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ORGANIZAÇÃO

Carlos Eduardo Lamas


Ana Luiza Berg Barcellos
Victor de Abreu Gastaud
Alexandre Torres Petry

NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO DE FAMILIA E


SUCESSÕES

Porto Alegre, 2023


Copyright © 2023 by Ordem dos Advogados do Brasil
Todos os direitos reservados

Recebimento dos textos, diagramação, ficha catalográfica


Jovita Cristina Garcia dos Santos

Projeto Gráfico e Capa


Victor Baldez Silva

Revisora
Dieniffer de Souza Silva Lemes

N848
Novos paradigmas do direito de familia e sucessões//, Carlos Eduardo Lamas, Ana
Luiza Berg Barcellos, Victor de Abreu Gastaud, Alexandre Torres Petry.
(Organizadores). – Porto Alegre: OABRS, 284p.

ISBN: 978-65-88371-29-9
1. Direito de família. 2. Sucessões. I. Título

CDU: 347.6
Bibliotecária Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB 10º 1.5717

CDU:cccc

A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos


assinados, serão de inteira responsabilidade do(s) autor(es).

Escola Superior de Advocacia da OAB/RS


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COOABCred-RS

Presidente: Jorge Fernando Estevão Maciel


Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

PREFÁCIO - Victor de Abreu Gastaud .................................................................................. 8


APRESENTAÇÃO - Carlos Eduardo Lamas e Ana Luiza Berg Barcellos.......................... 9
UNIÃO ESTÁVEL, AUTONOMIA PRIVADA E REGIME DE BENS FIXADO
RETROATIVAMENTE - Ana Luiza Berg Barcellos............................................................ 11
O REGIME DE BENS NA UNIÃO ESTÁVEL QUANDO INCIDENTE CAUSA
SUSPENSIVA - Ana Regina Costa Martins ......................................................................... 24
LEGADOS NO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO DE DEPENDENTES ECONÔMICOS -
Anna Carolina Grehs Sulzbach e Nicole Cavalli Gomes da Silva...................................... 41
ALIENAÇÃO PARENTAL E SUA NECESSÁRIA REGULAMENTAÇÃO LEGAL - Carlos
Eduardo Lamas ...................................................................................................................... 55
FIXAÇÃO DE RESIDÊNCIA BASE NA GUARDA COMPARTILHADA E SUA RELAÇÃO
COM A ALIENAÇÃO PARENTAL - Carlos Eduardo Lamas e Marina Kayser
Boscardin ................................................................................................................................. 69
A NATUREZA JURÍDICA DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS E SUA
IMPORTÂNCIA NA APLICAÇÃO PRÁTICA - Carlos Eduardo Lamas e Sônia Brizolara
Fortunato da Silva .................................................................................................................. 81
MULTIPARENTALIDADE: A AFETIVIDADE COMO FATOR DETERMINANTE DA
PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA - Fernando Ferreira de Alcântara e José Weidson
de Oliveira Neto ...................................................................................................................... 91
AÇÃO DE EXIGIR CONTAS COMO MEIO VIÁVEL À FISCALIZAÇÃO DA
PRESTAÇÃO ALIMENTAR DOS FILHOS MENORES - Gisela Brum Isaacsson .......... 112
CONSTRUINDO PONTES: ADVOCACIA COLABORATIVA E A ABORDAGEM
INTERDISCIPLINAR NO ÂMBITO DO DIREITO DE FAMÍLIA E SUCESSÕES - Grasiela
de Souza Thomsen Giorgi, Marilene Marodin e Maria Izabel Severo ........................... 126
A RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CASOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL: O DANO
MORAL SOFRIDO PELO GENITOR ALIENADO - Jéssica Nobre Weber...................... 147
MOROSIDADE NOS PROCEDIMENTOS DE ADOÇÃO NO BRASIL: DESAFIOS E
PERSPECTIVAS À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA -
Leandro Barbosa de Araujo e Francineide Barbosa de Araújo Costa ............................ 168
A FAMÍLIA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS DE NIKLAS
LUHMANN - Mariana Galvan dos Santos e Ana Júlia Cecconello Folle ........................ 189
NEGLIGÊNCIA AFETIVA: A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS PAIS PELO
ABANDONO AFETIVO - Nathane Von Ahn e Ana Regina Costa Martins.................... 201
A ORDEM NATURAL DOS PAPÉIS SOCIAIS FAMILIARES - Rafaela Peres
Castanho ................................................................................................................................ 216
“STRANGER THINGS” E DIREITO DE FAMÍLIA “IN STREAMING”: EXPLORANDO AS
RELAÇÕES ENTRE A SÉRIE E AS DINÂMICAS FAMILIARES - Roberta Drehmer de
Miranda e Gabrielle da Silva Wilhelm ............................................................................... 227
A CONTRATUALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E A VALORIZAÇÃO DA
AUTONOMIA PRIVADA - Rochele da Silva Madruga .................................................... 242
HERANÇA DIGITAL: REFLEXÕES SOBRE O DIREITO A HERANÇA E O DIREITO A
INTIMIDADE DO FALECIDO - Sara Daniela Silva de Souza.......................................... 253
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM - UM ESTUDO DA
JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO
SUL - Victoria Pérez Lacerda Rangel e Gisela Brum Isaacsson ...................................... 269
8

PREFÁCIO

Com enorme satisfação, a Escola Superior de Advocacia do Rio Grande do Sul e demais
organizadores deste e-book me honraram com convite para redigir o prefácio desta
relevantíssima obra, denominada “Novos paradigmas do direito de família e sucessões”.
Trata-se, pois, de projeto vanguardista, ponderado conjuntamente pela ESA/RS, por
intermédio de Alexandre Torres Petry – diretor de e-books e da revista eletrônica da instituição
–, e pela Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da Subseção de Pelotas,
capitaneada pelos ilustres e operosos presidente e vice-presidente: Carlos Eduardo Lamas
Santos da Silva e Ana Luiza Berg Barcellos, respectivamente.
Este importante material contempla dezoito artigos, redigidos por advogados e
advogadas dedicados ao estudo e à prática do direito de família e sucessões, a partir dos temas
mais contemporâneos acerca da matéria. Formou-se, assim, um substancioso compilado de
textos, os quais, certamente, engrandecerão o conhecimento dos profissionais voltados às
questões que tangenciam essa sensível área do direito e do pensamento jurídico.
Nesse sentido, cumprimento, muito efusivamente, não apenas os seus organizadores,
mas, também, cada uma das pessoas que dedicou parcela relevante de seu tempo para elaborar
os excelentes artigos selecionados. Da mesma forma, agradeço, em nome da Subseção de
Pelotas, o pronto acolhimento da ESA/RS à proposta formulada.
Esta iniciativa, certamente, suscitará outros projetos desta natureza, que virão para
proporcionar espaço genuinamente de valorização e capacitação da advocacia, sem descuidar
de admirável mister da ESA/RS: ascender o nível cultural de advogadas e advogados gaúchos.
Invito, assim, às leitoras e aos leitores, que usufruam deste e-book, e empreguem o seu
conteúdo no exercício da advocacia, bem como na academia, pois, a toda evidência, será de
enorme proveito. Esta é, seguramente, uma proposta da Subseção de Pelotas, da ESA/RS e da
Seccional gaúcha, liderada pelo presidente Leonardo Lamachia, comprometido a atender, sem
medir esforços, aos pleitos da classe e, sobretudo, ao aprimoramento intelectual e profissional
daqueles que compõem o quadro de advogadas e advogados de nosso Estado.

Victor de Abreu Gastaud


Presidente da Subseção de Pelotas
9

APRESENTAÇÃO

São cada vez mais intensas e constantes as mudanças ocorridas na família brasileira, o
que implica em uma necessária transformação também no direito de família e sucessões.
O percurso percorrido pela legislação (mesmo que atrasada às demandas
contemporâneas) e jurisprudência bem exemplifica este dinamismo: em menos de um século,
saímos de um patriarcado e caminhamos à possibilidade de famílias poliafetivas, multiparentais
e até mesmo multiespécie.
Incontestável que a doutrina familista é uma das grandes responsáveis pelos avanços no
reconhecimento dos direitos aplicados aos sujeitos destes núcleos familiares, uma vez que
muitas das transformações se deram em âmbito jurisprudencial, com fundamento único e
exclusivo em teses doutrinárias, tendo em vista a legislação em total atraso com a sociedade
contemporânea.
O interesse que a advogada e o advogado familista despertam ao estudo constante é o
que nos impulsionou, como representantes da Comissão Especial de Direito de Família e
Sucessões da Subseção de Pelotas, a criar este projeto, automaticamente abraçado pela diretoria
da OAB Pelotas, na qual agradecemos na pessoa de seu presidente, Victor Gastaud.
Diante destes motivos, a Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB
Pelotas, em conjunto com a Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil
– Seccional do Rio Grande do Sul, resolveram lançar o E-book Novos Paradigmas do Direito
de Família e Sucessões.
Novos paradigmas desafiam novos modelos, abordagens contemporâneas. Os autores
se desincumbiram deste desafio, com um olhar sensível ao que os temas exigem.
O E-book Novos Paradigmas do Direito de Família e Sucessões agrega trabalhos que
contemplam tanto as questões existenciais, como as matérias do direito de família e sucessório,
com reflexões voltadas às complexidades doutrinárias e jurisprudenciais em assuntos
controvertidos e inovadores.
Os dezoito artigos permeiam os mais diversos e atuais assuntos. Destacamos nesta
apresentação alguns ramos de reflexão que o leitor encontrará neste E-book.
A temática da autonomia de vontade e da contratualização no direito de família vem se
mostrando de grande relevância às famílias contemporâneas, as quais, por força de suas
especificidades, inclusive patrimoniais, precisam fixar cláusulas que regrarão a relação de
forma personalizada, impondo-se, pois, reflexão acerca da mitigação das interferências estatais
10

frente a autonomia privada. Na seara das questões patrimoniais no âmbito familiar, a obra
contempla, também, o estudo acerca do regime de bens aplicável à união estável nos casos de
causa suspensiva ao casamento.
Outros temas sobre os quais o E-book não poderia se furtar na abordagem são os
pertinentes ao abandono afetivo e à alienação parental, assuntos de imensa relevância psíquica,
social e jurídica, e sobre os quais os operadores do direito precisam estar atentos e zelosos em
seu trato, visando, assim, o melhor atendimento dos interesses das crianças e adolescentes, os
quais são as vítimas das práticas desta natureza.
Aspectos relacionados à prática profissional e à morosidade de procedimentos na seara
do direito de família também permeiam o E-book ora lançado. No primeiro tópico, a discussão
acerca da advocacia colaborativa e a necessária abordagem interdisciplinar são expostas para
contribuir com a atuação profissional dos advogados das áreas de direito de família e sucessões.
E, na segunda temática, são expostas as necessárias reflexões acerca dos procedimentos de
adoção no Brasil e sua morosidade, que tantos danos causam aos adotandos em potencial.
Ainda no campo do direito das famílias, temáticas relacionadas à prestação alimentar de
natureza compensatória e, também, acerca da possibilidade da ação de exigir contas para
fiscalização da destinação da verba alimentar, estão contempladas no presente E-book.
Por fim, a reflexão acerca dos papéis sociais familiares, o estudo das famílias como
sistema social à luz da teoria luhmanniana e, ainda, a investigação sobre a construção de
relações de multiparentalidade e da paternidade socioafetiva post mortem, contribuem para
reflexão dos leitores.
Já no campo no direito sucessório os assuntos expostos igualmente se mostram atuais,
com a exposição de temáticas relacionadas à herança digital e a constituição de legados.
Visando, pois, a colaborar para o aperfeiçoamento técnico dos profissionais direito na
área do de família e sucessões, rogamos que o presente E-book auxilie na necessária atuação
técnica que se impõe aos operadores do direito.
Agradecemos aos envolvidos nesta produção, em especial aos autores e autoras.
Votos de uma excelente leitura!

Carlos Eduardo Lamas


Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção
Pelotas/RS
Ana Luiza Berg Barcellos
Vice-Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção
Pelotas/RS
11

UNIÃO ESTÁVEL, AUTONOMIA PRIVADA E REGIME DE BENS


FIXADO RETROATIVAMENTE

Ana Luiza Berg Barcellos1

RESUMO

A união estável, nas últimas décadas, consolidou-se como um dos formatos de constituição das
famílias. Ao longo do tempo, o ordenamento jurídico foi sendo constituído e atualizado para
acompanhar os anseios sociais neste campo. O Poder Judiciário, por sua vez, pronunciou-se de
forma inédita em inúmeras circunstâncias, assegurando proteção jurídica aos indivíduos. Os
operadores do Direito desafiam-se, diariamente, na investigação e constituição de mecanismos
capazes de protegerem os direitos dos cidadãos. A fixação da retroatividade do regime de bens
na união estável representa um dos desafios para o tormentoso tratamento patrimonial nas
uniões estáveis, encontrando-se, contudo, resistência no Poder Judiciário. Os profissionais do
Direito, porém, seguem defendendo os interesses dos conviventes, argumentando - respeitosa
e fortemente - o equívoco dos Julgadores. Neste artigo, então, o tema da autonomia privada no
Direito das Famílias é objeto de breves reflexões, sendo associado ao assunto da retroatividade
do pacto de convivência no que tange ao regime de bens.

Palavras-chave: união estável; regime de bens; retroatividade; autonomia privada; liberdade.

1 INTRODUÇÃO

Todos sabemos que nas últimas décadas muito se vem discutindo acerca da intervenção
do Estado no Direito das Famílias. As mudanças sociais demonstram a necessidade de serem
revistas as normas não mais compatíveis com as características e anseios sociais, especialmente
porque o Direito das Famílias ainda se via vinculado ao modelo do Código Civil de 1916,
inobstante o Código Civil de 2003 tenha apresentado inúmeros avanços. Neste ponto, sublinha-
se que ainda seguimos sofrendo com influências históricas de natureza cultural e jurídica no
Direito das Famílias, mas desenvolvendo e ampliando novas conjecturas, as quais se propõem
a atender as demandas e necessidades da sociedade contemporânea.

1
Advogada (OAB/RS 55626); Coordenadora do Curso de Direito das Faculdades João Paulo II – Polo Pelotas;
Vice-Presidente do Núcleo Pelotas do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM); Especialista em
Direito Processual Civil pela PUCRS; Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Escola Brasileira de
Direito Mestre em Educação pela UFPEL e Doutora em Política Social e Direitos Humanos pela UCPEL. E-mail
analuiza@mmouraadvogados.com.
12

Hodiernamente, um dos tópicos de suma relevância no âmbito jurídico familiar é a


possibilidade e os limites para a contratualização entre cônjuges e companheiros.

Atentando, assim, a evolução do Direito das Famílias, aos anseios e receios da sociedade
atual, especialmente decorrentes das alterações na forma como as relações afetivas se
constituem, é que observamos a necessidade de nos debruçarmos sobre os aspectos de liberdade
contratual e autonomia privada focados no Direito das Famílias.

O presente artigo, então, objetiva apresentar o tema da contratualização no âmbito do


Direito das Famílias, em especial a questão da fixação retroativa do regime de bens vigorante.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Sabemos que a Constituição Federal de 1988 consolidou inúmeras e necessárias


alterações em nosso ordenamento jurídico, destacando-se, por exemplo, no §5º do art. 206, o
exercício igualitário do direitos e deveres da sociedade conjugal entre os homens e as mulheres.
O reconhecimento de outras formas de família, para além daquela constituída pelo casamento,
com o acolhimento da união estável e das famílias monoparentais e, ainda, reconhecendo a
igualdade entre os filhos, concedendo os mesmos direitos, independentemente da origem
destes, são avanços significativos. Tais questões eram, naquele tempo, indispensáveis à
proteção social, pois o ambiente sociológico impunha o olhar e o cuidado pelo Direito daquela
conjuntura social.

Todavia, a sociedade não parou, as transformações persistem em nosso cotidiano.


Vejamos que as mudanças em diversas searas da sociedade ocorreram desde a revolução no
campo e na cidade, com o uso de tecnologias, mas também, e especialmente, trouxeram
transformações comportamentais. Neste viés, observamos a necessidade de que cada vez mais
as decisões sejam tomadas rapidamente, movimento este especialmente fortalecido pelos meios
de comunicação, como, por exemplo, os aplicativos de mensagens instantâneas. Em um
contexto atual, de globalização, eliminação das distâncias e das fronteiras territoriais,
observamos que a socialização transportou-se do universo físico e presencial para também
contemplar o ambiente virtual e, é neste contexto, que as relações familiares e afetivas também
sofreram profunda mudança, tornando-se – algumas ou muitas vezes – voláteis.

O Direito, por sua vez, em especial o Direito das Famílias, deve acompanhar tal
conjuntura, transformando, promovendo e acolhendo mecanismos técnicos que confiram
segurança jurídica.
13

O Código Civil de 2002, é, assim, um destes instrumentos do Direito, que objetivou


acolher na esfera jurídica as mudanças sociais, todavia, não tem sido o corpo legislativo capaz
de acompanhar a velocidade das transformações. De todo modo, temos diretrizes desta norma
que permitem uma interpretação constantemente atualizada, sendo, porém, fundamental que
operadores do Direito estejam atentos a tais premissas.

Há uma passagem de Miguel Reale (2001), abordando o teor do Código Civil de 2002,
que tomamos a liberdade de compartilhar no início deste artigo por ser, sem dúvida, expressão
dos desígnios desta norma e contributivo para a abordagem aqui proposta. Vejamos:

Quando entrar em vigor o novo Código Civil, perceber-se-á logo a diferença entre o
código atual, elaborado para um país predominantemente rural, e o que foi projetado
para uma sociedade, na qual prevalece, em grande parte, a vida urbana. Haverá uma
passagem do individualismo e do formalismo do primeiro para o sentido socializando
do segundo, mais aberto às mutações sociais, com substancial mudança no paradigma
jurídico-social.
Além disso é superado o apego a soluções estritamente jurídica, reconhecendo-se o
papel que na sociedade contemporânea voltam a desempenhar princípios de boa-fe e
correção, para que possa haver real concreção jurídica.
Sociedade e eticidade condicionam os preceitos do novo Código Civil, no qual
desempenham grande papel as normas ou cláusulas abertas.

O atual Código Civil está assentado em três diretrizes que nortearam a sua construção
legislativa, e seguem orientando sua interpretação, quais sejam: socialidade, eticidade e
operabilidade. Muita sinteticamente, temos que princípio da socialidade está relacionado ao
preceito constitucional de solidariedade social, visando compor os interesses individuais e
sociais nas relações constituídas. O princípio da eticidade visa preservar relações pautadas pela
ética, pela confiança nas relações instituídas e, em especial, pela boa-fé objetiva, que pressupõe
conduta leal, que permita a manutenção da confiança e das expectativas do negócio. Por fim, o
princípio da operabilidade visa proporcionar caráter de fácil manejo do Código Civil, com
estrutura hermenêutica, por exemplo, que se vale de cláusulas abertas, visando, também,
contemplar tratamento jurídico também aos avanços e às mudanças sociais. Há uma situação
de Judith Martins Costa (2002, p. 160) que bem pontua tal viés:

[...] é preciso ter presente sua nova racionalidade, que, não mais pretendendo tudo
regular, requer as contribuições da doutrina e da jurisprudência para continuar e
completar a sua força normativa, postulando, por igual a consciência de todos os
cidadãos, destinatários do Código – os reais construtores de sua normatividade – de
que ‘não existe a plenitude do Direito escrito, mas sim a plenitude ético-jurídica do
ordenamento.
14

Para compreendermos a temática da autonomia privada e da liberdade contratual,


precisamos contextualizar tal preceito no Código Civil de 2002, em especial à luz do princípio
da eticidade, pois, ao contrário do que se possa cogitar à primeira vista, liberdade contratual
não significa ausência de limites para a manifestação de vontade daqueles que pactuam.
Devemos, ainda, atentar ao fenômeno sociológico do afeto como relevante tópico a ser
considerado para orientação do Direito das Famílias contemporâneo.

O respeitado e tradicional doutrinador Paulo Lobo (2008, p. 47/48) é quem cunhou, pela
primeira vez, em 1999, o status de princípio jurídico ao afeto, sendo sua lição no sentido de que
o princípio da afetividade consolida o Direito das Famílias com atenção na estabilidade das
relações afetivas e na comunhão de vida, sobrepondo-se estas sobre os aspectos relacionados
aos vínculos biológicos ou, ainda, questões de natureza patrimonial.

Embora o status concedido ao afeto, e o desenvolvimento do princípio da afetividade


como uma diretriz ao Direito das Famílias, Dimas Messias de Carvalho, no artigo Parentalidade
Socioafetiva e a Efetividade da Afetividade, publicado nos Anais do IX Congresso Brasileiro
de Direito das Famílias: Pluralidade e Felicidade, leciona a relevância da adequada
compreensão sobre a distinção entre os institutos “afeto” e “afetividade”:

Necessário no princípio da afetividade, em razão de vários equívocos que vêm sendo


cometidos, distinguir a afetividade, como valor jurídico, do afeto, como estado
psicológico, como sentimento. Da mesma forma que no Direito das Obrigações a
vontade como valor jurídico é a conscientemente externada, objetiva, no Direito das
Famílias também não se confundem o afeto, como sentimento, com a afetividade
externada por comportamentos, por condutas objetivas.

Nesta linha de pensamento, Ricardo Calderón (2017, p. 153) organiza tal tema nos
seguintes termos:

AMOR É estranho ao Direito e às suas atuais categorias


jurídicas

AFETO Sentimento anímico de aspecto subjetivo


(inapreensível de forma direta pelo Direito)

AFETIVIDADE Atividade exteriorizadora de afeto; conjunto de atos


concretos representativos de um dado sentimento
afetivo por outrem (esses atos concretos são captáveis
pelo Direito, pelos seus meios usuais de prova)
15

SOCIOAFETIVIDADE Reconhecimento no meio social de uma dada


manifestação de afetividade, percepção por uma dada
coletividade de uma relação afetiva (repercussão
também captável pelo Direito, pelos seus meios usuais
de prova)

Percebe-se, pois, que tanto a afetividade, como a socioafetividade, são assinaladas como
condição exteriorizada e percebida no meio social, sendo, em consequência deste
reconhecimento pela coletividade, que as implicações jurídicas e o tratamento pelo Direito
merece atenção.

Reconhecendo-se, como referido acima, a necessidade de proteção jurídica à


afetividade, enquanto princípio basilar das relações de natureza familiar, nasce, também, a
indispensabilidade de ser conferida profunda atenção à liberdade e à autonomia dos sujeitos
para manifestarem suas vontades na regulação dos tratos assentados na afetividade. Contudo, o
Poder Judiciário Brasileiro sinaliza caminhar na contramão de tal entendimento.

No ano de 2022, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar um Agravo em Recurso


Especial (AREsp 1.631.112), entendeu que a definição do regime de bens a regular a união
estável não tem efeito retroativo, vigorando ex-nunc.

No caso concreto, o STJ deu provimento ao recurso especial que pretendia a reforma de
acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, no qual houve o pronunciamento no sentido do
cabimento da retroatividade da escolha do regime de bens feita pelo casal, no caso, separação
convencional de bens.

A união estável, na hipótese sob julgamento, vigorava faticamente desde maio de 2000,
sendo apenas em 2008 que as partes formalizaram a relação, fixando, então, o regime de
separação de bens de forma retroativa ao início da união. Quando, porém, realizada a dissolução
da relação, uma das partes buscou no Poder Judiciário anular a cláusula acerca do regime de
bens, não obtendo êxito nas instâncias ordinárias, mas vendo a tese acolhida no Superior
Tribunal de Justiça.

No âmbito do STJ, os ministros pronunciaram-se pela irretroatividade dos termos


pactuados, sendo, ainda, ressaltado pela Ministra Maria Isabel Gallotti, que a alteração do
regime de bens mesmo na união estável depende de autorização judicial, aplicando-se, por
16

analogia, as regras do art. 1639, §2º, Código Civil, no qual restam previstas as exigências para
alteração do regime de bens no casamento.

O Ministro Raul Araújo, de outro lado, restou vencido, sublinhando o posicionamento


de que não se deve comparar as normas de alteração do regime de bens no casamento, para o
qual se exige autorização judicial, com a hipótese da união estável, pois esta tem a
informalidade como premissa e, portanto, quando as partes optam por formalizar e escolhem o
regime de bens com efeitos retroativos, está-se diante da primeira fixação pelas partes, e não
alteração do regime. Visando demonstrar de modo fidedigno o voto do Ministro Raul Araújo,
abaixo segue a transcrição do mesmo:

No caso da união estável, temos que se dá sem as formalidades inerentes ao


casamento, sendo mais difícil, para terceiros, constatar a precisa data de seu início,
especialmente se os companheiros divergem acerca disso. Então, temos de ver se
tratamos aqui de alteração do regime de bens na união estável, porque, em algum
momento anterior, os conviventes teriam optado por um determinado regime e agora
querem alterar esse regime anteriormente formalizado para outro. Essa hipótese, seria,
a meu ver, coincidente com a regra e a exigência prevista no § 2º do art. 1.639. Mas,
se a união estável teve início e perdurou até um ponto em que veio uma primeira
formalização de regime de bens, sem expressa adoção anterior de outro regime, não
estaremos a falar propriamente de alteração do regime de bens e sim da própria
instituição ou formalização do regime de bens sempre prevalente entre aqueles
conviventes. Nessa segunda hipótese. Quer dizer, ressalvado o caso de os conviventes
terem anteriormente optado por um determinado regime, e formalizado essa opção,
estando agora a pretender alterar tal regime, e nesse caso a mudança teria de ser
perante o juiz, teríamos ou não o caso de aplicação da regra do § 2º do art. 1.639.
Porque, se antes não havia regime de bens formalizado entre os conviventes, o que
fizeram por último foi apenas formalizar o regime de bens da união informalmente já
ajustado entre os conviventes, dispondo sobre direitos disponíveis, o que me parece
possível. Não se estaria, nessa hipótese, a tratar de alteração de regime, mas, sim,
da lícita instituição ou formalização do regime que, desde o início da união, entre
eles vigorava. Isso, porque ninguém os terá forçado a assim proceder, salvo se
houver alegação nesse sentido. Anoto que, sempre, em toda e qualquer hipótese
em que se dê a disposição acerca de regime de bens, ficam ressalvados os direitos
de terceiros, que tenham confiado na existência daquele casal. Faço essas
apreciações indagando se, no caso, os conviventes haviam anteriormente formalizado
regime diferente daquele por último escriturado, configurando, assim, agora, uma
mera formalização do regime informalmente instituído ou uma efetiva alteração. Sem
a resposta acerca da indagação, entendo que, neste caso, não tratamos de alteração de
regime de bens, mas, sim, de formalização do regime de bens vigente na união estável.
E considero, por isso, possível o efeito retroativo, pois os direitos são disponíveis.
As partes apenas compareceram a Cartório e fizeram o pacto, formalizando o regime
de bens desde o início vigente na comunhão estável. (grifamos) (AREsp 1.631.112,
www.stj.jus.br)

De outro lado, respeitosamente, divergindo do argumento exposto pelo Excelentíssimo


Ministro, no sentido de que o ato de formalizar o regime vigorante para a união equipara-se à
instituição do mesmo, entendemos que o Julgador desconsiderou o regime da comunhão parcial
17

de bens como o regime legal, o qual vigora independentemente da manifestação de vontade das
partes. Independentemente desta ressalva, entendemos, todavia, que a interpretação do Ministro
é coerente e razoável na perspectiva de que a união estável sempre esteve pautada, desde o seu
surgimento, pela informalidade. Por conseguinte, sendo a matéria do regime de bens direito
disponível, foge à plausibilidade o tratamento igualitário que o Poder Judiciário tenta conferir
entre casamento e união estável, equiparando institutos que historicamente pautaram-se pela
distinção no viés da (in)formalidade.

Corroborando, ainda, os argumentos interpretativos do Ministro Raul Araújo,


especialmente o aspecto relacionado à informalidade da união estável e o anseio dos
conviventes neste tipo de relação, localizamos o entendimento da Tabelião de Notas Priscila
Agapito, que destaca os aspectos culturais da união estável, a característica do instituto como
sendo uma situação de fato e pautada pela informalidade. Portanto, seria mais coerente com as
premissas do instituto permitir que os interessados efetivamente disciplinem sua relação.
Ademais, sublinha a Tabeliã a percepção de que a jurisprudência evoluiu de forma inadequada,
dissociada dos reais interesses sociais, pois muitas vezes é difícil fixar o termo inicial da união
estável, portanto, igualmente complexa delimitação do regime patrimonial vigente.
(AGAPITO, 2022)

O que percebemos é que, embora nas últimas décadas haja um movimento para o Direito
das Famílias mínimo, ou seja, cada vez mais a intervenção do Poder Judiciário nas relações
privadas seja diminuta, por vezes, o Judiciário surpreende a sociedade com decisões do gabarito
da exposta, a qual, inclusive, não é exatamente uma posição inovadora, pois em anos anteriores
já tivemos pronunciamentos desta estirpe.

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE


INSTRUMENTO NA ORIGEM - INVENTÁRIO - DECISÃO MONOCRÁTICA
QUE PROVEU O APELO NOBRE. INSURGÊNCIA DA COMPANHEIRA
SUPÉRSTITE. 1. Nos termos da jurisprudência desta Corte, a eleição de regime de
bens diverso do legal, que deve ser feita por contrato escrito, tem efeitos apenas ex
nunc, sendo inválida a estipulação de forma retroativa. 2. Na linha dos precedentes do
STJ, os argumentos trazidos em agravo interno que não foram objeto do acórdão do
Tribunal a quo, nem das contrarrazões ao recurso especial, não são passíveis de
conhecimento, por importar em inovação recursal, a qual é considerada indevida em
virtude da preclusão consumativa. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp
1751645/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em
04/11/2019, DJe 11/11/2019.)
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS
FAMÍLIAS. ESCRITURA PÚBLICA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO
ESTÁVEL. REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS. ATRIBUIÇÃO DE EFICÁCIA
RETROATIVA. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES DA TERCEIRA TURMA.
1. Ação de declaração e de dissolução de união estável, cumulada com partilha de
bens, tendo o casal convivido por doze anos e gerado dois filhos.
18

2. No momento do rompimento da relação, em setembro de 2007, as partes


celebraram, mediante escritura pública, um pacto de reconhecimento de união estável,
elegendo retroativamente o regime da separação total de bens.
3. Controvérsia em torno da validade da cláusula referente à eficácia retroativa do
regime de bens.
4. Consoante a disposição do art. 1.725 do Código Civil, "na união estável, salvo
contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que
couber, o regime da comunhão parcial de bens".
5. Invalidade da cláusula que atribui eficácia retroativa ao regime de bens pactuado
em escritura pública de reconhecimento de união estável.
6. Prevalência do regime legal (comunhão parcial) no período anterior à lavratura da
escritura. [...] 9. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. (REsp 1597675/SP, Rel.
Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em
25/10/2016, DJe 16/11/2016)

De todo modo, o ponto central neste assunto é: diante deste tipo de entendimento,
exarado pelo Superior Tribunal de Justiça, como restam, os princípios da autonomia privada,
da liberdade contratual neste contexto?
Parte considerável da doutrina brasileira vem se posicionando no sentido de ser
perfeitamente viável a contratualização no Direito das Famílias, justamente por respeito à
autonomia privada, devendo, entretanto, respeitar-se as normas cogentes, como é premissa
básica do direito pátrio.
A título ilustrativo, Flávio Tartuce (2021) arrola algumas matérias cujas cláusulas serão
nulas se previstas em pacto antenupcial ou em contrato de convivência:

a) previsão contratual que estabelece que o marido, nos regimes da comunhão


universal ou parcial de bens, possa vender imóvel sem outorga conjugal, afastando o
art. 1.647, inc. I, do CC; b) cláusula que determina a administração dos bens de forma
exclusiva pelo marido, pois a mulher é incompetente para tanto, afastando a isonomia
constitucional; c) cláusula que estabeleça a renúncia prévia aos alimentos, infringindo
a absoluta regra do art. 1.707 do CC; d) cláusula que regulamenta previamente as
regras referentes à guarda dos filhos, para o caso de divórcio do casal; e) cláusula que
imponha multa para caso de infidelidade, sendo certo que as perdas e os danos não
podem ser fixados previamente em casos tais, pois a eventual responsabilidade que
surge do fim do vínculo tem natureza extracontratual, envolvendo questões de ordem
pública; f) cláusula que afaste o regime da separação obrigatória de bens nas hipóteses
descritas pelo art. 1.641 do CC; e g) cláusula que exclui expressamente o direito
sucessório do cônjuge sobrevivente, afastando as regras da sucessão legítima e
trazendo a renúncia prévia à herança, havendo claro pacto sucessório, em infringência
ao art. 426 do Código Civil.
A respeito do último exemplo, a propósito, em hipótese concreta em que houve a
tentativa de se criar um regime de separação total de bens com efeitos sucessórios,
para que não houvesse herança no caso concreto, violando a proibição das pacta
corvina, julgou-se que "as normas de direito sucessório dispostas no Título II,
Capítulo I, do Código Civil (artigos 1.829 e seguintes) são de caráter cogente, não se
admitindo disposição em contrário, revestindo-se de nulidade, nos termos do artigo
1.655 do Código Civil, toda e qualquer norma que confronte disposição legal" (TJMT,
Apelação 15809/2016, Capital, Rel. Des. Sebastião Barbosa Farias, j. 21.06.2016,
DJMT 24.06.2016, p. 82).
19

A impossibilidade de contratação de forma contrária às normas cogentes é premissa do


direito pátrio e temática sobre a qual não se instaura qualquer celeuma (ou pelo menos não
deve). O ponto, porém, objeto de reflexão no presente artigo está na possibilidade de
contratualização sobre assuntos não relacionados às normas cogentes, como é a hipótese de
pactuação da retroatividade do regime de bens ao tempo da constituição da união estável, e não
apenas ex nunc ao tempo da formalização do relacionamento.

Considerando os argumentos referenciados pelo Superior Tribunal de Justiça para vedar


a retroatividade em comento, nos cabe ponderar alguns argumentos para refutar a tese da corte
superior.

Inicialmente, deve-se pontuar que autonomia privada é premissa do Estado Democrático


de Direito, e, ainda que caiba ao Estado fixar limites à liberdade dos sujeitos, visando o
equilíbrio de forças sociais, e, portanto, a proteção daqueles que não se encontrem em condições
de igualdade, há áreas de contratualização sobre as quais descabe ao Estado intervir, sendo o
Direito das Famílias uma delas. Nesta linha, como já mencionado, historicamente observamos
o fortalecimento da concepção de Direito das Famílias mínimo. Christiano Chaves de Farias e
Nelson Rosenvald (2016), sobre o tema, lecionam:

Forçoso reconhecer, portanto, a suplantação definitiva da (indevida e excessiva)


participação estatal nas relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos
personalíssimos da vida privada, que, seguramente, dizem respeito somente à vontade
e à liberdade da autodeterminação do próprio titular, como expressão mais pura de
sua dignidade. O Estado vai se retirando de um espaço que sempre foi lhe estranho,
afastando-se de uma ambientação que não lhe diz respeito (esperando-se, inclusive,
que venha, em futuro próximo, a cuidar, com mais vigor e competência das atividades
que, realmente, precisam de sua direta e efetiva atuação). Nas relações familiares, a
regra é autonomia privada, com a liberdade da atuação do titular. A intervenção estatal
somente será justificável quando for necessário para garantir os direitos (em especial,
os direitos fundamentais reconhecidos em sede constitucional) de cada titular, que
estejam periclitando.

Especificamente sobre o regime de bens e a possibilidade de sua retroatividade nos casos


de formalização da união estável, devemos considerar dois aspectos centrais: a disponibilidade
dos direitos patrimoniais e nuances históricas e sociológicas que constituíram e fortaleceram o
instituto da união estável.

No que tange ao primeiro item acima referido, devemos ponderar que a autonomia
privada vem sendo tão profundamente fortalecida que a autocomposição está legalmente
assegurada até mesmo acerca de direitos indisponíveis que admitam transação. Tal previsão
20

está contemplada na Lei de Mediação, Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, a qual fixa no
art. 3º que “pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre
direitos indisponíveis que admitam transação”.

Ora, se a autocomposição significa que os sujeitos em conflito realizam concessões nos


direitos/obrigações de que são titulares a fim de eliminarem a contenda e, assim podem fazê-lo
até mesmo em relação a direitos classificados como indisponíveis, tudo indica inexistir
coerência e razoabilidade em serem os conviventes tolhidos da possibilidade de expressarem
suas autonomias e liberdades quanto ao termo inicial do regime de bens escolhido para regular
a união estável.

Se o pacto apresentar agentes capazes, objeto lícito e formação prescrita ou não defesa
em lei, bem como manifestação de vontade pronunciada isenta de quaisquer vícios, temos
atendidos os pressupostos contratuais, tal como previsto no art. 104, Código Civil. Importante
ponderação sobre o assunto encontramos por Francisco Cahali (2002), para quem a liberdade
dos conviventes em disciplinar o tratamento de seus bens, sejam os preexistentes ou os futuros,
merece ser preservada sob pena de estarmos impondo limitações ao exercício pleno da
capacidade civil dos conviventes, bem como ao exercício dos poderes inerentes ao direito de
propriedade, o que implica em ofensa à Carta Magna, especificamente ao art. 5º, incisos XXII,
XXIII e art. 170, inciso III, os quais versam, o primeiro, sobre garantia do direito de
propriedade, e os dois últimos, acerca exigência de que a propriedade atenda sua função social.

Rolf Madaleno, de outro lado, posiciona-se em sua consistente obra Direito das Famílias
com firme crítica à possibilidade de alteração do regime legal de bens da união estável de forma
retroativa. Vislumbra sérios riscos de convalidação de fraudes, assinalando que a admissão da
renúncia indireta de bens após a aquisição do patrimônio “só poderia ser considerar válida
quando não prejudicasse terceiros e quando não atentasse contra a ordem pública, tampouco
prejudicasse o próprio convivente atingido pela súbita perda de sua meação”. Ademais, destaca
Madaleno (2020, p. 1233):

A renúncia dissimulada por simples contrato escrito de convivência, utilizado para


afastar a presunção de comunhão parcial dos aquestos, deve ser rejeitada por seu
infausto efeito de enriquecer sem justa causa apenas o companheiro beneficiado pela
renúncia do outro, e por atentar contra a moral e o direito, ao permitir restrições de
ordem material de sequela retroativa. Apagar acordos tácitos de comunhão parcial
justamente quando a lei presume a comunicação dos bens pela inércia contratual dos
conviventes, para depois permitir a renúncia patrimonial por mero contrato, surgido
quase sempre no auge do desgaste da relação, seria admitir uma forma ilícita e imoral
de empobrecer inadvertida e gratuitamente um dos parceiros em benefício do outro,
tanto que o STJ tem negado o efeito retroativo ao regime da separação de bens.
21

Sem dúvida, são relevantes as ponderações de Rolf Madaleno, todavia, respeitosa e


humildemente, ousamos discordar. O risco de que o contrato que fixa o regime de bens da
separação total de forma retroativa se dê com a finalidade de lesar o outro convivente, não pode
ser fundamento para que, de forma genérica, se dê a presunção de que todos os conviventes
apresentam o interesse de fraudar o parceiro em pactos desta ordem. Se a separação de bens
retroativa representa renúncia patrimonial, comunhão universal retroativa representa
comunicação de bens não contemplada desde o início da convivência e pode, igualmente,
implicar em sérios prejuízos ao parceiro com maior patrimônio. Esta obviedade precisa ser
destacada para sublinhar que não devemos analisar a (im)possibilidade de um instituto jurídico,
assentado na autonomia privada, presumindo a má-fé dos conviventes. Ao contrário, o Código
Civil traz entre suas premissas a eticidade, ou seja, a boa-fé pauta as relações privadas.

Cabe, ademais, considerar que a união estável tem sua origem nas relações fáticas, sendo
sua instituição fruto do desejo dos conviventes em constituírem uma conexão sem as
formalidades do casamento. Se o anseio dos sujeitos fosse formalizar o liame desde seu início,
optariam pelo casamento, sendo a união estável instituto eleito justamente para escaparem dos
formalismos. Assim, geralmente, quando deliberam por formalizar a união estável, o fazem em
um momento de maturidade do relacionamento e opção em registrar o vínculo estabelecido,
sendo a escolha do regime de bens de forma retroativa o mecanismo de cautela e segurança
desejável nestes casos.

3 CONCLUSÃO

Face aos elementos expostos, devemos sublinhar que o Direito das Famílias inclinou-se
nos últimos anos para a intervenção mínima do Estado, priorizando-se o respeito à autonomia
privada.

Ademais, as relações afetivas também sofreram enormes alterações em sua


configuração, constituindo liames - muitas vezes – não tão profundos e com lapso temporal
enxuto, viabilizando que uma pessoa, ao longo de sua vida, constitua e desfaça vários
casamentos/uniões estáveis e, nesta gangorra de relacionamentos, a necessária maturidade para
dialogar e formalizar aspectos de natureza patrimonial só é alcançado com o decorrer do tempo
da relação. Portanto, a fixação retroativa do regime de bens para a união estável, quando atende
os pressupostos basilares dos negócios jurídicos, não deve ser obstada pelo Poder Judiciário,
pois contraria os anseios da sociedade contemporânea.
22

Além disso, havendo vícios de consentimento nesta espécie negocial, terá o convivente
lesado os meios próprios para declarar a nulidade ou pleitear a anulabilidade do ato jurídico, a
depender do vício existente. Alguns estudos sobre o tema ponderam o risco de coação no âmbito
das relações familiares, o que implicaria na produção de contratos lesivos a um dos conviventes.
Contudo, mais uma vez, não podemos pautar como não retroativos os pactos sob o argumento
da existência de risco de sujeitos mal-intencionados, pois, nesta circunstância, estamos
deixando desamparados outros tantos conviventes que de forma livre e consciente elegem o
regime de bens e pretendem sua incidência de modo retroativo.

De todo modo, considerando que a celeuma sobre o assunto está instaurada, e que em
face do entendimento do Superior Tribunal de Justiça, os Tabelionatos de Notas não mais vêm
lavrando escrituras de união estável com fixação do regime de bens de modo retroativo, tem-se
a possibilidade de que os sujeitos firmem tais pactos pela via dos instrumentos particulares.
Neste caso, se a opção dos conviventes for o regime da separação convencional de bens, podem,
também, fixar no ato contratual que, reciprocamente, conferem quitação patrimonial até aquele
momento.

Entendemos, no tratamento da matéria em comento, que especialmente o princípio da


eticidade, lado a lado ao princípio da autonomia privada, respaldam a validade e eficácia dos
contratos com efeitos retroativos no que tange ao regime de bens, zelando-se, ainda, pelas
históricas distinções sociológicas e jurídicas entre união estável e casamento.

REFERÊNCIAS

Acórdão proferido no AREsp 1.631.112, disponível em consulta pública de processos no


Superior Tribunal de Justiça, www.stj.jus.br, disponível em:
<https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?termo=AREsp+1631112&aplicacao=processos
.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&chkordem=DESC&chkMorto=MORTO>. Acesso
em 13 ago. 2023.
AGAPITO, Patrícia. Assessoria de Comunicação do IBDFAM. STJ: Definição de regime de
bens em união estável por escritura pública não retroage; especialistas comentam. Disponível
em:
<https://ibdfam.org.br/noticias/9432/STJ%3A+Defini%C3%A7%C3%A3o+de+regime+de+b
ens+em+uni%C3%A3o+est%C3%A1vel+por+escritura+p%C3%BAblica+n%C3%A3o+retro
age%3B+especialistas+comentam#, 2022>. Acesso em: 12 ago. 2023

Assessoria de Comunicação do IBDFAM. STJ: Definição de regime de bens em união estável


por escritura pública não retroage; especialistas comentam, disponível em:
<https://ibdfam.org.br/noticias/9432/STJ%3A+Defini%C3%A7%C3%A3o+de+regime+de+b
23

ens+em+uni%C3%A3o+est%C3%A1vel+por+escritura+p%C3%BAblica+n%C3%A3o+retro
age%3B+especialistas+comentam#, 2022>, acesso em: 12 ago. 2023.

CAHALI, Francisco José. Contrato de convivência da união estável. São Paulo: Saraiva, 2002.
CARVALHO, Dimas Messias. Parentalidade Socioafetiva e a Efetividade da Afetividade, IX
Congresso Brasileiro de Direito das Famílias Famílias: Pluralidade e Felicidade, 2013,
Araxá/MG. Anais. Disponível em
<https://ibdfam.org.br/publicacoes/anais/detalhes/985/IX%20Congresso%20Brasileiro%20de
%20Direito%20de%20Fam%C3%ADlia>. p. 311-334.
COSTA, Judith Martins. O Novo Código Civil Brasileiro: em busca da “Ética da Situação”. In:
MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo
Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 88-168
FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Famílias,
Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.
MADALENO, Rolf. Direito das Famílias. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
REALE, Miguel. Visão Geral do Projeto do Código Civil. Revista da Associação dos
Magistrados brasileiros. V.5, n 10, p. 61-73, 2001.
TARTUCE, Flavio. Autonomia privada e Direito das Famílias - Algumas reflexões atuais,
25/08/2021.Disponível em:
<https://ibdfam.org.br/artigos/1742/Autonomia+privada+e+Direito+de+Fam%C3%ADlia+-
+Algumas+reflex%C3%B5es+atuais#:~:text=Essa%20%C3%A9%20a%20liberdade%20de,n
a%20grande%20maioria%20das%20vezes>. Acesso em: 12 ago. 2023.
24

O REGIME DE BENS NA UNIÃO ESTÁVEL QUANDO INCIDENTE


CAUSA SUSPENSIVA

Ana Regina Costa Martins1

RESUMO

O presente estudo parte da inexistência de legislação que regulamente os efeitos das causas
suspensivas matrimoniais à união estável e por consequência, a aplicabilidade ou não da
obrigatoriedade do regime de separação de bens aos companheiros. Desta forma, o trabalho
busca a partir do reconhecimento da inexistência da previsão legal compreender qual tem sido
a forma como a doutrina e a jurisprudência tem entendido adequado suprir esta lacuna legal e
qual regime de bens tem entendido aplicável aos companheiros que estão sob efeito das causas
suspensivas matrimoniais. A metodologia utilizada para a elaboração deste artigo foi a pesquisa
bibliográfica, utilizando-se como apoio às contribuições de diversos autores sobre o assunto,
assim como, tomou-se por base o entendimento jurisprudencial.

Palavras-chave: casamento; união estável; causas suspensivas; separação de bens.

1 INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, expressamente reconhece como entidades


familiares o casamento, a união estável e a família monoparental, embora não mais se
discuta existirem outras tessituras familiares além dos numerus clausus (LÔBO, 2004).

Até o advento da Constituição Federal de 1988, apenas o casamento era considerado


como forma de constituição da família. A Carta Magna de 1988 constitucionalizou o Direito de
Família, trazendo modificações que alteraram os paradigmas que regulamentam a família como
base da sociedade, não tendo mais por escopo o patrimônio e sim os seus sujeitos. Passou
também o afeto a ter valor jurídico, sendo este preponderante e, por outro lado, alguns temas
até então sedimentados deram lugar a outras formas de compreensão do direito de família,
temas esses como o fim da categorização dos filhos, da indissolubilidade do casamento, das
novas conformações familiares e das abissais diferenças entre homens e mulheres. Aliás estes
considerados os grandes pilares do Direito de Família em nossa Constituição atual.

O casamento, regulamentado no Código Civil, a partir do artigo 1.511,, traz entre outros

1
Advogada na área de Direito de Família e Sucessões. Mestre em Filosofia, Professora de Direito Civil e Mediadora
Judicial. OAB/RS 24.651, e-mail ana.martins@ucpel.edu.br.
25

tópicos, as causas suspensivas, ou seja, as situações em que o legislador aconselha que não deve
se realizar o casamento, trazendo como consequência para aqueles que não deixam de casar a
imposição do regime de separação de bens. A grande questão, sobre a qual o presente trabalho
pretende se debruçar, é verificar se tais imposições também se aplicam à união estável

Diante dessa realidade, o trabalho em questão tem por problema de pesquisa analisar se
a lacuna da lei vem sendo suprida adequadamente pela doutrina e pela jurisprudência, bem
como se há uma definição sedimentada e se esta traz a segurança jurídica pretendida.

Desse modo, a fim de elucidar a questão, o presente trabalho foi dividido em três
momentos. Primeiramente, se faz um apanhado sobre o casamento e a união estável.

O segundo momento é destinado a verificar quais as causas suspensivas previstas em


nosso ordenamento jurídico e de que forma são as mesmas regulamentadas, além da sua
aplicação para além do matrimônio.

Por fim, serão analisados os julgados mais recentes do Superior Tribunal de Justiça,
considerando seus posicionamentos favoráveis e desfavoráveis, para após, chegar-se às
considerações finais.

Passa-se então à análise proposta.

2 DO CASAMENTO E DA UNIÃO ESTÁVEL

Segundo Rolf Madaleno (2022, p. 93), verbis:

Pode-se definir o casamento como um ato complexo, como ensina Silvio Rodrigues,
dependente em parte, é verdade, da autonomia privada dos nubentes, mas
complementado com a adesão dos noivos ao conjunto de regras preordenadas, para
vigerem a contar da celebração do matrimônio, este como atoprivativo do Estado;
tanto que o artigo 1.514 do Código Civil informa que o casamento civil só se realiza
depois que o homem e a mulher (ou entre pessoasdo mesmo sexo) manifestam
perante o juiz a sua vontade de estabelecer o vínculo conjugal, e o juiz declara-os
casados.

O Código Civil Brasileiro, trata o casamento no Livro IV, definindo que o casamento
estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges,
tratando da capacidade nupcial, impedimentos, causas suspensivas, processo de habilitação para
o casamento, celebração do matrimônio, provas do casamento, invalidade e eficácia das
núpcias, dissolução do vínculo conjugal e proteção da pessoa dos filhos (MADALENO, 2022,
p. 59).

O casamento está atrelado à categoria de ato jurídico lato sensu, formal e complexo,
26

enquanto a união estável é um ato-fato jurídico, ou seja, se concretiza a partir do preenchimento


dos requisitos exigidos por lei para que produza efeitos jurídicos.

Desta forma a União Estável vem regulada no Código Civil a partir do artigo 1.723 que
assim estabelece: "Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família."

Segundo Lobo (2018, p. 167), para a configuração da União Estável:

Não necessita de qualquer manifestação de vontade para que produza seus efeitos
jurídicos. Basta sua configuração fática, para que haja incidência das normas
constitucionais e legais cogentes e supletivas e a relação fática converta- se em
relação jurídica.

A esse ato-fato que reconhece o relacionamento de duas pessoas como entidade familiar,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir
família chamamos união estável. Quando os companheiros não dispuserem por escrito arespeito, o
regime de bens será o da comunhão parcial.

Importante referir que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por intermédio do


Provimento nº 141/2023, altera o Provimento nº 37, de 7 de julho de 2014, para atualizá-lo à
luz da Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, para tratar do termo declaratório de
reconhecimento e dissolução de união estável perante o registro civil das pessoas naturais e
dispor sobre a alteração de regime de bens na união estável e a sua conversão extrajudicial em
casamento.

Nesse sentido, fica evidente que ambas formas de constituição de família, que tem sua
aferição e de modo objetivo a partir dos elementos que a lei traduz como sendo aqueles que vão
validar juridicamente tanto o casamento como a união estável, impõe que tratemos estes
institutos de forma diversa, como de fato o são, permitindo inclusive a lei a conversão da união
estável em casamento, por força do que preceitua o artigo 1.726 do Código Civil assim
referindo: "a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos
companheiros ao juiz e assento no Registro Civil", e ainda nossa Constituição Federal no seu
artigo 226 § 3º, dispõe que além de proteger a união estável como entidade familiar,
estabelece que deverá "a lei facilitar sua conversão em casamento", e nenhum sentido faria
converter algo naquilo que já o é.

Segundo Flávio Tartuce (2022):

A lei 14.382, originária da MP 1.085, de dezembro de 2021, foi promulgada em 28


de junho de 2022, tratando, entre outros temas, do Sistema Eletrônico dos Registros
Públicos (SERP). Houve também a facilitação de procedimentos, sobretudo no
âmbito extrajudicial, como no caso da conversão da união estável em casamento,
tendo sido incluído um novo art. 70-A na lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos)
a respeito do tema.

Nesse sentido, Tiago Liberato (2023) esclarece em artigo publicado no sítio do


Conselho Notarial do Brasil que:

Em primeiro lugar, por mais que muitos doutrinadores e julgadores busquem,


incansavelmente, a equiparação total dos dois institutos, união estável e casamento
jamais representarão a mesma relação jurídica, e jamais secomportarão, tanto social
quanto economicamente, como fenômenos idênticos. Por razões práticas, a união
estável não demanda o mesmo formalismo que o casamento, não precisa sequer ser
declarada e emana da simples realidade dos fatos, sendo verdadeira situação fática
com efeitos jurídicos.

Ainda, sobre o casamento e a união estável, impende destacar que ambos decorrem
da comunhão de vida entre os cônjuges ou companheiros, gerando, desta feita, efeitos
pessoais e patrimoniais.

Para regular a vida em comum, o Direito de família e sua legislação traçaram


normas denominadas regime patrimonial de bens.

Regime de bens, como objetivamente afirma Rolf Madaleno (2022, p. 810):

[…]ingressa o Direito de Família no âmbito do direito patrimonial, derivado das


relações familiares, que, a par de seus efeitos pessoais, e dos deveres do casamento,
como o de fidelidade, mútua assistência, alimentos e coabitação, também regula as
relações econômicas emergentes das questões pecuniárias entre cônjuges e
conviventes, e deles para com terceiros, pois, como recorda Enrique Varsi
Rospigliosi, a vida e o desenvolvimento econômico de um povo parte das
necessidades das pessoas e da família e a família é uma unidade de produção. O
matrimônio e bem assim a união estável determinam a existência dediversos efeitos
patrimoniais, tanto em relação aos cônjuges e conviventes como deles para com
terceiros.

Muito se tem debatido acerca da intervenção do Estado na vida particular. Gisele


Groeninga (2004) bem pontua que "Com a modificação das fronteiras entre o público e o
privado, com a maior diversidade nas constituições familiares, os conflitos têm cada vez mais
ganho o espaço público". E, neste sentido, se faz relevante mencionar que a lei faculta tanto aos
nubentes, antes do casamento, quanto aos companheiros, quando a união estável se dá por meio
de escritura pública, a escolha do regime patrimonial de bens que melhor atender suas
expectativas comuns, os quais tem a mais ampla liberdade de estabelecer o que for do interesse
deles no tocante aos bens.

O art. 1.640 do Código Civil preceitua “Não havendo convenção, ou sendo ela nula ou
ineficaz, vigorará, quanto aos bens entre os cônjuges, o regime da comunhão parcial”.

Na união estável de fato, por força do art. 1.725 do nosso diploma civilista, aplica-se às
relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.

3 CAUSAS SUSPENSIVAS

Em que pese a propalada liberdade e autonomia das partes, em especial no que respeita
a sua vida privada, em nosso diploma civilista, estão elencadas as causas suspensivas, que nada
mais são do que recomendações aos pretensos nubentes para que não se casem, em
determinadas situações que a lei discrimina. A justificativa para tal recomendação é a existência
de algum fator que deva manter em suspenso o processo de celebração do matrimônio.
Mas, estas orientações nem sempre são acatadas, como apontado por Maria Berenice
Dias (2021, p. 484), em Manual de Direito das Famílias:

Quando o amor fala mais alto e as pessoas casam, mesmo desatendendo à


recomendação legal, sujeitam-se a uma sanção: o casamento não gera efeitos de ordem
patrimonial. É imposto o regime da separação obrigatória com o intuitode evitar o
embaralhamento de bens (CC 1.641).

Previstas as causas suspensivas ao casamento a partir do art. 1.523 do Código Civil,


estão ali elencadas as hipóteses de suspensão do processo de celebração. Mas, como apontado
por Maria Berenice Dias (2007, p. 149), “nenhum desses impedimentos veda a celebração do
matrimônio. Desatendidas as restrições legais, o casamento não é nulo nem anulável. As
sequelas são exclusivamente patrimoniais. A lei impõe o regime de separação de bens”.

As causas suspensivas se constituem em um impedimento à realização do matrimônio,


e podem gerar sanções àqueles que optarem por casar. Trata-se de uma irregularidade, e não se
cogita de nulidade ou mesmo anulabilidade.

Segundo Barros (2009, p. 435), “as causas suspensivas tem como finalidade evitar, além
de confusão patrimonial, dubiedade com relação à filiação”.

Referido artigo do Código Civil, mencionado acima, preceitua que não deve casar:
a. - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário
dos bens do casal e der partilha aos herdeiros. Aqui, a preocupação dolegislador foi evitar
a confusão de patrimônios, pois o casamento precedido de inventário poderia dificultar
a identificação do patrimônio entre o das proles existentes e o das vindouras;
I. - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado,
até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal. A
intenção foi evitar a confusão de sangue, a dúvida no casode a mulher estar grávida, e
de quem seria o filho;
II. - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos
bens do casal. Da mesma forma que no inciso I, a preocupação é quanto a evitar a
confusão de patrimônios;
III. - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou
sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela,
e não estiverem saldadas as respectivas contas. Justifica-se pela possibilidade de o
tutelado ou curatelado ser compelido a contrair matrimônio, de modo a livrar o
administrador dos bens da prestação de contas.

Desta forma se percebe que não se trata de proibir o casamento mas sugerir que não venham
a contrair os nubentes, em razão das causas supracitadas, que trazem como consequência uma
sanção na esfera patrimonial, que se traduz na obrigatoriedade de que o casamento realizado nestas
condições tenha como regime patrimonial a separação total de bens.

A grande questão que tem inquietado significativa parte da doutrina do direito de família,
e que se mostra como objeto de estudo do presente trabalho, é sobre a aplicação ou não da
obrigatoriedade da adoção do regime de separação de bens quando estivermos frente à união
estável.

Se, considerarmos aplicável à união estável, estaríamos equiparando a mesma ao


casamento? E, neste caso, qual a razão da previsão de converter a união estável em casamento?
Se, de outra banda fosse considerada inaplicável, estaríamos relativizando a importância da
orientação existente para quem vai contrair matrimônio? A união estável estaria a burlar a
orientação, de forma consentida? E ainda, se não é tão importante a orientação, qual a razão de
limitar a autonomia de vontade na escolha do regime de bens àqueles que pretendem casar?

Desse modo, Danúbia Patrícia de Paiva e Daniel Monteiro Neves (2021, p. 106) aduzem
com irretocável pertinência:

De acordo com a previsão legal e doutrinária, as normas que tratam do regime debens da
união estável foram cunhadas com referência na forma paradigmática doregime de bens
do casamento. Contudo, pela natureza distinta dos institutos civisdo direito de família, a
adequação é imprescindível para a própria coerência interna e tratamento igualitário
externo, ou seja, entre o casamento e a união estável deve haver normas que preservem e
respeitem as diferenças, mas que, ao mesmo tempo, não estabeleçam hierarquias ou
privilégios.
Pelo trecho constante do Código Civil, mais precisamente nos parágrafos do artigo 1.723,
percebe-se que de forma distinta aos dispositivos que se referem aos impedimentos, os quais, tanto
para o casamento como para a união estável tem a mesma previsão, ou seja, impedem de contrair
casamento ou unir-se estavelmente , no que concerne à união estável o legislador não traz a mesma
conclusão. Vejamos:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a
mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família.
§ 1 o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não
se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de
fato ou judicialmente.
§ 2 o As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização daunião
estável.

De acordo com Cristiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald (2019, p. 520), tem- se a
seguinte reflexão:
Há uma instigante discussão a ser travada em relação ao regime de bens da uniãoestável.
Discute-se sobre a incidência ou não, das regras limitadoras da escolha do regime de
bens no casamento, previstas no art. 1.641 da norma codificada.Em linha de princípio,
há de se concluir pela não incidência na união estável do regime de separação obrigatória
de bens. A uma, porque não incidem as causas suspensivas na relação convivencial
(CC/02, art. 1.523). A duas, porque não há necessidade de autorização judicial para
constituí-la. A três, porque, em se tratando de norma limitadora de direitos, a
interpretação da lei há de ser, necessariamente, restritiva.

Neste sentido, não se pode reconhecer a existência de uma união estável na presença dos
impedimentos previstos no artigo 1.521, ressaltando o § 2º que não interferem na configuração da
convivência como se casados fossem, a presença das causas suspensivas previstas no artigo 1.523,
uma vez que seu único efeito, em termos matrimoniais, é a adoção compulsória do regime da
separação total de bens, por força do que preceitua o art. 1.641 do Código Civil. (XAVIER, 2015,
p. 62).
Por todos estes argumentos é que Madaleno (2022, p. 1.275) assevera ser inapropriado e
sem razão que justifique "o tratamento discriminatório atribuído ao casamento pelo legislador no
§ 2º do artigo 1.723 do Código Civil, ao externar que as causas suspensivas do artigo 1.523 do
Código Civil não impedirão a caracterização da união estável".

De notar-se que impor aos cônjuges a adoção obrigatória do regime da total separação de
bens, pela dicção do art. 1.641, inc. I, e não determinar nenhuma referência ou restrição ou
recomendação em relação às causas suspensivas na união estável estará ou por
privilegiar um instituto em relação ao outro, ou descuidar dos companheiros em relação
aos nubente, o que obviamente não pode ser o objetivo do legislador, evidenciando ou a
imprestabilidade da norma existente ou sua brecha que precisa ser superada.
Não se olvida que o casamento pressupõe ato complexo, e, tendo às partes liberdade para
dele não se utilizarem, evitando burocracias e podendo unirem-se estavelmente sem terem
sequer vontade de registrar essa união junto ao tabelionato, constituindo-se em ato-fato tão
somente. O que argumentam os doutrinadores é a necessária segurança jurídica das partes
envolvidas, e mais, dos terceiros que eventualmente venham a sofrer as consequências desta
escolha seja dos consortes, seja dos companheiros.
Mas será que as causas suspensivas do casamento, que trazem como consequência
patrimonial a imposição do regime de separação legal de bens, ao deixar de atribuir aos
conviventes esta mesma imposição estaria de fato protegendo a sociedade, os terceiros e
trazendo a propalada segurança jurídica almejada, na medida em que as causas suspensivas
previstas no artigo 1.523 não impedirão a caracterização da união estável?
Se por um lado, encontramos justificativas para a manutenção do que hoje consagra nosso
sistema legislativo, por outro justificativas existem para se restringir a aplicação das causas
suspensivas à união estável, o que se observa pela redação do artigo 9º-D, § 4º do novo
Provimento do CNJ em que fica evidente que o regime adotado pelas partes, estará sujeito a
3
possível mudança a depender do quadro do casal.

Por esta razão não faria qualquer sentido entender que as causas suspensivas são
aplicáveis por analogia à união estável, pois se assim fosse, qualquer disposição que
disciplinasse manter um regime patrimonial, já vigorante entre os companheiros seria
impróprio, desnecessário e inócuo, ou seja se as causas suspensivas realmente se aplicassem à
união estável, a convivência seria desde o início regida pela separação de bens, e, no ato da
conversão para o casamento, o regime não seria imposto, mas sim mantido, preservado,
perpetuado (LIBERATO, 2023).

3
2Art. 9º-D. O regime de bens na conversão da união estável em casamento observará os preceitos da lei civil,
inclusive quanto à forma exigida para a escolha de regime de bens diverso do legal, nos moldes do art. 1.640,
parágrafo único, da Lei nº 10.406, de 2002 (Código Civil).§ 1º A conversão da união estável em casamento implica
a manutenção, para todos os efeitos, do regime de bens que existia no momento dessa conversão, salvo pacto
antenupcial em sentido contrário§ 2º Quando na conversão for adotado novo regime, será exigida a apresentação
de pacto antenupcial, salvo se o novo regime for o da comunhão parcial de bens, hipótese em que se exigirá
declaração expressa e específica dos companheiros nesse sentido.§ 3º Não se aplica o regime da separação legal
de bens do art. 1.641, inciso II, da Lei nº 10.406, de 2002, se inexistia essa obrigatoriedade na data indicada como
início da união estável na forma do inciso III do art. 9-C deste Provimento ou se houver decisão judicial em sentido
contrário.§ 4º Não se impõe o regime de separação
Segundo Silva (2010, p. 52), ao pontuar que a finalidade protetiva da lei é a mesma para
ambos os casos "não faria qualquer sentido a lei tratar diversamente a pessoa que se casa com
causa suspensiva submetendo-a obrigatoriamente ao regime da separação de bens, e aquela que
passa a viver em união estável, nas mesmas circunstâncias".

4 ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ao buscar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça pelas palavras-chave (causas


e suspensivas e casamento e união estável) no período compreendido entre janeiro de 2022 até
agosto de 2023 foram encontrados três decisões que serão analisadas na sequência.

4.1 Recurso Especial nº 2060732 da Relatoria do Ministro Humberto Martins, com data
de publicação no DJ em 19/06/2023

A decisão proferida pelo Ilustre Relator, originária do Tribunal de Justiça do Estado de


São Paulo, trata de demanda que envolve reconhecimento de união estável post mortem, que ao
julgar o recurso de apelação, deu parcial provimento a este assim entendendo:

ERRO MATERIAL. Reconhecido erro material quanto ao nome da autora na


fundamentação da sentença. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST
MORTEM. PERÍODO ANTERIOR AO CASAMENTO. PETIÇÃO DE
HERANÇA. Sentença que reconheceu a união estável anterior ao casamento no
período de julho de 1993 a 13/4/2016, sob regime da comunhão parcial de bens,
com direito da autora à meação dos bens adquiridos onerosamente nesse período,
bem como declarou que a autora não concorre com a herança. Casamento pelo
regime da separação obrigatória de bens, possuindo o falecido descendentes.
Insurgência das partes. Não comprovação da existência de união estável desde
1990.
[…]
Regime da separação obrigatória de bens. Causa suspensiva. Analogia ao disposto no
art. 1523, III c. c art. 1641, I, ambos do CC. Casamento que sucedeu a união estável
celebrado sob o regime da separação obrigatória de bens. Nubente que na época
contava com 73 anos de idade. Art. 1641, II, do Código Civil. Ônus da autora de
provar esforço comum na aquisição de bens durante a convivência. Súmula 377 do
STF. Precedente do STJ. Sentença reformada para julgar parcialmente procedente a
ação e procedente a reconvenção, para reconhecer o direito da autora à meação dos
bens adquiridos onerosamente no período da união estável e casamento, desde que
comprove o esforço comum na sua aquisição. Autora que não concorre como herdeira
com os descendentes.
[…]
Aduz, no mérito, que o acórdão estadual contrariou as disposições contidas nos arts.
1.523, III, 1.640, 1.641, I e II, 1.723, § 2º, 1.725 e 1.829, I, do Código Civil.
Sustenta, outrossim, que "a união estável foi iniciada quando os nubentes sequer
contavam com 60 (sessenta) anos de idade e não havia causa suspensiva ao casamento
quanto este foi celebrado entre a recorrente e o falecido [...]" (fl. 763).Argumenta,
ainda, não ser aplicável à união estável as causas suspensivas ao casamento dispostas
no art. 1.523 do CC, razão pela qual seria equivocadoatribuir, com supedâneo no
art. 1.641, I, do CC, o regime da separação
obrigatória ao casamento da recorrente com o pai dos recorridos. E, não sendo aplicável
à união estável havida entre a recorrente e o genitor dos recorridos o regime da separação
obrigatória de bens, a recorrente, por força do regime da comunhão parcial de bens (art.
1.725 do CC), tem direito à meação dos bens adquiridos onerosamente no período de
convivência, como reconhecido na sentença.
Por fim, alega a recorrente que a causa suspensiva ao casamento da recorrente e do
falecido [...] findou com a partilha decorrente do divórcio por escritura pública celebrado
em 9/10/2015 por este com sua primeira esposa, antes portanto, do término da própria
união estável com a recorrente, ou seja, em 13/4/2016.
[…]
Passa-se à análise do mérito.
Cuida-se, na origem, de ação declaratória de reconhecimento de união estável cumulada
com petição de herança, julgada parcialmente procedente pelo Juízo deprimeiro grau,
para:
a) reconhecer a união estável entre a autora e "AHK" no período de julho de 1993 a
13/4/2016, incidindo neste período o regime da comunhão parcial de bens(art.1725 do
Código Civil);
b) reconhecer o direito da autora à meação dos bens adquiridos onerosamente no
período da união estável, cujo rol e partilha deverá ocorrer em ação autônoma ou
inventário, podendo observar a quota paga no referido período quando se tratar de
aquisição paulatina (financiamento);
c) declarar que a autora não concorre na herança, nos termos do artigo 1829, I,do
Código Civil, porque celebrou matrimônio com o "de cujus" aos 13/4/2016, e pelo regime
da separação obrigatória de bens (fl.10), sendo que o falecido deixoudescendentes.
O Tribunal de origem, ao dar parcial provimento aos recursos das partes, entendeu pela
não comprovação da existência de união estável desde 1990, diante das testemunhas
contraditórias e da inconsistência do depoimento pessoal da autora. Dessa forma,
concluiu pela comprovação da união estável apenas a partir de 1993.
[…]
Contudo, conforme se verifica dos autos, a partilha somente ocorreu em 27/10/2015.
Diante desse contexto, evidente a ocorrência de causa suspensiva de união estável até a
data do divórcio.
[…]
Não é o que ocorre no caso dos autos, em que a união estável entre a recorrente eo de
cujus se iniciou antes do divórcio deste, em 27/10/2015, ou seja, na vigênciade restrição
legal prevista no art. 1.523, inciso III, do Código Civil.
Assim, apenas a partir dessa data afastar-se-ia a obrigatoriedade da separação de bens.
Contudo, em 2015, conforme se depreende do exame dos autos, o de cujus já contava
com 73 anos de idade, razão pela qual, nos termos do art. 1.641, II, do Código Civil,
também deve se observar o regime de separação total de bens.
Dessa forma, mantém-se o entendimento proferido na origem de que a autora deverá
provar esforço comum na aquisição de bens durante toda a convivência com o de cujus
e, assim, terá direito à meação desses bens. A Segunda Seção desta Corte, seguindo a
linha da Súmula n. 377 do STF, pacificou o entendimento de que apenas os bens
adquiridos onerosamente na constância da união, "e desde que comprovado o esforço
comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha" (EREsp n. 1171820/PR, relator
Ministro Raul Araújo, Segunda Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 21/9/2015).
[…]
Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial.
Visto que a sentença foi publicada já na vigência do novo CPC, caso exista nos autos
prévia fixação de honorários advocatícios pelas instâncias de origem, determino sua
majoração em desfavor da parte agravante, no importe de 15% sobre o valor já arbitrado,
nos termos do art. 85, § 11, do Código de Processo Civil, observados, se aplicáveis, os
limites percentuais previstos nos §§ 2º e 3º do referido dispositivo legal, bem como
eventual concessão da gratuidade da justiça.
Percebe-se da leitura do acórdão que a sentença proferida em sede de apelação e mantida
na Corte Superior foi no sentido de evidente a ocorrência de causa suspensiva de união estável até
a data do divórcio, contrariando o alegado pelo recorrente de inaplicabilidade das causas
suspensivas ao casamento à união estável, o que acabaria por trazer a aplicabilidade do regime da
comunhão parcial de bens ao caso em apreço, alterando a decisão para entender que havia direito
à meação daqueles bens que foram adquiridos de forma onerosa.

4.2 Agravo em Recurso Especial nº. 2138572 da Relatoria do Ministro Marco Buzzi, com
data de publicação no DJ em 13/10/2022

A decisão proferida pelo Ilustre Relator, em Agravo em Recurso Especial, originária do


Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, trata de Ação Declaratória que envolve a existência e
dissolução de união estável cumulada com partilha de bens e alimentos em benefício da
companheira, entre outras questões, que ao julgar o recurso proposto e na parte que se está a
discutir, assim entendeu:

[…]Cuida-se de ação declaratória de existência e dissolução de união estável


cumulada com partilha de bens e alimentos em benefício da companheira. Julgada
parcialmente procedente, sobrevieram os recursos dos litigantes.
[...] Ora, para além da farta prova documental produzida, sobreleva que consta
da escritura pública a declaração expressa e textualmente de que a demandante
se encontrava separada de fato, documento que, destaque-se, goza de fé pública.
E vício na manifestação da vontade não foi sequer aventada.
Daí que, consoante declarado pelas partes, ao tempo do início da união estável a
requerente não apresentava qualquer óbice à constituição da entidade familiar.
Lado outro, procede o recurso do requerido quanto ao regime de bens.
Isto porque, quando do início da união estável, a partilha do matrimônio extinto
do réu não estava resolvida, apenas vindo a ser ultimada em outubro de 2014,
conforme escritura de fls. 608/611.
Dessa maneira, presente a causa suspensiva prevista no artigo 1.525, III, do
Código Civil.
E, aquele que contrai novas núpcias com inobservância das causas suspensivas
ao matrimônio, atrai a incidência do regime da separação legal de bens, na forma
do artigo 1.641, I, do Código Civil.
[...] Destarte, à união estável em comento se aplica o regime da separação
obrigatória de bens.
[…]
Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 1616207/RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, DJe de 20/11/2020)
[grifou-se] RECURSO ESPECIAL. UNIÃO ESTÁVEL SOB O REGIME DA
SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS. COMPANHEIRO MAIOR DE 70
ANOS NA OCASIÃO EM QUE FIRMOU ESCRITURA PÚBLICA. PACTO
ANTENUPCIAL AFASTANDO A INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 377 DO
STF, IMPEDINDO A COMUNHÃO DOS AQUESTOS ADQUIRIDOS
ONEROSAMENTE NA CONSTÂNCIA DA CONVIVÊNCIA.
POSSIBILIDADE.
MEAÇÃO DE BENS DA COMPANHEIRA. INOCORRÊNCIA. SUCESSÃO
DE BENS.
COMPANHEIRA NA CONDIÇÃO DE HERDEIRA. IMPOSSIBILIDADE.
NECESSIDADE DE REMOÇÃO DELA DA INVENTARIANÇA. [...] 5. A
Segunda Seção do STJ, em releitura da antiga Súmula n. 377/STF, decidiu que,
"no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância
do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição"
EREsp 1.623.858/MG, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador
convocado do TRF 5ª região), Segunda Seção, julgado em 23/05/2018, DJe
30/05/2018), ratificando anterior entendimento da Seção com relação à união
estável (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, SegundaSeção, julgado
em 26/08/2015, DJe 21/09/2015). [...] 9. Recurso especial da filhado de cujus a
que se dá provimento. Recurso da ex-companheira desprovido. (REsp
1.922.347/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe de 1/2/2022)

O segundo acórdão sobre o qual nos debruçamos entende que na hipótese em que ainda
não se decidiu sobre a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a adoção
do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio, com aplicação do
disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02.

