMC como “terapia sistêmica breve, orientada para
objetivos”, sendo focada no trabalho da separação onde o cliente é visto como membro de um
sistema interconectado e o atendimento ocorre por poucas sessões. Refere a importância de o
PSMC ter capacitação em mediação de conflitos e habilidades clínicas. Destaca o papel
educativo e esclarecedor de dúvidas que poderá assumir, auxiliando os clientes na integração
de informações que busquem beneficiar as famílias.
Acredita que o PSMC deva ser um terapeuta, com formação em psicologia clínica,
aconselhamento psicológico, terapia de casal ou familiar, serviço social, enfermagem ou outra
formação com conhecimento em técnicas terapêuticas. Assinala também a importância deste
135
profissional ser profundo conhecedor das dinâmicas que envolvem situações de separação,
divórcio e recasamentos (CAMERON, 2019, p. 229).
Além deste trabalho o PSMC acompanha seu cliente nas reuniões conjuntas com os
advogados e com outro PSMC, quando for o caso, mantem contato com o Especialista Infantil
e, conversa com a Equipe Colaborativa para contribuir com aspectos emocionais observados
que possam ajudar a entender melhor os comportamentos de seus clientes.
No primeiro contato com o cliente o PSMC esclarece sua função dentro do processo
colaborativo e o que o cliente pode esperar deste atendimento, assim como a metodologia do
trabalho de negociação. Um contrato de trabalho acordado entre o PSMC e o cliente especifica
os princípios éticos do atendimento, combinações sobre custas do procedimento e as
responsabilidades de ambas as partes.
O PSMC tem uma participação de imparcialidade auxiliando para que o diálogo flua
mais franco, mais transparente com vistas a um entendimento, estabelecendo uma relação de
confiança com os clientes. Auxilia na comunicação sobre temas difíceis, na reconstrução da
confiança e da autoestima das partes envolvidas, bem como na identificação e encaminhamento
de interesses e preocupações.
136
Esta abordagem resguarda a família dos conflitos entre os cônjuges e tem uma visão que
busca investir em relacionamentos futuros saudáveis (TESLER & THOMPSON, 2017).
137
4.3 O Profissional de Finanças Colaborativo
Esse trabalho de coleta e organização das informações financeiras realiza-se antes que
se iniciem as negociações coordenadas e facilitadas pelos advogados de ambas as partes,
poupando o trabalho dos advogados, que sem essa assessoria eficiente, teriam que fazer dois
levantamentos separadamente com cada cliente. A ideia é fornecer aos clientes e seus
advogados informações objetivas e qualitativas, de tal forma organizadas, que facilitem a
compreensão de todos, na tomada de decisão. Não é responsabilidade do Profissional de
138
Finanças fazer avaliações ou dar soluções, papel reservado aos clientes junto com seus
advogados (DUWE & SANTOS, 2022).
É também sua missão ajudar os clientes a planejarem o futuro, quando os ajuda a pensar
o que querem ver acontecer dali para a frente. Assim, prepara fluxos de caixa e projeções de
longo prazo para diferentes cenários, incluindo todo tipo de receitas, despesas e informações
patrimoniais, conferindo a documentação pertinente e identificando gargalos. Sempre com uma
visão construtiva e colaborativa, gerando a confiança que contribuirá para ampliar o olhar na
resolução das questões financeiras.
Também quando os clientes suspeitam que o outro esconde algo, ou revelam algo
privado, não é conversa para o Profissional de Finanças, mas para o Profissional de Saúde
Mental ou para o Advogado resolverem.
139
passa a reunir-se com ambas as partes e com seus advogados para oportunidade de
esclarecimentos, questionamentos e coleta de informações através dos formulários que os
clientes devem preencher. E assim vai dando continuidade à sua tarefa até o final do
procedimento de divórcio, quando considera encerrado seu trabalho.
Conversar com um Profissional de Finanças experiente, que além de não tomar partido,
estará atento às necessidades e desejos dos clientes, ajuda a reduzir o medo para transpor
algumas barreiras emocionais, pois sabe-se que as pessoas não serão somente racionais na
tomada de decisões. Questões importantes de se identificar no Planejamento Financeiro é o
nível de tolerância a riscos e de flexibilidade dos clientes para as mudanças advindas do
divórcio.
A Equipe Interdisciplinar é composta por profissionais das áreas jurídica, saúde mental
e finanças, dentre outros, que auxiliam pessoas físicas ou jurídicas em conflito a alcançarem
um acordo criativo, satisfatório e benéfico para todos os envolvidos, através da contribuição e
da interação dos diversos profissionais, com interlocução constante e não de maneira estanque.
140
acompanhe uma das pessoas do casal que está se divorciando, tendo presente que outro PSMC
acompanhará o outro ex-cônjuge (CAMERON, 2019, p. 33).
Registramos que esta é a cultura que prevalece nos Estados Unidos, onde as Práticas
Colaborativas existem há mais de trinta anos. No Brasil, além desta sistemática, está ocorrendo
também outra modalidade que acreditamos seja uma adaptação a nossa realidade, onde
observamos a presença de somente um PSMC para trabalhar com o casal que está se
divorciando. Este novo desenho exige que haja um grau de confiança entre todos, em especial
entre o casal e este PSMC para permitir que o trabalho flua em um clima de segurança e
tranquilidade, de modo que as informações significativas sejam compartilhadas.
Este movimento exige uma mudança significativa dos paradigmas de cada especialista,
que de uma visão caracterizada pela divisão do trabalho intelectual, fragmentação do
conhecimento e predominância das especializações, passam a transcender sua própria
especialidade e investir na construção conjunta de contribuições, numa pluralidade dos saberes
(FURST, 2016).
O primeiro passo para a formação de uma equipe interdisciplinar ocorre a partir de uma
avaliação inicial abrangente, realizada por um advogado colaborativo junto com o seu cliente
que identificam a necessidade de envolvimento dos demais profissionais.
141
Segundo a advogada Nancy Cameron, “é fundamental o acolhimento dos membros da
equipe, em especial dos novos integrantes, pois o processo colaborativo é baseado em uma
equipe e não em uma única pessoa da equipe sendo que o ponto forte do processo colaborativo
é a integração da equipe interdisciplinar” (informação verbal)6
6 CONCLUSÃO
Constatamos através deste estudo os inegáveis benefícios do procedimento colaborativo
no âmbito dos divórcios, uma abordagem que estabelece um novo paradigma para a gestão de
conflitos familiares.
6
Informação coletada no II Congresso de Práticas Colaborativas do IBPC, realizado em São Paulo, em 2019, na
palestra de Nancy Cameron.
7
Ibidem, loc. cit.
8
Ibidem, loc. cit.
9
Apresentação on-line de Marilene Marodin, no Grupo de Estudos da OAB/SC, em 2020.
142
Ao longo deste trabalho, pôde-se evidenciar como o enfoque colaborativo, além de
mitigar os estresses e encargos financeiros associados aos litígios judiciais, oferece uma opção
verdadeiramente enriquecedora e sustentável para a resolução de disputas.
A transformação do cenário, que passa da formalidade dos acordos para uma
colaboração profunda e sustentável, é a base desse novo paradigma de resolução.
Uma das principais vantagens desse procedimento é o controle mantido pelas partes
envolvidas, em nítido contraste com as incertezas dos métodos adversariais. A personalização
do procedimento, a confidencialidade, a consideração da realidade econômico-financeira, a
restauração do diálogo, aprimoramento da comunicação, redução de custos e de tempo, bem
como a promoção de soluções criativas e duradouras, são pilares que fortalecem a proposta
colaborativa. A coautoria e a corresponsabilidade garantem a sustentabilidade das soluções
pactuadas, as quais, por sua vez, contribuem para a manutenção e melhoria das relações a longo
prazo, reduzindo significativamente a reincidência de conflitos.
143
O método colaborativo está sendo reconhecido pela nossa sociedade haja vista que está
tramitando no Congresso Nacional o Projeto de Lei 890/2022, que propõe a regulamentação
das práticas colaborativas no território nacional.
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Presidência da República, 2015. Disponível em:
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nov. 2022.
______. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei da Câmara nº 890, de
2022. Institui e disciplina as Práticas Colaborativas como um método extrajudicial de gestão e
prevenção de conflitos. Autoria: Deputado Túlio Gadelha. Brasília/DF: Câmara dos Deputados,
2022. Disponível em:
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colaborar com a outra parte. CONJUR, São Paulo, 23 mar. 2015. Disponível em:
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relevantes norteadores para as práticas colaborativas. In. ZUARDI, Felícia; CAIUBY, Célia &
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content/uploads/2022/11/Cartilha-pra%CC%81ticas-Colaborativas.pdf>. Acesso em: 19 jun.
2023
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O Apoio dos Profissionais de Saúde Mental. In: ZUARDI, Felicia, Celia Caiuby, Livia Caetano
(coordenadoras) As Práticas Colaborativas sob a perspectiva da experiência brasileira. Rio de
Janeiro: Editora Processo, 2022, v. 2.
______ & THOMPSON, Peggy. Collaborative Divorce: the revolutionary new way to
restructure your family, resolve legal issues, and move on with your life. 1st ed. New York:
HarperCollins Publishers, 2006.
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resolver problemas legais e seguir adiante. Vila Mariana, SP: IBPC, 2017.
WEBB, Stuart G., OUSKY, Ronald D. O Caminho colaborativo para o divórcio. São Paulo:
Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas, 2017.
146
A RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CASOS DE ALIENAÇÃO
PARENTAL: o dano moral sofrido pelo genitor alienado
RESUMO
O presente estudo possui como tema principal a responsabilidade civil nos casos de alienação
parental, com foco em destacar o dano moral sofrido pelo genitor alienado. Para tanto, o
presente artigo trará uma análise da Lei nº 12.318 de 2010 e seus aspectos processuais com o
objetivo de demonstrar mecanismos utilizados para impedir a prática de condutas alienadoras,
além de diminuir seus efeitos. Dentre esses mecanismos, o trabalho irá destacar o estudo na
responsabilidade civil, visto que a lei deixou de mencionar quais os tipos de danos sofridos
pelo agente alienado passíveis de reparação civil. Por meio de uma pesquisa exploratória e
descritiva, com a adoção do método dedutivo, utilizam-se pesquisas bibliográficas e
documentais, de modo a abordar sobre o instituto em um âmbito doutrinário e legal. Isto posto,
entende-se que, além dos danos sofridos pelas crianças e adolescentes, os genitores alienados
também sofrem danos morais, os quais podem e devem ser reparados pelo agente alienador.
1 INTRODUÇÃO
Uma das mais importantes evoluções do Direito de Família foi a criação do instituto
jurídico chamado Alienação Parental. A temática ficou mais conhecida no Brasil em 2010 por
meio da Lei 12.318/2010. Não obstante, a recente previsão legislativa há muito tempo ocorre
alienação parental nas relações familiares. Foi em meados da década de 1980 que foram
relatados os primeiros estudos desse instituto jurídico, denominada pelo psiquiatra norte-
americano Richard Gardner como Síndrome da Alienação Parental. A intenção do psiquiatra
era denominar a alienação parental como uma síndrome com o objetivo de incluí-la no rol do
Manual de Diagnóstico e Estatísticas dos Transtornos Mentais, publicado pela Associação
Psiquiatra Americana, como forma de facilitar seu tratamento.
1
Graduada em Direito pela Universidade Feevale em 2019, advogada, especialista em Direito de Família e
Sucessões, OAB/RS 123.486, e-mail: jessica.nobre.weber@hotmail.com.
147
Segundo a Lei 12.318/2010, considera-se ato de alienação parental a interferência na
formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida, por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou o adolescente sob sua autoridade, guarda
ou vigilância para que repudie o outro núcleo familiar com a intenção de prejudicar o vínculo
com esse.
A esse propósito, o que o alienador não percebe são as consequências dos seus atos ao
menor que está em pleno desenvolvimento psicológico. Além de ser uma forma de abuso de
poder parental, viola o princípio da proteção integral da criança e do adolescente e o direito
fundamental à dignidade previsto na Constituição Federal. Em vista disso, importante
mencionar que o genitor alienado também sofre com a quebra do vínculo com seu filho. Para
tanto, por acarretar gravíssimas consequências ao menor e ao genitor alienado, necessita
imediata e efetiva intervenção e por isso a importância do papel do Poder Judiciário quando
detectados indícios de atos de alienação parental.
Nessa esteira, o presente trabalho trata da responsabilidade civil nos casos de alienação
parental, tendo, como foco principal, o estudo a respeito do dano moral sofrido pelo genitor
alienado visto que esse também é afetado psicologicamente. Dessa forma, o artigo em tela
discorre sobre o instituto da responsabilidade civil e aplicabilidade desse nas relações
familiares, mais especificadamente a configuração do dano moral nos casos de alienação
parental.
Para responder o problema principal do presente trabalho, foi elencado como objetivo
geral analisar como a doutrina interpreta a Lei 12.318/2010 e se essa interpretação corresponde
a correta proteção de direitos e princípios previstos na Constituição Federal de 1988.
Para tanto, no tocante à metodologia utilizada, no que diz respeito aos níveis de pesquisa
do presente estudo, verifica-se que se trata de uma pesquisa exploratória e descritiva, onde se
analisou princípios constitucionais, leis e doutrinas, visando desse modo, compreender o
instituto da responsabilidade civil e sua aplicação nas relações familiares, por meio de uma
concepção geral do tema, tanto do viés principiológico de modo inicial quanto mais específico,
em relação a configuração do dano moral nos casos de alienação parental. Além do mais, por
meio dessas pesquisas será descrito como essa matéria é determinada no âmbito legal e
doutrinário.
O trabalho foi dividido em quatro capítulos, sendo que no primeiro se fez necessário
analisar a Lei 12.318/2010 e sua aplicabilidade como meio de cessar e prevenir os atos de
alienação parental. No segundo capítulo buscou-se o estudo do instituto jurídico da
responsabilidade civil e a caracterização do dano moral para uma maior compreensão de quando
efetivamente ocorre o dano e a necessidade de repará-lo. Por sua vez, no terceiro capítulo
buscou-se analisar a aplicação da responsabilidade civil nas relações familiares, uma vez que
por muito tempo não era utilizada no âmbito do Direito de Família. Por fim, o quarto capítulo
buscou demonstrar a aplicação do dano moral nos casos de alienação parental sob a perspectiva
de que, com a comprovação da ocorrência de tais atos, o alienador deverá indenizar o alienado.
149
2 LINHAS GERAIS SOBRE ALIENAÇÃO PARENTAL NA LEI N. 12.318/2010
A Lei 12.318/2010, que dispõe sobre alienação parental, trouxe no seu art. 2º, a definição
desse novo instituto jurídico, descrevendo ato de alienação parental a interferência no
desenvolvimento psicológico da criança ou adolescente, praticada por um dos genitores, avós
ou por quem mantém a criança ou o adolescente sob guarda ou vigilância, desqualificando o
outro genitor para que o repudie ou cause prejuízo ao vínculo familiar com esse. (BRASIL,
2010)
Da mesma forma, considera-se ato de alienação parental, qualquer conduta que dificulte
a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor. Nesse sentido, a lei brasileira
pune a conduta do alienador, independentemente da participação ou não da criança e da efetiva
ruptura do vínculo com o genitor alienado, sendo que, nesse último caso, o dano pode ser
irreversível, alcançando o grau máximo da alienação parental. (MADALENO in TICIANELLI;
BARBIERO, 2022, p. 143)
150
O objetivo da Lei 12.318/2010 é de atuação e prevenção para evitar que os atos de
alienação parental resultem em uma síndrome e formem raízes no núcleo familiar a ponto de
não conseguirem mais reconstruir os vínculos quebrados. (MADALENO, A.; MADALENO
R., 2022, p. 32)
Desde que a lei que versa sobre alienação parental no Brasil entrou em vigor, aumentou
o número de processos judiciais envolvendo essa maldade humana, já que a norma facilitou a
identificação desse fenômeno, embora muito tempo existente, carecia de proteção estatal, visto
que não era reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro. BARBOSA; PEREIRA in
TICIANELLI; BARBIERO, 2022, p. 15)
Outrossim, o art. 4º da Lei 12.318/2010, prevê que, detectado indício de ato de alienação
parental, a requerimento ou de ofício, em ação autônoma ou incidental, com prioridade de
tramitação, após ouvido o Ministério Público, o juiz determinará, com urgência, as medidas
necessárias para a preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente,
inclusive assegurar a convivência e a efetiva reaproximação entre o genitor alienado e seu filho.
(BRASIL, 2010)
A equipe multidisciplinar tem um papel muito importante a ser feito nos casos de
alienação parental, já que muitas vezes, as crianças rejeitam o genitor alienado, que passa a ter
dificuldade na relação e na convivência com seu filho. Hoje, o psicólogo encontra um grande
desafio ao analisar cada caso e sugerir ao juiz a reaproximação entre o genitor alienado e a
criança ou o adolescente. (BRAZIL, 2022, p. 94)
Nessa senda, o familiar que apresenta empecilho tanto a convivência familiar presencial,
como a virtual que fora determinada, pratica ato de alienação parental previsto no inciso IV do
parágrafo único do artigo 2º da Lei 12.318/2010. (FARIAS; ROSA, 2022a, p. 190)
153
importância dessa intervenção na esfera privada, a proteção dos filhos deve ser sempre
priorizada pelas autoridades judiciárias. Dessa forma, a guarda compartilhada estabelecida de
maneira coativa pelo juízo, afasta a falsa percepção de que um dos genitores ganhou a guarda
e o outro perdeu. E por fim, nesse caso, quem ganhará será o filho que poderá contar com ambos
os pais nas decisões relevantes referentes ao seu bem-estar. (FARIAS; ROSA, 2022a, p. 195)
Há algumas correntes que criticam a criação de lei específica que versa sobre alienação
parental, por acreditarem que tal norma seria um incentivo a abusadores, o que prejudica tanto
as mulheres, como seus filhos vítimas de abuso sexual. Isto é, acreditam que a simples alegação
de alienação parental, poderia encobrir casos reais de abuso sexual. Porém, identificar e
desmascarar a Síndrome da Alienação Parental não tem o objetivo de acobertar casos de abuso
sexual, casos esses que ocorrem em grande número e devem ser priorizados. Ademais, quanto
mais profissionais tiverem acesso e mais pesquisas forem realizadas sobre a SAP, mais fácil
será distinguí-la dos casos de abuso sexual. (MADALENO, A.; MADALENO, R., 2022, p. 55)
A violação de um dever jurídico caracteriza o ilícito, que, na maioria das vezes, gera
dano para outrem, acarretando assim, novo dever jurídico, o de reparar o dano. Nesse sentido,
há um dever jurídico originário, também chamado de primário, que quando violado, gera um
dever jurídico sucessivo, também chamado de secundário, que é o de indenizar alguém pelo
dano causado. (CAVALIERI FILHO, 2022, p. 11)
Sobre tal aspecto, não há dúvidas de que na ocorrência de dano injusto, material ou
moral, o ordenamento jurídico imputa ao causador do dano a obrigação de reparar. A certeza é
que a vítima deve ser ressarcida, porém a mesma certeza não existe em relação ao motivo pelo
qual o causador do dano é responsável. Uma das maiores controvérsias na esfera da
responsabilidade civil é na identificação de seu fundamento, qual seja, de um lado a doutrina
subjetiva ou teoria da culpa e, de outro, a doutrina objetiva ou teoria do risco. (TEPEDINO;
TERRA; GUEDES, 2022, p. 4)
Por conseguinte, apontam-se três elementos para a responsabilidade civil: culpa, dano e
nexo de causalidade. A culpa tem a ideia de desvio de conduta, ou seja, uma conduta inadequada
adotada pelo ofensor diferente do comportamento esperado naquela situação. O dano, por sua
vez, corresponde a uma lesão a qualquer interesse jurídico merecedor de tutela. Já o nexo de
causalidade é o elemento de ligação entre os dois elementos anteriores, determinando quem
deve responder pelo resultado danoso. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES, 2022, p. 8-9)
Sendo assim, quem infringe dever jurídico lato sensu, causando dano a outrem fica
obrigado a reparar. Esse dever jurídico, suscetível de violação, pode ter uma relação jurídica
obrigacional preexistente, ou seja, prevista em contrato, ou imposta por preceito geral de
Direito, ou ainda, pela própria lei. (CAVALIERI FILHO, 2022, p. 25)
Nesse passo, a Constituição Federal consagrou logo no seu primeiro artigo, inciso III, a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Ao
assim classificar, a Carta Magna deu ao dano moral maior ênfase, visto que a dignidade humana
é a base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos.