4.3 Agravo em Recurso Especial nº. 2084238 da Relatoria da Ministra Nancy AndrighiI,
com data de publicação no DJ em 28/09/2022

A decisão proferida pela Ilustre Relatora, originária do Tribunal de Justiça do Estado de


São Paulo, trata de demanda que envolve inventário, que ao julgar o recurso de apelação que deu
parcial provimento ao recurso de apelação do recorrente assim entendeu:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE


INVENTÁRIO. CAUSA SUSPENSIVA DO CASAMENTO. APLICAÇÃO À UNIÃO
ESTÁVEL. POSSIBILIDADE. REGIME DA SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS.
SÚMULA 568/STJ.
Ação de inventário.
1. A jurisprudência do STJ é no sentido de que, na hipótese em que ainda não se
decidiu sobre a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a
adoção do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio,
com aplicação do disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02.
2. A Segunda Seção, no julgamento do EREsp nº 1.623.858/MG, pacificou o
entendimento de que no regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos
na constância do casamento/união estável, desde que comprovado o esforço comum para
a sua aquisição.
3. Agravo conhecido. Recurso especial conhecido e desprovido.DECISÃO
Cuida-se de agravo em recurso especial interposto por I L DE L, contra decisão que negou
seguimento a recurso especial fundamentado, exclusivamente, naalínea "a" do permissivo
constitucional.
Agravo em recurso especial interposto em: 12/01/2022.Concluso ao gabinete em:
08/06/2022.
Ação: de inventário dos bens deixados por A. J.
Decisão interlocutória: declarou que o regime de bens aplicável à união estável
vivenciada entre I. L. L. e o autor da herança é o da comunhão parcial de bens.
Acórdão: deu provimento ao recurso de agravo de instrumento interposto pelo
agravado, nos termos da seguinte ementa:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. INVENTÁRIO E PARTILHA. QUE DECISÃO
AGRAVADA DECLAROU INCIDÊNCIA DO REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL
DE BENS À UNIÃO ESTÁVEL MANTIDA PELO
AUTOR DA HERANÇA ATÉ O FALECIMENTO. INSURGÊNCIA DOS
DESCENDENTES. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DA SEPARAÇÃO LEGAL DE
BENS
ACOLHIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL QUE SE DEU DURANTE CAUSA
SUSPENSIVA.
OBSERVÂNCIA AOS ARTIGOS 1.523, III E 1.641, I DO CÓDIGO CIVIL. REGIME
DA SEPARAÇÃO LEGAL DE BENS. APLICAÇÃO DA REGRA DOARTIGO 1.829,
I DO CÓDIGO CIVIL. COMPANHEIRA SOBREVIVENTEQUE NÃO
CONCORRE COM OS DESCENDENTES, SEM PREJUÍZO DODIREITO DE
MEAÇÃO, NOS TERMOS DA SÚMULA 377 DO SUPREMOTRIBUNAL
FEDERAL. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARADECLARAR A
INCIDÊNCIA DO REGIME DE SEPARAÇÃO LEGAL DEBENS À UNIÃO
ESTÁVEL MANTIDA PELO AUTOR DA HERANÇA E AAGRAVADA.
Recurso especial: alega violação dos arts. 1723, §2º, e 1725 do Código Civil. Defende,
em síntese, que "uma vez que existia uma união estável entre a recorrente e o de cujus -
o que expressamente foi reconhecido pelo tribunal de origem, deve-se aplicar o regime
de bens legalmente previsto à união estável,Art. 1725 do Código Civil" (e-STJ fl. 162).
Argumenta, ainda, que não são aplicáveis as causas suspensivas do casamento para a
união estável, ante aausência de previsão legal.
Parecer do MPF: da lavra do I. Subprocurador-Geral Sady d'Assumpção Torres Filho,
opina pelo desprovimento do agravo.
RELATADO O PROCESSO, DECIDE-SE.
- Da Súmula 568 do STJ A Corte de origem, ao julgar o recurso de agravo de instrumento
interposto pelo agravante, concluiu o seguinte (e-STJ fls. ):
A. J. casou-se com E. A. S. C. J. em regime de comunhão de bens em 08/10/1993 e a
separação judicial foi decretada por sentença judicial em 18/04/2001 (mov. 104.4).
A ex-esposa e a parte ora Agravada ajuizaram ações judiciais para reconhecimento da
união estável com o Autor da herança após a data da separação de fato.
O pedido de reconhecimento de união estável formulado pela ex-esposa nosautos
de n.2977-51.2009.8.16.0026 foi julgado improcedente (mov. 73.3).
Nos autos de n. 2976-66.2009.8.16.0026, foi julgado procedente o pedido inicial para
reconhecer a união estável mantida entre o Autor da herança e a parte ora Agravada (I.
L. L.).
[...] O relacionamento em união estável com I. L. L., ora Agravada, perdurou até o
falecimento de A. J. A decisão judicial em comento não dispôs sobre o regime de bens
incidente sobre a união estável, o que corresponde à controvérsia instaurada no presente
recurso.
[...] No caso em comento, não há discussão sobre a possibilidade dereconhecimento
da união estável mantida com a Agravada, a despeito da ausência de divórcio do
casamento anterior, haja vista a separação de fato desde o ano de 2001, conforme a
argumentação das razões recursais.
Entretanto, o Agravante defende que não cabe a aplicação do regime decomunhão
parcial de bens em razão da pendência de divórcio e partilha de bens. Aplica-se à
hipótese a regra do inciso III do artigo 1.523 c/c artigo 1.641, I doCódigo Civil, in
verbis:
[...] Isto porque aplica-se à união estável as regras do casamento, por analogia, haja vista
que não é legítimo diferenciar, os cônjuges e os companheiros, ou seja,a família formada
pelo casamento e a formada por união estável.
…:
[...] Sendo assim, uma vez que não realizado o divórcio e pendente a partilha de bens,
impõe-se à união estável posterior à separação judicial, o regime da separação de bens,
com fundamento no artigo 1.641, I do Código Civil.
Da leitura dos trechos acima, verifica-se a decisão proferida pelo Tribunal de local está
de acordo com a jurisprudência do STJ que é no sentido de que, na hipótese em que ainda
não se decidiu sobre a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória
a adoção do regime da separação de bens naunião estável, como é feito no matrimônio,
com aplicação do disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02.
[…]
Assim, com fundamento na Súmula 568/STJ, o recurso deve ser desprovido. Forte
nessas razões, CONHEÇO do agravo e, com fundamento no art. 932, III eIV, "a",
do CPC/2015, bem como na Súmula 568/STJ, CONHEÇO do recursoespecial e
NEGO-LHE PROVIMENTO.

Percebe-se que o terceiro julgado que se apreciou foi no sentido de entender que deve ser
declarada a incidência do regime de separação legal de bens à união estável mantida entre a
companheira e o falecido.

5 CONCLUSÃO

Conforme abordado, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram


incorporados ao Direito Brasileiro outras formas de tessituras familiares, dentre elas o casamento
e o divórcio.

O direito evolui com a sociedade que reclama novas formas de proteger direitos,
equilibrar deveres e têm privilegiado o direito pessoal em detrimento do patrimonial. Entretanto,
e por questões óbvias se faz necessário estabelecer regras objetivas, claras no que tange as questões
que versem sobre o patrimônio.

Nesse sentido, ainda que hoje a patrimonialização do direito tenha sofrido relativização,
é preciso, para que se traga a segurança jurídica às pessoas, regras claras sobre a forma como o
direito irá tratar os bens amealhados pelos envolvidos.

O direito brasileiro hoje tem buscado permitir às partes o máximo de liberdade nas suas
escolhas, no que respeita às questões da sua vida privada, em família, evitando desnecessárias
interferências do Estado, quando isto se faz possível.

Não significa que o Estado pode descuidar do que lhe compete, seja legislando, seja
aplicando a Lei.

Em se tratando do tema central do presente trabalho, nossa legislação impõe o regime de


separação obrigatória em determinadas situações, por entender que, apesar de retirar a liberdade
de escolha dos cônjuges, tal estipulação visando evitar prejuízos às partes e a terceiros evitando
efeitos desagradáveis ou injustos, inclusive para aqueles que têm menos condições de
compreender efeitos práticos da sua escolha ou da ausência de sua escolha.

Assim, no casamento, a lei deixa extreme de dúvidas que se aplica quando da existência
de causas suspensivas, o regime de separação de bens aos nubentes.
A grande questão surge, quando existe união estável e que também tem, no plano prático,
idêntica situação que a enquadra nas causas suspensivas matrimoniais.

Não podemos descuidar do fato de que as pessoas têm a liberdade de casar ou unir-se
estavelmente e ainda apenas de fato, sem que busquem a segurança que a propalada burocracia do
casamento impõe e isto, com toda certeza também traz consequências diversas, aliás estas podem
inclusive serem as motivações de quem opta por uma ou outra forma de constituir sua família.

A lei não é clara quanto ao regime a ser aplicado na união estável, quando se trata de
relação que envolvam causas suspensivas. Aliás, se superada a causa suspensiva antes de realizada
a conversão da união estável em casamento, não haverá imposição do regime legal, pela obviedade
de a norma do Código Civil não ser mais aplicável.

Por tudo que se pontuou, podemos interpretar que antes da conversão em casamento, os
companheiros podem adotar qualquer regime de bens. É o que também se conclui do Provimento
do CNJ, que traduz que podemos nos afastar do que vem entendendo o STJ, no sentido de aplicar
às uniões estáveis as causas suspensivas matrimoniais, na medida em que estas seriam imprestáveis
em matéria de união estável. Não é o que vem entendendo nossos Tribunais Superiores.

Pela análise feita nos dois últimos anos, percebe-se que o STJ tem entendido que ainda não
tendo sido decidida a partilha de bens do casamento anterior de convivente, é obrigatória a adoção
do regime da separação de bens na união estável, como é feito no matrimônio, com aplicação do
disposto no inciso III do art. 1.523 c/c 1.641, I, do CC/02.

Acresce-se que também privilégios, diferenças não se mostram adequadas, sequer toleradas
pelo direito, que busca incessantemente igualar direitos na medida de suas diferenças.

A lei tem lacunas, não há dúvidas, o CNJ editou o Provimento 141 em março de 2023, em
seu Art. 9º-D em sentido oposto ao que vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça.

Isto posto, conclui-se que o papel dos magistrados tem sido fundamental ao analisarem os
casos concretos tentando buscar o melhor entendimento dentro desta que é uma situação ainda sem
disciplina legal.

Não podemos descuidar do fato de que as pessoas têm que ter a liberdade de casar ou unir-
se estavelmente - seja de fato ou de direito-, sem que busquem a segurança que a propalada
burocracia do casamento impõe, e isto, com toda certeza também traz consequências diversas,
aliás, estas podem inclusive ser as motivações de quem opta por uma ou outra forma de constituir
38
sua família.

Acredito que, como em outras tantas situações, quando a lei é omissa, precisamos buscar
sua regulamentação, sob pena de estarmos correndo o risco de algumas pessoas terem decisões
que façam justiça e outras não, bem como por não haver qualquer segurança jurídica quanto ao
tema, em especial para que aqueles que analisam a forma como pretendem constituir família e se
debruçam em saber quais as consequências da sua escolha.

REFERÊNCIAS

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do Ministro Marco Buzzi, com data de publicação no DJ em 13/10/2022 - SP (2022/0165999-3)
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da Ministra Nancy AndrighiI, com data de publicação no DJ em 28/09/2022 -PR (2022/0065144-
9).

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Editora JusPodivm, 2021.

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www.tjdft.jus.br/institucional/escola-de-administracao-judiciaria/documentos_e-books/e-
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40
LEGADOS NO PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO DE DEPENDENTES
ECONÔMICOS

Anna Carolina Grehs Sulzbach1


Nicole Cavalli Gomes Da Silva2

RESUMO

A presente pesquisa pretende perquirir acerca dos legados de renda, alimentos e usufruto no
planejamento sucessório de dependentes econômicos. Com esse propósito, serão demonstrados os
conceitos, aplicabilidade, e características de cada legado mencionado. Desta forma, o artigo
propõe o uso destes instrumentos jurídicos como alternativa em casos de planejamento sucessório
de indivíduos economicamente dependentes de pessoa falecida que lhes sustentava, de modo a
garantir melhor segurança financeira e manutenção da qualidade de vida ao dependente.

Palavras-chave: planejamento sucessório; dependentes econômicos; legados de alimentos;


legados de renda; legados de usufruto.

1 INTRODUÇÃO

Segundo dados do PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, no


ano de 2021 (IBGE, 2023), para cada 100 pessoas em idade potencialmente ativa (15 a 64 anos)
existem 29,9 crianças ou adolescentes (0 a 14 anos) economicamente dependentes, além de 14,7
idosos (65 anos ou mais) em igual situação de dependência. Isto significa um total de 44,6
indivíduos dependentes para cada 100 pessoas do segmento populacional com maior potencial
para exercer atividades produtivas.

Observa-se que a relação de dependência entre a população potencialmente ativa e a


população dependente economicamente descrita no estudo supracitado é baseada exclusivamente
na idade, não englobando a situação de ocupação. Ou seja, não considera o fato de que existem
jovens ou idosos que trabalham, como também pessoas em idade potencialmente ativa que estão
desocupadas ou sem trabalho.

1
Advogada, inscrita na OAB/RS 106.830, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUCRS, pós-graduada em Contratos, Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário - PUCRS. Membro do Instituto
Brasileiro de Direito das Famílias - IBDFAM.
2
Advogada, inscrita na OAB/RS 128.791, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul -
PUCRS, Pós-graduada em LLM Direito e Processo Tributário - FMP-RS, MBA Planejamento Financeiro -
EABanking School e Gestão Bancária -ESAB.
41
Os dados supracitados indicam que aproximadamente dois terços da população brasileira
é composta por pessoas em idade potencialmente ativa, e, portanto, responsáveis economicamente
pelos demais (crianças, adolescentes e idosos), que compõem quase um terço da população total
do país.

Nesse cenário, identifica-se uma parcela substancial da população em situação de


dependência econômica. O presente estudo analisará o uso de instrumentos já existentes, porém
não muito explorados, no planejamento sucessório - legados de renda, legado de alimentos e
legado de usufruto -, tendo em vista à proteção de pessoas economicamente dependentes. Assim,
pretende demonstrar que os instrumentos mencionados são uma possibilidade para obtenção de
maior segurança financeira aos economicamente dependentes do falecido.

Para isso, inicialmente será abordado o instituto do planejamento sucessório no direito


brasileiro, um panorama sobre como o direito sucessório pode ajudar a estruturar as questões
familiares. Após, com o propósito de garantir uma manutenção da qualidade de vida para os
economicamente dependentes, serão abordados os institutos: i) legado de renda; ii) legado de
alimentos; e iii) legado de usufruto. Ao final da exposição do estudo são abordadas as hipóteses
de caducidade dos legados, bem como a aplicação prática dos legados em referência no trabalho.

2 PLANEJAMENTO SUCESSÓRIO

Tratar do plano de sucessão em vida é uma tarefa complexa e desafiadora. Isso porque,
além do indivíduo contemplar a finitude da vida, precisa perscrutar como será a vida de seus entes
em sua falta. Para isso, terá de analisar questões financeiras, além de questões emocionais,
culturais, pessoais dos herdeiros e daquele que planeja a sucessão (MADALENO, 2014).

O planejamento sucessório auxilia ao menos a diminuir discussões dentro da família


quando do falecimento de um ente querido. Busca-se os melhores caminhos legais para proteger a
herança de acordo com o interesse da pessoa falecida. Esse tema ganha especial relevância quando
existem pessoas economicamente dependentes do falecido, uma vez que a situação de dependência
não termina com a morte do provedor.

Giselda Hinoraka e Flavio Tartuce referem que o planejamento sucessório é uma soma de
ações e negócios jurídicos realizados por aqueles que possuem uma relação jurídica familiar e
sucessória, com a finalidade de realizar a partilha do patrimônio para impedir discussões e
concretizar a vontade do autor da herança (HINORAKA, TARTUCE, 2022, p. 449). Um dos
propósitos do planejamento sucessório, segundo Simone Tassinari Cardoso Fleischmann e Valter
42
Tremarin Junior, é constatar de forma prévia as necessidades da família, a fim de que seja realizado
a organização patrimonial em momento mais cômodo e adequado do que logo após o falecimento
de quem administrava o patrimônio (FLEISCHMANN, TREMARIN, 2022, p. 631).

Dessa forma, sendo existentes filhos maiores, menores ou com deficiência, pais, irmãos,
tios(as), pessoas queridas que são economicamente dependentes, sendo elas herdeiros necessários
ou não, é importante refletir sobre a sucessão daquele que fornece o sustento. Destarte, passa-se a
análise das ferramentas de direito sucessórios aptas a auxiliar no plano de sucessão para os
economicamente dependentes.

3 LEGADOS

Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira define legado como a porção certa e determinada da
herança deixada pelo testador a alguém por título singular (ITABAIANA DE OLIVERA, 1952, p.
143). O legado é instituído por meio de testamento, através da separação pelo testador de bens ou
direitos sobre a universalidade de seu patrimônio. É uma parte determinada da herança, atribuída
pelo testador ao legatário, que assim se fará beneficiário de um direito pinçado dentre o universo
de bens deixados pelo sucedido (MADALENO, 2004, p. 308).

O legado possui até três sujeitos: i) legante (também denominado testador) é aquele que
dispõe de uma liberalidade em testamento; ii) legatário é aquele em cujo favor o testador dispõe
de valores ou de objetos determinados, ou de certa parte deles; e iii) onerado é aquele que deve
cumprir o legado. O onerado pode ser herdeiro legítimo ou testamentário e o legado pode ser
cumprido de forma individual ou coletiva. Isso é, todos os herdeiros podem vir a cumprir o legado
na proporção de suas quotas hereditárias.

Consigna-se que o legado é ato de liberalidade do legatário (DIAS, 2013, p. 417), inexiste
obrigação para sua instituição independente do objeto do legado. Existem diversos objetos que
podem ser instituídos por meio do legado, a título exemplificativo, tem-se legado de imóvel, de
coisa genérica, de coisa singularizada, de coisa localizada, de crédito ou quitação de dívida. Para
fins do presente estudo se irá analisar os legados de renda, alimentos e usufruto e sua aplicabilidade
no planejamento sucessório de pessoas economicamente dependentes do legante, passa-se a
análise de cada instituto.

3.1 Legado de renda

O legado de renda, também chamado de renda vitalícia ou pensão periódica, consubstancia-


se em favorecer o legatário com uma renda ou pensão. A renda deve resultar de bens especificados

43
pelo testador ou constantes na parte disponível da herança, advindos, por exemplo, de aluguéis,
dividendos, participações acionárias, aplicações financeiras (RIZZARDO, 2018, p. 452).

Trata-se de prestação sem finalidade de subsistência. Essa característica é justamente a


diferença entre os legados de renda e de alimentos, uma vez que o beneficiário continua recebendo
os valores legados ainda que inexista a necessidade da renda (MADALENO, 2004, p. 315).

Tendo em vista a ausência de caráter alimentar, sobre a renda não há incidência da


impenhorabilidade. Outrossim, autoriza-se sua transferência, posto que inviável afastar o princípio
da livre disponibilidade, constante nos direitos da propriedade (RIZZARDO, 2018, p. 452).
Cumpre observar que a renda é devida desde a abertura da sucessão, consoante disposto no
artigo 1.926 do Código Civil3. Diferentemente do legado de alimentos, o legado de renda não
possui vencimento antecipado. Assim, é exigível o pagamento da parcela somente após o término
do seu período aquisitivo (DIAS, 2013, p. 416).

O testador tem liberdade para determinar a forma de recebimento das parcelas do legado
de renda. Assim podem ser mensais, semestrais, anuais, mediante termo (receberá o legado após
completar 20 anos) ou condição (receberá a renda depois de passar na universidade). Ademais, as
parcelas podem ser de montantes diferentes. Na prática, por exemplo, poder-se-ia ter: deixo ⅓ (um
terço) do valor legado para quando Cláudia passar na universidade (condição), 3/10 (três décimos)
para quando ela terminar a universidade (condição) e o restante receberá quando completar 30
anos (termo) (MIRANDA, 2012, p. 311).

Consta destacar que o encargo perdura após a partilha, devendo os herdeiros (onerados)
continuarem a realizar o pagamento sem comprometimento da legítima, até o término da parte
disponível da herança ou falecimento do contemplado em caso de pessoa física. Como referido, o
legado de renda pode ter termo ou condição especificadas pelo testador, porém, poderá ser também
vitalício, caso nenhuma outra referência seja imposta no testamento.

Cumpre ressaltar que os legados de renda também se distinguem dos legados de usufruto.
Isso porque, no usufruto percebe-se a renda do bem e seu uso, enquanto na renda recebe-se a renda
fixada, que deve ser atendida por meio do rendimento do bem. Nesse sentido, salienta-se que o
testador poderá designar pessoa para diligenciar a fonte de renda a fim de assegurar o
adimplemento do legado. Em não o fazendo, ficará a cargo do herdeiro essa incumbência (DIAS,
2013, p. 417).

3
CÓDIGO CIVIL Art. 1.926. Se o legado consistir em renda vitalícia ou pensão periódica, esta ou aquela correrá da
morte do testador.
44
3.2 Legado de alimentos

O legado de alimentos é uma espécie de legado de renda (MIRANDA, 2012, p. 253). A


redação do artigo 1.910, do Código Civil, especifica os aspectos da vida que devem ser
contemplados por essa benesse, sinalizando que os alimentos devem atender às necessidades
básicas do beneficiário:

Art. 1.920, CC. O legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a


casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor.

Entende Rolf Madaleno que o legado de alimentos se distingue do legado de renda vitalícia
justamente em razão da subsistência. O objetivo dos alimentos é garantir um mínimo existencial
para uma vida digna. Ao passo que o legado de renda não se correlaciona com essa finalidade
alimentar (MADALENO, 2004, p. 316).

Dessa forma, o legado de alimentos não se convalida caso o beneficiado tenha como se
sustentar, disponha de moradia e aufira rendimentos de modo a conseguir meios de tratar-se em
caso de doença, ou atender necessidades próprias e naturais da subsistência. Nesse contexto, não
há sentido em estabelecer um legado de alimentos para quem não padece de carências econômicas
(RIZZARDO, 2018, p. 448).

Importa destacar que essa espécie de legado pode ser instituída inclusive quando inexistia
em vida a obrigação alimentar com o beneficiário (DIAS, 2013, p. 417). Sérgio Porto esclarece
que o objetivo do legado de alimentos é o sustento material para enfrentar as adversidades da vida.
Reforça o autor que o legatário pode ser parente ou não do testador (PORTO, 2011, p. 50). em
geral, o testador prestava auxílio para o beneficiário ainda em vida (parente ou não), fato que
justifica a continuidade do sustento após o falecimento do testador (RIZZARDO, 2018, p. 447).

Os alimentos podem ser tanto legados in natura ou em dinheiro. Os alimentos in natura se


caracterizam pelo testador determinar o fornecimento de hospedagem ou o fornecimento de
utensílios necessários à subsistência do legatário. Em contrapartida, o legado de alimentos em
dinheiro é mais comum, tendo em vista que é mais fácil de ser executado, pois se perfaz pela
simples transferência de dinheiro (MALUF, 2013, p. 378).

Com relação aos valores do legado de alimentos é importante discorrer acerca da


estipulação da quantia a ser legada. Existem duas possibilidades: i) quando o testador determina
quantia certa e ii) ocasião em que o testador não indica valores.

Registra-se que quando o testador define critérios, forma e valores dos alimentos, ainda
que exista mudança fática na vida do legatário beneficiário, tal situação não autoriza modificação
45
no valor dos alimentos. Isso porque, nas circunstâncias narradas, os alimentos derivados do direito
sucessório são inalteráveis, respeitadas as forças da herança (PORTO, 2011, p. 51).

Assim, ainda que se verifique excessividade ou deficiência, o juiz se instado a se manifestar


não poderá diminuir ou aumentar o quantum (MIRANDA, 2012, p. 251). Isso porque, o testador
quando estipula valores é isento de considerar todas as circunstâncias da condição social do
legatário para arbitramento do valor a título do legado, dado tratar-se de uma liberalidade
(MADALENO, 2004, p. 315).

Nas hipóteses em que o testador não estipula quantia, caberá ao juiz determinar o montante
da verba legada, considerando as forças da herança e a necessidade do alimentando (RIZZARDO,
2018, p. 447). Para isso, aplica-se por analogia o § 1º do artigo 1.694, CC4, averiguando-se a
proporção entre a necessidade do legatário e a possibilidade do espólio. Ressalta-se que nessa
hipótese será considerado o nível social do legatário contemplado pelo benefício (MIRANDA,
2012, p. 251).

Assevera-se que a condição para fazer valer o legado de alimentos é a necessidade do


alimentando, desde que o beneficiário não consiga se sustentar por seus próprios meios ou
trabalho. Desse modo, percebe-se que a continuidade da prestação do legado de alimentos está
atrelada intimamente com a necessidade do legatário. Caso se verifique que o legatário passou a
possuir meios próprios para seu sustento, suspender-se-ia a verba legada. Por outro lado, se recair
em estado de necessidade novamente, poder-se-ia ser retomado o legado (MADALENO, 2004, p.
315).

Ademais, cumpre ressaltar que o legado de alimentos deve ser pago no começo de cada
período aquisitivo, conforme redação do art. 1.928, parágrafo único, se não estipulado de forma
diversa pelo testador5. Ainda, por sua natureza, os alimentos são devidos desde o falecimento do
testador. A regra é que os legados são cumpridos após a partilha de bens, quando já concluído o
inventário. Porém, pelo caráter alimentar, deve-se iniciar quando do compromisso do
inventariante, sendo injustificado aguardar o término da inventariança (DIAS, 2013, p. 418).

O legado deve ser satisfeito dentro das forças da herança e no limite da parte disponível do
patrimônio hereditário. Dessa forma, esvaziada a fonte pagadora, exauridos estão os alimentos,

4
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos
de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades
de sua educação.§ 1 o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da
pessoa obrigada.
5
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.928. Sendo periódicas as prestações, só no termo de cada período se poderão exigir.
Parágrafo único. Se as prestações forem deixadas a título de alimentos, pagar-se-ão no começo de cada período,
sempre que outra coisa não tenha disposto o testador.
46
cessando a obrigação de pagamento, ainda que existente a necessidade. Por isso é importante
destinar bens com rendimentos que possam suprir as necessidades do legatário ao longo do tempo,
como aluguéis ou quantias depositadas em bancos, investimentos aplicados em ações, fundos,
renda fixa. Nesse sentido, implementa-se cláusula no testamento que estabelece que os
rendimentos provenientes de bens ou investimentos se prestam em favor do legatário
(RIZZARDO, 2018, p. 447).

Destaca-se que um herdeiro ou o testamenteiro deve ser incumbido de administrar o


patrimônio deixado ao legatário e entregar os valores ou débitos in natura ao beneficiário. Acaso
não houver disposição acerca de quem incumbe a efetivação do legado no testamento, o juiz irá
determinar a incumbência a alguém que melhor possa cumpri-lo, podendo, inclusive, ser pessoa
estranha à sucessão (RIZZARDO, 2018, p. 448).

O contemplado, verificando que a obrigação não está sendo cumprida, poderá pedir sua
satisfação por meio de ação própria. Conduto, apenas após a determinação pelo juiz do montante
devido, se for o caso de não houver sido estipulado no testamento. Cumpre ressaltar que se o
legatário constatar perigo de insolvência por alienação dos bens da herança, poderá preservar seu
direito com medidas constritivas, a depender do caso, como sequestro de bens e medida de tutela
provisória para proibição de venda (RIZZARDO, 2018, p. 447).

O legado de alimentos é personalíssimo. Essa característica aliada a finalidade de


subsistência enseja as características de impenhorabilidade, inalienabilidade e intransmissibilidade
da verba legada (CAHALI, 2003, p. 403). Essa modalidade de legado é vitalícia, caso o testador
seja silente, perdurando até o falecimento do legatário. Contudo, é possível estabelecer um termo
final. A doutrina refere como exemplo a instituição de encargo de alimentos até a conclusão de
estudos ou até alcançar certa idade (DIAS, 2013, p. 417).

3.3 LEGADO DE USUFRUTO

O usufruto é um direito real sobre coisa alheia, em que o titular da propriedade do bem
transfere a outrem (usufrutuário) a faculdade de uso, gozo e percepção dos frutos por determinado
período6. Assim, o proprietário torna-se nu-proprietário, pois conserva a condição jurídica de
senhor do bem, podendo alienar, instituir ônus real, bem como reivindicar o bem de quem
injustamente o detenha, desde que respeitando o usufrutuário (CARNACCHIONI, 2021, p. 1716).

6
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.394. O usufrutuário tem direito à posse, uso, administração e percepção dos frutos.
47
O objetivo do legado de usufruto é deixar ao legatário o direito real de retirar de
determinado bem (coisa alheia) os frutos e utilidades que esse bem produzir durante certo período
sem alterar a essência da coisa legada (CAHALI, 2003, p. 403). Existem duas modalidades do
usufruto: vitalício e temporário. No primeiro, o usufruto perdura por toda a vida, no segundo há
uma limitação por meio termo prefixado pelo testador.

Trata-se de um direito real de fruição das utilidades e frutos de um bem móvel ou imóvel,
sem interferência na sua propriedade. O usufruto pode abranger bem singular, todo o acervo da
herança ou toda a parte disponível da herança se houver herdeiros necessários7.

O legatário pode ser pessoa física ou jurídica. O usufruto de pessoa física será vitalício ou
até o momento que o legante (testador) determinar. Enquanto, o legado de usufruto da pessoa
jurídica, por sua vez, se extingue uma vez extinta a pessoa jurídica ou pelo decurso do prazo de 30
anos da data em que se começou a exercer8.

A instituição do legado de usufruto deve ser por meio de testamento, como os demais
legados em geral, contudo, sua determinação pode ser com o termo “usufruto” ou outro do qual se
possa exprimir o conceito - vocábulos “uso”, “fruição”, “gozo”. Caso não exista indicação do nu-
proprietário será a quem caberia o bem - herdeiro legítimo ou testamentário (MIRANDA, 2012,
p. 281).

Se o nomeado como usufrutuário falecer antes da abertura da sucessão do testador, a


disposição testamentária caducará. A exceção se configura acaso o testador previu a ocorrência do
falecimento e deixou outra pessoa como usufrutuário em seu lugar. Isso é, por exemplo, dizer que
se A falecer antes do testador B, o usufrutuário será C. Nesse caso não é configurado usufruto
sucessivo, sendo possível a estipulação (MIRANDA, 2012, p. 259).

Se existe termo ou condição para início do usufruto, a coisa legada é nesse espaço de tempo
dos herdeiros, podendo, inclusive, ser adjudicada se realizar a partilha. Todavia, uma vez
implementada o termo/condição reverte ao beneficiário (MIRANDA, 2012, p. 259). Ademais,
inexiste óbice para o testador deixar a nua propriedade ao seu herdeiro e legar o usufruto do bem
a outra pessoa beneficiária ou ao contrário. Também há possibilidade de o legado de usufruto de
forma simultânea, sendo instituído dois ou mais legatários usufrutuários (CAHALI, 2003, p. 403).

7
CÓDIGO CIVIL: Art. 1.845. São herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Art. 1.857.
Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua
morte.§ 1 o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.
8
Código Civil: Art. 1.410. O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis: II -
pela extinção da pessoa jurídica, em favor de quem o usufruto foi constituído, ou, se ela perdurar, pelo decurso de
trinta anos da data em que se começou a exercer;
48
Com efeito, assemelha-se ao legado de alimentos, pois possui como finalidade natureza
alimentar, auxiliando na subsistência do usufrutuário. Contudo, distingue-se dele, pois ainda que
o beneficiário não tenha necessidade dos rendimentos provenientes dos bens dados em legado de
usufruto, a carência financeira não é condição para sua continuidade. Portanto, se não fixado termo
para o usufruto, em que pese inexistir dependência econômica, o legado de usufruto é válido e se
extingue apenas com o falecimento do usufrutuário, se pessoa física e se pessoa jurídica da sua
dissolução ou pelo decurso de 30 anos, conforme anteriormente exposto.

3.4 CADUCIDADE

A caducidade do legado ocorre em virtude de causas supervenientes à sua instituição,


tornando-o ineficaz. Ressalta-se que a caducidade diz respeito ao plano da eficácia e não se
confunde com a nulidade, pois o vício nulo engloba o ato desde a sua criação, enquanto a
caducidade é a ineficácia por motivo superveniente (DIAS, 2013, p. 419).

As hipóteses e disposições acerca da caducidade estão contempladas no artigo 1.939 e


seguinte do Código Civil9. Passa-se a análise de cada possibilidade de caducidade.

A primeira situação consiste na mudança substancial da coisa legada, se ela for certa,
singularizada e individualizada. No caso, o testador pessoal e conscientemente ou pessoa por sua
ordem ou consentimento realiza a transformação do bem, por exemplo, joias transformadas em
barras de ouro, tábuas de madeiras que viraram móveis. Se a(s) alteração(ções) não foram
realizadas pelo testador ou não tiveram seu consentimento, bem como se forem decorrentes do
caso fortuito ou força maior, o legado não irá caducar (VELOSO, 2017, p. 735). Além disso, na
modificação parcial recai a caducidade. Ou seja, se o testador legar um terreno e determine que
seja construído um prédio nele, se possível destacar área do terreno que havia o legado, ele será
eficaz sobre a parte em que não existe construção (RIZZARDO, 2018, p. 477).

O segundo caso é a alienação da coisa legada. A alienação voluntária da coisa legada


independente do título (gratuito ou oneroso - doação, compra e venda, permuta) pelo testador após
a realização do testamento modifica sua vontade em cumprir o legado. Assim, o testador é
dispensado de revogar ou modificar o testamento (HIRONAKA, 2014, p. 324). No caso de ser

9
Código Civil, Art. 1.939. Caducará o legado: I - se, depois do testamento, o testador modificar a coisa legada, ao
ponto de já não ter a forma nem lhe caber a denominação que possuía; II - se o testador, por qualquer título, alienar
no todo ou em parte a coisa legada; nesse caso, caducará até onde ela deixou de pertencer ao testador; III - se a coisa
perecer ou for evicta, vivo ou morto o testador, sem culpa do herdeiro ou legatário incumbido do seu cumprimento;
IV - se o legatário for excluído da sucessão, nos termos do art. 1.815; V - se o legatário falecer antes do testador.
49
parcial a venda, o legado irá caducar na parte em que não mais pertence ao testador (VENOSO,
2017, p. 735).

Controvertida é a questão quando o testador vende e depois recompra o imóvel legado. Na


hipótese, Zeno Veloso entende que o fato do bem antes alienado ser devolvido ao domínio do
testador não restabelece o legado. O testador que quiser assegurar o legado deverá realizar novo
testamento nesse sentido. Contudo, salienta o doutrinador que quando a alienação é invalidada por
vício de consentimento ou considerada inexistente, impossível presumir a verdadeira vontade do
testador. Assim, a liberalidade do legado é mantida (VELOSO, 217, p. 736). Rolf Madaleno
argumenta que a venda involuntária, como a desapropriação, não acarreta demonstração de
substituição da vontade do testador, por isso, o legatário sub-roga-se no valor da desapropriação
(MADALENO,2004, p. 325).

O perecimento da coisa legada é a sua destruição, o legatário ficará com parte da coisa se
essa tiver sido parcial. Se o perecimento ocorrer antes da morte do testador, não há indenização,
posto que o legado não subsiste, assim como se houver desaparecimento em virtude de caso
fortuito ou força maior. No entanto, caso o herdeiro ou onerado tiverem culpa pelo perecimento,
caberá indenização ao legatário (DIAS, 20013, p. 420). Com relação à evicção, existe decisão
judicial declarando que o bem pertence a terceiro. Nesse caso, o bem não era do testador, sendo
ineficaz o legado (RIZZARDO, 2018, p. 478).

Outra hipótese é a indignidade do legatário. Esse dispositivo teve como propósito excluir
o legatário ingrato, aquele que atentou contra a vida, honra ou liberdade do testador, conforme art.
1.814 do Código Civil10. Para isso, é necessária ação sucessória de indignidade a fim de que em
sentença seja decretada a prática de indignidade. Observa-se que os atos de indignidade devem ter
ocorrido antes da realização do testamento para serem aptos a caducar o legado. Entende-se que
se o testamento foi escrito posteriormente, o testador perdoou o legatário (RIZZARDO, 2018, p.
478).

A última figura da caducidade é o falecimento do legatário antes da morte do testador.


Falecendo o legatário não há sujeito passivo para receber o legado. Na sucessão testamentária não
há o direito de representação. Dessa feita, o legado apenas subsiste se for indicado substituto no
testamento ou houver direito de acrescer entre coerdeiros - quando é definido em cláusula

10
CÓDIGO CIVIL - Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: I - que houverem sido autores,
co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge,
companheiro, ascendente ou descendente; II - que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou
incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; III - que, por violência ou meios
fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.
50
testamentária que mais de herdeiro irá ser legatário de um bem em parte não determinada, se um
herdeiro falece, ficam os demais com a parte que seria de outro herdeiro, previamente morto
(MIRANDA, 2012, p. 416).

3.5 APLICABILIDADE

Depreende-se em razão das características apresentadas anteriormente que os legados de


renda, alimentos e usufruto podem ser uma boa alternativa para o sustento de pessoas
economicamente dependentes do testador. No ponto, pode-se identificar na prática qual a
necessidade de cada pessoa, seja ela filhos menores, pais, parentes colaterais do testador, a fim de
discernir qual instituto pode ajudar no melhor caminho do planejamento sucessório.

Ademais, a possibilidade de o testador determinar o legado de forma vitalícia ou mediante


termo ou condição é um recurso bastante útil, pois oportuniza a elaboração de planejamentos
sucessórios individuais, ainda que sejam utilizados institutos sucessórios clássicos.

A fim de compreender a aplicação prática dos legados citados, procede-se a exemplos de


utilização dos legados expostos no trabalho para dar uma visualização prática de como podem ser
usados.

Suponhamos que um homem possua dois filhos de dois casamentos diferentes, já


divorciado de ambos pelo regime da separação de bens. O filho do primeiro casamento é maior e
capaz, com 30 anos na data do falecimento do genitor, enquanto o filho do segundo casamento é
menor com 14 anos na data do falecimento do genitor. O pai possui um apartamento na cidade,
um apartamento na praia, além de dinheiro em investimentos.

Nesse caso, considerando que os únicos herdeiros necessários são os dois filhos, a partilha
de bens será de 50% para cada um deles, se nada dispuser o pai em contrário em testamento. Assim,
ainda que o pai tenha custeado a vida do filho maior até a idade de 28 anos, provendo-lhe todo seu
sustento com moradia, pensão, um carro por ter passado na universidade, a forma de divisão da
herança entre os dois filhos será de 50% (cinquenta por cento) para cada filho da herança existente
no momento do falecimento, se não houver estipulação diferente.

Em razão disso, a fim de tentar igualar essa disparidade entre os filhos, seria possível
utilizar os legados respeitando a legítima e utilizando a parte disponível do patrimônio. Para isso,
pode-se determinar em testamento o uso de um apartamento até os 28 anos do filho menor, além
de uma renda mensal em valor pré-determinado, com índice de atualização escolhido até a idade
de 28 anos, como despendido pelo pai ao filho maior.
51
Outra hipótese poderia ser de um irmão idoso que não possui condições de se sustentar e
na qualidade de irmão não é herdeiro do testador, pois esse último possui esposa e filhos. Nesse
caso, com o intuito de não deixar desamparado irmão que inclusive ajudava em vida, porém, de
forma informal, poderá em testamento determinar um legado de alimentos, a fim de contribuir para
a subsistência do irmão.

Poder-se-ia ponderar acerca de diversas circunstâncias em que os legados apresentados são


aptos a auxiliar famílias na organização de seu planejamento sucessório. O intuito da
exemplificação era demonstrar que os institutos clássicos também são eficazes
contemporaneamente.

4 CONCLUSÃO

O estudo do planejamento sucessório ganha especial relevo quando analisado no âmbito


dos economicamente dependentes do falecido. Importante esmiuçar a situação de cada família, a
fim de realizar um plano de sucessão adequado.

Demonstrou-se que os legados podem ser utilizados como dispositivo para o planejamento
sucessório, em especial, aqueles que visam a subsistência para pessoas economicamente
dependentes da matriarca ou do patriarca da família.

Assim, foi analisado o legado de renda, legado de alimentos e legado de usufruto. O legado
de renda consubstancia-se em renda ou pensão sem finalidade de subsistência, não estando atrelada
a sua prestação unicamente à sobrevivência do legatário. Em contrapartida, o legado de alimentos
está umbilicalmente relacionado ao sustento do legatário. Dessa forma, uma vez que o
contemplado possua condições de garantir a si o mínimo existencial, suspender-se-ia a benesse.
Ainda, no âmbito dos legados, foi analisado o instituto do usufruto, em que se verificou sua
utilização principalmente em imóveis, para garantia do sustento ou moradia de dependentes do
falecido.

Ademais, foram referidas as hipóteses de caducidade dos legados de forma geral, ou seja,
causas supervenientes à sua instituição que os tornam ineficazes. Cumpre ressaltar que todas as
hipóteses analisadas são aplicáveis aos legados mencionados no estudo.

Ao final, foram analisadas hipóteses de aplicação dos legados referidos, sendo utilizados
exemplos para demonstrar a sua possibilidade de utilização prática, destacando-se que os legados
podem ser utilizados para filhos menores, filhos com deficiência, pais, irmãos, tios, sobrinhos,
conforme a vontade e necessidade do autor da herança.
52
Por todo o exposto, manifesta a relevância de desenvolver um olhar acurado para as
ferramentas de legados de renda, alimentos e usufruto, que podem ser utilizadas de forma
personalizada a cada caso de planejamento sucessório, a fim de realizar um plano de proteção e
manutenção da qualidade de vida, em especial para os economicamente dependentes do falecido.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em:
<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acessado em: 29 set.
2023.

CAHALI, Francisco José. Curso avançado de direito civil: direito das sucessões. Gisela Maria
Fernandes Novaes Hironaka. [coordenação Everaldo Augusto Cambler] - São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2003. V.6. Giselda Hinoraka informa que em virtude da finalidade do legado de
alimentos, ele será sempre inalienável e impenhorável.

CARNACCHIONI, Daniel. Manual de direito civil: volume único. 5ed.rev.ampl. e atual. - São
Paulo: JusPodivm, 2021.

DIAS, Maria Berenice. Alimentos aos Bocados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

FLEISCHMANN, Simone Tassinari Cardoso, TREMARIN JUNIOR, Valter. Reflexões sobre


holding familiar no planejamento sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (coord). Arquitetura
do planejamento sucessório tomo I. Belo Horizonte. Fórum 3ª ed.ed.rev e atual. 2022, Tomo I.

HINORAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, TARTUCE, Flávio. Planejamento sucessório:


conceito, mecanismos e limitações. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (coord). Arquitetura do
planejamento sucessório tomo I. Belo Horizonte. Fórum 3ª ed.ed.rev e atual. 2022, Tomo I.

IBGE – Rendimento de todas as fontes – características gerais dos moradores 2020-2021.


Disponível em: <https://static.poder360.com.br/2022/07/populacao-ibge-2021-22jul2022.pdf>.
Acessado em: 25 jan. 2023.

ITABAIANA DE OLIVERA, Arthur Vasco. Tratado de direito das sucessões, 3. ed.vol.3.1952

MADALENO, Rolf. Planejamento Sucessório. Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões, Belo


Horizonte, n. 1, p. 11-33, jan./fev. 2014.

MADALENO, Rolf. Legados e direito de acrescer entre herdeiros e legatários. In: HIRONAKA,
Giselda Maria Fernandes Novaes e PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coords). Direito das sucessões
e o novo código civil/ Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Rodrigo da Cunha Pereira,
coordenadores. - Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

MALUF, Carlos Alberto Dabus; FREITAS, Adriana Caldas do Rego. Curso de direito das
sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013.

53
MIRANDA, Pontes de, 1892-1979. Direito das Sucessões: sucessão testamentária, disposições
testamentárias em geral. Atualizado por Giselda Hinoraka, Paulo Lôbo. - São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2012. - (coleção tratado de direito privado: parte especial; 57).

PORTO, Sérgio Gilberto. Doutrina e prática dos alimentos. 4ª ed. rev.e atual. com notas a respeito
do projeto de um novo CPC. - São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Sucessões. 10. ed., rev. atua. amp.- Rio de Janeiro: Forense,
2018.

VELOSO, ZENO. Disposições testamentárias e legados. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.
RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (coords.) Manual de direito das famílias e das sucessões - 3ª
edição revista e atualizada de acordo com o novo CPC/ Ana Carolina Brochado Teixeira e Gustavo
Pereira Leite Ribeiro (coordenadores) - Rio de Janeiro: Processo, 2017.

54
ALIENAÇÃO PARENTAL E SUA NECESSÁRIA REGULAMENTAÇÃO
LEGAL

Carlos Eduardo Lamas1

RESUMO

A Alienação Parental é considerada um fenômeno social, psicológico e jurídico, sendo uma


realidade dentro do judiciário, porém, não imune a críticas. A existência de inúmeros projetos de
lei na tentativa de revogar a lei concretizam o movimento contra a teoria de Richard Gardner,
gerando calorosos debates na comunidade jurídica e da psicologia. O Brasil foi o primeiro país a
ter uma legislação específica sobre o tema, servindo de exemplo para aplicação em outros países,
uma lei que prioriza o interesse das crianças e dos adolescentes, em detrimento a atitudes que
visam afastar o filho ou a filha de um dos genitores, sem motivo. Observou-se que a revogação da
lei não traz nenhum benefício às crianças, ao contrário, deixa de as proteger. Logo, se faz
necessário para além da manutenção, a reflexão sobre possíveis melhorias no texto legal.

Palavaras-Chave: alienação parental; revogação; lei 12.318/2010; criança e adolescente.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A alienação parental é um tema pulsante e preocupante nas varas de família, afetando


famílias em todo o mundo. O fenômeno caracteriza-se pela programação de um dos genitores para
que a criança repudie o outro genitor, passando a odiá-lo, tornando aquela narrativa nefasta em
uma verdade, mesmo que não a seja.

Não nos resta dúvida que a Lei da Alienação Parental – Lei 12.318/2010 -, surgiu como
um importante instrumento legal para combater e prevenir essa prática danosa, com o intuito de
assegurar o equilíbrio das relações entre os pais e mães que não convivem entre si, no melhor
interesse efetivo dos filhos e da necessidade de assegurar a manutenção dos vínculos de
convivência para um bom desenvolvimento psicossocial das crianças e dos adolescentes.

Ao longo dos anos a lei tem sido atacada através de um movimento que clama por sua
revogação, evidenciando e distorcendo sua aplicação, sob a “falsa” alegação de que é uma lei que
protege pais abusadores, uma lei sobre um tema sem comprovação científica e que serve para
desprestigiar a maternidade.

Neste contexto, o presente artigo tem como objetivo analisar os principais fundamentos
que embasam a Lei da Alienação Parental, com base na vasta doutrina e jurisprudência,

1
Advogado, especialista em Direito de Família Formação em Psicologia Jurídica. Presidente do Núcleo de Pelotas do
IBDFAM/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS.
Conselheiro da OAB Subseção Pelotas/RS. OAB/RS 73976. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com.
55
compartilhando a reflexão sobre sua manutenção.

2 A LEI 12.318/2010 E SUAS ALTERAÇÕES

Em primeira análise, faz-se necessário desenvolvermos a compreensão sobre a


cientificidade da Alienação Parental, que nasce a partir do desbravamento das fronteiras da
psicologia e do direito. Tal análise é importante, tendo em vista a atual campanha de descrédito
relativo à Alienação Parental no Brasil.

Richard Gardner, médico psiquiatra e psicanalista, foi o responsável pela teorização


chamada Síndrome da Alienação Parental, um distúrbio por ele identificado que atinge crianças e
adolescentes expostos ao conflito dos pais, no âmbito de processos judiciais de disputa de guarda,
e que representa verdadeira lavagem cerebral dos filhos em favor de um dos genitores (WAQUIM,
2021). Sua primeira descrição sobre o fenômeno se deu em 1985, em artigo nomeado “Recent
trends in divorce and custody litigation” (Tendências recentes em litígios de divórcio e custódia).

Contudo, insta destacar que a Alienação Parental vinha sendo estudada e pesquisada há
muito tempo, com destaque para dois autores, Wilhelm Reich, 1949, que já afirmava no seu livro
“Análise do Caráter”, que alguns pais divorciados se defendem contra os narcisistas feridos
lutando pela custódia de seus filhos e difamando seu ex conjuge e em 1952, Louise Despert, em
seu livro “Filhos do Divórcio”, indica que existe, por vezes, uma tentação de um dos pais de
decompor o amor do filho pelo outro pai.

Blush e Ross também baseados em experiências profissionais como peritos em varas de


família, traçaram o perfil dos pais separados, observando que as falsas acusações de abuso sexual
e distanciamento de um dos genitores dos filhos também eram causas de alienação, chegando a
defini-la como Síndrome de SAID – Alegações Sexuais no Divórcio (FREITAS, 2015).

Existiram outras nomenclaturas nefastas para o fenômeno, que talvez tenham contribuído
para a não aceitação por parte da sociedade, como Sindrome da Mão Silenciosa, Síndrome da
Interferência Grave, Síndrome de Medeia, baseado na mitologia grega, quando os pais separados
adotam a imagem dos filhos como extensão deles mesmo.

Certo é que diversos profissionais apresentavam, em verdade, definições diferentes para o


que Gardner chamou de Síndrome da Alienação Parental, em virtude de ter a mesma forma e ação
e a mesma reação psicológica das crianças. Nesse neologismo, conforme as palavras de Douglas
Phillips Freitas (2015), a que “vingou” foi a nomenclatura utilizada por Gardner, chegando ao
Brasil por meio de pesquisas de profissionais vinculados ao desenvolvimento infantil e ao direito
56
de família.

Mas é necessário contextualizar o momento histórico na qual Gardner se posicionou. O


surgimento da Alienação Parental está ligado à mudança de paradigma jurídico utilizado à época
para a solução das disputas de guarda, coadunando-se às mudanças dos papeis sociais de pais e de
mães naquele período.

Até o início do século XX a custódia paterna era a preferência clara das decisões judiciais,
baseadas no entendimento de que o homem era o chefe da família. Já no final dos anos 70, a justiça
norte americana destinava cerca de 80% das guardas às mães. A mudança do paradigma à época
se deu pela construção do chamado “mito do amor materno” (WAQUIM, 2021), em que o amor
de uma mãe pelos filhos seria inato, incondicional e inerente à sua condição feminina. Após este
período de total encantamento com a guarda materna, passou-se a utilizar-se a doutrina do melhor
interesse da criança, em que não se utilizou mais a ideia de presunção de que a guarda materna se
sobreporia à paterna, entendendo-se pela a igualdade dos pais à custódia. Este era o cenário de
evolução jurídica e cultural na qual Gardner se encontrava quando nomeou a Síndrome da
Alienação Parental.

Um pouco depois, a ideia foi difundida também na Europa, a partir das contribuições de
F. Podevyn (2001), entre outros, despertando interesse tanto da área jurídica como da psicologia.

O Brasil foi o pioneiro na criação da legislação específica da Alienação Parental,


introduzindo também medidas no Estatuto da Criança e do Adolescente, tornando o processo de
tramitação urgente no Código de Processo Civil e mais recentemente, com a alteração advinda da
Lei 13.431/2022 passou a considerar o ato de alienação parental como um maltrato e violência
contra a criança e o adolescente.

Pela perspectiva legal, considera-se ato de alienação parental a interferência na formação


psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós
ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que
repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este
(Artigo 2º da Lei 12.318/2010).

Além do conceito legal, não se pode deixar de considerar o conceito teórico de Alienação
Parental. Tomemos como fonte de representação teórica os dizeres de Jorge Trindade, que
conceitua o fenômeno como sendo um programar a criança para odiar, sem motivo, um de seus
genitores até que a própria criança ingresse na trajetória de desconstrução deste genitor (Trindade,
2021).

57
Observa-se que os conceitos legal e teórico possuem similitudes e conexões, sendo que o
conceito legal necessita expressar-se por meio de verbos nucleares constitutivos da ação contida
na norma, enquanto o conceito teórico destaca que a alienação parental não constitui um ato
isolado, eventual ou circunstancial, ao contrário, envolve uma programação, um conjunto de
práticas destinadas a atacar a pessoa alienada (TRINDADE, 2014).

O que se pode observar do conceito legal de Alienação Parental é que o fenômeno não se
dá em atos isolados, ou seja, dar-se-á somente quando ocorrerem a partir de um padrão de condutas
que se estende ao longo do tempo com o objetivo inequívoco de enfraquecer os laços com o outro
genitor.

A Lei nos traz ainda, em seu art. 2º, § único, a indicação exemplificativa dos atos
alienadores, o que facilita a averiguação do julgador. Contudo, sabe-se que o alienador é
silencioso, por vezes criativo, de modo que o referido artigo deve ser lido e interpretado sem
amarras, não se prendendo somente naquilo que ali consta.

Acrescenta a referida lei em seu artigo terceiro que a Alienação Parental viola os direitos
fundamentais da criança e do adolescente à convivência familiar e constitui abuso de direito. Sendo
certo que é necessário na ordem jurídica brasileira o reconhecimento do fenômeno
casuisticamente, seja em ação autônoma ou incidental, nos termos de seu art. 4º, assegurando ainda
a intervenção e análise da equipe psicossocial, conforme o art. 5º.

Já no seu artigo 6º apresenta as possibilidades, que a elas não se restringe, de se tentar


minimizar ou extinguir os atos alienadores, aplicando algumas sanções, alvo de muitas críticas.
Não por isso, muito da mudança da Lei se passou pelo referido artigo.

No ano de 2022, diante da análise de inúmeros projetos de revogação e alteração da Lei


originária da Alienação Parental, o Senado, após sanção presidencial, converteu o Projeto de Lei º
634/2022 em Lei n. 14.340/2022, optando-se pela manutenção da Lei, com algumas alterações
pontuais.

Das alterações, destaca-se a possibilidade de convivência assistida, a revogação da


possibilidade de suspensão da autoridade parental e o depoimento especial.

A nova lei traz a possibilidade de convivência assistida, ressalvados os casos em que há


eminente perigo à criança, assegurando ainda que tal convivência possa se dar em ambiente forense
ou em entidades conveniadas com a justiça. O acréscimo legislativo reforça a importância da
convivência familiar para a manutenção e/ou a construção de vínculos familiares, já que muitas
vezes a convivência assistida é prejudicada por não haver local adequado para sua concretização,

58
assim como pela dificuldade de se estabelecer quem será o responsável por assisti-la.

A suspensão da autoridade parental foi considerada uma punição exagerada para ser tratada
pela Lei de Alienação Parental, não mais podendo ser aclamada pela mesma, contudo, há de se
ressaltar que nada impede que a suspensão ou destituição do poder familiar possa ser decretada
em ação autônoma com base na prática dos atos alienadores, fundamentando-se nos artigos 24 e
155 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com competência do Juízo da Infância e da
Juventude.

Nos parece ter andado mal a nova lei indicando a utilização de depoimento especial em
contexto de alienação parental. Isto porque, se a alienação é considerada uma violência psicológica
e abuso de direito, se equivalendo a uma coação moral, por óbvio o relato da criança será eivado
de vício de nulidade, pois deixa de ser uma narrativa livre, não sendo possível garantir que em
meio a uma discussão de alienação parental a criança estará à vontade para declarar a verdade.

Nosso entendimento é de que a escuta da criança deve se dar diretamente com profissional
habilitado e capacitado para entender aquilo que está entre o dito e o que se deixa de dizer, ou seja,
o psicólogo preparado para interpretar todas as questões subjetivas incorporadas à perícia. Com a
devida vênia, não é o magistrado ou o membro do ministério público que tem a capacidade técnica
de entender e interpretar aquilo que uma criança declara quando está inserida em contextos de
alienação parental. De certa forma, reduzir a análise do caso à escuta da criança e do adolescente
através do depoimento especial pode significar a entrega da decisão aos vulneráveis, que, muitas
vezes, não possuem o discernimento e a maturidade suficientes para a compreensão da dinâmica
familiar em que está inserido (Cysne, 2023).

Para além das alterações acima especificadas, a alteração na lei trouxe um prazo de três
meses para a conclusão dos laudos periciais, o acompanhamento psicológico com relatórios
periódicos (o que não se confunde com laudo) e a nomeação de perito particular.

A criança e o adolescente são, constitucionalmente, os destinatários principais da proteção


do Estado, e assim, consequentemente também da Lei da Alienação Parental, sendo que toda a
construção legislativa, seja a Lei original da Alienação Parental (Lei 12.318/2010), seja a Lei com
suas alterações (Lei 14.340/2022), tem o escopo de proteger estes vulneráveis das atitudes nefastas
de genitores que tentam de todas as formas impedir ou destruir os vínculos com o outro genitor.

A alteração da lei caminha no sentido do seu aperfeiçoamento, ainda que ao nosso entender
tenha retrocedido em alguns aspectos, mas, acima de tudo, denota a imprescindível atuação
interdisciplinar, para que as crianças sejam ouvidas de forma técnica, respeitosa, pecando somente

59
no que concerne a possibilidade do depoimento especial.

Ademais, a luta pela manutenção e melhoramento da Lei ganhou força com as alterações,
pois, além de não ser revogada, reforçou a convivência familiar assistida durante a pendência da
investigação de alegações de violência e abuso ao invés de suspender a convivência.

Não resta dúvida que a Lei que trata da Alienação Parental é uma ferramenta que
conscientiza sobre este fenômeno que é social, psicológico e jurídico, dando possibilidade de que
seja reconhecido e a partir de então serem aplicadas as sanções previstas no artigo 6º, de modo a
proteger única e exclusivamente o direito das crianças e adolescente.

3 O MOVIMENTO PARA REVOGAÇÃO DA LEI 12.318/2010

O direito positivado dá a possibilidade de que as leis promulgadas sejam reformadas ou até


mesmo revogadas, baseado no ideal de que as leis tentam a acompanhar e regular os anseios
sociais.

Ao que se observa tanto dos textos que propõe a revogação da Lei, bem como em
manifestações sociais (redes sociais, congressos, petições em processos judiciais), há inúmeras
críticas tanto à Lei como à teoria intentada por Richard Gardner. Dentre elas temos que a adoção
do termo “síndrome” não seria o correto, a Alienação Parental não existe pois não está listada no
DSM-V e não é reconhecida pelas associações de psicologia, a alegação de que as mulheres
alienam mais que os homens é sexista, que a Alienação Parental é usada para desacreditar
denúncias reais de abusos sexuais e consequentemente protege pedófilos, que existem outras
causas que podem causar afastamento da criança, que Gardner focou seus estudos no genitor
alienador e não na criança, entre outros.

O projeto de Lei nº 498/2018, advindo da “CPI dos maus tratos”, intenta que a Lei
12.318/2010 fora “aprovada com a melhor das intenções de preservar a criança de brigas entre
familiares, tem sido distorcida para intimidar mães, ou pais, que colocam o amor dos seus filhos
abusados acima da cumplicidade com o parceiro abusador”. Deste projeto observou-se a utilização
da figura de Richard Gardner, mais uma vez, como de um pedófilo estimulador da pedofilia,
contendo ainda críticas quanto a invalidade científica de suas observações.

De autoria do deputado Flavinho, o PL 10.639/2018, sustentou que “aprovada com a altiva


intenção de manter a indissolubilidade dos laços afetivos de pais e filhos, acabou por viabilizar um
meio para que os pais que abusaram sexualmente dos seus filhos pudessem exigir a manutenção
da convivência com essas crianças, inclusive retirando-as da presença da mãe”.

60
De forma que não conduz a uma mínima tecnicidade jurídica, o autor do projeto de lei
acima citado conclui seu fundamento de revogação da lei que “abusadores que ainda não foram
condenados por insuficiência de provas inequívocas seguem a usufruir da convivência com a
criança, mesmo com todos os sinais de alerta sendo evidenciados em estudos psicossociais e
mesmo por psicólogos que verificam o temor da criança perante o abusador”.

Há também a alegação de falta de cientificidade do trabalho elaborado por Gardner,


havendo autores que associam sua escrita à “junk science” (ciência-lixo), termo utilizado para
caracterizar, explicar e identificar problemas no relacionamento entre Lei e Ciência, em um
modelo que se baseia em uma compreensão empobrecida do tema e o risco de sua influência na
construção do conhecimento científico, ou seja, manifestações não confiáveis de ciência – ou com
aparência de ciência (WAQUIM, 2021).

A jurista portuguesa, Maria Clara Sottomayor é uma das vozes mais fortes contra a teoria
de Gardner e a Alienação Parental, sustentando que o trabalho de Gardner sobre a síndrome da
alienação parental põe em risco mulheres e crianças vítimas de violência, e que a síndrome da
alienação parental coloca as mães em uma encruzilhada sem saída: ou não denunciam o abuso e
podem ser punidas pela cumplicidade, ou denunciam o abuso e podem ver a guarda da criança ser
entregue ao progenitor suspeito, ou ainda, serem ordenadas visitas coercitivas (MADALENO,
2021).

Em suma estas são as justificativas para a revogação da lei, contudo, há também por parte
do movimento ataques pessoais, seja a juristas ou psicólogos que trabalham com base na Lei e na
teoria, como se pode constar na mídia eletrônica23.

4 A NECESSÁRIA MANUTENÇÃO DA LEI 12.318/2010

Os fundamentos utilizados para a revogação da Lei não são de ordem técnica, e não devem
prosperar. Partem de uma análise que ao fim e ao cabo não se preocupam com a proteção da criança
ou adolescente, mas sim, de objetivos individuais ou ideológicos.
Não há dúvidas de que a Alienação Parental, nomeado por Gardner, foi fonte de estudo de
outros grandes profissionais, lhe trazendo, portanto, evidências empíricas sobre sua existência, em
especial Judith Wallerstein, Amy Baker, Willian Bernett e Ira Turkat, entre outros.
Destaca-se que no estudo apresentado por Amy Baker (Baker 2006), ou seja, antes da
promulgação da Lei, logrou estabelecer três padrões de Alienação Parental, sendo que um deles

2
https://www.intercept.com.br/2023/05/18/abuso-glicia-brazil-psicologa-fortalece-defesa-de-acusados/
3
https://etersec.com/pt-br/em-nome-dos-pais-censura-nao/
61
deu-se em relação ao genitor alienador (gênero masculino), em que se utilizava de seu poder para
ganhar a confiança e a aliança com a criança. Portanto, o argumento de que a alienação parental
originalmente é uma ideia sexista, machista, cai por terra.
Silva e Rabaneda (2018), destaca que o argumento utilizado para justificar a necessidade
de revogação através do projeto de lei advindo da CPI dos maus tratos baseia-se em suposições
extraídas de depoimentos e informações não estatísticas colhidas no curso da referida CPI, de que
a Lei estaria sendo distorcida em sua aplicação, contudo, a mera alegação de má aplicação ou
interpretação equivocada de uma lei, em casos isolados, não é motivo suficiente para justificar
atitude tão extremada, sendo muito mais pertinente o aperfeiçoamento da Lei, bem como, capacitar
todos os profissionais e operadores do direito envolvidos na tarefa de interpretar e aplicar tal
legislação.

O debate nominalista – síndrome de alienação parental – nos parece deturpar o fundamento


da aplicação da lei, pois, independentemente de ser ou não uma síndrome ou uma patologia, existe,
inegavelmente, no contexto forense, um bem jurídico superior a ser protegido, que são as crianças
e os adolescentes, que precisam ficar a salvo de qualquer maus tratos do genitores, seja os atos
alienadores, seja um abuso sexual.

Até porque Gardner ponderou que não seria possível utilizar o termo alienação parental
para o que chamou de Síndrome de Alienação Parental porque há muitas razões pelas quais a
criança pode ser alienada dos pais, como negligência, abuso parental físico, emocional ou sexual,
entre outros.

Não por outro motivo entendemos que a nomenclatura correta seria Atos de Alienação
Parental, tornando-se uma síndrome a partir dos sintomas e consequências advindas da prática.
Contudo, colocar em xeque o fenômeno da alienação parental por conta de sua nomenclatura é
cegar-se a uma realidade vivida dentro dos processos judiciais.

Neste diapasão, tem-se que a Síndrome de Alienação Parental não se confunde com um ato
alienador praticado por um dos pais, mas configura-se como um conjunto sistemático de
procedimentos que alienam o outro cônjuge e familiares, em um manifesto prejuízo aos filhos,
logo, a Síndrome erroneamente nomeada por Gardner, refere-se tão somente às sequelas
emocionais e comportamentais das crianças que sofrem com esta prática (MOLINARI, 2016).

Portanto, não obstante o estudo ter sua base na teoria de Gardner, que descreveu como um
conjunto de sintomas que supostamente a criança sofreria, em nada se confunde com a vigência
da Lei da Alienação Parental, pois a lei em questão trata das condutas que ferem um direito à
convivência familiar e o exercício do poder familiar, no âmbito cível, e não de consequências
62
fisiológicas ou emocionais, que se limitam ao campo doutrinário jurídico e psicológico. A lei serve
para proteger as crianças e os adolescentes, e não para dispor sobre suposta síndrome.

As afirmações depreciativas de que a síndrome da alienação parental carece de consenso


científico, ou seja, que não se tenha evidência científica, em verdade estaria se referindo muito
mais a uma questão de ordem médica, sendo inquestionável que a Alienação Parental é um fato
social que se apresenta em algumas famílias, independente dos rótulos que a ela possam ser
atribuídos judicialmente (MIZRAHI, 2016).

A Alienação Parental deve ser compreendida de forma ampla e sem banalização, pois, nem
todos os conflitos parentais constituem atos de alienação parental, devendo sua análise ser feita
caso a caso, e de forma muito rigorosa, sob pena de se perder a credibilidade quanto ao tema.

A análise profunda do caso concreto deve passar pelo olhar de todos operadores do direito,
em especial os advogados, primeiros juízes da causa, pois, conforme explicita Sandra Inês Feitor
(FEITOR, 2021):

Porquanto, podemos estar diante de situação de abandono afetivo, autoalienação ou até a


utilização oportunista da alienação parental para camuflar situações de abuso, violência doméstica
ou negligência. Importa ainda ressaltar que a alienação parental e abuso sexual ou violência
doméstica são temas que efetivamente se cruzam, mas não se confundem.

Ressalta-se que a Lei n. 12.318/2010 deve ser interpretada extensivamente e em conjunto


com todo sistema normativo que regulamenta o direito da criança e do adolescente (CYSNE, 2021)

Ao contrário do sustentado pelo movimento contrário a Lei da Alienação Parental, a norma


não escancara as portas à pais abusadores, isto porque o processo que julga o crime de abuso é
analisado e processado em vara criminal, que irá se atentar somente sob os indícios e provas do
possível crime e não em alegações de possíveis atos alienadores, que deverão ser analisados nas
varas de família. Logo, sendo apurado o abuso, obviamente irá ocorrer o afastamento do genitor
abusador, ao passo que, constado que não houve, inexistindo, portanto, uma sentença condenatória,
caberá então análise da Alienação Parental no processo que tenha por objeto este tema.

Ora, o direito ao contraditório e a ampla defesa está garantido, jamais haverá a declaração
de alienação parental e a aplicação de suas penas sem antes haver um estudo minucioso do caso
concreto, com a feitura de perícia biopsicossocial, dando oportunidade de defesa de ambos os
genitores, descartando totalmente qualquer possibilidade de se proteger possíveis genitores
abusadores.

A realidade pode impor o cruzamento de práticas de abuso sexual e a alienação parental,


63
assim como cruzam-se a violência doméstica e o abuso sexual, mas infelizmente a falsa acusação
é uma realidade em nossa sociedade e deverá ser considerada a possibilidade de ser falsa ou
verdadeira, e não por outro motivo que é garantido a qualquer pessoa o direito ao contraditório e
a ampla defesa.

Certo é que tem sido convergente o posicionamento de quem tem feito algum uso
enviesado da lei. E, aqui, não está em causa a falsa alegação do crime ou o uso oportunista da
alienação para camuflar casos de violência ou abuso, ou mesmo abandono afetivo ou autoalienação
– isso faz parte e exige do judiciário conhecimento profundo dos diferentes institutos jurídicos e
suas características – está em causa sim, o enviesamento por má aplicação dos tribunais,
compactuando ora com o reestabelecimento de convívio em cenário de violência ou abuso
comprovado sem sede própria, ou com uma inercia tal que perca o sentido de oportunidade e frustre
as possibilidades de reestabelecimentos dos laços de convivência em casos de alienação parental
(FEITOR, 2021).

A retórica, atécnica, de que a Lei de Alienação Parental abre as portas para a pedofilia, ou
que o Brasil é um paraíso para os abusadores sexuais, é totalmente reprovável tendo em vista que
não contempla nenhum respaldo legal, quer constitucional, quer lei ordinária, constituindo uma
violação do princípio da presunção de inocência. Neste passo, se os processos-crimes com
acusação de abuso sexual de um dos genitores é arquivado por inexistência de indícios ou de prova
sobre o alegado abuso ou violência, não cabe, jamais, ao julgador – vinculado ao respeito,
cumprimento e garantia da lei e direitos fundamentais, guardião que é da Constituição – proferir
qualquer juízo valorativo, pejorativo ou considerandos a respeito da capacidade, competência ou
periculosidade daquele progenitor para os filhos e respectivo regime de convivência, sem que a
sua culpa seja provada mediante sentença condenatória com trânsito em julgado (FEITOR, 2023).

Ora, o mau uso oportunista das Leis não é particular da Alienação Parental, ocorrendo de
igual forma em cenários como da violência doméstica com a alegação de legítima defesa, como
exemplo, e nem por isso se fala em revogação destes institutos ou de sua dignidade perante o
ordenamento jurídico.

A realidade nos impõe tanto as falsas alegações de abuso como efetivos abusos reais,
ambas as situações existem, assim como a alienação parental. Cegar-se a estes fenômenos é negar
a realidade do judiciário. O que se percebe é que muitas das falsas alegações se dão pela falta de
aplicação de instrumentos legais que coíbem as práticas alienadoras, deixando desta forma aquele
que age de má-fé realizando falsa denúncia, em uma posição confortável.

O gênero também não pode ser intentado em face da alienação parental, até porque,
64
invariavelmente existe a possibilidade de estarmos diante de uma alienação parental bilateral, em
que ambos os genitores, homem e mulher são agentes alienadores (ROSA, 2021). Ao que se
observa na prática diária da advocacia familista é que tanto o pai quanto a mãe podem ser
alienadores.

A Lei, em nenhum momento faz menção à gênero. A própria teoria de Gardner não traduz
o que é sustentado pelo movimento contra a Alienação Parental, uma vez que em seu artigo
Parental Alienation Syndrome (2001), sustenta que na década de 80 considerava-se que as mães
alienavam em 90% dos casos, mas que só nos casos severos recomendaria a troca da guarda, pois
as crianças eram mais vinculadas à mãe, afirmando que “apenas nos casos severos (cerca de 10%)
quando a mãe é implacável e/ou paranoica eu recomendei a alteração de guarda primaria para o
pai”.

O estudo atento e ético à teoria elaborada por Gardner demonstra que não existe um viés
sexista ou que viesse a promover discriminação de gênero. Acontece que a indicação de que a
Alienação Parental é mais praticada por mulheres se deu diante de uma época em que quase a
totalidade das guardas eram direcionadas à genitora, que ainda, diante de preconceitos e crenças
sociais, carregavam em seus ombros a responsabilidade de criação dos filhos, o que por
consequência culminou na indicação de práticas alienadoras muito mais ligadas as mães.

A cientificidade dos estudos sobre o tema, colocada em xeque também não deve prosperar.
Ainda que a Alienação Parental não fosse considerada científica, não se pode cegar à realidade
fática de muitas famílias brasileiras. A alienação parental deve ser enfrentada como uma patologia
jurídica, caracterizada pelo exercício abusivo de um dos genitores, inclusive gerando a
possibilidade de indenização por dano moral (ROSA, 2021), conforme já decidiu o Tribunal de
Justiça do Mato Grosso do Sul em que mãe e filha vítimas de alienação parental praticada pelo pai
obtiveram a condenação do alienador em R$ 50.000,00 a título de danos morais4.

Logo, não é o cunho científico da medicina ou até mesmo jurídico, constando ou não no
DSM-5 que irá determinar os rumos das decisões judiciais, servindo apenas o fundamental
multidisciplinar como suporte da compreensão das dinâmicas disfuncionalidades do sistema
familiar que possam constituir situação de mal-estar ou maltrato para com a criança com relevância
jurídica, e não uma patologização ou cientificidade do judiciário. Ora, para o direito é irrelevante
o aspecto científico de certo tema para sua tomada de decisão, o direito debruça-se sobre fatos e

4
TJ/MS, Apelação Cível. 0827299-18-2014.8.12.0001, Primeira Câmara Cível. Relator João Maria Lós, julgado em
03/04/2018.
65
provas e não sobre teorias acadêmicas.

Como bem descreve FEITOR (2023), ao judiciário e respectiva tomada de decisão


importam fatos socialmente relevantes o suficiente para o Direito entender dever normatizá-los,
seja por via legislativa ou jurisprudencial.

Pode-se concluir que a Lei da Alienação Parental, ainda que necessitando de ajustes,
apresenta-se como um importante instrumento jurídico dotado de eficácia para identificar esse
fenômeno, optando por uma técnica legislativa descritiva e exemplificativa de hipóteses de
conduta que permitem a identificação mais fácil por parte dos operadores do direito, dos
personagens por ventura envolvidos nesse conflito e dos profissionais de saúde mental
responsáveis pelas avaliações periciais, com o intuito de proteger em primeiro plano a criança,
resguardar a pessoa alienada e fazer cessar os atos praticados pelo alienador, atribuindo-lhe as
respectivas responsabilidades (MOLINARI, 2016).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentadas as considerações gerais sobre o tema, caminhando pela sua conceituação


teórica e legal, pelos fundamentos utilizados para a possível revogação da lei e os que sustentam
a necessidade de manter-se vigente a norma, tem-se que a revogação não elide qualquer dos
problemas justificados, ao contrário, fragilizam a proteção da criança e do adolescente.

Certamente não é a Lei da Alienação Parental o problema ou o obstáculo à proteção da


criança e do adolescente, uma vez que, sendo constado o abuso sexual, a pedofilia, ou qualquer
outro crime contra a criança, não haverá a aplicação da norma em comento, aplicando-se nestes
casos as normas especificas, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código Penal.

Considera-se que a legislação brasileira relativa à alienação parental, que pode ser sim alvo
de melhorias, tem uma harmonia entre direito material e processual que dá a possibilidade, se
utilizadas de forma técnica, com profissionais preparados para tanto, atenuar e inibir os atos
alienadores, bem como, dar a possibilidade de refazimento de vínculos parentais enfraquecidos
pela alienação.

A conscientização da Alienação Parental por todos atores da cena (partes, operadores do


direito, professores, agentes de saúde, médicos psicólogos, entre outros) é a melhor forma de
prevenir sua nefasta conduta, sendo a Lei um instrumento facilitador da compreensão e aplicação
da proteção às crianças e adolescentes.

A alienação parental, ao que se pode observar, não é um tema isento de controvérsias,

66
contudo, é inegável sua existência, independente da terminologia utilizada ou do seu
reconhecimento científico, pois fenômeno social, psicológico e jurídico, cabendo aos tribunais
analisá-la casuisticamente, aplicando sempre o melhor interesse da criança e do adolescente.
O movimento contrário à lei 12.318/2010 ganha força quando polariza os entendimentos,
não se utilizando do debate construtivo para possível melhoria da lei, trazendo informações
midiáticas sem nenhuma comprovação e de cunho totalmente ideológico. Não à toa que o
IBDFAM – Instituo Brasileiro de Direito de Família e Sucessões, diante dos diversos fundamentos
descontextualizados, que distorcem a aplicação da norma sob falsa acusação de que serviria para
favorecer pais abusadores, sem nenhuma evidência científica, ingressou junto ao Conselho
Nacional de Justiça – CNJ com o Pedido de Providências5 solicitando a realização de coleta de
dados por amostragem, em Varas das cinco regiões do Brasil, sobre processos envolvendo o tema
da alienação parental e seus resultados. Tal pedido é de grande importância para trazer os dados
necessários para melhor análise do tema.

A renovação da Lei 12.318/2010 através da Lei 14.340/2022 revigora a luta pela proteção
das crianças e adolescentes, sem fazer qualquer tipo de prevalência de gênero, reforçando o valor
e o mérito da legislação aplicável no ordenamento jurídico brasileiro, porém, necessário nos
atentarmos ao acrescento de responsabilidades de maior empenho e profundidade no estudo do
tema por todos aqueles que se deparam com o fenômeno no âmbito judicial, para que minimizemos
os erros, não permitindo que tanto a teoria quanto a lei sejam utilizados de forma enviesada dos
reais fundamentos incorporados ao fenômeno da Alienação Parental.

REFERÊNCIAS

BAKER, Amy J. L. Patterns of parental alienation syndrome: a quality study of adults who were
alienated from a parent as a child. 2006. Disponível em:
<https://www.researchgate.net/publication/228616324_Patterns_of_Parental_Alienation_Syndr
ome_A_Qualitative_Study_of_Adults_Who_were_Alienated_from_a_Parent_as_a_Child>.
Acesso em: 27 jul. 2023.

CYSNE, Renata. Os encaminhamentos da temática da alienação parental no âmbito do Poder


Legislativo após a aprovação da Lei 12.318/2010. In: Revista IBDFAM: Família e Sucessões. –
Belo Horizonte: IBDFAM, 2021.

FEITOR, Sandra Inês. Alienação Parental na esfera internacional – desafios actuais. O direito
fundamental recíproco à convivência familiar. In: Revista IBDFAM: Família e Sucessões. – Belo
Horizonte: IBDFAM, 2021.

FEITOR, Sandra Inês. Alienação Parental e Convivência Familiar sob a perspectiva dos direitos

5
Pedido de Providências n. 0003894-08.2023.2.00.0000
67
da personalidade. Lisboa: Lisbon International Press, 2023.

FREITAS, Douglas Phillips. Alienação Parental: Comentários à Lei 12.318/2010. 4ª. ed. rev.,
atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.

MADALENO, Rolf. A revogação da lei da alienação parental no Brasil e no exterior. In: Revista
IBDFAM: Família e Sucessões. Belo Horizonte: IBDFAM, 2021.

MOLINARI, Fernanda. Mediação de Conflitos e Alienação Parental. Porto Alegre: Imprensam


Livre, 2016.

ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 8. ed. rev., ampl. e atual. –
Salvador: JusPODIVM, 2021

SILVA, Fernando Salzer e; RABANEDA, Fabiano. Proposta de revogar a Lei da Alienação


Parental é inconstitucional. 30 dez. 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-
dez-30/opiniao-proposta-revogar-lei-alienacao-parental-ilegal>.

TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para operadores do direito. 9º ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2021.

WAQUIM, Bruna Barbieri. O surgimento da Alienação Parental, da síndrome da alienação


parental e da alienação familiar induzida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021.

68
FIXAÇÃO DE RESIDÊNCIA BASE NA GUARDA COMPARTILHADA E SUA
RELAÇÃO COM A ALIENAÇÃO PARENTAL

Carlos Eduardo Lamas1


Marina Kayser Boscardin2

RESUMO
A guarda compartilhada foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro com o intuito de
preservar os vínculos entre filhos de pais separados, indicando um equilíbrio de convivência entre
os genitores, bem como a corresponsabilidade na criação. A lei determina que somente quando os
pais residirem em cidades diferentes deverá ser fixada a cidade base de residência, contudo, as
decisões judiciais vêm fixando o lar de referência mesmo nas situações em que os genitores
residem na mesma cidade, dando uma ideia de que um deles tem mais importância que o outro,
contribuindo para que em contextos de alienação parental a prática seja intensificada, caminhando
na contramão do escopo da guarda compartilhada.

Palavras-chave: guarda compartilhada; criança e adolescente; fixação de residência; alienação


parental.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

No momento em que ocorre a ruptura conjugal, a autoridade parental segue sendo de ambos
os genitores, independentemente do tipo de guarda estabelecido. Apesar disso, a guarda
compartilhada tem preferência em termos de aplicabilidade, justamente por favorecer a
conscientização dos genitores acerca da igualdade parental.

No entanto, ao estabelecer a guarda compartilhada, a tendência é também ser determinada


a fixação de residência em favor de um dos genitores. Considerando que para o desenvolvimento
saudável dos filhos é fundamental que, após a separação dos pais, seja garantida a continuidade
dos vínculos com ambos os genitores, este artigo visa esclarecer o equívoco de tais decisões
judiciais, uma vez que não parecem levar em consideração alguns aspectos de cunho jurídico e
psicológico e podem favorecer a instauração da Alienação Parental.

1
Advogado especialista em Direito de Família. Formação em Psicologia Jurídica. Presidente do Núcleo Pelotas/RS
IBDFAM - RS. Conselheiro Subsecciaonal da OAB Pelotas/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de
Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS. OAB/ 73976. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com.
2
Psicóloga, Especialista em Perícia Psicológica Forense (Universidade Autônoma de Barcelona - UAB). Pós-
graduada em Psicopatologia Clínica (Universidade de Barcelona - UB). Mestre em Psicologia Cognitiva (Escola de
Humanidades da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS). Membro da Sociedade Brasileira
de Psicologia Jurídica (SBPJ).
69
2 ASPECTOS JURÍDICOS

Não podemos falar sobre guarda sem antes analisarmos minimamente a autoridade
parental, que é a situação jurídica complexa que autoriza a interferência dos pais na esfera jurídica
dos filhos, sempre no interesse destes, a qual é exercida até a maioridade ou emancipação
(SCHREIBER, 2018).

No decorrer dos anos, em especial pelo movimento do direito civil constitucionalizado, o


instituto da autoridade parental passou por alterações, tanto legislativas quanto no seu
entendimento doutrinário. Anteriormente, a autoridade parental era tratada como pátrio poder
(Código Civil de 1916), sendo praticamente um autêntico direito de propriedade sobre os filhos,
refletindo uma orientação hierarquizada e patriarcal que enxergava o pai como o chefe de família,
restando às mães todo o cuidado e criação.

A revolução feminina e, posteriormente, o advento da Constituição Federal que equiparou


legalmente a mulher e o homem, sobretudo reconhecendo a dignidade das crianças, fez com que
este pátrio poder perdesse força e sentido. A Carta Magna de 1988 passou a determinar a proteção
integral da criança e do adolescente, tendo em vista serem frágeis, vulneráveis, justificando,
portanto, o tão aclamado Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente.

O Código Civil de 2002, seguindo as luzes jogadas pela Constituição Federal, com a
profunda alteração conceitual do pátrio poder, modificou sua terminologia, passando a adotar a
matéria sob o título de poder familiar, nomenclatura ainda criticada por boa parte da doutrina, que
atualmente vem utilizando a autoridade parental como melhor significante ao instituto. Conrado
Paulino da Rosa, citando Paulo Lobo (LOBO, 2008), vai além, entendendo que a melhor expressão
seria “função parental”, tendo em vista que “autoridade” poderia evocar uma espécie de poder
físico sobre a pessoa do outro.

Podemos observar, no entanto, que a verdadeira função da autoridade parental é possibilitar


à criança e ao adolescente uma condição de autonomia, mediante aquisição de discernimento,
condição essencial para o exercício autônomo de seus direitos fundamentais. Dessa forma, é
assegurada a eles a possibilidade de efetivação de escolhas existenciais, com correlata
responsabilidade, fugindo, deste modo, de uma perspectiva de poder e de dever, passando a ser o
instrumento facilitador da construção da autonomia responsável dos filhos (TEIXEIRA, 2016).

Ponto crucial para análise do problema que o presente artigo traz é a titularidade da
autoridade parental. Ela é exercida em igualdade de condição por ambos os pais, e neste sentido o
Código Civil é claro e objetivo em seu artigo 1.632, que merece destaque: “A separação judicial,

70
o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto
ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.”

A corroborar com o direito de ambos os genitores exercerem a autoridade parental de forma


plena, faz-se necessário compreender mais dois artigos do Código Civil, quais sejam, o caput do
1.634 e o 1.636, senão vejamos:

Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno
exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (...)
Art. 1.636. O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não
perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder familiar,
exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou companheiro.
Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai ou à mãe
solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.

Desta forma, é possível concluir que tal encargo atribuído simultaneamente aos pais não
decorre do casamento ou da união estável, sendo inerente ao estado de filiação desde o nascimento
do filho, e resulta da paternidade/maternidade, constituindo um atributo irrenunciável, intrasferível
e imprescritível, sendo imperioso frisar que as obrigações desse vínculo são personalíssimas
(FERREIRA, 2021).

Dentre os vários deveres advindos da autoridade parental surge o dever de guarda. Na


legislação brasileira temos um sistema dualista: um para a guarda na relação familiar, para quando
há dissolução dos vínculos conjugais dos genitores, e outro como regramento próprio do Estatuto
da Criança e do Adolescente, no que se refere à colocação da criança em família substituta.

No presente artigo trataremos especificamente da guarda quando da dissolução do


casamento ou da união estável.

Atualmente, a regra quanto à guarda, a partir do advento da Lei 13.058/2014, que alterou
o artigo 1.584, §2º, entre outros, é a compartilhada. O referido artigo versa que “mesmo quando
não houver acordo entre mãe e pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores
aptos a exercer o poder familiar, será instituída a guarda compartilhada”.

Logo, somente em duas situações a guarda não será da forma conjunta, a uma quando um
dos genitores não quiser exercê-la, a outra quando um dos genitores não puder exercê-la – quando
estiver suspenso ou destituído do poder familiar, claro, sempre atendendo o melhor interesse da
criança.

Portanto, a antiga discussão (que infelizmente ainda é levada aos tribunais) de que há
impossibilidade no compartilhamento da guarda no litígio, cai por terra. Ademais, utilizando-se
71
da doutrina sempre didática de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2016), é
justamente nesses casos o “palco mais iluminado para o exercício conjunto da guarda”, sob pena
de se submeter a criança ao crivo potestativo – inexistente, pois, contrário ao escopo da autoridade
parental – de um dos genitores.

O mesmo entendimento é dado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em julgado sob a


relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, ficou decidido que:

“a dificuldade de diálogo entre cônjuges separados, em regra, é consequência natural dos


desentendimentos que levaram ao rompimento do vínculo matrimonial. Esse fato, por si
só, não justifica a supressão do direito de guarda de um dos genitores, até porque, se assim
fosse, a regra seria a guarda unilateral, não a compartilhada.” 3

A guarda compartilhada traz inúmeros benefícios para os genitores, em especial para a


criança, uma vez que viabiliza o exercício conjunto da autoridade parental, pois ambos os genitores
dividem responsabilidades nas tomadas de decisões importantes na vida da criança (TEIXEIRA,
2020). Além disso, propicia à criança a manutenção dos vínculos com ambos os núcleos familiares,
diminui a possibilidade de atos de alienação parental, além de manter, ao menos de forma parecida,
o que vinha sendo exercido igualitariamente quando o casal parental ainda era um casal conjugal.

Para a análise do instituto da guarda, temos que observar sua origem, que se deu de
legislação estrangeira na qual a autoridade parental normalmente era atribuída pelo juiz
exclusivamente a um dos genitores4. Já no Brasil, conforme explicitado, a autoridade parental não
se modifica com o divórcio ou a dissolução da união estável.

Ana Carolina Brochado (2020) expõe de forma clara a necessidade da guarda


compartilhada nos países onde não existe a manutenção do poder familiar com o fim da
conjugalidade. Em tais países, o instituto da guarda compartilhada faz todo o sentido, já que, nestes
casos, a guarda atrai o poder familiar, ou seja, o genitor guardião é detentor da potesta.

No Brasil, nos parece que a guarda compartilhada tem muito mais uma importância social,
de conscientização de que ambos os genitores têm os mesmos direitos e deveres com relação aos
filhos do que propriamente uma importância jurídica. Isto porque, acaso aplicada a guarda
unilateral, de igual forma a autoridade parental continua intacta, devendo ambos os genitores

3 REsp 1560594/RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 23/02/2016, DJe
01/03/2016.
4
Tomemos como exemplo o Código Civil Francês em vigor até o ano de 2002 e Código Civil Italiano que entrou em
vigor no ano de 2006, passando a ter a guarda compartilhada como regra.
72
participarem das decisões importantes da vida dos filhos, bem como de toda sua educação, de
forma igualitária.

Apesar da crítica à Lei da Guarda Compartilhada, entendemos que sua aplicabilidade é de


fundamental importância para a movimentação cultural de igualdade parental.

É evidente que embora se estabeleça legalmente competir a ambos os pais o pleno exercício
do poder familiar em relação aos seus filhos, independente da situação conjugal, o estabelecimento
da guarda exclusiva a um dos genitores acaba por enfraquecer o exercício do poder familiar
daquele que não detém a guarda. Nesse sentido, importante considerar que todo o cotidiano da
criança, e sua relação com o meio social, assim como seu direcionamento educacional, proteção,
vigilância, serão exercidos isoladamente pelo genitor guardião, cabendo apenas ao outro a
fiscalização e supervisão do exercício da parentalidade, além do direito à convivência. Ao genitor
não guardião, não raramente o papel parental acaba sendo exercido somente em finais de semanas
alternados, corroborando com o enfraquecimento do vínculo afetivo, aumentando a possibilidade
de que, se existentes, as práticas alienadoras se perfectibilizem e se intensifiquem no decorrer do
tempo.

Acontece que, mesmo havendo a determinação da guarda compartilhada, sua aplicação na


prática vem causando certa desconformidade, em especial a fixação de uma base de moradia/lar
referencial da criança/adolescente.

Tomemos como exemplo didático a ementa do Tribunal de Justiça Gaúcho:

Ementa: APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DE GUARDA


CUMULADA COM EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. GUARDA
COMPARTILHADA. FIXAÇÃO DA BASE DE MORADIA NA RESIDÊNCIA
MATERNA. ALIMENTOS FIXADOS DE ACORDO COM O BINÔMIO
ALIMENTAR. ALIMENTANTE QUE EXERCE ATIVIDADE LABORAL
MEDIANTE VÍNCULO FORMAL DE EMPREGO. BASE DE CÁLCULO -
CONCLUSÃO Nº 47 DO CENTRO DE ESTUDOS DO TJRGS.
REDIMENSIONAMENTO DOS ÔNUS SUCUMBENCIAIS. 1. No caso em apreciação,
convencionado o compartilhamento da guarda, providência que, além de atender ao
disposto no art. 1.584, § 2º, do CC (nova redação dada pela Lei nº. 13.058/14), apresenta-
se como sendo o arranjo mais adequado ao atendimento dos superiores interesses do filho,
deve ser fixada como base de moradia a residência da genitora (e não em ambas as
residências, como pretendido pelo genitor), pois é essencial que a criança tenha um
referencial de moradia, já estando, na hipótese, o infante acostumado a ter como
base de residência a casa materna.(...)(Apelação Cível, Nº 70083984534, Sétima
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Afif Jorge Simões Neto, Julgado em:
02-10-2020)

73
Observa-se que o padrão utilizado nas decisões judicias não contempla o real significado
da guarda compartilhada, sendo aplicada, portanto, de modo incoerente e em desconformidade
com a legislação civil.

Ao observarmos o artigo 1.583 do Codex, temos que não há nenhuma determinação de que
deva ficar registrado qual o lar de referência ou base de moradia. Versa o referido artigo que a
cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender ao interesse destes,
o que não se pode confundir com a determinação de uma residência fixa, como se vem observando
nas decisões judiciais.

A indiferença quanto à determinação de fixação de residência quando da atribuição da


guarda compartilhada se dá pois o artigo 76 do Código Civil determina que o domicílio do incapaz
é o do seu representante legal. Portanto, como ambos os genitores estarão investidos do poder
familiar, temos que a residência do incapaz (menor de idade) será de ambos os
representantes/genitores, independente da situação conjugal, sendo ambos responsáveis
igualitariamente sobre a criança/adolescente.

Anderson Schreiber (2019), em considerações ao artigo acima indicado, aponta que


existem domicílios necessários, como por exemplo, o menor sob autoridade parental, cujo
domicílio será forçosamente o dos pais. Para além do entendimento do nobre doutrinador,
acrescentamos que deverá ser aplicada a regra independente da situação conjugal daquele casal
parental.

Logo, a residência fixa ou lar referencial deverá ser mencionado somente nos casos em
que os genitores residirem em cidades diversas, pois nestas situações fáticas se faz necessário,
conforme determina § 3º do artigo 1.583.5

O argumento de que a fixação da residência na guarda compartilhada seria necessário para


que fosse estipulado o genitor que teria a obrigação de pagar a pensão alimentícia (FARIAS, 2022)
também não deve prosperar. Para haver essa estipulação, pode o magistrado determinar que um
dos genitores fique responsável pela administração da pensão – geralmente para aquele que terá
uma convivência maior - e ao outro a obrigação de pagar, sem precisar mencionar que a base de
residência ou lar referencial será com um ou outro genitor.

O que vem se observando através das decisões judiciais é que se acaba criando, por
imposição judicial, o sentimento de que a casa daquele genitor que “não é o da residência fixa” é

5
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
§ 3º Na guarda compartilhada, a cidade considerada base de moradia dos filhos será aquela que melhor atender aos
interesses dos filhos. (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014)
74
um lar de “visita”, indo totalmente na contramão do escopo da guarda compartilhada. Como
consequência, pode-se considerar que tal tipo de fixação favorece a instauração da Alienação
Parental, uma vez que o genitor detentor da residência fixa do filho pode assumir uma postura de
poder e “posse”, alijando o outro genitor do efetivo exercício do poder familiar, ato especificado
no art. 2º, inciso II, da Lei da Alienação Parental – Lei 12.318/2010.

Se a convivência se dá realmente de forma equilibrada, como determina a guarda


compartilhada, certamente para aquela criança/adolescente o sentimento será de que tem dois lares,
o que nos parece extremamente saudável para os filhos. Assim, pode-se considerar que a fixação
de dupla residência seria um fator de prevenção para a Síndrome de Alienação Parental (SAP),
momento no qual os próprios filhos passam a acreditar que um genitor é “melhor” e “mais
importante” que o outro.

No entendimento de Fernando Salzer6, se tem fixação do lar único, haverá então a “visita”
ao outro genitor, ao passo que quando deixado de indicar o lar referencial, estaremos diante da
verdadeira convivência.

Importante destacar a diferença entre a guarda compartilhada e a guarda alternada. Elisa


Costa Cruz, citando Rolf Madaleno (2021), explica que guarda compartilhada significa
corresponsabilidade parental sobre os filhos, enquanto a guarda alternada representa apenas a
divisão de convivência dos filhos no tempo de estadia. Além disso, na exatidão da guarda
alternada, o genitor que não estiver com a criança estará, por aquele período, sem as obrigações e
responsabilidades advindas da autoridade parental, enquanto na guarda compartilhada,
independentemente de quem esteja com a criança, a autoridade parental não se altera.

Ademais, atentando-se à fundamentação da fixação de residência base, as decisões nesse


sentido não caminham somente contra a lei, mas também em dissonância com os aspectos
emocionais e psicológicos de todos aqueles partícipes do contexto familiar, de forma que o estudo
multidisciplinar sobre o tema se faz necessário.

3 ASPECTOS PSICOLÓGICOS

No contexto de separação dos pais, não se pode olvidar que as crianças e adolescentes são
seres em desenvolvimento e se encontram em uma fase crucial da formação de sua personalidade
e base emocional. Um dos fatores primordiais para o desenvolvimento de uma personalidade sólida
e saudável é a formação de vínculos de apego.

6
Advogado familiarista, procurador do Estado de MG e membro do IBDFAM.
75
O apego é um processo calcado nos laços afetivos precoces, que formam a base para a
capacidade que o ser humano tem de criar novas e importantes relações ao longo da vida (ROLIM,
2013). Assim, no relacionamento com as figuras parentais, a segurança e conforto experimentados
permitem que seja desenvolvida uma base segura, a partir da qual a criança ou adolescente poderá
explorar o resto do mundo (RAMIREZ, 2010).

As relações familiares, particularmente entre pais e filhos, são fundamentais na


estruturação do psiquismo destes, pela transmissão de crenças, mitos e valores. Os filhos, quanto
mais tenra a idade, mais dependem dos pais para desenvolver-se biológica, psíquica e socialmente,
de forma adequada (BECKER, 2019).

Conforme a teoria da pirâmide das necessidades humanas, desenvolvida por Abraham


Maslow, um dos aspectos cruciais para a plena formação de um indivíduo é que seja atendida a
segurança que culmina em um senso de tranquilidade e proteção. Uma dessas necessidades diz
respeito à interação relacional, sendo imprescindível reconhecer o outro, ser reconhecido e se
autorreconhecer.

A família é o lugar onde se inicia o “treino” da convivência social e da inter-relação,


funcionando como uma “pré-escola” desse exercício. É onde são dadas as primeiras informações,
estabelecidas as primeiras regras e os primeiros limites. É no grupo familiar que a pessoa vai
receber valores, crenças e mitos, desenvolver uma visão de mundo, bem como estabelecer seus
primeiros vínculos significativos (MASLOW, 1943).

Enquanto o casamento dos pais segue intacto, as crianças e adolescentes costumam contar
com uma referência única de lar, valores, regras, etc. Para que os filhos sigam tendo uma ideia de
continuidade dos vínculos, é fundamental que lhes seja proporcionado um ambiente no qual eles
não sintam que um dos pais é mais ou menos importante do que o outro. Nesse sentido, as crianças
e adolescentes precisam de um “continuum de espaço e tempo, do continuum afetivo e do
continuum social” (DOLTO, 2011).

Assim, cabe destacar que quando a conjugalidade se encerra, a parentalidade deve ter
continuidade. Afinal, os filhos ainda precisarão de cuidados que vão além da alimentação e
higiene, estando intimamente relacionados à segurança e à afetividade.

Do ponto de vista psicológico, a ruptura do casamento, por si só, já pode ser considerada
um evento traumático, principalmente quando há filhos menores de idade. Isto porque, em grande
parte dos casos, a separação naturalmente evoca uma sensação de choque, medo, ambivalência,
vazio, culpa, ansiedade e, muitas vezes, desejo de reparação (TRINDADE, 2021).

76
A separação constitui uma crise emocional que acarreta desestabilização da família,
produzindo frequentemente prejuízos emocionais nos filhos, particularmente nos menores. Isso
ocorre, em função de que qualquer evento que atinja algum membro do sistema familiar acarretará
efeitos sobre os demais e sobre o grupo como tal (DA MOTTA, 2004).

Quando a separação, além do choque natural, é acompanhada de forte litígio, o conflito


judicial se torna mais evidente, podendo gerar prejuízos significativos a todo o núcleo familiar.

Nas separações conflitivas que envolvem filhos menores, costumam ser discutidos aspectos
como guarda, pensão e convivência. Nesse ponto, muitas vezes há falta de olhar para o bem-estar
dos filhos, que passam a ser utilizados como complemento narcísico dos genitores. Quando ocorre
o emaranhamento dos problemas conjugais, notam-se efeitos diretos no funcionamento
psicológico da criança/adolescente, desfavorecendo o desenvolvimento do self e gerando
significativas consequências no desenvolvimento emocional dos filhos (VIEGAS, 2012).

Ao perceber a disputa entre os genitores, os filhos podem interpretar que devem tomar
partido de um dos pais, gerando conflito de lealdade. Referido conflito se instala quando um filho
se alia a um genitor e imagina que irá traí-lo ou prejudicá-lo caso se aproxime do outro. Quanto
maior a rigidez com que a lealdade se impõe, mais desequilibrado será o triângulo pai-mãe-filho(s)
(NUSKE, 2015).

Na esteira desse entendimento, no momento em que ocorre a ruptura do casamento dos


pais, é fundamental que seja considerada a importância da constância afetiva para a formação da
personalidade dos filhos no estabelecimento do novo arranjo familiar. Assim, devem ser evitadas
ainda mais mudanças radicais – que vão além daquelas inevitáveis – visando atender
primordialmente ao melhor interesse das crianças/adolescentes.

Ambos os pais são primordiais à criança para que ela vivencie de forma natural os
processos de identificação e diferenciação. Desse modo, quando um deles falta ou tem pouca
participação, a tendência é de que ocorra sobrecarga no papel do outro, produzindo um
desequilíbrio que pode gerar danos na personalidade do filho (EIZIRIK, 2004). Nesse sentido,
existe a necessidade de manutenção do envolvimento de ambos os progenitores no
acompanhamento do desenvolvimento da criança/adolescente, apesar da ruptura da conjugalidade
(DE MATOS, 2018).

Revela-se fundamental, dessa forma, a cooperação mútua dos genitores em perceberem


que são os interesses da prole em comum que restam verdadeiramente atingidos pela forma como

77
estipulados os termos da guarda e, justamente por essa razão, precisam ser elevados à principal
preocupação (MADALENO, 2018).

Dentro do acordo sobre a guarda, a fixação da residência da criança/adolescente se revela


definidora do grau de envolvimento de cada um dos progenitores na vida dos filhos e do grau de
paridade da relação parental em que cada um deles se insere (DE MATOS, 2018). A fixação de
residência acaba sendo um fator que pode gerar impactos significativos na manutenção da
continuidade afetiva dos filhos, bem como ser um fator preventivo à ocorrência da Síndrome de
Alienação Parental (SAP). Isto porque, ao fixar a residência com um ou outro genitor, a mensagem
recebida pelos filhos é de que existe um deles “mais importante” que o outro.

Considerando que não existe um genitor mais importante que o outro, e que ambos são
essenciais ao desenvolvimento dos filhos, a fixação de residência em favor de um não parece
priorizar o bem-estar das crianças/adolescentes. A partir do momento em que se fixa a residência
com apenas um dos genitores, pode-se gerar aos filhos uma sensação de rompimento do continuum
que é fundamental para uma base sólida de desenvolvimento psíquico.

Por fim, sob a ótica da psicologia, a modalidade de guarda e consequente fixação de


residência dos filhos deverá, sobretudo, atender à manutenção dos vínculos de apego com ambos
os genitores. Assim, estará sendo priorizando o pleno desenvolvimento dos filhos e levando em
conta o Melhor Interesse das Crianças e Adolescentes, acima de quaisquer outras questões.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A separação conjugal é uma crise não previsível do ciclo vital da família, que tende a
desestruturar o grupo e seus membros. Geralmente, os maiores prejudicados são os filhos,
considerando que estes são indivíduos em pleno desenvolvimento físico e emocional. Diante da
compreensão do papel das inter-relações, a separação não pode ser considerada unicamente uma
questão de leis, pois não envolve somente uma discussão quanto a direitos e deveres. Os efeitos
psíquicos e psicossociais que a separação pode acarretar também devem ser levados em
consideração.

Levando em conta os aspectos jurídicos e psicológicos abordados neste artigo, pode-se


concluir que a guarda compartilhada se mostra o arranjo que melhor atende o interesse das crianças
e adolescentes. Porém, entendemos que as decisões que determinam a guarda compartilhada com
um lar referencial/residência fixa com um dos genitores é mais uma forma de mascarar a guarda
unilateral, pois o falso poder que o detentor da guarda única imagina ter se transfere igualmente

78
para a guarda compartilhada nestes casos. Nesse sentido, o genitor que tem sua residência como
base fixa da criança tende a abrigar-se do mesmo significante, qual seja, de que no mínimo tem
mais importância e mais ingerência na vida da criança do que aquele que não tem o lar referencial.
Essa sensação de poder favorece a alienação parental, cujos efeitos podem ser irreversíveis.

Observamos, no entanto, que tais decisões não encontram guarita legal e tampouco
fundamentação psicológica. Portanto, nos casos em que é determinada a guarda compartilhada,
deve-se aplicar a pluralidade de domicílio quando os pais residirem na mesma cidade – sendo
determinada a residência fixa ou lar referencial apenas nos casos em que os genitores residirem
em cidades diversas.

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relacionamento conjugal e parental: Uma revisão da literatura. Estudos e Pesquisas em Psicologia,
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FERREIRA, Petra Sofia Portugal Mendonça. A dupla residência da criança pós-divórcio: Uma
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79
MAIRAL, Pedro. A Uruguaia. Tradução Heloisa Jahn. São Paulo: Todavia, 1ª ed., 2018.

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RAMIRES, Vera Regina Röhnelt; SCHNEIDER, Michele Scheffel. Revisitando alguns conceitos
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SCHREIBER, Anderson. Manual de Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação,
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TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado (organização Gustavo Tepedino). Direito de Família, 1ª. ed.
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TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 9ª ed. Porto
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VIEGAS, Patrícia Coral; RAMIRES, Vera Regina Röhnelt. Pré-adolescentes em psicoterapia:


capacidade de mentalização e divórcio altamente conflitivo dos pais. Estudos de Psicologia
(Campinas), v. 29, p. 841-849, 2012.

80
A NATUREZA JURÍDICA DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS E SUA
IMPORTÂNCIA NA APLICAÇÃO PRÁTICA

Carlos Eduardo Lamas1


Sônia Brizolara Fortunato da Silva2

RESUMO

O presente artigo visa promover a abordagem da natureza jurídica dos alimentos compensatórios,
discorrendo brevemente sobre as aplicações dos diversos tipos de alimentos e suas diferentes
utilizações as quais podem, consequentemente, acarretar nos divergentes entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema. Tal estudo é de suma importância tendo em vista a
necessidade de se estabelecer uma regulamentação a um direito não resguardado pela legislação,
já que não há previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, demonstrar a
necessidade de se pacificar o entendimento da natureza dos alimentos compensatórios para a sua
adequada aplicação ao caso concreto com o intuito de se resguardar o direito do cônjuge ou
companheiro que com o término da relação marital restou em desequilíbrio sócio-econômico em
detrimento do seu ex-consorte. A dificuldade em estabelecer na prática a sua devida aplicação
pode acarretar no desvirtuamento do instituto ao confundir-se com os demais alimentos ou o
desemparo do cônjuge que foi afetado pelo desequilíbrio do término da relação em razão da sua
inaplicabilidade.

Palavras-chave: cônjuges; alimentos; compensatórios; mútua assistência; solidariedade.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Não há dúvida de que muitas decisões se valem de fundamentos equivocados quanto aos
alimentos compensatórios por confundir sua natureza jurídica e o seu fim, causando inegáveis
injustiças àqueles que precisam dos alimentos para se verem compensados da discrepância
econômica existente após o fim do relacionamento conjugal.

Não se olvida ser os alimentos compensatórios uma das formas de personificação da


natureza do direito de família, ou seja, atua como forma de tutelar, proteger, ou de dar azo à
igualdade entre os consortes ou companheiros. Daí por ser o direito de família quase um direito
público, conforme nos ensina Arnaldo Rizzardo (Rizzardo, 2019), pois é dever do Estado sua
proteção (art. 226 da Constituição Federal).

Apesar deste caráter íntimo ao direito público, não se retira das relações familiares o

1
Advogado, especialista em Direito de Família. Formação em Psicologia Jurídica. Presidente do Núcleo de Pelotas
do IBDFAM/RS. Presidente da Comissão Especial de Direito de Família e Sucessões da OAB Subseção Pelotas/RS.
Conselheiro da OAB Subseção Pelotas/RS, OAB/RS 73.976. E-mail: lamasadvocacia@outlook.com.
2
Advogada, civilista, pós-graduanda em Direito Negocial e Imobiliário na Escola de Direito Brasileiro de Direito,
OAB/RS 66.595. E-mail: sonia_fortunato@hotmail.com.
81
caráter privado, uma vez estar disciplinado pelo direito civil, não evolvendo diretamente uma
relação entre o Estado e o cidadão, pois que a relação se dá entre pessoas físicas, sem obrigar o
ente público à solução dos litígios, com exceção de quando for chamado por um desses sujeitos
para a resolução do litígio.

Ainda que hoje em dia clame-se pela menor intervenção estatal ao direito de família –
Direito Mínimo – por ter uma função de proteção às pessoas que fazem parte da família, obriga-
se o Estado a intervir de forma a trazer equilíbrio econômico quando do fim do relacionamento
conjugal, atendendo a dignidade daqueles sujeitos.

Resta que os alimentos compensatórios servem tão somente para equilibrar e preservar a
dignidade da pessoa humana, logo, entender de forma aprofundada sua natureza jurídica é
essencial para evitar distorções e uma má aplicação de um instituto salutar à preservação de uma
vida digna, que é de interesse social.

2 A NATUREZA JURÍDICA E SUA IMPORTÂNCIA COMO BASE EPISTÊMICA

O conhecer do direito encontra-se no campo da dogmática jurídica, com seu controle sobre
os mecanismos de legitimação, validade e eficácia das normas, porém, ausenta-se desse
formalismo científico o refletir, o pensar o significado do seu conteúdo para que não ocorra adesão
acrítica às condutas positivadas na sociedade, de modo a perpetuar a separação sujeito/objeto e a
racionalidade reducionista das relações entre direito e sociedade (MORIN, 2002), em especial nas
relações privadas do direito de família.

A hermenêutica jurídica pede passagem quando o pensar do significado de sua norma e do


direito, abre-se um novo caminho para epistemologia, em que assume uma função construtiva na
consideração dos fins sociais e éticos como critério de justiça, ou seja, flexibiliza a interpretação
e aplicação da norma jurídica voltada para a concretização de um direito de família que busca a
proteção dos integrantes daquele núcleo familiar, seja antes, durante ou depois de acabado o
relacionamento conjugal. Isto vai se dar, por vezes, de uma forma inclusive diversa da norma
positiva, em especial ao Código Civil, que conhecidamente, no Direito de Família, encontra-se
defasado e na contramão do que pede a sociedade contemporânea.

As lacunas legislativas existem cada vez mais no âmbito das novas famílias que se
autodeterminam (escolha de regime de bens, planejamento familiar patrimonial ou existencial,
entre outros) em formas não estritamente previstas na norma escrita, mas que, independentemente
disso, são vivenciadas em sua concretude. É o caso dos alimentos compensatórios, que visa um
82
equilíbrio patrimonial, mas que juridicamente está em uma zona cinzenta entre o vazio (ou quase
vazio) legislativo e a previsão desarticulada, exigindo do aplicador do direito e de seu intérprete
uma postura plural ao compreender a inserção e o reconhecimento dessas práticas na
contemporaneidade e a sua verdadeira natureza jurídica.

A importância epistêmica da natureza jurídica é fundamental para a compreensão e o


estudo do direito dos alimentos, tanto mais aos compensatórios, claramente confundidos com
outros institutos, seja doutrinariamente e até mesmo jurisprudencialmente.

A natureza jurídica de uma norma, instituição ou conceito envolve sua essência, sua
caracterização fundamental e suas relações com outros elementos do sistema jurídico.

Do ponto de vista epistêmico, a natureza jurídica dos alimentos compensatórios é relevante


pois ajuda a estabelecer a compreensão conceitual e teórica do direito, fornecendo uma base para
a análise crítica, a interpretação e a aplicação das normas jurídicas atinentes à matéria, permitindo
que se identifiquem os elementos essenciais de uma norma ou instituição, bem como suas
finalidades e consequências práticas.

As consequências práticas relativas a má interpretação da natureza dos alimentos


compensatórios – muitas vezes confundidos com pensão alimentícia - adquire completude
drásticas, uma vez negados, fundamentados de forma equivocada a sua aplicação e natureza, causa
àqueles que saem enfraquecidos patrimonialmente de um relacionamento uma impossibilidade de
dar continuidade a sua vida de forma digna.

Ao compreender a natureza jurídica do conceito dos alimentos compensatórios, é possível


desenvolver uma abordagem teórica coerente e consistente para analisar e resolver problemas
jurídicos, contribuindo para a previsibilidade e a estabilidade do sistema jurídico, pois permite a
identificação de princípios e fundamentos que orientam a interpretação jurídica do tema sem
confundir com outros institutos que, apesar de semelhantes, fogem ao escopo da compensação
alimentícia.

O estudo da natureza dos alimentos compensatórios servirá a estabelecer os limites e as


fronteiras entre diferentes modelos de pagamentos de alimentos, sejam eles civis ou através de
pensão entre cônjuges, entre outros. Essa distinção é importante para garantir a especialização e a
precisão na análise jurídica, bem como para assegurar uma mínima segurança jurídica sobre o
tema, ainda não estabilizado no ordenamento jurídico.

Cabe salientar, ainda como ponto de partida, que a natureza jurídica não é um conceito
estático ou imutável. Ela está sujeita a debates e revisões no campo da teoria do direito. Diferentes

83
abordagens teóricas podem oferecer diferentes perspectivas sobre a natureza jurídica de um
determinado fenômeno jurídico e claro, os alimentos compensatórios, sendo um instituto
relativamente novo, alcança a perspectiva de mutação à sua interpretação. Portanto, a importância
epistêmica da natureza jurídica está intrinsecamente ligada à evolução e ao debate contínuo na
teoria do direito.

Verifica-se que não houve pelo legislador uma preocupação quanto à definição referente
à modalidade da prestação em tela, estabelecendo apenas que os alimentos “devem ser fixados na
proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada”3.

Como os alimentos compensatórios não estão previstos expressamente em lei, a força


doutrinária o fez ser reconhecido, surgindo como comando constitucional de reparação de
desigualdade entre cônjuges ou companheiros, sob o mando de uma necessária principiologia do
direito de família (DIAS, 2017).

Flávio Tartuce (TARTUCE, 2018), didaticamente nos presenteia com a classificação dos
alimentos, sustentando que enquanto gênero podem ser classificados, visando a categorização
jurídica, observando os seguintes critérios:

a) as fontes geradoras (se legais, convencionais ou indenizatórias); b) a extensão (se


civis/côngruos ou indispensáveis/necessários); c) o tempo sobre o qual incidem (se
pretéritos, presentes ou futuros); d) a forma de pagamento (se próprios/in natura e
impróprios/in pecúnia); e, por fim; e) qual a sua finalidade (se definitivos, provisórios,
provisionais e transitórios).

Certo que os alimentos compensatórios não se confundem com os alimentos decorrentes


das relações familiares (art. 1.694 do CC), pois, sua origem está no dever de mútua assistência (art.
1.566, III do CC), como abaixo de forma mais atenta se discorrerá.

Portanto, os alimentos compensatórios não advêm dos alimentos originalmente do direito


de família, pois não servem para a satisfação das necessidades, mas sim da súbita perda do padrão
de vida repentina, que causa desequilíbrio entre cônjuges e companheiros, sendo, portanto, muito
bem nomeados por Rolf Madaleno (MADALENO, 2023) como “alimentos compensatórios
humanitários”.

3 DOS ALIMENTOS COMPENSATÓRIOS

Os alimentos compensatórios não se enquadram na natureza dos alimentos convencionais,


aqueles necessários à subsistência, pois a sua essência é indenizar aquele que deixa de usufruir de

3
Art. 1.694, § 1º, Código Civil.
84
certas vantagens decorrentes da relação que deixou de existir. Eles representam um valor que
ressarce ou serve para preencher o vazio trazido pela desconstituição do vínculo marital ou familiar
(RIZZARDO, 2019).

Conforme nos ensina Maria Berenice Dias, os alimentos compensatórios são uma
indenização pela perda da chance experimentada por um dos cônjuges durante o casamento ou
união estável (DIAS, 2017).

Não se trata, nos alimentos compensatórios, de suprir necessidade essencial do alimentado


e sequer se submete ao critério da proporcionalidade dos alimentos essenciais, mas, sim, da
constatação da alteração social enfrentada por um dos ex-consortes causada pela ruptura da
relação.

Nos alimentos essenciais a subsistência da pessoa humana há a verificação do critério


necessidade-possibilidade entre alimentante e alimentado o que não ocorre na fixação dos
alimentos compensatórios.

A necessidade de fixação destes alimentos compensatórios decorre do princípio da mútua


assistência entre os cônjuges e familiares que possuem um dever de solidariedade entre si.

Os alimentos compensatórios podem ser estipulados por tempo determinado ou


indeterminado e devem ser fixados em quantidade suficiente a minimizar o desequilíbrio que a
ruptura da relação trouxe a um dos pares da relação não se submetendo aos critérios de
proporcionalidade já que não decorrem do critério necessidade-possibilidade, como já
mencionado.

Um aspecto importante a ser mencionado acerca dos alimentos compensatórios é que o


alimentado não precisa estar desempregado, sem rendimentos ou não possuir um ofício ou
rendimento, posto que a sua necessidade de fixação não está relacionada à subsistência. Além
disso, os alimentos compensatórios podem ser cumulados com o pagamento dos alimentos
essenciais.

Os alimentos compensatórios podem ser revisados mediante ação própria revisional em


face da teoria da imprevisão e quando afetadas as condições econômicas do alimentante. Pode,
também, por se tratar de um crédito pecuniário, ser cedido a terceiros, renunciado, compensado,
penhorado entre outros. Contudo, em razão da natureza, os alimentos compensatórios não
comportam a execução pelo rito prisional.

A prescrição da pretensão dos alimentos compensatórios ocorre nos termos do art. 205 do

85
Código Civil4, bem como se extingue a obrigação com a morte do devedor não se transmitindo à
sucessão (DIAS, 2017).

Os alimentos compensatórios, como já abordado anteriormente, não são previstos


legalmente no ordenamento jurídico brasileiro e através da doutrina, dos princípios do Direito e
dos julgados estão se consolidando como um direito a ser resguardado pelo estado.
Contudo, alguns há alguns entendimentos não concordam pelo reconhecimento da
existência deste direito. Assim, entendem Ana Carolina Brochado e Gustavo Tepedino
(TEIXEIRA; TEPENDINO, 2020):

Os alimentos compensatórios por não encontrarem previsão legal no nosso ordenamento


jurídico, não se revelam compatíveis com a finalidade alimentar, havendo, desta forma,
um desvirtuamento da função assistencial dos alimentos ao se responsabilizar civilmente
o ex-consorte sem a ocorrência da prática do ato ilícito.

Com o devido respeito aos nobres doutrinadores, não nos parece plausível sustentar tal
entendimento, uma vez que os alimentos compensatórios não servem como alimentos de natureza
necessária, mas, sim para o equilíbrio da condição econômica ao fim do relacionamento conjugal.

O entendimento da natureza dos alimentos compensatórios, bem como o fato de não existir
previsão legal em nosso ordenamento jurídico contribuem para as divergências de entendimentos
e afetam, consequentemente, a sua aplicação prática como se passa a abordar a seguir.

4 A DIVERGÊNCIA DE ENTENDIMENTOS DA NATUREZA DOS ALIMENTOS


COMPENSATÓRIOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS PRÁTICAS

A natureza jurídica dos alimentos compensatórios vem sendo consolidada na doutrina e na


jurisprudência através dos princípios do Direito de Família tendo em vista a necessidade de
amparar o ex-cônjuge ou ex-companheiro que sofre um desequilíbrio econômico-social com a
término da relação marital.

A natureza indenizatória dos alimentos compensatórios nem sempre é cristalina para os


julgadores e doutrinadores que confundem sua aplicação prática com os demais tipos de alimentos
ou até mesmo não concordam com tal entendimento.

O Supremo Tribunal de Justiça na sua atual ótica entende que os alimentos essenciais entre
cônjuges é excepcional, de caráter assistencial e transitório5, o que nos faz pensar ser um dos

4
Art. 205. A prescrição ocorre em dez anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
5
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. ART. 535 DO CPC. VIOLAÇÃO NÃO
CONFIGURADA. ALIMENTOS TRANSITÓRIOS DEVIDOS ENTRE EX-COMPANHEIROS.
86
possíveis motivos para tantas divergências acerca do assunto dos alimentos compensatórios que
em nada possuem relação com o autossustento dos pares da relação marital.

Muito se confunde os alimentos compensatórios, também, com os alimentos ressarcitórios,


que visam ressarcir o cônjuge que ficou afastado da administração dos bens comuns tendo em vista
a administração unilateral por um dos cônjuges enquanto não se perfectibiliza a partilha de bens
no decurso do processo de divórcio ou dissolução da união estável.

Nos alimentos ressarcitórios, é possível a indenização pela administração e posse exclusiva


dos bens comuns rentáveis do casal, além disso possui o cunho de minimizar os efeitos
patrimoniais em decorrência do regime de bens adotado, inclusive no da separação de bens.

Segundo Maria Berenice Dias (DIAS, 2017), a divergência vivenciada pode se dar em
razão de que a lei chama de “provisórios” tanto os alimentos fixados liminarmente para garantir a
sobrevivência do alimentado, quanto os alimentos derivados da divisão dos frutos e rendimentos
dos bens comuns do casal. Desta forma, fornece a jurisprudência, em sua maioria, o mesmo
tratamento para ambos e os chamam de alimentos compensatórios.

Contudo, em recente julgado6 perante o Superior Tribunal de Justiça, novo entendimento

1. Não se viabiliza o recurso especial pela indicada violação do artigo 535 do Código de Processo Civil. Isso porque,
embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de
origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão do recorrente.
2. Entre ex-cônjuges ou ex-companheiros, desfeitos os laços afetivos e familiares, a obrigação de pagar alimentos é
excepcional, de modo que, quando devidos, ostentam, ordinariamente, caráter assistencial e transitório, persistindo
apenas pelo prazo necessário e suficiente ao soerguimento do alimentado, com sua reinserção no mercado de trabalho
ou, de outra forma, com seu autossustento e autonomia financeira.
3. As exceções a esse entendimento se verificam, por exemplo, nas hipóteses em que o ex-parceiro alimentado não
dispõe de reais condições de reinserção no mercado de trabalho e, de resto, de readquirir sua autonomia financeira. É
o caso de vínculo conjugal desfeito quando um dos cônjuges ou companheiros encontra-se em idade já avançada e, na
prática, não empregável, ou com problemas graves de saúde, situações não presentes nos autos. Precedentes de ambas
as Turmas de Direito Privado desta Corte. 4. Os alimentos transitórios - que não se confundem com os alimentos
provisórios - têm por objetivo estabelecer um marco final para que o alimentando não permaneça em eterno estado de
dependência do ex-cônjuge ou ex-companheiro, isso quando lhe é possível assumir sua própria vida de modo
autônomo. 5. Recurso especial provido em parte. Fixação de alimentos transitórios em quatro salários mínimos por
dois anos a contar da publicação deste acórdão, ficando afastada a multa aplicada com base no art. 538 do CPC. (REsp
n. 1.454.263/CE, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/4/2015, DJe de 8/5/2015.)
6
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO
OCORRÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO EXCLUSIVA DE PATRIMÔNIO COMUM BILIONÁRIO. ALIMENTOS
RESSARCITÓRIOS. CABIMENTO. DECISÃO EXTRA PETITA. INEXISTÊNCIA. RECURSO ESPECIAL
CONHECIDO E DESPROVIDO.1. O Tribunal de origem analisou todas as questões relevantes para a solução da
lide de forma fundamentada, não havendo falar em negativa de prestação jurisdicional. 2. Os alimentos
compensatórios são fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, fundada na dignidade da pessoa humana, na
solidariedade familiar e na vedação ao abuso de direito. De natureza indenizatória e excepcional, destinam-se a
mitigar uma queda repentina do padrão de vida do ex-cônjuge ou ex-companheiro que, com o fim do relacionamento,
possuirá patrimônio irrisório se comparado ao do outro consorte, sem, contudo, pretender a igualdade econômica do
ex-casal, apenas reduzindo os efeitos deletérios oriundos da carência social. 3. Apesar da corriqueira confusão
conceitual, a prestação compensatória não se confunde com os alimentos ressarcitórios, os quais configuram um
pagamento ao ex-consorte por aquele que fica na administração exclusiva do patrimônio, enquanto não há partilha
dos bens comuns, tendo como fundamento a vedação ao enriquecimento sem causa, ou seja, trata-se de uma verba
de antecipação de renda líquida decorrente do usufruto ou da administração unilateral dos bens comuns. 4. O
87
muito bem esclarece a diferença da natureza entre os alimentos compensatórios e os ressarcitórios
baseado na linha da doutrina de Rolf Madaleno. A partir deste momento, se acredita que a
definição dos alimentos compensatórios estabelecida neste acórdão dará azo para que tais
alimentos possam ser tratados como de fato são, sem distorção de sua função.

Na obra de Rolf Madaleno (MADALENO, 2023) em que versa sobre os alimentos


compensatórios, define tais alimentos como aqueles que tem como função compensar o prejuízo
econômico sofrido por um dos cônjuges ou conviventes que não pôde desenvolver de forma plena
uma atividade profissional de forma remunerada ou que precisou conciliar sua atividade
profissional com os afazeres da casa e dedicação aos filhos comuns.

A divergência de entendimentos acerca do tema acarreta a consequência prática de se


instaurar a injustiça de não fixar tais alimentos, já que eles não se confundem com os alimentos
convencionais e, tão pouco, com os alimentos ressarcitórios. A não concessão dos alimentos
compensatórios por se acreditar que o cônjuge possui rendimentos suficientes para se manter é o
fundamento mais encontrado nos julgados e em nada possui relação com o direito alegado. Desta
forma, estaria o cônjuge desprovido desamparado por fato diverso do qual foi pleiteado.

A indenização visada pelos alimentos compensatórios não é suprida pelos alimentos


convencionais posto que estes restam configurados pela falta de recursos para sobrevivência e que,
em regra, não pode ser fixado ad eternum. A sua aplicação inadequada, ou diversa, resulta na
injustiça de não se ter o direito resguardado pelo estado.

A jurisprudência vem construindo através das diversas doutrinas acerca do tema, bem como
através dos princípios, a garantia de aplicação do direito daquele que com o término da relação
marital se vê em um abismo social em relação ao seu ex-consorte, visando proteger o direito não
amparado pela legislação. Porém, para que se faça a aplicação adequada e, consequentemente, se
faça justiça em relação ao direito requerido através dos alimentos compensatórios, é preciso
pacificar o entendimento da sua natureza jurídica.

alimentante está na administração exclusiva dos bens comuns do ex-casal desde o fim do relacionamento, haja vista
que a partilha do patrimônio bilionário depende do fim da ação de separação litigiosa que já se arrasta por quase 20
(vinte) anos, o que justifica a fixação dos alimentos ressarcitórios. 5. Não existe decisão fora dos limites da demanda
quando o julgador, mediante interpretação lógico-sistemática da petição inicial, examina a pretensão deduzida em
juízo como um todo, afastando-se a alegação de ofensa ao princípio da adstrição ou congruência. As instâncias
ordinárias apreciaram o pedido em concordância com a causa de pedir remota, dentro dos limites postulados na
exordial, não havendo falar em decisão extra petita. 6. Recurso especial conhecido e desprovido. (REsp n.
1.954.452/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/6/2023, DJe de 22/6/2023.)

88
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apresentadas as considerações gerais sobre os alimentos compensatórios e abordadas as


divergências de entendimentos quanto a sua natureza em relação aos demais, foi possível constatar
a urgência em se pacificar o melhor entendimento acerca da natureza destes alimentos.

As consequências fáticas da incorreta aplicação dos alimentos compensatórios se dá,


principalmente, em decorrência da inexistência de previsão legal do instituto no ordenamento
jurídico brasileiro em que advogados, doutrinadores e julgadores, ao identificarem a situação fática
perceberam a necessidade de se resguardar o direito socorrido pelo cônjuge que ficou em
desvantagem sócio-econômica ao término da relação. Desta forma, decorrem diversos
entendimentos sobre o tema o qual ainda não se encontra pacificado.

O mundo atual nos traz diversos conceitos de família daquele conceito previsto
primordialmente pela legislação, contudo há uma necessidade urgente em regulamentar as
situações decorrentes das novas relações que advém com a modernidade. Apesar de se clamar pela
mínima intervenção estatal nas famílias, se faz necessária a tutela do Estado com o cunho de
equilibrar as desigualdades nas relações para que se resguarde a dignidade humana.

A importância do estudo doutrinário acerca de um direito não resguardado pela legislação


e a observação pelos eminentes julgadores sobre a existência fática colaboram para que o Direito
seja aplicado na prática e que as novas situações vivenciadas pela sociedade em família sejam
resguardadas e preservadas.

Primordialmente, é necessário que seja pacificado o entendimento da natureza dos


alimentos compensatórios enquanto não houver a previsão legal deste instituto, a fim de que não
se confunda com os demais nem tão pouco seja afastada a sua aplicação. Desta forma, haverá a
correta aplicação ao caso concreto e, caso configurado, será resguardado o direito perquirido pelo
cônjuge que ficou em situação de desequilíbrio com o término da relação marital.

Ao se dizer que o Direito estará sendo assegurado, também se quer dizer que não se estará
deixando de aplicar ao caso o que é característico dele mas, também, que não haveria um
desvirtuamento da sua aplicação contribuindo, desta forma, para a previsibilidade e a estabilidade
do sistema jurídico.

89
REFERÊNCIAS

DIAS, Maria Berenice. Alimentos: direito, ação, eficácia e execução. 2. ed. rev., atual. e ampl. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

MADALENO, Rolf. Alimentos compensatórios: patrimoniais humanitários. Rio de Janeiro:


Forense, 2023.

MORIN, E. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

RIZZARDO, Arnaldo. Direitos de Família. 10. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019

TARTUCE, Flávio. Direito Civil. 13. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2018.v. 5

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; organização Gustavo Tepedino. Fundamentos do Direito


Civil. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

90
MULTIPARENTALIDADE: A AFETIVIDADE COMO FATOR
DETERMINANTE DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA

Fernando Ferreira de Alcântara1


José Weidson de Oliveira Neto2

RESUMO

O artigo trata das transformações ocorridas na estrutura familiar, antes alicerçada por um modelo
tradicional e que deu espaço a um novo modelo que tem como eixo principal a presença do afeto
como fator determinante da composição familiar. A realização subjetiva e existencial dos entes
familiares passa a ser considerada e dar-se um novo rumo às relações de parentalidade e filiação.
O advento da Constituição Federal de 1988, foi o marco principal no Direito de Família no Brasil,
com a importância dada aos princípios, sobretudo o princípio da afetividade. Nesse contexto, o
objetivo do trabalho é discutir a importância da afetividade como fator determinante da
parentalidade socioafetiva. Adota-se o método hipotético-dedutivo, com pesquisas bibliográficas
centradas no campo das leis, das produções doutrinárias e jurisprudenciais. Ao final, conclui-se
que a afetividade, com o advento da ConstituiçãoFederal de 1988, veio a exercer um papel
importante no contexto da estrutura familiar, como também a decisão do Supremo Tribunal
Federal no RE de nº 898.060/RS e Repercussão Geral nº 622, que reconheceu a multiparentalidade.
Foram instrumentos que demonstraram que o afeto é a mola propulsora das relações e laços
familiares, alicerçado na dignidade da pessoa humana, como fator determinante do agrupamento
familiar.

Palavras-chave: afetividade; família; multiparentalidade; socioafetiva.

1 INTRODUÇÃO

A inegável transformação da estrutura familiar nas últimas décadas, ultrapassando um


modelo tradicional e que não condiz com a realidade contemporânea, que é a estrutura familiar
centrada no fator biológico, deu espaço a um novo modelo, que tem como eixo principal a presença
do afeto como fator determinante da composição familiar.

Logo, percebe-se que a relevância temática consiste em sua atualidade, bem como por tratar
de elementos abstratos que compõem a dignidade da pessoa humana, promovendo a sua realização

1
Técnico Judiciário do TJCE, Bacharel em Direito pela Faculdade Princesa do Oeste - FPO, e-mail:
ffalcantara@gmail.com.
2
Mestre em Direito Constitucional nas relações privadas (UNIFOR), Especialista em Direito e Processo de família e
Sucessões (DAMÁSIO). Docente e Coordenador do Curso de Direito da Faculdade Princesa do Oeste, OAB/CE n.
30.335, e-mail: jose.weidson@fpo.edu.br.
91
pessoal e contribuindo para a formação de novos modelos familiares juridicamente reconhecidos
e que, por tal, receberão a proteção especial atribuída pela Constituição Federal de 1988.

O presente artigo se propõe a discutir a importância da afetividade no contexto atual da


formação das famílias brasileiras, sobretudo no âmbito da filiação. Para tanto, tem-se como
objetivos específicos: investigar o histórico evolutivo das famílias desde o direito romano ao
direito brasileiro; conhecer a discussão doutrinária atual acerca do princípio da afetividade;
compreender a multiparentalidade e a socioafetividade no Brasil; e demonstrar o auto-estudo de
experiência socioafetiva paterna de um dos co-autores.

É dentro desse contexto que a pesquisa se desenvolveu, buscando o resgate da evolução


histórica, legislativa e doutrinária do conceito de família, através da análise bibliográfica de leis,
doutrinas, jurisprudências, sobretudo os efeitos do reconhecimento da multiparentalidade pelo
Supremo Tribunal Federal, através do RE 898.060 e da Repercussão Geral 622, contribuindo na
elucidação da questão maior da pesquisa: Qual a importância da afetividade na constituição da
parentalidade socioafetiva?

A metodologia consiste na aplicação do método hipotético-dedutivo, qual seja, a partir de


uma análise mais geral do ordenamento jurídico brasileiro chega-se a conclusão da aplicação da
paternidade socioafetiva e da multiparentalidade aos casos concretos existentes na realidade fática,
permitindo-se ainda da dialética entre os diversos posicionamentos doutrinários acerca do tema.

A pesquisa conta, ainda, com um autoestudo da paternidade socioafetiva do autor, de forma


que demonstra todos os passos, que vão desde a presença do afeto para com a criança, os interesses
das partes envolvidas no reconhecimento do vínculo e os passos seguidos no processo judicial,
fator que foi determinante na escolha do tema, por ser uma discussão de grande relevância social
e buscar demonstrar a materialização do princípio da afetividade na formação contemporânea das
famílias brasileiras.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 A evolução histórica do direito de família à luz do direito romano

Ao tomar por base o estudo do Direito de Família romano, pode-se constatar, no período
considerado do Direito pré-clássico, a existência de cinco modelos de famílias que se vinculavam
através do parentesco consanguíneo ou através do casamento, dentre os quais pode-se citar dois
grupos principais, o da família próprio iure, que denominava o agrupamento familiar em que os

92
seus membros se submetiam ao poder de um pater familia e a família natural, que era constituída
pelos cônjuges e seus filhos(ALVES, 2021).

O que se pode perceber no período pré-classico é a presença do modelo patriarcal de


família, seja ela centrada no parentesco consanguíneo, seja a família que agrega todos os que vivem
sob o poder do pater familia, conforme mostra Alves (2021, p. 601): “a família no direito pré-
clássico se caracteriza por ser rigidamente patriarcal e por constituir um agrupamento que goza de
autonomia relativa em face do Estado”.

O poder do pater familia se sobressaía sobre todos os demais poderes familiares, seja sobre
as pessoas, como também sobre as coisas que estavam sobre o seu comando. Era um poder
absoluto que lhe dava o direito de decidir sobre a vida e a morte de todos os que eram subordinados
ao seu poder (ALVES, 2021, p. 601):

Pode-se verificar a grandiosidade do poder do pater familia, não somente sobre os


membros de sua família, mas a extensão do poder sobre todos os bens e coisas adquiridas.

Para o ingresso na família próprio iure, primeiro era necessária a sujeição apatria potestas,
aliado a outras exigências, como a procriação em justas núpcias, iustae nuptiae, e a adoção em
uma de suas formas: adoptio ou adrogatio; ou a legitimação (ALVES, 2021).

O que se compreende como justas núpcias para esse período da história romana, era o filho
advindo do casamento e que tivesse nascido num período considerado ideal para o seu nascimento,
como retrata Alves (2021, p. 607):

Nasce de justas núpcias a criança que vem à luz depois de 182 dias de contraído o
casamento legítimo por seus pais, ou a que nasce até 300 dias após a dissolução desse
consórcio. Com relação ao pai – ao contrário da mãe, cuja maternidade é certa- presume-
se que a criança nascida dentro desse espaço de tempo seja seu filho: pater uero is est,
quem nuptiae demonstrant (o pai é aquele que as núpcias atestam).

Verifica-se que o nascimento de uma criança dentro desse modelo de família romana, não
significava a garantia de que seria aceita no seio do grupo familiar, tendo em vista que algumas
poderiam até mesmo serem negociadas para saldar dívidas. Entretanto, é importante ressaltar que
nesse período, mesmo considerado um processo complexo, já existia a adoção, que era o ingresso
na família próprio iure, como filius familia, de crianças que não a tinham como família de origem.

93
Estabelecendo uma comparação entre o que era considerado justas núpcias no direito
romano com a legislação brasileira atual, sobretudo com o artigo 1.5233do Código Civil de 2002,
que trata das causas suspensivas para o casamento, pode-se perceber que mesmo muitos anos
passados, e embora não haja uma relação direta entre o Direito Romano e as causas suspensivas
do casamento no Código Civil de 2002, a tradição jurídica romana influenciou o desenvolvimento
do Direito Civil como um todo, incluindo o conceito de casamento e suas restrições legais.

O segundo modelo de agrupamento familiar referido no início, é o da família natural, que


era classificado como aquele constituído dos cônjuges e de seus filhos e que tem como base o
casamento, não levando em consideração se o marido e pai é ou não o pater familia de sua esposa,
como ocorria no modelo de família descrito anteriormente, bem como se esse marido detinha
também poder sobre todos os descendentes e agregados.

Importante ressaltar na história da constituição da família romana a forma como se dava o


casamento, porque mesmo que esse segundo modelo tivesse por base o matrimônio, não existia
uma formalidade para sua constituição, como destaca Alves (2021, p. 634):

O matrimônio, em Roma, era uma situação de fato que se iniciava, sem quaisquer
formalidades, com o simples acordo de vontade do homem e da mulher, e que perdurava
apenas enquanto persistia a intenção dos cônjuges em permanecerem casados,
dissolvendo-se, de imediato, no momento em que um deles (ou ambos) deixasse de tê-la.
Assim, ao contrário do que se verifica no direito moderno, em que basta o consentimento
inicial para que surja o status de cônjuge que perdura – ainda que os esposos não mais o
desejem – até a morte ou o divórcio, no direito romano o matrimônio se iniciava com o
acordo de vontades do homem e da mulher no sentido de se casarem e só perdurava
enquanto esse acordo persistisse: não era suficiente, para que o status de cônjuge se
mantivesse, o consentimento inicial, mas, sim, o continuado.

Pode-se perceber, na situação matrimonial de Roma, uma grande semelhança do que temos
em nossa realidade atual brasileira e definido no Código Civil de 2002, em seu artigo 1.7234, como
união estável, que não necessita de formalidades, mas que seja configurada numa convivência
pública e duradoura e sobretudo com o objetivo de constituir família.

3
Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário
dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter
sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado,
enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus
descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar
a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar
ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a
inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada;
no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo.
4
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
94
Ao longo da história do Direito de Família romano, muitas modificações ocorreram e
podem ser percebidas claramente no período clássico, quando há um avanço progressivo da
importância da família natural, aquela baseada no casamento e nos vínculos sanguíneos, em
detrimento da família próprio iure, como também dá-se o início da regulamentação das relações
de família através da lei (ALVES, 2021).

Durante a Idade Média, o Direito Canônico exerceu uma grande influência na formação
das famílias. O Direito Canônico é o conjunto de leis e regulamentos da Igreja Católica, que
buscava orientar as relações entre os indivíduos e estabelecer padrões de comportamento moral e
religioso. A Igreja Católica deixava de ser influente somente no campo da hegemonia religiosa,
para adentrar no campo político, estabelecendo um rompimento do poder secular do Imperador
sobre a Igreja (ABEL, 2017).

Na Idade Média, a Igreja Católica tinha um papel central na vida das pessoas, tendo em
vista que se tratava da única estrutura político-administrativa que se mantinha de forma organizada
após a queda do Império Romano e muitas das instituições sociais eram influenciadas por ela,
incluindo a família. O casamento era visto como um sacramento e a igreja exercia controle sobre
os aspectos legais do casamento e da família (MACIEL, 2011).

O Direito Canônico, por sua vez, estabelecia regras para a celebração do casamento
religioso, como a exigência da presença de um padre e de testemunhas, além de definir quem
poderia se casar e quais eram os impedimentos para o matrimônio, como parentesco consanguíneo
e afinidade.

Além disso, o Direito Canônico também regulava a questão da herança e da sucessão,


estabelecendo que os filhos legítimos eram os únicos herdeiros legais e que as mulheres não
podiam herdar bens, a menos que não houvessem filhos homens.

Com a modernidade, a concepção de família começa a mudar, em face da própria mudança


na noção de pessoa que, com o poder da igreja em decréscimo, passava a ser vista como pensante,
racional, agora apresentando sinais de subjetividade, da importância de seus sentimentos
(CALDERÓN, 2017).

A afetividade começa a se tornar presente e ser notada de fato, mesmo quando se está
falando da família tradicional, pautada na questão biológica e matrimonial, como será abordado
posteriormente.

95
2.2 O direito de família no Brasil

O Direito de Família no Brasil teve sua evolução histórica influenciada por diversos fatores,
como o Direito Canônico, legislação portuguesa e mudanças sociais e políticas ocorridas no país
ao longo dos séculos.

Pode-se perceber que logo nos primeiros anos da colonização, a influência na formação
das famílias foi marcada pela fé religiosa, sobretudo a cristã-católica, como explicitado por Graeff
(2019, p. 24-25):

Consta que a verdadeira formação social brasileira se processou originalmente em 1532,


sendo constituída, então, por uma família colonial rural ou semi-rural por unidade, a qual,
em razão da base econômica de riqueza agrícola e do trabalho escravo, tinha como traço
marcante a diversidade de funções sociais e econômicas. Tal formação social se deu meio
ao choque das culturas europeia e ameríndia, acabando, todavia, por predominar a moral
europeia e católica. Dessa forma, a formação social brasileira, assim como a portuguesa,
foi marcada pela fé religiosa.

Como se pode perceber, durante o período colonial, o Direito Canônico exerceu grande
influência sobre o Direito de Família no Brasil, e o casamento era visto como um sacramento
indissolúvel. Ora, por certo que enquanto colônia portuguesa em solo brasileiro, vigoram o direito
português, fortemente marcado pela influência da Igreja Católica da época.

Segundo Tartuce (2018, p. 17), "o Direito Canônico, que predominava em Portugal,
influenciou profundamente o Direito Civil brasileiro, em especial no tocante ao casamento, que
foi considerado sacramento até a Constituição Imperial de 1824. Ou seja, somente quando o Brasil
se torna independente de Portugal, criando sua primeira Constituição, é que há o início do
distanciamento entre as normas religiosas e estatais.

O casamento, nos três primeiros séculos da colonização, por se tratar de algo burocrático e
que demandava um custo alto, se restringia a um grupo seleto de famílias, sobretudo a elite branca,
enquanto para as populações mais despidas de condições, restavam as uniões estáveis que eram
consideradas ilegais pela Igreja Católica e repelidas pela própria sociedade (GRAEFF, 2019).

A codificação civil de 1916 não efetivou muitas mudanças em relação a influência do


Direito Canônico na formação das famílias, mantendo sua influência, apesar da laicidade do
Estado vigente, pois considerava apenas um modelo único de família, aquele pautado no
matrimônio, no patriarcalismo, sem espaço para realização individual, mas a preocupação era a
família como um todo, deixando de lado quaisquer outras formações (CALDERÓN, 2017)

96
No tocante a filiação, o Código de 1916, tendo em vista que considerava o casamento como
única forma legítima de formação familiar, os filhos que porventura viessem dessa relação seriam
considerados legítimos, pois eram provenientes de “justas núpcias” (LOBO, 2021).

O Código de 1916 trazia em seus dispositivos uma distinção entre os filhos legítimos e os
ilegítimos, considerando no tocante a estes, a possibilidade de reconhecimento de forma conjunta
ou separadamente, entretanto os considerados adulterinos e incestuosos não recebiam o amparo
legal, conforme se comprova no dispositivo legal5.

Logo, havia a impossibilidade de reconhecimento dos filhos que eram considerados


incestuosos e adulterinos, tendo em vista que eram provenientes de uma relação que não
encontrava amparo legal, não se reconhecendo por considerar fruto da ilegalidade.

A adoção, no Código de 1916, era reservada somente aqueles que, embora casados, não
tinham filhos. Era uma espécie de instituto que tinha como base, “dar filho a quem não tem”, com
restrições de idade de adotandos, que deveriam ser maiores de 50 anos e sem filhos e, no tocante
aos adotados, deveria ser pelo menos 18 anos mais novo que o adotante (LOBO, 2021).

É importante ressaltar, ainda na adoção, que era estabelecida diferenças de direito dos
filhos adotados em relação aos filhos legítimos, como também mantinha o vínculo com o
parentesco natural, somente mudando em relação ao pátrio poder, que passava do pai natural para
o pai adotante, podendo ser verificado no art. 3786 do Código Civil de 1916.

Não foram somente as modificações apontadas pelas quais passou o Direito de Família,
mas diversas leis introduzidas ao longo dos anos deram passos de mudanças significativas que, ao
longo do século XX, foram responsáveis por diversas transformações, acompanhando as mudanças
sociais e políticas ocorridas no país. Conforme Graeff (2019, p. 29):

Mas o modelo patriarcal de família começou definitivamente a ruir com as


transformações ocorridas em todo o mundo, especialmente após o fim da Primeira Guerra
Mundial, e que no Brasil, foram intensificadas a partir da metade do Século XX, com o
acelerado processo de urbanização (saída do campo para a cidade) e com a nova posição
da mulher na sociedade e no mercado de trabalho.

5
Art. 337. São legítimos os filhos concebidos na constancia do casamento, ainda que annullado (art. 217), ou mesmo
nullo, se se contrabiu de boa fé (art. 221). Art. 352. Os filhos legitimados são, em tudo, equiparados aos legítimos.
Art. 353. A legitimação resulta do casamento dos pais, estando concebido, ou depois de havido o filho (art. 229). Art.
355. O filho ilegítimo pode ser reconhecido pelos pais, conjuntas ou separadamente. Art. 358. Os filhos incestuosos e
os adulterinos não podem ser reconhecidos.
6
Art. 378. Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio
poder, que será transferido do pai natural para o adotivo.
97
Essas mudanças ocorridas no pós-guerra geraram mudanças de paradigma, fazendo com
que novos valores fossem considerados nas relações familiares, o que é o caso das relações afetivas
que antes eram suprimidas em face da conveniência. O amor passa a ter importância e a ser espécie
de pilar, isto é, cimento da relação.

Outro fator que influenciou as mudanças atuais foi a separação histórica entre Estado e
Igreja, deixando o Direito de Família de receber influência direta da religião, muito embora o
próprio legislador não tenha se desvinculado totalmente de tal poderio, como se vê em Dias (2016,
p. 70):

O afastamento do Estado em relação à igreja revolucionou os costumes e especialmente


os princípios que regem o direito das famílias, provocando profundas mudanças no
próprio conceito de família. Sobreveio o pluralismo das entidades familiares, escapando
às normatizações existentes. Ainda assim, o direito das famílias é o campo do direito mais
bafejado e influenciado por ideias morais e religiosas, havendo a tendência do legislador
de se arvorar no papel de guardião dos bons costumes, na busca da preservação de uma
moral conservadora. O parlamentar, refugiando-se em preconceitos religiosos,
transforma-se no grande ditador. Prescreve como as pessoas devem agir, impondo pautas
de conduta afinadas com a moralidade conservadora. Limita-se a regulamentar institutos
socialmente aceitáveis. Com isso, não desagrada o eleitorado e garante sua reeleição. Por
este motivo é que restam à margem da lei situações que são alvo do repúdio social ou
dizem com as minorias objeto de discriminação.

Muito embora o legislador traga consigo a tendência de uma moral conservadora e isso
seja refletido na lei, ao se deparar com as novas situações práticas no direito de família, sobretudo
as novas formações familiares, não mais calcadas somente no vínculo biológico, mas sob a égide
da afetividade, e em função da ausência de categorias jurídicas positivadas que dessem as respostas
necessárias a essa situação, a doutrina e a jurisprudência passaram a discutir o assunto e a construir
respostas.

Dentro dessas respostas veio o entendimento de que um vínculo não precisaria excluir o
outro, mas poderiam ser considerados concomitantemente, isto é, o vínculo biológico e o afetivo
não precisariam prevalecer um sobre o outro, mas serem reconhecidos de forma concomitante. Eis
o surgimento da multiparentalidade, pluriparentalidade ou dupla paternidade, dentre outras
denominações existentes para o entendimento do assunto em questão.

Partindo dessa mudança de compreensão das novas formações familiares se conclui que o
Direito de Família no Brasil passou por diversas transformações ao longo dos séculos,
acompanhando as mudanças sociais e políticas do país. Desde a influência do Direito Canônico na
época colonial até as leis mais recentes que buscam proteger mulheres e crianças, o Direito de
Família tem evoluído para se adequar às novas demandas da sociedade brasileira.

98
O marco de maior importância nesse aspecto foi o advento da Constituição Federal de
1988, como se vê em Graeff (2019, p. 31):

A Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar com segurança, foi o marco legislativo
mais importante na história do Direito de Família brasileiro, tendo ampliado a seara dos
direitos e garantias fundamentais [...] foi a Carta Magna que consagrou direitos e garantias
fundamentais à família e aos seus integrantes, modificando substancialmente sua função.

A partir dessas mudanças, pode-se indagar: que caminhos foram percorridos até a realidade
atual e que fatores influenciaram essas mudanças? Qual a importância da afetividade nesse
contexto? É um princípio ou somente um sentimento? Como a lei, a doutrina e a jurisprudência
estão dando respostas para os diversos casos envolvendo novas formações familiares pautadas no
afeto?

2.3 O príncipio da afetividade: conceito e aplicação no direito

A afetividade, na definição encontrada nos dicionários físicos e virtuais da atualidade,


especialmente no Dicionário Unesp do português contemporâneo (BORBA, 2011), dão conta de
que é um termo que se refere à qualidade ou caráter de quem é afetivo, demonstrando a dimensão
emocional e afetiva das relações humanas ou como um conjunto de fenômenos psíquicos que são
experimentados e vivenciados na forma de emoções e de sentimentos.

Partindo de tais definições, entende-se que se trata da capacidade de sentir e expressar


emoções, tanto positivas quanto negativas, e está presente em diversas esferas da vida, como nas
relações familiares, amorosas, de amizade e no trabalho.

Por outro lado, sabe-se que a afetividade é fundamental para o desenvolvimento saudável
das pessoas, pois permite a criação de laços emocionais significativos, que proporcionam apoio,
conforto e segurança.

É importante lembrar que o afeto decorre da liberdade que cada pessoa tem de afeiçoar-se
ao outro, seja em relação ao casal entre si, entre os filhos, parentes e em outros agrupamentos ou
categorias familiares constituídas não obrigatoriamente pelo casamento (CALDERÓN, 2017).

A afetividade como fato jurídico no Direito de Família vem para provocar mudanças
sobretudo no que diz respeito a liberdade e respeito de seus entes, e a partir dessa liberdade e da
preocupação com a subjetividade, as pessoas busquem sua realização pessoal, de forma que
deixem de lado os modelos preestabelecidos. A ligação entre os entes familiares passa a ser

99
pautada por um sentimento comum, irradiando um núcleo de energia afetiva, o que se pode
perceber nas palavras de Lima (2021, p. 36):

[...] representa o núcleo de irradiação de energia afetiva, que tenta concretizar esse novo
formato de agrupamento familiar e que recebe guarida constitucional normativa, pois
deixa clara a sua relevância, principalmente, em decorrência da carga valorativa que
carrega consigo no âmbito das relações humanas, o que lhe dá o valor jurídico necessário
para a sua proteção, principalmente em decorrência de sua característica como direito
fundamental no que diz respeito à estrutura da entidade familiar e o poder-dever que
resulta deste.

Nas relações familiares, a afetividade somente ganhou importância a partir da Segunda


Guerra Mundial, tendo em vista que, antes, no modelo único de família pautado no matrimônio,
as questões subjetivas de seus componentes não eram consideradas, somente vindo a serem
percebidas no momento em que os modelos de famílias sofrem alterações (CALDERÓN, 2017).

A história mostra que as mudanças se iniciaram com o crescimento da família nuclear,


aquela que, ao invés de englobar todos os grupos que estabeleciam convivência, se centralizava
nos cônjuges e seus filhos, fazendo com que passasse a existir uma aproximação maior entre os
membros da família e com isso o nascimento dos laços afetivos antes deixados de lado.

Percebe-se que um novo cenário nas relações interpessoais estava se vislumbrando,


passando das relações puramente biológicas ou até mesmo materiais, para se dar importância a
laços antes deixados de lado, o lado afetivo.

Reforçando o cenário de mudanças na formação nuclear da família, demonstra Calderon


(2011, p. 162):

A reduzida família nuclear acabou por aproximar seus integrantes, permitindo um vínculo
efetivo e cada vez mais afetivo entre eles, “a pequena-família, distante da família
patriarcal caracterizada por ser uma unidade de produção, é muito mais um núcleo onde
são dominantes as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação”. A forma de
relacionamento entre os integrantes dessa família acabou por se demonstrar mais
sentimental, igualitária e liberal do que nos períodos anteriores. Houve um decréscimo de
interferências da religião, do meio social e do interesse da família como instituição, para
se conferir maior liberdade para a pessoa deliberar sobre sua opção de vida familiar.