(CAVALIERI FILHO, 2022, p. 103)
Em vista disso, existem duas grandes correntes sobre a definição de dano moral, a
subjetiva e a objetiva. A primeira corrente, levando em consideração o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça, o dano moral configura-se nas situações que ultrapassam os
limites do mero desconforto ou aborrecimento, isto é, tudo aquilo que é corriqueiro, próprio das
relações humanas, como irritações, contrariedades ou mero dissabor, não configuram dano
moral. Porém tudo que ultrapassa esse limite, é caracterizado como dano moral. Nesse caso, se
157
leva em consideração a dor psicológica sofrida pelo indivíduo. A crítica dessa corrente está
justamente na percepção subjetiva do magistrado. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES, 2022, p.
42)
Já para a corrente objetiva, o dano moral deve ser configurado levando em consideração
a lesão a direito de personalidade, independentemente do impacto psicológico sofrido pela
vítima. Nesse sentido, constitui dano moral a violação dos direitos de personalidade, da
dignidade humana e não o grau de sofrimento da vítima. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES,
2022, p. 42)
Segundo Sergio Cavalieri Filho, à luz da Constituição Federal de 1988, o dano moral
pode ser conceituado em vista de dois aspectos: em sentido estrito e em sentido amplo. Em
sentido estrito, o dano moral é a violação do direito à dignidade, considerando a inviolabilidade
da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. No sentido amplo, dano moral está ligado
a violação de algum direito ou atributo da personalidade, a essência do ser humano.
(CAVALIERI FILHO, 2022, p. 103-105)
158
pena de incidir bis in idem. Já, o terceiro argumento levantado, é sobre o risco e a imoralidade
de monetizar estas relações. (PENNA in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p.
405-406)
Dessa forma, com as inúmeras possibilidades de práticas ilícitas na esfera familiar, são
utilizadas ferramentas da Responsabilidade Civil nas relações familiares que permitem tanto o
ressarcimento, isto é, as pretensões reparatórias de danos, como a prevenção de danos, que nada
mais são do que tutelas específicas para as obrigações de fazer e de não fazer. Nesse sentido,
esses instrumentos não são utilizados somente para indenizações por prejuízos já sofridos, mas
também para prevenção e extinção de danos através da concessão de tutelas específicas,
conforme previsão dos arts. 497 e 498 do Código de Processo Civil. (FARIAS; ROSA, 2022,
p. 202)
Contudo, existem algumas lesões nas relações jurídicas familiares que constituem abuso
de direito. Nesse caso, a verificação da culpa é dispensada, conforme prevê o artigo 187, do
Código Civil. (SOUZA; LOPES in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p. 45)
Outrossim, nas relações conjugais, o Estado não deve intervir, exceto quando presentes
os três elementos da responsabilidade civil, quais sejam, conduta, nexo causal e dano. Como
exemplos, pode-se citar os casos de doenças sexualmente transmissíveis, ou uma traição pública
que tenha desrespeitado e ferido a honra do outro. Além disso, também enseja responsabilidade
civil os casos de violência doméstica, pois evidente o ilícito danoso previsto no art. 186 do
Código Civil, caso em que também ensejará responsabilidade criminal. (PEREIRA, 2022a, p.
55-56)
A paternidade é mais que fundamental para todos nós. Ela é fundante do sujeito. A
estruturação psíquica dos sujeitos se faz e se determina a partir da relação que ele tem
com seus pais. Eles devem assumir os ônus e os bônus da criação dos filhos, tenham
sido planejados ou não. Tais direitos deixaram de ser apenas um conjunto de
competências atribuídas aos pais, convertendo-se em um conjunto de deveres para
atender ao melhor interesse do filho, principalmente no que tange à convivência
familiar.
Nesse sentido, os artigos 226, §7º e 229 da Constituição Federal, enfatizam os princípios
da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, assim como, o dever de cuidado.
(BRASIL, 1988)
Assim, nas relações familiares podem ocorrer situações que ensejam indenização por
dano moral. A relação entre pais e filhos, marido e mulher na constância do casamento, possuem
direitos, quais sejam, à intimidade, à privacidade, à autoestima, e demais valores que integram
a dignidade. Nessa esteira, a vida em comum, em comunhão com as relações íntimas, origina o
160
chamado dano moral conjugal ou honra familiar, que se concretiza nos deveres de sinceridade,
de tolerância, de velar pela honra do outro cônjuge e da família. (ROSA, 2022a, p. 642)
Nessa lógica, não há dúvidas que as crianças e os adolescentes são pessoas vulneráveis,
sem capacidade de autodesenvolvimento intelectual, moral, social e afetivo, bem como, não
possuem condições de sozinhos e por meios próprios, atender às suas necessidades básicas,
motivo pelo qual, necessitam de amparo. (LAGE in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO,
2021, p. 113)
Em vista disso, a criança vítima de alienação parental sofre sem marcas visíveis, e,
lamentavelmente, quando esses sintomas são detectados, o objetivo do genitor alienador de
161
desqualificar o outro genitor já foi alcançado, e o vínculo com o núcleo familiar alienado já não
existe mais. (ROSA, 2022b, p. 130)
Nessa senda, a desqualificação do genitor pelo outro núcleo familiar com o objetivo de
interferir e dificultar a convivência com o filho pode gerar danos irreparáveis, ora, nenhum
dinheiro será capaz de reparar o tempo perdido, além de todo o prejuízo emocional causado ao
pai e ao filho. Esse dano sofrido pelos pais em decorrência da privação de convivência com os
filhos, é reconhecido pela doutrina como dano existencial. Isso em função de causar uma lesão
que afeta a existência da criança e do genitor, causando prejuízos que perduram a vida toda.
(TOMÉ in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p. 166)
Sob essa perspectiva, existe um dano moral indenizável decorrente da prática de atos de
alienação parental, visto que, nesse caso há uma prática ilícita, culpável, ativa, que gera um
dano, constituindo assim, os elementos necessários para configuração da responsabilidade civil,
conforme previsão dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Com o objetivo de buscar a
compensação pela prática de atos de alienação parental, poderão ser fixados danos morais em
favor do filho e/ou do genitor alienado. (ROSA, 2022a, p. 640)
Desse modo, faz-se necessário analisar o dano sofrido pelo genitor alienado, que é
prejudicado com o afastamento de seu filho sem nenhum motivo. Ocorre que, muitas vezes o
real motivo desse afastamento é o divórcio, a constituição de nova família, ou até mesmo um
novo namoro. Por vezes, o genitor alienado luta pela convivência com seu filho e tenta
162
reconquistar a confiança e o afeto a partir da desconstrução das falsas memórias implantadas
na criança ou no adolescente. Entretanto, isso nem sempre é possível, o que prejudica sua
relação parental, afetando sua integridade psicofísica. Evidente nesse caso, o ato antijurídico
que gera dano irreparável, passível de indenização. (MORAES; TEIXEIRA, 2016, p. 134-135)
Inquestionável que nos casos de alienação parental, o dano moral tem sua gênese nas
perturbações psíquicas, na dor, na ansiedade, depressão e sofrimento experimentados pelo
genitor alienado que teve suas visitas e comunicações impedidas e prejudicas pelo genitor
alienador, como também, a prática dos atos de alienação parental causam evidentes danos ao
desenvolvimento do menor em formação. (MADALENO, A.; MADALENO, R., 2022, p. 126)
Logo, a prática de alienação parental realizada pelo sujeito alienante gera um dano
evidente ao genitor alienado, lesando seus direitos de personalidade. Nessa lógica, o
afastamento do genitor alienado de seu filho interferindo e prejudicando na convivência familiar
saudável, bem como o fato do genitor ter sua imagem denegrida perante um ente querido e,
frequentemente, sendo odiado de forma injusta pelo próprio filho, irão gerar sentimentos de
angústia, dor, sofrimento e outros traumas imensuráveis ao genitor alienado, em decorrência
das atitudes do genitor alienador na prática da alienação parental. (ANJOS, 2014, f. 60)
Dentre as terríveis violências cometidas com o objetivo de afastar o filho do outro núcleo
familiar, sem dúvidas, um dos atos mais perversos que o genitor alienador pode cometer, é a
falsa acusação de agressão ou abuso sexual contra o filho. (ROSA, 2022a, p. 646)
Sob essa perspectiva, tal prática representa um estágio mais grave da alienação parental,
visto que, as ideias de abuso sexual podem ser inseridas na criança, que repete o fato como se
realmente tivesse acontecido, acarretando diversos prejuízos ao filho que começa a apresentar
um quadro de ansiedade, medo e pânico de conviver com o genitor alienado. (MADALENO,
A.; MADALENO, R., 2022, p. 99)
Diante de tal acusação, muitos pais passam anos dentro do tribunal tentando reaver seus
filhos, tentando provar sua inocência e seu sentimento de amor. Constantemente, proibidos de
conviver com seus filhos por decisões judiciais em sede de plantão ou em sede liminar sem
serem ao menos ouvidos. Pais acusados injustamente de abusar sexualmente dos filhos, são
prejudicados em exercer sua paternidade enquanto tentam provar sua inocência, o que pode
levar anos. E mesmo quando conseguem, o tempo passou e não volta mais, o filho cresceu com
163
a ideia de que foi realmente abusado e odeia o seu genitor, não tem mais intenção de vê-lo já
que não o considera mais seu pai. (BRAZIL, 2022, p. 146)
Além disso, a indenização originada pela prática de atos de alienação parental, quando
aplicada, deve ser fixada em quantum capaz não apenas de compensar os danos sofrido pelo
genitor alienado, mas também com o objetivo pedagógico, buscando evitar a reiteração
daqueles atos realizados pelo agente alienador. (ROSA, 2022a, p. 643)
Contudo, fica evidente o dano gerado ao genitor alienado que é prejudicado pelo genitor
alienador com a prática dos atos de alienação parental. Em vista disso, muitas vezes a criança
ou o adolescente desenvolvem rejeição e ódio em relação ao genitor alienado, o que resulta na
perda do vínculo afetivo entre um núcleo familiar e o filho, impossibilitando uma convivência
familiar saudável. A grande consequência disso são os danos psicológicos sofridos pela criança
e pelo genitor alienado com a direta interferência na formação do vínculo de afeto e o
consequente afastamento criado pelo alienador.
6 CONCLUSÃO
164
do dano moral nos casos de alienação parental como meio de cessar e prevenir tais atos
alienadores.
É nesse contexto, que se evidencia a responsabilidade civil nas relações familiares, onde
podem ocorrer diversas situações que ensejam indenização por dano moral. Pois, mesmo em
âmbito familiar, com a previsão Constitucional do princípio da dignidade humana, pais e filhos,
marido e mulher na constância do casamento, possuem esse direito. Dessa forma, a prática de
atos de alienação parental fere princípios constitucionais e assim, é passível de reparação civil.
Dessa forma, o dano proveniente dos atos de alienação parental encontra-se na esfera
extrapatrimonial, uma vez que afeta psicologicamente o genitor alienado e a criança ou o
165
adolescente. Assim, o nexo de causalidade encontra-se entre a conduta do alienante e o dano
sofrido pelo alienado, resultado dessa ação. A configuração da culpa encontra-se no objetivo
do alienador em prejudicar o outro genitor. Por gerar abuso ao poder parental, a caracterização
do dano, passível de reparação civil nos casos de alienação parental, independe de comprovação
de culpa.
Nesse sentido, não restam dúvidas de que a prática de atos de alienação parental gera
dano moral indenizável, tendo em vista que, existe uma prática ilícita, culpável, ativa, que gera
dano, constituindo assim, os elementos necessários para a configuração da responsabilidade
civil. Por fim, importante frisar que o dano pela prática de alienação parental configura-se no
sofrimento psíquico ou na frustração do genitor alienado pela perda da relação com seu filho
como consequência da interferência pelo genitor alienador na convivência entre estes e pela
frustração ao direito de comunicação fundamental no vínculo afetivo entre pais e filhos.
REFERÊNCIAS
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ampl. Barueri: Atlas, 2022.
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Presidência da República, 2002. Disponível em: <L10406compilada (planalto.gov.br)>. Acesso
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BRASIL. Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010. Dispõe sobre a alienação parental e altera o
art. 236 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990. Brasília, DF: Presidência da República, 2010.
Disponível em: <L12318 (planalto.gov.br)>. Acesso em: 27 nov. 2022.
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TICIANELLI, Maria Fernanda Figueira Rossi; BARBIERO, Priscilla Cristiane (Org.). Direito
de família em cases: um olhar para a alienação parental. v. 2. Curitiba: Juruá, 2022.
167
MOROSIDADE NOS PROCEDIMENTOS DE ADOÇÃO NO BRASIL:
Desafios e perspectivas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Graduado em Direito. Graduado em Licenciatura em Sociologia. Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior
e Metodologias Ativas de Aprendizado. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil. [...]. Advogado. E-
mail: leandrodireitoejustica@gmail.com.
2
Graduada em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal do Piauí-PI. Graduada em Licenciatura
Plena em Pedagogia. [...]. E-mail: franzinha25@outlook.com.
168
internacional, que desde a segunda guerra mundial, com ênfase para a Declaração Universal
dos Direitos Humanos-DUDH, têm demostrado através de seus mecanismos uma preocupação
com as garantias básicas inerentes a todo indivíduo, como a vida e intrínseca a essa a própria
dignidade, por exemplo.
Diante dessas considerações, o presente estudo visa investigar quais os principais fatores
que causam elevado número de crianças e adolescentes a depender de uma família adotiva,
assim como as razões da morosidade nos procedimentos que levam a adoção ser efetivada e
apontar possíveis soluções, que ao menos possam mitigam essas dificuldades, e para isso será
consultado o sistema de normas nacionais brasileiras, de direito internacional, doutrinas,
jurisprudência e informativos disponíveis em sítios da internet.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
169
Para o referido estudo será abordada várias fontes de pesquisa. Em razão disso, o método
a ser utilizado será o bibliográfico, pois se mostra mais adequado. Nesse sentido, Gil (2002,
p. 44) destaca que essa modalidade de pesquisa:
É desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de
livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo
de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de
fontes bibliográficas.
Por isso, levando em consideração que esse tipo de estudo permite “ao investigador a
cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar
diretamente” (GIL, 2002, p. 45), usar-se-á a partir dos tópicos seguintes a referida
metodologia bibliográfica, onde se discorrerá sobre o tema proposto de forma argumentativa
e referenciada.
3
UNICEF BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acessado em: 13/06/2023.
170
Nesse sentido, Fachin (2005, p. 54) ao se referir aos preceitos da dignidade da pessoa
humana como princípio fundamental diz que ele é considerado como “princípio estruturante,
constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda uma ordem constitucional”. Nessa
entoada, Moraes (2005, p. 49) define “dignidade” da pessoa humana como “um valor espiritual
e moral”, acrescentando “que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”.
Importante destacar também um outro assunto encampado na DUDH, e diz respeito ao seu
artigo 22, no qual estabelece que:
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à
realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a
organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado
nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer
forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL, 1988).
173
Na mesma entoada, o artigo 41 do ECA diz que “ a adoção atribui a condição de filho
ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer
vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais” (BRASIL, 1990). Essas
previsões legais, dentre suas preocupações intrínsecas, visam dar um melhor acolhimento a
crianças e adolescentes que estejam em procedimentos de adoção. Em relação ao Código Civil
de 2002- CC/2002, lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (BRASIL, 2002), esse dispõe sobre
adoção nos seus artigos 1618 e 1619, vejamos:
Art. 1.618. A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pela
Lei n o 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente. (Redação
dada pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; Art. 1.619. A adoção de maiores de 18
(dezoito) anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença
constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei n o 8.069, de 13 de
julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente. (Redação dada pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência.
Nesse contexto, caso a o pai ou a mãe não ofereça proteção aos filhos, representando
riscos efetivos à segurança e saúde desses, poderá perder o poder familiar nos termos do artigo
1638 e seguintes do CC/2002, podendo a criança e adolescente ser levado para procedimento
de adoção, caso não seja possível outra medida de solução (BRASIL, 2002).
Ao tecer comentários sobre o poder familiar, Maciel (2018, p. 177) enfatiza no sentido
de que quando o pai e a mãe perdem o poder sobre seus filhos, isso se torna “um pressuposto
lógico para que haja a adoção”, contudo, o citado autor alerta em relação a perda do poder
familiar que “esta medida pura e simples, não extingue o encargo parental dos pais biológicos”.
174
a uma reflexão de que os procedimentos de adoção se mostram morosos. Conforme publicação
do Conselho Nacional de Justiça-CNJ (2020, online) “mais de 5 mil crianças estão disponíveis
para adoção no Brasil”. Em outro trecho da citada publicação, diz que:
Essa realidade apresentada revela que é preciso que se faça muito mais em favor das
crianças e adolescente no País com vistas a pelo menos mitigar as vulnerabilidades em que as
crianças e adolescentes em procedimentos de adoção se encontram, pois, de acordo o CNJ
(2020, online):
2.3 Contextos sociais que podem favorecer ao elevado número de crianças e adolescentes
a dependerem de família adotiva no brasil
175
Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça (2022, online) em publicação
disponibilizada em seu portal de notícias online diz que “problemas sociais” estão entre as
causas para que haja “acolhimento de crianças e adolescentes” para procedimentos de adoção.
A esse respeito, o Governo Federal, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e da
Cidadania (2023, online) diz que no “Brasil tem 10,6 milhões de crianças e adolescentes com
idades entre 0 e 14 anos vivendo na extrema pobreza”.
Em linhas gerais, a desestruturação familiar, que envolve todo o cenário, seja de cunho
material e psicológico, é responsável por deixar muitas crianças e adolescente em situações de
vulnerabilidades, o que potencializa a possibilidade de encaminhamento para adoção, e cita-se
a título de exemplificação o caso em que “cinco crianças” foram “levadas para abrigo em MT
após mães saírem para festa e deixá-las sozinhas em casa’, conforme publicação do g1(2023,
online) em sua plataforma de notícias. Esse fato, conforme noticiado, ocorreu em Ipiranga do
Norte-MT. Inclusive, em caso semelhante, a 4ª Turma Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios-TJDFT destituiu do poder familiar a genitora por abandono de sua
prole, vejamos:
Como observado, uma das grandes causas para que haja muitas crianças e adolescentes
vivendo em situações degradantes se dá por conta da desestruturação familiar, seja em
decorrência da miséria em que muitas se encontram, o que dificulta o sustento do lar, e em
alguns casos os genitores se veem obrigados a entregarem os filhos para adoção, ou por conta
de outros fatores de cunho social, inclusive podendo estar relacionados a uso de entorpecentes.
176
2.4 Síntese reflexiva sobre as etapas no processo de adoção e as possíveis causas da
morosidade
Além de estabelecer uma idade mínima, via de regra, para que o indivíduo seja adotado,
é possível observar que o legislador manifesta intenção no sentido de que até certa idade a
criança e adolescente terão um melhor aproveitamento quanto a família adotiva, já que, com a
capacidade civil plena, via de regra, já é possível a constituição de suas próprias famílias, com
o casamento, por exemplo.