Conforme se percebe, a afetividade calcada na subjetividade do ser que é membro do


núcleo familiar somente vem a ganhar maior importância quando o grupo familiar se torna menor
e deixa de ser, como na família patriarcal, um meio de produção, onde as relações são verticais e
baseadas na produção.

100
Nesse novo núcleo as relações se tornam mais próximas e diferentes do patriarcalismo,
porque se estabelece de forma mais igualitária e seus integrantes interagem mais e demonstram
seus sentimentos, como também passam a sofrer menos interferências diretas do meio social e da
religião, desestimulando o interesse da família somente como instituição e abrindo espaço para
interesses subjetivos, pessoais e particulares.

No Brasil, a afetividade ganha campo com o advento da Constituição Federal de 1988,


tendo em vista a importância que deu aos princípios. Embora trazendo de forma implícita o
princípio da afetividade, a demonstração de sua relevância se dá através de vários dispositivos, na
concretude das relações familiares, atingindo o Direito de Família como um todo, seja quando se
refere a igualdade dos filhos, independente da origem, a adoção como um ato de escolha afetiva,
como também na convivência familiar não mais pautada somente na origem biológica, como é
retratado por Calderón (2017, p. 84):

É singular o enfoque que a leitura da afetividade como princípio implícito a partir da


Constituição Federal acarreta na análise do Direito de Família. Sua aceitação como
princípio jurídico indica sua assimilação quando da análise de todo o ordenamento
infraconstitucional.

O acolhimento do princípio da afetividade também pode ser percebido implicitamente no


Código Civil de 2002, quando em seu artigo 1.5937, estabelece que o parentesco é natural ou civil,
demonstrando que a consanguinidade não é mais a única forma de se estabelecer os laços
familiares, permitindo novas constituições de vínculos familiares.

Pode-se verificar a ênfase a essas mudanças nas palavras de Cavalcanti (2007, p. 191):

Se a Constituição abandonou o casamento como o único tipo de família juridicamente


tutelada, é porque abdicou dos valores que justificavam a norma de exclusão, passando a
privilegiar o fundamento comum a todas as entidades, ou seja, a afetividade, necessária
para a realização pessoal de seus integrantes. O advento do divórcio direto (ou a livre
dissolução na união estável) demonstrou que apenas a afetividade, e não a lei, mantém
unidas essas entidades familiares.

O que se percebe diante de tais mudanças implementadas no modelo de formação familiar


é que esses agrupamentos, mesmo sem reconhecimento anterior, não estavam se formando
somente a partir da mudança de concepção nas relações familiares, mas era exatamente o contrário,
era a realidade que estava levando o direito a dar respostas eficazes para o novo que se delineava,
consagrando dessa forma a teoria tridimensional do direito: fato, valor e norma.

7
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
101
Embora a Constituição Federal, de forma implícita, demonstre a importância da afetividade
como princípio, percebida nos artigos que tratam da igualdade entre filhos independente da origem
(artigo 227, §68), na união estável (artigo 226, §3º9), na adoção como escolha afetiva (artigo 227,
§§ 5º e 6º10), na família monoparental (artigo 226, §4º11), na convivência familiar (artigo 22712),
entre outros, a doutrina trava grande discussão acerca de considerá-la ou não um princípio jurídico.

Pelo menos três correntes se destacam, a primeira tendo como referência Maria Berenice
Dias e Flávio Tartuce, que a consideram um princípio jurídico; a segunda, seguida por Maria
Goreth Macedo Valadares e outros, consideram a afetividade um postulado ou de um valor
jurídico, de forma que não se pode exigir ou impor seu cumprimento; e a terceira, seguida por
Breno Mendes Forel Viana e outros, trata a afetividade como um sentimento, sem nenhum valor
jurídico (GRAEFF, 2019).

A corrente que sustenta que a afetividade não deve ser tratada como um princípio do Direito
de Família, demonstra que, tendo em vista que se trata de um sentimento, dessa forma seria um
fator de impedimento para que o direito pudesse se apropriar, como também a constatação da falta
de afeto nas relações familiares inviabilizaria estabelecer a afetividade como papel central das
relações familiares (CALDERÓN, 2017).

Importante demonstrar alguns argumentos pelos quais os precursores das correntes, que
embora acolham a afetividade como um valor relevante, não a consideram princípio, em face de
não ser ela a responsável pela existência ou validade dos fatos familiares, como se verifica em
Fagundes (2018, p. 57):

Não por outro motivo, alguns acreditam que o afeto, que compõe atualmente a
fenomenologia da relação jurídica familiar, não é elemento de existência ou validade dos
fatos jusfamiliares, ponderando, por exemplo, que jamais o juiz de paz perguntará aos
nubentes se eles se amam, mas sim, se estão livremente dispostos a se casar. Igualmente,
o juiz não perguntará, quando da dissolução do vínculo, se o amor diminuiu, para
justificar a separação do casal. Da mesma forma, não se verá um notário perguntar aos
pais, na hora do registro civil do nascimento, se eles amam o filho. Nesse sentido, leciona

8
Art. 227. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
9
Art. 226. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como
entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
10
Art. 227. § 5º A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de
sua efetivação por parte de estrangeiros. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão
os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
11
226. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes.
12
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade,
ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
102
Pereira Júnior, afirmando que os afetos são, por natureza, instáveis, e, por isso, não se
mostra razoável que o direito positivo, enquanto norma de ordem social, tome-os por
elemento-cerne da relação familiar.

Em contraposição as ideias dos que não consideram a afetividade um princípio a ser


seguido no Direito de Família, demonstram os defensores, como Calderón (2017), que não se trata
de algo apegado totalmente as questões de sentimentos, como assim dizem os contrários, mas a
afetividade jurídica tem como base os fatos que externem relações intersubjetivas, onde pode se
presumir a manifestação da afetividade.

Esse cenário de discussões teóricas foi provocador de mudanças nas relações familiares,
que passaram a ser vistas sob outra ótica, tendo como consequência o que relata Calderón (2017,
p. 16), “a igualdade e a liberdade foram gradativamente conferidas aos relacionamentos e alteraram
o quadro de estabilidade anterior, uma vez que a qualidade dos vínculos passou a ser objeto de
análise constante”.

Como se percebe, a qualidade dos vínculos, isto é, a forma e a profundidade com que se
davam passou a ser considerada, tendo-se com isso a influência da força construtiva dos fatos
sociais, fazendo emergir a necessidade de reconhecimento jurídico da socioafetividade, embora se
verifique a inexistência da própria lei reconhecendo tal princípio.

Conforme explicita Calderón (2017, p. 38):

Anote-se, desde logo, que foi justamente quando o Direito de Família brasileiro se
aproximou novamente da realidade social que se deparou com a temática da afetividade,
pois ela ressoava intensamente nos diversos relacionamentos familiares. Em vista que,
não foi possível mais aos juristas virar às costas para a necessidade de acolhimento da
afetividade.

A relação entre filiação e parentalidade socioafetiva, bem como suas análises são objetos
de constantes indagações que permeiam as últimas décadas no campo do Direito de Família.

O grande divisor de águas nesse cenário foi a Constituição Federal de 1988 que, através da
importância dos princípios, trouxe novos paradigmas às relações familiares, partindo de uma
família matrimonializada e centrada no privilégio aos filhos advindos de uma relação
heteroafetiva, para a diversidade na forma de filiação, não importando se casados, se vivem em
união estável ou solteiros, como mostra Louzada (2019, p. 25):

A ampliação do conceito de família possibilitou que a multiparentalidade viesse a ser


abordada tanto pela doutrina como pela jurisprudência, como um novo núcleo familiar
constitucionalizado, pautado em princípios constitucionais de proteção da pessoa dentro
de suas relações familiares.

103
Essa discussão de vínculos concomitantes, ou multiparentalidade, marca a ascensão dessa
nova realidade e concepção na formação das famílias, fato verificado concretamente no
reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE nº
898.060/SC, bem como os efeitos da Repercussão Geral 622, que demonstram que o direito precisa
dar uma resposta às situações concretas que envolvem a formação das famílias, não dando mais
pra deixar de lado e fingir que elas não existem, discussões essas que são trazidas no presente
estudos por Graeff (2019), Louzada (2019) e Lobo (2021).

Diante do reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal, pode-se


indagar: que importância teve a afetividade no referido julgamento? Qual a importância de referida
decisão para a paternidade/maternidade socioafetiva?

2.4 O julgamento da repercussão geral nº 622 pelo Supremo Tribunal Federal e a


consagração do princípio da afetividade na multiparentalidade

O Supremo Tribunal Federal - STF, dentro da seara da aplicação do princípio da afetividade


no Direito de Família, teve um importante papel quando da análise de um caso que chegou em
suas demandas e necessitava de uma resposta da referida corte.
Vários autores relataram a importância de tal julgamento, como Graeff (2019), Louzada
(2019) e Lobo (2021), dentre outros. O que se traz aqui é um relato do que foi descrito por referidos
autores.

Tratava-se de um processo de Investigação de Paternidade cumulada com pedido de


fixação de alimentos, em que fora proposta pela filha que contava, à época, com 19 anos de idade
e era fruto do relacionamento de sua genitora com o suposto pai, de um relacionamento que durou
um período de quatro anos. Ocorre que quando a filha nasceu, a sua genitora já se encontrava
casada com outra pessoa, vindo o atual esposo a registrar a filha como seu pai biológico.

Ao completar 16 anos de idade, a adolescente descobriu a sua real história e que o pai
registral não era o seu pai biológico, vindo, anos após a descoberta, ingressar com a Ação de
Investigação de Paternidade com pedido de fixação de alimentos.

Nas instâncias inferiores, após a confirmação da paternidade com o resultado de exame de


DNA, fora determinada a retificação do registro da requerente para que passasse a constar como
pai biológico o requerido da ação, embora durante o processo tenha se verificado que o pai registral
também deveria ser o pai socioafetivo, em face do enlace familiar e a construção dos vínculos
durante os 19 anos. Como também se verificou, a requerente em seu pedido não externou intenção
104
de retirar o nome do pai registral, mas tão somente ter os mesmos direitos referentes ao pai
biológico.

O pai biológico foi quem recorreu da decisão do juiz de 1ª instancia na intenção de ver
reformada a sentença, para que prevalecesse a paternidade socioafetiva em detrimento da
paternidade biológica.

Conforme narrado por Louzada (2019), com voto isolado no recurso de apelação, houve a
interposição de embargos infringentes, os quais foram providos em decisão não unânime, fazendo
com que o pai biológico viesse a recorrer em sede de Recurso Extraordinário.

Para a admissibilidade de Recurso Extraordinário, o artigo 103513, do Código de Processo


Civil, estabelece a necessidade de repercussão geral, considerando a existência ou não de questões
relevantes que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.

Era trazido para as discussões da Corte Suprema, a repercussão geral da controvérsia


entre o reconhecimento de duas paternidades simultâneas: afetiva e biológica, principalmente se
uma deveria se sobrepor e excluir a outra.

O relator do Recurso Extraordinário nº 898.060, Ministro Luiz Fuz, em seu voto, foi pelo
desprovimento do recurso, mostrando como argumentos o que é trazido por Lobo (2021, p. 78):

A fundamentação do voto centra-se precipuamente no princípio da dignidade humana, na


dimensão da tutela da felicidade e sua estreita vinculação com a concepção da família
endemonista, no princípio de melhor interesse do descendente, no direito ao
conhecimento da origem biológica e no princípio da paternidade responsável.

Conforme nos mostra Louzada (2019, p. 52), a decisão do STF não foi unânime.
Acompanharam o relator Luiz Fux, a maioria dos ministros, dentre eles, Rosa Weber, Carmen
Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marcos Aurélio de Mello e Celso de Mello.

A divergência de voto é representada pelos Ministros Edson Fachin e Teori Zavascki. O


Ministro Edson Fachin, ao pronunciar seu voto, demonstra em seus argumentos a existência de
controvérsia no caso concreto analisado, de quais das paternidades deveria prevalecer e da qual
teria a aptidão para determinar a relação parental, entretanto, ao final esboça a possibilidade de,
no caso concreto, se efetivar a viabilidade jurídica da multiparentalidade, conforme Lobo (2021,
p. 81):

13
Art. 1.035. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a
questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo.
105
[...] a multiparentalidade só pode ser reconhecida quando se expressa na realidade da
socioafetividade, o pai biológico quer ser pai, o pai socioafetivo não quer deixar de sê-lo,
e isso atende o melhor interesse da criança – ou é consentido pelo adolescente.

Ao final das discussões e voto de cada ministro, o Supremo Tribunal Federal, com maioria
de votos que seguiram o voto do relator, negou provimento ao Recurso Extraordinário, mas fixou
tese na Repercussão Geral de nº 622, que representa um divisor de águas nas questões relacionados
a filiação. Conforme mostra Calderón (2017, s.p):

A tese aprovada tem o seguinte teor: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em


registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante
baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios.

Com a fixação da referida tese estava reconhecida a multiparentalidade e com ela a


possibilidade de uma criança ter mais de um pai ou mais de uma mãe, reconhecidos juridicamente
como seus genitores. Esse reconhecimento podendo ocorrer, por exemplo, até mesmo em casos de
reprodução assistida com doadores de gametas, ou em casos de adoção por casais homoafetivos.

Merece destacar também que a tese fixada reconhece a paternidade socioafetiva com todos
os efeitos jurídicos decorrentes de uma filiação, o que permite não estabelecer diferenças entre o
que é socioafetivo e o que é biológico, mesmo que aos olhos da subjetividade, a
paternidade/maternidade socioafetiva decorra de laços profundos de afeto, de amor, de cuidado,
que em grande parte ultrapassam os meros vínculos biológicos.

2.5 Autoestudo da paternidade socioafetiva: relato de experiência pessoal

De forma a ilustrar e mostrar em sua concretude o princípio da afetividade que é retratado


pelos autores, pela doutrina, jurisprudência, sobretudo os reflexos do julgamento do RE nº
898.060/SC e da Repercussão Geral 622, pelo STF, apresento o meu relato de experiência como
pai socioafetivo.

Era 14 de março de 2007, quando nascia B.E.L.M, no Hospital Maternidade de uma cidade
do interior do Ceará, e tive logo o primeiro contato com a criança quando ainda estava no leito da
maternidade, em face de minha proximidade com os seus genitores e com toda sua família.

Com o passar dos dias, a criança foi se desenvolvendo e eu sempre a acompanhava, fazendo
visitas em sua casa quase todos os dias, tendo logo nos primeiros meses de vida acompanhado a
descoberta médica de que a criança tinha Síndrome de Down, fato que não era de conhecimento
prévio de nenhum familiar. Fiquei preocupado, juntamente com todos os seus familiares,
sobretudo se a criança teria complicações de saúde em face da síndrome descoberta.
106
Aos três meses de idade, a criança perdeu seu genitor em acidente automobilístico, ficando
somente aos cuidados de sua mãe e dos familiares maternos, que lhe dedicavam todo amor e
cuidado.

Aos poucos, a minha dedicação, o carinho e o afeto foram aumentando em relação a


criança, chegando a acompanhá-la, juntamente com seus familiares, aos exames médicos e
terapias.

Um certo dia fui surpreendido com um convite da mãe da criança para que fosse seu
padrinho de batismo que, emocionado de pronto, logo aceitei e a partir desse momento não se
considerava mais somente padrinho, mas um pai para a criança.

O tempo foi passando e eu acompanhava a criança em todas as suas atividades da vida,


indo para reuniões de pais na escola, participando de festas dos dias dos pais e de todos os eventos
da vida cotidiana da criança.

Cada conquista sua, seja quando andou pela primeira vez, quando balbuciou as primeiras
palavras, eu estava presente.

Os laços familiares se intensificaram através do afeto que era por mim demonstrado para
com a criança e isso era recíproco. Uma prova desse afeto foi que, ao aprender escrever seu nome
na escola, os professores foram surpreendidos com a criança acrescentando ao seu nome o meu
sobrenome.

A superação de cada obstáculo feito por ela, era por mim e por todos da família,
comemorado. Lembro do dia em que superou o medo do escuro no cinema, pois várias vezes
desistia ao chegar na porta e em um belo dia ela resolveu enfrentar o seu medo e foi comigo que
isso aconteceu e foi emocionante quando ela segurou minha mão bem forte e disse: “palim, eu
consegui!”

O tempo foi passando e com as informações jurídicas de que o Supremo Tribunal Federal,
em 2016, havia fixado tese que estabelecia a possibilidade da multiparentalidade, pois não era
desejo meu suprimir o nome do genitor da criança, mas que fosse feito como ela mesma assinava
na escola, o acréscimo da paternidade socioafetiva. Em conversa com a criança, que já contava à
época com 11 anos de idade e com sua genitora, foi decidido que eu e a genitora da criança
ingressaríamos em conjunto com ação judicial de reconhecimento da Paternidade Socioafetiva.

A ação foi proposta em 19 de fevereiro de 2018, teve seu regular prosseguimento, com
realização de estudos sociais na residência da criança e da minha residência, sendo comprovado
pelas assistentes sociais que conduziram a visita, a presença do afeto e do amor que tanto eu como
107
a criança dispensávamos um ao outro. Era manifesto pela criança o tamanho afeto para com o
“palim”, como assim falava.

Em 25 de maio de 2018, o juiz da primeira instância julgou procedente o pedido e


determinou a lavratura de registro de nascimento com as averbações necessárias, fazendo constar
os nomes dos dois genitores e o acréscimo do sobrenome do autor no nome da criança, bem como
sua genitora e seis avós, estava assim consagrada a paternidade socioafetiva do autor. Lavrava-se
o primeiro caso de paternidade socioafetiva no Cartório de Registro Civil da cidade.

A partir daquele momento a criança passava a se chamar B.E.L.M.A, com a paternidade


socioafetiva registrada.

Era consagração de um amor que ultrapassou os laços sanguíneos e se constituiu a partir


do afeto e, somente com o reconhecimento jurídico das filiações socioafetivas, a
multiparentalidade teve a possibilidade de se concretizar e ser oficializada com a acumulação de
paternidades, justamente por uma espécie de vínculo não mais excluir o outro.

3 CONCLUSÃO

O conceito de família, ao longo do tempo, passou por várias transformações. Nas


sociedades antigas predominava o patriarcado, a religiosidade e a consanguinidade, apesar de
grupos familiares, sobretudo em Roma, considerarem até mesmo os elos de trabalho como
inerentes ao grupo familiar. Na Idade Média, com a grande influência da Igreja Católica Romana,
predominava o ideal da religiosidade cristã, sendo família aquela constituída pelo casamento em
prol da geração de prole.

Mais recentemente, em um contexto mais especifico, pôde-se perceber que na codificação


civil brasileira de 1916, há um reforço à concepção de família patriarcal, privilegiando os laços
matrimonias e sanguíneos, evidenciando a extensão da influência antiga mesmo em tempos mais
modernos. Entretanto, o século XX fora recheado de mudanças sociais e novas percepções sobre
família foram surgindo.

Nasce nesse contexto, a importância da afetividade como fator determinante nas novas
relações familiares. A mudança no conceito de família foi forjada pelas situações concretas
apresentadas pela sociedade e que somente foram percebidas quando se valorizou o afeto, o lado
subjetivo dos entes familiares. Essa abstração se deu, tendo em vista que existiam diversas
situações que não se enquadravam no conceito antigo de família, aquele conceito que levava em
consideração apenas os laços biológicos e sobretudo matrimoniais.

108
O primeiro marco histórico no Brasil foi a Constituição Federal de 1988, que trouxe o
reconhecimento expresso de novas modalidades de família, como a monoparental e a informal.
Além disso, traz implícito a valorização à afetividade, inerente à dignidade da pessoa humana num
aspecto abstrato, tornando-se concreto nas relações de família, sem se eximir das responsabilidades
daí decorrentes.

Outro marco histórico que consagrou o princípio da afetividade no Direito de Família foi
o reconhecimento da multiparentalidade pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar, em 2016, o RE
nº 898.060/SC, bem como os efeitos da Repercussão Geral 622, fixando tese de que não mais
necessitaria que se excluísse um vínculo familiar para que se incluísse outro.

A importância da paternidade/maternidade socioafetiva reside no fato de que o afeto e o


cuidado são essenciais para o desenvolvimento saudável e equilibrado de uma criança, fato que
ficou comprovado quando do relato da experiência vivenciada pelo autor do artigo.

É importante destacar que a paternidade socioafetiva não invalida a importância da


paternidade biológica, mas ambas podem coexistir e serem valorizadas, como reconhecido pelo
STF em sua tese de repercussão geral. O que realmente importa é o envolvimento emocional e a
dedicação ao bem-estar da criança.

Na realidade atual se faz necessário não somente ter uma visão plural das estruturas
familiares e inserir no conceito de família os vínculos afetivos, mas sobretudo, de forma explícita
consagrar a afetividade como princípio basilar das relações familiares na nossa legislação pátria,
estabelecendo seu regramento específico de forma a também garantir segurança jurídica.

REFERÊNCIAS

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111
AÇÃO DE EXIGIR CONTAS COMO MEIO VIÁVEL À FISCALIZAÇÃO
DA PRESTAÇÃO ALIMENTAR DOS FILHOS MENORES

Gisela Brum Isaacsson1


RESUMO

No final de um relacionamento e havendo filhos menores surge, necessariamente, o dever de


pagar alimentos aos infantes, dever este atribuído ao genitor não-guardião. A fixação dos
alimentos vai depender do trinômio: necessidade, possibilidade e proporcionalidade,
considerando-se, aqui, que a necessidade do filho menor é presumida, desta forma, independe
de maiores comprovações. Estabelecido o valor da verba alimentar, o genitor não-guardião
entrega esta ao filho, sendo que a gerência e aplicação de tais valores caberá ao genitor que
detém a guarda física do menor. Este trabalho apresenta uma breve análise sobre a possibilidade
de o alimentante fiscalizar o emprego do numerário alcançado a fim de verificar se está
atendendo às necessidades da criança/adolescente, apresentando, como meio judicial de realizar
tal fiscalização, a ação de exigência de contas. Analisa-se, ainda, o posicionamento do Superior
Tribunal de Justiça a respeito do tema esclarecendo-se, desde já, que a corte superior adota o
posicionamento deste ser um direito-dever do genitor não-guardião, tendo em vista a
obrigatoriedade de perseguir-se, sempre, o melhor interesse do menor.

Palavras-chave: alimentos; genitor não-guardião; ação de exigir contas; direito-dever de


fiscalizar; menor.

1 INTRODUÇÃO

O direito de receber alimentos e o dever de pagá-los está consagrado no ordenamento


jurídico brasileiro e na Constituição Federal de 1988, sendo um direito essencial da pessoa e
garantidor de uma vida digna.

Muitas espécies de alimentos estão previstas na legislação nacional, no entanto


esclarece-se, desde já, que o presente artigo opta por discutir apenas os alimentos devidos pelos
pais aos filhos menores, bem como a relação destes frente ao direito-dever do pai não-guardião
de fiscalizar seu emprego.

Dessa forma, surge, como problema de pesquisa, o seguinte questionamento: “Haverá


algum caminho judicial cabível ao genitor que não detenha a guarda física do filho menor, poder
fiscalizar a aplicação dos valores que paga a título de alimentos a este para verificar se estão
sendo realmente aplicados de fato em proveito do seu destinatário final?”.

1
Advogada na área de Direito de Família e Sucessões. Professora e Especialista em Direito Processual Civil.
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural e Doutora em Política Social e Direitos Humanos. OAB/RS
24.323, e-mail: giselaisaacsson@gmail.com.
112
Isto posto, apresenta como objetivo geral compreender o direito aos alimentos,
ressaltando suas características – direito personalíssimo e irrepetibilidade – e o emprego da ação
de exigir contas prevista no atual Código de Processo Civil.

Como objetivos específicos, para alcançar o inicialmente proposto, sinala que buscará
na doutrina os conceitos básicos dos institutos jurídicos em questão a fim de subsidiar o presente
texto, destacando o próprio conceito de alimentos e de ação de exigir contas, bem como propõe-
se a pesquisar jurisprudência sobre o tema, analisando os votos prolatados com o objetivo de
compreender melhor a posição dos tribunais a respeito do assunto, com o intuito de responder
ao questionamento incialmente exposto.

Para tanto, divide o texto em três momentos, quais sejam: um primeiro tópico que
abordará os alimentos propriamente ditos, discorrendo sobre conceitos e características, em
especial serem considerados direito personalíssimo do alimentado bem como configurarem
prestação irrepetível; um segundo tópico que analisará a ação de exigência de contas e um
último tópico que versará sobre o direito-dever de fiscalizar por parte do alimentante com
apresentação e discussão de posicionamentos jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça
sobre o tema.

Dessa forma, sem pretensão de esgotar o tema, passa-se à análise proposta.

2 DOS ALIMENTOS

Os alimentos encontram previsão legal, dentro do Código Civil brasileiro, a partir do


art. 1.694 e consistem em prestações, in pecunia ou in natura, alcançadas por quem tem
possibilidade de arcar a quem tem necessidade de pleitear, pois não pode prover sua própria
subsistência, guardada sempre uma proporção, pois não podem configurar meio de
enriquecimento do alimentado, mas tão somente serem uma forma de suprir suas necessidades
comprovadas.

Podem ser pleiteados entre os parentes, cônjuges ou companheiros que necessitem para
viver de modo compatível com sua condição social, inclusive para atender às necessidades de
sua educação, sendo decorrentes da solidariedade social, prevista no art. 3º, inciso I, da
Constituição Federal, que dentro do Direito das Famílias, é tratada como solidariedade familiar
recíproca, entendida como aquela que deve ocorrer entre os membros de uma família, isto é,
todos os membros que compõe o núcleo familiar, para a manutenção digna de uns e outros. A

113
solidariedade, aqui tratada, não tem caráter de mera liberalidade, mas sim de reciprocidade,
uma vez que é um ato bilateral.

Os alimentos também figuram como um direito social, contemplado no art. 6º, da Carta
Magna, no momento em que a Emenda Constitucional n. 64/10, alterou o texto do supracitado
artigo para incluir a alimentação neste rol.

Importante ressaltar, ainda, o entendimento de Maria Berenice Dias (2023a, p. 21) que:
“Não são devidos somente para atender às necessidades básicas de sobrevivência”.

Estão incluídos na obrigação alimentar além da vida, fim primeiro do pagamento da


aludida prestação, habitação, lazer, assistência à saúde, educação, vestuário, entre outros,
devendo também atentar-se para a manutenção do padrão de vida do infante, quando ocorre a
dissolução da sociedade conjugal ou da união estável dos pais, situação na qual este deve
manter-se nos mesmos patamares de quando havia a união dos genitores.

Os alimentos comportam, na doutrina diversas classificações como quanto à sua


natureza (naturais e civis), quanto à causa jurídica (lei, vontade, ato ilícito), quanto à finalidade
(provisionais e regulares), quanto ao momento de prestação (futura e pretérita), quanto à
modalidade (própria e imprópria) (CAHALI, 1987, p. 4ss).

Assim sendo, para melhor delimitar o tema de estudo no presente artigo, sem pretensão,
por óbvio, de esgotar o assunto, opta-se por refletir apenas em relação aos alimentos devidos
pelos pais a seus filhos menores em decorrência do final de um casamento ou de uma união
estável.

Lembra-se, aqui que homem e mulher são equiparados, no texto constitucional (art. 226,
§5º), quanto aos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal. Assim, ambos são,
igualmente, responsáveis pelos direitos e deveres em relação à sua prole, cabendo a eles dar
condições para que os filhos se desenvolvam em todos os níveis, garantindo-lhes tanto a vida,
educação, assistência à enfermidade, vestuário, habitação, lazer, manutenção de padrão social,
entre outros pontos necessários ao desenvolvimento saudável do infante.

Estabelecido o norte desta pequena reflexão, entende-se importante, ainda neste


primeiro tópico, analisar duas características que revestem este tipo de obrigação alimentar, e
que possuem relação direta para a resposta ao questionamento inicialmente proposto, quais
sejam, serem os alimentos um direito personalíssimo do alimentado e sua irrepetibilidade.
Vejamos.

114
Os alimentos são um direito personalíssimo (intuito personae), pois cabem somente ao
alimentado, não podendo ser repassado a outra pessoa, pois configuram uma das formas de se
garantir o direito à vida, assegurado no caput do art. 5º, da Constituição Federal.

Dessa forma, com o advento da morte do credor de alimentos, a obrigação alimentar


extingue-se, diante desta natureza personalíssima. No entanto, convém lembrar que, apesar de
se extinguirem com o evento morte, os valores devidos a este título, do qual o de cujus era
credor são devidos ao espólio deste, podendo, perfeitamente serem cobrados em sede judicial
pelos seus herdeiros, podendo, inclusive terceiros proporem a cobrança contra o devedor, acaso
possuírem créditos a serem atendidos pelo espólio credor (DIAS, 2023a, p. 29).

De outra banda, o segundo ponto que se pretende abordar é que o valor pago a título de
alimentos é irrepetível, ou seja, os alimentos já pagos, passam a integrar a esfera patrimonial
do alimentado e não podem ser restituídos ao alimentante. No dizer de Bénabent, citado por
Cahali (1987a, p. 105), “les versements effectués au titre de la pension alimentaire le sont à
fonds perdus”.

Esta característica vem ao encontro de conceder, ao credor dos alimentos, uma


segurança jurídica, pois uma vez pagos os valores, não há como o devedor pedi-los de volta2.

Nas palavras de Maria Berenice Dias (2016b, p. 949), acerca desta característica tem-se
que:

Talvez um dos princípios mais significativos que rege o tema dos alimentos seja o da
irrepetibilidade. Como se trata de verba que serve para garantir a vida e a aquisição
de bens de consumo, é inimaginável pretender que sejam devolvidos. Esta verdade
por tão evidente é difícil de sustentá-la. Não há como argumentar o óbvio.
Provavelmente por esta lógica ser inquestionável é que o legislador não se preocupou
sequer em inseri-la na lei. Daí que o princípio da irrepetibilidade é aceito por todos,
mesmo não constando do ordenamento jurídico.

Soma-se a isso, o entendimento do enunciado de súmula n. 621, aprovado em 12 de


dezembro de 2018, pelo Superior Tribunal de Justiça, verbis: “Os efeitos da sentença que
reduz, majora ou exonera o alimentante do pagamento retroagem à data da citação, vedadas
a compensação e a repetibilidade.”.

2
Convém referir, ainda que não seja objeto das presentes reflexões, mas por total dever de lealdade para com o
leitor, que a característica, elevada a princípio, da irrepetibilidade aqui em comento tem sofrido uma certa
mitigação quando comprovada a má-fé e dolo por parte do requerente de alimentos, ensejando, no caso concreto
situações nas quais se concluam que houve locupletamento ou enriquecimento sem justa causa de quem pleiteia e
também referentes a pagamento considerado indevido (arts. 884 e 964, ambos do Código Civil).
115
Assim sendo, o tribunal superior acabou por reforçar a ideia da irrepetibilidade da
verba paga a título alimentar, no momento em que ressalta que até mesmos os efeitos da
sentença, que, por regra retroagem à data da citação, não podem ser alegados para a repetição
dos valores já pagos no decorrer da ação que visava justamente rediscutir a adequação e/ou
necessidade do valor dos alimentos já fixados em outra decisão.

Posto isso, e com o intuito de prosseguir no raciocínio, passa-se a análise da ação de


exigência de contas, ação com rito especial, prevista no Código de Processo Civil de 2015, a
fim de verificar suas características principais, buscando saber se seria o meio adequado ao
propósito incialmente exposto.

3 AÇÃO DE EXIGIR CONTAS

Prevista a partir do artigo 550, do Código de Processo Civil, a ação de exigir contas é
uma ação de procedimento especial que corresponde à antiga ação de prestação de contas
prevista no Código de Processo Civil de 1973 a partir do art. 915.

Ela dirige-se contra todo aquele que administra bens, negócios ou interesses alheios, a
qualquer título, para que preste contas da sua gestão ao detentor do direito (GONÇALVES,
2016a, p. 177).

Tem como sujeito ativo, portanto, aquele que afirma ser titular do direito de exigir contas
e figura no polo passivo da demanda aquele que gerencia os bens, negócios e interesses do
autor. O resultado final da ação pode concluir pela existência de um saldo a receber ou pagar
ou, ainda, inexistência deste (FABRÍCIO, 1988, p. 314).

Diz-se que é uma ação de natureza dúplice, pois o réu pode, por permissão legal,
apresentar defesa e formular pedidos em face do autor, sem a necessidade de manejar
reconvenção (GONÇALVES, 2016a, p. 179).

Apresentadas as contas, e constatado haver saldo favorável ao autor, a sentença apontará


os valores devidos e servirá de título executivo judicial para que sejam reavidos os valores em
sede de execução, da mesma forma o oposto.

Assim sendo, percebe-se que se for constatada má aplicação ou mau gerenciamento dos
recursos de terceiro, um saldo devedor será apurado, devendo o gestor dos valores restitui-los
ao titular do direito. De outra banda, se for o caso da gestão ter ocorrido de forma adequada e
for constatado que há saldo credor ao gestor, ao autor será determinado o ressarcimento.

116
Pois bem. No caso ora em discussão, no presente artigo, pretende-se discutir a primeira
hipótese, qual seja, se, na ação de exigência de contas for constatado a malversação dos recursos
geridos pelo réu e surgir a necessidade de ressarcir o credor destes valores. A repetibilidade dos
valores, uma vez apurados como devidos, está no resultado final da ação, configurando o seu
pedido mediato, acaso haja apuração deste saldo.

Trazendo tais ponderações para a seara do pagamento da verba alimentar temos o


seguinte: de um lado existe a figura do genitor não-guardião que paga alimentos ao filho menor
e a genitora guardiã que administra tais valores. Existem aqui três sujeitos: não-guardião, filho
e guardião. Um dever pertence ao primeiro, um direito, ao segundo e um novo dever, ao terceiro.

Vejamos. A ação de exigência de contas pressupõe ter no polo passivo um direito e no


polo passivo um dever, ou seja, o genitor não-guardião tem direito de saber se os recursos pagos
ao menor estão sendo bem administrados e geridos para o exclusivo bem-estar do filho e do
outro lado, tem-se o genitor guardião que tem o dever se gerir e administrar os recursos pagos
para alcançar o melhor interesse do menor.

Dito isso e com o objetivo de tirar-se uma primeira conclusão tendo em vista todo o
exposto, tem-se que: primeiro, os alimentos possuem a irrepetibilidade como uma de suas
características, elevada essa à categoria de princípio fundamental; segundo, os alimentos são
direito personalíssimo figurando no polo ativo da ação, que pleiteia o pagamento da verba, o
menor e no polo passivo encontra-se o genitor que não possui a guarda física; e terceiro, a ação
de exigir contas pode vir a apurar saldo devedor à favor do autor que, por óbvio, deverá ser
ressarcido

Assim exposto, pode-se entender que a ação de exigência de contas seria uma via
inadequada a ser utilizada pelo genitor não-guardião que arca com a obrigação de prestação
alimentícia contra o genitor que possui a guarda física do infante e, por isso, gerencia os valores
percebidos a título de pensão alimentícia, pois: primeiro, o titular dos alimentos é o(a) filho(a)
e não o(a) genitor(a) que detém a guarda física, não podendo pleitear-se direito sobre quem não
o possui (art. 18, do CPC); e segundo, uma vez apurado qualquer saldo a favor do autor este
não poderá ser repetido, tendo em vista a irrepetibilidade dos alimentos.

Posto isso questiona-se: haverá algum caminho judicial cabível ao genitor que não
detenha a guarda física do filho menor, poder fiscalizar a aplicação dos valores que paga a título
de alimentos a este para verificar se estão sendo realmente aplicados de fato em proveito do seu
destinatário final?
117
Tendo em vista tal questionamento, responde-se, de imediato que sim, conforme o que
será exposto na sequência do presente texto.

4 DO DIREITO-DEVER DE FISCALIZAR POR PARTE DO ALIMENTANTE

Primeiramente, cabe salientar que, conforme o já exposto acima, os alimentos pagos ao


menor são irrepetíveis e que somente em situações excepcionais a jurisprudência tem permitido
o manejo de ação judicial para a verificação se estes estão sendo usufruídos de forma adequada
por quem de direito, ou seja, a criança/adolescente credora dos alimentos.

Também é fato, já comentado acima, que no momento em que são pagos os valores a
título de pensão alimentícia, esses passam a pertencer exclusivamente à parte alimentada
(obrigação personalíssima) e se exaurem no próprio sustento desta, não cabendo qualquer
pedido de repetição.

Assim sendo, importante referir-se, de início, que a ação eventualmente proposta por
alimentante não deve, em hipótese nenhuma, buscar a verificação algum crédito em favor do
autor, para pleitear a devolução, mas tão somente presta-se a supervisionar o interesse do filho
verificando a aplicação dos valores pagos no bem-estar do menor por meio do essencial direito
e dever de fiscalização.

Assim sendo, o pedido mediato, que se busca com a ação em tela, é exclusivamente
no sentido de ter-se acesso aos gastos mensais da criança/adolescente bem como verificar se os
valores, que estão sendo pagos a título de alimentos, estão sendo empregados para o fim
pretendido, qual seja, a subsistência do bem-estar do menor, no mais puro exercício do direito-
dever de fiscalização. Leia-se aqui, transparência.

A possibilidade de exigir-se contas é inerente ao exercício do poder familiar e da


proteção avançada da criança e do adolescente, sob pena de inviabilizar a própria fiscalização
da manutenção, sustento e educação dos filhos, reconhecida pelo art. 1.589, do Código Civil de
2002 (CAHALI, 2003b, p. 572).

O resultado da ação pode acarretar, acaso se constate o mau uso dos recursos pagos a
título de alimentos, em novo processo, discussões como a suspensão ou extinção do poder
familiar do ascendente guardião (arts. 1.637 c/c 1.638, ambos do Código Civil).

118
Sendo assim, o genitor que não possui a guarda física do infante e que paga alimentos
a este é parte perfeitamente legítima para solicitar informações do outro genitor que se encontra
com a guarda física do menor e gerencia os valores recebidos no seu único e exclusivo interesse,
pois é detentor do direito-dever de fiscalizar.

O fundamento legal da aludida demanda encontra-se no artigo 1.583, §5º, do Código


Civil que prevê a possibilidade de supervisão dos interesses dos filhos por qualquer os genitores
que não esteja com a guarda física da criança/adolescente, assim sendo este será parte legítima
para pleitear informações ou prestação de contas de situações que afetem à saúde ou educação
dos infantes.

Interpretando o dispositivo legal supracitado, Rolf Madaleno (2020, p. 1023) leciona:

a partir da vigência do § 5º do art. 1. 583 do CC/02, os temas relacionados com a saúde


física e psicológica dos filhos e mais aqueles relativos à sua educação, autorizam o
progenitor alimentante a exigir prestação de contas ou meras informações acerca do
destino dos alimentos que paga, pela simples dúvida, suspeita ou interesse que tenha
de, preocupado com o bem-estar do seu filho, ser mais bem informado , de modo
inclusive pormenorizado, acerca de como está sendo administrada a pensão
alimentícia do filho melhor.
[...]
consagra a possibilidade sempre negada pela jurisprudência brasileira da ação de
prestação de contas do pagamento da pensão alimentícia, atribuindo, expressamente,
legitimidade ativa ao genitor não guardião para solicitar informações ou prestação de
contas sobre assuntos ou situações que reflitam sobre a saúde física e psicológica e
educação dos filhos e, obviamente, neste espectro de incidências, a pensão alimentícia
se apresenta como fundamental direito a ser fiscalizado, pois ainda que os alimentos
não possam ser restituídos, ao menos a readequação dos fatos pode ser redirecionada

O entendimento que vem sendo proferido ao interpretar o supracitado artigo considera


que afora serem irrepetíveis os alimentos, isso não retira o direito e o dever dos pais, inerente
do poder familiar, que não estejam na companhia dos filhos, de supervisionarem o emprego do
dinheiro pago aos menores, e, uma vez constatada a malversação tais atos devem ser coibidos
em atenção ao que preconiza a própria lei e o melhor interesse da criança e do adolescente,
surgindo assim, um direito-dever do alimentante em relação à administração dos valores que
pertencem ao infante, sob pena de esvaziamento do texto do supracitado artigo.

Além disso, conforme o texto do artigo 1.589, do Código Civil tem-se, verbis: “Art.
1.589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos, poderá visitá-los e tê-los em sua
companhia, segundo o que acordar com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como
fiscalizar sua manutenção e educação.”.

119
Assim sendo, nenhuma dúvida paira sobre a legitimidade genitor que não detém a
guarda física do infante ajuizar demanda neste sentido, contra quem a detém, uma vez que a lei
autoriza sua fiscalização, criando inclusive um poder-dever neste sentido.

Trata-se de mecanismo protecionista dos reais interesses do infante e se revela um


instrumento eficaz e próprio para o exercício do pleno poder familiar, capaz de concretizar a
atividade fiscalizatória do genitor não-guardião, configurando um dever legal deste.

O interesse de agir, condição da ação inicialmente pensada pelo italiano Enrico Tulio
Liebman e hoje expresso no Código de Processo Civil de 2015, mais precisamente no art. 17, é
constituído pelo binômio necessidade e adequação, ou seja, para que se tenha interesse de agir
é preciso que o provimento jurisdicional seja útil a quem postula. A necessidade é demonstrada
pela imprescindibilidade de recorrer-se ao Judiciário para se obter o objetivo final pretendido.
Se este puder ser alcançado, sem a necessidade do ajuizamento de uma ação, ausente figura-se
a referida condição da ação. Por outro lado, a adequação refere-se à escolha do meio processual
pertinente, que produza um resultado útil, sendo que a escolha da via inadequada conduz à
extinção do feito sem resolução do mérito (GONÇALVES, 2016b, p. 118).

O interesse processual, na situação da ação em tela, faz-se presente na medida em que


cabe ao alimentante, por força de dever legalmente imposto, fiscalizar a aplicação dos alimentos
pagos, de forma a verificar o respeito à dignidade do alimentando-incapaz, sua integridade
física e psíquica e pressupostos materiais básicos fundamentais (FARIAS, 2013, p. 200).

Sinala-se, que não há necessidade de que o autor invoque algum suposto crédito
existente ou desfalque efetuado pelo requerido, bastando que ostente o direito de ter as contas
prestadas, para que a demanda seja procedente.

No entender de Luis Guilherme Marinoni, Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Mitidiero


(2016, p. 148) por ser situação excepcional, entendem que deve haver análise na exordial de
fatos e indícios que levem a crer a falta de transparência e a malversação dos valores pagos a
título de alimentos por parte do genitor que gerencia as quantias percebidas pelo filho comum.

Reforça-se aqui ser um direito-dever que cabe ao genitor não-guardião de fiscalizar,


assim, havendo indícios que levem a alguma suspeita do bem-estar do menor estar sendo
afetado, este configura o caminho que se põe à disposição – e até mesmo se impõe – do genitor
alimentante, enquanto fiscal da garantia e proteção do melhor interesse e desenvolvimento da
criança e do adolescente, credores da verba em questão.

120
O Ministro Luis Felipe Salomão, como relator do REsp n. 1.911.030, apreciou a questão.
Vejamos a ementa do julgado, verbis:

DIREITO CIVIL E PROCESSO CIVIL. ALIMENTOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO


DE CONTAS. ART. 1.583, § 5º, DO CC. PODER-DEVER DE FISCALIZAÇÃO
DOS INTERESSES DO MENOR. 1. A proteção integral da criança e do adolescente,
defendida pela Organização das Nações Unidas (ONU) com base na Declaração
Universal dos Direitos da Criança e erigida pela Constituição da República como
instrumento de afirmação da dignidade da pessoa humana (art. 227), exerce crucial
influência sobre o intérprete da norma jurídica infraconstitucional, porquanto o impele
a compreendê-la e a aplicá-la em conformidade com a prevalência dos interesses do
menor em determinada situação concreta. 2. Com o inequívoco objetivo de proteção
aos filhos menores, o legislador civil preconiza que, cessando a coabitação dos
genitores pela dissolução da sociedade conjugal, o dever de sustento oriundo do poder
familiar resolve-se com a prestação de alimentos por aquele que não ficar na
companhia dos filhos (art. 1.703 do CC), cabendo-lhe, por outro lado, o direito-dever
de fiscalizar a manutenção e a educação de sua prole (art. 1.589 do CC). 3. O poder-
dever fiscalizatório do genitor que não detém a guarda com exclusividade visa, de
forma imediata, à obstrução de abusos e desvios de finalidade quanto à administração
da pensão alimentícia, sobretudo mediante verificação das despesas e dos gastos
realizados para manutenção e educação da prole, tendo em vista que, se as
importâncias devidas a título de alimentos tiverem sido fixadas em prol somente dos
filhos, estes são seus únicos beneficiários. 4. A Lei n. 13.058/2014, que incluiu o § 5º
ao art. 1.583 do CC, positivou a viabilidade da propositura da ação de prestação de
contas pelo alimentante com o intuito de supervisionar a aplicação dos valores da
pensão alimentícia em prol das necessidades dos filhos. 5. Na ação de prestação de
contas de alimentos, o objetivo veiculado não é apurar um saldo devedor a ensejar
eventual execução - haja vista a irrepetibilidade dos valores pagos a esse título -, mas
investigar se a aplicação dos recursos destinados ao menor é a que mais atende ao seu
interesse, com vistas à tutela da proteção de seus interesses e patrimônio, podendo dar
azo, caso comprovada a má administração dos recursos alimentares, à alteração da
guarda, à suspensão ou até mesmo à exoneração do poder familiar. 6. A ação de exigir
contas propicia que os valores alimentares sejam melhor conduzidos, bem como
previne intenções maliciosas de desvio dessas importâncias para finalidades
totalmente alheias àquelas da pessoa à qual devem ser destinadas, encartando também
um caráter de educação do administrador para conduzir corretamente os negócios dos
filhos menores, não se deixando o monopólio do poder de gerência desses valores nas
mãos do ascendente guardião. 7. O Juízo de piso exerce importante papel na condução
da prestação de contas em sede de alimentos, pois, estando mais próximo das partes,
pode proceder a um minucioso exame das condições peculiares do caso concreto, de
forma a aferir a real pretensão de proteção dos interesses dos menores, repelindo o seu
manejo como meio de imissão na vida alheia motivado pelo rancor afetivo que subjaz
no íntimo do(a) alimentante. 8. O objetivo precípuo da prestação de contas é o
exercício do direito-dever de fiscalização com vistas a - havendo sinais do mau uso
dos recursos pagos a título de alimentos ao filho menor - apurar a sua efetiva
ocorrência, o que, se demonstrado, pode dar azo a um futuro processo para suspensão
ou extinção do poder familiar do ascendente guardião (art. 1.637 combinado com o
art. 1.638 do CC).
9. Recurso Especial provido. (STJ; REsp 1.911.030; Proc. 2020/0328842-8; PR;
Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; Julg. 01/06/2021; DJE 31/08/2021).

No mesmo sentido, o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp


1.814.639 (Relator Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j.26/05/2020, DJe 09/06/2020)3, ficou

https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=110681843&nu
m_registro=201801368931&data=20200609&tipo=5&formato=PDF
121
firmado, por maioria de votos, afirmando que a função supervisora, por qualquer um dos
detentores do poder familiar, em relação ao modo pelo qual a verba alimentar fornecida é
empregada, além de ser um dever imposto pelo legislador, é um mecanismo que dá concretude
ao princípio do melhor interesse e da proteção integral da criança ou do adolescente.

Colaciona-se a integralidade da ementa:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RECURSO


INTERPOSTO SOB A ÉGIDE DO NCPC. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS.
PENSÃO ALIMENTÍCIA. ART. 1.583, § 5º, DO CC/02. NEGATIVA DE
PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. VIABILIDADE JURÍDICA
DA AÇÃO DE EXIGIR CONTAS. INTERESSE JURÍDICO E ADEQUAÇÃO DO
MEIO PROCESSUAL PRESENTES. RECURSO ESPECIAL
PARCIALMENTE.PROVIDO.
1. Aplica-se o NCPC a este recurso ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3,
aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016: Aos recursos interpostos com
fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de
2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.
2. Não há falar em omissão ou negativa de prestação jurisdicional, na medida em que
o Tribunal gaúcho dirimiu, de forma motivada, as questões devolvidas em grau de
apelação, pondo fim à controvérsia dos autos.
3. O cerne da controvérsia gira em torno da viabilidade jurídica da ação de prestar
(exigir) contas ajuizada pelo alimentante contra a guardiã do menor/alimentado para
obtenção de informações acerca da destinação da pensão paga mensalmente.
4. O ingresso no ordenamento jurídico da Lei nº 13.058/2014 incluiu a polêmica
norma contida no § 5º do art. 1.583 do CC/02, versando sobre a legitimidade do
genitor não guardião para exigir informações e/ou prestação de contas contra a guardiã
unilateral, devendo a questão ser analisada, com especial ênfase, à luz dos princípios
da proteção integral da criança e do adolescente, da isonomia e, principalmente, da
dignidade da pessoa humana, que são consagrados pela ordem constitucional vigente.
5. Na perspectiva do princípio da proteção integral e do melhor interesse da criança e
do adolescente e do legítimo exercício da autoridade parental, em determinadas
hipóteses, é juridicamente viável a ação de exigir contas ajuizada por genitor(a)
alimentante contra a(o) guardiã(o) e representante legal de alimentado incapaz, na
medida em que tal pretensão, no mínimo, indiretamente, está relacionada com a saúde
física e também psicológica do menor, lembrando que a lei não traz palavras inúteis.
6. Como os alimentos prestados são imprescindíveis para própria sobrevivência do
alimentado, que no caso tem seríssimos problemas de saúde, eles devem ao menos
assegurar uma existência digna a quem os recebe. Assim, a função supervisora, por
quaisquer dos detentores do poder familiar, em relação ao modo pelo qual a verba
alimentar fornecida é empregada, além de ser um dever imposto pelo legislador, é um
mecanismo que dá concretude ao princípio do melhor interesse e da proteção integral
da criança ou do adolescente.
7. O poder familiar que detêm os genitores em relação aos filhos menores, a teor do
art. 1.632 do CC/02, não se desfaz com o término do vínculo matrimonial ou da união
estável deles, permanecendo intacto o poder-dever do não-guardião de defender os
interesses superiores do menor incapaz, ressaltando que a base que o legitima é o
princípio já destacado.
8. Em determinadas situações, não se pode negar ao alimentante não-guardião o
direito de averiguar se os valores que paga a título de pensão alimentícia estão sendo
realmente dirigidos ao beneficiário e voltados ao pagamento de suas despesas e ao
atendimento dos seus interesses básicos fundamentais, sob pena de se impedir o
exercício pleno do poder familiar.
9. Não há apenas interesse jurídico, mas também o dever legal, por força do § 5º do
art. 1.538 do CC/02, do genitor alimentante de acompanhar os gastos com o filho
alimentado que não se encontra sob a sua guarda, fiscalizando o atendimento integral
de suas necessidades materiais e imateriais essenciais ao seu desenvolvimento físico
122
e também psicológico, aferindo o real destino do emprego da verba alimentar que paga
mensalmente, pois ela é voltada para esse fim.
9.1. O que justifica o legítimo interesse processual em ação dessa natureza é só e
exclusivamente a finalidade protetiva da criança ou do adolescente beneficiário dos
alimentos, diante da sua possível malversação, e não o eventual acertamento de
contas, perseguições ou picuinhas com a(o) guardiã(ao), devendo ela ser dosada,
ficando vedada a possibilidade de apuração de créditos ou preparação de revisional
pois os alimentos são irrepetíveis.
10. Recurso especial parcialmente provido.

Com base na ementa supracitada, verifica-se que o entendimento majoritário contido


no acórdão se baseia no parágrafo 5º do artigo 1.583 do Código Civil, já nominado, e que institui
essa responsabilidade de supervisão ao genitor que não detém a guarda.

Por isso, os pais que não detém a guarda com exclusividade sempre serão partes
legítimas para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em
assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a
educação de seus filhos.

Sinala-se o voto do Ministro Moura Ribeiro4, que lavrou o acórdão nos termos da sua
divergência apresentada, tendo sido vencidos os Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e
Ricardo Villas Bôas Cueva, superou os entraves do procedimento especial da ação de exigir
contas, previsto nos artigos 550 a 553 do Código de Processo Civil, para admitir a prestação de
contas no caso semelhante ao tratado nos autos, nos seguintes termos:

O instituto jurídico da ação de exigir contas, disciplinada nos arts. 550 a 553 do NCPC
(arts. 914 a 919 do CPC/73), no qual, em regra, quem administra patrimônio alheio
tem o dever de prestar constas de sua gestão e aquele que afirmar ser titular do direito
de exigir contas especificará detalhadamente as razões pelas quais a exige, a meu ver,
não exige, necessariamente, que o autor afirme a existência de algum crédito, mas sim
que ele demonstre que tem direito de ter as contas prestadas, ou seja, de que é titular
de interesse gerido e administrado por outrem.
[...]
Isso posto, me parece que a natureza irrepetível da obrigação alimentar, por si só, não
pode servir de óbice para o ajuizamento da ação de exigir contas, pois nela, já dizia
ERNANE FIDÉLIS SANTOS, o objeto da lide é o acertamento (esclarecimento das
contas), sem importar o resultado (Manual de Direito Processual Civil. Vol. III. 10
ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 894).
[...]
Assim, com suporte em tais lições doutrinárias, reforço o meu entendimento de que,
para a manuseio da ação de exigir contas de verba alimentar, não há necessidade que
se busque ou que se indique a existência de um crédito, mas sim que se demonstre a
titularidade de um interesse legítimo, como na hipótese em que o alimentante não-
guardião visa esclarecimentos sobre o emprego da verba alimentar prestada a menor,
que deve ter seu real melhor interesse garantido. Desse modo, a questão da
irrepetibilidade dos alimentos não pode ser fator determinante para impedir o
ajuizamento da ação .

4
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=110227504&n
um_registro=201801368931&data=20200609&tipo=64&formato=PDF
123
Assim sendo, mostra-se parte legítima o genitor que que não detém a guarda física do
infante, pleitear a prestação de contas para conhecimento e fiscalização do uso dos valores
pagos a título de pensão alimentícia ao filho em comum, no caso da administração destes estar
sendo feita com exclusividade pelo genitor guardião, embasado em seu direito-dever de
supervisionar os interesses do menor.

Convém lembrar que sempre o meio consensual é a melhor via na solução dos conflitos.
Desta forma, um contato anterior com o genitor guardião mostra-se necessário inclusive para
configurar o interesse de agir da demanda, lembrando-se sempre ser esta uma situação
excepcional.

5 CONCLUSÃO

Ante todo o exposto, conclui-se ser perfeitamente viável a ação de exigência de contas
interposta pelo genitor não-guardião contra o genitor guardião com o intuito de exercer seu
direito-dever de fiscalização dos valores pagos a título de pensão alimentícia ao filho menor,
com as ponderações tecidas no exposto acima, uma vez que, não se pretende com a aludida
ação repetir-se valor eventualmente malversado, mas apenas verificar o bom uso do numerário
que, em caso negativo, poderá ensejar nova ação de inversão de guarda, por exemplo.

Conforme a jurisprudência e doutrinas apontadas entende-se que esta possibilidade é


até mesmo uma obrigação legal do alimentante, não cabendo ser considerado falta de
legitimidade ou falta de interesse de agir para o pleito.

Assim sendo, respondendo ao questionamento inicialmente proposto, “Haverá algum


caminho judicial cabível ao genitor que não detenha a guarda física do filho menor, poder
fiscalizar a aplicação dos valores que paga a título de alimentos a este para verificar se estão
sendo realmente aplicados de fato em proveito do seu destinatário final?”, a resposta que se
impõe é positiva.

Lembra-se, por fim, que o bem maior que se visa proteger é o bem-estar do menor e
sua dignidade para que tenha a segurança de uma vida saudável e de um desenvolvimento
adequado de pessoa em formação, não servido tal ação como retaliação ou perseguição do
genitor guardião por questões outras que não o essencial cuidado e bem-estar do filho comum.

124
REFERÊNCIAS

CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos, 1ªed., 4ª tiragem, São Paulo:Revista dos Tribunais,
1987a.

CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos, 1ªed., 4ª tiragem, São Paulo:Revista dos Tribunais,
2003b.

DIAS, Maria Berenice. Alimentos. Direito Ação Eficácia Execução. 4ª ed., Salvador:Ed. Jus
Podivm, 2023a.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias: De Acordo com o Novo CPC, 4° ed.
em e-book baseado na 11° ed. Impressa.São Paulo:Thomson Reuter Revista dos Tribunais,
2016b.

FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol 8, t 3. 3ª ed.


Rio de Janeiro:Forense, 1988.

FARIAS, Cristiano Chaves de. Escritos de Direito e Processo das Famílias – Novidades e
Polêmicas, Salvador:Ed. Jus Podivm, 2013.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. Vol. 2, 12ª ed.
São Paulo:Ed. Saraiva, 2016a.

GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1, 13ª ed.
São Paulo:Ed. Saraiva, 2016b.

MADALENO, Rolf. Direito de Família, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MARINONI, Luis Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MIDITIERO, Daniel. Novo Curso
de Direito Processual Civil: Tutela dos direitos mediante procedimentos diferenciados. Vol. 3,
2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

RIBEIRO, Moura. Voto proferido nos autos do REsp 1.814.639 Relator Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, j.26/05/2020, DJe 09/06/2020, disponível em
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequenci
al=110227504&num_registro=201801368931&data=20200609&tipo=64&formato=PDF,
acesso em 12 ago. 2023.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.814.639 Relator Min. Paulo de Tarso


Sanseverino, j.26/05/2020, DJe 09/06/2020, disponível em
https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequenci
al=110681843&num_registro=201801368931&data=20200609&tipo=5&formato=PDF.

125
CONSTRUINDO PONTES: ADVOCACIA COLABORATIVA E A
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR NO ÂMBITO DO DIREITO DE
FAMÍLIA E SUCESSÕES

Grasiela de Souza Thomsen Giorgi 1


Maria Izabel Schneider Severo2
Marilene Marodin3

RESUMO

O artigo ora apresentado é embasado em de estudos e experiências práticas das coautoras e


explora de maneira abrangente a advocacia colaborativa integrada a uma abordagem
interdisciplinar no campo do Direito de Família e Sucessões. Visa promover uma reflexão e
atualização acerca desta temática inovadora do método colaborativo, pertinente à advocacia.
Esse procedimento representa uma transformação paradigmática em relação ao processo
judicial tradicional, visando atender aos conflitos que envolvam maior complexidade, em
relações continuadas. A introdução contextualiza o tema e apresenta a origem da advocacia
colaborativa nos EUA, e sua disseminação no Brasil e nas Seccionais da OAB. O artigo
diferencia Advocacia Colaborativa de Práticas Colaborativas e destaca os Princípios
norteadores do método. Analisa a atuação dos profissionais e o seu papel em uma equipe
colaborativa, apresentando o Advogado Colaborativo, que assessora o cliente, promovendo o
seu protagonismo e facilitando negociações extrajudiciais, o Profissional de Saúde Mental
Colaborativo e o Profissional de Finanças Colaborativo, especialistas em áreas
complementares. O texto ressalta a importância do 'Trabalho em Equipe' para tratar os conflitos
de maneira mais eficaz, possibilitando a co-criação de acordos conscientes e duradouros. Na
conclusão, enfatizam-se os benefícios do procedimento colaborativo, reduzindo o estresse e os
riscos dos litígios judiciais nas relações familiares.

Palavras-chave: advocacia colaborativa; práticas colaborativas; equipe interdisciplinar


colaborativa; divórcio colaborativo.

1
Advogada capacitada em Práticas Colaborativas, Mediadora Extrajudicial, Mestre em Direito pela UFRGS,
membro da Comissão de Mediação e Práticas Restaurativas da OAB/RS, membro da Comissão de Ética do
Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas - IBPC, OAB/RS 33.370 - E-mail: grasielathomsen@gmail.com.
2
Empresária, Conselheira de Administração, Coach, Mediadora de Conflitos e Profissional de Finanças
Colaborativo, Especialista em Finanças e em Gestão Empresarial pela FGV/RJ, integrante da Equipe de Mediação
da Clínica de Psicoterapia e Instituto de Mediação – CLIP e membro da Comissão de Ética do IBPC. E-mail:
mis.severo@gmail.com.
3
Psicóloga, Terapeuta de Casais e Famílias, Profissional de Saúde Mental Colaborativa, Mediadora Privada,
Conselheira e membro da Comissão de Ética do IBPC; Coordenadora do Curso de Mediação da Clínica de
Psicoterapia e Instituto de Mediação – CLIP, Superintendente Regional do CONIMA. E-mail:
marodin@terra.com.br.
126
1 INTRODUÇÃO

No campo do Direito de Família e Sucessões, as mudanças sociais e culturais têm


impulsionado a busca por abordagens mais humanizadas e empáticas na resolução de conflitos
familiares. Este movimento ocorre em um contexto de mudanças paradigmáticas, inserindo o
advogado em um novo espaço, com olhar construtivo.

A Advocacia Colaborativa propõe reunir recursos e ferramentas para que o advogado


possa auxiliar o seu cliente a assumir um papel ativo na resolução do conflito, utilizando-se de
novas técnicas e habilidades, visando o melhor resultado possível.

Nesse contexto inovador da Advocacia Colaborativa, o divórcio necessita ser revisitado


e exige uma reavaliação do papel de todos os envolvidos onde cada cliente contará com seu
advogado, trabalhando integrado a uma equipe interdisciplinar.

O divórcio colaborativo surge como uma oportunidade de abrir um caminho harmonioso


para dissolver laços matrimoniais e redefinir relações familiares. Para tanto, contamos com o
apoio essencial de advogados, assim como de profissionais da área da saúde mental e
financeiros nessa nova perspectiva, acreditando nos inúmeros benefícios que ela pode
proporcionar a seus clientes e a si mesmos. Ao adotar o divórcio colaborativo, estamos
defendendo uma abordagem humanizada do direito, trazendo um impacto transformador para
todos os envolvidos.

Este artigo tem como objetivo disseminar o conhecimento sobre o procedimento


colaborativo, sob as lentes de diferentes profissionais: advogado, psicólogo e financeiro,
capacitados para atuação de forma interdisciplinar integrando uma equipe colaborativa. A
relevância desse método no atual panorama jurídico apresenta uma oportunidade promissora no
sistema de justiça multiportas, oferecendo mais uma abordagem para a resolução de conflitos
familiares além da mediação, negociação, conciliação e do próprio Judiciário. Essa perspectiva
também enriquece a dinâmica das famílias empresárias, beneficiando a todos os membros do
núcleo familiar envolvido.

Ao final, destacamos a relevância das práticas colaborativas, motivando uma maior


adesão e difusão deste método promissor no âmbito do Direito de Família e Sucessões, quando
identificado pelos advogados, e seus clientes, como a melhor escolha para tratamento do
conflito familiar.

127
O presente artigo aborda diversas áreas-chave relacionadas à advocacia colaborativa.
Inicialmente, no Capítulo II, será explorada a Origem da Advocacia Colaborativa, traçando sua
evolução e contexto histórico. Na seção subsequente, Capítulo III, serão analisadas as Práticas
Colaborativas e Princípios Norteadores, examinando os fundamentos e diretrizes que sustentam
essa abordagem. No Capítulo IV, serão detalhados os papéis desempenhados pelos membros
da equipe colaborativa: no subcapítulo 4.1, Advogado Colaborativo; no subcapítulo 4.2,
Profissional de Saúde Mental Colaborativo; e no subcapítulo 4.3, Profissional de Finanças
Colaborativo. O enfoque então se voltará à Equipe Interdisciplinar nas Práticas Colaborativas,
no Capítulo V, onde serão discutidos os aspectos da colaboração entre esses especialistas. No
final, a Conclusão, consolidará os benefícios e implicações das práticas colaborativas.

2 ORIGEM DA ADVOCACIA COLABORATIVA

A advocacia colaborativa teve sua origem nos Estados Unidos no final da década de
80 e no início da década de 90. Foi concebida por Stuart Webb, um advogado especializado
em direito de família, que reconheceu as limitações do processo litigioso tradicional. Ele
percebeu que as famílias envolvidas em disputas judiciais enfrentavam batalhas intermináveis
que não apenas eram emocionalmente exaustivas, mas também causavam danos significativos
aos filhos.

Diante dessa realidade, Stuart Webb propôs uma abordagem alternativa: a advocacia
colaborativa, que buscava evitar os conflitos destrutivos e os impactos negativos do processo
litigioso convencional. Em 1º/01/1990 ele se declarou um advogado colaborativo e passou a
apresentar o conceito a alguns advogados de divórcio da sua localidade, dentre eles, Ron
Ousky, que em vez de adversários em um tribunal, começaram a advogar em seus escritórios,
fora dos tribunais, ajudando clientes, envolvidos em conflitos, com incentivo para trabalharem
juntos de maneira cooperativa, buscando soluções que atendessem aos interesses de todas as
partes (WEBB & OUSKY, 2017, p. 13).

Na sequência, a psicóloga Peggy Thompson – numa concepção que acabou por se


constituir em uma nova revolução – ampliou a advocacia colaborativa, incluindo na nova
prática profissionais de outras áreas, possibilitando assim um trabalho em equipe com um
enfoque interdisciplinar. A partir daí, advogados passam a trabalhar em sintonia com
profissionais cuja expertise guarde consonância com as peculiaridades e complexidades de

128
cada caso de maneira ampla e eficaz (TESLER & THOMPSON, 2017, p. 14).

As Práticas Colaborativas chegaram ao Brasil em 2011 através de três profissionais:


duas advogadas, Dra. Fernanda Paiva e Dra. Flávia Soeiro, e uma médica, Dra. Tânia Almeida.
O método ganhou destaque após a vitória do Prêmio Innovare (CONSULTOR JURÍDICO,
2013), na categoria Advocacia, em 2013, com o Projeto “Práticas Colaborativas no Direito de
Família” apresentado pela Advogada Olívia Fürst. Esse reconhecimento impulsionou a
disseminação dessas práticas no país (FURST, 2016, p. 75).

Após esse marco, diversos profissionais uniram-se para realizar a primeira capacitação
nacional voltada para profissionais das áreas jurídica, de saúde mental e de finanças e para tal
e contaram com a docência das Dras. Pauline H. Tesler, Peggy Thompson e Lisa Schneider,
com grande experiência nos EUA.

O objetivo era qualificar profissionais brasileiros neste novo método de resolução de


conflitos, que se baseia na colaboração em vez da adversidade. Nesta ocasião, ocorreu a criação
do IBPC - Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas -, com o apoio institucional do IMAB
– Instituto de Mediação e Arbitragem do Brasil -, do MEDIARE – Diálogos e Processos
Decisórios - e da OAB/RJ.

As coautoras Marilene Marodin e Maria Izabel Severo participaram dessa primeira


Capacitação há dez anos e são precursoras na difusão desse método no Rio Grande do Sul,
coordenando grupos de estudos de práticas colaborativas na CLIP – Clínica de Psicoterapia e
Instituto de Mediação (TESLER ET AL, 2014).

As experiências profissionais ao longo dos anos foram fundamentais para o


desenvolvimento de Protocolos Éticos, guias essenciais para os profissionais que desejam se
engajar nesse modelo de solução de conflitos.

Nos Estados Unidos, duas organizações desempenham um papel central nesse cenário.
A INTERNATIONAL ACADEMY OF COLLABORATIVE PROFESSIONALS – IACP (IACP,
2018) estabelece os Padrões de Conduta e Ética no âmbito do direito de família. Já o GLOBAL
COLLABORATIVE LAW COUNCIL – GCLC (GCLC, 2020) concentra-se nas esferas cível e
empresarial, proporcionando diretrizes igualmente importantes. No Brasil, o Instituto Brasileiro
de Práticas Colaborativas foi fundado em 2014 e em 2020 criou seus próprios Padrões Éticos e
os Requisitos Mínimos para os Profissionais Colaborativos (IBPC, 2020). Essas organizações
têm sido pilares na promoção de uma abordagem colaborativa e ética na resolução de conflitos.

129
As Práticas Colaborativas também alcançaram reconhecimento da Advocacia em todo
país, contando atualmente com a Comissão Especial de Práticas Colaborativas em nove
Seccionais da OAB, pelas quais foram elaboradas sete Cartilhas de Práticas Colaborativas4
(OAB/RJ, 2018; OAB/SP, 2020; OAB/MG, 2020; OAB/ES, 2021; OAB/PR, 2021; OAB/PE,
2021 e OAB/PI, 2022), além dos respectivos Grupos de Estudo que estão espalhados por todo
o país, tanto do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas quanto nas Seccionais da OAB e
de grupos independentes como o PRATICARE, da CLIP no Rio Grande do Sul.

3 PRÁTICAS COLABORATIVAS E SEUS PRINCÍPIOS NORTEADORES

As práticas colaborativas têm origem na advocacia colaborativa. Quando o processo


colaborativo envolve cada parte litigante com seu próprio advogado, sem a presença de outros
profissionais colaborativos, é chamado de advocacia colaborativa. Nesse contexto, não é
permitido que um único advogado represente ambas as partes litigantes, a fim de evitar conflitos
de interesse. Cada uma das partes terá seu próprio advogado. E, em casos mais complexos, uma
equipe de profissionais colaborativos de diferentes áreas, além da advocacia, será formada,
levando à mudança da nomenclatura de advocacia colaborativa para prática colaborativa
(GIORGI & MARODIN, 2022, pp. 162-163).

4
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL ES. Cartilha de Práticas Colaborativas. Vitória:
OAB/ES, [2021?]. Disponível em: https://www.oabes.org.br/arquivos/Cartilha_Praticas_Colaborativas_-_OAB-
ES_1.pdf. Acesso em 26 nov. 2022.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL MG. Advocacia em Tempos de Crise. Belo
Horizonte: OAB/MG, 2020. Disponível em: https://www.oabmg.org.br/pdf_jornal/Cartilha-
AdvocaciaColaborativa351.pdf. Acesso em 26 nov, 2022.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL PE. Cartilha de Práticas Colaborativas. Pernambuco:
OAB/PE, [2021?]. Disponível em https://oabpe.org.br/comissoes/comissao-especial-de-praticas-colaborativas-da-
oab-pe/. Acesso em 19 jun, 2023.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL PI. Cartilha de Práticas Colaborativas. Piaui:
OAB/PI, [2022?]. Disponível em: https://www.oabpi.org.br/2019/wp-content/uploads/2022/11/Cartilha-
pra%CC%81ticas-Colaborativas.pdf. Acesso em 19 jun. 2023
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL PR. Cartilha de Práticas Colaborativas. Paraná:
OAB/PR, [2021?]. Disponível em: https://www.oabpr.org.br/comissao-de-advocacia-colaborativa-lanca-cartilha-
digital-sobre-praticas-colaborativas/ Acesso em 19 jun, 2023.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL RJ. Cartilha de Práticas Colaborativas. Rio de
Janeiro: OAB/RJ, [2018?]. Disponível em:
https://www.oabrj.org.br/arquivos/files/Cartilha_de_Praticas_Colaborativas_-_OABRJ.pdf. Acesso em 26 nov.
2022.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL – SECCIONAL SP. Cartilha – Comissão de Práticas Colaborativas.
São Paulo: OAB/SP, 2020. Disponível em: https://www.oabsp.org.br/comissoes2010/gestoes2/2019-
2021/praticas-colaborativas/cartilhas. Acesso em 26 nov. 2022.
130
Trata-se de um método estruturado para resolver conflitos, que pode ser utilizado por
advogados juntamente com seus clientes, de maneira voluntária, sem recorrer a processos
judiciais. A sua definição conforme os Padrões Éticos do IBPC:

Práticas Colaborativas consistem em um processo estruturado e voluntário, com


enfoque não adversarial e interdisciplinar na gestão de conflitos, no qual as partes e
as/os profissionais assinam um Termo de Participação5 se comprometendo a negociar
de boa-fé, levando em consideração os interesses de todas/os, sem recorrer a um
tribunal ou terceiro que imponha uma decisão, e, no caso de não chegarem a um
acordo ou decidirem encerrar a negociação, as/os profissionais devem finalizar sua
prestação de serviços. Todos devem ser transparentes quanto às informações
relevantes, podendo contratar especialistas neutras/os, para obter assistência na
resolução de problemas. O processo permite o uso de outros métodos consensuais,
como a mediação, para facilitar as negociações (IBPC, 2020).

Encontram sua base sólida em um conjunto essencial de princípios norteadores,


elencados em Padrões Éticos das instituições que congregam os profissionais colaborativos,
quais sejam: A colaboração e a boa-fé formam os alicerces, promovendo a cooperação no
lugar da adversariedade. A transparência garante um compartilhamento aberto de informações
e documentos, que são necessárias para a tomada de decisões, enquanto a confidencialidade
mantém um espaço seguro para discussões sensíveis (IBPC, 2020).

A busca pela consensualidade respeita a autonomia da vontade de cada parte,


enriquecida pela interdisciplinaridade, que possibilita a inclusão de conhecimentos
especializados conforme seja necessário. A informação é valorizada, oferecendo às partes
“insights” claros e completos para embasar suas decisões desde a própria eleição deste método
o até o acordo final (IBPC, 2020).

É uma abordagem fundamentada em valores éticos e humanos, orientada a resolução de


conflitos e acordos que verdadeiramente refletem as necessidades e interesses das partes
envolvidas.

4 ATUAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA EQUIPE COLABORATIVA

Neste capítulo iremos analisar a atuação dos profissionais que compõem a equipe
colaborativa, quais sejam: advogados colaborativos, profissionais de saúde mental - PSMC e
o profissional de finanças - PFC.

5
O "Termo de Participação" é um contrato entre profissionais colaborativos e participantes, com três principais
requisitos: a transparência na negociação, a inclusão de uma cláusula de não litigância para evitar ações judiciais
durante as negociações e a retirada da equipe caso um acordo não seja alcançado, vedando a participação em
processos judiciais ou arbitrais futuros envolvendo a mesma causa e os mesmos participantes.
131
4.1 Advogado Colaborativo

O Advogado Colaborativo desempenha um papel essencial no processo de resolução


colaborativa de conflitos, mantendo uma conduta alinhada com os princípios e exigências
inerentes à sua profissão (MAZIERO, 2016, p. 147).

O artigo 133 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) estabelece a indispensabilidade


do advogado na administração da justiça e fornece uma base sólida para a abordagem
colaborativa no processo legal. A advocacia, como um dos pilares fundamentais do sistema de
justiça, possui o potencial de desempenhar um papel vital no desenvolvimento de métodos
colaborativos de resolução de conflitos. A presença do advogado não se limita a uma
representação estritamente adversarial, mas se estende ao assessoramento jurídico para a
promoção de soluções cooperativas e consensuais, que muitas vezes podem ser mais eficazes e
benéficas para todas as partes envolvidas.

Na sequência, o CPC/2015 trouxe mudanças substanciais ao ambiente jurídico,


refletindo uma postura em sintonia com a advocacia colaborativa. O artigo 3º e os seus incisos
fortalecem a amplitude da jurisdição para proteger direitos sob ameaça ou lesão. O § 2º do art.
3º (BRASIL, 2015) ressalta a promoção, pelo Estado, da busca por soluções consensuais de
conflitos, evidenciando o apoio à abordagem colaborativa.

De forma complementar, o § 3º enfatiza a vitalidade da conciliação, da mediação e dos


outros métodos de solução consensual, encorajando a ativa participação de juízes, advogados,
defensores públicos e membros do Ministério Público, mesmo em meio a processos judiciais,
para que possam correr fora do Judiciário.

Essa orientação encontra eco no parágrafo único do artigo 694 do CPC/15 (BRASIL,
2015), que permite a suspensão do processo caso as partes optem por se submeter à mediação
extrajudicial ou a atendimento multidisciplinar. Tanto o §3º do artigo 3º quanto o parágrafo
único do artigo 694 demonstram um enfoque coeso na busca por resoluções amigáveis e
colaborativas em situações de disputa, enfatizando a importância de criar um ambiente propício
para a resolução de conflitos de maneira mais eficaz e harmoniosa.

Esse conjunto de dispositivos vai ao encontro da advocacia colaborativa, como uma


prática importante para alcançar um sistema de justiça mais acessível na busca por resoluções
mais eficazes e harmoniosas de conflitos. (MAZIERO, 2016, p. 28)

132
O Código de Ética da Advocacia, em seu artigo 2º, caput, ressalta a essência do papel
do advogado como defensor do Estado Democrático de Direito e dos valores fundamentais que
sustentam a sociedade. Nesse contexto, a advocacia não é apenas uma profissão, mas uma
missão enraizada na promoção dos direitos humanos, da cidadania, da justiça e da paz social.
O parágrafo único do mesmo artigo estabelece os deveres do advogado, os quais têm profunda
relevância para a abordagem colaborativa no processo legal.

O dever de atuar com destemor, independência, honestidade, decoro, veracidade,


lealdade, dignidade e boa-fé harmoniza-se com a natureza colaborativa, onde o advogado, ao
promover um ambiente de respeito e integridade, pode possibilitar o diálogo construtivo entre
as partes, entre advogados e outros profissionais que se fizerem necessários para tratamento do
conflito em tela (MAZIERO, 2016, pp. 147-156).

Uma característica fundamental da abordagem colaborativa é o reconhecimento de que


todas as partes envolvidas são responsáveis por suas próprias decisões. O Advogado
Colaborativo deve respeitar a autodeterminação dos participantes, proporcionando o suporte
necessário para que tomem decisões informadas desde a eleição do método colaborativo até a
construção de um acordo (IBPC, 2020).

Este suporte envolve a explicação clara das opções disponíveis para realização do
divórcio e da partilha de bens, desde uma simples negociação direta, ou através de conciliação,
mediação, de forma extrajudicial, ou através da judicialização e os possíveis desdobramentos e
as consequências de cada escolha (MAZIERO, 2016, p. 124).

Os advogados colaborativos são treinados para atuar como facilitadores e mediadores,


em vez de litigantes. Eles auxiliam as partes a identificarem suas preocupações e objetivos reais.
O Advogado Colaborativo deve evitar a criação de expectativas rígidas em relação aos
resultados das negociações. Ao contrário, ele incentiva seus clientes a desenvolverem opções e
soluções criativas que atendam, dentro do possível, aos interesses de todas as partes envolvidas.
O enfoque está em alcançar um consenso que seja mutuamente aceitável, viável e capaz de ser
mantido a longo prazo (IBPC, 2020).

O procedimento colaborativo impacta não somente as partes em conflito, mas também


considera as repercussões sobre outras pessoas, como filhos, parentes, amigos, colegas de
trabalho e inclusive sobre os profissionais que trabalham neste contexto (WEBB & OUSKY,
2017).

133
Destacamos o benefício na saúde mental do advogado, quando não necessita mais estar
envolvido com as emoções do casal que busca o divórcio apresentando um “stress” primário,
onde os sintomas são diretamente, decorrentes de suas vivências. No momento que o PSMC
assume auxiliar os clientes na administração destas emoções, ele alivia e protege o advogado
do risco de se colocar no papel de psicólogo, que não é, e de que ocorra um “stress” secundário,
que é o vivenciado pelos profissionais que atendem situações de intensas cargas ansiogênicas,
chegando a ter distúrbios sérios e, inclusive, podendo apresentar sintomatologias decorrentes
desta carga emocional, com quadros de ansiedades, taquicardias, insônias entre outros
(MARODIN & BREITMAN, 2002).

Pesquisas indicam que o profissional advogado pode ter seu desempenho prejudicado
pelos efeitos traumáticos de uma conflitologia que não é sua. O trabalho em equipe
interdisciplinar abre um espaço de prevenção e de promoção de saúde mental para todos,
clientes e profissionais.

O Advogado Colaborativo tem a responsabilidade de orientar juridicamente e preparar


seu cliente para cada etapa da negociação. Isso inclui assegurar que o cliente possua habilidades
eficazes de comunicação, permitindo uma interação construtiva com todas as partes envolvidas.
Além disso, o Advogado Colaborativo deve zelar pela integridade do processo colaborativo,
assegurando que este seja conduzido de maneira transparente e confiável (IBPC, 2020).

Durante o procedimento, o Advogado Colaborativo adota uma abordagem deliberada e


construtiva para lidar com todas as questões em pauta. Isso visa a alcançar acordos que sejam
tanto formais quanto informais, todos estabelecidos dentro do ambiente colaborativo. A atenção
à troca de informações é essencial, permitindo a identificação e a correção de erros ou
inconsistências, junto com todas as partes envolvidas. Também evita condutas ofensivas e
ameaças de litígio, mantendo o foco na busca de soluções consensuais.

Ainda que os advogados atuem de forma colaborativa, no entanto atuam com


parcialidade no assessoramento do seu cliente para construção de acordos com benefícios
mútuos (GAMA, 2015).

Após a conclusão do procedimento colaborativo mediante a realização de um acordo, o


Advogado Colaborativo continua envolvido, monitorando a etapa final de construção do
consenso e a tomada de decisões. Ele também está atento ao acompanhamento das partes
envolvidas, assegurando que o acordo seja respeitado e sustentado ao longo do tempo.

134
Entretanto, não havendo acordo, ele não estará habilitado para atuar judicialmente sobre o
mesmo conflito (WEBB & OUSKY, 2017, p. 22).

Em resumo, o Advogado Colaborativo desempenha um papel multifacetado,


caracterizado pela promoção da autodeterminação, da criatividade e do respeito mútuo. Sua
orientação e assistência ao longo do processo colaborativo são fundamentais para alcançar
soluções duradouras e satisfatórias para todas as partes envolvidas.

4.2 Profissional de Saúde Mental Colaborativo - PSMC

O Profissional da Saúde Mental Colaborativo, conforme o Código de Ética do IBPC


“é todo aquele profissional da saúde mental capacitado em Práticas Colaborativas, que atenda
aos requisitos dos padrões mínimos para prestar serviço de suporte emocional nas negociações
de facilitação conversacional entre pessoas físicas e/ou jurídicas envolvidas em conflitos”
(IBPC, 2020).

Buscando esclarecer o trabalho do Profissional de Saúde Mental Colaborativo,


denominado PSMC, na abordagem das Práticas Colaborativas em situações de divórcio,
definiremos seu papel, sua inserção na equipe colaborativa, assim como os benefícios que
decorrem de sua inclusão no atendimento de casais em divórcio.

Nos EUA e no Canadá encontramos diferenças em relação a expectativa de atuação do


PSMC de acordo com a Dra. Susan Gamache. vista por alguns países “como terapia, como
processo para tratar distúrbios, ou ainda como processo educacional para dar a crianças e
adultos novas habilidades para uma vida efetiva em família pós-separação, sendo voltado ao
indivíduo ou ao relacionamento” (CAMERON, 2019, p. 229).

Essa autora define o trabalho do PSMC como “terapia sistêmica breve, orientada para
objetivos”, sendo focada no trabalho da separação onde o cliente é visto como membro de um
sistema interconectado e o atendimento ocorre por poucas sessões. Refere a importância de o
PSMC ter capacitação em mediação de conflitos e habilidades clínicas. Destaca o papel
educativo e esclarecedor de dúvidas que poderá assumir, auxiliando os clientes na integração
de informações que busquem beneficiar as famílias.

Acredita que o PSMC deva ser um terapeuta, com formação em psicologia clínica,
aconselhamento psicológico, terapia de casal ou familiar, serviço social, enfermagem ou outra
formação com conhecimento em técnicas terapêuticas. Assinala também a importância deste

135
profissional ser profundo conhecedor das dinâmicas que envolvem situações de separação,
divórcio e recasamentos (CAMERON, 2019, p. 229).

Para a inserção do PSMC na equipe colaborativa, será fundamental priorizar a


construção de um clima de confiança onde se valorize o princípio da voluntariedade, tendo os
clientes uma decisão informada e aceitação de trabalhar com o PSMC fazendo parte da equipe.

Além deste trabalho o PSMC acompanha seu cliente nas reuniões conjuntas com os
advogados e com outro PSMC, quando for o caso, mantem contato com o Especialista Infantil
e, conversa com a Equipe Colaborativa para contribuir com aspectos emocionais observados
que possam ajudar a entender melhor os comportamentos de seus clientes.

O PSMC mantém atitude de neutralidade e confidencialidade, não tendo relação de


proximidade com nenhum dos clientes, trabalhando na identificação de questões, sentimentos
e emoções que podem dificultar o desenrolar do procedimento. Para tanto, o foco será em
fortalecer os clientes auxiliando-os a resgatarem seus valores, crenças, necessidades e interesses
para desenvolver competências comunicacionais mais eficazes e visualizarem o futuro com
esperanças.

No primeiro contato com o cliente o PSMC esclarece sua função dentro do processo
colaborativo e o que o cliente pode esperar deste atendimento, assim como a metodologia do
trabalho de negociação. Um contrato de trabalho acordado entre o PSMC e o cliente especifica
os princípios éticos do atendimento, combinações sobre custas do procedimento e as
responsabilidades de ambas as partes.

A dificuldade de comunicação entre o par conjugal em processo de separação é afetada


pelas emoções decorrentes do divórcio. Os ressentimentos, raivas e tristezas somados à
dificuldade de escuta, tendem a interferir no pensamento e na racionalidade para que o diálogo
transcorra de forma clara, respeitosa, construtiva e eficiente, podendo ocasionar a escalada do
conflito. Daí a importância de contar com uma pessoa que os auxiliem para terem um diálogo
franco, a se colocarem no lugar do outro, respeitando as diferenças e desenvolvendo habilidades
eficazes de co-parentalidade (LOBO, 2021, p. 122).

O PSMC tem uma participação de imparcialidade auxiliando para que o diálogo flua
mais franco, mais transparente com vistas a um entendimento, estabelecendo uma relação de
confiança com os clientes. Auxilia na comunicação sobre temas difíceis, na reconstrução da
confiança e da autoestima das partes envolvidas, bem como na identificação e encaminhamento
de interesses e preocupações.
136
Esta abordagem resguarda a família dos conflitos entre os cônjuges e tem uma visão que
busca investir em relacionamentos futuros saudáveis (TESLER & THOMPSON, 2017).

Como todo profissional do divórcio colaborativo, os PSMC não se concentram apenas


no passado ou no presente, mas também em planejar um bom futuro, sendo necessário que
comuniquem informações precisas sobre os objetivos, esperanças, valores, preocupações,
prioridades e medos vividos pelos membros das famílias neste período de sua reestruturação,
buscando desenvolver capacidades de olhar à frente, visando a prevenção de futuros conflitos.

Poderá o profissional de saúde mental, devido às suas habilidades na compreensão da


dinâmica grupal, auxiliar a equipe, quando autorizado pela mesma, ajudando nos impasses que
estão travando o funcionamento do processo colaborativo.

De acordo com Cameron o PSMC “ajuda a resolver as questões pendentes que


interferem ou dificultam o estabelecimento de uma co-parentalidade eficaz, auxilia na
elaboração do plano parental e dá apoio a pais e filhos quando necessário” (CAMERON,
2019, p. 229).

Identificamos nesta fala de Nancy, outro contexto do trabalho do PSMC que é o de


Especialista Infantil, onde terá uma escuta específica, voltada e treinada para as necessidades
emocionais, desafios e receios das crianças e adolescentes. O especialista em crianças e
adolescentes informará qual é o seu papel junto aos pais, às crianças e adolescentes, referindo
os limites apropriados de confidencialidade, levando em conta a idade e o nível de maturidade
do dependente.

Este profissional auxilia os pais na identificação de questões relevantes das vivências


dos filhos em decorrência do divórcio tendo o papel, nas Práticas Colaborativas, de ser o
defensor, no processo de separação, dos interesses dos filhos, assumindo a “voz dos filhos”. Ele
proporciona às crianças e adolescentes a oportunidade de expressarem suas preocupações em
uma escuta voltada para as necessidades emocionais, desafios e receios delas. Também dá
suporte na adaptação delas durante o procedimento e ao longo das transições para o novo
sistema familiar. Os pais quando escutam o Especialista Infantil consideram fazer combinações
mais adequadas nos cuidados com os filhos (SILVA & BOBROW, 2022, p. 239).

Esse especialista infanto juvenil compartilha informações com a equipe interdisciplinar


visando o melhor para os filhos, investindo no desenvolvimento da Declaração de Missão
Conjunta a ser escrita pelos pais que resultará na construção do Plano de Parentalidade.

137
4.3 O Profissional de Finanças Colaborativo

O Profissional de Finanças Colaborativo trabalha na área do divórcio e de outros


contextos de resoluções de conflito, olhando para possíveis acordos, assegurando que os
clientes e seus advogados estejam bem-informados para tomar as melhores decisões que
necessitam para a situação financeira em que se encontram (TESLER & THOMPSON, 2017,
p. 100).

Costumam participar da equipe interdisciplinar a convite dos advogados colaborativos,


quando esses identificam questões financeiras mais complexas, que requerem uma visão técnica
especializada. A cultura dos advogados controlarem unilateralmente a divulgação de
informações financeiras não coaduna com os princípios das Práticas Colaborativas, pois a
equipe interdisciplinar colaborativa trabalha com as informações financeiras compartilhadas,
visando sempre o interesse dos clientes. É parte do acordo colaborativo de prestação de serviços
o compromisso de total divulgação das informações financeiras relevantes por todos os
participantes.

A assessoria prestada por um Profissional de Finanças Colaborativo qualificado vai


muito além de informações básicas. Trata-se de obter informações completas das partes
envolvidas, juntamente com toda documentação pertinente. Em uma atitude de neutralidade
quanto ao conhecimento e processamento dessas informações, esse profissional trabalha para
ajudar a resolver e organizar o que pode ser considerado um dos maiores motivadores de
conflitos: os recursos financeiros (TESLER & THOMPSON, 2006, p. 100 e ss.).

No Divorcio Colaborativo, o Profissional de Finanças prepara as pessoas para


conhecerem e entenderem todos os aspectos e impactos das questões financeiras que os
envolvem. Inclusive poderá prover treinamento para ambos ou para uma das partes, garantindo
que tenham real e igual noção de suas possibilidades econômico-financeiras.

Esse trabalho de coleta e organização das informações financeiras realiza-se antes que
se iniciem as negociações coordenadas e facilitadas pelos advogados de ambas as partes,
poupando o trabalho dos advogados, que sem essa assessoria eficiente, teriam que fazer dois
levantamentos separadamente com cada cliente. A ideia é fornecer aos clientes e seus
advogados informações objetivas e qualitativas, de tal forma organizadas, que facilitem a
compreensão de todos, na tomada de decisão. Não é responsabilidade do Profissional de

138
Finanças fazer avaliações ou dar soluções, papel reservado aos clientes junto com seus
advogados (DUWE & SANTOS, 2022).

É também sua missão ajudar os clientes a planejarem o futuro, quando os ajuda a pensar
o que querem ver acontecer dali para a frente. Assim, prepara fluxos de caixa e projeções de
longo prazo para diferentes cenários, incluindo todo tipo de receitas, despesas e informações
patrimoniais, conferindo a documentação pertinente e identificando gargalos. Sempre com uma
visão construtiva e colaborativa, gerando a confiança que contribuirá para ampliar o olhar na
resolução das questões financeiras.

Também ajudará a pensar nas necessidades do momento presente, enquanto corre o


procedimento de divórcio colaborativo: o que precisam resolver agora: onde vão morar e como
administrar financeiramente os cuidados com os filhos atualmente, por exemplo.

Um aspecto importante para o bom andamento do trabalho das equipes


multidisciplinares de PC é que haja respeito, confiança e sinergia entre os membros da equipe.
Isso se constrói com uma boa comunicação, conhecimento mútuo e uma boa dose de tolerância,
forjadas ao longo das experiências vivenciadas conjuntamente.

Esse Profissional de Finanças tem um papel de neutralidade, assessorando e interagindo


com todos os clientes, sem tomar partido. Para isso, é importante ter um conhecimento
especializado não só na área financeira, como também em técnicas de facilitação, negociação e
mediação de conflitos, para construir confiança, garantir um ambiente de segurança e equilíbrio
de poder, facilitar a criação de boas ideias para as questões financeiras que se apresentem,
buscando o consenso e definindo com os clientes as premissas necessárias para a projeção de
cenários (LISOT, 2021, p. 153).

Na medida que as pessoas escolhem o Divórcio Colaborativo, precisam concordar com


a transparência das informações. Se escondem algo, isso também diz algo para o profissional
financeiro trabalhar e perguntar como pode ajudar. Se as pessoas insistem em esconder, então
não é o caso para essa forma de divórcio.

Também quando os clientes suspeitam que o outro esconde algo, ou revelam algo
privado, não é conversa para o Profissional de Finanças, mas para o Profissional de Saúde
Mental ou para o Advogado resolverem.

No início do trabalho, um contrato de prestação de serviços com cláusula de


confidencialidade será assinado pelo Profissional de Finanças e pelos clientes. A partir de então,

139
passa a reunir-se com ambas as partes e com seus advogados para oportunidade de
esclarecimentos, questionamentos e coleta de informações através dos formulários que os
clientes devem preencher. E assim vai dando continuidade à sua tarefa até o final do
procedimento de divórcio, quando considera encerrado seu trabalho.

Conversar com um Profissional de Finanças experiente, que além de não tomar partido,
estará atento às necessidades e desejos dos clientes, ajuda a reduzir o medo para transpor
algumas barreiras emocionais, pois sabe-se que as pessoas não serão somente racionais na
tomada de decisões. Questões importantes de se identificar no Planejamento Financeiro é o
nível de tolerância a riscos e de flexibilidade dos clientes para as mudanças advindas do
divórcio.

Um bom Profissional de Finanças Colaborativo contribuirá inclusive para o aumento da


autoconfiança e da autoestima dos clientes, na medida em que os ajuda a entender e lidar com
os problemas financeiros e a planejar o futuro com as condições que dispõem. Iniciar com um
Balanço Patrimonial Familiar e então fazer um planejamento financeiro e patrimonial, ajuda as
pessoas a terem liberdade com funcionalidade e propósito, como ter um plano de educação para
os filhos, gerenciar investimentos com diligência, realizar sonhos e mais (LOWENHAUPT ET
AL, 2014).

Quem trabalha como Profissional de Finanças em um procedimento colaborativo, não


continuará assessorando os clientes após a resolução do divórcio. Se assim o quiserem, esses
clientes poderão tratar com outros especialistas para cuidar sistematicamente de seus
investimentos.

5 EQUIPE INTERDISCIPLINAR NAS PRÁTICAS COLABORATIVAS

A Equipe Interdisciplinar é composta por profissionais das áreas jurídica, saúde mental
e finanças, dentre outros, que auxiliam pessoas físicas ou jurídicas em conflito a alcançarem
um acordo criativo, satisfatório e benéfico para todos os envolvidos, através da contribuição e
da interação dos diversos profissionais, com interlocução constante e não de maneira estanque.

Em uma Equipe Colaborativa completa, de acordo com Nancy J. Cameron, haverá a


participação de 2 (dois) advogados colaborativos, 2 (dois) PSMC, um Financeiro que atenderá
o casal e um Especialista Infantil, se houver filhos. Nancy J. Cameron propõe que um PSMC

140
acompanhe uma das pessoas do casal que está se divorciando, tendo presente que outro PSMC
acompanhará o outro ex-cônjuge (CAMERON, 2019, p. 33).

Registramos que esta é a cultura que prevalece nos Estados Unidos, onde as Práticas
Colaborativas existem há mais de trinta anos. No Brasil, além desta sistemática, está ocorrendo
também outra modalidade que acreditamos seja uma adaptação a nossa realidade, onde
observamos a presença de somente um PSMC para trabalhar com o casal que está se
divorciando. Este novo desenho exige que haja um grau de confiança entre todos, em especial
entre o casal e este PSMC para permitir que o trabalho flua em um clima de segurança e
tranquilidade, de modo que as informações significativas sejam compartilhadas.

Trabalhar na interdisciplinaridade, entendida como processo de integração recíproca


entre vários campos de conhecimento, implica na capacidade de romper as estruturas de cada
uma das disciplinas na busca de uma visão unitária e comum do saber construído pelo grupal.

Este movimento exige uma mudança significativa dos paradigmas de cada especialista,
que de uma visão caracterizada pela divisão do trabalho intelectual, fragmentação do
conhecimento e predominância das especializações, passam a transcender sua própria
especialidade e investir na construção conjunta de contribuições, numa pluralidade dos saberes
(FURST, 2016).

É necessário destacar que o trabalho na interdisciplinaridade não significa negar as


especialidades de cada ciência, mas sim se opor à concepção de que o conhecimento se processa
em campos fechados. A interdisciplinaridade respeita o território de cada campo do
conhecimento, distinguindo os pontos que os unem e que os diferenciam, sempre procurando
estabelecer as conexões possíveis.

A dinâmica da Equipe Interdisciplinar nas Práticas Colaborativas

O primeiro passo para a formação de uma equipe interdisciplinar ocorre a partir de uma
avaliação inicial abrangente, realizada por um advogado colaborativo junto com o seu cliente
que identificam a necessidade de envolvimento dos demais profissionais.

Na interação desta equipe interdisciplinar, cada profissional se ocupa em atender os


clientes em sua área específica, sempre com olhar sistêmico, trocando informações, de forma
que o tratamento seja global, integrativo e interativo.

141
Segundo a advogada Nancy Cameron, “é fundamental o acolhimento dos membros da
equipe, em especial dos novos integrantes, pois o processo colaborativo é baseado em uma
equipe e não em uma única pessoa da equipe sendo que o ponto forte do processo colaborativo
é a integração da equipe interdisciplinar” (informação verbal)6

A colaboração está diretamente relacionada ao modo como os membros da equipe se


comunicam entre si, inclusive à linguagem que utilizam. Quando encontramos a promoção da
segurança no relacionamento interpessoal da equipe podemos pensar em um processo
colaborativo bem-sucedido, decorrente da força de uma equipe coesa. Uma equipe com
dificuldades na integração poderá colocar em risco a confiança dos clientes.

Conforme Nancy Cameron:

os maiores desafios para o advogado serão desistir do completo controle da


comunicação e do processo decisório, dividir poder e responsabilidade igualmente
com outros profissionais, aprender a ver a informação como recurso compartilhado,
conduzir as divulgações e negociações de modo transparente, aprender a perguntar
questões com uma curiosidade genuína, aprender a falar menos e ouvir mais e não
confundir o próprio sucesso pessoal com o sucesso dos clientes (informação verbal) 7
.
Já Nancy Ross refere que para o PSM o desafio será aprender a trabalhar em equipe não
focando tanto no “sentir” assim como não delegando tanto aos advogados, pois corre o risco de
falhar numa participação igualitária. E Lisa Schneider refere que os “desafios para os PFC no
trabalho em equipe são não ver o reconhecimento como membro igual na equipe e intimidar-
se pela presença dos advogados” (informação verbal)8.

Equipes colaborativas interdisciplinares são sistemas de aprendizagem emergente, não


hierárquicos, constituído por colegas, com uma estrutura em que cada sucesso e cada erro é
examinado construtivamente visando uma aprendizagem de como funciona, através de
“feedbacks” honestos assim como de grupos de prática onde verdadeiros relacionamentos de
confiança são construídos (informação verbal)9.

6 CONCLUSÃO
Constatamos através deste estudo os inegáveis benefícios do procedimento colaborativo
no âmbito dos divórcios, uma abordagem que estabelece um novo paradigma para a gestão de
conflitos familiares.

6
Informação coletada no II Congresso de Práticas Colaborativas do IBPC, realizado em São Paulo, em 2019, na
palestra de Nancy Cameron.
7
Ibidem, loc. cit.
8
Ibidem, loc. cit.
9
Apresentação on-line de Marilene Marodin, no Grupo de Estudos da OAB/SC, em 2020.
142
Ao longo deste trabalho, pôde-se evidenciar como o enfoque colaborativo, além de
mitigar os estresses e encargos financeiros associados aos litígios judiciais, oferece uma opção
verdadeiramente enriquecedora e sustentável para a resolução de disputas.
A transformação do cenário, que passa da formalidade dos acordos para uma
colaboração profunda e sustentável, é a base desse novo paradigma de resolução.

A equipe interdisciplinar, composta por profissionais de diferentes áreas colaborativas,


almeja fornecer aos clientes não somente suporte jurídico, mas também apoio emocional e
financeiro. Através das Práticas Colaborativas, os clientes são capacitados a enfrentar suas
questões com respeito mútuo, buscando soluções que honrem seus relacionamentos passados e
construam uma cultura de paz social.

O cultivo da colaboração entre os profissionais da equipe interdisciplinar é crucial para


alcançar os resultados desejados. As habilidades de comunicação e negociação adquiridas pelos
clientes não apenas possibilitam uma separação mais amigável e produtiva, mas também os
preparam para uma vida futura mais equilibrada, especialmente no que se refere à co-
parentalidade, mantendo uma interação saudável com seus filhos.

Uma das principais vantagens desse procedimento é o controle mantido pelas partes
envolvidas, em nítido contraste com as incertezas dos métodos adversariais. A personalização
do procedimento, a confidencialidade, a consideração da realidade econômico-financeira, a
restauração do diálogo, aprimoramento da comunicação, redução de custos e de tempo, bem
como a promoção de soluções criativas e duradouras, são pilares que fortalecem a proposta
colaborativa. A coautoria e a corresponsabilidade garantem a sustentabilidade das soluções
pactuadas, as quais, por sua vez, contribuem para a manutenção e melhoria das relações a longo
prazo, reduzindo significativamente a reincidência de conflitos.

Diante disso, os riscos associados ao procedimento colaborativo se mostram baixos


quando contrastados com os benefícios tangíveis que emergem. Portanto, é inegável que a
abordagem colaborativa não somente revoluciona a maneira como as disputas familiares são
resolvidas, mas também molda um novo caminho a ser trilhado, onde a preservação das relações
e a busca pela paz social prevalecem. Nesse sentido, o poder da colaboração se consolida como
uma força motriz para a construção de um futuro mais harmonioso e sustentável para todos os
envolvidos.

143
O método colaborativo está sendo reconhecido pela nossa sociedade haja vista que está
tramitando no Congresso Nacional o Projeto de Lei 890/2022, que propõe a regulamentação
das práticas colaborativas no território nacional.

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146
A RESPONSABILIDADE CIVIL NOS CASOS DE ALIENAÇÃO
PARENTAL: o dano moral sofrido pelo genitor alienado

Jéssica Nobre Weber1

RESUMO

O presente estudo possui como tema principal a responsabilidade civil nos casos de alienação
parental, com foco em destacar o dano moral sofrido pelo genitor alienado. Para tanto, o
presente artigo trará uma análise da Lei nº 12.318 de 2010 e seus aspectos processuais com o
objetivo de demonstrar mecanismos utilizados para impedir a prática de condutas alienadoras,
além de diminuir seus efeitos. Dentre esses mecanismos, o trabalho irá destacar o estudo na
responsabilidade civil, visto que a lei deixou de mencionar quais os tipos de danos sofridos
pelo agente alienado passíveis de reparação civil. Por meio de uma pesquisa exploratória e
descritiva, com a adoção do método dedutivo, utilizam-se pesquisas bibliográficas e
documentais, de modo a abordar sobre o instituto em um âmbito doutrinário e legal. Isto posto,
entende-se que, além dos danos sofridos pelas crianças e adolescentes, os genitores alienados
também sofrem danos morais, os quais podem e devem ser reparados pelo agente alienador.

Palavras-chave: alienação parental; direito de família; responsabilidade civil; síndrome da


alienação parental.

1 INTRODUÇÃO

Uma das mais importantes evoluções do Direito de Família foi a criação do instituto
jurídico chamado Alienação Parental. A temática ficou mais conhecida no Brasil em 2010 por
meio da Lei 12.318/2010. Não obstante, a recente previsão legislativa há muito tempo ocorre
alienação parental nas relações familiares. Foi em meados da década de 1980 que foram
relatados os primeiros estudos desse instituto jurídico, denominada pelo psiquiatra norte-
americano Richard Gardner como Síndrome da Alienação Parental. A intenção do psiquiatra
era denominar a alienação parental como uma síndrome com o objetivo de incluí-la no rol do
Manual de Diagnóstico e Estatísticas dos Transtornos Mentais, publicado pela Associação
Psiquiatra Americana, como forma de facilitar seu tratamento.

1
Graduada em Direito pela Universidade Feevale em 2019, advogada, especialista em Direito de Família e
Sucessões, OAB/RS 123.486, e-mail: jessica.nobre.weber@hotmail.com.
147
Segundo a Lei 12.318/2010, considera-se ato de alienação parental a interferência na
formação psicológica da criança ou do adolescente, promovida ou induzida, por um dos
genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou o adolescente sob sua autoridade, guarda
ou vigilância para que repudie o outro núcleo familiar com a intenção de prejudicar o vínculo
com esse.

Esse fenômeno, geralmente, ocorre quando começam as disputas judiciais entre os


genitores pela guarda dos filhos, principalmente nos processos de separação em geral.
Normalmente, um dos genitores movido por sentimentos de traição, rejeição, abandono,
angústia e até mesmo raiva, busca vingança em relação ao outro genitor, utilizando o filho como
meio para conseguir alcançar o seu objetivo.

A esse propósito, o que o alienador não percebe são as consequências dos seus atos ao
menor que está em pleno desenvolvimento psicológico. Além de ser uma forma de abuso de
poder parental, viola o princípio da proteção integral da criança e do adolescente e o direito
fundamental à dignidade previsto na Constituição Federal. Em vista disso, importante
mencionar que o genitor alienado também sofre com a quebra do vínculo com seu filho. Para
tanto, por acarretar gravíssimas consequências ao menor e ao genitor alienado, necessita
imediata e efetiva intervenção e por isso a importância do papel do Poder Judiciário quando
detectados indícios de atos de alienação parental.

Nessa esteira, o presente trabalho trata da responsabilidade civil nos casos de alienação
parental, tendo, como foco principal, o estudo a respeito do dano moral sofrido pelo genitor
alienado visto que esse também é afetado psicologicamente. Dessa forma, o artigo em tela
discorre sobre o instituto da responsabilidade civil e aplicabilidade desse nas relações
familiares, mais especificadamente a configuração do dano moral nos casos de alienação
parental.

Outrossim, é de grande relevância o tema pois, responsabilizar civilmente aquele que


comete atos de alienação parental, também evita que tais práticas abusivas continuem sendo
realizadas, prevenindo a ocorrência da síndrome da alienação parental, que é o grau mais severo
com danos imensuráveis, muitas vezes, de difícil reparação. Nesse sentido, a indenização por
dano moral não tem o propósito somente de compensar os danos sofridos pelo alienado, mas
também objetivo pedagógico, visando evitar a reiteração de tais práticas pelo alienador.

O problema principal do presente trabalho é verificar a possibilidade de aplicação do


instituto da responsabilidade civil nas relações familiares, bem como a configuração do dano
148
moral nos casos de alienação parental, uma vez que por muito tempo indenizações no âmbito
familiar foram evitadas, principalmente no que diz respeito ao dano moral.

Para responder o problema principal do presente trabalho, foi elencado como objetivo
geral analisar como a doutrina interpreta a Lei 12.318/2010 e se essa interpretação corresponde
a correta proteção de direitos e princípios previstos na Constituição Federal de 1988.

Para tanto, no tocante à metodologia utilizada, no que diz respeito aos níveis de pesquisa
do presente estudo, verifica-se que se trata de uma pesquisa exploratória e descritiva, onde se
analisou princípios constitucionais, leis e doutrinas, visando desse modo, compreender o
instituto da responsabilidade civil e sua aplicação nas relações familiares, por meio de uma
concepção geral do tema, tanto do viés principiológico de modo inicial quanto mais específico,
em relação a configuração do dano moral nos casos de alienação parental. Além do mais, por
meio dessas pesquisas será descrito como essa matéria é determinada no âmbito legal e
doutrinário.

Ademais, utilizou-se o método dedutivo, baseando-se na construção bibliográfica e


documental, de modo a demonstrar a concepção principiológica do instituto jurídico da
alienação parental e da responsabilidade civil, os aspectos gerais e procedimentais,
especialmente no que toca a aplicação do dano moral nesses casos.

Em vista disso, a técnica de pesquisa utilizada foi a bibliográfica e documental.


Primeiramente, com a análise do tema em questão buscando teorias bibliográficas de diferentes
autores para explicar o problema da pesquisa realizando uma análise nos conceitos e
interpretação desses para uma melhor compreensão do caso. Assim como, buscou a análise de
como é aplicado a legislação ao tema em questão.

O trabalho foi dividido em quatro capítulos, sendo que no primeiro se fez necessário
analisar a Lei 12.318/2010 e sua aplicabilidade como meio de cessar e prevenir os atos de
alienação parental. No segundo capítulo buscou-se o estudo do instituto jurídico da
responsabilidade civil e a caracterização do dano moral para uma maior compreensão de quando
efetivamente ocorre o dano e a necessidade de repará-lo. Por sua vez, no terceiro capítulo
buscou-se analisar a aplicação da responsabilidade civil nas relações familiares, uma vez que
por muito tempo não era utilizada no âmbito do Direito de Família. Por fim, o quarto capítulo
buscou demonstrar a aplicação do dano moral nos casos de alienação parental sob a perspectiva
de que, com a comprovação da ocorrência de tais atos, o alienador deverá indenizar o alienado.

149
2 LINHAS GERAIS SOBRE ALIENAÇÃO PARENTAL NA LEI N. 12.318/2010

A primeira definição da Síndrome da Alienação Parental – SAP foi apresentada em


1985, nos Estados Unidos da América, pelo psiquiatra Richard Gardner. Como forma de
facilitar o seu tratamento, Gardner denominou como síndrome para incluir no Manual de
Diagnóstico e Estatísticas dos Transtornos Mentais – DSM IV, publicado pela Associação
Psiquiátrica Americana. (MADALENO, A.; MADELENO, R., 2022, p. 29)

Os estudos de Richard Gardner trouxeram ao sistema jurídico brasileiro a Lei da


Alienação Parental. Através dessa lei, foram implantados mecanismos para detectar, punir e
prevenir atos prejudiciais aos melhores interesses da criança e do adolescente, especialmente
quando esses atos são realizados pelo próprio genitor e seus familiares, sendo que esses
deveriam ser os primeiros a defenderem o princípio constitucional dos vulneráveis, e, muito
mais grave, quando a conduta de alienação parental é feita contra o outro núcleo familiar,
deixando a criança ou o adolescente sem a devida proteção. (MADALENO, A.; MADALENO,
R., 2022, p. 90)

A Lei 12.318/2010, que dispõe sobre alienação parental, trouxe no seu art. 2º, a definição
desse novo instituto jurídico, descrevendo ato de alienação parental a interferência no
desenvolvimento psicológico da criança ou adolescente, praticada por um dos genitores, avós
ou por quem mantém a criança ou o adolescente sob guarda ou vigilância, desqualificando o
outro genitor para que o repudie ou cause prejuízo ao vínculo familiar com esse. (BRASIL,
2010)

Da mesma forma, considera-se ato de alienação parental, qualquer conduta que dificulte
a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor. Nesse sentido, a lei brasileira
pune a conduta do alienador, independentemente da participação ou não da criança e da efetiva
ruptura do vínculo com o genitor alienado, sendo que, nesse último caso, o dano pode ser
irreversível, alcançando o grau máximo da alienação parental. (MADALENO in TICIANELLI;
BARBIERO, 2022, p. 143)

Segundo a Lei 12.318/2010, a alienação parental é compreendida tanto pelos atos


impostos por um genitor com o objetivo de afastar os filhos do outro genitor, quanto pela
instauração do que se entende por Síndrome da Alienação Parental, quando a criança já pensa
e age de forma independente. Nesse caso, ambos os atos são passíveis de sanções.
(MADALENO, A.; MADALENO, R., 2022, p. 48)

150
O objetivo da Lei 12.318/2010 é de atuação e prevenção para evitar que os atos de
alienação parental resultem em uma síndrome e formem raízes no núcleo familiar a ponto de
não conseguirem mais reconstruir os vínculos quebrados. (MADALENO, A.; MADALENO
R., 2022, p. 32)

Desde que a lei que versa sobre alienação parental no Brasil entrou em vigor, aumentou
o número de processos judiciais envolvendo essa maldade humana, já que a norma facilitou a
identificação desse fenômeno, embora muito tempo existente, carecia de proteção estatal, visto
que não era reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro. BARBOSA; PEREIRA in
TICIANELLI; BARBIERO, 2022, p. 15)

Na alienação parental, o filho é utilizado como meio para alcançar um objetivo de


vingança do genitor alienador contra o outro genitor. Porém, ainda que o alvo da vingança seja
o outro genitor, a maior vítima desses atos é a criança ou o adolescente, influindo diretamente
no seu bem-estar, o que viola os princípios constitucionais da dignidade humana, do melhor
interesse da criança e do adolescente e da paternidade responsável. (PEREIRA, 2022a, p. 440
e 441)

Normalmente, esse fenômeno começa nos processos de separação em geral, em disputas


pela guarda do filho, uma vez que estas demandas judiciais tendem a despertar sentimentos
ruins de abandono, rejeição, angústia e traição combinado com o medo de não possuir mais
valor para o outro. Muitas vezes, por não aceitarem o fim do relacionamento somado as
instabilidades emocionais, os pais utilizam os filhos como meio de vingança direcionado ao
outro. (MADALENO A.; MADALENO R., 2022, p. 32)

O ato de alienação parental configura abuso psicológico e tem natureza jurídica de


coação moral contra a criança e o adolescente que é visto pelo genitor ou familiar alienador
como um objeto manipulável sem vontade própria, desconsiderando aquele como pessoa em
desenvolvimento. (BRAZIL, 2022, p. 93)

A Lei da Alienação Parental no parágrafo único do art. 2º, exemplificou os atos de


alienação parental, além de outros que podem ser declarados pelo juiz, quando constatados por
perícias ou por outros meios de provas. Tais como, desqualificar a conduta do genitor no
exercício da paternidade ou maternidade, dificultar o exercício da autoridade parental, dificultar
o contato da criança ou do adolescente com o genitor, dificultar a convivência familiar, omitir
informações importantes sobre o filho em relação a saúde, mudanças de endereços ou
informações escolares, apresentar falsa denúncia contra genitor ou alguém de seu núcleo
151
familiar, e por fim, realizar a mudança de endereço para local distante, sem justo motivo, com
o objetivo de dificultar a convivência da criança ou do adolescente com o outro núcleo familiar.
(BRASIL, 2010)

Nesse sentido, qualquer interferência entre uma criança ou adolescente e um de seus


genitores pode configurar ato de alienação parental podendo gerar, por exemplo, advertência
ou encaminhamento às oficinas de parentalidade, visto que muitas vezes, o genitor não tem
conhecimento de que suas atitudes em relação ao outro genitor, podem acarretar consequências
aos filhos. (MADALENO A.; MADALENO R., 2022, p. 51)

Segundo o art. 3º da Lei 12.318/2010, a prática de ato de alienação parental por um


núcleo familiar contra o outro, fere direito fundamental da criança ou do adolescente de
convivência familiar saudável, provoca consequências na relação de afeto com o genitor e seu
núcleo familiar, além do mais, o descumprimento dos deveres inerentes à autoridade parental
ou decorrente de guarda ou tutela, constitui abuso moral contra a criança e ou o adolescente.
(BRASIL, 2010)

Outrossim, o art. 4º da Lei 12.318/2010, prevê que, detectado indício de ato de alienação
parental, a requerimento ou de ofício, em ação autônoma ou incidental, com prioridade de
tramitação, após ouvido o Ministério Público, o juiz determinará, com urgência, as medidas
necessárias para a preservação da integridade psicológica da criança ou do adolescente,
inclusive assegurar a convivência e a efetiva reaproximação entre o genitor alienado e seu filho.
(BRASIL, 2010)

Assim, a denúncia não precisa necessariamente ser apresentada na petição inicial ou na


contestação, basta apresentar uma simples petição intermediária em qualquer momento
processual que deverá ser analisada pelo juiz. (ARAÚJO JÚNIOR, 2022, p. 60)

Na prática, a maior dificuldade encontrada pelo genitor, ou genitora, é justamente fazer


prova dos atos praticados pelo alienador, mesmo que com a cooperação do juiz responsável
pelo caso. Em algumas situações, os genitores alienados possuem vídeos e testemunhas, o que
se mostra fundamental para apuração dos atos de alienação parental e o bom resultado do
processo, no entanto, há outros meios de provas que podem ser determinadas pelo juiz, como a
realização de perícia psicológica. Dessa forma, importante o interessado se munir de elementos
que comprovem suas alegações, realizando, por exemplo, boletim de ocorrência quando for
proibido por algum motivo, de ver seu filho no dia determinado, dificultando a sua convivência.
(ARAÚJO JÚNIOR, 2022, p. 60)
152
Ademais, segundo o art. 5º, da Lei 12.318, de 2010, quando verificado indício de ato de
alienação parental, poderá o juiz solicitar a perícia psicológica ou biopsicossocial. Nesse
sentido, o laudo pericial será realizado por profissional ou equipe multidisciplinar habilitados,
onde é exigido aptidão que deve ser comprovada através de histórico profissional ou acadêmico.
Esse profissional terá prazo de 90 (noventa) dias, para apresentação do laudo, podendo ser
prorrogado por autorização judicial com justificativa plausível. Esse laudo será baseado em
ampla avaliação psicológica ou biopsicossocial, inclusive com entrevista pessoal com as partes,
exame de documentos que foram apresentados no processo, histórico do relacionamento do
casal e da separação, verificando todos os incidentes segundo sua cronologia, com a avaliação
da personalidade dos envolvidos e o exame para verificar como a criança se manifesta frente as
acusações contra genitor. (BRASIL, 2010)

A equipe multidisciplinar tem um papel muito importante a ser feito nos casos de
alienação parental, já que muitas vezes, as crianças rejeitam o genitor alienado, que passa a ter
dificuldade na relação e na convivência com seu filho. Hoje, o psicólogo encontra um grande
desafio ao analisar cada caso e sugerir ao juiz a reaproximação entre o genitor alienado e a
criança ou o adolescente. (BRAZIL, 2022, p. 94)

Nessa senda, o familiar que apresenta empecilho tanto a convivência familiar presencial,
como a virtual que fora determinada, pratica ato de alienação parental previsto no inciso IV do
parágrafo único do artigo 2º da Lei 12.318/2010. (FARIAS; ROSA, 2022a, p. 190)

Por conseguinte, sendo detectados os atos de alienação parental ou qualquer conduta


que dificulte a convivência entre a criança ou o adolescente e seu genitor, cumpre ao juiz,
independentemente de responsabilidade civil ou criminal, utilizar mecanismos legais para evitar
ou atenuar os efeitos da alienação parental. Nesse caso, poderá o juiz advertir o alienador,
aumentar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado, aplicar multa ao
alienador, determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial, determinar a
alteração da guarda para guarda compartilhada ou até mesmo, sua inversão, e ainda, determinar
de forma cautelar, o domicílio da criança ou adolescente. (BRASIL, 2010)

Um meio de prevenção de repetidos atos de alienação parental é justamente a aplicação


coativa da guarda compartilhada, evitando a utilização dos filhos como meio de vingança. O
compartilhamento da guarda não serve somente como prevenção, mas também como uma
barreira com objetivo de evitar a prática alienadora já instaurada. Assim, considerando o
importante papel do Poder Judiciário na solução dos litígios existentes na sociedade e a

153
importância dessa intervenção na esfera privada, a proteção dos filhos deve ser sempre
priorizada pelas autoridades judiciárias. Dessa forma, a guarda compartilhada estabelecida de
maneira coativa pelo juízo, afasta a falsa percepção de que um dos genitores ganhou a guarda
e o outro perdeu. E por fim, nesse caso, quem ganhará será o filho que poderá contar com ambos
os pais nas decisões relevantes referentes ao seu bem-estar. (FARIAS; ROSA, 2022a, p. 195)

Nessa esteira, a utilização da guarda compartilhada afasta as limitações da guarda


unilateral, além de outros inúmeros benefícios, é um meio efetivo de prevenir a síndrome da
alienação parental. Isso porque, com a prática dos atos de alienação parental, o alienador busca
incessantemente ser o único cuidador da criança, fazendo com que a convivência com o outro
genitor seja repudiada pelo filho sem justo motivo. (ROSA, 2022b, p. 129)

Outro aspecto processual importante, é que a mudança do domicílio da criança ou do


adolescente não altera a competência relacionada as ações que discutem o direito de
convivência familiar, exceto quando decorrente de consenso entre os genitores ou de decisão
judicial. (BRASIL, 2010)

Há algumas correntes que criticam a criação de lei específica que versa sobre alienação
parental, por acreditarem que tal norma seria um incentivo a abusadores, o que prejudica tanto
as mulheres, como seus filhos vítimas de abuso sexual. Isto é, acreditam que a simples alegação
de alienação parental, poderia encobrir casos reais de abuso sexual. Porém, identificar e
desmascarar a Síndrome da Alienação Parental não tem o objetivo de acobertar casos de abuso
sexual, casos esses que ocorrem em grande número e devem ser priorizados. Ademais, quanto
mais profissionais tiverem acesso e mais pesquisas forem realizadas sobre a SAP, mais fácil
será distinguí-la dos casos de abuso sexual. (MADALENO, A.; MADALENO, R., 2022, p. 55)

No Brasil, há movimentos que buscam revogar a Lei de Alienação Parental, devido a


alegações de genitoras que estariam perdendo a guarda de seus filhos para os pais que
maltratam, como se o processo não tivesse capacidade de averiguar a verdade, especialmente
naqueles casos de falsas memórias, que estão afastando genitores de seus filhos e até mesmo
aprisionando pais, enquanto tramitam as ações que depois demonstram as falsas denúncias.
Esses movimentos de revogação da Lei de Alienação Parental demonstram completo
retrocesso, uma vez que não protegem a criança e o adolescente. (MADALENO, A.;
MADALENO R., 2022, p. 93)

Nesses 12 anos de Lei de Alienação Parental, muitos estudos foram realizados e o


resultado foi de grande avanço para o combate dessa maldade humana e a efetiva proteção dos
154
melhores interesses da criança e do adolescente. A verdade, é que o Judiciário brasileiro ainda
carece de uma aplicação mais rigorosa da lei, o que em muitos casos, deixam genitores
alienados frustrados quando denunciam a prática da alienação parental. Porém, para grande
maioria dos doutrinadores, revogar a lei provocaria grande retrocesso social.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL E CARACTERIZAÇÃO DO DANO MORAL

A violação de um dever jurídico caracteriza o ilícito, que, na maioria das vezes, gera
dano para outrem, acarretando assim, novo dever jurídico, o de reparar o dano. Nesse sentido,
há um dever jurídico originário, também chamado de primário, que quando violado, gera um
dever jurídico sucessivo, também chamado de secundário, que é o de indenizar alguém pelo
dano causado. (CAVALIERI FILHO, 2022, p. 11)

É a partir disso, que chegamos em uma noção de responsabilidade civil. Quanto a


etimologia, responsabilidade representa uma ideia de obrigação, encargo, contraprestação. No
sentido jurídico, essa ideia permanece, as condutas praticadas são contrárias ao direito e causam
dano a outrem, isto é, a reponsabilidade exprime a noção de desvio de conduta. Assim, aquele
que causa prejuízo decorrente da violação de um dever jurídico deve reparar o dano.
(CAVALIERI FILHO, 2022, p. 11-12)

Outrossim, a função da responsabilidade civil é restaurar o equilíbrio moral e


patrimonial causado pelo autor do dano, isto é, restabelecer a harmonia e o equilíbrio violados
pelo dano. Por isso a ideia de restauração de equilíbrio, de contraprestação, de reparação de
dano. Dessa forma, o responsável que violou determinada norma, sofre consequências
decorrentes de sua conduta danosa, podendo ser obrigado a restaurar o statu quo ante.
(GONÇALVES, 2022, p. 41)

Sobre tal aspecto, não há dúvidas de que na ocorrência de dano injusto, material ou
moral, o ordenamento jurídico imputa ao causador do dano a obrigação de reparar. A certeza é
que a vítima deve ser ressarcida, porém a mesma certeza não existe em relação ao motivo pelo
qual o causador do dano é responsável. Uma das maiores controvérsias na esfera da
responsabilidade civil é na identificação de seu fundamento, qual seja, de um lado a doutrina
subjetiva ou teoria da culpa e, de outro, a doutrina objetiva ou teoria do risco. (TEPEDINO;
TERRA; GUEDES, 2022, p. 4)

Nesse contexto, na responsabilidade subjetiva, para que o causador do dano responda


155
civilmente, é necessária a comprovação da sua culpa genérica, que abrange o dolo, isto é, a
intenção de prejudicar e a culpa em sentido restrito, no caso de imprudência, negligência ou
imperícia. (TARTUCE, 2022, p. 531)

Ademais, a responsabilidade objetiva foi admitida expressamente no Código Civil, no


art. 927, o qual prevê que “aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem é
obrigado a repará-lo”. Além disso, no parágrafo único do mencionado artigo, está expresso que
independente de culpa, nos casos previstos em lei ou quando a atividade do autor do dano, por
si só, ocasiona riscos para os direitos de outrem, haverá a obrigação de reparar. Isto é, a
responsabilidade objetiva independe de culpa e é fundada na teoria do risco. (TARTUCE, 2022,
p. 532)

Por conseguinte, apontam-se três elementos para a responsabilidade civil: culpa, dano e
nexo de causalidade. A culpa tem a ideia de desvio de conduta, ou seja, uma conduta inadequada
adotada pelo ofensor diferente do comportamento esperado naquela situação. O dano, por sua
vez, corresponde a uma lesão a qualquer interesse jurídico merecedor de tutela. Já o nexo de
causalidade é o elemento de ligação entre os dois elementos anteriores, determinando quem
deve responder pelo resultado danoso. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES, 2022, p. 8-9)

Sendo assim, quem infringe dever jurídico lato sensu, causando dano a outrem fica
obrigado a reparar. Esse dever jurídico, suscetível de violação, pode ter uma relação jurídica
obrigacional preexistente, ou seja, prevista em contrato, ou imposta por preceito geral de
Direito, ou ainda, pela própria lei. (CAVALIERI FILHO, 2022, p. 25)

Em vista disso, a doutrina divide a responsabilidade civil em contratual e


extracontratual, ou seja, de acordo com a qualidade da violação. Com o vínculo obrigacional
preexistente, o dever de indenizar surge do inadimplemento, nesse caso temos a
responsabilidade contratual, também chamada de ilícito contratual ou relativo, porém se esse
dever surge em razão de uma lesão a direito subjetivo sem relação jurídica entre ofensor e vítima
preexistente que o possibilite, há responsabilidade extracontratual, também chamada de ilícito
aquiliano ou absoluto. (CAVALIERI FILHO, 2022, p. 25-26)

Em suma, quando a responsabilidade não decorre de um contrato, ela é extracontratual.


Nesse contexto, aplica-se o disposto no art. 186 do Código Civil, qual seja: “aquele que, por
ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002).

Outrossim, sem a presença do dano não há responsabilidade civil, ou seja, é necessário


156
comprovar dano patrimonial ou extrapatrimonial sofrido por alguém para configurar o dever de
indenizar. Assim, cabe ao autor da ação provar que sofreu dano, exceto alguns casos em que se
admitirá a inversão do ônus da prova do dano ou prejuízo, como, por exemplo, nas hipóteses
envolvendo as relações de consumo. (TARTUCE, 2022, p. 491)

A par disso, necessária a definição de dano, consoante muito bem esclarece o


doutrinador Sergio Cavalieri Filho (2022, p. 92), em sua obra Programa de Responsabilidade
Civil:

Correto, portanto, conceituar o dano como sendo lesão a um bem ou interesse


juridicamente tutelado, qualquer que seja a sua natureza, quer se trate de um bem
patrimonial, quer se trate de um bem integrante da personalidade da vítima, como a
sua honra, a imagem, a liberdade etc. Em suma, dano é lesão de um bem jurídico,
tanto patrimonial como moral, vindo daí a conhecida divisão do dano em patrimonial
e moral.
Há danos patrimoniais ou materiais quando ocorrem prejuízos ou perdas que atingem o
patrimônio corpóreo de alguém. Os danos materiais são subclassificados em danos emergentes
e lucros cessantes. Os danos emergentes, também chamados de danos positivos configuram
aquilo que efetivamente se perdeu, já os lucros cessantes ou danos negativos representam o que
razoavelmente se deixou de lucrar. (TARTUCE, 2022, p. 492)

Sobre o dano moral, muitos foram os conceitos levantados, porém, a partir da


Constituição Federal de 1988, todos esses conceitos tiveram que ser revistos. Isso porque a
Carta Magna colocou o homem, a pessoa humana no centro do ordenamento jurídico brasileiro.
A par disso, são os direitos da personalidade que ocupam posição supraestatal, sendo eles
reconhecidos pela norma jurídica e não outorgados. (CAVALIERI FILHO, 2022, p. 103)

Nesse passo, a Constituição Federal consagrou logo no seu primeiro artigo, inciso III, a
dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Ao
assim classificar, a Carta Magna deu ao dano moral maior ênfase, visto que a dignidade humana
é a base de todos os valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos.
(CAVALIERI FILHO, 2022, p. 103)

Em vista disso, existem duas grandes correntes sobre a definição de dano moral, a
subjetiva e a objetiva. A primeira corrente, levando em consideração o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça, o dano moral configura-se nas situações que ultrapassam os
limites do mero desconforto ou aborrecimento, isto é, tudo aquilo que é corriqueiro, próprio das
relações humanas, como irritações, contrariedades ou mero dissabor, não configuram dano
moral. Porém tudo que ultrapassa esse limite, é caracterizado como dano moral. Nesse caso, se

157
leva em consideração a dor psicológica sofrida pelo indivíduo. A crítica dessa corrente está
justamente na percepção subjetiva do magistrado. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES, 2022, p.
42)

Já para a corrente objetiva, o dano moral deve ser configurado levando em consideração
a lesão a direito de personalidade, independentemente do impacto psicológico sofrido pela
vítima. Nesse sentido, constitui dano moral a violação dos direitos de personalidade, da
dignidade humana e não o grau de sofrimento da vítima. (TEPEDINO; TERRA; GUEDES,
2022, p. 42)

Segundo Sergio Cavalieri Filho, à luz da Constituição Federal de 1988, o dano moral
pode ser conceituado em vista de dois aspectos: em sentido estrito e em sentido amplo. Em
sentido estrito, o dano moral é a violação do direito à dignidade, considerando a inviolabilidade
da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem. No sentido amplo, dano moral está ligado
a violação de algum direito ou atributo da personalidade, a essência do ser humano.
(CAVALIERI FILHO, 2022, p. 103-105)

Atualmente, doutrina e jurisprudência dominante têm o entendimento de que o dano


moral é aquele que, independentemente de prejuízo material, fere direitos personalíssimos. Isto
é, os atributos que individualizam cada pessoa, como a honra, a atividade profissional, a
reputação, as manifestações culturais e intelectuais, entre tantos outros. Assim, o dano é
considerado moral, mesmo não repercutindo na esfera patrimonial, mais especificamente,
quando ocasionam angústia, dor, sofrimento, tristeza, humilhação, tão claros que se distinguem
dos meros aborrecimentos e dissabores do dia a dia, situações comuns a que todos se sujeitam,
os acontecimentos normais da vida cotidiana. (ROSA, 2022a, p. 642)

4 APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES


FAMILIARES

A ideia de responsabilidade civil no Direito de Família ainda é muito nova, e mesmo


com muitas críticas, vem ganhando espaço e sendo utilizada em diversas situações.

Muitos foram os argumentos contrários a aplicação da responsabilidade civil nas relações


familiares, especialmente em relação aos danos extrapatrimoniais. O primeiro, é de que já
existem remédios próprios no Direito de Família para resolução de descumprimentos de
deveres de natureza familiar. O segundo, por sua vez, em relação aos alimentos, é de que
seria incabível cumular os deveres de pagamento de alimentos com o dever reparatório, sob

158
pena de incidir bis in idem. Já, o terceiro argumento levantado, é sobre o risco e a imoralidade
de monetizar estas relações. (PENNA in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p.
405-406)

Nessa esteira, com a incidência dos princípios constitucionais, o entendimento atual é


pela possibilidade de reparação civil de danos decorrentes de atos ilícitos praticados entre as
pessoas de uma entidade familiar, sejam eles advindos da conjugalidade, do companheirismo,
da parentalidade, da tutela, da curatela ou da tomada de decisão apoiada, ou ainda, por qualquer
outro laço. (FARIAS; ROSA, 2022b, p. 201)

Dessa forma, com as inúmeras possibilidades de práticas ilícitas na esfera familiar, são
utilizadas ferramentas da Responsabilidade Civil nas relações familiares que permitem tanto o
ressarcimento, isto é, as pretensões reparatórias de danos, como a prevenção de danos, que nada
mais são do que tutelas específicas para as obrigações de fazer e de não fazer. Nesse sentido,
esses instrumentos não são utilizados somente para indenizações por prejuízos já sofridos, mas
também para prevenção e extinção de danos através da concessão de tutelas específicas,
conforme previsão dos arts. 497 e 498 do Código de Processo Civil. (FARIAS; ROSA, 2022,
p. 202)

Por conseguinte, resta esclarecer se, nas relações familiares, a aplicação da


responsabilidade civil se daria de forma subjetiva ou objetiva. A conclusão foi fundamentada
nas hipóteses de exclusão, isto é, não havendo previsão legal para a aplicação de forma objetiva
no Direito de Família e não sendo atividade de risco, em regra, a responsabilidade civil nas
relações jurídicas familiares é subjetiva. Nesse caso, será necessária a comprovação da culpa
para a imposição do dever de indenizar. (SOUZA; LOPES in TEIXEIRA; ROSENVALD;
MULTEDO, 2021, p. 45)

Contudo, existem algumas lesões nas relações jurídicas familiares que constituem abuso
de direito. Nesse caso, a verificação da culpa é dispensada, conforme prevê o artigo 187, do
Código Civil. (SOUZA; LOPES in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p. 45)

Nesse sentido, a responsabilidade civil, em decorrência de danos morais, vem sendo


aplicada, principalmente nos casos de abandono afetivo dos pais em relação aos filhos menores,
e dos filhos em relação aos pais idosos. Ora, os pais são responsáveis pela criação, educação e
sustento material e afetivo de seus filhos. Ademais, a responsabilidade, além de princípio,
também é regra jurídica prevista em diversos artigos da Constituição Federal de 1988, do
Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Civil. Dessa forma, a violação a estas regras
159
pode ensejar reparação civil. Além disso, também há responsabilidade civil nos casos de
alienação parental. (PEREIRA, 2022a, p. 55)

Outrossim, nas relações conjugais, o Estado não deve intervir, exceto quando presentes
os três elementos da responsabilidade civil, quais sejam, conduta, nexo causal e dano. Como
exemplos, pode-se citar os casos de doenças sexualmente transmissíveis, ou uma traição pública
que tenha desrespeitado e ferido a honra do outro. Além disso, também enseja responsabilidade
civil os casos de violência doméstica, pois evidente o ilícito danoso previsto no art. 186 do
Código Civil, caso em que também ensejará responsabilidade criminal. (PEREIRA, 2022a, p.
55-56)

Ademais, nas relações parentais, o princípio da responsabilidade desdobra-se no


princípio da paternidade responsável. Nesse caso, o interesse não será apenas privado, mas
também do Estado, tendo em vista que a irresponsabilidade paterna ligada as consequências
econômicas, resultam em milhares de crianças nas ruas. Além do mais, a paternidade
responsável tornou-se norma jurídica composta de regras e princípios constitucionais.
(PEREIRA, 2022b, p. 205-206)

Segundo Rodrigo da Cunha Pereira (2022b, p. 207), o princípio da paternidade


responsável, deve ser destacado e autônomo, levando em consideração a importância que a
paternidade/maternidade tem na vida das pessoas. A par disso, esclarece o doutrinador:

A paternidade é mais que fundamental para todos nós. Ela é fundante do sujeito. A
estruturação psíquica dos sujeitos se faz e se determina a partir da relação que ele tem
com seus pais. Eles devem assumir os ônus e os bônus da criação dos filhos, tenham
sido planejados ou não. Tais direitos deixaram de ser apenas um conjunto de
competências atribuídas aos pais, convertendo-se em um conjunto de deveres para
atender ao melhor interesse do filho, principalmente no que tange à convivência
familiar.

Nesse sentido, os artigos 226, §7º e 229 da Constituição Federal, enfatizam os princípios
da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, assim como, o dever de cuidado.
(BRASIL, 1988)

Assim, nas relações familiares podem ocorrer situações que ensejam indenização por
dano moral. A relação entre pais e filhos, marido e mulher na constância do casamento, possuem
direitos, quais sejam, à intimidade, à privacidade, à autoestima, e demais valores que integram
a dignidade. Nessa esteira, a vida em comum, em comunhão com as relações íntimas, origina o

160
chamado dano moral conjugal ou honra familiar, que se concretiza nos deveres de sinceridade,
de tolerância, de velar pela honra do outro cônjuge e da família. (ROSA, 2022a, p. 642)

5 DANO MORAL DECORRENTE DA PRÁTICA DE ALIENAÇÃO PARENTAL

Prima facie, o princípio da dignidade humana e o princípio do melhor interesse da


criança e do adolescente previstos no ordenamento jurídico brasileiro tornam a esfera familiar,
um lugar de proteção e desenvolvimento da personalidade dos filhos. Em vista disso, os danos
causados pelos pais em relação aos filhos, devem gerar indenização por danos morais. (LAGE
in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p. 113)

Nessa lógica, não há dúvidas que as crianças e os adolescentes são pessoas vulneráveis,
sem capacidade de autodesenvolvimento intelectual, moral, social e afetivo, bem como, não
possuem condições de sozinhos e por meios próprios, atender às suas necessidades básicas,
motivo pelo qual, necessitam de amparo. (LAGE in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO,
2021, p. 113)

A prática de atos de alienação parental fere direito fundamental da criança e do


adolescente de convivência familiar saudável, prejudica as relações de afeto com os pais e seus
familiares, além de configurar evidente abuso moral contra esses, sujeitos em pleno
desenvolvimento. Nesse sentido, é certo e incontroverso que a prática de alienação parental
causa consequências ao poder familiar, podendo gerar a responsabilidade civil do agente
alienador. Além de gerar o dever de reparar o dano, a prática de atos de alienação parental pode
gerar a extinção da obrigação alimentar do alienado em relação do alienador, isto é, decorrente
da relação conjugal. (PEREIRA, 2022a, p. 446)

Assim, importante destacar que a síndrome de alienação parental é reconhecida como


uma patologia jurídica que se configura pelo exercício abusivo do direito de guarda, atingindo
especialmente a prole que vive em uma constante confusão de sentimentos até alcançar
completo rompimento do vínculo afetivo com o genitor não guardião. O alienador distorce a
realidade dos fatos para que o filho passe a acreditar que foi abandonado pelo outro genitor, por
sua vez, o filho começa a reconhecer um dos pais como o bom (alienador) e o outro, o mau
(alienado). (ROSA, 2022b, p. 111-112)

Em vista disso, a criança vítima de alienação parental sofre sem marcas visíveis, e,
lamentavelmente, quando esses sintomas são detectados, o objetivo do genitor alienador de

161
desqualificar o outro genitor já foi alcançado, e o vínculo com o núcleo familiar alienado já não
existe mais. (ROSA, 2022b, p. 130)

Nessa senda, a desqualificação do genitor pelo outro núcleo familiar com o objetivo de
interferir e dificultar a convivência com o filho pode gerar danos irreparáveis, ora, nenhum
dinheiro será capaz de reparar o tempo perdido, além de todo o prejuízo emocional causado ao
pai e ao filho. Esse dano sofrido pelos pais em decorrência da privação de convivência com os
filhos, é reconhecido pela doutrina como dano existencial. Isso em função de causar uma lesão
que afeta a existência da criança e do genitor, causando prejuízos que perduram a vida toda.
(TOMÉ in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p. 166)

A alienação parental é conduta antijurídica e afronta diretamente o princípio do melhor


interesse da criança e do adolescente. O dano proveniente dos atos de alienação parental
encontra-se na esfera extrapatrimonial, uma vez que afeta psicologicamente os filhos. Dessa
forma, o nexo de causalidade fica evidente entre a conduta do alienante e o dano sofrido
resultado dessa ação. Quanto a configuração da culpa, encontra-se no objetivo do alienador em
prejudicar o outro genitor. Porém, a caracterização do dano, passível de reparação civil nos
casos de alienação parental, independe de comprovação de culpa. (PEREIRA, 2022a, p. 447)

Assim, quando comprovada a prática de alienação parental por um dos genitores, há


sanções previstas na Lei 12.318/10 que poderão ser aplicadas pelo juízo, inclusive a inversão
da guarda em favor do genitor alienado. Além do mais, também está previsto na Lei de
Alienação Parental, em seu art. 6º, a aplicabilidade da responsabilidade civil e criminal, sem
prejuízo das demais sanções. (LAGE in TEIXEIRA; ROSENVALD; MULTEDO, 2021, p.
119)

Sob essa perspectiva, existe um dano moral indenizável decorrente da prática de atos de
alienação parental, visto que, nesse caso há uma prática ilícita, culpável, ativa, que gera um
dano, constituindo assim, os elementos necessários para configuração da responsabilidade civil,
conforme previsão dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil. Com o objetivo de buscar a
compensação pela prática de atos de alienação parental, poderão ser fixados danos morais em
favor do filho e/ou do genitor alienado. (ROSA, 2022a, p. 640)

Desse modo, faz-se necessário analisar o dano sofrido pelo genitor alienado, que é
prejudicado com o afastamento de seu filho sem nenhum motivo. Ocorre que, muitas vezes o
real motivo desse afastamento é o divórcio, a constituição de nova família, ou até mesmo um
novo namoro. Por vezes, o genitor alienado luta pela convivência com seu filho e tenta
162
reconquistar a confiança e o afeto a partir da desconstrução das falsas memórias implantadas
na criança ou no adolescente. Entretanto, isso nem sempre é possível, o que prejudica sua
relação parental, afetando sua integridade psicofísica. Evidente nesse caso, o ato antijurídico
que gera dano irreparável, passível de indenização. (MORAES; TEIXEIRA, 2016, p. 134-135)

Inquestionável que nos casos de alienação parental, o dano moral tem sua gênese nas
perturbações psíquicas, na dor, na ansiedade, depressão e sofrimento experimentados pelo
genitor alienado que teve suas visitas e comunicações impedidas e prejudicas pelo genitor
alienador, como também, a prática dos atos de alienação parental causam evidentes danos ao
desenvolvimento do menor em formação. (MADALENO, A.; MADALENO, R., 2022, p. 126)

Logo, a prática de alienação parental realizada pelo sujeito alienante gera um dano
evidente ao genitor alienado, lesando seus direitos de personalidade. Nessa lógica, o
afastamento do genitor alienado de seu filho interferindo e prejudicando na convivência familiar
saudável, bem como o fato do genitor ter sua imagem denegrida perante um ente querido e,
frequentemente, sendo odiado de forma injusta pelo próprio filho, irão gerar sentimentos de
angústia, dor, sofrimento e outros traumas imensuráveis ao genitor alienado, em decorrência
das atitudes do genitor alienador na prática da alienação parental. (ANJOS, 2014, f. 60)

Dentre as terríveis violências cometidas com o objetivo de afastar o filho do outro núcleo
familiar, sem dúvidas, um dos atos mais perversos que o genitor alienador pode cometer, é a
falsa acusação de agressão ou abuso sexual contra o filho. (ROSA, 2022a, p. 646)

Sob essa perspectiva, tal prática representa um estágio mais grave da alienação parental,
visto que, as ideias de abuso sexual podem ser inseridas na criança, que repete o fato como se
realmente tivesse acontecido, acarretando diversos prejuízos ao filho que começa a apresentar
um quadro de ansiedade, medo e pânico de conviver com o genitor alienado. (MADALENO,
A.; MADALENO, R., 2022, p. 99)

Diante de tal acusação, muitos pais passam anos dentro do tribunal tentando reaver seus
filhos, tentando provar sua inocência e seu sentimento de amor. Constantemente, proibidos de
conviver com seus filhos por decisões judiciais em sede de plantão ou em sede liminar sem
serem ao menos ouvidos. Pais acusados injustamente de abusar sexualmente dos filhos, são
prejudicados em exercer sua paternidade enquanto tentam provar sua inocência, o que pode
levar anos. E mesmo quando conseguem, o tempo passou e não volta mais, o filho cresceu com

163
a ideia de que foi realmente abusado e odeia o seu genitor, não tem mais intenção de vê-lo já
que não o considera mais seu pai. (BRAZIL, 2022, p. 146)

Nesse sentido, com a comprovação da prática da alienação parental, deverá o agente


alienador indenizar o alienado, entendimento que vem sendo aplicado nos Tribunais brasileiros.
No entanto, importante ressaltar a necessidade da comprovação da ocorrência da alienação
parental e do dano ocasionado por esse ato para a aplicação da reparação pecuniária, não sendo,
portanto, caso de dano moral in re ipsa. (ROSA, 2022a, p. 642)

Será indenizável o sofrimento psíquico ou a frustração do genitor não guardião pela


perda da relação paterno-filial como prejuízo da ruptura do regime de visitas e pela frustração
ao direito de comunicação fundamental no vínculo afetivo entre pais e filhos. Para configurar
o dano moral, será necessária a demonstração do nexo causal entre as atitudes do agente
alienador e os prejuízos psicológicos sofridos pelo alienado e pela criança ou adolescente.
(MADALENO A.; MADALENO, R., 2022, p. 145)

Além disso, a indenização originada pela prática de atos de alienação parental, quando
aplicada, deve ser fixada em quantum capaz não apenas de compensar os danos sofrido pelo
genitor alienado, mas também com o objetivo pedagógico, buscando evitar a reiteração
daqueles atos realizados pelo agente alienador. (ROSA, 2022a, p. 643)

Contudo, fica evidente o dano gerado ao genitor alienado que é prejudicado pelo genitor
alienador com a prática dos atos de alienação parental. Em vista disso, muitas vezes a criança
ou o adolescente desenvolvem rejeição e ódio em relação ao genitor alienado, o que resulta na
perda do vínculo afetivo entre um núcleo familiar e o filho, impossibilitando uma convivência
familiar saudável. A grande consequência disso são os danos psicológicos sofridos pela criança
e pelo genitor alienado com a direta interferência na formação do vínculo de afeto e o
consequente afastamento criado pelo alienador.

6 CONCLUSÃO

A alienação parental é um instituto jurídico previsto pelo direito de família, no qual um


núcleo familiar, na maioria das vezes por parte do genitor que mantém a guarda da criança ou
do adolescente, desqualifica o outro genitor com o objetivo de prejudicar o vínculo desse com
seu filho. Nesse sentido, buscou-se esclarecer, no presente trabalho, acerca da aplicação do
instituto da responsabilidade civil nas relações familiares mais especificadamente da aplicação

164
do dano moral nos casos de alienação parental como meio de cessar e prevenir tais atos
alienadores.

Inicialmente, objetivando a compreensão do instituto da alienação parental e a


importância da sua detecção, buscou-se analisar a Lei 12.318 de 2010 e seus aspectos
processuais, os quais embasam as medidas judiciais aplicáveis para cessar e prevenir os atos da
alienação parental.

Após, foi explorado o instituto da responsabilidade civil e a caracterização do dano


moral, a fim de compreender melhor a temática e sua possível aplicação no âmbito familiar.
Assim, a violação de um dever jurídico caracteriza o ilícito, que, na maioria das vezes, gera
dano para outrem, acarretando assim, novo dever jurídico, o de reparar o dano. É a partir disso
que chegamos a uma ideia de responsabilidade civil, isto é, o mencionado instituto só existe
onde há violação de um dever jurídico e um dano. Dessa forma, aquele que causar dano a outrem
deve repará-lo.

Mais especificadamente, quanto ao dano moral, foi a partir da Constituição Federal de


1988, com a previsão do princípio da dignidade da pessoa humana, que esse ganhou maior
atenção. Muitas foram as discussões do conceito de dano moral, porém, atualmente doutrina e
jurisprudência dominante têm o entendimento de que independentemente de prejuízo material,
dano moral é aquele que fere direitos personalíssimos, isto é, os atributos de cada pessoa, como
a honra, a atividade profissional, a reputação, as manifestações culturais e intelectuais, entre
tantos outros. Em vista disso, o dano será considerado moral quando ocasionar sentimentos
evidentes de angústia, dor, sofrimento, tristeza e humilhação.

É nesse contexto, que se evidencia a responsabilidade civil nas relações familiares, onde
podem ocorrer diversas situações que ensejam indenização por dano moral. Pois, mesmo em
âmbito familiar, com a previsão Constitucional do princípio da dignidade humana, pais e filhos,
marido e mulher na constância do casamento, possuem esse direito. Dessa forma, a prática de
atos de alienação parental fere princípios constitucionais e assim, é passível de reparação civil.

Nessa esteira, a desqualificação de um genitor pelo outro, com o objetivo de interferir e


dificultar a convivência com o filho, pode gerar danos irreparáveis, visto que nenhum dinheiro
será capaz de reparar o tempo perdido, além de todo o prejuízo psicológico sofrido pelo genitor
alienado e seu filho.

Dessa forma, o dano proveniente dos atos de alienação parental encontra-se na esfera
extrapatrimonial, uma vez que afeta psicologicamente o genitor alienado e a criança ou o
165
adolescente. Assim, o nexo de causalidade encontra-se entre a conduta do alienante e o dano
sofrido pelo alienado, resultado dessa ação. A configuração da culpa encontra-se no objetivo
do alienador em prejudicar o outro genitor. Por gerar abuso ao poder parental, a caracterização
do dano, passível de reparação civil nos casos de alienação parental, independe de comprovação
de culpa.

Nesse sentido, não restam dúvidas de que a prática de atos de alienação parental gera
dano moral indenizável, tendo em vista que, existe uma prática ilícita, culpável, ativa, que gera
dano, constituindo assim, os elementos necessários para a configuração da responsabilidade
civil. Por fim, importante frisar que o dano pela prática de alienação parental configura-se no
sofrimento psíquico ou na frustração do genitor alienado pela perda da relação com seu filho
como consequência da interferência pelo genitor alienador na convivência entre estes e pela
frustração ao direito de comunicação fundamental no vínculo afetivo entre pais e filhos.

REFERÊNCIAS

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indenizar o genitor alienado. Monografia (Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais) –
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Presidência da República, 2002. Disponível em: <L10406compilada (planalto.gov.br)>. Acesso
em: 22 dez. 2022.

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167
MOROSIDADE NOS PROCEDIMENTOS DE ADOÇÃO NO BRASIL:
Desafios e perspectivas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana

Leandro Barbosa de Araujo1


Francineide Barbosa de Araújo Costa2

RESUMO

A partir da influência do direito internacional no ordenamento jurídico brasileiro, em especial


no que tange à dignidade da pessoa humana, houve muitos avanços no sistema de normas.
Entretanto, quando se observa a disparidade com a qual a sociedade se depara em termos de
empregos e rendas, percebe-se um abismo social muito grande. Muitas famílias encontram-se
na miséria, com dificuldades em se sustentarem, e em razão disso acabam por potencializar o
abandono de seus filhos, que acabam sendo encaminhados a instituições que executam
programas de acolhimento institucional e acolhimento familiar, por exemplo. Contudo, os
procedimentos de adoção são morosos, o que prejudica a inserção das crianças e adolescentes
em famílias adotivas. Diante disso, o objetivo desse estudo é investigar os principais fatores
que causam o elevado número de crianças e adolescentes em abrigos e apontar possíveis
soluções. Ao final dessa pesquisa observou-se ser necessário mais investimentos voltados a
criação de mecanismos de profissionalização capazes de chegar nas camadas mais pobres da
sociedade, somados a políticas de incentivos e geração de empregos, com fomento a essas
famílias ingressar ao mundo do trabalho, resgatando, com isso, a dignidade. Constatou-se a
necessidade de mais investimentos nas instituições e entidades de assistência social que cuidam
dos procedimentos de adoção, com qualificação profissional e mais capital humano, com vistas
a tornar mais célere os procedimentos de adoção. Para as referidas pesquisas foram utilizados
o sistema normativo brasileiro, direito internacional, doutrina, jurisprudência e matérias
informativas disponíveis em sítios da internet.