A mesma lógica pode ser aplicada em relação a estipulação de idade para adotar, no
caso, ter a capacidade civil. E em relação a isso, cita-se o próprio dispositivo acima que
menciona que o adotante deve ter idade maior do que os 18 anos, isso representa, em tese, que
o indivíduo que pretenda adotar terá capacidade para proporcionar a criação de laços afetivos,
dando educação, alimentação e amor. Além disso, outra característica importante a ser
observada diz respeito ao parágrafo 3º do artigo 42 onde diz que “ o adotante há de ser, pelo
menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando” (BRASIL, 1990).
Importante destacar também que para que haja a adoção é preciso observar o que
disciplina o artigo 45, onde diz que “a adoção depende do consentimento dos pais ou do
representante legal do adotando’ (BRASIL, 1990). Essa é a regra, contudo, comporta exceção,
como exemplo, a possibilidade de o juiz decidir sobre a destituição em definitivo do poder
familiar, a depender do caso em concreto, abrindo possibilidade para a adoção.
177
adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da constituição
do vínculo ” (BRASIL,1990).
Em relação ao estágio acima mencionado, cabe informar que esse será acompanhado
por equipe especializada, a fim de verificar as condições de compatibilidades em relação a
adotante e adotado, com apresentação de relatórios, cabendo destacar que o estágio deve ocorrer
no Brasil, conforme dispõe os parágrafos 4 e 5 do artigo 46 do ECA (BRASIL, 1990), vejamos:
178
sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da
Juventude, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela
execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. (Incluído
pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 5 o Serão criados e implementados cadastros
estaduais e nacional de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de
pessoas ou casais habilitados à adoção. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Vigência; § 6 o Haverá cadastros distintos para pessoas ou casais residentes fora do
País, que somente serão consultados na inexistência de postulantes nacionais
habilitados nos cadastros mencionados no § 5 o deste artigo. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 7 o As autoridades estaduais e federais em matéria de
adoção terão acesso integral aos cadastros, incumbindo-lhes a troca de informações e
a cooperação mútua, para melhoria do sistema. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Vigência; § 8 o A autoridade judiciária providenciará, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas, a inscrição das crianças e adolescentes em condições de serem adotados que
não tiveram colocação familiar na comarca de origem, e das pessoas ou casais que
tiveram deferida sua habilitação à adoção nos cadastros estadual e nacional referidos
no § 5 o deste artigo, sob pena de responsabilidade. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência; § 9 o Compete à Autoridade Central Estadual zelar pela manutenção
e correta alimentação dos cadastros, com posterior comunicação à Autoridade Central
Federal Brasileira. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 10. A adoção
internacional somente será deferida se, após consulta ao cadastro de pessoas ou casais
habilitados à adoção, mantido pela Justiça da Infância e da Juventude na comarca,
bem como aos cadastros estadual e nacional referidos no § 5 o deste artigo, não for
encontrado interessado com residência permanente no Brasil. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 10. Consultados os cadastros e verificada a ausência de
pretendentes habilitados residentes no País com perfil compatível e interesse
manifesto pela adoção de criança ou adolescente inscrito nos cadastros existentes, será
realizado o encaminhamento da criança ou adolescente à adoção internacional.
(Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017); § 11. Enquanto não localizada pessoa
ou casal interessado em sua adoção, a criança ou o adolescente, sempre que possível
e recomendável, será colocado sob guarda de família cadastrada em programa de
acolhimento familiar. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 12. A
alimentação do cadastro e a convocação criteriosa dos postulantes à adoção serão
fiscalizadas pelo Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no
Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; I - se tratar de pedido de adoção unilateral; (Incluído pela
Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; II - for formulada por parente com o qual a criança
ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda
legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de
convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja
constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou
238 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 14. Nas hipóteses
previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do
procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto
nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 15. Será assegurada
prioridade no cadastro a pessoas interessadas em adotar criança ou adolescente com
deficiência, com doença crônica ou com necessidades específicas de saúde, além de
grupo de irmãos. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017).
179
Art. 197-A. Os postulantes à adoção, domiciliados no Brasil, apresentarão petição
inicial na qual conste: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; I - qualificação
completa; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; II - dados familiares;
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; III - cópias autenticadas de certidão
de nascimento ou casamento, ou declaração relativa ao período de união estável;
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; IV - cópias da cédula de identidade
e inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Vigência; V - comprovante de renda e domicílio; (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência; VI - atestados de sanidade física e mental (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009); Vigência; VII - certidão de antecedentes criminais; (Incluído pela
Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; VIII - certidão negativa de distribuição cível.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; Art. 197-B. A autoridade judiciária,
no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, dará vista dos autos ao Ministério Público, que
no prazo de 5 (cinco) dias poderá: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; I
- apresentar quesitos a serem respondidos pela equipe interprofissional encarregada
de elaborar o estudo técnico a que se refere o art. 197-C desta Lei; (Incluído pela Lei
nº 12.010, de 2009) Vigência; II - requerer a designação de audiência para oitiva dos
postulantes em juízo e testemunhas; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência;
III - requerer a juntada de documentos complementares e a realização de outras
diligências que entender necessárias. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência;
Art. 197-C. Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço da
Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo psicossocial, que
conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para
o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e
princípios desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 1º É
obrigatória a participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da
Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos
grupos de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça da Infância e da
Juventude, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-
racial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com
necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos. (Redação dada pela Lei nº
13.509, de 2017); § 2º Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da
preparação referida no § 1º deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes
em regime de acolhimento familiar ou institucional, a ser realizado sob orientação,
supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude e dos
grupos de apoio à adoção, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de
acolhimento familiar e institucional e pela execução da política municipal de garantia
do direito à convivência familiar. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017); § 3º É
recomendável que as crianças e os adolescentes acolhidos institucionalmente ou por
família acolhedora sejam preparados por equipe interprofissional antes da inclusão
em família adotiva. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017); Art. 197-D. Certificada
nos autos a conclusão da participação no programa referido no art. 197-C desta Lei, a
autoridade judiciária, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, decidirá acerca das
diligências requeridas pelo Ministério Público e determinará a juntada do estudo
psicossocial, designando, conforme o caso, audiência de instrução e julgamento.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; Parágrafo único. Caso não sejam
requeridas diligências, ou sendo essas indeferidas, a autoridade judiciária determinará
a juntada do estudo psicossocial, abrindo a seguir vista dos autos ao Ministério
Público, por 5 (cinco) dias, decidindo em igual prazo. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência; Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos
cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita
de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de
crianças ou adolescentes adotáveis. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência;
§ 1º A ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser observada
pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do art. 50 desta Lei, quando
comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 2º A habilitação à adoção deverá ser renovada no
mínimo trienalmente mediante avaliação por equipe interprofissional. (Redação dada
pela Lei nº 13.509, de 2017); § 3º Quando o adotante candidatar-se a uma nova
180
adoção, será dispensável a renovação da habilitação, bastando a avaliação por equipe
interprofissional. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017); § 4º Após 3 (três) recusas
injustificadas, pelo habilitado, à adoção de crianças ou adolescentes indicados dentro
do perfil escolhido, haverá reavaliação da habilitação concedida. (Incluído pela Lei nº
13.509, de 2017); § 5º A desistência do pretendente em relação à guarda para fins de
adoção ou a devolução da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da
sentença de adoção importará na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação
de renovação da habilitação, salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das
demais sanções previstas na legislação vigente. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017);
Art. 197-F. O prazo máximo para conclusão da habilitação à adoção será de 120
(cento e vinte) dias, prorrogável por igual período, mediante decisão fundamentada
da autoridade judiciária. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
Embora haja essas anuências legais, e isso se faz necessário, a final, trata-se do interesse
da crianças e adolescentes, muitas das vezes o procedimento de adoção torna-se moroso em
razão de muitos fatores, entre os quais, cita-se, por exemplo, recursos humanos para
acompanhar os procedimentos de adoção deficitário se comparado ao elevado número de
crianças e adolescentes que necessitam de adoção. Além disso, segundo pesquisa realizada pelo
Conselho Nacional de Justiça (2015, p. 5-6) sob a Coordenação de Marcelo Guedes Nunes [et
al.], o problema do elevado número de crianças para adoção, somado a morosidade se apresenta
sob a ótica de duas vertentes, segundo o estudo realizado, onde diz que:
O problema tem dois lados. Um diz respeito às crianças e aos adolescentes que entram
no sistema de adoção tardiamente. O outro diz respeito aos casos nos quais a criança
entra antes dos 5 anos no sistema, mas fica retida por conta de entraves processuais.
O primeiro caso não tem relação direta com o tempo dos processos, tendo em vista
que a criança já entra no sistema em idade com mínima probabilidade de adoção. Já
no segundo caso, o tempo dos processos é fundamental, uma vez que o lapso de tempo
entre a entrada da criança no sistema de adoção (por exemplo, quando os genitores
têm suspendido o seu poder familiar e a criança é levada a um abrigo como medida
cautelar protetiva) e a sua disponibilização para adoção será determinante para a
chance de colocação em uma família substituta. Quando esse lapso é muito extenso,
a criança pode acabar ultrapassando a barreira dos anos de idade e, com isso, ver as
suas chances de ser adotada serem reduzidas a valores ínfimos (2015, p. 5-6).
181
para a adoção, o principal problema mesmo é a miserabilidade, que segundo a citada pesquisa
diz que:
Apesar de situada além dos braços diretos do Poder Judiciário, outra questão
importante diz respeito à vulnerabilidade social de uma parcela carente da população
brasileira como causa primária do problema. Muitas das crianças e adolescentes que
acabam envolvidas no sistema de adoção advêm de famílias vulnerabilizadas
(desprovidas de apoio socioeducacional do governo), nas quais também os genitores
são, em certa medida, vítimas da falta de estrutura estatal. Localidades mais pobres,
que não dispõem de escolas acessíveis, creches e espaços de convivência, expõem
crianças e adolescentes a situações de risco e abandono, nem sempre devido a uma
omissão voluntária dos pais. Da mesma forma, a falta de uma estrutura de apoio e
tratamento para pais dependentes de álcool, crack ou outras drogas acaba submetendo
não só crianças e adolescentes, mas a entidade família por inteiro, a uma situação de
abandono, pobreza e desestrutura social, incluindo o próprio dependente. A suspensão
do poder familiar e a disponibilização de crianças para o sistema de adoção se torna,
nesse contexto, em parte subproduto da própria deficiência da atuação do Estado no
apoio a essas famílias em estado de vulnerabilidade. E, como em outras situações nas
quais o braço Executivo e Legislativo do Governo não atuam adequadamente, as
demandas sociais mais agudas acabam por desaguar no Poder Judiciário, a quem cabe
empreender os derradeiros esforços em dar efetividade a direitos e garantias sociais
previstas de forma abstrata na legislação (CNJ, 2015, p. 7).
4
Conforme informações extraídas do site do CNJ “o SNA possui um inédito sistema de alertas, com o qual os
juízes e as corregedorias podem acompanhar todos os prazos referentes às crianças e adolescentes acolhidos e
em processo de adoção, bem como de pretendentes. Com isso, há maior celeridade na resolução dos casos e
maior controle dos processos, sempre no cumprimento da missão constitucional do Conselho Nacional de
Justiça”. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (2019).
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/. Acessado em: 15/06/2023.
183
contudo, observa-se que não é o suficiente para solucionar a demanda existente levando em
consideração as fases em termos da idade da criança e do adolescente, conforme citado em
momento anterior, na pesquisa elabora pelo CNJ (2015, online). Madaleno (2004, p. 147) é
enfático ao se referir a “criança” assim com a “adolescentes”. Para o referido autor, essa fase
na vida representa “matéria prima indispensável para construção de sua personalidade”, daí a
importancia de ser-lhes assegurado o convívio familiar.
Cumpre destacar, o CNJ, por meio da resolução nº 289 de 14/08/2019, que regulamenta
o SNA, dispõe no artigo 3º que “o Conselho Nacional de Justiça prestará o apoio técnico
necessário aos Tribunais de Justiça para a correta alimentação do SNA”. Em outras palavras, o
aperfeiçoamento técnico e de recursos humanos será permanente.
3 CONCLUSÃO
5
De acordo informações extraídas do site do CNJ trata-se de “Espaço no qual são elencados os cursos e
capacitações realizados e/ou promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o objetivo de promover e
disseminar os direitos relacionados à infância, adolescência e juventude. Para ter acesso à agenda do CNJ”.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cursos e Capacitações- Infância e Juventude. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/infancia-e-juventude/cursos-e-capacitacoes/. Acessado em:
15/06/2023.
184
parte do poder público em dar solução a esse caso, e isso se deve por falta de vontade política,
que não investem efetivamente na solução desse grave atentado contra a dignidade da pessoa
humana.
Assim sendo, não se mostrando a erradicação da pobreza uma realidade a curto e médio
prazo, acaba por restar medidas paliativas a fim de mitigar os sofrimentos em que muitas
famílias se encontram, em especial no que se refere às crianças e adolescentes, ou seja, as partes
mais frágeis de contexto de desestruturação familiar.
Por fim, se o Brasil, como nação, visar ser exemplo para o mundo em termos de
respeito à dignidade da pessoa humana, precisa olhar, por meio da administração pública, para
as crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidades, prezando, em especial, pela
reestruturação familiar como medida principal, e a adoção como excepcional. Essas são as
possíveis medidas que tomadas, podem, de fato, assegurar mais dignidade a crianças e
adolescentes no País.
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noticias/2023/04/14/incendio-abrigo-de-criancas-pernambuco.htm?cmpid=copiaecola>.
Acessado em: 12 jun. 2023.
188
A FAMÍLIA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS
DE NIKLAS LUHMANN
O presente estudo trata da noção histórica do conceito de família e sua evolução, desde a Roma
Antiga, perpassando às famílias reguladas pelo direito canônico estruturado pela Igreja
Católica, às famílias burguesas após Revolução Francesa e Revolução Industrial e, por fim, traz
uma abordagem às formas de família contemporânea, tal como a família patriarcal,
matrimonializada, democrática, eudemonista, conjugal, parental, monoparental, anaparental,
unipessoal, multiparental, substituta, ectogenética, socioafetiva, mútuas, coparental, nuclear,
binuclear, natural, informal, avuncular, mosaico, reconstituída, fissional, homoafetiva,
homoparental, simultâneas, poliafetiva e multiespécie. Ainda, de forma breve, realiza-se uma
análise da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann e dos conceitos utilizados pelo
sociólogo alemão para uma melhor compreensão, tal como a concepção de sistema para o autor,
a ideia de comunicação nos sistemas sociais e a autopoiese, termo advindo da biologia para
agregar à teoria luhmanniana. Para o fechamento da ideia inicial realiza-se uma junção dos
conceitos, tratando da família como subsistema social, sob as perspectivas de Luhmann.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa analisa a família como sistema social, sob a ótica dos conceitos de
sistemas sociais de Niklas Luhmann. O objetivo do estudo é analisar se a família se enquadra
como sistema pela teoria luhmanniana. Justifica-se a importância da pesquisa tendo em vista a
mutabilidade do conceito de família e a notoriedade da teoria de Luhmann.
1 Advogada – OAB/RS 131.896. Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo. Pós-graduanda em
Direito de Família e Sucessões pela Legale Educacional e em Direito Civil e Processo Civil pela Legale
Educacional. E-mail: marianagalvansantos@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2406108190521726.
2
Oficiala de Justiça e Avaliadora – Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Mestranda em Direito pela
Universidade de Passo Fundo. Especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera. E-mail:
anajuliafolle@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6223251308956013.
189
da temática. O procedimento metodológico utilizado é o de abordagem dedutiva, sendo a
natureza da pesquisa qualitativa.
O último tópico trata da família como um subsistema social deveras importante para a
sociedade, uma vez que é o único sistema que se relaciona internamente.
Desta forma, a pesquisa não tem o intuito de encerrar as discussões sobre este tema, e
sim incentivar a realização de mais estudos sobre a temática.
A família romana não mais estava somente com o objetivo de procriar, mas sim,
possuíam o propósito educacional de seus membros (STACCIARINI, 2019, p. 22). Essas
famílias eram coordenadas por um pater famílias. Por se tratar de uma família patriarcal, o
homem era tratado como superior ao restante dos membros do núcleo familiar, era pai, protetor,
provedor, e exercia seu poder aos seus descendentes e também à esposa, tendo, inclusive, o
poder de vida ou morte destes (VASCONCELOS, 2018, p. 10). Inclusive Arnaldo Rizzardo
(2019, p. 9) discorre que a esposa do pater familias “era considerada em condição análoga a
uma filha”.
A Constituição Federal de 1988 foi um marco para a família, tendo em vista que acolheu
outra forma de família, qual seja, a pertencente às uniões estáveis, e extinguiu a percepção de
filhos ilegítimos e admitiu que todos os filhos, havidos ou não durante a constância do
casamento, possuem os mesmos direitos.
A partir de 1988, a família passa a pautar-se pelo princípio da afetividade, “do respeito,
da liberdade, da igualdade, da dignidade, da solidariedade [...] da cooperação” (CALDERÓN,
2017, p. 52) e de acordo com a autonomia da vontade das partes. Nesse mesmo sentido, Conrado
Paulino da Rosa (2013, p. 31) discorre:
Apesar da definição de que a afetividade como um princípio não seja unânime, não é
possível pensar na entidade familiar sem a presença do afeto, uma vez que as relações
que se desenvolvem no seio da família estão embasadas em amor, cuidados, carinho
e respeito. Assim, o ser humano que se desenvolve a partir de tais sentimentos, sem
dúvida, será mais solidário e assim poderá contribuir para uma sociedade mais
solidária. O afeto é, primariamente, uma relação entre indivíduos que se afeiçoam.
[...] Nessa dimensão individual, o direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um a
outro. É uma liberdade constitucional. [...] Somente a partir da existência do afeto é
possível a realização pela busca da felicidade. [...] Sem afeto, não se pode falar em
família, ou, não constatado o afeto na entidade familiar, esta será embasada na
desordem, na qual não haverá estrutura para se manter. Assim, o afeto ganhou valor
jurídico, sendo o amor e o desejo principais elementos caracterizadores do laço
conjugal e da família; a pessoa passou a ser o centro do discurso jurídico em
detrimento do patrimônio.
193
ingressou no curso de Sociologia nos Estados Unidos. Seu primeiro trabalho acerca da temática
é do ano de 1964, e a partir de então possui diversas obras demasiadamente influentes
interdisciplinariamente. O sociólogo faleceu em 1998 (SILVA, 2018, p. 28-29).
O sociólogo possuía como objetivo produzir uma teoria que pudesse ser utilizada de
forma absoluta, abraçando todas as ciências, sendo, dessa forma, muito teórico e complexo.
Como exemplo disso, suas obras (livros e artigos científicos) perpassam a sociologia, o direito,
a religião e outros (KUNZLER, 2004, p. 123-124).
Luhmann entende que todas as esferas são compostas por sistemas, sejam eles vivos,
psíquicos ou sociais, sendo uma característica do sistema social a comunicação, a qual funciona
de acordo com um código binário, o qual é positivo ou negativo. Os sistemas sociais, dessa
forma, possuem um “fechamento operacional”, pelas palavras do sociólogo, ou seja, eles não
conseguem atuar fora das extremidades deles mesmos (SILVA, 2016, p. 125 -126).
Una tradición transmitida desde la antigüedad y que es más vieja que el empleo
conceptual del término «sistema» hablaba de totalidades constituidas por partes. El
problema de esta tradición consistió em que la totalidad debía ser pensada por partida
doble: como unidad y como totalidad de las partes, o más que la simple suma de las
partes; con esto, sin embargo, nunca quedó aclarado cómo el todo que está constituido
por las partes y un excedente, pudiera constituirse, con validez, en la unidad en el
nivel de las partes (LUHMANN, 1991, p. 30)
Sob essa ótica, o sistema é observador, tanto de si, quanto do seu entorno. E para que
seja possível essa concepção, este observador não pode ter a capacidade de enxergar que há um
contexto que ele não compreende. Havendo, então um ponto cego (BACHUR, 2020. p. 7). O
194
sistema e o entorno/ambiente precisam, de forma contínua, coexistirem, pois não havendo um,
não há como o outro existir. E, desse modo, a ideia de ambiente/entorno abarca tudo aquilo que
não for o sistema observado, “a sociedade é tida como entorno para o indivíduo: os seres
humanos são o entorno psíquico dos sistemas sociais”, e mesmo que o entorno “alcance sua
unidade” e tenha relação com os sistemas, ainda assim, ele não se torna um (TEIXEIRA;
BECKER; LOPES, 2016, p. 150-151).
No sistema social, [...] uma descrição do sistema do direito não pode partir do
pressuposto de que normas [...] de outra substância e qualidade sejam como
comunicações. Comunicações referentes ao direito têm como operações do sistema
do direito sempre uma dupla função, como fatores de produção e como mantenedores
de estruturas. Elas pressupõem condições de associação para outras operações, e assim
confirmam ou modificam as limitações (estruturas) significativas para tal. Nessa
medida, sistemas autopoiéticos são sempre sistemas históricos, que partem do estado
imediatamente anterior que eles próprios criaram. Fazem tudo o que fazem pela
primeira e pela última vez. Toda repetição é uma questão de fixação de estruturas
artificiais. E são históricos também no sentido de que devem suas estruturas à
sequência de suas operações, razão pela qual evoluem no sentido da bifurcação e da
diversificação. Na condição de observador, é possível diferenciar as funções da
determinação de estado e da seleção de estruturas, mas operativamente elas não se
separam. A operação tem sua unidade como elemento autopoiético precisamente ao
servir a ambos.
Sob essa ótica, cabe ressaltar que a autopoiese é uma concepção advinda das ciências
da natureza, na perspectiva da biologia, onde os seres vivos se autotransformam, com a
reprodução, tendo sido criada por Humberto Maturana. Nesse sentido, “a unidade operacional
dos seus elementos [...] é produzida e delimitada pelas operações de seus próprios elementos, e
é precisamente esse processo autopoiético que confere ao sistema sua unidade” (LOSANO,
2011, p. 401).
Maturana, em seu estudo, objetiva limitar a autopoiese aos seres vivos, contudo,
Luhmann o expande aos sistemas sociais e psíquicos. Logo, nesse sentido:
Desse modo, pode ser realizada uma analogia dos subsistemas a bolas de bilhar, de
forma que estes subsistemas não se confundem, como as bolas (cada uma possui uma cor e uma
numeração), contudo, o propósito do jogo é que as bolas se choquem e quando isso acontece,
ambas as bolas (e os subsistemas) se desprendem, se separando (LIMA, Fernando Rister Sousa,
2008, p. 3).
Levando em consideração o que foi estudado até o presente momento, pode-se concluir
que, a partir da perspectiva luhmanniana um dos subsistemas sociais é a família, o que Luhmann
só se atentou a partir de 1990, sendo que para ele a família é:
Ainda, esse sistema, o familiar, realiza funcionalidades que nenhum outro possui a
capacidade de cumprir, “dicen relación con el desarrollo de un espacio para la intimidad, el
afecto y el entendimiento mutuo, que lo caracteriza y lo distingue de los demás sistemas
sociales“, e nessa mesma perspectiva, “y en los que sólo es posible intensificar un mayor
número de relaciones impersonales” (CABEZAS, 2008, p. 42-43).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na presente pesquisa foi possível entender a natureza histórica da família, desde a Roma
antiga, passando pela família ditada pelo Direito Canônico, à família burguesa e, obviamente,
a família pós-moderna/contemporânea, ou seja, a atual.
O conceito de família atual não tem a possibilidade de ser fechado, uma vez que existem
demasiadas formas de famílias reconhecidas legalmente, e também pela doutrina brasileira.
197
Também, estudou-se a teoria dos sistemas sociais desenvolvida pelo sociólogo alemão
Niklas Luhmann, na qual o sociólogo, de forma complexa, desenvolve uma teoria de que os
sistemas sociais se apresentam de forma iguais.
Luhmann, em sua teoria, trata também da autopoiese, um conceito criado nas ciências
da natureza (biologia), mas que nesse caso o autor discorre sobre reprodução natural do sistema,
o qual é intrínseco dos sistemas sociais, tal como da reprodução biológica.
Por fim, é tratada da família como sistema social, de forma que o código binário dela é
intimidade/não intimidade, e a comunicação realizada por este subsistema é única, tendo em
vista que se baseia na afetividade das relações familiares.
REFERÊNCIAS
BACHUR, João Paulo. A teoria de sistemas sociais de Niklas Luhmann. Pouso Alegre: Revista
da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 36, n. 2, p. 77-94, 2020. Disponível em:
<https://www.fdsm.edu.br/conteudo/artigos/88c1a19dc439f4ffbfd452fed29b2b4a.pdf>.
Acesso em: 18 jul 2023.
GONÇALVES, Guilherme Leite. Teoria dos sistemas sociais: direito e sociedade na obra de
Niklas Luhmann, 1ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
LOSANO, Mario Giuseppe. Sistema e estrutura no direito: volume III: do século XX à pós-
modernidade. Tradução: Carlo Alberto Dastoli. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
LUHMANN, Niklas. O direito da sociedade. Tradução: Saulo Krieger. São Paulo: Martins
Fontes, 2016.
LUHMANN, Niklas. Sistemas Sociales: leneamienttos para uma teoría general. Tradução:
Silvia Pappe e Brunhilde Erker. Barcelona: Anthropos, 1999. Disponível em:
<http://padron.entretemas.com.ve/cursos/Epistem/Libros/Luhman-SistemasSociales.pdf>.
Acesso em: 1 jul. 2023.
MACHADO, Mateus Renard. Do sujeito ao sistema: uma análise do direito na teoria dos
sistemas de Niklas Luhmann. Dissertação. Curso de Filosofia. Programa de Pós-graduação em
Filosofia. Universidade Federal de Santa Maria. 2012. Disponível em:
<https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/9109/MACHADO%2c%20MATEUS%20RENARD.p
df?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 18 jul. 2023.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha; FACHIN, Edson. Direito das famílias. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2022.
RIZZARDO, Arnaldo. Direito de Família, 10ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.
ROSA, Conrado Paulino da. Ifamily: um novo conceito de família? São Paulo: Editora Saraiva,
2013.
SILVA, Artur Stamford da. Niklas Luhmann: 20 anos do sociedade da sociedade. O lugar do
ao mesmo tempo na teoria do direito. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e
Teoria do Direito, v. 10, p. 27-40, 2018. Disponível em:
https://revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/rechtd.2018.101.03 . Acesso em:
18 jul. 2023.
SILVA, Leonardo Nóbrega da. Teoria dos sistemas sociais e os meios de difusão em Niklas
Luhmann. Juiz de Fora: Revista Eletrônica de Ciências Sociais, n. 22, p. 123-137. Disponível
em: <https://scholar.google.com/citations?view_op=view_citation&hl=pt-
199
BR&user=mZ44LLoAAAAJ&citation_for_view=mZ44LLoAAAAJ:roLk4NBRz8UC>.
Acesso em: 18 jul. 2023.
200
NEGLIGÊNCIA AFETIVA
A responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Graduanda no curso de Direito pela Universidade Católica de Pelotas, endereço de e-mail:
nathanevnh@gmail.com.
2
Advogada, número da OAB/RS 24651 e endereço de e-mail ana.martins@ucpel.edu.br.
201
Nesse sentido passou-se a analisar os deveres de cuidado que abrangem as necessidades
básicas da criança, como alimentação e saúde. Além disso, o desenvolvimento saudável da
criança envolve os deveres de cuidado, educação e convivência. Nesse contexto, cresce a
discussão na doutrina e jurisprudência se a ausência na prestação desses deveres configura
abandono afetivo.
Diante dessa realidade, o trabalho em questão tem por problema de pesquisa analisar se
a omissão afetiva do pai ou da mãe, manifestada pelo seu distanciamento na vida do filho,
gerando a ausência dos cuidados necessários configura um dano moral suficiente para ensejar
a responsabilização civil.
Cumpre esclarecer que o objetivo deste artigo apresenta grande relevância social, visto
que os filhos menores necessitam, não somente do apoio financeiro dos pais, sendo necessário
que ambos pais prestem o apoio emocional, psicológico e social aos filhos, contribuindo para
uma vida digna da criança ou do adolescente, assim assegurado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, Constituição Federal e o Código Civil.
Desse modo, a fim de elucidar a questão, o presente trabalho foi dividido em três
momentos. Primeiramente, se faz um estudo do conceito de abandono afetivo, da importância
da afetividade, tendo como escopo os princípios da dignidade humana, da solidariedade
familiar, da afetividade e da convivência familiar, consubstanciados no Código Civil de 2002,
Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), em
razão da vinculação destes com a proteção da criança e dos adolescentes nas relações familiares.
Por fim, serão analisados os julgados mais recentes do Superior Tribunal de Justiça,
considerando seus posicionamentos favoráveis e desfavoráveis.
Em muitos casos envolvendo a separação de um casal com filhos menores, uma das
partes permanece na residência que era do casal residindo com os filhos, enquanto o outro acaba
por residir em outro local e exerce a convivência com os filhos nos finais de semana alternados.
202
O tempo passa, e o ex-companheiro inicia a sua vida com outra família, a convivência com os
filhos passa a ser cada vez mais raro até que um dado momento, deixa de existir.
Esse é o cenário que retrata muitos casos de relações familiares que se rompem com o
término de uma vida conjugal e consequentemente afetam a vida dos filhos de maneira
negativa.
Inegavelmente, em muitos casos, essa relação familiar jamais existiu, quando todo o
complexo de obrigações atinentes à autoridade parental é exercido por somente um dos pais,
sendo em grande parte dos núcleos familiares, exercido pela mãe, sendo que a responsabilidade
paterna é vista como subsidiária (DEMARI, 2019, p. 120).
Desse modo, a atual Constituição Federal, que foi criada com fundamento na dignidade
da pessoa humana, conforme indicado no art. 1º, inciso III, possui dispositivos específicos para
a proteção à dignidade humana do infante, por meio da imposição de deveres a sociedade, a
família e ao próprio Estado, como afirma o art. 227 que assegura à criança “com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Ainda,
impõe-se como dever proteger a criança de qualquer forma de “negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão”. (LOBO, 2022, p. 61).
204
“problemas emocionais, comportamentais ou cognitivos futuros”, nesse sentido, cita-se trecho
do estudo em destaque:
Nesse sentido, diante de uma omissão parental por parte dos genitores, insta discutir a
configuração de um ato ilícito, porquanto, os deveres parentais são estabelecidos por lei, e se
essa omissão é capaz de gerar a responsabilidade civil e a consequente indenização por violação
a personalidade da criança.
3 RESPONSABILIDADE CIVIL
205
liame, o art. 927, disciplinará que aquele que comete ato ilícito e causa um dano deverá ser
responsabilizado, gerando a consequente obrigação de reparar o dano.
Na hipótese de danos que afetam o emocional, não haverá a possibilidade de haver uma
função reparatória, pois o dano não é patrimonial, não admitindo a reintegração ao seu estado
anterior, nesse caso, a indenização possuirá função compensatória, nas lições de Netto (2022,
p. 120) a função está atrelada em ‘’atenuar a dor da vítima’’, pois impossível reverter as
consequências do ofensor que ocorreram no passado.
Nesse cenário, cabe ao direito um olhar atento a danos futuros ou potenciais, cabendo
não somente uma tutela repressiva, mas também preventiva, utilizando-se da responsabilidade
civil como uma ferramenta para evitar que condutas lesivas ocorram ou continuem ocorrendo.
Desse exposto, cabe destacar que o Direito, diante das diversas mudanças sociais, tem
se complementado, seja com outras ciências, seja nos próprios ramos do direito, nessa direção,
destaca-se a comunicação entre os próprios ramos do Direito Civil, nessa linha pode ser
mencionado o Direito das Obrigações e o Direito das Famílias, porquanto das relações parentais
e conjugais podem surgir responsabilidades civis (TARTUCE, 2022, p. 608).
206
Assim, considerando o instituto da responsabilidade civil e a importância da afetividade,
ora expostos, toma-se como necessário a análise no campo jurisprudencial acerca do tema.
Pode ser concluído que, atualmente, existe divergência do Superior Tribunal de Justiça
envolvendo a responsabilidade civil no abandono afetivo, conforme a análise dos julgados ora
expostos, percebe-se que a 4ª turma tem entendimento de que o afeto não é um dever parental
e que abrir espaço para essa possibilidade é ‘’mercantilizar a relação familiar’’ (Recurso
especial 1.087.561-RS). De outra forma, a 3ª Turma, em julgados mais recentes, considerou o
cabimento da responsabilidade civil pelo abandono afetivo em decorrência de violação ao
princípio da dignidade humana dos cuidados indispensáveis para o desenvolvimento da criança
e do adolescente (Recurso Especial. 1.887.697).
Conforme se extrai do art. 1.632 do Código Civil o término do vínculo conjugal não
influencia nos direitos protegidos ao filho menor, subsistindo mesmo com a separação dos pais,
daí a tendência de se afirmar que ‘’ex-filho’’ não existe no ordenamento jurídico, pois, diante
da separação dos pais, estes manterão seus deveres e direitos em relação ao filho, inclusive no
que se refere à convivência familiar que, apesar de ser alterada, não se exclui.
207
No caso em análise, a relação paterna foi rompida diante do término da relação conjugal
dos pais, deixando o pai de participar da educação, criação e desenvolvimento de sua filha
quando esta contava com 06 anos de idade.
Nesse sentido, a relatora Nancy Andrighi, asseverou que existem as figuras do ex-
marido e do ex-convivente, mas não existem as figuras do ex-pai e do ex-filho, dessa forma,
enfatizando a necessidade dos cuidados necessários do pai com a sua prole, e finalizou o seu
voto, proferindo a célebre frase ‘’amar é faculdade, cuidar é dever’’, originada do famigerado
recurso Recurso Especial nº 1.159.242 – SP.
Nessa ótica cabe destacar a posição doutrinária de Giselda Hironaka (2001, p. 2), nos
seguintes termos:
De outro modo, a 4ª Turma entende que os deveres de cuidados, estabelecidos pela lei,
se referem apenas ao sustento, guarda e educação dos filhos, conforme disposto no art. 22 do
ECA, não considerando a afetividade como um dever jurídico. Assim, a ausência da afetividade
não gera o dever de indenizar, em razão de não configurar um ato ilícito, sendo este o
posicionamento adotado pela Turma desde que o tema chegou para apreciação, o REsp.
757.411-MG, de relatoria do Ministro Fernando Gonçalves.
Dessa forma, o REsp 1.579.021, de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, adotou a
posição seguida pela 4ª Turma ao não admitir a indenização pelo abandono afetivo. A relatora
destacou a possibilidade de estabelecer uma conexão entre a responsabilidade civil e o direito
de família e enfatizou que para a configuração da indenização é fundamental, dentre outros
requisitos, estarmos diante de uma conduta humana contrária à lei.
Diante do exposto, a relatora entendeu que o atual ordenamento jurídico não prevê um
dever jurídico específico relacionado à afetividade. Em vez disso, o regramento atual impõe aos
209
pais deveres de cuidado com base no sustento, guarda e educação dos filhos. Nesse sentido, a
exigência de cuidados afetivos foge do alcance do Judiciário, não sendo uma obrigação legal,
mas tão somente uma conduta esperada pela sociedade nas relações familiares.
Sob a mesma ótica, a relatora fundamenta que a indenização, nesse contexto, não
cumpre com nenhuma finalidade positiva, dessa forma a responsabilização civil não atingiria
qualquer de suas funções.
No caso em análise, a criança viveu com o pai até os cinco anos de idade quando houve
alteração da guarda, passando a criança a conviver com a mãe. A partir de então, o genitor se
ausentou do convívio com o filho, deixando de contribuir tanto afetivamente quanto
financeiramente para o bem-estar da criança. Consequentemente, a criança foi privada de
condições adequadas de vida, enquanto os outros filhos do réu, provenientes de outro
relacionamento, desfrutavam de boas condições pela posição econômica favorável do genitor.
Pelas declarações das testemunhas e dos conselheiros tutelares ficou comprovado a ausência
paterna, tendo em vista que, o pai não comparecia nas visitas designadas nas dependências do
Conselho Tutelar.
É dessa forma, que, em muitos casos envolvendo pais que se negam a conviver com os
filhos, estes fundamentam a sua conduta omissiva com base na justificativa de que o Judiciário
não pode obrigar que alguém mantenha um vínculo afetivo, sempre relacionado ao sentimento
de amor, podendo somente a lei exigir a prestação do sustento.
No entanto, destaca-se trecho de artigo publicado pela advogada Cláudia Maria da Silva
que trata da indenização pelo descumprimento da convivência familiar (2004):
210
Não se trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema
em foco -, tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais
relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos,
conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros
que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.
Diante do exposto, torna-se vital buscar-se a responsabilização dos pais pelo abandono
afetivo, fundamentando-se no princípio da dignidade da pessoa humana com forma de garantir
o melhor desenvolvimento físico e mental da criança e do adolescente, sendo que a omissão
dos genitores, inegavelmente, importa em violação aos direitos de personalidade do indivíduo,
tendo em vista que ‘’[...] a formação moral e da personalidade do indivíduo se inicia no seio do
núcleo familiar’’ (MELO FILHO, 2015, p. 04).
Assim, conforme destaca Giselda Hironaka (2001, p. 29), a necessidade do diálogo entre
responsabilidade civil e direito de família será legítima quando se estiver diante do interesse
pela formação e liberdade dos filhos.
5 CONCLUSÃO
211
No mesmo sentido, parte da jurisprudência tem caminhado na direção da
responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo, quando a ausência paterna ou materna é
voluntária e injustificada. Nesses casos, entende-se que a negligência afetiva configura um
descumprimento de deveres legais e que podem causar danos psicológicos e emocionais
significativos à criança, prejudicando o desenvolvimento.
Realmente, é forçoso afirmar que o Judiciário pode impor que um pai ame o seu filho,
pois o afeto é um sentimento subjetivo. No entanto, a lei pode exigir dos pais ações e
comportamento que visam proteger os direitos das crianças e adolescentes a um crescimento
saudável. Essas ações, ultrapassam o sentimento de afeto e abrangem ações objetivas nos
cuidados do filho a fim de proporcionar um desenvolvimento pleno.
Certamente, é correto afirmar que a indenização por abandono afetivo não tem o poder
de apagar os danos causados, nem de trazer de volta o tempo perdido.
212
Em relação a função preventiva, a indenização pode servir para evitar e conscientizar a
sociedade que a omissão com os deveres de afetividade pode gerar responsabilidade civil,
evitando assim, a repetição de casos de negligência. Quanto à função punitiva pedagógica, a
indenização por abandono afetivo pode servir para evitar que o causador do dano volte a ser
negligente, ao saber que será responsabilizado, assim, como, fazer com que esse genitor
reconheça a importância dos cuidados ao filho.