Palavras-chave: dignidade humana; família adotiva; afetividade; educação.

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, muito se tem falado em dignidade da pessoa humana, políticas públicas e


assistência social, entre tantas outras nomenclaturas que os seus significados visam o bem
comum. A visibilidade com que pautas garantistas tem ganhado mais destaque na humanidade,
em especial nos países de culturas mais democráticas, tem relação, em particular, com o direito

1
Graduado em Direito. Graduado em Licenciatura em Sociologia. Pós-Graduado em Docência do Ensino Superior
e Metodologias Ativas de Aprendizado. Pós-Graduado em Direito Civil e Processual Civil. [...]. Advogado. E-
mail: leandrodireitoejustica@gmail.com.
2
Graduada em Licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal do Piauí-PI. Graduada em Licenciatura
Plena em Pedagogia. [...]. E-mail: franzinha25@outlook.com.
168
internacional, que desde a segunda guerra mundial, com ênfase para a Declaração Universal
dos Direitos Humanos-DUDH, têm demostrado através de seus mecanismos uma preocupação
com as garantias básicas inerentes a todo indivíduo, como a vida e intrínseca a essa a própria
dignidade, por exemplo.

Importante destacar, a DUDH, através de sua proclamação em 10 de dezembro de 1948


pela Assembleia Geral das Nações Unidas - ONU, tornou-se influencia para que houvesse
muitos outros acordos e tratados internacionais, tendo, entre seus objetivos, o de intensificar e
ampliar a possibilidade de garantias de direitos humanos, a título de exemplificação, cita-se a
Convenção Americana de Direitos Humanos - CADH, de 22 de novembro de 1969.

Embora haja inúmeros mecanismos internacionais, e no caso do Brasil, também


nacional, que visam garantir direitos básicos às pessoas, o Estado não tem conseguido dar
assistência efetiva para mitigar esses problemas sociais de forma mais eficiente. E em razão
disso, se observa dois mundos distintos num so País, miserabilidade de um lado e acessão
econômica de outro. A condição precária em que muitas familias estão inseridas potencializa o
abandono de muitas crianças e adolescentes, que acabam sendo encaminhados a instituições,
abrigos, entre outras, para processo de adoção.

Por outro lado, diante da carência de investimentos, seja na infraestrutura de instituições


que acolhem crianças e adolescentes abandonados e na profissionalização de seus agentes, a
título de exemplo, somado ao déficit de mão de obra, observa-se, esses fatores colaboram para
tornar mais longo o período para que adoções se concretizem, o que faz com que muitas crianças
e adolescentes se tornem adultos sem ter experimentado um lar adotivo, e sem usufruir de uma
relação de afetividade e amor, o que é muito prejudicial para a fase da vida, desde a fase da
infância até a adulta.

Diante dessas considerações, o presente estudo visa investigar quais os principais fatores
que causam elevado número de crianças e adolescentes a depender de uma família adotiva,
assim como as razões da morosidade nos procedimentos que levam a adoção ser efetivada e
apontar possíveis soluções, que ao menos possam mitigam essas dificuldades, e para isso será
consultado o sistema de normas nacionais brasileiras, de direito internacional, doutrinas,
jurisprudência e informativos disponíveis em sítios da internet.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

169
Para o referido estudo será abordada várias fontes de pesquisa. Em razão disso, o método
a ser utilizado será o bibliográfico, pois se mostra mais adequado. Nesse sentido, Gil (2002,
p. 44) destaca que essa modalidade de pesquisa:
É desenvolvida com base em material já elaborado, constituído principalmente de
livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo
de trabalho dessa natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de
fontes bibliográficas.

Por isso, levando em consideração que esse tipo de estudo permite “ao investigador a
cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar
diretamente” (GIL, 2002, p. 45), usar-se-á a partir dos tópicos seguintes a referida
metodologia bibliográfica, onde se discorrerá sobre o tema proposto de forma argumentativa
e referenciada.

2.1 Epítome dos preceitos da dignidade da pessoa humana no contexto normativo de


direito internacional e nacional

A partir da DUDH3 proclamada em 10 de dezembro 1948, muitas garantias inerentes ao


ser humano foram acordados por Países-membros. A intensão de promover uma busca
constante pela pacificação mundial, com reflexos internos em cada Nação fez com que a partir
da citada declaração muitos outros mecanismos fossem criados e aperfeiçoados.

Em trecho do preambulo da mencionada DUDH fica estampado o ideal a ser alcançado


por todas as Nações que fazem parte dessa busca global por pacificação social, isso pode ser
observado, onde diz que:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da


família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade,
da justiça e da paz no mundo, considerando que o desprezo e o desrespeito pelos
direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
humanidade e que o advento de um mundo em que mulheres e homens gozem de
liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da
necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum[...]
Agora portanto a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos
Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as
nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre
em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por
promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas
progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento
e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Países-
Membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

3
UNICEF BRASIL. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acessado em: 13/06/2023.
170
Nesse sentido, Fachin (2005, p. 54) ao se referir aos preceitos da dignidade da pessoa
humana como princípio fundamental diz que ele é considerado como “princípio estruturante,
constitutivo e indicativo das ideias diretivas básicas de toda uma ordem constitucional”. Nessa
entoada, Moraes (2005, p. 49) define “dignidade” da pessoa humana como “um valor espiritual
e moral”, acrescentando “que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e
responsável da própria vida e que traz pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”.
Importante destacar também um outro assunto encampado na DUDH, e diz respeito ao seu
artigo 22, no qual estabelece que:

Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social, à
realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a
organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais
indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Conforme se observa, há uma evidente preocupação em que seja assegurado direitos


existenciais básicos a cada ser humano. Diante disso, ao observar a situação em que o Brasil se
encontra, onde há pobreza de um lado e riqueza de outro, a discussão, quanto às pessoas em
situações de miséria não pode se restringir ao simples assistencialismo, é questão de dignidade,
e nesse contexto, Sarlet (2001) enfatiza a necessidade de haver respeito às pessoas em situações
desumanas, desacreditadas da própria vida, que merecem uma vida de dignidade.

Importante mencionar também as considerações feitas por Miranda (1998) a respeito de


garantias básicas aos indivíduos, pois o referido autor ensina no sentido de que todo indivíduo
deve ter garantido seus direitos fundamentais com base nos preceitos do princípio da dignidade
da pessoa humana. A esse respeito, Padilha (2018, p. 237) enfatiza que “direitos fundamentais”
se mostram “imprescindíveis para a preservação da dignidade humana”. Nucci (2018, p. 272)
acrescenta que é necessário a busca por parte do “Estado” em construir mecanismos que vise
“assistência de garantia de proteção social e de precaução e redução de violação de direitos”.

A partir da influência da DUDH, o Brasil, através da Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988-CF/88 passou a ampliar mais as garantias sociais, frutos de um
Estado que visa a democratização e respeito à dignidade humana. Reale (2013) ao tecer
comentários sobre democracia, leciona no sentido de que o poder soberano do povo visa o
cumprimento por parte dos seus representantes, das normas que garantam o livre exercício da
cidadania, com base nos preceitos da dignidade da pessoa humana. E para sintetizar melhor
esses entendimentos acima mencionados, vejamos o que diz o preâmbulo da CF/88:
171
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício
dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida,
na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias,
promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (BRASIL, 1988).

Além da DUDH, conforme síntese apresentada, qual serve de inspiração para o


ordenamento jurídico brasileiro, em especial no contexto da CF/88, existe também a Convenção
Americana de Direitos Humanos promulgada pelo decreto nª 678, de 6 de novembro de 1992
(BRASIL, 1992), da qual o Brasil é signatário, que aduz no seu preâmbulo que:

Os Estados americanos signatários da presente Convenção, reafirmando seu propósito


de consolidar neste Continente, dentro do quadro das instituições democráticas, um
regime de liberdade pessoal e de justiça social, fundado no respeito dos direitos
essenciais do homem; Reconhecendo que os direitos essenciais do homem não
derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter
como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma
proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da
que oferece o direito interno dos Estados americanos; Considerando que esses
princípios foram consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos, na
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal
dos Direitos do Homem e que foram reafirmados e desenvolvidos em outros
instrumentos internacionais, tanto de âmbito mundial como regional; Reiterando que,
de acordo com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, só pode ser realizado
o ideal do ser humano livre, isento do temor e da miséria, se forem criadas condições
que permitam a cada pessoa gozar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais,
bem como dos seus direitos civis e políticos; e considerando que a Terceira
Conferência Interamericana Extraordinária (Buenos Aires, 1967) aprovou a
incorporação à própria Carta da Organização de normas mais amplas sobre direitos
econômicos, sociais e educacionais e resolveu que uma convenção interamericana
sobre direitos humanos determinasse a estrutura, competência e processo dos órgãos
encarregados dessa matéria, convieram no seguinte:[...](CADH, 1969).

A referida Convenção, além de representar uma continuada busca, desde a DUDH em


consolidar políticas de proteção e respeito a todos os seres humanos de forma global, busca,
através dos Estados membros firmar políticas efetivas de forma internalizadas de proteção
contra qualquer tipo de violação de direitos humanos, e para sintetizar melhor esse objetivo,
observa-se o que aduz o artigo 1º item 1 da mencionada Carta, vejamos:

Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e


liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que
esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem
nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social
(CADH, 1969).

Todas essas sinalizações normativas refletem o que os organismos internacionais, a


partir da DUDH têm buscado com o passar do tempo, que é a efetivação de políticas internas e
172
externas de proteção e defesa dos direitos humanos. Importante enfatizar que os mecanismos
de direito internacional aqui apresentados não esgotam outros já em pleno vigor, mas servem
de exemplificação.

2.2 A adoção no Brasil e o elevado índice de crianças e adolescentes à espera de uma


família adotiva

A CF/88 dá especial atenção no contexto da proteção da instituição familiar, atribuindo


ao Estado o papel de buscar mecanismos eficientes de proteção para o bom desenvolvimento
das famílias. A referida Carta atribui responsabilidade não só ao Estado como à própria
Sociedade, e nesse sentido, vejamos o que dispõe o artigo 226, caput e seu parágrafo 7º:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 7º Fundado
nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar
recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer
forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL, 1988).

Entretanto, mesmo com o citado mandamento constitucional, conforme síntese


anteriormente mencionada sobre esse assunto, muitas famílias ainda padecem na miséria, e em
razão disso entregam seus filhos para instituições acolhedoras, que acabam encaminhando-os
para procedimentos de adoção. Nessa entoada, Fonseca (2012, p. 12) enfatiza que “o Estado
deverá prover proteção e cuidado adequados quando os pais ou responsáveis não o fizerem”.

Em razão disso, o ordenamento jurídico prevê a adoção como um mecanismo que


possibilita dignidade às crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidades. Pereira
(2022) ao conceituar a adoção, ensina no sentido de ser uma ação pessoal, na qual, um indivíduo
pega para si um outro indivíduo na qualidade de filiação, sem que a existência ou não de
consanguinidade em relação a ambos seja condição para o aperfeiçoamento da ação. A esse
respeito, Santos (1998, p. 11) ensina que adotar “é ato jurídico bilateral que estabelece relações
civis, entre duas pessoas, de paternidade e filiação”.

Diante disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente-ECA, lei nº 8.069, de 13 de julho


de 1990 (BRASIL, 1990), prevê a partir do seu artigo 39 os procedimentos de adoção.
Conforme o parágrafo 1º do citado artigo, “ a adoção é medida excepcional e irrevogável, à
qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou
adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei”.

173
Na mesma entoada, o artigo 41 do ECA diz que “ a adoção atribui a condição de filho
ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer
vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais” (BRASIL, 1990). Essas
previsões legais, dentre suas preocupações intrínsecas, visam dar um melhor acolhimento a
crianças e adolescentes que estejam em procedimentos de adoção. Em relação ao Código Civil
de 2002- CC/2002, lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (BRASIL, 2002), esse dispõe sobre
adoção nos seus artigos 1618 e 1619, vejamos:

Art. 1.618. A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pela
Lei n o 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente. (Redação
dada pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; Art. 1.619. A adoção de maiores de 18
(dezoito) anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença
constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei n o 8.069, de 13 de
julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente. (Redação dada pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência.

Diante disso, os procedimentos de adoção encontram maior respaldo, em especial, na


legislação específica, qual seja, o ECA. Cabe ressaltar, entretanto, isso não excluir a
observância de outras normas do ordenamento jurídico pátrio, em especial a própria Carta da
República de 1988 que diz no seu artigo 227, caput e parágrafo 6º que:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão. § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão
os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação (BRASIL, 1988).

Nesse contexto, caso a o pai ou a mãe não ofereça proteção aos filhos, representando
riscos efetivos à segurança e saúde desses, poderá perder o poder familiar nos termos do artigo
1638 e seguintes do CC/2002, podendo a criança e adolescente ser levado para procedimento
de adoção, caso não seja possível outra medida de solução (BRASIL, 2002).

Ao tecer comentários sobre o poder familiar, Maciel (2018, p. 177) enfatiza no sentido
de que quando o pai e a mãe perdem o poder sobre seus filhos, isso se torna “um pressuposto
lógico para que haja a adoção”, contudo, o citado autor alerta em relação a perda do poder
familiar que “esta medida pura e simples, não extingue o encargo parental dos pais biológicos”.

A quantidade de crianças e adolescentes necessitando de adoção no Brasil é muito alta,


mesmo assim, existe maior números de pessoas com interesses em fazer adoção, o que remete

174
a uma reflexão de que os procedimentos de adoção se mostram morosos. Conforme publicação
do Conselho Nacional de Justiça-CNJ (2020, online) “mais de 5 mil crianças estão disponíveis
para adoção no Brasil”. Em outro trecho da citada publicação, diz que:

Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional


de Justiça (CNJ), indicam que mais de 30 mil crianças e adolescentes estão em
situação de acolhimento em mais 4.533 unidades em todo o país. Deste total, 5.154
mil estão aptas a serem adotadas (CNJ, 2020).

Essa realidade apresentada revela que é preciso que se faça muito mais em favor das
crianças e adolescente no País com vistas a pelo menos mitigar as vulnerabilidades em que as
crianças e adolescentes em procedimentos de adoção se encontram, pois, de acordo o CNJ
(2020, online):

Atualmente, 7.997 crianças na fase da primeira infância – de 0 a 6 anos -, estão em


situação de acolhimento, sendo pouco mais da metade do sexo masculino. Deste total,
1.875 crianças com até 3 anos aguardam até seis meses pelo retorno à família de
origem ou pela adoção. Já a maior parcela das crianças entre 3 e 6 anos permanece
entre 12 e 24 meses nas unidades de acolhimento. A faixa etária que compõe a maior
parte dos abrigados no Brasil são os adolescentes. São 8.643 com mais de 15 anos,
sendo mais da metade do sexo masculino. Deste total, 3.142 estão abrigadas há mais
de três anos e não têm irmãos nas mesmas condições. (CNJ, 2020).

Conforme apresentado, o número de crianças e adolescentes em situação de


vulnerabilidades é bastante elevado, pois em situação de abrigo, em que pese ser uma medida
paliativa na busca por diminuir a dor de aspiração por um lar, não substitui uma família, que
dará carinho, educação, acolhida e amor. Entretanto, o fato da família que adota uma criança,
substituindo a biológica, esse deve ser considerado exceção, conforme alerta Lisboa (2013, p.
31), acrescentando ainda que deve, primeiro, “se tentar manter o menor na família natural ou
ampliada”.

2.3 Contextos sociais que podem favorecer ao elevado número de crianças e adolescentes
a dependerem de família adotiva no brasil

Muitos são os fatores que podem impulsionar ao crescente número de crianças e


adolescentes a dependerem de um lar adotivo devido a situações de vulnerabilidades. Nesse
sentido, pessoas que manifestam o desejo de não querer assumir a responsabilidade em criar e
educar suas proles pode ser um dos fatores, contudo, o principal fator pode estar relacionado a
situação de miserabilidade em que muitas famílias se encontram, dificultando o próprio sustento
e provocando desestruturação no lar.

175
Nesse contexto, o Conselho Nacional de Justiça (2022, online) em publicação
disponibilizada em seu portal de notícias online diz que “problemas sociais” estão entre as
causas para que haja “acolhimento de crianças e adolescentes” para procedimentos de adoção.
A esse respeito, o Governo Federal, por meio do Ministério dos Direitos Humanos e da
Cidadania (2023, online) diz que no “Brasil tem 10,6 milhões de crianças e adolescentes com
idades entre 0 e 14 anos vivendo na extrema pobreza”.

Em linhas gerais, a desestruturação familiar, que envolve todo o cenário, seja de cunho
material e psicológico, é responsável por deixar muitas crianças e adolescente em situações de
vulnerabilidades, o que potencializa a possibilidade de encaminhamento para adoção, e cita-se
a título de exemplificação o caso em que “cinco crianças” foram “levadas para abrigo em MT
após mães saírem para festa e deixá-las sozinhas em casa’, conforme publicação do g1(2023,
online) em sua plataforma de notícias. Esse fato, conforme noticiado, ocorreu em Ipiranga do
Norte-MT. Inclusive, em caso semelhante, a 4ª Turma Cível do Egrégio Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios-TJDFT destituiu do poder familiar a genitora por abandono de sua
prole, vejamos:

CIVIL. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. APELAÇÃO CÍVEL.


PRELIMINAR. CERCEAMENTO DE DEFESA. INEXISTÊNCIA. REJEIÇÃO.
MÉRITO. DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. DESCUMPRIMENTO DOS
DEVERES. PRÁTICA DE ATOS CONTRÁRIOS À MORAL E AOS BONS
COSTUMES. SITUAÇÃO DE ABANDONO. CARACTERIZAÇÃO. 1. A dilação
probatória destina-se ao convencimento do julgador, o qual tem ampla liberdade para
apreciar as provas carreadas aos autos, inclusive podendo indeferir as diligências que
reputar inúteis ou meramente protelatórias, a teor do disposto no art. 370 do Código
de Processo Civil. 2. A desconstituição do poder familiar requer cuidado, por se tratar
de medida extrema, da qual, após o trânsito em julgado, não cabe revogação de
nenhuma natureza. 3. Presentes pelo menos uma das hipóteses de perda do poder
familiar, a destituição deve atender ao melhor interesse da criança e à sua integral
proteção, haja vista que o afastamento dos filhos de sua mãe pode acarretar sequelas
comprometedoras à saúde psicológica dos menores. 4. Inexistindo dúvidas acerca da
negligência e abandono da prole pela genitora, forçoso convir pela destituição do
poder familiar, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 1.638 do Código Civil,
mormente ao se considerar que a imposição da medida é, reconhecidamente, a que
mais considera os interesses das crianças. 5. Recurso não provido (Acórdão nº
1699232, Processo: 07023861920218070013, Relator: Mario-Zam Belmiro, 4ª Turma
Cível, publicação em 17/05/2023).

Como observado, uma das grandes causas para que haja muitas crianças e adolescentes
vivendo em situações degradantes se dá por conta da desestruturação familiar, seja em
decorrência da miséria em que muitas se encontram, o que dificulta o sustento do lar, e em
alguns casos os genitores se veem obrigados a entregarem os filhos para adoção, ou por conta
de outros fatores de cunho social, inclusive podendo estar relacionados a uso de entorpecentes.

176
2.4 Síntese reflexiva sobre as etapas no processo de adoção e as possíveis causas da
morosidade

Muitos são os mecanismos normativos que estabelecem regras no processo de adoção


adotados pelo ECA. Para reflexão, abordar-se-á alguns dispositivos que permitirão uma melhor
compreensão da importância de uma adequada preparação quanto a adoção. Nesse sentido, dois
importantes pontos dizem respeito ao artigo 40 e 42 do ECA, onde dizem que “o adotando deve
contar com, no máximo, dezoito anos à data do pedido, salvo se já estiver sob a guarda ou tutela
dos adotantes”, artigo 40 e o artigo 42 onde diz que “podem adotar os maiores de 18 (dezoito)
anos, independentemente do estado civil” (BRASIL, 1990).

Além de estabelecer uma idade mínima, via de regra, para que o indivíduo seja adotado,
é possível observar que o legislador manifesta intenção no sentido de que até certa idade a
criança e adolescente terão um melhor aproveitamento quanto a família adotiva, já que, com a
capacidade civil plena, via de regra, já é possível a constituição de suas próprias famílias, com
o casamento, por exemplo.

A mesma lógica pode ser aplicada em relação a estipulação de idade para adotar, no
caso, ter a capacidade civil. E em relação a isso, cita-se o próprio dispositivo acima que
menciona que o adotante deve ter idade maior do que os 18 anos, isso representa, em tese, que
o indivíduo que pretenda adotar terá capacidade para proporcionar a criação de laços afetivos,
dando educação, alimentação e amor. Além disso, outra característica importante a ser
observada diz respeito ao parágrafo 3º do artigo 42 onde diz que “ o adotante há de ser, pelo
menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando” (BRASIL, 1990).

Importante destacar também que para que haja a adoção é preciso observar o que
disciplina o artigo 45, onde diz que “a adoção depende do consentimento dos pais ou do
representante legal do adotando’ (BRASIL, 1990). Essa é a regra, contudo, comporta exceção,
como exemplo, a possibilidade de o juiz decidir sobre a destituição em definitivo do poder
familiar, a depender do caso em concreto, abrindo possibilidade para a adoção.

Cabe enfatizar que para o processo de adoção se faz necessário um “estágio de


convivência com a criança ou adolescente, pelo prazo máximo de 90 (noventa) dias, observadas
a idade da criança ou adolescente e as peculiaridades do caso”, conforme artigo 46 do ECA.
Entretanto, cabe exceção, que, de acordo com o parágrafo 1º do citado artigo diz que“ o estágio
de convivência poderá ser dispensado se o adotando já estiver sob a tutela ou guarda legal do

177
adotante durante tempo suficiente para que seja possível avaliar a conveniência da constituição
do vínculo ” (BRASIL,1990).

Relevante mencionar ainda, quanto ao estágio de convivência, no que se refere aos


prazos para quem resida ou tenha domicílio fora do Brasil, esse é reduzido. Nesse sentido, o
parágrafo 3º do artigo 46 diz que “em caso de adoção por pessoa ou casal residente ou
domiciliado fora do País, o estágio de convivência será de, no mínimo, 30 (trinta) dias e, no
máximo, 45 (quarenta e cinco) dias, prorrogável por até igual período, uma única vez, mediante
decisão fundamentada da autoridade judiciária” (BRASIL, 1990).

Em relação ao estágio acima mencionado, cabe informar que esse será acompanhado
por equipe especializada, a fim de verificar as condições de compatibilidades em relação a
adotante e adotado, com apresentação de relatórios, cabendo destacar que o estágio deve ocorrer
no Brasil, conforme dispõe os parágrafos 4 e 5 do artigo 46 do ECA (BRASIL, 1990), vejamos:

§ 4 o O estágio de convivência será acompanhado pela equipe interprofissional a


serviço da Justiça da Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos
técnicos responsáveis pela execução da política de garantia do direito à convivência
familiar, que apresentarão relatório minucioso acerca da conveniência do deferimento
da medida. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 5 o O estágio de
convivência será cumprido no território nacional, preferencialmente na comarca de
residência da criança ou adolescente, ou, a critério do juiz, em cidade limítrofe,
respeitada, em qualquer hipótese, a competência do juízo da comarca de residência da
criança. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017).

Importante enfatizar que, conforme dispõe o artigo 47 do ECA “o vínculo da adoção


constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual
não se fornecerá certidão” (BRASIL,1990). Quanto a inscrição em cadastro para procedimento
de adoção, importante enfatizar que as partes interessadas, ou a parte interessada deve preencher
alguns requisitos. Isso permite auferir, em tese, a capacidade da parte em adotar. Esse e outros
requisitos podem ser observados a partir do artigo 50 do ECA (BRASIL, 1990), vejamos:

Art. 50. A autoridade judiciária manterá, em cada comarca ou foro regional, um


registro de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e outro de pessoas
interessadas na adoção. (Vide Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 1º O deferimento
da inscrição dar-se-á após prévia consulta aos órgãos técnicos do juizado, ouvido o
Ministério Público. § 2º Não será deferida a inscrição se o interessado não satisfizer
os requisitos legais, ou verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 29. § 3 o A
inscrição de postulantes à adoção será precedida de um período de preparação
psicossocial e jurídica, orientado pela equipe técnica da Justiça da Infância e da
Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela execução da
política municipal de garantia do direito à convivência familiar. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 4 o Sempre que possível e recomendável, a preparação
referida no § 3 o deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes em
acolhimento familiar ou institucional em condições de serem adotados, a ser realizado

178
sob a orientação, supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da
Juventude, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de acolhimento e pela
execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar. (Incluído
pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 5 o Serão criados e implementados cadastros
estaduais e nacional de crianças e adolescentes em condições de serem adotados e de
pessoas ou casais habilitados à adoção. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Vigência; § 6 o Haverá cadastros distintos para pessoas ou casais residentes fora do
País, que somente serão consultados na inexistência de postulantes nacionais
habilitados nos cadastros mencionados no § 5 o deste artigo. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 7 o As autoridades estaduais e federais em matéria de
adoção terão acesso integral aos cadastros, incumbindo-lhes a troca de informações e
a cooperação mútua, para melhoria do sistema. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Vigência; § 8 o A autoridade judiciária providenciará, no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas, a inscrição das crianças e adolescentes em condições de serem adotados que
não tiveram colocação familiar na comarca de origem, e das pessoas ou casais que
tiveram deferida sua habilitação à adoção nos cadastros estadual e nacional referidos
no § 5 o deste artigo, sob pena de responsabilidade. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência; § 9 o Compete à Autoridade Central Estadual zelar pela manutenção
e correta alimentação dos cadastros, com posterior comunicação à Autoridade Central
Federal Brasileira. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 10. A adoção
internacional somente será deferida se, após consulta ao cadastro de pessoas ou casais
habilitados à adoção, mantido pela Justiça da Infância e da Juventude na comarca,
bem como aos cadastros estadual e nacional referidos no § 5 o deste artigo, não for
encontrado interessado com residência permanente no Brasil. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 10. Consultados os cadastros e verificada a ausência de
pretendentes habilitados residentes no País com perfil compatível e interesse
manifesto pela adoção de criança ou adolescente inscrito nos cadastros existentes, será
realizado o encaminhamento da criança ou adolescente à adoção internacional.
(Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017); § 11. Enquanto não localizada pessoa
ou casal interessado em sua adoção, a criança ou o adolescente, sempre que possível
e recomendável, será colocado sob guarda de família cadastrada em programa de
acolhimento familiar. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 12. A
alimentação do cadastro e a convocação criteriosa dos postulantes à adoção serão
fiscalizadas pelo Ministério Público. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
§ 13. Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no
Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando: (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; I - se tratar de pedido de adoção unilateral; (Incluído pela
Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; II - for formulada por parente com o qual a criança
ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade; (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda
legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de
convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja
constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou
238 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 14. Nas hipóteses
previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do
procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto
nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 15. Será assegurada
prioridade no cadastro a pessoas interessadas em adotar criança ou adolescente com
deficiência, com doença crônica ou com necessidades específicas de saúde, além de
grupo de irmãos. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017).

Além das normas acima apresentadas no tocante a inscrição para o procedimento de


adoção, cumpre ressaltar que o ingresso ao pedido de adoção se dará por meio de petição e que
cabe ao interessado a fazer o uso do citado peticionário, conforme previsto a partir do artigo
197-A onde diz que:

179
Art. 197-A. Os postulantes à adoção, domiciliados no Brasil, apresentarão petição
inicial na qual conste: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; I - qualificação
completa; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; II - dados familiares;
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; III - cópias autenticadas de certidão
de nascimento ou casamento, ou declaração relativa ao período de união estável;
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; IV - cópias da cédula de identidade
e inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009)
Vigência; V - comprovante de renda e domicílio; (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência; VI - atestados de sanidade física e mental (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009); Vigência; VII - certidão de antecedentes criminais; (Incluído pela
Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; VIII - certidão negativa de distribuição cível.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; Art. 197-B. A autoridade judiciária,
no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, dará vista dos autos ao Ministério Público, que
no prazo de 5 (cinco) dias poderá: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; I
- apresentar quesitos a serem respondidos pela equipe interprofissional encarregada
de elaborar o estudo técnico a que se refere o art. 197-C desta Lei; (Incluído pela Lei
nº 12.010, de 2009) Vigência; II - requerer a designação de audiência para oitiva dos
postulantes em juízo e testemunhas; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência;
III - requerer a juntada de documentos complementares e a realização de outras
diligências que entender necessárias. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência;
Art. 197-C. Intervirá no feito, obrigatoriamente, equipe interprofissional a serviço da
Justiça da Infância e da Juventude, que deverá elaborar estudo psicossocial, que
conterá subsídios que permitam aferir a capacidade e o preparo dos postulantes para
o exercício de uma paternidade ou maternidade responsável, à luz dos requisitos e
princípios desta Lei. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; § 1º É
obrigatória a participação dos postulantes em programa oferecido pela Justiça da
Infância e da Juventude, preferencialmente com apoio dos técnicos responsáveis pela
execução da política municipal de garantia do direito à convivência familiar e dos
grupos de apoio à adoção devidamente habilitados perante a Justiça da Infância e da
Juventude, que inclua preparação psicológica, orientação e estímulo à adoção inter-
racial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com
necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos. (Redação dada pela Lei nº
13.509, de 2017); § 2º Sempre que possível e recomendável, a etapa obrigatória da
preparação referida no § 1º deste artigo incluirá o contato com crianças e adolescentes
em regime de acolhimento familiar ou institucional, a ser realizado sob orientação,
supervisão e avaliação da equipe técnica da Justiça da Infância e da Juventude e dos
grupos de apoio à adoção, com apoio dos técnicos responsáveis pelo programa de
acolhimento familiar e institucional e pela execução da política municipal de garantia
do direito à convivência familiar. (Redação dada pela Lei nº 13.509, de 2017); § 3º É
recomendável que as crianças e os adolescentes acolhidos institucionalmente ou por
família acolhedora sejam preparados por equipe interprofissional antes da inclusão
em família adotiva. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017); Art. 197-D. Certificada
nos autos a conclusão da participação no programa referido no art. 197-C desta Lei, a
autoridade judiciária, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, decidirá acerca das
diligências requeridas pelo Ministério Público e determinará a juntada do estudo
psicossocial, designando, conforme o caso, audiência de instrução e julgamento.
(Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência; Parágrafo único. Caso não sejam
requeridas diligências, ou sendo essas indeferidas, a autoridade judiciária determinará
a juntada do estudo psicossocial, abrindo a seguir vista dos autos ao Ministério
Público, por 5 (cinco) dias, decidindo em igual prazo. (Incluído pela Lei nº 12.010, de
2009) Vigência; Art. 197-E. Deferida a habilitação, o postulante será inscrito nos
cadastros referidos no art. 50 desta Lei, sendo a sua convocação para a adoção feita
de acordo com ordem cronológica de habilitação e conforme a disponibilidade de
crianças ou adolescentes adotáveis. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência;
§ 1º A ordem cronológica das habilitações somente poderá deixar de ser observada
pela autoridade judiciária nas hipóteses previstas no § 13 do art. 50 desta Lei, quando
comprovado ser essa a melhor solução no interesse do adotando. (Incluído pela Lei nº
12.010, de 2009) Vigência; § 2º A habilitação à adoção deverá ser renovada no
mínimo trienalmente mediante avaliação por equipe interprofissional. (Redação dada
pela Lei nº 13.509, de 2017); § 3º Quando o adotante candidatar-se a uma nova
180
adoção, será dispensável a renovação da habilitação, bastando a avaliação por equipe
interprofissional. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017); § 4º Após 3 (três) recusas
injustificadas, pelo habilitado, à adoção de crianças ou adolescentes indicados dentro
do perfil escolhido, haverá reavaliação da habilitação concedida. (Incluído pela Lei nº
13.509, de 2017); § 5º A desistência do pretendente em relação à guarda para fins de
adoção ou a devolução da criança ou do adolescente depois do trânsito em julgado da
sentença de adoção importará na sua exclusão dos cadastros de adoção e na vedação
de renovação da habilitação, salvo decisão judicial fundamentada, sem prejuízo das
demais sanções previstas na legislação vigente. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017);
Art. 197-F. O prazo máximo para conclusão da habilitação à adoção será de 120
(cento e vinte) dias, prorrogável por igual período, mediante decisão fundamentada
da autoridade judiciária. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)

Essas considerações apresentadas quanto aos procedimentos de adoção não exaurem


todo o conteúdo, mas dá uma dimensão das peculiaridades que envolve o procedimento, onde
fica visível a necessidade de recursos humanos especializados para acompanhar todo o processo
de adoção. Importante enfatizar que no intento de organizar e facilitar o atendimento aos
sistemas de normas estipulados no ECA, muitas instituições públicas e privadas fazem cartilhas
educativas como forma de dar conhecimento e conscientização à população, em geral.

Embora haja essas anuências legais, e isso se faz necessário, a final, trata-se do interesse
da crianças e adolescentes, muitas das vezes o procedimento de adoção torna-se moroso em
razão de muitos fatores, entre os quais, cita-se, por exemplo, recursos humanos para
acompanhar os procedimentos de adoção deficitário se comparado ao elevado número de
crianças e adolescentes que necessitam de adoção. Além disso, segundo pesquisa realizada pelo
Conselho Nacional de Justiça (2015, p. 5-6) sob a Coordenação de Marcelo Guedes Nunes [et
al.], o problema do elevado número de crianças para adoção, somado a morosidade se apresenta
sob a ótica de duas vertentes, segundo o estudo realizado, onde diz que:

O problema tem dois lados. Um diz respeito às crianças e aos adolescentes que entram
no sistema de adoção tardiamente. O outro diz respeito aos casos nos quais a criança
entra antes dos 5 anos no sistema, mas fica retida por conta de entraves processuais.
O primeiro caso não tem relação direta com o tempo dos processos, tendo em vista
que a criança já entra no sistema em idade com mínima probabilidade de adoção. Já
no segundo caso, o tempo dos processos é fundamental, uma vez que o lapso de tempo
entre a entrada da criança no sistema de adoção (por exemplo, quando os genitores
têm suspendido o seu poder familiar e a criança é levada a um abrigo como medida
cautelar protetiva) e a sua disponibilização para adoção será determinante para a
chance de colocação em uma família substituta. Quando esse lapso é muito extenso,
a criança pode acabar ultrapassando a barreira dos anos de idade e, com isso, ver as
suas chances de ser adotada serem reduzidas a valores ínfimos (2015, p. 5-6).

Embora os problemas acima apresentados representem uma dificuldade no sistema de


justiça, em termos de procedimento de adoção e elevado número de crianças e adolescentes

181
para a adoção, o principal problema mesmo é a miserabilidade, que segundo a citada pesquisa
diz que:

Apesar de situada além dos braços diretos do Poder Judiciário, outra questão
importante diz respeito à vulnerabilidade social de uma parcela carente da população
brasileira como causa primária do problema. Muitas das crianças e adolescentes que
acabam envolvidas no sistema de adoção advêm de famílias vulnerabilizadas
(desprovidas de apoio socioeducacional do governo), nas quais também os genitores
são, em certa medida, vítimas da falta de estrutura estatal. Localidades mais pobres,
que não dispõem de escolas acessíveis, creches e espaços de convivência, expõem
crianças e adolescentes a situações de risco e abandono, nem sempre devido a uma
omissão voluntária dos pais. Da mesma forma, a falta de uma estrutura de apoio e
tratamento para pais dependentes de álcool, crack ou outras drogas acaba submetendo
não só crianças e adolescentes, mas a entidade família por inteiro, a uma situação de
abandono, pobreza e desestrutura social, incluindo o próprio dependente. A suspensão
do poder familiar e a disponibilização de crianças para o sistema de adoção se torna,
nesse contexto, em parte subproduto da própria deficiência da atuação do Estado no
apoio a essas famílias em estado de vulnerabilidade. E, como em outras situações nas
quais o braço Executivo e Legislativo do Governo não atuam adequadamente, as
demandas sociais mais agudas acabam por desaguar no Poder Judiciário, a quem cabe
empreender os derradeiros esforços em dar efetividade a direitos e garantias sociais
previstas de forma abstrata na legislação (CNJ, 2015, p. 7).

De acordo o que se pode observar, em que pese o transcurso do tempo, os problemas


ainda persistem e nos mesmo termos, qual seja, problemas sociais como a miserabilidade de
muitas famílias, por exemplo, e outros estruturais no sistema de adoção. Nesse sentido, o
principal problema que potencializa o elevado número de crianças para adoção tem relação
direta com a desestruturação de famílias, que pode estar associado à pobreza.

Além disso, é possível apontar também que a insuficiência de recursos materiais e


humanos para cuidar e dar andamento nos procedimentos de adoção de crianças e adolescentes,
tendem a fazer com que essas passem mais tempo à disposição do sistema, o que pode ser
prejudicial, levando em consideração que muitos se tornam adultos sem que tenham sido
adotados e vivenciado efetivamente um laço familiar efetivo.

2.5 As possíveis soluções para proporcionar melhor desempenho aos procedimentos de


adoção no Brasil sob a ótica de investimentos em políticas públicas e assistência social
especializada

A partir do que já foi observado no presente estudo, em linhas gerais, o principal


problema afeto ao elevado índice de crianças a dependerem de adoção no Brasil está associado
às condições de miserabilidade em que muitas famílias se encontram, o que as coloca em
situação de desestruturação familiar, potencializando a entrega de seus filhos para adoção, esse
entendimento é ratificado pelo CNJ (2015, online), conforme já abordado.
182
Resolver a questão da miserabilidade no País é o primeiro e principal passo para que as
crianças e adolescentes possam ter mais oportunidade de uma vida digna, observado o contexto
em que o sistema de normas se vincula, qual seja, da defesa dos direitos humanos, através da
efetivação de políticas que vise a dignidade das pessoas.

Em razão disso, se faz necessário mais investimentos com o fim de proporcionar


moradias dignas às famílias, empregos e rendas, e para isso é preciso investimentos em
programas imobiliários cujo acesso seja facilitado para as famílias de baixa renda, associado a
programas de profissionalização e por consequência, a potencialização de geração de empregos.
Isso possibilitará mais dignidade às famílias e essas poderão oferecer um futuro melhor para
seus filhos.

Porém, levando em consideração que a erradicação da pobreza é um desafio complexo,


tendo em vista que requer muita vontade política, entre outros fatores, restam medidas
mitigatórias, mas que não são a solução para o problema. E em razão disso, pode ser realizado
investimentos em recursos materiais e humanos para as instituições responsáveis por cuidar dos
procedimentos de adoção, por exemplo, a fim de buscar tornar mais célere os procedimentos de
adoção.

Em se tratando da necessidade de recursos matérias, a fim de exemplificação, cita-se o


caso em que ocorreu um “incêndio em abrigo para crianças” onde deixou “quatro mortos e 15
feridos no Recife”, trata-se de “incêndio” que “atingiu o abrigo infantil Lar Paulo de Tarso”.
Esse fato aconteceu em recife e segundo a citada matéria, “pelo menos três crianças e um adulto
morreram”, essas informações foram publicadas pelo Uol (2023, online). Nesse sentido, Agra
(2020, p. 313) menciona que é preciso que o Estado, por meio de suas instituições aplique
políticas públicas que visem “garantir condições mínimas de subsistência” aos mais
vulneráveis.

No que se refere a especializações e aperfeiçoamentos em relação a sistemas e recursos


humanos, importante mencionar um avanço muito importante no Brasil, onde o CNJ, por meio
da Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA)4, que foi criado no ano de 2019, acelerou
o procedimento de adoção, possibilitando considerável redução em seu tempo de espera,

4
Conforme informações extraídas do site do CNJ “o SNA possui um inédito sistema de alertas, com o qual os
juízes e as corregedorias podem acompanhar todos os prazos referentes às crianças e adolescentes acolhidos e
em processo de adoção, bem como de pretendentes. Com isso, há maior celeridade na resolução dos casos e
maior controle dos processos, sempre no cumprimento da missão constitucional do Conselho Nacional de
Justiça”. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (2019).
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/adocao/. Acessado em: 15/06/2023.
183
contudo, observa-se que não é o suficiente para solucionar a demanda existente levando em
consideração as fases em termos da idade da criança e do adolescente, conforme citado em
momento anterior, na pesquisa elabora pelo CNJ (2015, online). Madaleno (2004, p. 147) é
enfático ao se referir a “criança” assim com a “adolescentes”. Para o referido autor, essa fase
na vida representa “matéria prima indispensável para construção de sua personalidade”, daí a
importancia de ser-lhes assegurado o convívio familiar.

Cumpre destacar, o CNJ, por meio da resolução nº 289 de 14/08/2019, que regulamenta
o SNA, dispõe no artigo 3º que “o Conselho Nacional de Justiça prestará o apoio técnico
necessário aos Tribunais de Justiça para a correta alimentação do SNA”. Em outras palavras, o
aperfeiçoamento técnico e de recursos humanos será permanente.

Além do citado apoio, o CNJ promove o aprimoramento, não só do seu quadro de


pessoal como possibilita que todos os demais interessados tenham mais conhecimento a
respeito dos direitos inerente a crianças e adolecentes, e faz isso por meio de cursos e
capacitações5. Por essa razão, é de grande importância haver mais investimentos, não só de
cunho material, como humanitário, a fim de mitigar os danos causados a crianças e adolescentes
que se encontram na fila à espera de adoção.

3 CONCLUSÃO

Diante do exposto, observou-se que os problemas que assolam a sociedade brasileira


dizem respeito, a princípio, a miserabilidade que atinge inúmeras famílias por todo o território
nacional. Isso faz com que essas famílias se encontrem desestruturadas material e
psicologicamente, o que afeta o convívio familiar, potencializando a entrega de seus filhos para
o sistema de adoção.

Em razão da situação de miserabilidade, a possível solução pode ser encampada através


de investimentos em moradias, possibilitando mais acesso por parte das famílias de baixa renda,
somado a programas de profissionalização e impulsionamento da economia com vistas na
geração de empregos. Esse é o principal caminho, contudo, fica evidenciado a má vontade por

5
De acordo informações extraídas do site do CNJ trata-se de “Espaço no qual são elencados os cursos e
capacitações realizados e/ou promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com o objetivo de promover e
disseminar os direitos relacionados à infância, adolescência e juventude. Para ter acesso à agenda do CNJ”.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cursos e Capacitações- Infância e Juventude. Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/infancia-e-juventude/cursos-e-capacitacoes/. Acessado em:
15/06/2023.
184
parte do poder público em dar solução a esse caso, e isso se deve por falta de vontade política,
que não investem efetivamente na solução desse grave atentado contra a dignidade da pessoa
humana.

Assim sendo, não se mostrando a erradicação da pobreza uma realidade a curto e médio
prazo, acaba por restar medidas paliativas a fim de mitigar os sofrimentos em que muitas
famílias se encontram, em especial no que se refere às crianças e adolescentes, ou seja, as partes
mais frágeis de contexto de desestruturação familiar.

Em razão dessas dificuldades, em especial com a entrada em vigor do ECA, pôde se


estabelecer um procedimento por memorizado a respeito da adoção de crianças e adolescentes,
isso é um avanço importante, porém paliativo. No referido diploma foi escampado inúmeras
normas, contudo, em que pese o objetivo maior ser a proteção da criança e do adolescente, os
procedimentos criados podem tornar mais moroso a efetivação da adoção. Em razão disso,
algumas das possíveis soluções pode se dar com investimentos de cunho material e em recursos
humanos no contexto das instituições que cuidam de procedimentos de adoção, o que possibilita
menos tempo em espera por adoção.

Por fim, se o Brasil, como nação, visar ser exemplo para o mundo em termos de
respeito à dignidade da pessoa humana, precisa olhar, por meio da administração pública, para
as crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidades, prezando, em especial, pela
reestruturação familiar como medida principal, e a adoção como excepcional. Essas são as
possíveis medidas que tomadas, podem, de fato, assegurar mais dignidade a crianças e
adolescentes no País.

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provido (Acórdão nº 1699232, Processo: 07023861920218070013, Relator: Mario-Zam
Belmiro, 4ª Turma Cível, publicação em 17/05/2023).

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Acessado em: 12 jun. 2023.

188
A FAMÍLIA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS
DE NIKLAS LUHMANN

Mariana Galvan dos Santos1


Ana Júlia Cecconello Folle2
RESUMO

O presente estudo trata da noção histórica do conceito de família e sua evolução, desde a Roma
Antiga, perpassando às famílias reguladas pelo direito canônico estruturado pela Igreja
Católica, às famílias burguesas após Revolução Francesa e Revolução Industrial e, por fim, traz
uma abordagem às formas de família contemporânea, tal como a família patriarcal,
matrimonializada, democrática, eudemonista, conjugal, parental, monoparental, anaparental,
unipessoal, multiparental, substituta, ectogenética, socioafetiva, mútuas, coparental, nuclear,
binuclear, natural, informal, avuncular, mosaico, reconstituída, fissional, homoafetiva,
homoparental, simultâneas, poliafetiva e multiespécie. Ainda, de forma breve, realiza-se uma
análise da Teoria dos Sistemas Sociais de Niklas Luhmann e dos conceitos utilizados pelo
sociólogo alemão para uma melhor compreensão, tal como a concepção de sistema para o autor,
a ideia de comunicação nos sistemas sociais e a autopoiese, termo advindo da biologia para
agregar à teoria luhmanniana. Para o fechamento da ideia inicial realiza-se uma junção dos
conceitos, tratando da família como subsistema social, sob as perspectivas de Luhmann.

Palavras-chave: família. Subsistema; teoria dos sistemas sociais.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa analisa a família como sistema social, sob a ótica dos conceitos de
sistemas sociais de Niklas Luhmann. O objetivo do estudo é analisar se a família se enquadra
como sistema pela teoria luhmanniana. Justifica-se a importância da pesquisa tendo em vista a
mutabilidade do conceito de família e a notoriedade da teoria de Luhmann.

Sob essa perspectiva, busca-se responder à seguinte problemática: em análise da família


contemporânea, ela se considera um sistema, no que tange à teoria dos sistemas sociais de
Niklas Luhmann? E com a finalidade de responder a esta pergunta utiliza-se a técnica de
pesquisa bibliográfica, usando doutrinas e artigos científicos domésticos e internacionais acerca

1 Advogada – OAB/RS 131.896. Mestranda em Direito pela Universidade de Passo Fundo. Pós-graduanda em
Direito de Família e Sucessões pela Legale Educacional e em Direito Civil e Processo Civil pela Legale
Educacional. E-mail: marianagalvansantos@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2406108190521726.
2
Oficiala de Justiça e Avaliadora – Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Mestranda em Direito pela
Universidade de Passo Fundo. Especialista em Direito Civil pela Universidade Anhanguera. E-mail:
anajuliafolle@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6223251308956013.
189
da temática. O procedimento metodológico utilizado é o de abordagem dedutiva, sendo a
natureza da pesquisa qualitativa.

Com o propósito de auxiliar no entendimento da pesquisa, esta foi dividida em três


tópicos principais. O primeiro tópico estuda a história da família desde a Roma antiga até os
dias atuais, com as novas percepções de família. Essas novas concepções de família são
exemplificadas: patriarcal, matrimonializada, democrática, eudemonista, conjugal, parental,
monoparental, anaparental, unipessoal, multiparental, substituta, ectogenética, socioafetiva,
mútuas, coparental, nuclear, binuclear, natural, informal, avuncular, mosaico, reconstituída,
fissional, homoafetiva, homoparental, simultâneas, poliafetiva e multiespécie.

Em um segundo momento são brevemente abordadas a teoria luhmanniana; a teoria dos


sistemas sociais - com seus complexos conceitos, e com as perspectivas de Niklas Luhmann em
relação aos sistemas; a comunicação e a autopoiese.

O último tópico trata da família como um subsistema social deveras importante para a
sociedade, uma vez que é o único sistema que se relaciona internamente.

Desta forma, a pesquisa não tem o intuito de encerrar as discussões sobre este tema, e
sim incentivar a realização de mais estudos sobre a temática.

NOÇÃO HISTÓRICA DE FAMÍLIA

A concepção de família está extremamente vinculada à história da humanidade, tendo


em vista a natural carência do indivíduo em relação aos vínculos afetivos (NORONHA;
PARRON, 2012, p. 3). O ser humano sempre teve a necessidade de compartilhar e de realizar
trocas, sendo custosa a sua existência de forma isolada, dessa forma, “a ideia de família surgiu
muito antes do Direito, dos códigos, da ingerência do Estado e da Igreja na vida das pessoas”
(LOUZADA, 2011, p. 1).

Compreende-se que o indivíduo, em regra, nasce no interior de uma família, sob a


perspectiva de que a concepção primordial de família se dá a partir da “procriação e propagação
do ser humano”, ou seja, a entidade familiar constitui-se a partir de um fenômeno fático,
originada pela reprodução humana (STACCIARINI, 2019, p. 13-15).

Na antiga Roma, a sociedade era organizada de forma hierárquica, sendo dividida em


classes: os patrícios (nobreza), os plebeus (indivíduos com poucas propriedades) e os clientes
e escravos (indivíduos que não eram reconhecidos como pessoas e portanto, poucos - ou
190
nenhum - direitos possuíam). As famílias não podiam se mesclar, de forma que os patrícios, os
plebeus, os clientes e os escravos só podiam juntar-se com a mesma classe social à qual
pertenciam (VASCONCELOS, 2018, p. 3).

A família romana não mais estava somente com o objetivo de procriar, mas sim,
possuíam o propósito educacional de seus membros (STACCIARINI, 2019, p. 22). Essas
famílias eram coordenadas por um pater famílias. Por se tratar de uma família patriarcal, o
homem era tratado como superior ao restante dos membros do núcleo familiar, era pai, protetor,
provedor, e exercia seu poder aos seus descendentes e também à esposa, tendo, inclusive, o
poder de vida ou morte destes (VASCONCELOS, 2018, p. 10). Inclusive Arnaldo Rizzardo
(2019, p. 9) discorre que a esposa do pater familias “era considerada em condição análoga a
uma filha”.

Com a passagem do tempo e a instituição do direito canônico, as famílias da idade média


passaram a serem controladas pelos ditames da religião. Transpassa-se, então, um tempo em
que a única união de pessoas aceita é a matrimonializada, evitando então “o pecado da carne”.
Veja-se que mesmo com a posterior decadência do direito pautado na religião e a perda de força
da Igreja Católica, muitos conceitos utilizados à época, até pouco tempo foram utilizados em
normas estatais, tal como a criminalização do adultério (STACCIARINI, 2019, p. 22-25).

Posteriormente, visualiza-se a concepção de família burguesa, originada no século XIX,


e que permaneceu por grande parte do século XX, sob influência da Revolução Francesa e da
Revolução Industrial Inglesa. Essa família passa a se deslocar às áreas urbanas e passa a ter
mais acesso a informações. Nesta época, passa-se de um relacionamento integralmente
patriarcal, patrimonial e frio, para um relacionamento onde o afeto também passa a contar para
ambos. Este é o início do “casamento por amor” e não somente por segurança e patrimônio.
Ainda assim, a mulher continuava submissa ao marido e as relações continuavam
matrimonializadas para que fossem válidas perante a sociedade, grande exemplo é o Código
Civil brasileiro de 1916 (STACCIARINI, 2019, p. 25-28).

Como discorre Ricardo Calderón (2017, p. 38), a família se movimenta de forma


constante, alterando-se conforme os contornos sociais. Ainda mais quando tratamos de uma
modernidade líquida, segundo os conceitos de Zygmund Bauman, onde as pessoas vivem em
um contexto de mobilidade, flexibilização (2001).

A conceituação de família contemporânea ou pós-moderna é a mais completa de todas


as noções. Apesar de tratar de uma relação fática quando se trata de família, muitas vezes o
191
Estado não oportunizou a regularização das famílias não matrimonializadas, tal como quando
tratava do concubinato, ou dos filhos “ilegítimos”, ou seja, aqueles havidos fora do casamento,
de tal forma a fazer uma discriminação.

A Constituição Federal de 1988 foi um marco para a família, tendo em vista que acolheu
outra forma de família, qual seja, a pertencente às uniões estáveis, e extinguiu a percepção de
filhos ilegítimos e admitiu que todos os filhos, havidos ou não durante a constância do
casamento, possuem os mesmos direitos.

A partir de 1988, a família passa a pautar-se pelo princípio da afetividade, “do respeito,
da liberdade, da igualdade, da dignidade, da solidariedade [...] da cooperação” (CALDERÓN,
2017, p. 52) e de acordo com a autonomia da vontade das partes. Nesse mesmo sentido, Conrado
Paulino da Rosa (2013, p. 31) discorre:

Apesar da definição de que a afetividade como um princípio não seja unânime, não é
possível pensar na entidade familiar sem a presença do afeto, uma vez que as relações
que se desenvolvem no seio da família estão embasadas em amor, cuidados, carinho
e respeito. Assim, o ser humano que se desenvolve a partir de tais sentimentos, sem
dúvida, será mais solidário e assim poderá contribuir para uma sociedade mais
solidária. O afeto é, primariamente, uma relação entre indivíduos que se afeiçoam.
[...] Nessa dimensão individual, o direito ao afeto é a liberdade de afeiçoar-se um a
outro. É uma liberdade constitucional. [...] Somente a partir da existência do afeto é
possível a realização pela busca da felicidade. [...] Sem afeto, não se pode falar em
família, ou, não constatado o afeto na entidade familiar, esta será embasada na
desordem, na qual não haverá estrutura para se manter. Assim, o afeto ganhou valor
jurídico, sendo o amor e o desejo principais elementos caracterizadores do laço
conjugal e da família; a pessoa passou a ser o centro do discurso jurídico em
detrimento do patrimônio.

Nesse sentido, as famílias passam a se caracterizar de diversas maneiras, desde a família


patriarcal (pai é a autoridade) e matrimonializada (constituída pelo casamento), até as formas
atuais de família. É importante tratar de algumas dessas novas concepções conforme Rodrigo
da Cunha Pereira e Edson Fachin (2021, p. 20-40):
a) democrática (não há hierarquia entre os membros);
b) eudemonista (baseia-se na procura da felicidade de todos);
c) conjugal (presença de sexualidade entre os indivíduos pertencentes à relação);
d) parental (vínculo não se dissolveria com o final da relação – não possui razão de ser);
e) monoparental (um dos genitores com a prole);
f) anaparental (formada por parentes que não são descendentes ou ascendentes uns dos
outros);
g) unipessoal (somente uma pessoa – muito utilizado quando se trata de “bem de família”);
192
h) multiparental (existe diversos pais/mães na família – comum em famílias
reconstituídas);
i) substituta (pode se originar pela adoção, guarda ou tutela), a extensa (inclui demais
parentes no mesmo núcleo familiar);
j) ectogenética (prole decorrente de inseminação artificial);
k) socioafetiva (formada pelo afeto e não necessariamente pelo sangue);
l) mútuas (famílias que tem seus filhos trocados na maternidade);
m) coparental (genitores somente se juntam para ter a prole de forma programada);
n) nuclear (composta pelo casal e os filhos);
o) binuclear (forma-se com o rompimento de uma família nuclear);
p) natural (biológica, não possui formalidade para sua formação);
q) informal (são factuais e não formais, à exemplo as uniões estáveis);
r) avuncular (relação entre parentes colaterais em terceiro grau);
s) mosaico (famílias nucleares que se juntam formando um mosaico, genitores que levam
seus filhos à nova constituição familiar);
t) reconstituída (indivíduos que romperam antiga relação e desenvolvem nova entidade);
u) fissional (pessoas que só se encontram para lazer, nos finais de semana ou férias);
v) homoafetiva (constituída por pessoas do mesmo gênero);
w) homoparental (parentalidade exercida por casais do mesmo gênero);
x) simultâneas (constituída de forma paralela à outra família);
y) poliafetiva (família constituída por mais de dois indivíduos na mesma relação);
z) multiespécie (constituída com seres humanos e seres animais).
Dessa forma, o que se conclui é que diversas são as formações de entidades familiares,
sendo que nas atuais, o que fundamenta a família são os princípios da afetividade, solidariedade
e responsabilidade. Sem tanta intervenção estatal, é possível o ideal desenvolvimento da
família, de forma a proporcionar a satisfação do indivíduo.

A TEORIA DOS SISTEMAS SOCIAIS DE NIKLAS LUHMANN

Em um primeiro momento, cabe entender quem foi Niklas Luhmann, o desenvolvedor


da Teoria dos Sistemas Sociais. Niklas Luhmann (nascido na Alemanha em 1927) precisou
ajudar o regime nazista da época, em razão da Segunda Guerra Mundial, sendo, posteriormente,
preso pelos aliados. Quando libertado, ingressou no curso de Direito em 1946 e anos depois

193
ingressou no curso de Sociologia nos Estados Unidos. Seu primeiro trabalho acerca da temática
é do ano de 1964, e a partir de então possui diversas obras demasiadamente influentes
interdisciplinariamente. O sociólogo faleceu em 1998 (SILVA, 2018, p. 28-29).

O sociólogo possuía como objetivo produzir uma teoria que pudesse ser utilizada de
forma absoluta, abraçando todas as ciências, sendo, dessa forma, muito teórico e complexo.
Como exemplo disso, suas obras (livros e artigos científicos) perpassam a sociologia, o direito,
a religião e outros (KUNZLER, 2004, p. 123-124).

Conforme discorre Guilherme Leite Gonçalves (2013, p. 26-27), as noções mais


próximas à teoria de Luhmann são datadas da década de 1920 e 1930, com as pesquisas de
Ludwig von Bertalanffy. De forma inicial, a teoria tinha a concepção de sistemas abertos,
contudo, com as percepções físicas, de que o universo não possui outros sistemas para se
comunicar e que este é conjunto de vários fragmentos, a teoria passou de sistemas abertos para
sistemas fechados. Nesse sentido, diversas foram as críticas à Niklas, uma vez que, nesse caso,
a teoria não se aplicaria à todas as disciplinas existentes, como a biologia, por exemplo.

Luhmann entende que todas as esferas são compostas por sistemas, sejam eles vivos,
psíquicos ou sociais, sendo uma característica do sistema social a comunicação, a qual funciona
de acordo com um código binário, o qual é positivo ou negativo. Os sistemas sociais, dessa
forma, possuem um “fechamento operacional”, pelas palavras do sociólogo, ou seja, eles não
conseguem atuar fora das extremidades deles mesmos (SILVA, 2016, p. 125 -126).

Então, de suma importância é entender o que Luhmann compreende por sistema. A


teoria social percebia o sujeito como integrante do sistema. Por sua vez, o sociólogo alemão
entende que os sujeitos ocupam a posição de entorno/ambiente dentro do sistema, e não mais
“um todo comporto por partes” (MACHADO, 2012, p. 17-21).

Una tradición transmitida desde la antigüedad y que es más vieja que el empleo
conceptual del término «sistema» hablaba de totalidades constituidas por partes. El
problema de esta tradición consistió em que la totalidad debía ser pensada por partida
doble: como unidad y como totalidad de las partes, o más que la simple suma de las
partes; con esto, sin embargo, nunca quedó aclarado cómo el todo que está constituido
por las partes y un excedente, pudiera constituirse, con validez, en la unidad en el
nivel de las partes (LUHMANN, 1991, p. 30)

Sob essa ótica, o sistema é observador, tanto de si, quanto do seu entorno. E para que
seja possível essa concepção, este observador não pode ter a capacidade de enxergar que há um
contexto que ele não compreende. Havendo, então um ponto cego (BACHUR, 2020. p. 7). O

194
sistema e o entorno/ambiente precisam, de forma contínua, coexistirem, pois não havendo um,
não há como o outro existir. E, desse modo, a ideia de ambiente/entorno abarca tudo aquilo que
não for o sistema observado, “a sociedade é tida como entorno para o indivíduo: os seres
humanos são o entorno psíquico dos sistemas sociais”, e mesmo que o entorno “alcance sua
unidade” e tenha relação com os sistemas, ainda assim, ele não se torna um (TEIXEIRA;
BECKER; LOPES, 2016, p. 150-151).

Dessa forma, “O ambiente é o espaço da complexidade, o sistema, o âmbito em que o


sentido é funcionalmente produzido como redução de complexidade”, chegando à ideia do que
Luhmann vai chamar de autopoiese (BACHUR, 2020, p. 8). Nesse sentido, para o sociólogo
(LUHMANN, 2016, p. 28):

No sistema social, [...] uma descrição do sistema do direito não pode partir do
pressuposto de que normas [...] de outra substância e qualidade sejam como
comunicações. Comunicações referentes ao direito têm como operações do sistema
do direito sempre uma dupla função, como fatores de produção e como mantenedores
de estruturas. Elas pressupõem condições de associação para outras operações, e assim
confirmam ou modificam as limitações (estruturas) significativas para tal. Nessa
medida, sistemas autopoiéticos são sempre sistemas históricos, que partem do estado
imediatamente anterior que eles próprios criaram. Fazem tudo o que fazem pela
primeira e pela última vez. Toda repetição é uma questão de fixação de estruturas
artificiais. E são históricos também no sentido de que devem suas estruturas à
sequência de suas operações, razão pela qual evoluem no sentido da bifurcação e da
diversificação. Na condição de observador, é possível diferenciar as funções da
determinação de estado e da seleção de estruturas, mas operativamente elas não se
separam. A operação tem sua unidade como elemento autopoiético precisamente ao
servir a ambos.

Sob essa ótica, cabe ressaltar que a autopoiese é uma concepção advinda das ciências
da natureza, na perspectiva da biologia, onde os seres vivos se autotransformam, com a
reprodução, tendo sido criada por Humberto Maturana. Nesse sentido, “a unidade operacional
dos seus elementos [...] é produzida e delimitada pelas operações de seus próprios elementos, e
é precisamente esse processo autopoiético que confere ao sistema sua unidade” (LOSANO,
2011, p. 401).

Maturana, em seu estudo, objetiva limitar a autopoiese aos seres vivos, contudo,
Luhmann o expande aos sistemas sociais e psíquicos. Logo, nesse sentido:

La autopoiesis no presupone forzosamente que no haya en el entorno ningún tipo de


operación como aquellas con las que el sistema se reproduce a sí mismo. En el entorno
de los organismos vitales existen otros organismos vitales, y en el entorno de las
conciencias, otras conciencias. En ambos casos, sin embargo, el proceso de
reproducción propio del sistema es utilizable sólo internamente. A la reproducción no
se la puede utilizar como enlace entre sistema y entorno, es decir, no se puede extraer
195
otra vida y otra conciencia para transferirla al propio sistema. (LUHMANN, 1999, p.
56).

Nessa perspectiva, o que se reproduz no sistema social é a comunicação, conforme já


delineado acima. A explicação se dá a partir da interpretação de que para que haja a
comunicação é necessária a ligação entre mais de um sistema, uma vez que não há a
possibilidade de comunicar-se individualmente. Assim, quem comunica é o sistema, e não o
indivíduo (TEIXEIRA; BECKER; LOPES, 2016, p. 144).

Nesse ponto de vista, ressalta-se a noção de subsistemas sociais, onde nenhum


subsistema pode efetuar as atribuições de outro, isso é o que os diferencia, por esse motivo o
código binário acima tratado. Dessa forma, é interessante demonstrar a diferenciação de alguns
subsistemas, realizada por Guilherme Leite Gonçalves (2013, p. 62-64):

SISTEMA CÓDIGO FUNÇÃO


Direito Lícito/Ilícito Generalização congruente de expectativas normativas
Economia Ter/Não ter Administrar o problema da escassez
Ciência Verdadeiro/Falso Construir e obter conhecimento
Política Governo/Oposição Tomar decisões que vinculem a coletividade
Educação Instruir/Não instruir Introduzir mudanças nos sistemas psíquicos
Religião Imanente/Transcendente Apresentar, na comunicação, a diferença entre o que é ou
não observável
Família Intimidade/Não intimidade Incluir a pessoa (conceito social) na comunicação

Desse modo, pode ser realizada uma analogia dos subsistemas a bolas de bilhar, de
forma que estes subsistemas não se confundem, como as bolas (cada uma possui uma cor e uma
numeração), contudo, o propósito do jogo é que as bolas se choquem e quando isso acontece,
ambas as bolas (e os subsistemas) se desprendem, se separando (LIMA, Fernando Rister Sousa,
2008, p. 3).

A FAMÍLIA COMO SISTEMA

Levando em consideração o que foi estudado até o presente momento, pode-se concluir
que, a partir da perspectiva luhmanniana um dos subsistemas sociais é a família, o que Luhmann
só se atentou a partir de 1990, sendo que para ele a família é:

Um sistema de comunicación y no un sistema compuesto de humanos o de relaciones


entre estos. Al igual que otros sistemas, también, se trata de un sistema autopoiético,
es decir, que se reproduce mediante sus propias operaciones. La comunicación que
caracteriza a este sistema es, según esta perspectiva, la comunicación personal íntima
(CADENAS, 2015, p. 33).
196
A família como sistema social trabalha com uma comunicação expansiva, onde, a
princípio nenhum assunto é omitido nessas relações. Contudo, dessa forma, qualquer
comunicação pode depender de explicações, no sentido em que Luhmann diz: “La familia
exagera la sociedade”. E por isso, na sociedade pós-moderna, e com as diversas concepções de
família, esse núcleo familiar é um sistema autônomo, onde ocorre uma inclusão total do
indivíduo, diferentemente do que ocorre na sociedade, “La familia pinta un modelo de sociedad
que ya no

existe” (CADENAS, 2015, p. 34).

Ainda, esse sistema, o familiar, realiza funcionalidades que nenhum outro possui a
capacidade de cumprir, “dicen relación con el desarrollo de un espacio para la intimidad, el
afecto y el entendimiento mutuo, que lo caracteriza y lo distingue de los demás sistemas
sociales“, e nessa mesma perspectiva, “y en los que sólo es posible intensificar un mayor
número de relaciones impersonales” (CABEZAS, 2008, p. 42-43).

Dessa forma, por tratar-se de família, a comunicação pode possibilitar o início de


relacionamentos, diferenciando dos outros sistemas, pois em outros não há nenhum aspecto de
intimidade. Por isso a importância do sistema familiar na sociedade, tendo em vista a
intensidade do indivíduo, este precisa desenvolver suas particularidades, “y eso sólo es posible
de alcanzar en la familia”, haja vista que é o único sistema que pode ser desenvolvida uma
comunidade (CABEZAS, 2008, p. 43).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na presente pesquisa foi possível entender a natureza histórica da família, desde a Roma
antiga, passando pela família ditada pelo Direito Canônico, à família burguesa e, obviamente,
a família pós-moderna/contemporânea, ou seja, a atual.

O conceito de família atual não tem a possibilidade de ser fechado, uma vez que existem
demasiadas formas de famílias reconhecidas legalmente, e também pela doutrina brasileira.

Os conceitos de família tratados são: patriarcal, matrimonializada, democrática,


eudemonista, conjugal, parental, monoparental, anaparental, unipessoal, multiparental,
substituta, ectogenética, socioafetiva, mútuas, coparental, nuclear, binuclear, natural, informal,
avuncular, mosaico, reconstituída, fissional, homoafetiva, homoparental, simultâneas,
poliafetiva e multiespécie.

197
Também, estudou-se a teoria dos sistemas sociais desenvolvida pelo sociólogo alemão
Niklas Luhmann, na qual o sociólogo, de forma complexa, desenvolve uma teoria de que os
sistemas sociais se apresentam de forma iguais.

Esses sistemas sociais se baseiam na comunicação, de forma que todos os sistemas


possuem um código binário, um positivo e um negativo. Onde um sistema não pode ocupar as
funções de outro.

Luhmann, em sua teoria, trata também da autopoiese, um conceito criado nas ciências
da natureza (biologia), mas que nesse caso o autor discorre sobre reprodução natural do sistema,
o qual é intrínseco dos sistemas sociais, tal como da reprodução biológica.

Por fim, é tratada da família como sistema social, de forma que o código binário dela é
intimidade/não intimidade, e a comunicação realizada por este subsistema é única, tendo em
vista que se baseia na afetividade das relações familiares.

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200
NEGLIGÊNCIA AFETIVA
A responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo

Nathane Von Ahn1


Ana Regina Costa Martins2

RESUMO

No âmbito do direito brasileiro, vislumbra-se a possibilidade do reconhecimento dos requisitos


ensejadores da responsabilidade civil, com aplicação ou não de indenização nos casos em que
se configura negligência afetiva dos pais em relação aos seus filhos. O tema é atual, e embora
não se tenha lei tratando especificamente do instituto do abandono afetivo, sua abordagem e
estudo são necessárias. Objetiva-se, portanto, com este trabalho a análise da possibilidade de
aplicação do instituto da responsabilidade civil nos casos de abandono afetivo por parte dos
genitores, tendo o presente trabalho se realizado a partir do estudo acerca do instituto da família,
dos princípios que norteiam a proteção da criança e do adolescente, dos deveres parentais e do
instituto da responsabilidade civil. Assim, a metodologia utilizada para a elaboração do presente
trabalho foi a pesquisa bibliográfica, sobre o Direito de Família e da Responsabilidade Civil
utilizando-se como apoio às contribuições de diversos autores sobre o assunto, assim como,
com base no entendimento jurisprudencial.

Palavras-chave: abandono afetivo; responsabilidade civil; indenização; família.

1 INTRODUÇÃO

A compreensão da família no Direito, ao longo da história da humanidade, foi sendo


modificada, a família que até então era patriarcal e matrimonial, deu espaço para novos arranjos
familiares que passaram a ser amparados pela legislação. Dessa forma, o Direito foi avançando
no sentido de garantir mais proteção nas relações familiares, principalmente para os mais
vulneráveis, a saber, a criança e o adolescente.

É notável que a Constituição Federal, Código Civil e o Estatuto da Criança e do


Adolescente inauguraram uma série de princípios norteadores na proteção da criança e do
adolescente nas relações familiares que resultam em diversos deveres parentais dos pais em
relação aos seus filhos, imprescindíveis na formação física e psicológica.

1
Graduanda no curso de Direito pela Universidade Católica de Pelotas, endereço de e-mail:
nathanevnh@gmail.com.
2
Advogada, número da OAB/RS 24651 e endereço de e-mail ana.martins@ucpel.edu.br.
201
Nesse sentido passou-se a analisar os deveres de cuidado que abrangem as necessidades
básicas da criança, como alimentação e saúde. Além disso, o desenvolvimento saudável da
criança envolve os deveres de cuidado, educação e convivência. Nesse contexto, cresce a
discussão na doutrina e jurisprudência se a ausência na prestação desses deveres configura
abandono afetivo.

Diante dessa realidade, o trabalho em questão tem por problema de pesquisa analisar se
a omissão afetiva do pai ou da mãe, manifestada pelo seu distanciamento na vida do filho,
gerando a ausência dos cuidados necessários configura um dano moral suficiente para ensejar
a responsabilização civil.

Cumpre esclarecer que o objetivo deste artigo apresenta grande relevância social, visto
que os filhos menores necessitam, não somente do apoio financeiro dos pais, sendo necessário
que ambos pais prestem o apoio emocional, psicológico e social aos filhos, contribuindo para
uma vida digna da criança ou do adolescente, assim assegurado pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente, Constituição Federal e o Código Civil.

Desse modo, a fim de elucidar a questão, o presente trabalho foi dividido em três
momentos. Primeiramente, se faz um estudo do conceito de abandono afetivo, da importância
da afetividade, tendo como escopo os princípios da dignidade humana, da solidariedade
familiar, da afetividade e da convivência familiar, consubstanciados no Código Civil de 2002,
Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), em
razão da vinculação destes com a proteção da criança e dos adolescentes nas relações familiares.

O segundo momento é destinado ao estudo geral sobre a responsabilidade civil no que


concerne ao pressuposto de incidência e das funções a que se destina.

Por fim, serão analisados os julgados mais recentes do Superior Tribunal de Justiça,
considerando seus posicionamentos favoráveis e desfavoráveis.

Em suma, após o conteúdo exposto, serão feitas as considerações finais.

2 IMPORTÂNCIA DA PROTEÇÃO DO AFETO

Em muitos casos envolvendo a separação de um casal com filhos menores, uma das
partes permanece na residência que era do casal residindo com os filhos, enquanto o outro acaba
por residir em outro local e exerce a convivência com os filhos nos finais de semana alternados.

202
O tempo passa, e o ex-companheiro inicia a sua vida com outra família, a convivência com os
filhos passa a ser cada vez mais raro até que um dado momento, deixa de existir.

Esse é o cenário que retrata muitos casos de relações familiares que se rompem com o
término de uma vida conjugal e consequentemente afetam a vida dos filhos de maneira
negativa.

Inegavelmente, em muitos casos, essa relação familiar jamais existiu, quando todo o
complexo de obrigações atinentes à autoridade parental é exercido por somente um dos pais,
sendo em grande parte dos núcleos familiares, exercido pela mãe, sendo que a responsabilidade
paterna é vista como subsidiária (DEMARI, 2019, p. 120).

Sob uma perspectiva legislativa, tanto a Constituição Federal, Estatuto da Criança e do


Adolescente, como o Código Civil, tutelam os direitos da criança e do adolescente,
estabelecendo princípios primordiais para atender o seu pleno e sadio desenvolvimento, capazes
de ensejar uma série de obrigações originadas pelos deveres parentais aos genitores, quais
sejam, princípio da dignidade da pessoa humana, da convivência familiar, da afetividade e do
melhor interesse da criança e do adolescente.

A vulnerabilidade do filho menor, não emancipado, é simultaneamente um dever e um


limite na responsabilidade dos pais. Como dever faz surgir deveres concretos de tutela por parte
dos pais, que devem garantir ao filho menor a proteção e os cuidados necessários para o seu
melhor desenvolvimento, em razão da impossibilidade desse filho suprir sozinho as suas
necessidades, gerando sua total dependência com relação aos seus genitores. Cabe ressaltar que
o exercício da autoridade parental não se restringe a prestação de alimentos, mas também é a
assistência educacional, cultural, afetiva e moral (MADALENO, 2022, p. 789).

Em termos comparativos, o princípio da afetividade não se confunde com o sentimento


do afeto, porquanto, o princípio está atrelado como um dever imposto aos pais em relação aos
filhos, independentemente de existir sentimento de afeto na relação familiar. Nesse sentido, a
afetividade é vislumbrada como um dever de assistência, cuidado, convivência e atenção dos
pais para com o filho menor decorrente do poder familiar que estes exercem, sendo este um dos
princípios de maior importância no direito de família (LOBO, 2022, p. 78-79).

Mesmo não previsto expressamente na Constituição Federal, o princípio da afetividade


tem como pilar a dignidade da pessoa humana, servindo como norte para a proteção das relações
familiares e dos direitos inerentes a cada pessoa, em especial à criança e ao adolescente. Tal
princípio é um desdobramento lógico de diversas normas estabelecidas no Código Civil e no
203
Estatuto da Criança e do Adolescente ao que se refere à obrigação dos pais em garantir o
desenvolvimento saudável do filho menor (DINIZ, 2022, p. 17).

Desse modo, a atual Constituição Federal, que foi criada com fundamento na dignidade
da pessoa humana, conforme indicado no art. 1º, inciso III, possui dispositivos específicos para
a proteção à dignidade humana do infante, por meio da imposição de deveres a sociedade, a
família e ao próprio Estado, como afirma o art. 227 que assegura à criança “com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”. Ainda,
impõe-se como dever proteger a criança de qualquer forma de “negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão”. (LOBO, 2022, p. 61).

Nesse sentido, a questão do abandono afetivo e a possibilidade de responsabilização


civil dos pais é um tema novo e que trouxe diversas controvérsias envolvendo a possibilidade
ou não de condenação dos pais. Como bem sustenta Flórido (2021, p. 36) conceituar o que se
compreende de abandono é difícil, em decorrência de ser um tema controvertido no direito,
entretanto, ao se filiar nos entendimentos da doutrina e da jurisprudência é possível indicar que
o abandono afetivo se manifesta como um descumprimento dos deveres de cuidado, educação,
companhia, sendo imposições decorrentes da relação de filiação e que são atribuídas, por lei,
aos pais.