REFERÊNCIAS
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Andrighi, Brasília-DF, 21 set. 2021. Disponível em:
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1981131 – MS. Relatora: Paulo de
Tarso Sanseverino, Brasília-DF, 08 nov. 2022. Disponível em:
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213
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1579021 – RS. Relatora: Maria
Isabel Gallotti, Brasília-DF, 19 out. 2017. Disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201600111968&
dt_publicacao=29/11/2017>. Acesso em: 07 jul. 2023
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1087561 – RS. Relatora: Raul
Araújo, Brasília-DF, 13 jun. 2017. Disponível em:
<https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200802013280&dt_p
ublicacao=18/08/2017>. Acesso em: 07 jul. 2023
[S.I.]. Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância (2016). Estudo nº II: Importância dos
vínculos familiares na primeira infância. Disponível em:
<https://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/crianca_feliz/Treinamento_Multiplicado
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DINIZ, Maria H. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v.7.São Paulo - SP:
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DILL, Michele Amaral, CALDERAN, Tanabi Bellenzier. A importância do papel dos pais no
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Disponível em
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LOBO, Paulo Luiz N. Direito Civil Volume 5 - Famílias. São Paulo - SP: Editora Saraiva, 2022.
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MADALENO, Rolf. Direito de Família. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book.
ISBN 9786559644872. Disponível em:
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214
MADALENO, Rolf; BARBOSA, Eduardo. Responsabilidade Civil no Direito de Família. Rio
de Janeiro - RJ: Grupo GEN, 2015. E-book. ISBN 9788597000689. Disponível em:
<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788597000689/>. Acesso em: 09 mai.
2023.
NETTO, Felipe Braga. Novo Manual de Responsabilidade Civil - 3 ed. rev., ampl. e atual. -
São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.
MELO FILHO, Alberto Mendonça de. Direito à felicidade e o princípio da afetividade sob a
perspectiva dos tribunais superiores (STF/STJ). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862,
Teresina, ano 20, n. 4431, 19 ago. 2015. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/41919>.
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TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. Ebook. ISBN
9786559645251. Disponível em:
<https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786559645251/>. Acesso em: 10 abr.
2023.
215
A ORDEM NATURAL DOS PAPÉIS SOCIAIS FAMILIARES
RESUMO
O presente artigo trata de problemática atemporal, que permeia as relações sociais e as famílias
desde os séculos passados até os dias atuais, qual seja, a naturalização de padrões, papéis e
funções sociais. Justifica-se tanto pela relevância da temática, quanto pela constante indignação
desta autora quanto ao tema. A problemática central do trabalho pauta-se no seguinte
questionamento: qual é o fator determinante para designar os papéis sociais familiares? Para
tanto, o trabalho estrutura-se em três tópicos: primeiro, se falará das lutas das mulheres e
feminismos, depois, se estudará o patriarcado e as relações sociais e no terceiro ponto a análise
recairá especificamente sobre a maternidade.
1 INTRODUÇÃO
A ordem natural. Esta foi a expressão escolhida para resumir esta escrita, que versará
sobre famílias e papéis sociais. Para adentrar tal discussão, se julga importante levantar algumas
considerações sobre termos como feminismo, gênero e patriarcado.
Quebrar a ordem natural. Não há outro objetivo que não este para a escolha desta escrita.
Parte-se do entendimento de que não há que se falar em universalismo de direitos em uma
sociedade tão diferente, desigual e opressora, de que não há que se falar em mudança legislativa,
se não se falar em mudança nas relações sociais e de não há que se falar em mudança nas
1Advogada com inscrição ativa junto a OAB/RS sob o n.º 119/968, doutoranda em Política Social e Direitos
Humanos pela Universidade Católica de Pelotas, mestre em Direito pela Universidade Federal de Pelotas e
especialista em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. E-mail:
rafaelaperescastanho@gmail.com.
216
relações sociais, se não se falar em quebrar a ordem natural.
Para tanto, este artigo foi dividido em três pontos: primeiro, se falará das lutas das
mulheres e feminismos, depois, se estudará o patriarcado e as relações sociais e no terceiro
ponto a análise recairá especificamente sobre a maternidade. Ao final, pretende-se entender
melhor a problemática central, qual seja: qual é o fator determinante para designar os papéis
sociais familiares?
A questão de gênero nos cuidados familiares é o principal ponto deste artigo, razão pela
qual destina-se este primeiro item para falar sobre a luta das mulheres pela garantia de direitos
humanos e sociais, conceituando e abordando a importância do feminismo para a história das
mulheres.
Nota-se que, durante a escrita, pretende-se fazer referência ao termo mulheres, evitando
utilizar a palavra no singular, justamente para deixar evidenciada a pluralidade e diferenças
existentes entre elas. Isso porque, embora pertencentes ao mesmo sexo – aquilo que é biológico,
natural –, há diferenças de raça, classe social, idade, gênero – aquilo que é socialmente
construído –, dentre outras divergências. Usar o termo “mulher”, no singular, traz à tona o
modelo ideal, culturalmente enraizado, o qual, entretanto, o movimento das mulheres propõe a
extinção.
217
Essas duas falas, antagônicas, são exemplos claros e concretos da polaridade e
dicotomia existentes em relação ao movimento feminista e a crença de que a ele só mulheres
devem ser adeptas e militantes. Ao revés, engana-se, entretanto, quem também pensa que todas
as mulheres sentem respeito e gratidão a este movimento. É possível observar que algumas
mulheres têm uma visão negativa, tanto do termo feminismo, quanto de outras mulheres se
intitulando feministas, ainda que elas concordem e acreditem em tudo o que as feministas lutam
e também acreditam (HOOKS, 2019, p. 54).
Feminismo pode ser entendido como “o desejo por democracia radical voltada à luta
por direitos daqueles que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo
patriarcado” (TIBURI, 2021, p. 11). Ou, ainda, podem ser usadas diferentes vertentes para sua
definição, tais como, (i) uma doutrina que visa direitos sociais e políticos de forma igualitária
para homens e mulheres; (ii) um movimento para conquistar os referidos direitos; (iii)
classificação de mulheres como um grupo e com uma teoria própria e, ainda, (iv) uma crença
na necessidade de mudança social para aumentar o poder das mulheres (LERNER, 2019, p.
286).
Embora, segundo a visão de Gerda Lerner, a maioria das pessoas seja adepta às
definições (i) e (iii), para ela, o termo vai muito além de uma conceituação fechada, sendo
necessário fazer uma distinção entre “direitos das mulheres” e “emancipação das mulheres”. O
primeiro seria a luta por uma garantia de igualdade entre os sexos masculino e feminino,
concernentes a todos os aspectos da vida em sociedade, como direito igualitário em
oportunidades, decisões e acesso às instituições. Já o segundo diz respeito ao movimento de
libertação – das restrições opressivas impostas pelo sexo –, de autodeterminação e de autonomia
(LERNER, 2019, p. 287). Embora, para ela, o feminismo abranja as duas vertentes, a luta pela
emancipação antecede a pelos direitos.
Comunga-se da opinião da autora, uma vez que, antes de se tornarem sujeitos de direitos,
218
as mulheres eram meros objetos de relações jurídicas e sociais. Por isso, tão necessária a luta
pela emancipação, que visa a libertação e liberdade das mulheres para tomar as próprias
decisões, definir seus papéis sociais e conquistar a sua independência. Só que essa libertação
sugere e implica numa transformação de valores, teorias e costumes preexistentes – algo que
vai contra a lógica hegemônica tradicional e culturalmente enraizada, a dita ordem natural.
O feminismo vem confrontar diretamente essa lógica universal dos direitos humanos e
sociais, de modo a resgatar a dignidade existente em cada corpo que foi envolvido por um jogo
de poder (TIBURI, 2021, pp. 31; 39). Esses jogos de poder envolvem muitas formas de
opressão: quanto ao sexo, quanto à classe social, quanto à raça, quanto ao gênero. Essas
violências não podem ser hierarquizadas, mas devem, contudo, ser interseccionadas. Desse
modo, uma mulher negra, pobre e lésbica tem que enfrentar quatro tipos diferentes de opressão.
É o que se chama de interseccionalidade, ou seja, a existência mútua de invisibilidades e
discriminações que contemplam “não somente classe e gênero (…), mas também toda e
qualquer opressão que podem ser identificadas nas singularidades das experiências dos sujeitos
na vida social” (PIMENTEL, 2020, p. 04). Tratar a interseccionalidade dentro dos movimentos
de lutas das mulheres se mostra muito importante, ao passo que, como uma forma de controle
social, as mulheres foram estimuladas a reconhecer apenas uma área de diferença como
legítima: a presente entre homens e mulheres (LORDE, 2019, p. 247). Mas, como já
demonstrado, há muitas outras opressões pertencentes na sociedade, que devem ser legitimadas
e tratadas como essenciais, a fim de que se possa falar em mudança e avanço social.
O próprio feminismo, mesmo que seja “uma discussão de gênero, sexualidade e classes
219
sociais” (TIBURI, 2021, p. 29), já teve sua definição estritamente relacionada a uma “guerra
dos sexos”. Nos Estados Unidos, por exemplo, não é incomum que, ainda hoje, pessoas pensem
no feminismo como um “movimento que tem como objetivo central tornar as mulheres
socialmente iguais aos homens” (HOOKS, 2019, p. 48). Essa definição simplista faz crer que
os movimentos desconsideram os muitos outros fatores interseccionais que discriminam,
exploram e oprimem as mulheres. O que não é verdade e pode ser corroborado pela frase que
afirma que “os movimentos feministas deveriam ser sempre escritos no plural, de tanto que o
feminismo é plural e variado” (PERROT, 2019, p. 154).
Os feminismos são, por assim dizer, convites a uma mudança radical e profunda nas
relações humanas e sociais. Uma mudança que visa romper barreiras de dominação, opressão e
220
submissão de diversos indivíduos. Uma mudança nas formas de se relacionar, de viver e,
sobretudo, de pensar e produzir o direito. Os feminismos são, portanto, um clamor à
universalidade dos direitos humanos e sociais – mas uma universalidade de fato, que seja
realmente universal, ainda que aplicada e pensada nas singularidades e diferenças de cada
indivíduo. E em que pese todos os avanços, ainda se faz necessário falar sobre para avançar
mais.
Partindo da ideia de que os direitos humanos e sociais não são universais e que os
feminismos lutam, ainda hoje, para buscar essa universalidade, neste momento pretende-se
compreender de que forma as questões de gênero e, especialmente, o patriarcado influenciou e
ainda influencia nas relações sociais e na legislação brasileira. Para tanto, parece primordial,
antes de adentrar em qualquer discussão, traçar o conceito de gênero e patriarcado.
Para além do sexo e do gênero, há o se que chama de sistema sexo gênero, expressão
apresentada pela antropóloga Gayle Rubin, e que pode ser conceituado como um sistema “que
distribui recursos de acordo com papéis de gênero definidos culturalmente; assim, o sexo
determina que mulheres devem ter filhos, e o sistema sexo-gênero afirma que elas devem criar
os filhos” (LERNER, 2019, p. 289).
221
natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade
masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas
são aceitos” (TIBURI, 2021, pp. 28-29).
Gênero e patriarcado possuem estreita interseção, embora aquele seja mais amplo que
este, uma vez que “no patriarcado as relações são hierarquizadas entre os seres socialmente
desiguais, enquanto o gênero compreende também relações igualitárias. O patriarcado é um
caso específico de relações de gênero” (SAFFIOTI, 2015, p. 126). Além disso, a relação entre
ambos reside no fato de que gênero foi um termo adotado como arma na luta contra o
patriarcado, pois “utilizar a linguagem do gênero reforça a linguagem do civil, do público e do
indivíduo, uma linguagem que depende da supressão do contrato sexual” (PATEMAN, 2021,
p. 345). A condição das mulheres, portanto, não está predeterminada pela sua natureza
biológica, mas é resultado da invenção política e social – invenção esta originária do contrato
sexual, onde “os vínculos convencionados e universais do contrato estruturam a sociedade
moderna” (SAFFIOTI, 2015, p. 60).
222
No sistema normativo brasileiro, a Constituição de 1988 foi um verdadeiro avanço no
âmbito de direitos, incluindo os atinentes às relações familiares. Quase uma década e meia
depois, foi promulgado o atual Código Civil, vigente desde 2002. Ambas as legislações
inovaram ao garantir inúmeras prerrogativas, tais como: (i) previsão expressa de uniões estáveis
e famílias monoparentais como entidades familiares; (ii) igualdade entre homens e mulheres
em relação aos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal; e (iii) proibição de quaisquer
discriminações relativas à filiação.
Entretanto, mesmo com inúmeros direitos assegurados por lei, ainda hoje encontram-se
resquícios das épocas passadas em nossa sociedade, o que configura um grande óbice à
aplicação e à efetivação destes direitos. Durante séculos a sociedade foi marcada por um senso
comum de que famílias eram marcadas por “uma dedicação descompassada de um único
membro (...) em prol dos outros” (OLIVEIRA, 2020, p. 22) e, como visto, esse membro sempre
foi a mulher/mãe/esposa, a responsável pelas tarefas domésticas, pelos cuidados com os filhos
e, quando possível, inseridas no mercado de trabalho.
Tal situação reverberou tanto que, em um estudo realizado com meninos e meninas
brasileiros entre seis e quatorze anos de idade, constatou-se que enquanto 81,4% das meninas
arrumam sua própria cama, 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus
irmãos homens arrumam a sua própria cama, 12,5% dos seus irmãos homens lavam a louça e
11,4% dos seus irmãos homens limpam a casa” (OLIVEIRA, 2020, pp. 37-38).
Diante desses dados, inegável que o patriarcado ainda rege as relações sociais e os
papéis sociais que futuramente se desenvolverão são iniciados ainda na infância, no seio
familiar.
223
(TIBURI, 2021, pp. 105-106). A partir daqui começa a separação entre o público e o privado,
enraizado na diferença entre gêneros, que coloca homens e mulheres, praticamente, vivendo em
mundos separados. Essa organização se fortaleceu e continua regendo, talvez em muitos lugares
e em muitas pessoas de forma inconsciente, a vida em sociedade atual.
Além dessa dependência e violência vivida pelas mulheres casadas, houve muita
opressão, morte e, também, segregação entre as mulheres mães. As primeiras explicadas pela
falta de profissionalismo e pela brutal violência em que as mulheres eram submetidas na hora
do parto, o que fazia com que a taxa de mortalidade feminina fosse muito superior à masculina.
Por vezes, as gestantes nem chegavam a dar a luz, pois em alguns países que se autointitulavam
como preocupados com o controle de natalidade, havia larga prática de infanticídios e abortos,
meios coercitivos de regular nascimentos e taxa populacional.
Mesmo existindo esse lado da violência e segregação, a maternidade sempre foi atrelada
ao aspecto feminino das mulheres. O termo feminino foi inventado para “docilizar as pessoas
marcadas como mulheres” (TIBURI, 2021, p. 52), em contraponto aos termos feminismos –
porque, se de um lado, há forte crítica e preconceito às mulheres que se autodenominam
224
feministas, as mulheres femininas são vistas como dóceis, como aquelas que cumprem a dita
ordem natural, ao cuidar dos filhos e filhas. Há quem diga que a maioria dos casais não discute
a natureza do cuidado parental antes do nascimento dos filhos, porque pressupõe que esse
cuidado será de responsabilidade das mulheres (HOOKS, 2019, p. 206).
As famílias, que eram para ser núcleos onde as pessoas, seja por laços sanguíneos ou
afetivos, compartilhassem um ambiente saudável de apoio e cuidado mútuos, sofrem grandes
ataques da opressão sexista que tenta depreciar e distorcer sua função positiva. Correndo o risco
de ser, inclusive, assim resumidas: “[as famílias] existem como um espaço em que somos
educados desde o berço para aceitar e apoiar formas de opressão” (HOOKS, 2019, p. 71). É
preciso repensar as estruturas sociais e familiares, a fim de projetar um futuro mais igualitário,
questionando atitudes tidas como naturalizadas e colocando em evidência as práticas de
violações a direitos humanos e sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, o fator determinante para designar os papéis sociais familiares é a lógica
patriarcal que, ainda hoje, luta-se para romper. Uma lógica que faz crer que família é um meio
de doutrinar valores favoráveis ao controle hierárquico e à autoridade coercitiva, impondo
padrões baseados no gênero e esperando comportamentos como se fossem obrigações. Muito
225
se avançou e ainda muito se tem para avançar. O que se pretendeu fazer com este artigo foi
aclarar que a maternidade deve ser vista como uma escolha, não como uma experiência
compulsória ou fonte de exploração. Deve ser reconhecida como um trabalho relevante e
valioso, como um aprendizado constante e não como algo natural e esperado – pois nem sempre
o é. É preciso romper a normalidade, quebrar o ciclo de dominação e autoritarismo e criar
ambientes familiares antissexistas para que, daqui alguns anos, as problemáticas a serem
enfrentadas sejam outras.
REFERÊNCIAS
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2019.
PIMENTEL, Elaine. A segurança pública a partir de lentes interseccionais sobre raça, classe
e gênero. 2020. In: Argumentum, v. 12, n. 3, 2020.
ROSA, Conrado Paulino da. Guarda compartilhada coativa: a efetivação dos direitos de
crianças e adolescentes. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular,
2015.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In:
Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 48, 1997.
TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. 15. ed. Rio de Janeiro:
Rosas do Tempo, 2021.
226
“STRANGER THINGS” E DIREITO DE FAMÍLIA “IN STREAMING”:
EXPLORANDO AS RELAÇÕES ENTRE A SÉRIE E AS DINÂMICAS
FAMILIARES
RESUMO
A aclamada série Stranger Things, criada pelos irmãos Duffer, já tem conquistado milhões de
fãs ao redor do mundo com sua narrativa e personagens envolventes. Embora seja ambientada
em um cenário de ficção científica e elementos sobrenaturais, a referida série também aborda
questões familiares complexas que refletem desafios reais enfrentados pelas famílias, em
especial, na sociedade contemporânea brasileira. O presente artigo se dedica a um breve estudo
sobre as relações entre direito de família e a série Stranger Things, numa perspectiva de
pesquisa jurídica transdisciplinar, e analisando como esta retrata as dinâmicas familiares e os
temas relacionados ao divórcio, guarda dos filhos, adoção e responsabilidade parental. Através
da pesquisa bibliográfica e da análise dos dispositivos legais que dispõe sobre o tema, bem
como a partir da metodologia de pesquisa do Direito a partir da Arte, examinar-se-á como o
direito de família é representado e refletido na narrativa da série, bem como seus impactos sobre
as próprias relações familiares dos espectadores, oferecendo uma perspectiva jurídica sobre os
eventos fictícios apresentados.
1 INTRODUÇÃO
O Direito de Família é uma área do Direito que trata das relações familiares e da relação
jurídica entre as pessoas, buscando a solução de conflitos. Essa disciplina abrange assuntos,
como casamento, divórcio, filiação, guarda dos filhos, adoção, alimentos, entre outros
(TARTUCE, 2023). A série Stranger Things, apesar de se passar em um contexto de ficção
científica e suspense, apresenta elementos que podem ser relacionados ao Direito de Família
brasileiro.
2
Doutora e Mestre em Direito pela UFRGS. Professora do Curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto
Alegre. Advogada membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/RS (OAB/RS nº 58.609). E-
mail: robertadrehmermiranda@gmail.com.
3 Graduanda em Direito pela Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.
227
O objetivo deste artigo é analisar a relação entre o Direito de Família brasileiro e a série
Stranger Things, destacando aspectos relevantes da série e criando conexões com conceitos e
institutos jurídicos presentes no contexto da disciplina. Serão abordados temas como
casamento, divórcio, filiação, guarda compartilhada, alienação parental e adoção, explorando
como esses temas são tratados na série e como se relacionam com o ordenamento jurídico
brasileiro.
A pesquisa realizada para a elaboração deste artigo baseou-se em uma análise da série
Stranger Things, bem como na consulta de obras jurídicas especializadas em Direito de Família,
legislação brasileira aplicável e artigos científicos que abordam temas relacionados.
O Direito é narração. Histórias vividas em famílias, que são traduzidas num mundo
objetivo que, nem sempre, corresponde à materialidade das situações vividas. Ou corresponde.
Nesse meio de narração de histórias, a simbologia da arte, na retratação das situações vividas,
forma parte do imaginário social (CASTORIADIS, 1982) e, igualmente, do imaginário jurídico
(OST, 2009).
Por muito tempo as narrações simbólicas foram retratadas pela literatura (SCHALET,
2016), para, depois, ser reproduzidas por imagens na ficção do cinema. Atualmente, numa
época digital em que as narrações não duram mais que um minuto em um vídeo instantâneo de
rede social, a ficção narrativa familiar foi transportada para o streaming, na mecânica da série
(história desdobrada em vários episódios, de modo a atrair e despertar no espectador a
“ansiedade” de imediatamente assistir o próximo “capítulo”, resultando no fenômeno da
“maratona”), tendo repercussão significativa no imaginário social e no mundo jurídico, via
interpretação e hermenêutica. Assim, cada vez mais as atrações in streaming exercem influência
sobre as formas em que percebemos e interpretamos o Direito de Família – em especial, o
228
Direito de Família brasileiro, país onde a representação familiar já existe na indústria do
entretenimento pela cultura da história de “novela”, vindo por penetrar diretamente nas relações
sociais familiares.
No Brasil, era utilizado o modelo de organização familiar, onde o “chefe da família” era
o membro estabilizador do bem-estar social, integrante de uma organização familiar (ALVES,
2019). O instituto do casamento, durante os três primeiros séculos após a colonização, era algo
restrito a poucas famílias, pois era de alto custo e muito burocrático na Igreja, por ser religião
oficial do Estado. A outra parcela da população de baixa renda estabelecia uniões informais,
não reconhecidas oficialmente pela Igreja Católica. No entanto, tais uniões ilegais eram
toleradas pela Coroa Portuguesa devido ao seu potencial de contribuir para o aumento da mão
de obra disponível.
Após a Independência e a Proclamação da República, juntamente com o processo
industrial no Brasil, percebe-se o enfraquecimento da Igreja e a impossibilidade de se manter
casamentos baseados em relações insatisfatórias. Neste sentido, lentamente surgem novas
configurações familiares, como, por exemplo, filhos de relações extraconjugais. Rodrigo da
Cunha Pereira e Maria Berenice Dias assim explicam a evolução da família contemporânea:
A travessia para o novo milênio transporta valores totalmente diferentes, mas traz
como valor maior uma conquista: a família não é mais um núcleo econômico e de
reprodução, onde sempre esteve instalada a suposta superioridade masculina. Passou
a ser muito mais um espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor, e,
acima de tudo, o núcleo formador da pessoa e elemento fundante do próprio sujeito
(PEREIRA, 2003, p. 14).
229
Deste modo, pode-se sintetizar que, antigamente, a família era compreendida de forma
restrita, baseada no casamento civil e na filiação biológica. O casamento era considerado o
modelo único e exclusivo de formação familiar, e a filiação biológica era o critério determinante
para estabelecer os vínculos de parentesco. No entanto, com o passar do tempo, ocorreram
transformações significativas que ampliaram o conceito de família.
O princípio da dignidade da pessoa humana, presente no artigo 1.º, inc. III, da CF/19884
reconhece a dignidade intrínseca de todos os indivíduos, assegurando que as relações familiares
sejam pautadas pelo respeito à integridade física, moral e psicológica dos seus membros
(TARTUCE, 2007).
4
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa
humana [...].
230
reconhecendo que o amor, o carinho, o cuidado e o apoio mútuo são fundamentais para o
desenvolvimento saudável dos membros da família e para a estruturação familiar.
Por fim, mas não menos importante, um dos princípios que merece destaque também é
o da não intervenção ou da liberdade11 o qual comenta Daniel Sarmento como “o poder que a
pessoa tem de auto regulamentar os próprios interesses” (SARMENTO, 2004, p. 188).
A série Stranger Things, criada pelos irmãos Duffer, é ambientada na década de 1980
na fictícia cidade de Hawkins em Indiana. A trama se desenrola, ao longo de quatro temporadas
5
Art. 227, § 6.º, da CF/1988 e art. 1.596 do CC.
6
Art. 226, § 5.º, da CF/1988 e art. 1.511 do CC.
7
Arts. 226, § 5.º, e 226, § 7.º, da CF/1988 e arts. 1.566, incisos III e IV, 1.631 e 1.634 do CC.
8
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária [...].
9
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de
ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
10
Art. 227, caput, da CF/1988 e arts. 1.583 e 1.584 do CC.
11
Art. 1.513 do CC.
231
e com a quinta em produção, em torno de um grupo de crianças e adolescentes que se deparam
com eventos sobrenaturais e misteriosos após o desaparecimento de um de seus amigos, Will
Byers. Ao longo das temporadas, a série combina elementos de ficção científica, suspense,
horror e referências nostálgicas à cultura pop da década de 1980 (STRANGER THINGS, 2023).
O tema da família está presente de forma central na narrativa da história. A série aborda
diferentes tipos de família e explora as dinâmicas familiares dos personagens, oferecendo uma
visão multifacetada e complexa das relações familiares e como isso afeta cada um dos
personagens.
Stranger Things retrata algumas famílias tradicionais, como a família Byers, que é
composta por Joyce, mãe de Will e Jonathan, e Jonathan, irmão mais velho de Will. A série
mostra o amor e a dedicação de Joyce em busca de seu filho desaparecido, retratando o vínculo
forte entre mãe e filhos e a importância do apoio familiar em momentos difíceis.
Além disso, a família Wheeler, composta pelos pais Karen e Ted, e pelos filhos Nancy,
Mike e Holly também é retratada na série. Embora em alguns momentos os relacionamentos
familiares dessa família possam parecer distantes ou desatentos, a série aborda também os
momentos de união e preocupação entre os membros da família.
Além das famílias citadas anteriormente, Stranger Things aborda o conceito de família
socioafetiva, representada pela relação entre Eleven e o xerife Hopper e, mais recentemente,
com Joyce (IBDFAM, 2022), bem como família pluriparental ou reconstituída, a qual é o caso
da personagem Max. Ademais, é tratado também de famílias monoparentais, como a de Dustin
e casos de tutela, como o de Eddie que possui o tio como tutor.
232
No contexto da série Stranger Things, o tema do casamento e da união estável é
abordado, por exemplo, na família de Mike Wheeler. O Código Civil disciplina o instituto do
casamento do artigo 1511 em diante, e da união estável no artigo 1723.
Tal instituto é muito denso e logo e, infelizmente, não poderá ser abordado por completo
neste artigo. Entretanto, é importante abordar a respeito da natureza jurídica deste e Carlos
Alberto Dabus Maluf e Adriana Maluf apontam três correntes: a contratual, a institucional e a
eclética. Neste sentido lecionam os autores:
Além do casamento, embora a união estável não seja explicitamente abordada, alguns
personagens podem ser interpretados como vivendo sob o regime desta. Por exemplo, os
personagens Nancy Wheeler e Jonathan Byers que demonstram todos os requisitos necessários
para estabelecê-la, sendo eles: relação duradoura, pública e contínua ao longo da série,
compartilhando um comprometimento mútuo e uma convivência familiar.14 Ademais, ressalto
que de acordo com a Súmula 382 do STF15, não é necessária a coabitação para caracterização
da união estável.
12
Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos
cônjuges.
13
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio
conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos.
14
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
15
Súmula 382, STF: A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do
concubinato. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2488.
Acesso em: 26 jun. 2023.
233
É importante sinalizar que, a união estável deve ser reconhecida e respeitada,
equiparando-se aos direitos e deveres do casamento e não exige uma formalidade específica
para sua configuração, diferenciando-se do casamento civil, que requer um processo de
celebração e registro. Esta pode ser estabelecida de maneira natural, a partir da convivência
pública e do desejo mútuo de constituir uma família (GONÇALVES, 2015).
Na série, podemos observar exemplos de filiação biológica, como o caso de Joyce Byers,
mãe de Will e Jonathan Byers. A relação entre mãe e filhos é baseada no vínculo sanguíneo,
com os personagens compartilhando laços consanguíneos e direitos e deveres decorrentes dessa
relação.
Além disso, este tipo de filiação também é explorado por meio da personagem Eleven
(também conhecida como Jane). Ela descobre, ao longo da segunda temporada da série, sua
16
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo
menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução
da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por
fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar
de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial
heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
234
verdadeira origem e sua relação com sua mãe biológica, Terry Ives. Esse enredo retrata a
importância do reconhecimento da filiação biológica, assunto tratado no artigo 2717 do Estatuto
da Criança e do Adolescente18, como um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,
revelando os laços de sangue que podem afetar a identidade e o senso de pertencimento de uma
pessoa.
Por outro lado, a série também apresenta situações que evidenciam a filiação afetiva. A
filiação afetiva, também conhecida como socioafetiva, diz respeito aos laços de afeto, amor e
cuidado estabelecidos entre pais e filhos, independentemente dos laços biológicos. De acordo
com o artigo 1596 do Código Civil19, este estabelece o princípio da igualdade entre os filhos,
portanto, terão os mesmos direitos e qualificações.
A adoção e o poder familiar também são temas abordados na série Stranger Things. A
adoção é um processo legal pelo qual uma pessoa ou casal assume a responsabilidade e os
17
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo
ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
18
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.
19
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
20
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de
filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e
extrapatrimoniais”.
235
direitos parentais sobre uma criança, que não é seu filho biológico. Por sua vez, o poder familiar
refere-se ao conjunto de direitos e deveres que os pais têm em relação aos seus filhos, incluindo
a responsabilidade pela educação, saúde e bem-estar.
No que diz respeito ao poder familiar, o Código Civil brasileiro estabelece que ambos
os pais têm igualdade de direitos e deveres em relação aos filhos. O poder familiar, descrito no
artigo 1634 do Código Civil21, envolve aspectos como a guarda, a educação, a saúde, a
representação legal e o dever de sustento. É importante ressaltar que, pela primazia do princípio
da igualdade entre os filhos, em casos de adoção, os adotantes adquirem o poder familiar sobre
a criança, assumindo todas as responsabilidades e obrigações parentais.
21
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder
familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); I - dirigir-lhes a criação
e a educação; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos
termos do art. 1.584; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento
para casarem; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para
viajarem ao exterior; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento
para mudarem sua residência permanente para outro Município; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VI -
nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo
não puder exercer o poder familiar; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VII - representá-los judicial e
extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que
forem partes, suprindo-lhes o consentimento; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VIII - reclamá-los de
quem ilegalmente os detenha; (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014); IX - exigir que lhes prestem obediência,
respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014);
236
No contexto da série Stranger Things, o poder familiar é explorado em diversas famílias,
representando a relação entre pais e filhos. Por exemplo, Joyce Byers e Jim Hopper são
exemplos de pais que exercem o poder familiar sobre seus filhos biológicos e adotivos,
respectivamente. Eles são responsáveis pela tomada de decisões importantes em relação à
educação, saúde e bem-estar dos filhos.
22
BRASIL. Lei 13058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e
dispor sobre sua aplicação. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2014. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13058.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.058%2C%20DE%2022,e%20dispor%20sobre%2
0sua%20aplica%C3%A7%C3%A3o.
237
alienação parental. Através desses temas, é possível perceber a relevância do respeito mútuo,
da comunicação efetiva e do interesse genuíno no bem-estar das crianças para a construção de
relações familiares saudáveis e harmoniosas.
4.5 Tutela
Por fim, mas não menos importante a tutela é uma instituição jurídica prevista no direito
brasileiro que visa substituir o poder familiar nas situações do menor cujos pais faleceram ou
foram suspensos/destituídos do poder parental. Nela o Estado outorga a alguém o dever de zelar
pela criação, educação e proteção da pessoa do tutelado. Essa figura é importante para garantir
o bem-estar e os direitos das crianças e dos adolescentes em situações excepcionais.
No direito brasileiro, a tutela é regulamentada pelo Código Civil, nos artigos 1.728 a
1.766. A tutela pode ser documental e testamentária, determinada pelos próprios pais; por
determinação legal, na ausência de manifestação dos pais; ou pelo juiz, quando não há nem os
pais nem parentes para manifestar vontade;
No contexto da série Stranger Things, a relação do personagem Eddie com seu tio, pode
ser analisada sob a perspectiva da tutela. Na trama, Eddie é uma criança órfã e mora com seu
tio, representando seu tutor, o qual, provavelmente foi instituído por determinação legal.
Embora a série não explore muitos detalhes, a relação entre Eddie e seu tio retrata a importância
de um adulto assumir a responsabilidade pela guarda e pelo cuidado de uma criança ou
adolescente em situação de vulnerabilidade.
É importante ressaltar que a tutela é uma medida excepcional e é aplicada quando não é
possível estabelecer a guarda compartilhada ou a adoção como soluções mais adequadas para a
proteção do menor. O objetivo da tutela é garantir que a criança ou o adolescente tenha um
ambiente seguro e acolhedor, proporcionando-lhe os cuidados necessários para seu pleno
desenvolvimento (VENOSA, 2022, p. 413).
5 CONCLUSÃO
238
Em suma, a análise da relação entre o direito de família brasileiro e a série Stranger
Things revelou a maneira como a obra retrata e aborda diversos aspectos do contexto familiar,
conectando-os aos institutos e princípios jurídicos. A série serve como um ponto de reflexão
sobre as dinâmicas familiares, reforçando a importância do afeto, do respeito e da proteção dos
direitos das crianças e dos adolescentes.
Portanto, é fundamental realizar tais conexões a fim de relacionar e reconhecer os temas
estudados da disciplina de direito de família com o mundo fictício e cinematográfico.
Concluindo que estão intrinsecamente relacionados à sociedade e à cultura, e obras como
Stranger Things podem fornecer insights valiosos para refletir sobre as transformações e
desafios enfrentados pelas famílias no mundo contemporâneo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 13058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da
Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da
expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação. Diário Oficial da União,
Brasília, 22 dez. 2014. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13058.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.058%2C%20DE%2022,e%20
dispor%20sobre%20sua%20aplica%C3%A7%C3%A3o>.
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.
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239
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2023.
241
A CONTRATUALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E A
VALORIZAÇÃO DA AUTONOMIA PRIVADA
RESUMO
1 INTRODUÇÃO
1
Advogada. Formada pela Universidade Federal de Pelotas. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela
Faculdade Anhanguera. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Damásio de Jesus. Inscrita
na OAB/RS sob o n.º 55.825, e-mail: rochelemadruga.adv@gmail.com.
242
dos vulneráveis, a qualquer tipo de violência ou sejam possibilitados tratamentos
discriminatórios.
Dentro dessas espécies de limitações não há dúvidas de que cada família tem sim, a
possibilidade de criar suas próprias regras e seu próprio direito, valorizando, por consequência,
a autonomia privada em detrimento à intervenção coercitiva e excessiva do Estado.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 Contrato
243
Necessário se faz acrescentar mais um elemento na sua conceituação, que é a
obrigatoriedade do contrato estar em conformidade com a lei, e, neste momento, é observada a
intervenção estatal se sobrepondo à autonomia privada.
O contrato pré-nupcial ou pacto antenupcial está previsto nos artigos 1.653 a 1.657, do
Código Civil. Ele é considerado um negócio jurídico solene vez que necessita da observância
de uma forma prescrita em lei para ter validade.
244
Para isso, o contrato pré-nupcial possui como requisitos a sua elaboração através de
escritura pública, o registro no cartório de imóveis do local de domicílio dos cônjuges, caso
existam imóveis de propriedade dos mesmos.
Importante ressaltar que este tipo de contrato possui sua eficácia sujeita a uma condição
suspensiva, ou seja, somente ocorrendo de fato o casamento, o instrumento contratual produzirá
os seus efeitos.
No pacto antenupcial, os nubentes podem estabelecer regras patrimoniais, como regime
de bens, doações entre cônjuges, assim como administração de bens particulares. Entretanto,
atualmente este tipo de contrato tem admitido a adoção de normas que versam sobre direitos
existenciais como no caso, por exemplo, de estipulação de multa nas hipóteses de traição ou
violência doméstica, regras sobre disciplinas e cuidados com os filhos, acordos sobre relações
sexuais, dentre outras.
Esta espécie de pacto vem a ser a mais comum no direito brasileiro, possibilitando que
as partes possam moldar o casamento aos seus gostos e as suas necessidades.
“A convenção antenupcial é um contrato solene e condicional pelo qual os cônjuges
dispõem de um regime de bens que vigorará entre si após o casamento.” (GONÇALVES, 2018).
245
do regime de bens com o trânsito em julgado da decisão judicial que o modificou e com relação
a terceiros, o termo inicial é a data da averbação no registro civil e imobiliário.
Como é possível perceber, este contrato é uma possibilidade favorável para os casais
que enfrentam dificuldades e problemas no decorrer de sua relação afetiva e não desejam o
rompimento, mas necessitam tornar o vínculo mais interessante e forte entre as partes, através
das regras presentes no instrumento pactual.
Podem ocorrer de algumas vezes o fim do casamento ou da união estável estar iminente
e ser irreversível.
Dessa forma, é importante que as partes envolvidas consigam estabelecer quais serão os
caminhos a serem percorridos até o momento do ponto final.
É fundamental que se estabeleçam regras para que o divórcio ou a dissolução da união
estável seja consensual, sobretudo quando há filhos em comum.
Nesse sentido, para um melhor entendimento do tema, Allesandra Melo (2017) e
Elisângela Marasca (2013), conceituam o contrato pré-divórcio nos seguintes termos:
Contrato pré-divórcio visa criar normas para que o divórcio (ou dissolução de união
estável) seja consensual, não litigioso ou com o mínimo de disputas processuais
possíveis. Também é permitido que o (futuro ex) casal faça acordos sobre
procedimentos nas ações de família, por exemplo, escolhendo caminhos processuais
que diminuam a duração das ações, estipulando a limitação de recursos. Os acordos
também podem beneficiar casais que são sócios em empresas, pois permitem que se
estabeleçam meios para que o fim do relacionamento não implique dissolução do
negócio e, portanto, a ampliação dos prejuízos econômicos. (MELO, 2017).
Os contratos pós divórcio ou pós união estável têm por objetivo principal, restaurar,
sempre que necessário, os acordos ou decisões que foram estabelecidas no fim do
relacionamento afetivo entre as partes. Eles referem-se à manutenção de uma convivência
246
harmônica e pacífica entre indivíduos que mantêm, mesmo após o divórcio ou a união estável,
vínculos jurídicos comuns.
Como exemplo, é possível citar os cuidados com a prole, a gestão compartilhada de
negócios de titularidade dos ex companheiros ou cônjuges, pessoas portadoras de deficiência,
utilização de bens comuns, dentre outros.
Previsto no artigo 1.725, do Código Civil e no artigo 226, §2.º, da Constituição Federal
de 1988, o pacto convivencial ou mais conhecido como união estável, trata-se de uma situação
de fato ou uma relação baseada nos seguintes preceitos: convivência pública, duradoura e
contínua e intenção de constituir família.
Este tipo de pacto pode ser formalizado antes, durante ou depois da união, por meio de
um instrumento particular (contrato simples) ou por escritura pública.
É facultativo que o mesmo seja levado a registro ou averbação, não sendo um dever dos
companheiros, que possuem apenas uma faculdade.
O regime de bens que regula o pacto convivencial é o da comunhão parcial de bens,
entretanto, havendo vontade dos conviventes, pode se utilizar outros regimes legais ou um
regime personalizado, o qual mescla regras dos regimes da comunhão universal, parcial ou
separação total de bens.