Imperioso ressaltar que a convivência familiar é de suma importância no


desenvolvimento do filho porquanto a personalidade da criança se aperfeiçoa com o convívio
do pai e da mãe, sendo que este convívio não se encerra durante os estágios iniciais da vida da
criança, ela se prolonga como necessária até no desenvolvimento da personalidade do
adolescente, cabe destacar ainda, que essa necessidade de convívio é em relação a ambos os
pais, não podendo ser suprida pelo papel de apenas um dos genitores (DILL, CALDERAN,
2011).

O Comitê Científico do Núcleo Ciência Pela Infância, em 2016, abordou um estudo


sobre a temática da “importância dos vínculos familiares na primeira infância”, nesse estudo
foi abordado que, nos primeiros estágios de vida, a criança manifesta uma maior dependência
afetiva em relação aos genitores, primordial para o crescimento infantil, fruto da natureza
humana, a criança busca uma necessária proteção pelos genitores, sendo a base de segurança
em que a criança se apoia, nesse caso, a ausência ou a fragilidade nesse contato dos pais com o
filho podem gerar comprometimento no desenvolvimento sadio da criança, podendo gerar

204
“problemas emocionais, comportamentais ou cognitivos futuros”, nesse sentido, cita-se trecho
do estudo em destaque:

Como estratégia de sobrevivência, a criança possui uma tendência natural a buscar


vincular-se afetivamente a um cuidador, principalmente em situações de estresse. Para
se desenvolverem plenamente, as crianças devem ter não apenas suas necessidades
básicas supridas, como alimentação, higiene e proteção física, mas também suas
necessidades de conforto e segurança emocional atendidas.

Em artigo elaborado pelas psicotécnicas Mariana A. de Villalba Alvim e Glória F.


Quintela, intitulado “A criança abandonada” (1959), as autoras indicam as diversas
consequências trazida pelo abandono no desenvolvimento emocional do ser humano,
explicando que a criança manifesta na fase adulta os transtornos oriundos da ausência da relação
afetiva com os seus genitores, indicando problemas como o retardo, prejuízos na personalidade
e nas próprias relações afetivas, o adulto pode ainda criar o sentimento de inferioridade e de
insuficiência.

Nesse contexto, é imperioso destacar que, independentemente do sentimento de amor


do pai para com a sua prole, o dever de afetividade vigora, como uma imposição do dever
parental, necessário para o pleno desenvolvimento humano da criança e do adolescente, é nesse
sentido que, Rodrigo da Cunha Pereira, citado por Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa (2015, p.
403) , assevera que o afeto não está atrelado a subjetividade do indivíduo, porquanto, não se
resume a um sentimento de amor, mas sim, por ações de cuidado e proteção. O autor ainda cita
que os alimentos imprescindíveis para o crescimento saudável da criança não são somente
aqueles para o corpo, mas também para a alma, oriundo do afeto.

Nesse sentido, diante de uma omissão parental por parte dos genitores, insta discutir a
configuração de um ato ilícito, porquanto, os deveres parentais são estabelecidos por lei, e se
essa omissão é capaz de gerar a responsabilidade civil e a consequente indenização por violação
a personalidade da criança.

Dessa forma, se faz importante abordar o instituto da responsabilidade civil no que


concerne aos seus pressupostos de incidência e suas funções.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL

A responsabilidade civil, positivada no Código Civil, sobretudo no art. 186, disciplina


que será ato ilícito, toda ação ou omissão, que viola um direito causando um dano, e no mesmo

205
liame, o art. 927, disciplinará que aquele que comete ato ilícito e causa um dano deverá ser
responsabilizado, gerando a consequente obrigação de reparar o dano.

A função principal da responsabilidade civil é a reparação de danos, entretanto, diante


de uma visão moderna da responsabilidade civil, são atribuídas outras funções, além da
reparatória, e que hoje, ganham cada vez mais relevância na jurisprudência e na doutrina, como
ferramentas que visam desestimular a prática de atos ilícitos e assim evitar que lesões sejam
cometidas, trata-se da ‘’multifuncionalidade’’ da responsabilidade civil, conforme destaca
Netto (2022, p. 119).

Não basta, portanto, uma responsabilização somente compensatória, no sentido de


atenuar a dor sentida por aquele que sofreu um dano. Isso é uma ideia clássica da função da
responsabilidade civil. Hoje, é necessário pensar em um caráter punitivo, além de
compensatório, no sentido de evitar que aquele que cometeu um ato injusto, volte a repeti-lo.
Nessa perspectiva, aquele que está por transgredir uma norma, conscientemente, saberá que a
sua conduta lesiva poderá ensejar em uma responsabilidade civil, lhe causando prejuízos que
não compensariam a sua conduta lesiva ou quaisquer benefícios originários dessa ação ou
omissão (ROSENVALD, 2022, p. 84).

Na hipótese de danos que afetam o emocional, não haverá a possibilidade de haver uma
função reparatória, pois o dano não é patrimonial, não admitindo a reintegração ao seu estado
anterior, nesse caso, a indenização possuirá função compensatória, nas lições de Netto (2022,
p. 120) a função está atrelada em ‘’atenuar a dor da vítima’’, pois impossível reverter as
consequências do ofensor que ocorreram no passado.

Nesse cenário, cabe ao direito um olhar atento a danos futuros ou potenciais, cabendo
não somente uma tutela repressiva, mas também preventiva, utilizando-se da responsabilidade
civil como uma ferramenta para evitar que condutas lesivas ocorram ou continuem ocorrendo.

A prevenção, ganha relevância tanto como uma forma de desestimular o ofensor de


repetir os seus atos, como desestimula que outras pessoas venham a causar um dano devido a
prática do mesmo ato.

Desse exposto, cabe destacar que o Direito, diante das diversas mudanças sociais, tem
se complementado, seja com outras ciências, seja nos próprios ramos do direito, nessa direção,
destaca-se a comunicação entre os próprios ramos do Direito Civil, nessa linha pode ser
mencionado o Direito das Obrigações e o Direito das Famílias, porquanto das relações parentais
e conjugais podem surgir responsabilidades civis (TARTUCE, 2022, p. 608).
206
Assim, considerando o instituto da responsabilidade civil e a importância da afetividade,
ora expostos, toma-se como necessário a análise no campo jurisprudencial acerca do tema.

4 ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

No campo jurídico a questão do abandono afetivo e a possibilidade de responsabilização


civil dos pais tem sido objeto de análise do Judiciário, trazendo diversas controvérsias
envolvendo a possibilidade ou não de condenação dos pais, havendo entendimentos conflitantes
entre os tribunais, principalmente, envolvendo os entendimentos do Superior Tribunal de
Justiça.

Pode ser concluído que, atualmente, existe divergência do Superior Tribunal de Justiça
envolvendo a responsabilidade civil no abandono afetivo, conforme a análise dos julgados ora
expostos, percebe-se que a 4ª turma tem entendimento de que o afeto não é um dever parental
e que abrir espaço para essa possibilidade é ‘’mercantilizar a relação familiar’’ (Recurso
especial 1.087.561-RS). De outra forma, a 3ª Turma, em julgados mais recentes, considerou o
cabimento da responsabilidade civil pelo abandono afetivo em decorrência de violação ao
princípio da dignidade humana dos cuidados indispensáveis para o desenvolvimento da criança
e do adolescente (Recurso Especial. 1.887.697).

Toma-se como importante para um trabalho envolvendo o tema do abandono afetivo e


a responsabilização civil dos pais trazer os julgados mais recentes do STJ no período de 2017
a 2023, tendo em vista ser uma importante fonte de interpretação as decisões judiciais dos
tribunais brasileiros, e com a finalidade de demonstrar como o tema ainda é objeto de
controvérsia e como vem se desenvolvendo os entendimentos jurisprudenciais.

Conforme se extrai do art. 1.632 do Código Civil o término do vínculo conjugal não
influencia nos direitos protegidos ao filho menor, subsistindo mesmo com a separação dos pais,
daí a tendência de se afirmar que ‘’ex-filho’’ não existe no ordenamento jurídico, pois, diante
da separação dos pais, estes manterão seus deveres e direitos em relação ao filho, inclusive no
que se refere à convivência familiar que, apesar de ser alterada, não se exclui.

A partir desse fundamento restou o entendimento da 3ª Turma do Superior Tribunal de


Justiça, em 2021, no REsp n. 1.887.697/RJ.

207
No caso em análise, a relação paterna foi rompida diante do término da relação conjugal
dos pais, deixando o pai de participar da educação, criação e desenvolvimento de sua filha
quando esta contava com 06 anos de idade.

Em uma análise inicial, os julgadores entenderam que é cabível a responsabilização civil


dos pais pelo abandono afetivo por constituir um ato ilícito , não sendo suficiente a obrigação
de prestar alimentos ou eventual destituição do poder familiar e concluíram que pela análise
dos autos, estavam presentes os pressupostos da responsabilidade civil, principalmente, em
relação ao nexo de causalidade, porquanto, por meio de laudo pericial foi possível provar que
a ausência paterna originou uma série de prejuízos na formação psicológica e física da filha.

O Tribunal ponderou que se a paternidade é ‘’exercida de maneira irresponsável,


desidiosa, negligente, nociva aos interesses da prole’’, ocasionando dessas ações ou omissões
problemas emocionais ou físicos, deve ser reconhecido a responsabilidade civil dos pais pelo
abandono afetivo.

Nesse sentido, o julgado cita a pertinente lição de Rolf Madaleno:

A desconsideração da criança e do adolescente no campo de suas relações, ao lhes


criar inegáveis deficiências afetivas, traumas e agravos morais, cujo peso se acentua
no rastro do gradual desenvolvimento mental, físico e social do filho, que assim
padece com o injusto repúdio público que lhe faz o pai, deve gerar, inescusavelmente,
o direito à integral reparação do agravo moral sofrido pela negativa paterna do direito
que tem o filho à sadia convivência e referência parental, privando o descendente de
um espelho que deveria seguir e amar. E, embora possa ser dito que não há como o
Judiciário obrigar a amar, também deve ser considerando que o Judiciário não pode
se omitir de tentar, buscando de uma vez por todas acabar com essa cultura da
impunidade que grassa no sistema jurídico brasileiro desde os tempos em que as
visitas configuravam um direito do adulto e não como um evidente e incontestável
dever que têm os pais de assegurar aos filhos a convivência familiar, além de colocá-
los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão (CF, art. 227). (MADALENO, Rolf. Direito de Família. Rio de
Janeiro: Forense, 2018. p. 382).

Nesse sentido, a relatora Nancy Andrighi, asseverou que existem as figuras do ex-
marido e do ex-convivente, mas não existem as figuras do ex-pai e do ex-filho, dessa forma,
enfatizando a necessidade dos cuidados necessários do pai com a sua prole, e finalizou o seu
voto, proferindo a célebre frase ‘’amar é faculdade, cuidar é dever’’, originada do famigerado
recurso Recurso Especial nº 1.159.242 – SP.

Este julgado reafirma o entendimento de outros julgados já analisados pela 3ª Turma,


de que o abandono afetivo não está relacionado a obrigar um pai ou uma mãe a amar o seu filho,
mas sim, na responsabilização pela ausência injustificada do pai que, inegavelmente, enseja
208
para o filho menor prejuízos a sua formação, resultante da privação do cuidado, proteção e do
afeto negligenciado pelo genitor. Sustenta-se ainda, que o abandono afetivo não configura tão
somente um dano ao filho mas também, configura uma inobservância de um dever imposto por
lei, conforme pode-se visualizar tanto na legislação constitucional, como na legislação
infraconstitucional (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente).

Nessa ótica cabe destacar a posição doutrinária de Giselda Hironaka (2001, p. 2), nos
seguintes termos:

Tem me sensibilizado, nesta vertente da relação paterno-filial em conjugação com a


responsabilidade, este viés naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se
buscar indenização compensatória em face de danos que pais possam causar a seus
filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a
convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou
materna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da personalidade
humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a
dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.

O tema chegou novamente à 3ª Turma do STJ, no REsp 1981131-MS, que, em 2022


reafirmou a jurisprudência sobre a responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo para
fundamentar o dano moral indenizável ocasionado pela desistência de uma adoção quando, os
adotantes já haviam construído um vínculo afetivo sólido, diante do longo período de
convivência, o que resultou ao adotado dor, angústia e sentimento de abandono, sendo, portanto,
mantida a condenação dos pais a reparação dos danos.

De outro modo, a 4ª Turma entende que os deveres de cuidados, estabelecidos pela lei,
se referem apenas ao sustento, guarda e educação dos filhos, conforme disposto no art. 22 do
ECA, não considerando a afetividade como um dever jurídico. Assim, a ausência da afetividade
não gera o dever de indenizar, em razão de não configurar um ato ilícito, sendo este o
posicionamento adotado pela Turma desde que o tema chegou para apreciação, o REsp.
757.411-MG, de relatoria do Ministro Fernando Gonçalves.

Dessa forma, o REsp 1.579.021, de relatoria da Ministra Maria Isabel Gallotti, adotou a
posição seguida pela 4ª Turma ao não admitir a indenização pelo abandono afetivo. A relatora
destacou a possibilidade de estabelecer uma conexão entre a responsabilidade civil e o direito
de família e enfatizou que para a configuração da indenização é fundamental, dentre outros
requisitos, estarmos diante de uma conduta humana contrária à lei.

Diante do exposto, a relatora entendeu que o atual ordenamento jurídico não prevê um
dever jurídico específico relacionado à afetividade. Em vez disso, o regramento atual impõe aos

209
pais deveres de cuidado com base no sustento, guarda e educação dos filhos. Nesse sentido, a
exigência de cuidados afetivos foge do alcance do Judiciário, não sendo uma obrigação legal,
mas tão somente uma conduta esperada pela sociedade nas relações familiares.

Sob a mesma ótica, a relatora fundamenta que a indenização, nesse contexto, não
cumpre com nenhuma finalidade positiva, dessa forma a responsabilização civil não atingiria
qualquer de suas funções.

Em relação à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, cabe destacar o Recurso Especial


nº 1.087.561-RS, de relatoria do Ministro Raul Araújo que, em 2017, julgou o caso envolvendo
abandono material e afetivo.

No caso em análise, a criança viveu com o pai até os cinco anos de idade quando houve
alteração da guarda, passando a criança a conviver com a mãe. A partir de então, o genitor se
ausentou do convívio com o filho, deixando de contribuir tanto afetivamente quanto
financeiramente para o bem-estar da criança. Consequentemente, a criança foi privada de
condições adequadas de vida, enquanto os outros filhos do réu, provenientes de outro
relacionamento, desfrutavam de boas condições pela posição econômica favorável do genitor.
Pelas declarações das testemunhas e dos conselheiros tutelares ficou comprovado a ausência
paterna, tendo em vista que, o pai não comparecia nas visitas designadas nas dependências do
Conselho Tutelar.

Ficou evidenciado, ainda, que o abandono emocional e material paterno acarretou


consequências prejudiciais no desenvolvimento da criança. Nesse contexto, restou comprovado
que o pai, de forma injustificada e voluntária, negligenciava os cuidados em relação ao filho.

No entanto, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso, não


considerou o abandono afetivo como base para a condenação por dano moral, fundamentando
a condenação pelo abandono material.

É dessa forma, que, em muitos casos envolvendo pais que se negam a conviver com os
filhos, estes fundamentam a sua conduta omissiva com base na justificativa de que o Judiciário
não pode obrigar que alguém mantenha um vínculo afetivo, sempre relacionado ao sentimento
de amor, podendo somente a lei exigir a prestação do sustento.

No entanto, destaca-se trecho de artigo publicado pela advogada Cláudia Maria da Silva
que trata da indenização pelo descumprimento da convivência familiar (2004):

210
Não se trata, pois, de "dar preço ao amor" – como defendem os que resistem ao tema
em foco -, tampouco de "compensar a dor" propriamente dita. Talvez o aspecto mais
relevante seja alcançar a função punitiva e dissuasória da reparação dos danos,
conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e outros
que sua conduta deve ser cessada e evitada, por reprovável e grave.

Diante do exposto, torna-se vital buscar-se a responsabilização dos pais pelo abandono
afetivo, fundamentando-se no princípio da dignidade da pessoa humana com forma de garantir
o melhor desenvolvimento físico e mental da criança e do adolescente, sendo que a omissão
dos genitores, inegavelmente, importa em violação aos direitos de personalidade do indivíduo,
tendo em vista que ‘’[...] a formação moral e da personalidade do indivíduo se inicia no seio do
núcleo familiar’’ (MELO FILHO, 2015, p. 04).

Assim, conforme destaca Giselda Hironaka (2001, p. 29), a necessidade do diálogo entre
responsabilidade civil e direito de família será legítima quando se estiver diante do interesse
pela formação e liberdade dos filhos.

5 CONCLUSÃO

Conforme abordado, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 foram


incorporados no Direito Brasileiro diversos princípios que respaldam o Direito de Família,
nesse sentido foi destacada no trabalho os princípios que norteiam a proteção da criança e do
adolescente nas relações familiares, assim, o da dignidade da pessoa humana, da convivência
familiar, da solidariedade familiar, do melhor interesse da criança e do adolescente e da
afetividade.

No que diz respeito ao princípio da afetividade, foi destacada a importância de distinguir


o princípio em si do sentimento de afeto. Isso ocorre porque o princípio da afetividade está
relacionado ao dever imposto aos pais de prestar assistência, cuidado, convivência e atenção
aos filhos. Ou seja, mesmo que não exista afeto, os deveres permanecem, conforme estabelecido
nas normas do Código Civil, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Constituição Federal.
Esses deveres são desdobramentos das normas que visam proteger a dignidade humana.

É nesse contexto que, muitos doutrinadores e o próprio Superior Tribunal de Justiça


reconhecem o dever de afetividade dos pais, embasando-se nos deveres parentais estabelecidos
por lei, nesse sentido, os pais possuem o dever de cuidar os seus filhos, por meio de ações que
atendam as necessidades emocionais dos filhos.

211
No mesmo sentido, parte da jurisprudência tem caminhado na direção da
responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo, quando a ausência paterna ou materna é
voluntária e injustificada. Nesses casos, entende-se que a negligência afetiva configura um
descumprimento de deveres legais e que podem causar danos psicológicos e emocionais
significativos à criança, prejudicando o desenvolvimento.

De fato, essa posição não é unânime, é possível observar divergências jurisprudências


na definição do abandono afetivo. Alguns julgados que decidiram pela impossibilidade de
responsabilização civil fundamentam a afetividade de maneira divergente. Argumentam que a
Justiça não tem o poder de interferir no âmbito subjetivo dos pais e obrigá-los a amar seus
filhos, nesse sentido, confunde-se os deveres de afetividade com o afeto. No mesmo sentido é
sustentado que a compensação pecuniária significaria uma mercantilização do afeto, conforme
tem decidido a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que tem mantido decisões divergentes
da 3ª Turma do mesmo tribunal.

Essas divergências refletem diferentes interpretações e entendimentos acerca do tema e


podem variar de acordo com as perspectivas adotadas pelos magistrados e estudiosos do
direito.

Realmente, é forçoso afirmar que o Judiciário pode impor que um pai ame o seu filho,
pois o afeto é um sentimento subjetivo. No entanto, a lei pode exigir dos pais ações e
comportamento que visam proteger os direitos das crianças e adolescentes a um crescimento
saudável. Essas ações, ultrapassam o sentimento de afeto e abrangem ações objetivas nos
cuidados do filho a fim de proporcionar um desenvolvimento pleno.

Dessa forma, conforme indicado ao longo do trabalho, é reconhecido que a omissão


parental na vida do filho gera consequências prejudiciais ao desenvolvimento infantil. Nesse
sentido não basta o pai prover alimentos ao filho, os pais também têm a responsabilidade de
garantir os cuidados necessários na formação psíquica do filho. O sustento é uma parte das
obrigações inerentes à filiação, mas não é suficiente para garantir um desenvolvimento
adequado, sendo necessário o apoio emocional e educacional.

Certamente, é correto afirmar que a indenização por abandono afetivo não tem o poder
de apagar os danos causados, nem de trazer de volta o tempo perdido.

No entanto, a indenização pode desempenhar duas funções importantes da


responsabilidade civil: a função preventiva e a função punitiva-pedagógica.

212
Em relação a função preventiva, a indenização pode servir para evitar e conscientizar a
sociedade que a omissão com os deveres de afetividade pode gerar responsabilidade civil,
evitando assim, a repetição de casos de negligência. Quanto à função punitiva pedagógica, a
indenização por abandono afetivo pode servir para evitar que o causador do dano volte a ser
negligente, ao saber que será responsabilizado, assim, como, fazer com que esse genitor
reconheça a importância dos cuidados ao filho.

Entender de forma contrária é facultar a um pai o cumprimento de seus deveres legais


no cuidado do filho, uma vez que, diante de uma omissão não haverá qualquer punibilidade a
esse genitor. A ausência nos cuidados do filho deve ser compreendida como um ato ilícito, pois
viola a dignidade humana da criança e do adolescente.

Nessa senda, havendo o abandono afetivo de forma voluntária e injustificada, e


inexistindo a possibilidade de tentativa de aproximação entre o genitor e seu filho, deve o
Judiciário reconhecer a responsabilidade civil.

A responsabilidade civil não significará somente a compensação do filho pela ausência


do pai ou da mãe de sua vida e por todos os transtornos decorrentes dessa omissão, ela cumprirá
também suas funções de prevenção e educação para que o abandono afetivo não seja tolerado
pela sociedade. Portanto, a relação entre esses institutos evidencia a possibilidade de
responsabilidade civil dos pais pelo abandono afetivo.

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213
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2023.

215
A ORDEM NATURAL DOS PAPÉIS SOCIAIS FAMILIARES

Rafaela Peres Castanho1

RESUMO

O presente artigo trata de problemática atemporal, que permeia as relações sociais e as famílias
desde os séculos passados até os dias atuais, qual seja, a naturalização de padrões, papéis e
funções sociais. Justifica-se tanto pela relevância da temática, quanto pela constante indignação
desta autora quanto ao tema. A problemática central do trabalho pauta-se no seguinte
questionamento: qual é o fator determinante para designar os papéis sociais familiares? Para
tanto, o trabalho estrutura-se em três tópicos: primeiro, se falará das lutas das mulheres e
feminismos, depois, se estudará o patriarcado e as relações sociais e no terceiro ponto a análise
recairá especificamente sobre a maternidade.

Palavras-chave: famílias; papéis sociais; patriarcado; feminismos.

1 INTRODUÇÃO

A ordem natural. Esta foi a expressão escolhida para resumir esta escrita, que versará
sobre famílias e papéis sociais. Para adentrar tal discussão, se julga importante levantar algumas
considerações sobre termos como feminismo, gênero e patriarcado.

O movimento feminista, conforme se verá, traz o convite de mudar a ordem natural,


enraizada pelo patriarcado e repercutida pelas leis, as quais, muitas vezes, são carregadas de
ideais machistas e opressores, pois são frutos das relações sociais. Tais relações, por sua vez,
são experienciadas e vivenciadas, sobretudo, nas famílias, base da sociedade e núcleo que deve
ensinar e refletir as mudanças que se quer ver no mundo.

Quebrar a ordem natural. Não há outro objetivo que não este para a escolha desta escrita.
Parte-se do entendimento de que não há que se falar em universalismo de direitos em uma
sociedade tão diferente, desigual e opressora, de que não há que se falar em mudança legislativa,
se não se falar em mudança nas relações sociais e de não há que se falar em mudança nas

1Advogada com inscrição ativa junto a OAB/RS sob o n.º 119/968, doutoranda em Política Social e Direitos
Humanos pela Universidade Católica de Pelotas, mestre em Direito pela Universidade Federal de Pelotas e
especialista em Direito de Família e Sucessões pela Fundação Escola Superior do Ministério Público. E-mail:
rafaelaperescastanho@gmail.com.
216
relações sociais, se não se falar em quebrar a ordem natural.

Para tanto, este artigo foi dividido em três pontos: primeiro, se falará das lutas das
mulheres e feminismos, depois, se estudará o patriarcado e as relações sociais e no terceiro
ponto a análise recairá especificamente sobre a maternidade. Ao final, pretende-se entender
melhor a problemática central, qual seja: qual é o fator determinante para designar os papéis
sociais familiares?

2 LUTAS DAS MULHERES E FEMINISMOS

A questão de gênero nos cuidados familiares é o principal ponto deste artigo, razão pela
qual destina-se este primeiro item para falar sobre a luta das mulheres pela garantia de direitos
humanos e sociais, conceituando e abordando a importância do feminismo para a história das
mulheres.

Nota-se que, durante a escrita, pretende-se fazer referência ao termo mulheres, evitando
utilizar a palavra no singular, justamente para deixar evidenciada a pluralidade e diferenças
existentes entre elas. Isso porque, embora pertencentes ao mesmo sexo – aquilo que é biológico,
natural –, há diferenças de raça, classe social, idade, gênero – aquilo que é socialmente
construído –, dentre outras divergências. Usar o termo “mulher”, no singular, traz à tona o
modelo ideal, culturalmente enraizado, o qual, entretanto, o movimento das mulheres propõe a
extinção.

Adentrando no assunto “movimento das mulheres”, importante registrar alguns pontos,


especialmente quanto ao pré conceito e ao preconceito ao termo feminismo e,
consequentemente, a dificuldade na sua conceituação. Michelle Perrot aborda o assunto,
quando fala da dicotomia existente em relação à palavra feminista. Afirma a autora que, em
1872 o escritor francês Alexandre Dumas Filho manifestou-se publicamente dizendo que
feminismo era a doença de homens “efeminados”, que se utilizavam do termo para tomar
partido das mulheres adúlteras em vez de vingar a própria honra. Já oito anos depois, em 1880,
a sufragista francesa, Hubertine Auclert, declara-se, orgulhosamente, feminista (PERROT,
2019, p. 154).

217
Essas duas falas, antagônicas, são exemplos claros e concretos da polaridade e
dicotomia existentes em relação ao movimento feminista e a crença de que a ele só mulheres
devem ser adeptas e militantes. Ao revés, engana-se, entretanto, quem também pensa que todas
as mulheres sentem respeito e gratidão a este movimento. É possível observar que algumas
mulheres têm uma visão negativa, tanto do termo feminismo, quanto de outras mulheres se
intitulando feministas, ainda que elas concordem e acreditem em tudo o que as feministas lutam
e também acreditam (HOOKS, 2019, p. 54).

Há um preconceito, uma oposição, uma rechaça – explicados, talvez, pela falta de


aproximação e conhecimento do termo. Por isso, agora, se passará à conceituação, história e
definição da palavra feminismo – aqui, ainda, utilizado no singular.

Feminismo pode ser entendido como “o desejo por democracia radical voltada à luta
por direitos daqueles que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo
patriarcado” (TIBURI, 2021, p. 11). Ou, ainda, podem ser usadas diferentes vertentes para sua
definição, tais como, (i) uma doutrina que visa direitos sociais e políticos de forma igualitária
para homens e mulheres; (ii) um movimento para conquistar os referidos direitos; (iii)
classificação de mulheres como um grupo e com uma teoria própria e, ainda, (iv) uma crença
na necessidade de mudança social para aumentar o poder das mulheres (LERNER, 2019, p.
286).

Embora, segundo a visão de Gerda Lerner, a maioria das pessoas seja adepta às
definições (i) e (iii), para ela, o termo vai muito além de uma conceituação fechada, sendo
necessário fazer uma distinção entre “direitos das mulheres” e “emancipação das mulheres”. O
primeiro seria a luta por uma garantia de igualdade entre os sexos masculino e feminino,
concernentes a todos os aspectos da vida em sociedade, como direito igualitário em
oportunidades, decisões e acesso às instituições. Já o segundo diz respeito ao movimento de
libertação – das restrições opressivas impostas pelo sexo –, de autodeterminação e de autonomia
(LERNER, 2019, p. 287). Embora, para ela, o feminismo abranja as duas vertentes, a luta pela
emancipação antecede a pelos direitos.

Comunga-se da opinião da autora, uma vez que, antes de se tornarem sujeitos de direitos,

218
as mulheres eram meros objetos de relações jurídicas e sociais. Por isso, tão necessária a luta
pela emancipação, que visa a libertação e liberdade das mulheres para tomar as próprias
decisões, definir seus papéis sociais e conquistar a sua independência. Só que essa libertação
sugere e implica numa transformação de valores, teorias e costumes preexistentes – algo que
vai contra a lógica hegemônica tradicional e culturalmente enraizada, a dita ordem natural.

A lógica hegemônica diz respeito tanto ao androcentrismo, construído a partir e através


do patriarcado, quanto ao capitalismo: ambos sistemas de dominação e opressão. É nesse
contexto que surge o feminismo. E talvez seja por conta desse sistema econômico e político,
que “precisa transformar em excrescência e inutilidade tudo aquilo que o ameaça” (TIBURI,
2021, p. 29), que o feminismo tenha encontrado tanta resistência na sua aceitação por parte da
sociedade. O movimento feminista é, portanto, uma demanda real que organiza um perigoso
impulso à ordem dada como natural. É uma visão contra-hegemônica, ou seja, contra a ordem
existente e estabelecida como normal.

O feminismo vem confrontar diretamente essa lógica universal dos direitos humanos e
sociais, de modo a resgatar a dignidade existente em cada corpo que foi envolvido por um jogo
de poder (TIBURI, 2021, pp. 31; 39). Esses jogos de poder envolvem muitas formas de
opressão: quanto ao sexo, quanto à classe social, quanto à raça, quanto ao gênero. Essas
violências não podem ser hierarquizadas, mas devem, contudo, ser interseccionadas. Desse
modo, uma mulher negra, pobre e lésbica tem que enfrentar quatro tipos diferentes de opressão.
É o que se chama de interseccionalidade, ou seja, a existência mútua de invisibilidades e
discriminações que contemplam “não somente classe e gênero (…), mas também toda e
qualquer opressão que podem ser identificadas nas singularidades das experiências dos sujeitos
na vida social” (PIMENTEL, 2020, p. 04). Tratar a interseccionalidade dentro dos movimentos
de lutas das mulheres se mostra muito importante, ao passo que, como uma forma de controle
social, as mulheres foram estimuladas a reconhecer apenas uma área de diferença como
legítima: a presente entre homens e mulheres (LORDE, 2019, p. 247). Mas, como já
demonstrado, há muitas outras opressões pertencentes na sociedade, que devem ser legitimadas
e tratadas como essenciais, a fim de que se possa falar em mudança e avanço social.

O próprio feminismo, mesmo que seja “uma discussão de gênero, sexualidade e classes
219
sociais” (TIBURI, 2021, p. 29), já teve sua definição estritamente relacionada a uma “guerra
dos sexos”. Nos Estados Unidos, por exemplo, não é incomum que, ainda hoje, pessoas pensem
no feminismo como um “movimento que tem como objetivo central tornar as mulheres
socialmente iguais aos homens” (HOOKS, 2019, p. 48). Essa definição simplista faz crer que
os movimentos desconsideram os muitos outros fatores interseccionais que discriminam,
exploram e oprimem as mulheres. O que não é verdade e pode ser corroborado pela frase que
afirma que “os movimentos feministas deveriam ser sempre escritos no plural, de tanto que o
feminismo é plural e variado” (PERROT, 2019, p. 154).

Feminismos foram respostas aos acontecimentos e violações ocorridas ao longo da


história e iniciaram graças a mulheres que se dispuseram a lutar contra a ordem hegemônica
imposta pelo patriarcado, contra uma ordem injusta, que oprimia e violentava. A maior das
injustiças do patriarcado, ou a injustiça originária e que se repete a cada dia, é “não tornar
possível a presença das mulheres na história, nem permitir que elas ocupem algum espaço de
expressão na sociedade” (TIBURI, 2021, p. 94). As mulheres, centrais nos e aos eventos
históricos, foram marginalizadas, sendo-lhes negado, à época, contar a sua própria versão sobre
os acontecimentos que também lhes diziam respeito. A história das mulheres, portanto, foi
narrada por e para homens (LERNER, 2019, p. 284) - talvez, tenha sido aí, a origem do
androcentrismo.

De modo progressivo, os movimentos feministas receberam mais adeptas e militantes e


a partir da década de 1970 ganharam extensão e suporte popular, quando houve a reivindicação
da massa das mulheres pelo direito à livre maternidade (PERROT, 2019, p. 157). Através da
luta pela liberdade das mulheres aos seus corpos, às suas sexualidades e à maternidade – direito
de escolha, direito de prevenção, direito de planejamento – foi que os movimentos feministas
se expandiram. A partir daí a luta por direitos civis e políticos também tornaram-se
popularizados nestes movimentos. Atualmente, as marcas dos feminismos contemporâneos são
as mais variadas, mas as reivindicações pela libertação dos corpos e pelo direito de escolha –
nos mais variados âmbitos da vida em sociedade – ainda são pautas.

Os feminismos são, por assim dizer, convites a uma mudança radical e profunda nas
relações humanas e sociais. Uma mudança que visa romper barreiras de dominação, opressão e
220
submissão de diversos indivíduos. Uma mudança nas formas de se relacionar, de viver e,
sobretudo, de pensar e produzir o direito. Os feminismos são, portanto, um clamor à
universalidade dos direitos humanos e sociais – mas uma universalidade de fato, que seja
realmente universal, ainda que aplicada e pensada nas singularidades e diferenças de cada
indivíduo. E em que pese todos os avanços, ainda se faz necessário falar sobre para avançar
mais.

3 PATRIARCADO E RELAÇÕES SOCIAIS

Partindo da ideia de que os direitos humanos e sociais não são universais e que os
feminismos lutam, ainda hoje, para buscar essa universalidade, neste momento pretende-se
compreender de que forma as questões de gênero e, especialmente, o patriarcado influenciou e
ainda influencia nas relações sociais e na legislação brasileira. Para tanto, parece primordial,
antes de adentrar em qualquer discussão, traçar o conceito de gênero e patriarcado.

Gênero é “a definição cultural de comportamento definido como apropriado aos sexos


em dada sociedade, em determinada época; (…) é um conjunto de papéis culturais” (LERNER,
2019, p. 289). Os papéis masculino e feminino, que se tornaram hegemônicos e que deles se
esperam determinados comportamentos e aparências, decorrem, portanto, do gênero. Por isso,
“desde que fomos 'generificados', somos controlados social e domesticamente” (TIBURI, 2021,
p. 31). Diferentemente do sexo masculino e feminino, que são fatores biológicos, o gênero é
uma construção social.

Para além do sexo e do gênero, há o se que chama de sistema sexo gênero, expressão
apresentada pela antropóloga Gayle Rubin, e que pode ser conceituado como um sistema “que
distribui recursos de acordo com papéis de gênero definidos culturalmente; assim, o sexo
determina que mulheres devem ter filhos, e o sistema sexo-gênero afirma que elas devem criar
os filhos” (LERNER, 2019, p. 289).

Já o patriarcado é “um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições


que o feminismo busca desconstruir. Ele tem uma estrutura de crença firmada em uma verdade
absoluta que não tem nada de verdade” (TIBURI, 2021, pp. 28-29). Para Heleieth Saffioti,
“configura um tipo hierárquico de relação, que invade todos os espaços da sociedade e
representa uma estrutura de poder, baseada tanto na ideologia quanto na violência” (SAFFIOTI,
2015, p. 60). Na base do patriarcado está uma ideia, continuamente repetida, de “uma identidade

221
natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade
masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas
são aceitos” (TIBURI, 2021, pp. 28-29).

Observa-se, através de todas essas conceituações, que o patriarcado é tão inerente em


nossa sociedade que, muitas das vezes, pode-se adentrar nesse regime de exploração e de
dominação sem tomar consciência, perpetuando atitudes que reforçam seu ideal. O patriarcado
não é somente praticado por homens - assim como os feminismos não são lutas somente de
mulheres. “Ainda que [as mulheres] não sejam cúmplices deste regime [patriarcado], colaboram
para alimentá-lo” (SAFFIOTI, 2015, p. 108).

Gênero e patriarcado possuem estreita interseção, embora aquele seja mais amplo que
este, uma vez que “no patriarcado as relações são hierarquizadas entre os seres socialmente
desiguais, enquanto o gênero compreende também relações igualitárias. O patriarcado é um
caso específico de relações de gênero” (SAFFIOTI, 2015, p. 126). Além disso, a relação entre
ambos reside no fato de que gênero foi um termo adotado como arma na luta contra o
patriarcado, pois “utilizar a linguagem do gênero reforça a linguagem do civil, do público e do
indivíduo, uma linguagem que depende da supressão do contrato sexual” (PATEMAN, 2021,
p. 345). A condição das mulheres, portanto, não está predeterminada pela sua natureza
biológica, mas é resultado da invenção política e social – invenção esta originária do contrato
sexual, onde “os vínculos convencionados e universais do contrato estruturam a sociedade
moderna” (SAFFIOTI, 2015, p. 60).

Para Carole Pateman, a liberdade do homem e a sujeição da mulher derivam do contrato


original. Esse contrato, que se popularizou com a expressão contrato sexual, é, também, um
contrato social, pois cria o direito político dos homens sobre as mulheres, além de sistematizar
tal superioridade na esfera pública e, sobretudo, nas legislações (PATEMAN, 2021, p. 15; p.
31). Tão verdadeira é tal afirmação, que sob a ótica do Código Civil de 1916, vigente até janeiro
de 2003, os homens eram vistos como chefes das famílias e as mulheres casadas eram
consideradas relativamente incapazes, precisando, assim, da autorização e representação do
marido para tomada de decisões, o que só foi mudar em 1962, através do Estatuto da Mulher
Casada. Os filhos se submetiam à vontade e aos cuidados do pai – daí o advento do termo
“pátrio poder” – e a legislação civilista previa o tratamento desigual dos filhos concebidos
anteriormente ao casamento, que eram tidos como ilegítimos (ROSA, 2021, pp. 30-31),
mudança que só ocorreu com a Constituição de 1937.

222
No sistema normativo brasileiro, a Constituição de 1988 foi um verdadeiro avanço no
âmbito de direitos, incluindo os atinentes às relações familiares. Quase uma década e meia
depois, foi promulgado o atual Código Civil, vigente desde 2002. Ambas as legislações
inovaram ao garantir inúmeras prerrogativas, tais como: (i) previsão expressa de uniões estáveis
e famílias monoparentais como entidades familiares; (ii) igualdade entre homens e mulheres
em relação aos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal; e (iii) proibição de quaisquer
discriminações relativas à filiação.

Entretanto, mesmo com inúmeros direitos assegurados por lei, ainda hoje encontram-se
resquícios das épocas passadas em nossa sociedade, o que configura um grande óbice à
aplicação e à efetivação destes direitos. Durante séculos a sociedade foi marcada por um senso
comum de que famílias eram marcadas por “uma dedicação descompassada de um único
membro (...) em prol dos outros” (OLIVEIRA, 2020, p. 22) e, como visto, esse membro sempre
foi a mulher/mãe/esposa, a responsável pelas tarefas domésticas, pelos cuidados com os filhos
e, quando possível, inseridas no mercado de trabalho.

Tal situação reverberou tanto que, em um estudo realizado com meninos e meninas
brasileiros entre seis e quatorze anos de idade, constatou-se que enquanto 81,4% das meninas
arrumam sua própria cama, 76,8% lavam louça e 65,6% limpam a casa, apenas 11,6% dos seus
irmãos homens arrumam a sua própria cama, 12,5% dos seus irmãos homens lavam a louça e
11,4% dos seus irmãos homens limpam a casa” (OLIVEIRA, 2020, pp. 37-38).

Diante desses dados, inegável que o patriarcado ainda rege as relações sociais e os
papéis sociais que futuramente se desenvolverão são iniciados ainda na infância, no seio
familiar.

4 A MATERNIDADE COMO A ORDEM NATURAL DAS MULHERES

É possível, também, compreender a origem e a naturalização da função materna das


mulheres retrocedendo na história. A autora Marcia Tiburi, para explicar a situação, volta à
Grécia antiga e analisa a estrutura da vida social e política grega. Ela rememora que pólis está
na origem da palavra “política”, e se referia a cidade-Estado, reservado aos homens. Estes se
encontravam na Ágora, um espaço público de encontro entre os cidadãos, local em que diversos
homens se expressavam, discutiam, partilhavam ideias, enfim, exerciam democracia. Já o oikos
faz decorrer o termo “economia”, significava o território da casa, que era limitado às mulheres,
aos escravos e aos animais – nessas casas, havia o trabalho, a procriação e a sustentação da vida

223
(TIBURI, 2021, pp. 105-106). A partir daqui começa a separação entre o público e o privado,
enraizado na diferença entre gêneros, que coloca homens e mulheres, praticamente, vivendo em
mundos separados. Essa organização se fortaleceu e continua regendo, talvez em muitos lugares
e em muitas pessoas de forma inconsciente, a vida em sociedade atual.

Ao espaço privado, portanto, dava-se grande importância às mulheres, especialmente


aos seus corpos. Isso porque, a principal diferença entre homens e mulheres é, por óbvio, os
corpos, que além da matéria, possuem um viés histórico, físico, estético, político, ideal e
material – “a mulher se confunde com seu sexo e se reduz a ele, que marca sua função na família
e seu lugar na sociedade” (PERROT, 2019, p. 64). Dado esse pensamento, muitas mulheres
acreditavam que só estariam completas ao lado de uma figura masculina, seja o pai, seja esposo.
Entretanto, o ápice que algumas mulheres acreditavam ter alcançado, nada mais era do que um
estado constante de dependência – dependência jurídica, uma vez que as mulheres casadas eram
obrigadas a adotar o sobrenome do marido; dependência do corpo, pois naquela época havia o
pensamento de que quem ama, castiga, não sendo incomum a prática de atitudes agressivas
como correção de certos comportamentos; dependência econômica, uma vez que, como visto,
era o homem quem trabalhava e provia a casa; e dependência sexual, porque manter relações
sexuais era dever conjugal e a forma de as mulheres exercerem o direito à maternidade
(PERROT, 2019, pp. 47-48).

Além dessa dependência e violência vivida pelas mulheres casadas, houve muita
opressão, morte e, também, segregação entre as mulheres mães. As primeiras explicadas pela
falta de profissionalismo e pela brutal violência em que as mulheres eram submetidas na hora
do parto, o que fazia com que a taxa de mortalidade feminina fosse muito superior à masculina.
Por vezes, as gestantes nem chegavam a dar a luz, pois em alguns países que se autointitulavam
como preocupados com o controle de natalidade, havia larga prática de infanticídios e abortos,
meios coercitivos de regular nascimentos e taxa populacional.

Mesmo existindo esse lado da violência e segregação, a maternidade sempre foi atrelada
ao aspecto feminino das mulheres. O termo feminino foi inventado para “docilizar as pessoas
marcadas como mulheres” (TIBURI, 2021, p. 52), em contraponto aos termos feminismos –
porque, se de um lado, há forte crítica e preconceito às mulheres que se autodenominam

224
feministas, as mulheres femininas são vistas como dóceis, como aquelas que cumprem a dita
ordem natural, ao cuidar dos filhos e filhas. Há quem diga que a maioria dos casais não discute
a natureza do cuidado parental antes do nascimento dos filhos, porque pressupõe que esse
cuidado será de responsabilidade das mulheres (HOOKS, 2019, p. 206).

Os movimentos feministas, vistos no início da escrita, se opõem contra essa lógica,


naturalizada e enraizada nas sociedades, e luta por um mundo onde ser mulher não signifique
ter um papel social definido e naturalizado. Que cada uma de nós possa exercer o direito de
escolha sobre seu futuro. E que essas temáticas sejam, desde sempre, inseridas nos lares e
debatidas em família, pois é observando a prática de comportamentos padronizados que muitas
jovens crescem e, no futuro, aceitam imposições contra si próprias, mesmo que isso não reflita
verdadeiramente seus desejos. A curiosidade e insuficiência de discernimento para fazer um
juízo crítico sobre os fatos, fazem com que as crianças testemunhem, nos lares, práticas de
desigualdade. Ao crescerem, carregam a crença de que o papel masculino está associado ao
espaço público, em prover a subsistência da família e centralizar o poder, enquanto o feminino
é dócil, tudo aceita e se encarrega do cuidado da casa e dos filhos.

As famílias, que eram para ser núcleos onde as pessoas, seja por laços sanguíneos ou
afetivos, compartilhassem um ambiente saudável de apoio e cuidado mútuos, sofrem grandes
ataques da opressão sexista que tenta depreciar e distorcer sua função positiva. Correndo o risco
de ser, inclusive, assim resumidas: “[as famílias] existem como um espaço em que somos
educados desde o berço para aceitar e apoiar formas de opressão” (HOOKS, 2019, p. 71). É
preciso repensar as estruturas sociais e familiares, a fim de projetar um futuro mais igualitário,
questionando atitudes tidas como naturalizadas e colocando em evidência as práticas de
violações a direitos humanos e sociais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, o fator determinante para designar os papéis sociais familiares é a lógica
patriarcal que, ainda hoje, luta-se para romper. Uma lógica que faz crer que família é um meio
de doutrinar valores favoráveis ao controle hierárquico e à autoridade coercitiva, impondo
padrões baseados no gênero e esperando comportamentos como se fossem obrigações. Muito

225
se avançou e ainda muito se tem para avançar. O que se pretendeu fazer com este artigo foi
aclarar que a maternidade deve ser vista como uma escolha, não como uma experiência
compulsória ou fonte de exploração. Deve ser reconhecida como um trabalho relevante e
valioso, como um aprendizado constante e não como algo natural e esperado – pois nem sempre
o é. É preciso romper a normalidade, quebrar o ciclo de dominação e autoritarismo e criar
ambientes familiares antissexistas para que, daqui alguns anos, as problemáticas a serem
enfrentadas sejam outras.

REFERÊNCIAS

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Polen, 2019.


BRASIL, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Atlas da Violência 2021. São Paulo:
FBSP, 2021. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/publicacoes. Acesso em:
13 ago. 2023.
HOOKS, Bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história de opressão das mulheres pelos homens.
São Paulo: Cultrix, 2019.
LORDE, Audre. Idade, raca, classe e gênero: mulheres redefinindo a diferença. In: Pensamento
feminista: conceitos fundamentais. pp. 239-249. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.
OLIVEIRA, Ligia Ziggiotti de. Olhares feministas sobre o direito das famílias contemporâneo:
perspectivas críticas sobre o individual e o relacional em família. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2020.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2019.
PIMENTEL, Elaine. A segurança pública a partir de lentes interseccionais sobre raça, classe
e gênero. 2020. In: Argumentum, v. 12, n. 3, 2020.
ROSA, Conrado Paulino da. Guarda compartilhada coativa: a efetivação dos direitos de
crianças e adolescentes. 3. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.

SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular,
2015.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos. In:
Revista Crítica de Ciências Sociais. n. 48, 1997.

TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. 15. ed. Rio de Janeiro:
Rosas do Tempo, 2021.
226
“STRANGER THINGS” E DIREITO DE FAMÍLIA “IN STREAMING”:
EXPLORANDO AS RELAÇÕES ENTRE A SÉRIE E AS DINÂMICAS
FAMILIARES

Roberta Drehmer de Miranda2


Gabrielle da Silva Wilhelm3

RESUMO
A aclamada série Stranger Things, criada pelos irmãos Duffer, já tem conquistado milhões de
fãs ao redor do mundo com sua narrativa e personagens envolventes. Embora seja ambientada
em um cenário de ficção científica e elementos sobrenaturais, a referida série também aborda
questões familiares complexas que refletem desafios reais enfrentados pelas famílias, em
especial, na sociedade contemporânea brasileira. O presente artigo se dedica a um breve estudo
sobre as relações entre direito de família e a série Stranger Things, numa perspectiva de
pesquisa jurídica transdisciplinar, e analisando como esta retrata as dinâmicas familiares e os
temas relacionados ao divórcio, guarda dos filhos, adoção e responsabilidade parental. Através
da pesquisa bibliográfica e da análise dos dispositivos legais que dispõe sobre o tema, bem
como a partir da metodologia de pesquisa do Direito a partir da Arte, examinar-se-á como o
direito de família é representado e refletido na narrativa da série, bem como seus impactos sobre
as próprias relações familiares dos espectadores, oferecendo uma perspectiva jurídica sobre os
eventos fictícios apresentados.

Palavras-chave: Stranger Things; família; divórcio; poder familiar; adoção.

1 INTRODUÇÃO

O Direito de Família é uma área do Direito que trata das relações familiares e da relação
jurídica entre as pessoas, buscando a solução de conflitos. Essa disciplina abrange assuntos,
como casamento, divórcio, filiação, guarda dos filhos, adoção, alimentos, entre outros
(TARTUCE, 2023). A série Stranger Things, apesar de se passar em um contexto de ficção
científica e suspense, apresenta elementos que podem ser relacionados ao Direito de Família
brasileiro.

2
Doutora e Mestre em Direito pela UFRGS. Professora do Curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto
Alegre. Advogada membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões da OAB/RS (OAB/RS nº 58.609). E-
mail: robertadrehmermiranda@gmail.com.
3 Graduanda em Direito pela Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.

227
O objetivo deste artigo é analisar a relação entre o Direito de Família brasileiro e a série
Stranger Things, destacando aspectos relevantes da série e criando conexões com conceitos e
institutos jurídicos presentes no contexto da disciplina. Serão abordados temas como
casamento, divórcio, filiação, guarda compartilhada, alienação parental e adoção, explorando
como esses temas são tratados na série e como se relacionam com o ordenamento jurídico
brasileiro.

A pesquisa realizada para a elaboração deste artigo baseou-se em uma análise da série
Stranger Things, bem como na consulta de obras jurídicas especializadas em Direito de Família,
legislação brasileira aplicável e artigos científicos que abordam temas relacionados.

Assim, este trabalho se dedica, por meio de pesquisa bibliográfica e cinematográfica, a


um breve estudo explorando as relações entre série e as dinâmicas familiares no Brasil. A
finalidade é demonstrar e contribuir para uma reflexão mais ampla sobre a relação da ficção
com a vida real e a importância das relações familiares e dos desafios enfrentados pelas famílias
nos dias de hoje.

2 APROXIMAÇÕES ENTRE DIREITO DE FAMILIA E ARTE

2.1 Conceitos preliminares fundamentais.

O Direito é narração. Histórias vividas em famílias, que são traduzidas num mundo
objetivo que, nem sempre, corresponde à materialidade das situações vividas. Ou corresponde.
Nesse meio de narração de histórias, a simbologia da arte, na retratação das situações vividas,
forma parte do imaginário social (CASTORIADIS, 1982) e, igualmente, do imaginário jurídico
(OST, 2009).

Por muito tempo as narrações simbólicas foram retratadas pela literatura (SCHALET,
2016), para, depois, ser reproduzidas por imagens na ficção do cinema. Atualmente, numa
época digital em que as narrações não duram mais que um minuto em um vídeo instantâneo de
rede social, a ficção narrativa familiar foi transportada para o streaming, na mecânica da série
(história desdobrada em vários episódios, de modo a atrair e despertar no espectador a
“ansiedade” de imediatamente assistir o próximo “capítulo”, resultando no fenômeno da
“maratona”), tendo repercussão significativa no imaginário social e no mundo jurídico, via
interpretação e hermenêutica. Assim, cada vez mais as atrações in streaming exercem influência
sobre as formas em que percebemos e interpretamos o Direito de Família – em especial, o

228
Direito de Família brasileiro, país onde a representação familiar já existe na indústria do
entretenimento pela cultura da história de “novela”, vindo por penetrar diretamente nas relações
sociais familiares.

O Direito de Família no Brasil abrange um conjunto de normas e princípios que regulam


as relações familiares e os direitos e deveres dos seus membros. Este instituto está em constante
movimento, uma vez que nenhuma família é igual e, portanto, existe a necessidade de evolução
conjunta com as novas estruturas familiares.

Antigamente, as famílias, a maioria instituídas em zonas rurais, eram extensas,


hierarquizadas e patriarcais. Isso se dava, pois a prole necessitava representar força econômica
e produtiva (DIAS, 2016, p. 34).

Entretanto, a primeira modificação familiar chega juntamente com a revolução


industrial, onde as famílias migram para os centros urbanos e, logo em seguida, as mulheres
entram para o mercado de trabalho. Com a convivência das organizações familiares em espaços
urbanos e reduzidos, ocorre uma maior proximidade entre seus membros, resultando no
estreitamento dos laços afetivos. Dessa forma, as relações familiares passam a ser definidas
predominantemente pela afetividade existente entre seus integrantes (GARCIA, 2018).

No Brasil, era utilizado o modelo de organização familiar, onde o “chefe da família” era
o membro estabilizador do bem-estar social, integrante de uma organização familiar (ALVES,
2019). O instituto do casamento, durante os três primeiros séculos após a colonização, era algo
restrito a poucas famílias, pois era de alto custo e muito burocrático na Igreja, por ser religião
oficial do Estado. A outra parcela da população de baixa renda estabelecia uniões informais,
não reconhecidas oficialmente pela Igreja Católica. No entanto, tais uniões ilegais eram
toleradas pela Coroa Portuguesa devido ao seu potencial de contribuir para o aumento da mão
de obra disponível.
Após a Independência e a Proclamação da República, juntamente com o processo
industrial no Brasil, percebe-se o enfraquecimento da Igreja e a impossibilidade de se manter
casamentos baseados em relações insatisfatórias. Neste sentido, lentamente surgem novas
configurações familiares, como, por exemplo, filhos de relações extraconjugais. Rodrigo da
Cunha Pereira e Maria Berenice Dias assim explicam a evolução da família contemporânea:
A travessia para o novo milênio transporta valores totalmente diferentes, mas traz
como valor maior uma conquista: a família não é mais um núcleo econômico e de
reprodução, onde sempre esteve instalada a suposta superioridade masculina. Passou
a ser muito mais um espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor, e,
acima de tudo, o núcleo formador da pessoa e elemento fundante do próprio sujeito
(PEREIRA, 2003, p. 14).
229
Deste modo, pode-se sintetizar que, antigamente, a família era compreendida de forma
restrita, baseada no casamento civil e na filiação biológica. O casamento era considerado o
modelo único e exclusivo de formação familiar, e a filiação biológica era o critério determinante
para estabelecer os vínculos de parentesco. No entanto, com o passar do tempo, ocorreram
transformações significativas que ampliaram o conceito de família.

A partir da Constituição Federal de 1988, houve uma grande mudança na concepção de


família no Brasil e apesar desta garantir, por exemplo, a igualdade entre filhos, havidos ou não
dentro do casamento, até o advento do novo Código Civil de 2002, o Código Civil de 1916
estipulava uma estrutura da família patriarcal, matrimonializada, heteroparental e biológica.

Entretanto, o reconhecimento da pluralidade das formas de constituição familiar e da


união estável como entidade familiar trouxeram uma visão mais abrangente e inclusiva, por
parte, como já dito, da Constituição Federal. Além disso, a evolução da jurisprudência e a
aprovação de leis específicas também contribuíram para a ampliação dos direitos e proteção aos
membros da família.

2.2 Princípios Norteadores das relações familiares no direito brasileiro.

O Direito de Família no Brasil é pautado por princípios fundamentais que orientam a


interpretação e aplicação das normas. Esses princípios são essenciais para a promoção da
justiça, da igualdade e da proteção dos direitos individuais e coletivos dos membros da família
(DINIZ, 2018). É se suma importância analisar a Constituição em confronto com o Código
Civil, e vice-versa e, para tanto, deverão irradiar de forma imediata as normas fundamentais
que protegem a pessoa, particularmente aquelas que constam nos seus arts. 1º a 6º.

O princípio da dignidade da pessoa humana, presente no artigo 1.º, inc. III, da CF/19884
reconhece a dignidade intrínseca de todos os indivíduos, assegurando que as relações familiares
sejam pautadas pelo respeito à integridade física, moral e psicológica dos seus membros
(TARTUCE, 2007).

O princípio da afetividade, apesar de não estar disciplinado na Constituição Federal, já


é consolidado e apontado como o principal fundamento das relações familiares, dado o
surgimento das relações socioafetivas. Neste há a valorização dos laços afetivos e emocionais,

4
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa
humana [...].
230
reconhecendo que o amor, o carinho, o cuidado e o apoio mútuo são fundamentais para o
desenvolvimento saudável dos membros da família e para a estruturação familiar.

Já quando se trata de igualdade, é possível realizar três repartições deste mesmo


princípio: entre os filhos5, entre cônjuges e companheiros6 e na chefia familiar7. Em apertada
síntese, pode-se definir que este garante tratamento igualitário a todos os membros da família,
independentemente de havidos ou não dentro do casamento, gênero, orientação sexual, origem,
raça, religião ou qualquer outra forma de discriminação, promovendo a igualdade de direitos e
oportunidades.

O princípio da solidariedade familiar, presente no artigo 3.º, inciso I, da CF8, institui um


ambiente familiar de compreensão e cooperação, assim como o dever de assistência 9. Além
disso, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente10 coloca o interesse das
crianças e dos adolescentes como prioridade nas decisões relacionadas à família, considerando
sua proteção, desenvolvimento físico, emocional e educacional como fundamentais.

Por fim, mas não menos importante, um dos princípios que merece destaque também é
o da não intervenção ou da liberdade11 o qual comenta Daniel Sarmento como “o poder que a
pessoa tem de auto regulamentar os próprios interesses” (SARMENTO, 2004, p. 188).

Os princípios não se esgotam apenas aos supracitados, havendo outros também


alinhados com os valores constitucionais sendo aplicados pelo Poder Judiciário e orientando a
interpretação das normas jurídicas, sempre buscando a proteção dos direitos fundamentais e o
bem-estar dos membros da família.

3 A SÉRIE “STRANGER THINGS”: UM ESTUDO TRANSDISCIPLINAR

3.1 Contextualização e Principais Elementos do “Streaming”

A série Stranger Things, criada pelos irmãos Duffer, é ambientada na década de 1980
na fictícia cidade de Hawkins em Indiana. A trama se desenrola, ao longo de quatro temporadas

5
Art. 227, § 6.º, da CF/1988 e art. 1.596 do CC.
6
Art. 226, § 5.º, da CF/1988 e art. 1.511 do CC.
7
Arts. 226, § 5.º, e 226, § 7.º, da CF/1988 e arts. 1.566, incisos III e IV, 1.631 e 1.634 do CC.
8
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre,
justa e solidária [...].
9
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de
ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
10
Art. 227, caput, da CF/1988 e arts. 1.583 e 1.584 do CC.
11
Art. 1.513 do CC.
231
e com a quinta em produção, em torno de um grupo de crianças e adolescentes que se deparam
com eventos sobrenaturais e misteriosos após o desaparecimento de um de seus amigos, Will
Byers. Ao longo das temporadas, a série combina elementos de ficção científica, suspense,
horror e referências nostálgicas à cultura pop da década de 1980 (STRANGER THINGS, 2023).

Entre os principais elementos da série, destacam-se a amizade entre os personagens


principais, a busca pela verdade e a valorização dos laços familiares. A série retrata de forma
sensível e emocionante a importância das relações familiares na vida dos personagens,
explorando tanto as famílias tradicionais como as famílias escolhidas.

3.2 Família na narrativa fíctica e seu impacto no real

O tema da família está presente de forma central na narrativa da história. A série aborda
diferentes tipos de família e explora as dinâmicas familiares dos personagens, oferecendo uma
visão multifacetada e complexa das relações familiares e como isso afeta cada um dos
personagens.

Stranger Things retrata algumas famílias tradicionais, como a família Byers, que é
composta por Joyce, mãe de Will e Jonathan, e Jonathan, irmão mais velho de Will. A série
mostra o amor e a dedicação de Joyce em busca de seu filho desaparecido, retratando o vínculo
forte entre mãe e filhos e a importância do apoio familiar em momentos difíceis.

Além disso, a família Wheeler, composta pelos pais Karen e Ted, e pelos filhos Nancy,
Mike e Holly também é retratada na série. Embora em alguns momentos os relacionamentos
familiares dessa família possam parecer distantes ou desatentos, a série aborda também os
momentos de união e preocupação entre os membros da família.

Além das famílias citadas anteriormente, Stranger Things aborda o conceito de família
socioafetiva, representada pela relação entre Eleven e o xerife Hopper e, mais recentemente,
com Joyce (IBDFAM, 2022), bem como família pluriparental ou reconstituída, a qual é o caso
da personagem Max. Ademais, é tratado também de famílias monoparentais, como a de Dustin
e casos de tutela, como o de Eddie que possui o tio como tutor.

4 REFLEXOS DO DIREITO DE FAMÍLIA NA SÉRIE “STRANGER THINGS”

4.1 Casamento e União Estável

232
No contexto da série Stranger Things, o tema do casamento e da união estável é
abordado, por exemplo, na família de Mike Wheeler. O Código Civil disciplina o instituto do
casamento do artigo 1511 em diante, e da união estável no artigo 1723.

O casamento, segundo o artigo 1511 do Código Civil12 estabelece comunhão plena de


vida com base na igualdade de direitos e deveres. Além disso, são deveres dos cônjuges a
fidelidade recíproca, a vida em comum, a mútua assistência, o sustento, guarda e educação dos
filhos e o respeito e consideração mútua.13

Tal instituto é muito denso e logo e, infelizmente, não poderá ser abordado por completo
neste artigo. Entretanto, é importante abordar a respeito da natureza jurídica deste e Carlos
Alberto Dabus Maluf e Adriana Maluf apontam três correntes: a contratual, a institucional e a
eclética. Neste sentido lecionam os autores:

A teoria contratual aponta para a liberdade volitiva dos nubentes à celebração do


contrato de casamento, pois o principal elemento do casamento é o consentimento dos
nubentes.
À luz da teoria institucionalista (ou supraindividualista), o casamento é um estado, em
que os nubentes ingressam, que reflete uma relação jurídica nascida do acordo de
vontades cujas normas e efeitos se encontram preestabelecidas pela lei.
A teoria eclética congrega dois elementos: o volitivo e o institucional, “considerando
o casamento um contrato em sua formação, por originar-se do acordo de vontades, e
uma instituição em sua duração, em face da interferência do Poder Público e do caráter
inalterável de seus efeitos” (MALUF; MALUF, 2021, p. 102).

Além do casamento, embora a união estável não seja explicitamente abordada, alguns
personagens podem ser interpretados como vivendo sob o regime desta. Por exemplo, os
personagens Nancy Wheeler e Jonathan Byers que demonstram todos os requisitos necessários
para estabelecê-la, sendo eles: relação duradoura, pública e contínua ao longo da série,
compartilhando um comprometimento mútuo e uma convivência familiar.14 Ademais, ressalto
que de acordo com a Súmula 382 do STF15, não é necessária a coabitação para caracterização
da união estável.

12
Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos
cônjuges.
13
Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio
conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos.
14
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
15
Súmula 382, STF: A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do
concubinato. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudencia/sumariosumulas.asp?base=30&sumula=2488.
Acesso em: 26 jun. 2023.
233
É importante sinalizar que, a união estável deve ser reconhecida e respeitada,
equiparando-se aos direitos e deveres do casamento e não exige uma formalidade específica
para sua configuração, diferenciando-se do casamento civil, que requer um processo de
celebração e registro. Esta pode ser estabelecida de maneira natural, a partir da convivência
pública e do desejo mútuo de constituir uma família (GONÇALVES, 2015).

Em suma, no contexto da série Stranger Things, o tema do casamento e da união estável


é abordado de forma sutil e implícita em alguns relacionamentos familiares. As representações
proporcionam reflexões sobre a diversidade de formas familiares além de promover uma
analogia entre o contexto da vida real e a ficção da série.

4.2 Filiação biológica e afetiva na série

Filiação, derivada do latim filiatio, é a relação de parentesco na linha reta e em primeiro


grau, do filho em relação aos pais (PEREIRA, 2018). A série Stranger Things aborda de forma
interessante e complexa as questões relacionadas à filiação, explorando tanto a filiação
biológica quanto a socioafetiva. No contexto do direito brasileiro, esses dois tipos de filiação
são reconhecidos e protegidos, respectivamente pelo Código Civil e pelo STF.

A filiação biológica é estabelecida pela relação de parentesco consanguíneo, ou seja,


pelos laços de sangue entre pais e filhos. O artigo 1.59716 do Código Civil define que esta
filiação decorre da consanguinidade, ou seja, da relação de parentesco estabelecida pelo sangue.
Nesse sentido, a filiação biológica é determinada pela comprovação científica da relação
genética entre os indivíduos, como por meio de exames de DNA.

Na série, podemos observar exemplos de filiação biológica, como o caso de Joyce Byers,
mãe de Will e Jonathan Byers. A relação entre mãe e filhos é baseada no vínculo sanguíneo,
com os personagens compartilhando laços consanguíneos e direitos e deveres decorrentes dessa
relação.

Além disso, este tipo de filiação também é explorado por meio da personagem Eleven
(também conhecida como Jane). Ela descobre, ao longo da segunda temporada da série, sua

16
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo
menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução
da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por
fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar
de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial
heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
234
verdadeira origem e sua relação com sua mãe biológica, Terry Ives. Esse enredo retrata a
importância do reconhecimento da filiação biológica, assunto tratado no artigo 2717 do Estatuto
da Criança e do Adolescente18, como um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,
revelando os laços de sangue que podem afetar a identidade e o senso de pertencimento de uma
pessoa.

Por outro lado, a série também apresenta situações que evidenciam a filiação afetiva. A
filiação afetiva, também conhecida como socioafetiva, diz respeito aos laços de afeto, amor e
cuidado estabelecidos entre pais e filhos, independentemente dos laços biológicos. De acordo
com o artigo 1596 do Código Civil19, este estabelece o princípio da igualdade entre os filhos,
portanto, terão os mesmos direitos e qualificações.

Apesar desta não estar expressamente na lei, já há consolidação doutrinária e


jurisprudencial pelo STF no RE 898.060/STF20 a respeito do tema. Segundo Rolf Madaleno, a
prevalência da chamada “posse do estado de filho, representando em essência o substrato fático
da verdadeira filiação, sustentada no amor e no desejo de ser pai ou de ser mãe, em suma, de
estabelecer espontaneamente os vínculos da cristalina relação filial” (MADALENO, 2022, p.
579).

Em Stranger Things, a personagem Eleven ilustra um exemplo de filiação socioafetiva.


Ela desenvolve uma relação afetiva junto com xerife Jim Hopper e, posteriormente, com Joyce.
Ao longo da trama, desenvolve uma relação de familiar baseada no amor, cuidado e proteção.

Ao explorar tanto a filiação biológica quanto a socioafetiva, Stranger Things leva à


reflexão sobre a complexidade das relações familiares e da importância de reconhecer e
valorizar o afeto e o cuidado como elementos fundamentais na constituição de uma família.

4.3 Adoção e Poder Familiar

A adoção e o poder familiar também são temas abordados na série Stranger Things. A
adoção é um processo legal pelo qual uma pessoa ou casal assume a responsabilidade e os

17
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo
ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
18
BRASIL. Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras
providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.
19
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
20
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de
filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e
extrapatrimoniais”.
235
direitos parentais sobre uma criança, que não é seu filho biológico. Por sua vez, o poder familiar
refere-se ao conjunto de direitos e deveres que os pais têm em relação aos seus filhos, incluindo
a responsabilidade pela educação, saúde e bem-estar.

No Brasil, a adoção é regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) bem


como pelo Código Civil, os quais estabelecem os procedimentos, requisitos e princípios a serem
observados no processo de adoção. Segundo o ECA, a adoção visa garantir o direito
fundamental da criança à convivência familiar, assegurando-lhe um ambiente adequado ao seu
desenvolvimento físico, psicológico e emocional.

Na série da Netflix, o personagem Jim Hopper, no final da segunda temporada, adota


Eleven. Essa relação ilustra o processo pelo qual um adulto assume a responsabilidade parental
por uma criança que não é biologicamente sua. Embora anteriormente tenha sido citado este
mesmo exemplo como uma situação de socioafetividade, tal fato não deixa de, posteriormente,
ser formalizado no seriado, através de uma relação de cuidado, proteção e amor entre eles
evidencia a construção de um vínculo familiar sólido. É importante ressaltar que a principal
diferença entre os dois conceitos é que a filiação socioafetiva pode ser realizada tanto
judicialmente como extrajudicialmente, a adoção só pode ter seu vínculo declarado sob
sentença judicial.

No que diz respeito ao poder familiar, o Código Civil brasileiro estabelece que ambos
os pais têm igualdade de direitos e deveres em relação aos filhos. O poder familiar, descrito no
artigo 1634 do Código Civil21, envolve aspectos como a guarda, a educação, a saúde, a
representação legal e o dever de sustento. É importante ressaltar que, pela primazia do princípio
da igualdade entre os filhos, em casos de adoção, os adotantes adquirem o poder familiar sobre
a criança, assumindo todas as responsabilidades e obrigações parentais.

21
Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder
familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); I - dirigir-lhes a criação
e a educação; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos
termos do art. 1.584; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento
para casarem; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para
viajarem ao exterior; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento
para mudarem sua residência permanente para outro Município; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VI -
nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo
não puder exercer o poder familiar; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VII - representá-los judicial e
extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que
forem partes, suprindo-lhes o consentimento; (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014); VIII - reclamá-los de
quem ilegalmente os detenha; (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014); IX - exigir que lhes prestem obediência,
respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (Incluído pela Lei nº 13.058, de 2014);
236
No contexto da série Stranger Things, o poder familiar é explorado em diversas famílias,
representando a relação entre pais e filhos. Por exemplo, Joyce Byers e Jim Hopper são
exemplos de pais que exercem o poder familiar sobre seus filhos biológicos e adotivos,
respectivamente. Eles são responsáveis pela tomada de decisões importantes em relação à
educação, saúde e bem-estar dos filhos.

4.4 Guarda Compartilhada e Alienação Parental

Outro tema abordado na famosa série é a guarda compartilhada e a alienação parental.


Aquela, trata-se de um modelo de guarda em que ambos os pais têm a responsabilidade de
participar ativamente na criação e na tomada de decisões importantes em relação aos filhos,
mesmo após o fim do relacionamento conjugal. Por outro lado, a alienação parental é uma
prática prejudicial em que um dos genitores busca desqualificar e prejudicar a imagem do outro
genitor perante os filhos, interferindo negativamente na relação entre eles (MINISTÉRIO
PÚBLICO DO PARANÁ, 2023).

No Brasil, a guarda compartilhada é prevista na Lei nº 13.058/2014 22, que alterou o


Código Civil e estabeleceu a guarda compartilhada como forma prioritária de exercício do
poder familiar, sempre que possível e no melhor interesse da criança (VAN DAL;
BONDEZAN, 2018). Esse modelo de guarda visa garantir a convivência equilibrada e a
participação igualitária dos pais na vida dos filhos, proporcionando-lhes uma relação saudável
e contínua com ambos os genitores.

Na série Stranger Things, embora a guarda compartilhada e a alienação parental não


seja abordada de forma explícita, um exemplo pode ser a relação entre Joyce Byers e seu ex-
marido Lonnie Byers, o qual faz pequenas aparições durante a primeira temporada. Seus filhos,
Will e Jonathan, não o veem sempre afetando o comportamento dos mesmos e, após o
desaparecimento de Will, Lonnie faz de tudo para caluniar e desqualificar Joyce como mãe,
prejudicando mais ainda toda relação e estrutura familiar.

Deste modo, a série traz reflexões importantes a respeito sobre a importância da


presença equilibrada de ambos os pais na vida dos filhos e ressalta os danos causados pela

22
BRASIL. Lei 13058, de 22 de dezembro de 2014. Altera os arts. 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 da Lei nº 10.406,
de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e
dispor sobre sua aplicação. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2014. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13058.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.058%2C%20DE%2022,e%20dispor%20sobre%2
0sua%20aplica%C3%A7%C3%A3o.
237
alienação parental. Através desses temas, é possível perceber a relevância do respeito mútuo,
da comunicação efetiva e do interesse genuíno no bem-estar das crianças para a construção de
relações familiares saudáveis e harmoniosas.

4.5 Tutela
Por fim, mas não menos importante a tutela é uma instituição jurídica prevista no direito
brasileiro que visa substituir o poder familiar nas situações do menor cujos pais faleceram ou
foram suspensos/destituídos do poder parental. Nela o Estado outorga a alguém o dever de zelar
pela criação, educação e proteção da pessoa do tutelado. Essa figura é importante para garantir
o bem-estar e os direitos das crianças e dos adolescentes em situações excepcionais.

No direito brasileiro, a tutela é regulamentada pelo Código Civil, nos artigos 1.728 a
1.766. A tutela pode ser documental e testamentária, determinada pelos próprios pais; por
determinação legal, na ausência de manifestação dos pais; ou pelo juiz, quando não há nem os
pais nem parentes para manifestar vontade;

No contexto da série Stranger Things, a relação do personagem Eddie com seu tio, pode
ser analisada sob a perspectiva da tutela. Na trama, Eddie é uma criança órfã e mora com seu
tio, representando seu tutor, o qual, provavelmente foi instituído por determinação legal.
Embora a série não explore muitos detalhes, a relação entre Eddie e seu tio retrata a importância
de um adulto assumir a responsabilidade pela guarda e pelo cuidado de uma criança ou
adolescente em situação de vulnerabilidade.

É importante ressaltar que a tutela é uma medida excepcional e é aplicada quando não é
possível estabelecer a guarda compartilhada ou a adoção como soluções mais adequadas para a
proteção do menor. O objetivo da tutela é garantir que a criança ou o adolescente tenha um
ambiente seguro e acolhedor, proporcionando-lhe os cuidados necessários para seu pleno
desenvolvimento (VENOSA, 2022, p. 413).

5 CONCLUSÃO

O presente trabalho buscou analisar a relação entre o direito de família brasileiro e a


série Stranger Things, explorando temas como casamento, união estável, filiação, adoção,
poder familiar, guarda compartilhada, alienação parental e tutela. Ao longo do estudo, foi
possível identificar diversos pontos de convergência e reflexões sobre como a série aborda essas
questões à luz das leis brasileiras, apesar da série ter origem americana.

238
Em suma, a análise da relação entre o direito de família brasileiro e a série Stranger
Things revelou a maneira como a obra retrata e aborda diversos aspectos do contexto familiar,
conectando-os aos institutos e princípios jurídicos. A série serve como um ponto de reflexão
sobre as dinâmicas familiares, reforçando a importância do afeto, do respeito e da proteção dos
direitos das crianças e dos adolescentes.
Portanto, é fundamental realizar tais conexões a fim de relacionar e reconhecer os temas
estudados da disciplina de direito de família com o mundo fictício e cinematográfico.
Concluindo que estão intrinsecamente relacionados à sociedade e à cultura, e obras como
Stranger Things podem fornecer insights valiosos para refletir sobre as transformações e
desafios enfrentados pelas famílias no mundo contemporâneo.

REFERÊNCIAS

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Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para estabelecer o significado da
expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação. Diário Oficial da União,
Brasília, 22 dez. 2014. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2014/lei/l13058.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.058%2C%20DE%2022,e%20
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2023.

241
A CONTRATUALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA E A
VALORIZAÇÃO DA AUTONOMIA PRIVADA

Rochele da Silva Madruga1

RESUMO

Como o modelo de composição familiar sofreu diferentes mudanças o longo do tempo,


deixando de ser uma estrutura fortemente subordinada ao desejo do Estado para se tornar uma
referência de relação privada, baseada solidamente na autonomia da vontade e liberdade
individual, criaram-se novos paradigmas com o intuito de proporcionar aos indivíduos a
prerrogativa de constituírem as suas famílias e as regras que serão aplicadas as mesmas, da
forma que mais lhes convier. Diante disso, a ideia da contratualização no Direito de Família
vem justamente priorizar a autonomia privada, permitindo que cada grupo familiar auto
regulamente os seus interesses através da pactuação de acordo entre os membros envolvidos,
na busca da resolução de suas necessidades próprias, considerando a subjetividade de cada caso.

Palavras-chaves: família; contratualização; direito; autonomia; Estado.