Quanto ao conteúdo, o pacto convivencial pode trazer questões tanto de ordem
patrimonial como de ordem pessoal.
Seus efeitos podem ser retroativos, desde que não exista fraude contra terceiros ou a
alguma das partes e seu termo inicial começa a valer com a caracterização da união estável.
Havendo vontade das partes, as mesmas poderão alterar o contrato posteriormente, não
necessitando de autorização judicial.
Conforme muito bem diferencia os institutos da união estável e do casamento, Rodrigo
da Cunha Pereira, 2020, dispõe o que segue:
Conforme Rodrigo da Cunha Pereira, 2020, o contrato de geração de filhos pode ser
conceituado da seguinte forma:
O contrato de geração de filhos é uma conquista recente para aqueles que desejam
constituir apenas uma família parental, ou seja, sem conjugalidade.
No Brasil, ainda não há legislação específica acerca da coparentalidade. Dessa forma,
interessante haver embasamento na legislação que regula a situação de casais divorciados, por
exemplo, quanto aos aspectos da pensão alimentícia e guarda de filhos.
É possível ainda que se diga que o contrato de geração de filhos traz uma segurança no
que tange às partes envolvidas, pois estabelecem regras que, se descumpridas, podem servir de
balizadoras para o ajuizamento de procedimentos judiciais.
248
Esse tipo de contrato assemelha-se aos casos de alguns pais divorciados, uma vez que,
mesmo não havendo mais relacionamento afetivo entre os genitores, o elemento afeto
permanece, fazendo com que os filhos possuam as mesmas condições de desenvolvimento
físico, moral e emocional.
Por fim, é possível perceber que o contrato de geração de filhos, é uma alternativa para
aquelas pessoas homoafetivas que possuem o desejo de firmar uma parceria de maternidade ou
paternidade, sem, no entanto, haver o ato sexual ou uma relação amorosa, propriamente dita.
249
É o contrato estabelecido entre mais de duas pessoas em uma interação recíproca,
constituindo família ou não. No Brasil, tais uniões são vistas com reservas, em função
do princípio da monogamia, base sobre a qual o direito de família brasileiro está
organizado, embora sejam comuns em ordenamentos jurídicos de alguns países da
África e no mundo árabe que adotam o sistema da poligamia. (PEREIRA, 2021).
Com relação às definições acima, é permitido concluir que nem toda a relação de
poliamor está apta a constituir uma família, por motivo de faltar-lhe o afeto, elemento este
indispensável a sua caracterização.
Ainda, o Estado nega a legalidade desse tipo de união, adotando o princípio da
monogamia, como regulador das relações familiares.
Além dos contratos anteriormente citados, considerando que trata-se de um rol
exemplificativo de contratualização no direito de família, uma vez que outros tipos são passíveis
de serem criados, alguns deles são estipulados para situações especiais, grupos ou pessoas
específicas ou para determinadas ocasiões.
Desde que não infrinjam as normas jurídicas brasileiras, é possível a construção de
diversos tipos e modelos contratuais que atendam aos interesses específicos de cada grupo
familiar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, resta claro que a intervenção do Estado nas relações familiares é
necessária, entretanto, deve ser feita da maneira mais restrita possível, preservando sempre a
autonomia privada e as regras adotadas pelas famílias, da maneira que melhor lhes convier.
Importante que o Estado reconheça a vontade mínima dos sujeitos, tendo em vista que
novos arranjos familiares se formaram, baseados especialmente no afeto, obrigando o
ordenamento jurídico a acompanhar toda essa evolução, a fim de proporcionar uma maior
segurança jurídica aos relacionamentos que vão se formando ano após ano.
Dada a importância em se valorizar a autonomia privada em detrimento à intervenção
estatal nas relações familiares, a contratualização no direito de família tornou-se um mecanismo
fundamental, no sentido de ofertar aos indivíduos, a possibilidade de elaborarem o seu próprio
direito através de regras por eles adotadas, visando a satisfação de seus próprios interesses e
ideais de felicidade, fortalecendo cada vez mais o afeto e, consequentemente, os laços familiares
construídos ao longo da vida.
250
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2022/l10406compilada.htm>. Acesso em: 17 de jul.
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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro 6: Direito de Família. 15. ed. São
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<https://www.rodrigodacunha.adv.br/o-que-e-contrato-de-uniao-estavel/>. Acesso em: 06 de
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PEREIRA, Rodrigo da Cunha. 5 tipos de contratos de direito de família. 2019. Disponível em:
<https://www.rodrigodacunha.adv.br/contratos-de-direito-de-familia/>. Acesso em: 10 de ago.
de 2023.
251
<https://ibdfam.org.br/artigos/1609/O+contrato+de+geracao+de+filhos+e+os+novos+paradig
mas+da+familia+contemporanea>. Acesso em: 10 de ago. de 2023.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 2.ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense,
2021.
252
HERANÇA DIGITAL:
Reflexões sobre o direito a herança e o direito a intimidade do falecido
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo o estudo da herança digital frente ao direito de herança e ao
direito de privacidade do falecido. Serão abordados os bens digitais e a sua classificação;
também será examinada a ordem de vocação hereditária e a destinação dos bens digitais post
mortem. Além disso, será analisada a possibilidade de testamento ou de codicilo para que o
testador exerça sua vontade e disponha sobre a destinação dos bens do seu acervo digital.
Ademais, será estudada a colisão entre os direitos fundamentais, o direito à herança e o direito
à privacidade do falecido, em relação aos seus bens digitais, visto que não pode ser infringido
o direito a intimidade do falecido, já que teria sua privacidade violada quando seus herdeiros
tivessem acesso as suas fotos, vídeos e conversas privadas. Assim, para que haja acesso aos
seus bens digitais de caráter existencial seria necessária a autorização do titular do patrimônio
digital em vida. A metodologia do trabalho consiste no estudo de caso e na pesquisa
bibliográfica.
1 INTRODUÇÃO
A sociedade modifica-se com o passar dos anos e o direito deve se atentar as mudanças
sociais para que haja o seu aprimoramento. Hoje vivemos a era da tecnologia, aonde as pessoas
se relacionam com as outras por intermédio da Internet, das redes sociais, Whats App,
Facebook, Instagram, entre outras.
As pessoas expõem suas vidas nas redes sociais, guardam fotos, vídeos, conversas,
salvam livros e músicas na Internet. Mas, o que acontece com todo este patrimônio digital após
a morte desta pessoa? O usuário das redes sociais pode deixar um testamento para destinar seus
bens digitais? A família terá acesso às fotos, mensagens, livros que a pessoa possuía na internet?
E o direito a privacidade do falecido? E o direito de herança?
1
Pós-graduada em direito penal e criminologia pela PUCRS, em advocacia extrajudicial pela Legale/SP, em direito
público pela Legale/SP, e em direito civil e processo civil pela FMP/RS. Bacharela em direito pela PUCRS.
Advogada OAB/RS 115.219 e professora. E-mail: sarasouzaadvocacia@gmail.com.
253
Todas estas questões nos surgem quando o assunto é herança digital e é sobre isso que
será exposto no presente artigo. Assim sendo, o presente artigo abordará o tema da herança
digital em relação à destinação dos bens digitais do de cujus tendo em vista os direitos
fundamentais à herança e o direito à intimidade do falecido.
Portanto, será analisada com base na doutrina e jurisprudência a classificação dos bens
digitais, a destinação destes bens e a possibilidade de testamento ou de codicilo como atos de
última vontade do testador; além disso, serão estudados os projetos de Lei que discutem o tema.
E por fim, será estudada a colisão entre os direitos fundamentais o direito de herança e o direito
de privacidade do falecido com relação ao seu patrimônio digital.
Por outro lado, os autores Cristiano Colombo e Guilherme Goulart citam que o profiling
utilizado pela Amazon para a busca de livros que se encaixem no perfil do usuário quando este
adquire novos livros seriam dados pessoais e até mesmo a informação de que os livros
pertencem ao usuário determinado. (COLOMBO; GOULART, 2019).
Desse modo, a doutrina brasileira cita que os bens jurídicos são divididos em bens
corpóreos e bens incorpóreos. Dessa forma, bens corpóreos são aqueles bens tangíveis que
possuem uma existência concreta, já os bens incorpóreos são bens intangíveis que não podem
ser apreciados pelos sentidos humanos. (SILVEIRA, 2018).
Diante disso, os bens do acervo digital são bens incorpóreos. Os bens digitais podem ser
classificados em bens econômicos que possuem caráter patrimonial, por exemplo, jogos de
videogame de contas online, aonde há compra de acessórios e jogos e as milhas aéreas. Já os
bens sem apreciação econômica, que estão ligados a personalidade de seu titular, seriam as
contas nas redes sociais sem finalidade econômica, bens que possuem conteúdo sentimental,
fotos, vídeos, mensagens privadas, etc. (SILVEIRA, 2018).
Nesta ordem de ideais, os interesses digitais de uma pessoa falecida podem ter
conteúdo existencial ou patrimonial. No primeiro caso (existencial), em face de seu
caráter personalíssimo, extinguem-se com o óbito do titular, não podendo os
familiares invadirem a vida privada da pessoa falecida – máxime porque, em vida,
não quis revelar tais fatos. Em relação, contudo, ao segundo caso (patrimonial), é de
se reconhecer que as relações do titular, angariadas durante a sua vida, possuindo
repercussão econômica, serão transmitidas aos sucessores por integrar a herança.
(ROSA; RODRIGUES, 2020, p. 40).
255
Além dos bens digitais de caráter patrimonial e de caráter existencial, há os bens digitais
de caráter misto que seriam os bens digitais que possuem conteúdo patrimonial e conteúdo
existencial ao mesmo tempo, por exemplo, blogs, nomes de domínio, fotos que podem
apresentar conteúdo patrimonial. (PAIXÃO; KAI, 2020)
Diante disso, Adrian Paixão e Bruna Kai apresentam a distinção entre bens digitais e
bens virtuais:
Destarte, os bens digitais podem ter caráter existencial, patrimonial ou misto. Logo, cabe
destacar qual será a destinação dos bens do acervo digital do de cujus e as formas que o titular
do patrimônio digital possui para destinar livremente os seus bens digitais como veremos no
próximo item.
Em relação à destinação dos bens do acervo digital do falecido ainda não há legislação
específica que a regulamente. Em razão disso, é necessária a aplicação da legislação civil, que
traz disposições gerais sobre o direito sucessório, ao patrimônio digital do de cujus. Além disso,
há a possibilidade de regulamentar o acesso e a destinação dos bens digitais na Internet
conforme dispõem os termos de uso dos aplicativos e das redes sociais.
Sendo assim, nas redes sociais como o Facebook2 já é possível à escolha feita em vida
de transformar o perfil do usuário em um memorial para que as pessoas possam deixar
homenagens ao falecido ou pode ser feito o pedido de exclusão do perfil após a morte do usuário
2
Sobre as contas de memorial do Facebook. Disponível em:
https://www.facebook.com/help/1017717331640041/?helpref=hc_fnav&rdrhc. Acesso em: 10 nov. 2020.
256
feito por algum parente do falecido. O Instagram3 também permite a transformação do perfil
do usuário em memorial ou a solicitação da exclusão do perfil por meio de formulário online
realizado por um membro da família.
Diante disso, a sucessão está atrelada ao direito de propriedade e a sua função social
conforme disposto no artigo 5º, incisos XXII e XXIII da CF. A sucessão significa substituição,
isto é, o direito dos herdeiros de suceder o falecido recebendo o seu patrimônio e impedindo
que o patrimônio fique sem titular. (ROSA; RODRIGUES, 2020)
No Código Civil há dois tipos de sucessão post mortem: a sucessão legítima e a sucessão
testamentária. A sucessão legítima abarca os parentes que por Lei são herdeiros do falecido
respeitada a ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do CC, aonde os sucessores são os
descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro e os demais parentes até quarto grau na
linha colateral.
3
Memorial Instagram. Disponível em: https://www.facebook.com/help/instagram/231764660354188. Acesso em:
10 nov. 2020.
4
GOOGLE BRASIL. Gerenciador de contas inativas. Disponível em: https://myaccount.google.com/inactive.
Acesso em: 11 nov. 2020.
257
aos herdeiros necessários como os descendentes, o cônjuge, e os ascendentes conforme artigo
1.845 e 1.846 do Código Civil.
Dessa forma, os bens são transferidos automaticamente após a morte do seu titular aos
herdeiros do falecido, tendo em vista o princípio da saisine, mesmo que estes bens estejam em
posse de terceiros. (SILVEIRA, 2018).
Neste sentido, a pessoa deve ter plena liberdade para escolher a destinação de seus bens
digitais após a sua morte. O artigo 1.857, parágrafo 2º do Código Civil assegura que o
testamento será válido mesmo que contenha conteúdo extrapatrimonial, portanto fica superada
a tese de que o testamento somente poderá versar sobre conteúdo patrimonial como era disposto
no artigo 1.626 do revogado Código Civil de 1916. (TARTUCE, 2017).
Diante disso, Flávio Tartuce afirma que na herança digital o testamento deve ser
entendido em sentido amplo. Assim, a destinação dos bens do acervo digital do testador pode
ser realizada por legado, por codicilo para bens de pequena monta ou por manifestação realizada
nas redes sociais do testador indicando o destino dos seus bens digitais. (TARTUCE, 2017).
Em relação ao testamento é possível que a pessoa que detenha 16 anos de idade possa
realizar o seu testamento como ato de disposição de última vontade para escolher para quem irá
deixar os seus bens quando falecer, em conformidade com o artigo 1.860, parágrafo único. Na
Lei Civil há dois tipos de testamento: o testamento ordinário que abarca o testamento público,
o particular e o cerrado, e os testamentos especiais que são: o testamento militar, o marítimo e
o aeronáutico.
Já o codicilo é utilizado para bens de pequena monta conforme previsto no artigo 1.881
do Código Civil que cita:
Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado,
fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas
e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim
como legar móveis, roupas ou joias, de pouco valor, de seu uso pessoal. (BRASIL.
Lei 10.406, 2002, art. 1.881).
Mas caso a pessoa morra e não deixe nenhum testamento, codicilo ou manifestação na
empresa que administra seus dados na Internet, o seu patrimônio digital deve ser destinado à
sua família obedecendo à ordem de vocação hereditária nos termos do artigo 1.829 do Código
Civil. Cabe destacar que os Recursos Extraordinários nº 646721 e 878694 equiparam a união
estável ao casamento para fins sucessórios, julgando inconstitucional o artigo 1.790 do
Código Civil que trazia diferenças entre a união estável e o casamento para a sucessão dos
bens.
Augusto Bufulin e Daniel Cheida defendem que no silêncio do titular das redes sociais
e dos bens digitais, os seus herdeiros de comum acordo podem excluir seus bens digitais, e caso
não haja discordância entre os herdeiros, os bens digitais deverão permanecer ativos mesmo
que haja restrição ao acesso. (BUFULIN; CHEIDA, 2020).
Capítulo II-A
Da Herança Digital
Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo
o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:
I – senhas;
259
II – redes sociais;
III – contas da Internet;
IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança
será transmitida aos herdeiros legítimos.
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I – definir o destino das contas do falecido;
a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e
mantendo apenas o conteúdo principal ou;
b) apagar todos os dados do usuário ou;
c) remover a conta do antigo usuário. (BRASIL. Projeto de lei 4.847, 2012, art. 1.797-
A a 1.797-C).
O projeto de Lei nº 4.847/2012 buscou conceituar a herança digital citando que a herança
digital seria conteúdo intangível que possa ser acumulado em espaço virtual. O projeto de Lei
nº 4.847/2012 foi apensado ao projeto de Lei nº 4.099/2012 que pretendeu regulamentar a
herança digital permitindo a transmissão de todos os arquivos digitais e contas virtuais do
falecido para os seus herdeiros. Depois o projeto de Lei nº 4.099/2012 acabou sendo arquivado.
(BRASIL, Projeto de Lei 4.099, 2012, art. 1.788).
Destarte, os projetos de Lei que tentaram regulamentar a herança digital almejaram dar
aos familiares do falecido o poder de gerenciar sua conta virtual quando o usuário faleceu e não
deixou testamento, permitindo que eles possam excluir a conta, transformá-la em um memorial
ou apagar todos os dados do usuário. Contudo, vemos que os projetos de Lei não buscaram a
260
proteção da privacidade do falecido, mas, sim, pretenderam promover o direito de herança dos
herdeiros do de cujus.
O direito à herança está previsto no artigo 5º, inciso XXX da Constituição Federal, que
consagra o direito que a pessoa tem de poder transmitir o seu patrimônio deixado em vida aos
seus herdeiros bem como o direito que os herdeiros têm de receber aquela herança, já que o
direito de herança está intimamente ligado à ideia de propriedade privada. (BUFULIN;
CHEIDA, 2020).
O direito a privacidade do falecido deve ser respeitado, visto que mesmo com a morte
do titular dos bens digitais o seu direito de personalidade merece tutela jurídica nas palavras de
Livia Leal:
262
Com efeito, deve ser superada a análise puramente estrutural e setorial da
personalidade, pela qual se busca a sua proteção em termos apenas negativos, no
sentido de repelir eventuais violações, técnica esta derivada do direito de propriedade,
para que se considere tanto seu viés subjetivo, como capacidade para ser sujeito de
direitos, como seu viés objetivo, como bem juridicamente relevante, merecedor de
tutela jurídica. Sob essa ótica, portanto, mesmo após a morte do titular, a
personalidade, considerada valor, ainda pode ser objeto de tutela no ordenamento
jurídico. (LEAL, 2018, p. 193).
Livia Leal afirma que somente páginas ou contas que tenham a finalidade econômica,
por exemplo, transações financeiras e as contas de banco e as criptomoedas é que podem ser
transferidas aos herdeiros, pois possuem caráter patrimonial. Já as contas privadas como e-
mails, conversas de Whats app para a autora não podem ser transmissíveis aos herdeiros por
seu caráter existencial e pela proteção aos direitos de personalidade do de cujus; entretanto,
excepcionalmente poderia ser acessada a conta privada do falecido quando houver outro direito
existencial que seja preponderante ao direito do falecido. (LEAL, 2018).
Neste sentido com relação ao conflito entre direito a privacidade do falecido e ao direito
de herança, a decisão referente ao processo nº 0023375-92.2017.8.13.0520 da comarca de
Pompeu de Minas Gerais indeferiu o pedido de uma mãe que queria ter acesso aos dados
pessoais de sua filha falecida nos meios eletrônicos, na decisão prevaleceu o direito a intimidade
da filha falecida de não ter seus dados pessoas violados por seus familiares. (MINAS GERAIS.
Tribunal de Justiça, 2018).
Dessa forma, na colisão entre dois direitos fundamentais como o direito de herança e o
direito à privacidade do falecido. É importante destacar a diferença entre regras e princípios.
De acordo com Humberto Ávila as regras emanam normas comportamentais, retrospectivas e
descritivas, pois descrevem a conduta e o comportamento, assim como as proibições, já os
princípios são normas axiológicas, finalísticas, prospectivas, que estabelecem um estado ideal
de coisas. Logo, o direito de herança e o direito a intimidade seriam princípios jurídicos.
(ÁVILA, 2011).
263
Portanto, seria necessário fazer um sopesamento entre os direitos fundamentais em
colisão. Destarte, entendemos que deve ser resguardado o direito a privacidade do falecido em
relação aos seus bens digitais que possuam caráter existencial, e caso não haja manifestação em
vida do indivíduo permitindo o acesso dos familiares as suas redes sociais privadas, os seus
herdeiros não poderiam ter acesso as suas conversas, fotos, vídeos de sua conta privada. Além
disso, há o direito a privacidade do terceiro com quem o falecido conversou nas conversas por
Whats app, Facebook, etc. que também estaria sendo violada caso fosse permitido o acesso aos
sucessores do falecido nas suas contas das redes sociais.
5 CONCLUSÃO
A sociedade se transforma com o passar dos anos, e o direito deve sempre se atentar as
estas mudanças para regulamentar as relações jurídicas advindas dessas mutações. A sociedade
digital em que vivenciamos não pode mais ficar sem o devido respaldo jurídico em relação às
questões patrimoniais e sucessórias oriundas da internet e das redes sociais.
Mas para isso é importante que haja uma legislação que regulamente a questão da
sucessão dos bens digitais do falecido. Enquanto não há uma resposta da nossa legislação cabe
nos refletirmos sobre o assunto e tentarmos propor novas soluções jurídicas aos impasses das
relações jurídicas na internet.
Dessa forma, a Lei Geral de Proteção de dados não trouxe regulamentações sobre a
herança digital, no entanto, a Lei trouxe o conceito de dados pessoais que são os dados
pertencentes a pessoas físicas identificáveis e o conceito de dados pessoais sensíveis que são
dados sobre convicção religiosa, filosófica da pessoa física bem como seus dados genéticos e
informações sobre raça, vida sexual, etc.
Com relação aos bens de caráter patrimonial que seriam as moedas virtuais, livros,
músicas, jogos de videogame online, entendemos que estes são transferidos aos herdeiros do
falecido por terem conteúdo econômico.
264
Já os bens de caráter existencial que se relacionam com os direitos da personalidade do
falecido, como fotos, vídeos, mensagens privadas ou contas nas redes sociais, acreditamos que
não poderiam ser transmitidos aos herdeiros do de cujus caso não haja a sua autorização em
vida, seja a autorização feita pelas próprias plataformas digitais como Facebook e Instagram,
ou por meio de testamento ou codicilo.
Defendemos que há um interesse existencial nestes bens, deve haver a proteção aos
direitos de personalidade do falecido como o seu direito a privacidade e a intimidade. Embora
haja a colisão entre os direitos fundamentais que seria o direito fundamental a herança e o direito
fundamental a intimidade e vida privada, entendemos que como se tratam de princípios
fundamentais, não haverá a exclusão de um dos princípios, mas, sim, o sopesamento dos
princípios e dessa forma, compreendemos que a privacidade do falecido deve prevalecer, pois
não só seus interesses e intimidade estariam sendo violados, mas também a privacidade de
terceiros que por exemplo, tenham se relacionado com o falecido nas redes sociais através de
mensagens privadas, fotos, etc.
Por fim, há os bens digitais de caráter misto que possuem viés patrimonial e existencial
como uma fotografia feita por um fotógrafo ou um poema autobiográfico, também haveria a
discussão em relação a estes bens quanto a sua destinação após a morte de seu titular, pois como
apresentam caráter misto poderiam ser ou não objeto de sucessão a depender de sua
característica patrimonial e da vontade manifestada em vida por seu titular.
Portanto, cabe-nos ressaltar que alguns dos projetos de Lei que tentaram regulamentar
a herança digital não buscaram a proteção dos direitos da personalidade do falecido como o
direito a sua privacidade, pois almejaram garantir aos familiares do falecido o gerenciamento
de sua conta privada quando este não deixa testamento. Entretanto, outros projetos de Lei mais
recentes se preocuparam em tornar suscetíveis de transmissão apenas os bens digitais de cunho
econômico.
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A e os arts. 1.797-A a 1.797-C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
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Acesso em: 10 nov. 2020.
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Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet), a fim de dispor sobre a
destinação das contas de aplicações de internet após a morte de seu titular. Disponível em:
<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2139508&ord
=1>. Acesso em 11 nov. 2020.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.562, de 2017. Acrescenta o Capítulo II-A
e os arts. 1.797-A a 1.797-C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
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267
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São Paulo: Revista dos tribunais, 2017. p. 277-306.
268
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM - Um estudo da
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
RESUMO
A família, ao longo dos tempos, tem se mostrado uma das instituições mais mutáveis dentro do
cenário jurídico brasileiro. A partir da Constituição Federal de 1988, esta evolução tornou-se
mais evidente e acelerada. Os velhos padrões vêm caindo um a um, dando visibilidade a
importantes novos conceitos e olhares. Neste contexto surge, entre muitos outros pontos, o
conceito do afeto e, o dele decorrente, o conceito de socioafetividade. Não mais se torna
necessário, para a constituição de uma família, apenas a comprovação do requisito biológico
e/ou genético. Dito isso, este trabalho apresenta uma breve análise sobre a possibilidade de
reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, verificando o entendimento, do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de julgados objetivamente
destacados, que levam à conclusão de que existe esta possibilidade desde que haja um
sentimento recíproco entre as partes envolvidas e este possa ser comprovado judicialmente.
1 INTRODUÇÃO
A família é uma instituição em constante formação. Deve-se isso ao fato de que envolve
relações humanas e sociais. Cotidianamente encontram-se as mais diversas manifestações deste
antigo instituto. Laços sanguíneos, genéticos e de afinidade apenas não são mais os únicos
exigidos para sua configuração.
Pretende o presente artigo, sem nenhuma pretensão de esgotamento do tema, até mesmo
porque é um tema amplo e em intensa evolução com construções e desconstruções de conceitos
postos, analisar uma característica que vem se mostrando um importante instrumento na
definição atual de família, qual seja, o afeto.
1
Advogada na área de Direito Civil e de Família e Sucessões. OAB/RS 129.291, e-mail: vicplacerda@gmail.com.
2
Advogada na área de Direito de Família e Sucessões. Professora e Especialista em Direito Processual Civil.
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural e Doutora em Política Social e Direitos Humanos. OAB/RS
24.323, e-mail: giselaisaacsson@gmail.com.
269
Desta forma, para melhor elucidar o tema, dividiu-se o texto em três momentos distintos,
quais sejam: primeiro, pretende-se abordar a família como instituição que embasa o estudo que
se pretende desenvolver; segundo, será verificado o tema da paternidade socioafetiva com o
intuito de trazer-se uma maior fundamentação e segurança acerca de seus conceitos e noções; e
terceiro, será apresentada, por fim, uma análise da jurisprudência produzida no Tribunal de
Justiça gaúcho a contar de 2015 – sempre no intuito de buscar-se a atualidade do tema – sobre
a possibilidade de reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem.
2 DA FAMÍLIA
2.1 Conceito
3
Constituição Federal - Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
270
companheiros, os parentes da linha reta ou colateral e os afins, ou seja, os parentes do cônjuge
ou companheiro. Por fim, a concepção de família restrita seria a noção mais tradicional de
família, vinculados pelo matrimônio e a prole ou apenas a prole e um dos pais, a conhecida
família monoparental.
Todavia, essas acepções são meros conceitos jurídicos e, como tais, não espelham, de
forma fidedigna, a realidade das formações das famílias brasileiras na atualidade.
Assim sendo, hodiernamente, é possível entender família como a união de pessoas por
convivência, afeto, laços biológicos e/ou religiosos, em prol de estabilidade, proteção e
solidariedade, que residem ou não sob o mesmo teto e partilham de um propósito de vida em
comum.
Por fim, em conexão com o entendimento de Pamplona Filho e Pablo Gagliano (2023,
p. 18), compreende-se que não é possível se estabelecer um conceito único e absoluto de família
capaz de “delimitar a complexa e multifária gama de relações socioafetivas que vinculam as
pessoas, tipificando modelos e estabelecendo categorias.”.
Foi nesse momento que, para a lei, a família deixou de ser proveniente apenas do
matrimônio, passando a poder ser instituída pela união estável entre o homem e a mulher ou
ainda configurar-se como família a monoparentalidade, conforme os §§ 3º e 4º do artigo 226
da CF/88. Neste momento, família passou a ser denominada como entidade familiar com o
intuito de abarcar todas suas manifestações.
271
seus genitores.”. A referida vedação encontra-se prevista tanto no art. 227, §6º do texto
constitucional quanto do art. 1.596, do Código Civil de 2002.
O autor Rolf Madaleno (2021, p. 24) explica de forma bem clara o progresso legislativo
em relação aos modelos de relação familiar.
Dessa forma percebe-se, que, apesar da produção legislativa ser muito mais lenta que a
modificação social, considerando-se que essa se opera dia a dia na área familiarista, o legislador
brasileiro está atento às evoluções que estão ocorrendo e vem buscando regulamentar os novos
formatos e composições familiares que surgem com o único intuito único de garantir segurança
jurídica a todos os envolvidos.
272
d) Família homoafetiva: derivada pela formação de um casal do mesmo sexo, tendo o
reconhecimento pelos Tribunais Superiores acerca do casamento homoafetivo
(REsp 1.183.378-RS4, ADI 4.2775 e ADPF 1326)
e) Família reconstituída: derivada da união estável ou casamento em que um ou ambos
têm filhos de uma relação anterior.
f) Família ampliada: formada por parentes próximos quais a criança ou adolescente
convive e tenha laços de afetividade (art 25, parágrafo único, do ECA7).
g) Família substituta: originada pelo art 28 do ECA8, ela ocorre quando há o cadastro
à adoção.
h) Família anaparental: decorrente da falta de existência de ambos os pais. Deriva do
afeto entre pessoas parentes ou não parentes (REsp 57606 MG9).
i) Família eudemonista: a formação de uma família pelo vínculo afetivo na busca da
felicidade individual.
j) Família multiespécie: ainda não regulamentada, mas encontra-se em tramitação
Projeto de Lei n. 179/23 (Câmara dos Deputados) que prevê uma série de direitos
para os animais de estimação e regulamenta o conceito deste tipo de família10 como
aquela formada pelo núcleo familiar humano em convivência compartilhada com
seus animais. O texto garante aos animais de estimação o acesso à Justiça para defesa
ou reparação de danos materiais, existenciais e morais aos seus direitos individuais
e coletivos, cabendo ao tutor ou, na ausência ou impedimento deste, à Defensoria
Pública e ao Ministério Público representá-lo em juízo.
Um ponto fundamental a ser ressaltado é que, como pode-se observar em muitas das
famílias, demonstradas acima, tem como base de sua formação a afetividade, tema este que será
amplamente discutido nos tópicos a seguir, principalmente considerando o pano de fundo do
presente artigo que é discutir aspectos da paternidade socioafetiva.
4
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/10/2011
5
Rel. Min Ayres Britto, julgado em 05/05/2011
6
Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 05/05/2011
7
Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e
filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e
mantém vínculos de afinidade e afetividade.
8
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da
situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.
9
Rel. Min. Fontes De Alencar, julgado em 11/04/1995
10
https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2346910
273
3 DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
É considerado filiação socioafetiva aquela que não deriva da filiação biológica. Paulo
Lôbo (2023, p. 109) apresenta três possibilidades de filiação socioafetiva admitidas no Código
Civil de 2002, quais sejam:
11
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
12
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
13
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
14
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
15
Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo
admissível em direito:
I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;
II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.
274
3.1 Evolução
Além disso, como bem indica Pamplona Filho e Pablo Gagliano (2023, p. 227) “na
primeira metade do século XX, vigente o Código de 1916, e ainda incipientes as técnicas
científicas de investigação filial, a figura do pai quase que se confundia com a do marido.”.
Todavia, com a evolução das relações intersociais tal concepção já não é mais absoluta,
sendo a paternidade não mais ligada apenas com a questão biológica. Nesse sentido Paulo Lôbo
(2023) leciona que “toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem
biológica ou não-biológica”, e que a relação paterna não é mais exclusivamente dependente da
ligação biológica de pais e filhos.
Em conclusão, hoje mais do que nunca, o ditado popular “pai é quem cria” vê-se
revestido de acolhimento jurídico, posto que a real filiação é a cultural, ou seja, aquela que
acontece não pelos laços biológicos, mas em função da convivência com a criança e adolescente
(2021, p. 191).
Contudo, já em 1999 o autor José Bernardo Ramos Boeira (1999, p. 54) debatia sobre o
tema, afirmando a seguinte frase: “a própria modificação na concepção jurídica de família
conduz, necessariamente, a uma alteração na ordem jurídica da filiação, em que a paternidade
16
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial,
nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
17
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04102021-Quarta-Turma-veda-tratamento-
diferente-entre-pais-biologico-e-socioafetivo-no-registro-civil-multiparental.aspx
275
socioafetiva deverá ocupar posição de destaque, sobretudo para solução de conflitos de
paternidade.”.
Em 2016, passou pelo crivo do Supremo Tribunal Federal a discussão acerca de uma
eventual prevalência da paternidade socioafetiva em desfavor da paternidade biológica. Foi
fixada a tese de repercussão geral 62218, que estabeleceu o seguinte entendimento: a paternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo
de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
Por fim, Pamplona Filho e Pablo Gagliano (2023, p. 227) entendem que “no moderno
Direito Civil, é o reconhecimento da importância da paternidade (ou maternidade) biológica,
mas sem fazer prevalecer a verdade genética sobre a afetiva.”
Visto isso, no capítulo seguinte, serão examinados alguns acórdãos do Tribunal Gaúcho
onde será observado na prática a existência ou não da hierarquização entre as espécies de
paternidade, no entanto, em momento anterior ainda impende refletir um pouco sobre o
princípio do afeto e formação do vínculo socioafetivo conforme o próximo tópico.
18
RE 898060 SC – Rel. Min Luiz Fux, julgado em 21/09/2016
19
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325781&ori=1
276
advindas da família contemporânea, receptáculo de reciprocidade de sentimentos e
responsabilidades.”
Sendo assim, é muito abstrato tratar sobre a formação do vínculo socioafetivo, visto que
ocorre de formas singulares em cada situação concreta. Apesar disso, para que haja a
caracterização da posse de estado de filho a figura paterno-afetiva necessita cumprir diante da
sociedade a figura de pai, sendo esse responsável pela criação e desenvolvimento do filho,
priorizando “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.”.21
Dito isso, e por fim, encaminha-se o presente texto para buscar, junto à jurisprudência
do Tribunal de Justiça gaúcho, posicionamentos quanto ao tema paternidade socioafetiva
sobretudo quando este é discutido em situações após a morte do pretenso pai ou mãe, objeto
principal das presentes reflexões.
20
Rel. Min Nancy Andrighi, julgado em 04/02/2010.
21
Constituição Federal, art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
277
No intuito de entender melhor como se comportam, na prática, as decisões do Tribunal
gaúcho no que se refere à paternidade socioafetiva, sobretudo quando as alegações são
formuladas após a morte do pretenso pai, buscou-se no campo da pesquisa livre no sítio do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 22, as seguintes palavras-chave:
“paternidade socioafetiva” e morte.
Desta pesquisa resultaram vinte e dois julgados (vinte recursos de apelação, um agravo
de instrumento e um agravo interno) datados de 23/06/04 até o mais recente de 05/05/22, sendo
que todos tramitaram junto a Sétima e Oitava Câmara Cível daquele tribunal.
Através da busca feita, com base nos parâmetros supracitados, encontraram-se quatro
apelações cíveis a seguir expostas e analisadas.
A primeira apelação cível de nº. 70069738680, a ser estudada, foi julgada, pela Sétima
Câmara Cível tendo como relator Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, em
31/08/2016, com publicação em 02/09/2016, restando assim ementada. Vejamos:
Trata-se de uma ação negatória de paternidade post mortem. O caso fático revela que o
apelante, há época do nascimento, registrou a criança como seu filho fosse voluntariamente
(sem vício do ato jurídico). Ele e sua companheira haviam se separado e na ocasião que ele
pediu para retomarem a relação ela o informou que estava grávida e ele consentiu.
22
https://www.tjrs.jus.br/novo/buscas-solr/?aba=jurisprudencia&q=&conteudo_busca=ementa_completa
278
Ao fundamentar a decisão o relator lembra que: “o reconhecimento de filho é um ato
jurídico irrevogável e irretratável, ex vi do art. 1º da Lei nº 8.560/92 e do art. 1.609 do Código
Civil, sendo que a anulação do registro, para ser admitida, deve sobejamente demonstrar a
ocorrência de um dos vícios do ato jurídico, tais como coação, erro, dolo, simulação ou fraude.”.
Ademais, no entendimento dos julgadores, restou claro que o pedido de anulação não se
deu em razão de o apelante não reconhecer como se filho fosse, mas apenas numa tentativa de
se esquivar de prestar alimentos ao neto, em razão da morte do filho, então genitor.
A seguinte apelação cível de nº. 70081763773, a ser abordada, foi julgada pela Oitava
Câmara Cível do tribunal em questão, com relatoria do Des. Rui Portanova e com data de
julgamento em 23/04/2020 e publicação em 24/09/2020, e discute sobre uma paternidade
reconhecida em testamento. Segue a respectiva ementa:
Desprovido o recurso, por maioria, verifica-se que o voto da relatora tem como
fundamento a ausência de “uma prova inequívoca da vontade do pretenso pai socioafetivo” e
de que a relação deles caracterizava um bom relacionamento entre enteada e padrasto.
Por outro lado, o voto vencido do Des. Rui Portanova é firmado no sentido de havia
uma relação de paternidade socioafetiva, arrolando cartões em que a autora havia feito na
infância com mensagens chamando de pai.
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bilateral, ou seja, deve haver um liame entre pai e filho e vice-versa. Na falta do reconhecimento
de um desses lados, não haverá como se sustentar a socioafetividade.
Por fim, a apelação cível de nº. 50035281620158210019, também julgada pela Oitava
Câmara Cível, relator Des. Mauro Caum Gonçalves, julgada em 05/05/2022 e publicada em
19/05/2022 versa acerca de uma investigação de paternidade cumulada com pedido de anulação
de registro civil. Analisa-se a ementa:
Nesta situação fática, o autor ingressou com a ação aos 46 anos de idade após o
falecimento de seu pai registral. A decisão do relator é no sentido de não reconhecer a
paternidade biológica visto que “a paternidade, mais do que um mero fato biológico, é um fato
social e que ganha expressão no mundo jurídico dado o seu significado social.”, e que para
definir a existência de um vínculo de paternidade “vem sendo cada vez mais prestigiado o
critério da verdade socioafetiva e até, não raro, em detrimento da própria verdade biológica.”.
Em contraponto, há os votos vencidos dos Des. Ricardo Moreira Lins Pastl e Rui
Portanova. Nos votos, o fundamento central se dá em encontro ao RE 898060 SC (mencionado
e discutido nos tópicos acima), no intuito de declarar a multiparentalidade, resultando em
efeitos sucessórios e registrais.
5 CONCLUSÃO
Assim sendo, e partir dos entendimentos trazidos e analisados no último tópico, e em resposta
ao problema de pesquisa inicialmente proposto – “Qual a visão do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul no reconhecimento da paternidade socioafetiva?” – pode-se constatar
que os julgadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vêm acolhendo o
afeto em supremacia ao interesse patrimonial em ações nas quais são discutidos os
reconhecimentos de vínculos socioafetivos post mortem.
Verifica-se, nos julgados acima expostos, que a pura existência de um pai biológico não
é causa suficiente para negar-se a existência daquele que criou e deu seu amor durante os anos
de criação. Todavia, para que haja uma declaração de paternidade socioafetiva post mortem é
necessária inequívoca vontade do pretenso pai e prova acerca deste fato.
Assim, enquanto a atividade legislativa, morosa por natureza, não regula as situações de
fato que surgem dia a dia no tecido social, conta-se com o apurado, efetivo e preciso olhar das
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decisões judiciais para que sejam corrigidas eventuais e falhas e injustiças, tornando-se assim
uma sociedade mais atenta ao melhor convívio entre seus membros.
REFERÊNCIAS
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Cível. Relator Desembargador Rui Portanova, julgado em 23/04/2020. Disponível em:
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