1 INTRODUÇÃO

A estruturação atual da família e do Direito de Família Brasileiro vem suportando


relevantes e intensas modificações, sobretudo no que se refere às últimas décadas.
Com a evolução da sociedade foram despontando formas diversas de relacionamentos
familiares, gerando amplas possibilidades nas relações jurídicas das famílias atuais.
Como consequência disso, surge a necessidade de cada unidade familiar, possuindo suas
próprias demandas e formatações, construir modelos contratuais que, observando e respeitando
de maneira rigorosa o ordenamento jurídico brasileiro, atendam aos interesses subjetivos e
específicos próprios, considerando suas reais singularidades e prevenindo-se de conflitos
futuros.
A ideia da contratualização é justamente priorizar a autonomia privada que, cumprindo
rigidamente os preceitos jurídicos vigentes, garante uma intromissão cada vez menor do Estado,
que só irá intervir caso haja um desrespeito à dignidade humana das pessoas, à liberdade, à
igualdade entre homens e mulheres, ao melhor interesse de crianças e adolescentes, à proteção

1
Advogada. Formada pela Universidade Federal de Pelotas. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela
Faculdade Anhanguera. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pela Escola Damásio de Jesus. Inscrita
na OAB/RS sob o n.º 55.825, e-mail: rochelemadruga.adv@gmail.com.
242
dos vulneráveis, a qualquer tipo de violência ou sejam possibilitados tratamentos
discriminatórios.
Dentro dessas espécies de limitações não há dúvidas de que cada família tem sim, a
possibilidade de criar suas próprias regras e seu próprio direito, valorizando, por consequência,
a autonomia privada em detrimento à intervenção coercitiva e excessiva do Estado.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Diante das profundas e contínuas transformações que as famílias atuais estão


vivenciando, se faz necessário considerar a possibilidade ou não da contratualização nas
relações intrafamiliares, sob a perspectiva da autonomia privada e dos limites determinados
pelo Estado.
Hoje, a instituição familiar admite novos arranjos, baseados especialmente na união
constituída através do amor, do carinho e do afeto, ao contrário do período anterior à
Constituição Federal de 1988, onde as famílias tinham como principais características um
modelo único, constituído exclusivamente pelo casamento celebrado entre homem e mulher;
desigualdade entre cônjuges, já que o homem era o chefe da família; indissolubilidade do
matrimônio e desigualdade entre os filhos, onde o bastardo possuía um tratamento
extremamente diferenciado dos demais descendentes legítimos.
Juntos a esses novos modelos de famílias a contratualização tornou-se não apenas
necessária, mas imprescindível, possibilitando que os membros que as compõem possam criar
seu próprio Direito de Família, deliberando, dentro dos limites das normas legais, sobre
assuntos, regras e diretrizes que nortearão a convivência, através de um contrato particular.
Para um melhor entendimento do tema, necessário se faz a conceituação de alguns
elementos específicos, os quais serão descritos na sequencia.

2.1 Contrato

“Contrato é um acordo de vontades, criador de direitos e obrigações.” (PEREIRA,


2019).
A partir do conceito acima é possível a extração de duas importantes definições: contrato
é um acordo de vontades, ou seja, nele há a convergência de propósitos das partes envolvidas
e, criador de direitos e obrigações, onde os contratantes possuem regras a serem seguidas e
garantias a serem preservadas.

243
Necessário se faz acrescentar mais um elemento na sua conceituação, que é a
obrigatoriedade do contrato estar em conformidade com a lei, e, neste momento, é observada a
intervenção estatal se sobrepondo à autonomia privada.

2.2 A Contratualização no Direito de Família

A contratualização no Direito de Família é, essencialmente, a definição pelo próprio


membro ou grupo familiar, de regras de convivência que deverão ser seguidas, para uma relação
mais harmônica, respeitando as peculiaridades de cada indivíduo e evitando ao máximo
conflitos que possam surgir em razão delas.
Com isso, o espaço de atuação do Estado frente à autonomia privada, tornou-se cada
vez mais ínfimo, embora necessário, intervindo apenas para garantir a proteção dos indivíduos,
em especial das crianças e adolescentes, resguardando a vontade do grupo familiar.
Assim sendo, o Direito de Família possui uma característica muito particular, já que
regula as relações privadas sob a ética familiar, entretanto, é alvo de normas de interesse de
ordem pública, submetendo-se, quando necessário, à intervenção estatal.
Alguns direitos, por serem intransmissíveis, irrenunciáveis, irrevogáveis e
indisponíveis, não são passíveis de serem contratualizados, sob pena do interesse privado se
sobrepor aos direitos fundamentais, violando a dignidade da pessoa humana. Como exemplo, é
possível citar a irrevogabilidade do reconhecimento de filho, a proibição de renunciar ao direito
de requerer o estado de filiação, a proibição da cessão do poder familiar e a irrenunciabilidade
do direito aos alimentos.

2.2.1 Contratos Familiares em Espécie

De forma mais objetiva e simplificada, serão caracterizadas a seguir, algumas espécies


de contratos familiares que podem ser ajustados, sem prejuízo dos membros ou do grupo
familiar fazerem adaptações e criarem diretrizes e regras, conforme suas necessidades
particulares, considerando sempre como base o respeito ao ordenamento jurídico brasileiro.

2.2.1.1 Contrato pré-nupcial

O contrato pré-nupcial ou pacto antenupcial está previsto nos artigos 1.653 a 1.657, do
Código Civil. Ele é considerado um negócio jurídico solene vez que necessita da observância
de uma forma prescrita em lei para ter validade.

244
Para isso, o contrato pré-nupcial possui como requisitos a sua elaboração através de
escritura pública, o registro no cartório de imóveis do local de domicílio dos cônjuges, caso
existam imóveis de propriedade dos mesmos.
Importante ressaltar que este tipo de contrato possui sua eficácia sujeita a uma condição
suspensiva, ou seja, somente ocorrendo de fato o casamento, o instrumento contratual produzirá
os seus efeitos.
No pacto antenupcial, os nubentes podem estabelecer regras patrimoniais, como regime
de bens, doações entre cônjuges, assim como administração de bens particulares. Entretanto,
atualmente este tipo de contrato tem admitido a adoção de normas que versam sobre direitos
existenciais como no caso, por exemplo, de estipulação de multa nas hipóteses de traição ou
violência doméstica, regras sobre disciplinas e cuidados com os filhos, acordos sobre relações
sexuais, dentre outras.
Esta espécie de pacto vem a ser a mais comum no direito brasileiro, possibilitando que
as partes possam moldar o casamento aos seus gostos e as suas necessidades.
“A convenção antenupcial é um contrato solene e condicional pelo qual os cônjuges
dispõem de um regime de bens que vigorará entre si após o casamento.” (GONÇALVES, 2018).

2.2.1.2 Contrato pós-nupcial

O contrato pós-nupcial ou pacto pós-nupcial é o acordo de vontades celebrado entre os


cônjuges após a efetivação do casamento.
Regulado pelo artigo 1.639, §2.º, do Código Civil e no artigo 734, do Código de
Processo Civil, suas funções são basicamente duas: alteração do regime de bens escolhido
anteriormente e definição de um regime de bens caso não tenha sido escolhido no período
matrimonial.
O pacto pós-nupcial deve ser registrado em cartório de imóveis e averbado no assento
de casamento no cartório de registro civil das pessoas naturais, uma vez que há preocupação e
respeito ao direito de terceiros que, em havendo mudança no regime de bens e afetando
significantemente o patrimônio de um dos nubentes, possa trazer prejuízos ao patrimônio
alheio.
Esse tipo de acordo, semelhante ao pacto antenupcial, também possui o escopo de
definir diretrizes de convivência e regras patrimoniais durante o casamento ou a união estável,
a diferença é quanto ao termo inicial, já que o primeiro só produz efeitos no caso da alteração

245
do regime de bens com o trânsito em julgado da decisão judicial que o modificou e com relação
a terceiros, o termo inicial é a data da averbação no registro civil e imobiliário.
Como é possível perceber, este contrato é uma possibilidade favorável para os casais
que enfrentam dificuldades e problemas no decorrer de sua relação afetiva e não desejam o
rompimento, mas necessitam tornar o vínculo mais interessante e forte entre as partes, através
das regras presentes no instrumento pactual.

2.2.1.3 Contratos pré-divórcio ou prévios à dissolução da união estável

Podem ocorrer de algumas vezes o fim do casamento ou da união estável estar iminente
e ser irreversível.
Dessa forma, é importante que as partes envolvidas consigam estabelecer quais serão os
caminhos a serem percorridos até o momento do ponto final.
É fundamental que se estabeleçam regras para que o divórcio ou a dissolução da união
estável seja consensual, sobretudo quando há filhos em comum.
Nesse sentido, para um melhor entendimento do tema, Allesandra Melo (2017) e
Elisângela Marasca (2013), conceituam o contrato pré-divórcio nos seguintes termos:

Contrato pré-divórcio visa criar normas para que o divórcio (ou dissolução de união
estável) seja consensual, não litigioso ou com o mínimo de disputas processuais
possíveis. Também é permitido que o (futuro ex) casal faça acordos sobre
procedimentos nas ações de família, por exemplo, escolhendo caminhos processuais
que diminuam a duração das ações, estipulando a limitação de recursos. Os acordos
também podem beneficiar casais que são sócios em empresas, pois permitem que se
estabeleçam meios para que o fim do relacionamento não implique dissolução do
negócio e, portanto, a ampliação dos prejuízos econômicos. (MELO, 2017).

É possível ainda incluir questões de não realização de atos de alienação parental,


restrições de publicações em redes sociais, guarda de filhos, cláusulas de reajuste de
alimentos entre outros, são exemplos de contratos a serem realizados por um casal que
esteja prestes a terminar seu vínculo. (MARASCA, 2013).

2.2.1.4 Contratos pós-divórcio ou dissolução de união estável

Os contratos pós divórcio ou pós união estável têm por objetivo principal, restaurar,
sempre que necessário, os acordos ou decisões que foram estabelecidas no fim do
relacionamento afetivo entre as partes. Eles referem-se à manutenção de uma convivência

246
harmônica e pacífica entre indivíduos que mantêm, mesmo após o divórcio ou a união estável,
vínculos jurídicos comuns.
Como exemplo, é possível citar os cuidados com a prole, a gestão compartilhada de
negócios de titularidade dos ex companheiros ou cônjuges, pessoas portadoras de deficiência,
utilização de bens comuns, dentre outros.

2.2.1.5 Contratos ou pactos convivenciais

Previsto no artigo 1.725, do Código Civil e no artigo 226, §2.º, da Constituição Federal
de 1988, o pacto convivencial ou mais conhecido como união estável, trata-se de uma situação
de fato ou uma relação baseada nos seguintes preceitos: convivência pública, duradoura e
contínua e intenção de constituir família.
Este tipo de pacto pode ser formalizado antes, durante ou depois da união, por meio de
um instrumento particular (contrato simples) ou por escritura pública.
É facultativo que o mesmo seja levado a registro ou averbação, não sendo um dever dos
companheiros, que possuem apenas uma faculdade.
O regime de bens que regula o pacto convivencial é o da comunhão parcial de bens,
entretanto, havendo vontade dos conviventes, pode se utilizar outros regimes legais ou um
regime personalizado, o qual mescla regras dos regimes da comunhão universal, parcial ou
separação total de bens.
Quanto ao conteúdo, o pacto convivencial pode trazer questões tanto de ordem
patrimonial como de ordem pessoal.
Seus efeitos podem ser retroativos, desde que não exista fraude contra terceiros ou a
alguma das partes e seu termo inicial começa a valer com a caracterização da união estável.
Havendo vontade das partes, as mesmas poderão alterar o contrato posteriormente, não
necessitando de autorização judicial.
Conforme muito bem diferencia os institutos da união estável e do casamento, Rodrigo
da Cunha Pereira, 2020, dispõe o que segue:

O contrato de união estável é o contrato em que se disciplina os efeitos pessoais e


patrimoniais da união estável. Semelhante ao casamento em seu conteúdo, diferencia-
se dele em razão da forma. No casamento, exige-se formalidade e solenidade. Na
união estável não há exigência de formalidade, podendo ser, inclusive, tácito, como
acontece com a maioria das uniões estáveis que não fazem contrato escrito.
(PEREIRA, 2020).

2.2.1.6 Contrato de Namoro


247
O instituto do namoro pode se caracterizar de duas formas: a primeira é o chamado
namoro simples em que não se assemelha a nada à união estável, já que os requisitos básicos
da publicidade, duração, continuidade e intenção de constituir família não estão presentes.
Já o namoro qualificado é aquele que apresenta requisitos semelhantes à união estável,
porém, não há a intenção de constituir família.
Quanto às questões jurídicas, o namoro é diferente da união estável nos seguintes
aspectos: não existem deveres jurídicos (exemplo: alimentos, regime de bens, pensão por morte,
partilha e direitos sucessórios), não é considerável entidade familiar e não produz efeitos legais
de ordem patrimonial e existencial.
“O denominado contrato de namoro possui como objetivo evitar a incomunicabilidade
do patrimônio presente e futuro e assegurar a ausência de comprometimento recíproco.” (DIAS,
ano 2020).
Cabe ressaltar que a formalização do contrato de namoro não é vedada pelo
ordenamento jurídico brasileiro, porém o entendimento predominante é de que não possui
validade, sendo nulo de pleno direito.

2.2.1.7 Contrato de geração de filhos

Conforme Rodrigo da Cunha Pereira, 2020, o contrato de geração de filhos pode ser
conceituado da seguinte forma:

O contrato de geração de filho é o contrato expresso ou tácito, entre um homem e uma


mulher, ou entre duas pessoas para gerarem um filho, formando-se apenas uma família
parental, sem que daí decorra necessariamente uma relação amorosa ou conjugal. Com
o desenvolvimento das técnicas de engenharia genética tornou-se possível estabelecer
parcerias de paternidade/maternidade, por meio da consideração de um ato
reprodutivo, na maioria das vezes por técnicas de reprodução assistida. (PEREIRA,
ano 2020).

O contrato de geração de filhos é uma conquista recente para aqueles que desejam
constituir apenas uma família parental, ou seja, sem conjugalidade.
No Brasil, ainda não há legislação específica acerca da coparentalidade. Dessa forma,
interessante haver embasamento na legislação que regula a situação de casais divorciados, por
exemplo, quanto aos aspectos da pensão alimentícia e guarda de filhos.
É possível ainda que se diga que o contrato de geração de filhos traz uma segurança no
que tange às partes envolvidas, pois estabelecem regras que, se descumpridas, podem servir de
balizadoras para o ajuizamento de procedimentos judiciais.
248
Esse tipo de contrato assemelha-se aos casos de alguns pais divorciados, uma vez que,
mesmo não havendo mais relacionamento afetivo entre os genitores, o elemento afeto
permanece, fazendo com que os filhos possuam as mesmas condições de desenvolvimento
físico, moral e emocional.
Por fim, é possível perceber que o contrato de geração de filhos, é uma alternativa para
aquelas pessoas homoafetivas que possuem o desejo de firmar uma parceria de maternidade ou
paternidade, sem, no entanto, haver o ato sexual ou uma relação amorosa, propriamente dita.

2.2.1.8 Contrato de união poliafetiva

Diversas conceituações a respeito do contrato de união poliafetiva foram objetos da


doutrina brasileira e, em especial, são citadas abaixo, as significações dadas pelo jurista Camelo
(2020):

“O poliamor surgiu após o enfraquecimento do amor exclusivo, possibilitando que as


pessoas amassem e se relacionassem sexualmente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo.”
(CAMELO, 2020, p. 129).
“O poliamor é exteriorizado de diversas formas, cabendo ao Estado, observando o
princípio da pluralidade de entidades familiares, identificar a qual delas deve ser atribuído status
de entidade familiar.” (CAMELO, 2020, p. 134).
“A palavra poliamor significa amor por várias pessoas. Desse modo, as relações
poliamorosas são formadas consensualmente por, no mínimo, três pessoas” (CAMELO, 2020,
p. 127).
“A filosofia poliamorista considera incompreensível o fato de amar uma única pessoa
ao longo da vida” (CAMELO, 2020, p. 129).
“O consentimento de todos os envolvidos é pressuposto dos relacionamentos
poliamorosos, assim como a transparência e a solidariedade, que são deveres da boa-fé
objetiva.” (CAMELO, 2020, p. 134).
Neste mesmo sentido, seguem as conceituações dadas por Pamplona Filho (2020) e
Rodrigo da Cunha Pereira (2021).

A poliafetividade, por sua vez, decorre do poliamor qualificado pelo objetivo de


constituir família, ou seja, um núcleo familiar formado por três ou mais pessoas, que
manifestam livremente a vontade de constituir família, partilhando objetivos comuns,
fundados na afetividade, boa-fé e solidariedade. (PAMPLONA FILHO, 2015).

249
É o contrato estabelecido entre mais de duas pessoas em uma interação recíproca,
constituindo família ou não. No Brasil, tais uniões são vistas com reservas, em função
do princípio da monogamia, base sobre a qual o direito de família brasileiro está
organizado, embora sejam comuns em ordenamentos jurídicos de alguns países da
África e no mundo árabe que adotam o sistema da poligamia. (PEREIRA, 2021).

Com relação às definições acima, é permitido concluir que nem toda a relação de
poliamor está apta a constituir uma família, por motivo de faltar-lhe o afeto, elemento este
indispensável a sua caracterização.
Ainda, o Estado nega a legalidade desse tipo de união, adotando o princípio da
monogamia, como regulador das relações familiares.
Além dos contratos anteriormente citados, considerando que trata-se de um rol
exemplificativo de contratualização no direito de família, uma vez que outros tipos são passíveis
de serem criados, alguns deles são estipulados para situações especiais, grupos ou pessoas
específicas ou para determinadas ocasiões.
Desde que não infrinjam as normas jurídicas brasileiras, é possível a construção de
diversos tipos e modelos contratuais que atendam aos interesses específicos de cada grupo
familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, resta claro que a intervenção do Estado nas relações familiares é
necessária, entretanto, deve ser feita da maneira mais restrita possível, preservando sempre a
autonomia privada e as regras adotadas pelas famílias, da maneira que melhor lhes convier.
Importante que o Estado reconheça a vontade mínima dos sujeitos, tendo em vista que
novos arranjos familiares se formaram, baseados especialmente no afeto, obrigando o
ordenamento jurídico a acompanhar toda essa evolução, a fim de proporcionar uma maior
segurança jurídica aos relacionamentos que vão se formando ano após ano.
Dada a importância em se valorizar a autonomia privada em detrimento à intervenção
estatal nas relações familiares, a contratualização no direito de família tornou-se um mecanismo
fundamental, no sentido de ofertar aos indivíduos, a possibilidade de elaborarem o seu próprio
direito através de regras por eles adotadas, visando a satisfação de seus próprios interesses e
ideais de felicidade, fortalecendo cada vez mais o afeto e, consequentemente, os laços familiares
construídos ao longo da vida.

250
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2022/l10406compilada.htm>. Acesso em: 17 de jul.
de 2023.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF. Disponível


em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso
em: 19 de jul. de 2023.

BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 19
de jul. de 2023.

CAMELO, Teresa Cristina da Cruz. Uniões poliafetivas como hipótese de formação de família
e a discussão envolvendo a partilha inter vivos. São Paulo: 2019. Disponível
em: <https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/22451.htm>. Acesso em: 23 jul. de 2023.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 13. ed. rev. ampl. e atual. Salvador:
JusPodivm, 2020.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil:
direito de família: as famílias em perspectiva constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro 6: Direito de Família. 15. ed. São
Paulo. Editora Saraiva, 2018.

MARASCA, Elisângela Nedel. Meios alternativos de solução de conflitos como forma de


acesso à justiça e efetivação da cidadania. 2013. Disponível em:
<https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/revistadireitoemdebate/article/view/668>.
Acesso em: 01 de ago. de 2023.

MELO, Allesandra Ribeiro. Da mediação extraprocessual à mediação paraprocessual:


abordagem sobre a efetividade da mediação de conflitos brasileira a partir da processualística
moderna. São Paulo, 2017. Disponível em: <https://adelpha-
api.mackenzie.br/server/api/core/bitstreams/bfbe1759-054b-4ed2-ad7d-
9f127e87e49a/content>. Acesso em: 01 de ago. de 2023.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O que é contrato de união estável? 2020. Disponível em:
<https://www.rodrigodacunha.adv.br/o-que-e-contrato-de-uniao-estavel/>. Acesso em: 06 de
ago. de 2023.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. 5 tipos de contratos de direito de família. 2019. Disponível em:
<https://www.rodrigodacunha.adv.br/contratos-de-direito-de-familia/>. Acesso em: 10 de ago.
de 2023.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. O contrato de geração de filhos e os novos paradigmas da


família contemporânea. IBDFAM, 2020. Disponível em:

251
<https://ibdfam.org.br/artigos/1609/O+contrato+de+geracao+de+filhos+e+os+novos+paradig
mas+da+familia+contemporanea>. Acesso em: 10 de ago. de 2023.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das Famílias. 2.ª edição. Rio de Janeiro. Editora Forense,
2021.

252
HERANÇA DIGITAL:
Reflexões sobre o direito a herança e o direito a intimidade do falecido

Sara Daniela Silva de Souza1

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo o estudo da herança digital frente ao direito de herança e ao
direito de privacidade do falecido. Serão abordados os bens digitais e a sua classificação;
também será examinada a ordem de vocação hereditária e a destinação dos bens digitais post
mortem. Além disso, será analisada a possibilidade de testamento ou de codicilo para que o
testador exerça sua vontade e disponha sobre a destinação dos bens do seu acervo digital.
Ademais, será estudada a colisão entre os direitos fundamentais, o direito à herança e o direito
à privacidade do falecido, em relação aos seus bens digitais, visto que não pode ser infringido
o direito a intimidade do falecido, já que teria sua privacidade violada quando seus herdeiros
tivessem acesso as suas fotos, vídeos e conversas privadas. Assim, para que haja acesso aos
seus bens digitais de caráter existencial seria necessária a autorização do titular do patrimônio
digital em vida. A metodologia do trabalho consiste no estudo de caso e na pesquisa
bibliográfica.

Palavras-chave: herança digital; direito de herança; direito a privacidade; direito sucessório;


bens digitais.

1 INTRODUÇÃO

A sociedade modifica-se com o passar dos anos e o direito deve se atentar as mudanças
sociais para que haja o seu aprimoramento. Hoje vivemos a era da tecnologia, aonde as pessoas
se relacionam com as outras por intermédio da Internet, das redes sociais, Whats App,
Facebook, Instagram, entre outras.

As pessoas expõem suas vidas nas redes sociais, guardam fotos, vídeos, conversas,
salvam livros e músicas na Internet. Mas, o que acontece com todo este patrimônio digital após
a morte desta pessoa? O usuário das redes sociais pode deixar um testamento para destinar seus
bens digitais? A família terá acesso às fotos, mensagens, livros que a pessoa possuía na internet?
E o direito a privacidade do falecido? E o direito de herança?

1
Pós-graduada em direito penal e criminologia pela PUCRS, em advocacia extrajudicial pela Legale/SP, em direito
público pela Legale/SP, e em direito civil e processo civil pela FMP/RS. Bacharela em direito pela PUCRS.
Advogada OAB/RS 115.219 e professora. E-mail: sarasouzaadvocacia@gmail.com.

253
Todas estas questões nos surgem quando o assunto é herança digital e é sobre isso que
será exposto no presente artigo. Assim sendo, o presente artigo abordará o tema da herança
digital em relação à destinação dos bens digitais do de cujus tendo em vista os direitos
fundamentais à herança e o direito à intimidade do falecido.

Destarte, examinaremos a grande problemática existente em relação aos bens digitais


que seria o direito fundamental à herança, que é o direito que os herdeiros possuem de
sucederem os bens do falecido, e o direito fundamental a intimidade do de cujus de não ter seus
bens digitais como fotos, mensagens privadas, vídeos, etc. divulgados aos seus herdeiros, sem
o seu consentimento.

Portanto, será analisada com base na doutrina e jurisprudência a classificação dos bens
digitais, a destinação destes bens e a possibilidade de testamento ou de codicilo como atos de
última vontade do testador; além disso, serão estudados os projetos de Lei que discutem o tema.
E por fim, será estudada a colisão entre os direitos fundamentais o direito de herança e o direito
de privacidade do falecido com relação ao seu patrimônio digital.

Desse modo, a metodologia do artigo consiste na pesquisa exploratória examinando o


tema e formulando problemas sobre a herança digital e fundamenta-se na pesquisa bibliográfica
a partir de estudos da doutrina sobre o tema e na pesquisa de estudos de casos com base na
jurisprudência.

2 CONCEITO E CLASSIFICAÇÃO DOS BENS DIGITAIS

Primeiramente ao estudo da herança digital cabe demostrar o conceito e a classificação


dos bens digitais. A Lei Geral de Proteção de Dados nº 13.709/2018 traz em seu artigo 5º o
conceito de dados pessoais e o conceito de dados pessoais sensíveis. A Lei aduz que os dados
pessoais seriam dados que identificam a pessoa natural, ou seja, possuem caráter pessoal, já os
dados pessoais sensíveis seriam os dados da pessoa natural relacionados à sua raça, religião,
convicção filosófica, saúde e vida sexual. (BRASIL. Lei 13.709, 2018, art. 5).

De acordo Gabrielle Sarlet:

Daí, no sentido de analisar os contornos do mundo digital, adequado é partir da ideia


de que dados pessoais são todas as informações de caráter personalíssimo
caracterizadas pela identificabilidade e pela determinabilidade do seu titular, enquanto
os dados sensíveis são aqueles que tratam sobre a origem racial e étnica, as convicções
políticas, ideológicas, religiosas, as preferências sexuais, os dados sobre a saúde, os
dados genéticos e os biométricos. (SARLET, 2020, p. 19-20).
254
Cristiano Colombo e Guilherme Goulart esclarecem que os bens digitais podem ser
classificados de acordo com o seu conteúdo, isto é, os bens que não possuem conteúdo
econômico para o seu titular como mensagens privadas de cunho religioso seriam sinônimos de
dados pessoais, pois seriam dados com valor existencial; além disso, o bem digital também
pode ter natureza dual, por exemplo, uma fotografia de um artista ou um poema autobiográfico
que ao mesmo tempo possui a característica existencial por identificar uma pessoa bem como
possui o conteúdo patrimonial, já que também seria um bem imaterial; e por fim os autores
apresentam bens que não são considerados dados pessoais, pois não identificam uma pessoa,
mas podem apresentar ou não a patrimonialidade, caso apresente valor econômico será um bem
imaterial, por exemplo, um e-book que não identifica a pessoa natural, portanto não seria um
dado pessoal, mas, sim, patrimonial. (COLOMBO; GOULART, 2019).

Por outro lado, os autores Cristiano Colombo e Guilherme Goulart citam que o profiling
utilizado pela Amazon para a busca de livros que se encaixem no perfil do usuário quando este
adquire novos livros seriam dados pessoais e até mesmo a informação de que os livros
pertencem ao usuário determinado. (COLOMBO; GOULART, 2019).

Desse modo, a doutrina brasileira cita que os bens jurídicos são divididos em bens
corpóreos e bens incorpóreos. Dessa forma, bens corpóreos são aqueles bens tangíveis que
possuem uma existência concreta, já os bens incorpóreos são bens intangíveis que não podem
ser apreciados pelos sentidos humanos. (SILVEIRA, 2018).

Diante disso, os bens do acervo digital são bens incorpóreos. Os bens digitais podem ser
classificados em bens econômicos que possuem caráter patrimonial, por exemplo, jogos de
videogame de contas online, aonde há compra de acessórios e jogos e as milhas aéreas. Já os
bens sem apreciação econômica, que estão ligados a personalidade de seu titular, seriam as
contas nas redes sociais sem finalidade econômica, bens que possuem conteúdo sentimental,
fotos, vídeos, mensagens privadas, etc. (SILVEIRA, 2018).

De acordo com Conrado Paulino e Marco Rodrigues:

Nesta ordem de ideais, os interesses digitais de uma pessoa falecida podem ter
conteúdo existencial ou patrimonial. No primeiro caso (existencial), em face de seu
caráter personalíssimo, extinguem-se com o óbito do titular, não podendo os
familiares invadirem a vida privada da pessoa falecida – máxime porque, em vida,
não quis revelar tais fatos. Em relação, contudo, ao segundo caso (patrimonial), é de
se reconhecer que as relações do titular, angariadas durante a sua vida, possuindo
repercussão econômica, serão transmitidas aos sucessores por integrar a herança.
(ROSA; RODRIGUES, 2020, p. 40).

255
Além dos bens digitais de caráter patrimonial e de caráter existencial, há os bens digitais
de caráter misto que seriam os bens digitais que possuem conteúdo patrimonial e conteúdo
existencial ao mesmo tempo, por exemplo, blogs, nomes de domínio, fotos que podem
apresentar conteúdo patrimonial. (PAIXÃO; KAI, 2020)

Diante disso, Adrian Paixão e Bruna Kai apresentam a distinção entre bens digitais e
bens virtuais:

Nesse sentido, os bens digitais são um conjunto de informações atualizadas,


intangíveis, representados por cadeias armazenadas de bytes que representam
produtos do mundo real, que seriam armazenados e distribuídos em formato digital.
Metadados também são considerados bens digitais, pois são dados que descrevem ou
que compõem outros dados, sendo essenciais para assegurar que os dados se
mantenham e continuem acessíveis no futuro. Já os bens virtuais são cadeias de bytes
e produtos armazenados e distribuídos em forma apenas digital, criados no contexto
do mundo ou comunidade virtual. Um exemplo seriam os bens virtuais em jogos
multiplayer, como casas, mobiliário e equipamentos no contexto do jogo, que não
podem ser materializados ou transferidos para o mundo real, mas que são comumente
negociados em troca de dinheiro real. (PAIXÃO; KAI, 2020, p. 218)

Destarte, os bens digitais podem ter caráter existencial, patrimonial ou misto. Logo, cabe
destacar qual será a destinação dos bens do acervo digital do de cujus e as formas que o titular
do patrimônio digital possui para destinar livremente os seus bens digitais como veremos no
próximo item.

3 DESTINAÇÃO DOS BENS DIGITAIS POST MORTEM

Em relação à destinação dos bens do acervo digital do falecido ainda não há legislação
específica que a regulamente. Em razão disso, é necessária a aplicação da legislação civil, que
traz disposições gerais sobre o direito sucessório, ao patrimônio digital do de cujus. Além disso,
há a possibilidade de regulamentar o acesso e a destinação dos bens digitais na Internet
conforme dispõem os termos de uso dos aplicativos e das redes sociais.

Sendo assim, nas redes sociais como o Facebook2 já é possível à escolha feita em vida
de transformar o perfil do usuário em um memorial para que as pessoas possam deixar
homenagens ao falecido ou pode ser feito o pedido de exclusão do perfil após a morte do usuário

2
Sobre as contas de memorial do Facebook. Disponível em:
https://www.facebook.com/help/1017717331640041/?helpref=hc_fnav&rdrhc. Acesso em: 10 nov. 2020.
256
feito por algum parente do falecido. O Instagram3 também permite a transformação do perfil
do usuário em memorial ou a solicitação da exclusão do perfil por meio de formulário online
realizado por um membro da família.

Em 2013, o Google trouxe a possibilidade de fazer um testamento virtual permitindo


que o usuário continue utilizando a conta quando ela está inativa ou quando ocorre a morte do
usuário. A pessoa pode escolher em vida o que fazer com a sua conta após seu falecimento ou
caso ocorra um acidente com o usuário que o impossibilite de usar a conta, assim o titular da
conta Google pode pedir para que a sua conta seja excluída ou pode compartilhar com alguém
de sua confiança4.

Diante disso, a sucessão está atrelada ao direito de propriedade e a sua função social
conforme disposto no artigo 5º, incisos XXII e XXIII da CF. A sucessão significa substituição,
isto é, o direito dos herdeiros de suceder o falecido recebendo o seu patrimônio e impedindo
que o patrimônio fique sem titular. (ROSA; RODRIGUES, 2020)

A herança é um conjunto de direitos e obrigações que serão transmitidas aos herdeiros


englobando bens ativos e bens passivos do falecido. Ademais, a herança é bem imóvel conforme
artigo 80, inciso II do CC, mesmo que seja constituída de bens móveis e imóveis que sejam
apreciáveis economicamente. (TARTUCE, 2017).

A herança para a maioria da doutrina se constitui em espólio, ou seja, um ente


despersonalizado, que será representado em juízo pelo inventariante ou pelo administrador
provisório caso não o inventariante não tenha sido nomeado. (TARTUCE, 2017).

No Código Civil há dois tipos de sucessão post mortem: a sucessão legítima e a sucessão
testamentária. A sucessão legítima abarca os parentes que por Lei são herdeiros do falecido
respeitada a ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do CC, aonde os sucessores são os
descendentes, ascendentes, cônjuge ou companheiro e os demais parentes até quarto grau na
linha colateral.

Já a sucessão testamentária ocorre conforme a vontade do titular da herança, podendo


escolher livremente quem ele quer que fique com seus bens após a sua morte, no entanto deve
ser resguardado o valor de 50% do total dos bens do testador que pertencem à legítima, isto é,

3
Memorial Instagram. Disponível em: https://www.facebook.com/help/instagram/231764660354188. Acesso em:
10 nov. 2020.
4
GOOGLE BRASIL. Gerenciador de contas inativas. Disponível em: https://myaccount.google.com/inactive.
Acesso em: 11 nov. 2020.
257
aos herdeiros necessários como os descendentes, o cônjuge, e os ascendentes conforme artigo
1.845 e 1.846 do Código Civil.

Dessa forma, os bens são transferidos automaticamente após a morte do seu titular aos
herdeiros do falecido, tendo em vista o princípio da saisine, mesmo que estes bens estejam em
posse de terceiros. (SILVEIRA, 2018).

Neste sentido, a pessoa deve ter plena liberdade para escolher a destinação de seus bens
digitais após a sua morte. O artigo 1.857, parágrafo 2º do Código Civil assegura que o
testamento será válido mesmo que contenha conteúdo extrapatrimonial, portanto fica superada
a tese de que o testamento somente poderá versar sobre conteúdo patrimonial como era disposto
no artigo 1.626 do revogado Código Civil de 1916. (TARTUCE, 2017).

Diante disso, Flávio Tartuce afirma que na herança digital o testamento deve ser
entendido em sentido amplo. Assim, a destinação dos bens do acervo digital do testador pode
ser realizada por legado, por codicilo para bens de pequena monta ou por manifestação realizada
nas redes sociais do testador indicando o destino dos seus bens digitais. (TARTUCE, 2017).

Em relação ao testamento é possível que a pessoa que detenha 16 anos de idade possa
realizar o seu testamento como ato de disposição de última vontade para escolher para quem irá
deixar os seus bens quando falecer, em conformidade com o artigo 1.860, parágrafo único. Na
Lei Civil há dois tipos de testamento: o testamento ordinário que abarca o testamento público,
o particular e o cerrado, e os testamentos especiais que são: o testamento militar, o marítimo e
o aeronáutico.

Já o codicilo é utilizado para bens de pequena monta conforme previsto no artigo 1.881
do Código Civil que cita:

Toda pessoa capaz de testar poderá, mediante escrito particular seu, datado e assinado,
fazer disposições especiais sobre o seu enterro, sobre esmolas de pouca monta a certas
e determinadas pessoas, ou, indeterminadamente, aos pobres de certo lugar, assim
como legar móveis, roupas ou joias, de pouco valor, de seu uso pessoal. (BRASIL.
Lei 10.406, 2002, art. 1.881).

O codicilo é independente em relação ao testamento, ele é um ato de disposição de


última vontade que não requer formalidades legais. Ele pode ser realizado por instrumento
público ou particular ou até mesmo pode ser escrito a próprio punho. O codicilo possuiu o seu
alcance limitado a bens de pequeno valor e para disposições referentes ao sepultamento do
indivíduo, podendo dispor sobre seus móveis, joias, roupas, etc. (FARIAS, 2017).
258
Logo, a pessoa que possua capacidade para testar, isto é, maior de 16 anos e que esteja
em pleno gozo de suas faculdades mentais poderá fazer o codicilo para bens de pequena monta.
Dessa forma, entendemos que a pessoa pode através de codicilo dispor sobre os seus bens
digitais e sobre a destinação das suas redes sociais post mortem.

Nas palavras de Cláudia Viegas e Thaís Silveira:

Verifica-se a impossibilidade de transmissão dos bens digitais ligados à existência,


sem a manifestação de vontade do de cujus, ante a intransmissibilidade dos direitos
da personalidade. Assim, a forma de resguardar a vontade individual de transmissão
desses bens, de acordo com a legislação atual, é através do codicilo, instrumento
que não exige solenidades, sendo necessário estar datado e assinado, ou dos cofres
virtuais. (SILVEIRA;VIEGAS, 2018. p. 609).

Mas caso a pessoa morra e não deixe nenhum testamento, codicilo ou manifestação na
empresa que administra seus dados na Internet, o seu patrimônio digital deve ser destinado à
sua família obedecendo à ordem de vocação hereditária nos termos do artigo 1.829 do Código
Civil. Cabe destacar que os Recursos Extraordinários nº 646721 e 878694 equiparam a união
estável ao casamento para fins sucessórios, julgando inconstitucional o artigo 1.790 do
Código Civil que trazia diferenças entre a união estável e o casamento para a sucessão dos
bens.

Augusto Bufulin e Daniel Cheida defendem que no silêncio do titular das redes sociais
e dos bens digitais, os seus herdeiros de comum acordo podem excluir seus bens digitais, e caso
não haja discordância entre os herdeiros, os bens digitais deverão permanecer ativos mesmo
que haja restrição ao acesso. (BUFULIN; CHEIDA, 2020).

Em regra, apenas os bens apreciáveis economicamente são objeto de sucessão causa


mortis seja ela a sucessão legítima ou a testamentária. Em virtude disso, há a problemática entre
a classificação dos bens digitais e a sua sucessão após a morte do titular, visto que enquanto
não há lei específica que regulamente é necessário utilizar-se da Lei vigente. Diante disso,
surgiram alguns projetos de Lei que tiveram por objetivo regulamentar a herança digital.

O projeto de Lei nº 4.847/2012 de iniciativa do deputado Marçal Filho almejou


regulamentar a herança digital acrescentando ao Código Civil o Capítulo II-A e os artigos
1.797-A a 1.797-C:

Capítulo II-A
Da Herança Digital
Art. 1.797-A. A herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo
o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes:
I – senhas;

259
II – redes sociais;
III – contas da Internet;
IV – qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido.
Art. 1.797-B. Se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança
será transmitida aos herdeiros legítimos.
Art. 1.797-C. Cabe ao herdeiro:
I – definir o destino das contas do falecido;
a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e
mantendo apenas o conteúdo principal ou;
b) apagar todos os dados do usuário ou;
c) remover a conta do antigo usuário. (BRASIL. Projeto de lei 4.847, 2012, art. 1.797-
A a 1.797-C).

O projeto de Lei nº 4.847/2012 buscou conceituar a herança digital citando que a herança
digital seria conteúdo intangível que possa ser acumulado em espaço virtual. O projeto de Lei
nº 4.847/2012 foi apensado ao projeto de Lei nº 4.099/2012 que pretendeu regulamentar a
herança digital permitindo a transmissão de todos os arquivos digitais e contas virtuais do
falecido para os seus herdeiros. Depois o projeto de Lei nº 4.099/2012 acabou sendo arquivado.
(BRASIL, Projeto de Lei 4.099, 2012, art. 1.788).

No ano de 2017 foi proposto o projeto de Lei nº 8.562/2017 de iniciativa do deputado


Elizeu Dionízio com objetivo de acrescentar o Capítulo II-A e os artigos 1.797-A a 1.797-C ao
Código Civil. O Projeto de Lei nº 8.562/2017 buscou ampliar o conceito de herança digital e
permitir aos familiares do falecido de terem acesso as suas contas virtuais, quando o falecido
não deixar testamento. (BRASIL. Projeto de lei 8.562, 2017, art. 1.797-A a 1.797-C).

O projeto de lei nº 8.562/2017, posteriormente, foi apensado ao projeto de Lei nº


7.742/2017 que pretendia acrescentar o artigo 10-A a Lei do Marco Civil da Internet nº
12.965/2014 que permitia a exclusão das contas do usuário após o seu óbito mediante
requerimento de familiares e possibilitava que as contas ficassem ativas caso algum familiar
fizesse um requerimento em formulário do provedor em até 1 (um) ano após o falecimento do
titular das contas nas redes sociais, devendo ser bloqueado o gerenciamento da conta por
qualquer pessoa, exceto se o titular da conta deixasse em vida uma autorização expressa
indicando quem pode gerenciar a sua conta, no entanto, o projeto de Lei nº 7.742/2017 foi
arquivado. (BRASIL. Projeto de Lei 7.742, 2017, art. 10-A).

Destarte, os projetos de Lei que tentaram regulamentar a herança digital almejaram dar
aos familiares do falecido o poder de gerenciar sua conta virtual quando o usuário faleceu e não
deixou testamento, permitindo que eles possam excluir a conta, transformá-la em um memorial
ou apagar todos os dados do usuário. Contudo, vemos que os projetos de Lei não buscaram a
260
proteção da privacidade do falecido, mas, sim, pretenderam promover o direito de herança dos
herdeiros do de cujus.

Em 2020, o projeto de Lei nº 3.050/2020 do deputado Gilberto Abramo pretendeu alterar


o artigo 1.788 do Código Civil para incluir os bens digitais de caráter patrimonial do falecido
como suscetíveis de transmissão aos herdeiros. Já em 2021, surgiu outro projeto de Lei nº
1.144/2021 da deputada Renata de Abreu, que está apenso ao projeto de Lei nº 3.050/2020, e
propõe que a herança digital fique restrita aos bens de cunho econômico, assim, as mensagens
privadas do falecido não seriam acessadas pelos seus herdeiros protegendo a intimidade do
falecido. A regra seria que as contas nas redes sociais fossem excluídas após a morte do titular,
com duas exceções, a primeira seria a concordância do titular dos dados de manter a sua conta
ativa após a sua morte e, a segunda seria no caso de perfis nas redes sociais que sejam dotados
de exploração econômica.

A grande problemática em relação à destinação dos bens digitais do falecido é a questão


do direito fundamental à herança que sua família possui de ter acesso aos seus dados, bens
digitais, redes sociais, etc. e o direito à privacidade do falecido enquanto direito fundamental e
direito da personalidade de não ter exposta a sua vida, mensagens, fotos, vídeos aos seus
herdeiros, conforme veremos a seguir.

4 DIREITO À HERANÇA E DIREITO À PRIVACIDADE POST MORTEM

O direito à herança está previsto no artigo 5º, inciso XXX da Constituição Federal, que
consagra o direito que a pessoa tem de poder transmitir o seu patrimônio deixado em vida aos
seus herdeiros bem como o direito que os herdeiros têm de receber aquela herança, já que o
direito de herança está intimamente ligado à ideia de propriedade privada. (BUFULIN;
CHEIDA, 2020).

Já o direito à privacidade disposto no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal e no


artigo 21 do Código Civil está ligado aos direitos da personalidade do indivíduo.

Anderson Schreiber cita o conceito do direito à privacidade:

O direito à privacidade abrange, hoje, não apenas a proteção à vida íntima do


indivíduo, mas também a proteção de seus dados pessoais. Em outras palavras: o
direito à privacidade hoje é mais amplo que o simples direito à intimidade. Não se
limita ao direito de cada um de ser “deixado só” ou de impedir a intromissão alheia
na sua vida íntima e particular. Transcende essa esfera doméstica para alcançar
261
qualquer ambiente onde circulem dados pessoais do seu titular, aí incluídos suas
características físicas, código genético, estado de saúde, crença religiosa e qualquer
outra informação pertinente à pessoa. Nesse sentido, a privacidade pode ser definida
sinteticamente como o direito ao controle da coleta e da utilização dos próprios dados
pessoais. (SCHREIBER, 2013, p. 137).

No artigo 12, parágrafo único do Código Civil os direitos de personalidade encontram


proteção após a morte do indivíduo, permitindo que o cônjuge ou companheiro ou qualquer
parente em linha reta ou linha colateral até o 4º grau tenha legitimidade para requerer a cessação
da ameaça ou lesão aos direitos da personalidade do de cujus, bem como requerer a sua
reparação por perdas e danos.

Os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis nos termos do artigo


11 do CC. A Lei Civil não tratou especificamente da proteção ao direito da privacidade do
falecido na Internet, no entanto, tal direito encontra-se respaldado no princípio da dignidade da
pessoa humana previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal.

O direito de herança e o direito à privacidade do falecido merecem algumas reflexões.


Pelo direito de herança os herdeiros possuem direito a sucessão dos bens do falecido, entretanto,
surge um confronto entre o direito de herança e o direito a privacidade quando se trata de bens
digitais que possuem caráter existencial como fotos, mensagens privadas, contas privadas nas
redes sociais do falecido, pois se forem transmitidas aos herdeiros esse bens digitais, toda a vida
privada do falecido existente na Internet será acessada, e, portanto, será violada a sua
intimidade. Sendo assim, veremos o que a jurisprudência tem decido sobre esses casos.

Nesse diapasão, na decisão nº 0001007-27.2013.8.12.0110 do Juizado Especial Central


de Mato Grosso do Sul uma mãe tentou excluir o perfil do Facebook de sua filha falecida,
porque muitas pessoas ainda continuavam a postar fotos, vídeos e mensagem para a menina e
aquilo trazia angústia para a mãe. Assim ela requereu de forma administrativa que o Facebook
excluísse o perfil da filha dela, mas ela foi informada de que teria que fazer este pedido nas
sedes do Facebook na Irlanda e nos Estados Unidos. Diante disso, a mãe entrou com uma ação
judicial e conseguiu em sede de liminar a exclusão do Facebook da filha, visto que o juiz do
caso entendeu que mesmo os bens não apreciáveis economicamente também seriam
transmitidos como parte da herança. (MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça, 2013).

O direito a privacidade do falecido deve ser respeitado, visto que mesmo com a morte
do titular dos bens digitais o seu direito de personalidade merece tutela jurídica nas palavras de
Livia Leal:

262
Com efeito, deve ser superada a análise puramente estrutural e setorial da
personalidade, pela qual se busca a sua proteção em termos apenas negativos, no
sentido de repelir eventuais violações, técnica esta derivada do direito de propriedade,
para que se considere tanto seu viés subjetivo, como capacidade para ser sujeito de
direitos, como seu viés objetivo, como bem juridicamente relevante, merecedor de
tutela jurídica. Sob essa ótica, portanto, mesmo após a morte do titular, a
personalidade, considerada valor, ainda pode ser objeto de tutela no ordenamento
jurídico. (LEAL, 2018, p. 193).

Livia Leal afirma que somente páginas ou contas que tenham a finalidade econômica,
por exemplo, transações financeiras e as contas de banco e as criptomoedas é que podem ser
transferidas aos herdeiros, pois possuem caráter patrimonial. Já as contas privadas como e-
mails, conversas de Whats app para a autora não podem ser transmissíveis aos herdeiros por
seu caráter existencial e pela proteção aos direitos de personalidade do de cujus; entretanto,
excepcionalmente poderia ser acessada a conta privada do falecido quando houver outro direito
existencial que seja preponderante ao direito do falecido. (LEAL, 2018).

Neste sentido com relação ao conflito entre direito a privacidade do falecido e ao direito
de herança, a decisão referente ao processo nº 0023375-92.2017.8.13.0520 da comarca de
Pompeu de Minas Gerais indeferiu o pedido de uma mãe que queria ter acesso aos dados
pessoais de sua filha falecida nos meios eletrônicos, na decisão prevaleceu o direito a intimidade
da filha falecida de não ter seus dados pessoas violados por seus familiares. (MINAS GERAIS.
Tribunal de Justiça, 2018).

Dessa forma, na colisão entre dois direitos fundamentais como o direito de herança e o
direito à privacidade do falecido. É importante destacar a diferença entre regras e princípios.
De acordo com Humberto Ávila as regras emanam normas comportamentais, retrospectivas e
descritivas, pois descrevem a conduta e o comportamento, assim como as proibições, já os
princípios são normas axiológicas, finalísticas, prospectivas, que estabelecem um estado ideal
de coisas. Logo, o direito de herança e o direito a intimidade seriam princípios jurídicos.
(ÁVILA, 2011).

Conforme Augusto Bufulin e Daniel Cheida:

Nesse sentido, como forma de solucionar os conflitos dos direitos fundamentais à


herança e à privacidade, revestidos sob carácter de princípio, necessário utilizar a
máxima da proporcionalidade e suas três máximas parciais da adequação, da
necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em
sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito). (BUFULIN;
CHEIDA, 2020, p. 227).

263
Portanto, seria necessário fazer um sopesamento entre os direitos fundamentais em
colisão. Destarte, entendemos que deve ser resguardado o direito a privacidade do falecido em
relação aos seus bens digitais que possuam caráter existencial, e caso não haja manifestação em
vida do indivíduo permitindo o acesso dos familiares as suas redes sociais privadas, os seus
herdeiros não poderiam ter acesso as suas conversas, fotos, vídeos de sua conta privada. Além
disso, há o direito a privacidade do terceiro com quem o falecido conversou nas conversas por
Whats app, Facebook, etc. que também estaria sendo violada caso fosse permitido o acesso aos
sucessores do falecido nas suas contas das redes sociais.

5 CONCLUSÃO

A sociedade se transforma com o passar dos anos, e o direito deve sempre se atentar as
estas mudanças para regulamentar as relações jurídicas advindas dessas mutações. A sociedade
digital em que vivenciamos não pode mais ficar sem o devido respaldo jurídico em relação às
questões patrimoniais e sucessórias oriundas da internet e das redes sociais.

Mas para isso é importante que haja uma legislação que regulamente a questão da
sucessão dos bens digitais do falecido. Enquanto não há uma resposta da nossa legislação cabe
nos refletirmos sobre o assunto e tentarmos propor novas soluções jurídicas aos impasses das
relações jurídicas na internet.

Dessa forma, a Lei Geral de Proteção de dados não trouxe regulamentações sobre a
herança digital, no entanto, a Lei trouxe o conceito de dados pessoais que são os dados
pertencentes a pessoas físicas identificáveis e o conceito de dados pessoais sensíveis que são
dados sobre convicção religiosa, filosófica da pessoa física bem como seus dados genéticos e
informações sobre raça, vida sexual, etc.

Assim, vimos que os bens digitais se assemelham ao conceito de bens incorpóreos, ou


seja, os bens que não são concretos, suscetíveis de apreciação pelos sentidos humanos. E dentro
desta classificação observamos que os bens digitais podem ter conteúdo patrimonial, existencial
ou misto.

Com relação aos bens de caráter patrimonial que seriam as moedas virtuais, livros,
músicas, jogos de videogame online, entendemos que estes são transferidos aos herdeiros do
falecido por terem conteúdo econômico.

264
Já os bens de caráter existencial que se relacionam com os direitos da personalidade do
falecido, como fotos, vídeos, mensagens privadas ou contas nas redes sociais, acreditamos que
não poderiam ser transmitidos aos herdeiros do de cujus caso não haja a sua autorização em
vida, seja a autorização feita pelas próprias plataformas digitais como Facebook e Instagram,
ou por meio de testamento ou codicilo.

Defendemos que há um interesse existencial nestes bens, deve haver a proteção aos
direitos de personalidade do falecido como o seu direito a privacidade e a intimidade. Embora
haja a colisão entre os direitos fundamentais que seria o direito fundamental a herança e o direito
fundamental a intimidade e vida privada, entendemos que como se tratam de princípios
fundamentais, não haverá a exclusão de um dos princípios, mas, sim, o sopesamento dos
princípios e dessa forma, compreendemos que a privacidade do falecido deve prevalecer, pois
não só seus interesses e intimidade estariam sendo violados, mas também a privacidade de
terceiros que por exemplo, tenham se relacionado com o falecido nas redes sociais através de
mensagens privadas, fotos, etc.

Por fim, há os bens digitais de caráter misto que possuem viés patrimonial e existencial
como uma fotografia feita por um fotógrafo ou um poema autobiográfico, também haveria a
discussão em relação a estes bens quanto a sua destinação após a morte de seu titular, pois como
apresentam caráter misto poderiam ser ou não objeto de sucessão a depender de sua
característica patrimonial e da vontade manifestada em vida por seu titular.

Portanto, cabe-nos ressaltar que alguns dos projetos de Lei que tentaram regulamentar
a herança digital não buscaram a proteção dos direitos da personalidade do falecido como o
direito a sua privacidade, pois almejaram garantir aos familiares do falecido o gerenciamento
de sua conta privada quando este não deixa testamento. Entretanto, outros projetos de Lei mais
recentes se preocuparam em tornar suscetíveis de transmissão apenas os bens digitais de cunho
econômico.

REFERÊNCIAS

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destinação das contas de aplicações de internet após a morte de seu titular. Disponível em:
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=1>. Acesso em 11 nov. 2020.

BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 8.562, de 2017. Acrescenta o Capítulo II-A
e os arts. 1.797-A a 1.797-C à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:
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268
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM - Um estudo da
jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul

Victoria Pérez Lacerda Rangel1


Gisela Brum Isaacsson2

RESUMO

A família, ao longo dos tempos, tem se mostrado uma das instituições mais mutáveis dentro do
cenário jurídico brasileiro. A partir da Constituição Federal de 1988, esta evolução tornou-se
mais evidente e acelerada. Os velhos padrões vêm caindo um a um, dando visibilidade a
importantes novos conceitos e olhares. Neste contexto surge, entre muitos outros pontos, o
conceito do afeto e, o dele decorrente, o conceito de socioafetividade. Não mais se torna
necessário, para a constituição de uma família, apenas a comprovação do requisito biológico
e/ou genético. Dito isso, este trabalho apresenta uma breve análise sobre a possibilidade de
reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem, verificando o entendimento, do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a partir de julgados objetivamente
destacados, que levam à conclusão de que existe esta possibilidade desde que haja um
sentimento recíproco entre as partes envolvidas e este possa ser comprovado judicialmente.

Palavras-chave: socioafetividade; paternidade; afeto; famílias; filiação.

1 INTRODUÇÃO

A família é uma instituição em constante formação. Deve-se isso ao fato de que envolve
relações humanas e sociais. Cotidianamente encontram-se as mais diversas manifestações deste
antigo instituto. Laços sanguíneos, genéticos e de afinidade apenas não são mais os únicos
exigidos para sua configuração.

Pretende o presente artigo, sem nenhuma pretensão de esgotamento do tema, até mesmo
porque é um tema amplo e em intensa evolução com construções e desconstruções de conceitos
postos, analisar uma característica que vem se mostrando um importante instrumento na
definição atual de família, qual seja, o afeto.

A partir disso, apresenta-se como problema de pesquisa o seguinte: “Qual a visão do


Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no reconhecimento da paternidade
socioafetiva?”.

1
Advogada na área de Direito Civil e de Família e Sucessões. OAB/RS 129.291, e-mail: vicplacerda@gmail.com.
2
Advogada na área de Direito de Família e Sucessões. Professora e Especialista em Direito Processual Civil.
Mestre em Memória Social e Patrimônio Cultural e Doutora em Política Social e Direitos Humanos. OAB/RS
24.323, e-mail: giselaisaacsson@gmail.com.
269
Desta forma, para melhor elucidar o tema, dividiu-se o texto em três momentos distintos,
quais sejam: primeiro, pretende-se abordar a família como instituição que embasa o estudo que
se pretende desenvolver; segundo, será verificado o tema da paternidade socioafetiva com o
intuito de trazer-se uma maior fundamentação e segurança acerca de seus conceitos e noções; e
terceiro, será apresentada, por fim, uma análise da jurisprudência produzida no Tribunal de
Justiça gaúcho a contar de 2015 – sempre no intuito de buscar-se a atualidade do tema – sobre
a possibilidade de reconhecimento da paternidade socioafetiva post mortem.

Assim sendo, passa-se, de imediato, à análise do proposto.

2 DA FAMÍLIA

Sabe-se que família, em um significado comum, pode ser considerado um conjunto de


pessoas que possuem grau de parentesco ou laços afetivos e vivem na mesma casa formando
um lar. É comum, partindo desse conhecimento, pensar-se na composição tradicional de
famílias, na existência de um homem e de uma mulher que após ao matrimônio constituem uma
prole. Nesse mesmo contexto genérico, Caio Mario (2022, p. 25) intitula como família aqueles
que descendem de tronco ancestral comum.

Entretanto, a atualidade não concebe mais um conceito simplista de família, entendendo


que tal instituição sofreu profundas mudanças de função, natureza, composição e,
consequentemente, de concepção (LÔBO, 2023, p. 9).

Para que se consiga entender e acompanhar esta multiplicidade de formatos, é preciso,


antes de tudo, conceituar o instituto analisando também algumas das diversas formas como se
apresenta na sociedade.

2.1 Conceito

Na perspectiva jurídica, família pode ser conceituada como a base da sociedade e


protegida especialmente pelo Estado3, sendo classificada, por Maria Helena Diniz (2023, p. 10),
em três noções fundamentais: amplíssima, lata e restrita.

A família amplíssima remete à integralidade de indivíduos conectados por


consanguinidade ou afetividade. Já o sentido lato, engloba como família, os cônjuges ou

3
Constituição Federal - Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
270
companheiros, os parentes da linha reta ou colateral e os afins, ou seja, os parentes do cônjuge
ou companheiro. Por fim, a concepção de família restrita seria a noção mais tradicional de
família, vinculados pelo matrimônio e a prole ou apenas a prole e um dos pais, a conhecida
família monoparental.

Todavia, essas acepções são meros conceitos jurídicos e, como tais, não espelham, de
forma fidedigna, a realidade das formações das famílias brasileiras na atualidade.

Assim sendo, hodiernamente, é possível entender família como a união de pessoas por
convivência, afeto, laços biológicos e/ou religiosos, em prol de estabilidade, proteção e
solidariedade, que residem ou não sob o mesmo teto e partilham de um propósito de vida em
comum.

Por fim, em conexão com o entendimento de Pamplona Filho e Pablo Gagliano (2023,
p. 18), compreende-se que não é possível se estabelecer um conceito único e absoluto de família
capaz de “delimitar a complexa e multifária gama de relações socioafetivas que vinculam as
pessoas, tipificando modelos e estabelecendo categorias.”.

2.2 Fundamento legal e constitucional

Como se sabe, a proteção da família é constitucionalmente proclamada no artigo 226 e


seguintes da Carta Magna Brasileira.

A Constituição Federal de 1988, trouxe, à seara jurídica, um enorme avanço no conceito


e caracterização de família, adequando o pensamento à realidade social da época. Dessa forma,
o instituto família sofreu profunda e significativa evolução no que concerne à sua preservação
e amplitude conceitual.

Foi nesse momento que, para a lei, a família deixou de ser proveniente apenas do
matrimônio, passando a poder ser instituída pela união estável entre o homem e a mulher ou
ainda configurar-se como família a monoparentalidade, conforme os §§ 3º e 4º do artigo 226
da CF/88. Neste momento, família passou a ser denominada como entidade familiar com o
intuito de abarcar todas suas manifestações.

Ademais, importa salientar que neste momento também surge a proibição de


tratamentos distintos entre filhos biológicos e adotivos. Nas palavras da doutrinadora Maria
Helena Diniz (2023, p. 11) “filho será sempre filho, seja qual for o tipo de relacionamento de

271
seus genitores.”. A referida vedação encontra-se prevista tanto no art. 227, §6º do texto
constitucional quanto do art. 1.596, do Código Civil de 2002.

O autor Rolf Madaleno (2021, p. 24) explica de forma bem clara o progresso legislativo
em relação aos modelos de relação familiar.

Embora a Constituição Federal tenha sido revolucionária ao expandir o conceito


oficial de família e permitir o reconhecimento de outros modelos de relação familiar
que não fossem obrigatoriamente ligados ao casamento, e diante dessa realidade
estender à união estável e à família monoparental o mesmo braço protetor destinado
ao matrimônio (CF, art. 226), não é possível desconsiderar a pluralidade familiar
ampliada inclusive pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, ao incorporar os
conceitos de família natural, família ampliada e família substituta, avançando para a
figura do apadrinhamento da Lei 13.509/2017, que proporciona à criança e ao
adolescente uma convivência familiar e comunitária externa, que pode ser prestada
por pessoa física ou jurídica e o reconhecimento voluntário da paternidade ou da
maternidade socioafetiva perante os oficiais do registro civil das pessoas naturais de
pessoas acima de 12 (doze) anos (Provimentos CNJ 63/2017 e 83/2019).

Dessa forma percebe-se, que, apesar da produção legislativa ser muito mais lenta que a
modificação social, considerando-se que essa se opera dia a dia na área familiarista, o legislador
brasileiro está atento às evoluções que estão ocorrendo e vem buscando regulamentar os novos
formatos e composições familiares que surgem com o único intuito único de garantir segurança
jurídica a todos os envolvidos.

2.3 Formas de família

Como dito anteriormente, na atualidade, pode ser considerada utópica a tentativa de


conceituar família em um único e absoluto modelo. Maria Berenice Dias (2007, p. 41) diz que
“a família-instituição foi substituída pela família-instrumento, ou seja, ela existe e contribui
tanto para o desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, como para o crescimento e
formação da própria sociedade”. Ainda assim, a doutrina esforça-se para elencar e conceituar
algumas formas de entidades familiares, vejamos:

a) Família matrimonial: derivada do casamento.


b) Família informal: derivada da união estável.
c) Família monoparental: ocorre pelo vínculo de um dos genitores e seus descendentes.

272
d) Família homoafetiva: derivada pela formação de um casal do mesmo sexo, tendo o
reconhecimento pelos Tribunais Superiores acerca do casamento homoafetivo
(REsp 1.183.378-RS4, ADI 4.2775 e ADPF 1326)
e) Família reconstituída: derivada da união estável ou casamento em que um ou ambos
têm filhos de uma relação anterior.
f) Família ampliada: formada por parentes próximos quais a criança ou adolescente
convive e tenha laços de afetividade (art 25, parágrafo único, do ECA7).
g) Família substituta: originada pelo art 28 do ECA8, ela ocorre quando há o cadastro
à adoção.
h) Família anaparental: decorrente da falta de existência de ambos os pais. Deriva do
afeto entre pessoas parentes ou não parentes (REsp 57606 MG9).
i) Família eudemonista: a formação de uma família pelo vínculo afetivo na busca da
felicidade individual.
j) Família multiespécie: ainda não regulamentada, mas encontra-se em tramitação
Projeto de Lei n. 179/23 (Câmara dos Deputados) que prevê uma série de direitos
para os animais de estimação e regulamenta o conceito deste tipo de família10 como
aquela formada pelo núcleo familiar humano em convivência compartilhada com
seus animais. O texto garante aos animais de estimação o acesso à Justiça para defesa
ou reparação de danos materiais, existenciais e morais aos seus direitos individuais
e coletivos, cabendo ao tutor ou, na ausência ou impedimento deste, à Defensoria
Pública e ao Ministério Público representá-lo em juízo.

Um ponto fundamental a ser ressaltado é que, como pode-se observar em muitas das
famílias, demonstradas acima, tem como base de sua formação a afetividade, tema este que será
amplamente discutido nos tópicos a seguir, principalmente considerando o pano de fundo do
presente artigo que é discutir aspectos da paternidade socioafetiva.

4
Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 25/10/2011
5
Rel. Min Ayres Britto, julgado em 05/05/2011
6
Rel. Min. Ayres Britto, julgado em 05/05/2011
7
Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e
filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e
mantém vínculos de afinidade e afetividade.
8
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da
situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.
9
Rel. Min. Fontes De Alencar, julgado em 11/04/1995
10
https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2346910
273
3 DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

A paternidade socioafetiva é a legitimação jurídica de parentesco baseado pelo vínculo


de afeto. O Código Civil no seu art. 1.59311 abriu uma brecha para o reconhecimento dessa
modalidade de parentalidade, quando afirma que o parentesco pode-se dar por outra origem
além da consanguinidade.

É considerado filiação socioafetiva aquela que não deriva da filiação biológica. Paulo
Lôbo (2023, p. 109) apresenta três possibilidades de filiação socioafetiva admitidas no Código
Civil de 2002, quais sejam:

1) Adoção de crianças, adolescente e adultos de forma judicial, disciplinadas nos


artigos 159612 e 161813;
2) Inseminação artificial heteróloga (realizada com sêmen te outro homem com
autorização do marido), disposta no artigo 1597, inciso V14 (sinala-se que nessa situação
a paternidade é socioafetiva e não aceita contradição e posterior investigação de
paternidade).
3) Posse de estado de filiação, é a filiação socioafetiva em sentido estrito, encontra-
se preconizada no art. 1.60515 (com a lembrança ser esta a espécie que mais exige
provas).

De forma sucinta, a paternidade socioafetiva acontece como uma ascensão na esfera


familiarista, demonstrando que as relações afetivas e emocionais possuem igualmente
importância na formação dos convívios familiares.

O reconhecimento legal de múltiplos modelos de parentalidade evidencia a


sensibilidade do ordenamento jurídico em acompanhar as evoluções sociais e valorizar a
verdadeira essência da família. Dessa maneira, tem-se as dialéticas dos estudos envolvendo a
paternidade socioafetiva e o direito das famílias mais rica e complexa.

11
Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
12
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
13
Art. 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
14
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
15
Art. 1.605. Na falta, ou defeito, do termo de nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo
admissível em direito:
I - quando houver começo de prova por escrito, proveniente dos pais, conjunta ou separadamente;
II - quando existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos.
274
3.1 Evolução

Antigamente, tinha-se o reconhecimento da paternidade como uma consequência do


casamento. Esse entendimento pendura até a atualidade, sendo que o artigo 159716 do Código
Civil de 2002 estabelece um rol de incisos em que assim fica estabelecido.

Além disso, como bem indica Pamplona Filho e Pablo Gagliano (2023, p. 227) “na
primeira metade do século XX, vigente o Código de 1916, e ainda incipientes as técnicas
científicas de investigação filial, a figura do pai quase que se confundia com a do marido.”.

Todavia, com a evolução das relações intersociais tal concepção já não é mais absoluta,
sendo a paternidade não mais ligada apenas com a questão biológica. Nesse sentido Paulo Lôbo
(2023) leciona que “toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem
biológica ou não-biológica”, e que a relação paterna não é mais exclusivamente dependente da
ligação biológica de pais e filhos.

Em conclusão, hoje mais do que nunca, o ditado popular “pai é quem cria” vê-se
revestido de acolhimento jurídico, posto que a real filiação é a cultural, ou seja, aquela que
acontece não pelos laços biológicos, mas em função da convivência com a criança e adolescente
(2021, p. 191).

3.2 Paternidade biológica x paternidade socioafetiva

É notório que a paternidade biológica advém da ligação consanguínea e que a


paternidade socioafetiva nasce de um vínculo de afeto. Em regra, não deve existir distinção
entre pai biológico e socioafetivo na conjuntura de multiparentalidade17

Contudo, já em 1999 o autor José Bernardo Ramos Boeira (1999, p. 54) debatia sobre o
tema, afirmando a seguinte frase: “a própria modificação na concepção jurídica de família
conduz, necessariamente, a uma alteração na ordem jurídica da filiação, em que a paternidade

16
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial,
nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
17
https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/04102021-Quarta-Turma-veda-tratamento-
diferente-entre-pais-biologico-e-socioafetivo-no-registro-civil-multiparental.aspx
275
socioafetiva deverá ocupar posição de destaque, sobretudo para solução de conflitos de
paternidade.”.

Em 2016, passou pelo crivo do Supremo Tribunal Federal a discussão acerca de uma
eventual prevalência da paternidade socioafetiva em desfavor da paternidade biológica. Foi
fixada a tese de repercussão geral 62218, que estabeleceu o seguinte entendimento: a paternidade
socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo
de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.

O referido entendimento iluminou diversas discussões que existiam na época sobre o


tema, principalmente no que concerne o reconhecimento da multiparentalidade e a equivalência
hierárquica entre pai socioafetivo e biológico.

Dessa forma, mesmo em casos em que há a figura de um pai socioafetivo a


responsabilidade do pai biológico não é absolvida. Incidindo efeitos patrimoniais como direito
a sucessão e pensão de ambas figuras paternas.19

Por fim, Pamplona Filho e Pablo Gagliano (2023, p. 227) entendem que “no moderno
Direito Civil, é o reconhecimento da importância da paternidade (ou maternidade) biológica,
mas sem fazer prevalecer a verdade genética sobre a afetiva.”

Visto isso, no capítulo seguinte, serão examinados alguns acórdãos do Tribunal Gaúcho
onde será observado na prática a existência ou não da hierarquização entre as espécies de
paternidade, no entanto, em momento anterior ainda impende refletir um pouco sobre o
princípio do afeto e formação do vínculo socioafetivo conforme o próximo tópico.

3.3 Princípio do afeto e formação do vínculo socioafetivo

O princípio da afetividade pode ser considerado o grande princípio que embase as


relações jurídicas de família em geral, principalmente no que pese à filiação socioafetiva.

No entanto, verifica-se que o referido princípio não se encontra positivado no texto


constitucional e nos demais diplomas legais. Ainda assim, no entendimento de Caio Mario
(2022, p. 68) é visto como um princípio jurídico, vez que se dá por meio de uma “interpretação
sistemática da Constituição Federal (art. 5º, § 2º, CF) princípio é uma das grandes conquistas

18
RE 898060 SC – Rel. Min Luiz Fux, julgado em 21/09/2016
19
https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=325781&ori=1
276
advindas da família contemporânea, receptáculo de reciprocidade de sentimentos e
responsabilidades.”

Tanto no que tange ao princípio da afetividade quanto à formação de um vínculo de


afeto, a Ministra Nancy Andrighi, na decisão do REsp 1026981 RJ20, proferiu o seguinte
argumento:

A quebra de paradigmas do Direito de Família tem como traço forte a valorização do


afeto e das relações surgidas da sua livre manifestação, colocando à margem do
sistema a antiga postura meramente patrimonialista ou ainda aquela voltada apenas ao
intuito de procriação da entidade familiar. Hoje, muito mais visibilidade alcançam as
relações afetivas, sejam entre pessoas de mesmo sexo, sejam entre o homem e a
mulher, pela comunhão de vida e de interesses, pela reciprocidade zelosa entre os seus
integrantes. -Deve o juiz, nessa evolução de mentalidade, permanecer atento às
manifestações de intolerância ou de repulsa que possam porventura se revelar em face
das minorias, cabendo-lhe exercitar raciocínios de ponderação e apaziguamento de
possíveis espíritos em conflito. - A defesa dos direitos em sua plenitude deve assentar
em ideais de fraternidade e solidariedade, não podendo o Poder Judiciário esquivar-
se de ver e de dizer o novo, assim como já o fez, em tempos idos, quando emprestou
normatividade aos relacionamentos entre pessoas não casadas, fazendo surgir, por
consequência, o instituto da união estável. A temática ora em julgamento igualmente
assenta sua premissa em vínculos lastreados em comprometimento amoroso.

Sendo assim, é muito abstrato tratar sobre a formação do vínculo socioafetivo, visto que
ocorre de formas singulares em cada situação concreta. Apesar disso, para que haja a
caracterização da posse de estado de filho a figura paterno-afetiva necessita cumprir diante da
sociedade a figura de pai, sendo esse responsável pela criação e desenvolvimento do filho,
priorizando “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.”.21

Dito isso, e por fim, encaminha-se o presente texto para buscar, junto à jurisprudência
do Tribunal de Justiça gaúcho, posicionamentos quanto ao tema paternidade socioafetiva
sobretudo quando este é discutido em situações após a morte do pretenso pai ou mãe, objeto
principal das presentes reflexões.

4 ANÁLISE DO ENTENDIMENTO DO TJRS SOBRE PATERNIDADE


SOCIOAFETIVA POST MORTEM

20
Rel. Min Nancy Andrighi, julgado em 04/02/2010.
21
Constituição Federal, art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente
e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
277
No intuito de entender melhor como se comportam, na prática, as decisões do Tribunal
gaúcho no que se refere à paternidade socioafetiva, sobretudo quando as alegações são
formuladas após a morte do pretenso pai, buscou-se no campo da pesquisa livre no sítio do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 22, as seguintes palavras-chave:
“paternidade socioafetiva” e morte.

Desta pesquisa resultaram vinte e dois julgados (vinte recursos de apelação, um agravo
de instrumento e um agravo interno) datados de 23/06/04 até o mais recente de 05/05/22, sendo
que todos tramitaram junto a Sétima e Oitava Câmara Cível daquele tribunal.

Optou-se, para um recorte mais preciso e para uma melhor operacionalização do


presente trabalho, analisar os fundamentos dos acórdãos mais recentes, apondo-se como marco
inicial de análise o ano de 2015, com o intuito de verificarem-se os julgamentos proferidos após
o advento do Código de Processo Civil de 2015.

Através da busca feita, com base nos parâmetros supracitados, encontraram-se quatro
apelações cíveis a seguir expostas e analisadas.

4.1 Apelação cível nº. 70069738680

A primeira apelação cível de nº. 70069738680, a ser estudada, foi julgada, pela Sétima
Câmara Cível tendo como relator Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, em
31/08/2016, com publicação em 02/09/2016, restando assim ementada. Vejamos:

Ementa: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. VALIDADE DO REGISTRO CIVIL.


INOCORRÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. 1. O ato de reconhecimento
de filho é irrevogável (art. 1º da Lei nº 8.560/92 e art. 1.609 do CCB) e a anulação do
registro, para ser admitida, deve ser decorrente de vício do ato jurídico (coação, erro,
dolo, simulação ou fraude). 2. Se o genitor registrou a criança voluntariamente,
mesmo sabendo da possibilidade de não ser o pai, e se sempre tratou a criança como
filho, até a morte dele, não pode pretender a ruptura do vínculo pela inexistência do
liame biológico, quando ficou configurada cabalmente a paternidade socioafetiva. 3.
O propósito do autor é, através da ação negatória, fugir de eventual responsabilidade
alimentar em relação ao neto. Recurso desprovido.(Apelação Cível, Nº 70069738680,
Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de
Vasconcellos Chaves, data do julgamento: 31-08-2016 Publicação: 02-09-2016).

Trata-se de uma ação negatória de paternidade post mortem. O caso fático revela que o
apelante, há época do nascimento, registrou a criança como seu filho fosse voluntariamente
(sem vício do ato jurídico). Ele e sua companheira haviam se separado e na ocasião que ele
pediu para retomarem a relação ela o informou que estava grávida e ele consentiu.

22
https://www.tjrs.jus.br/novo/buscas-solr/?aba=jurisprudencia&q=&conteudo_busca=ementa_completa
278
Ao fundamentar a decisão o relator lembra que: “o reconhecimento de filho é um ato
jurídico irrevogável e irretratável, ex vi do art. 1º da Lei nº 8.560/92 e do art. 1.609 do Código
Civil, sendo que a anulação do registro, para ser admitida, deve sobejamente demonstrar a
ocorrência de um dos vícios do ato jurídico, tais como coação, erro, dolo, simulação ou fraude.”.

Ademais, no entendimento dos julgadores, restou claro que o pedido de anulação não se
deu em razão de o apelante não reconhecer como se filho fosse, mas apenas numa tentativa de
se esquivar de prestar alimentos ao neto, em razão da morte do filho, então genitor.

O pedido foi julgado improcedente ao argumento de que “a ação de desconstituição do


registro civil não se presta para agasalhar arrependimentos”.

Percebe-se, no julgado supracitado a homenagem da questão socioafetiva, considerada


como um dos pontos definitivos para chegar-se ao resultado da ação, assim abordada na
supracitada ementa: “[...]e se sempre tratou a criança como filho, até a morte dele, não pode
pretender a ruptura do vínculo pela inexistência do liame biológico, quando ficou configurada
cabalmente a paternidade socioafetiva”.

4.2 Apelação cível nº. 70081763773

A seguinte apelação cível de nº. 70081763773, a ser abordada, foi julgada pela Oitava
Câmara Cível do tribunal em questão, com relatoria do Des. Rui Portanova e com data de
julgamento em 23/04/2020 e publicação em 24/09/2020, e discute sobre uma paternidade
reconhecida em testamento. Segue a respectiva ementa:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE


FILIAÇÃO, CUMULADA COM DESCONSTITUIÇÃO DE ESCRITURA
PÚBLICA DE RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO E DE TESTAMENTO.
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA RECONHECIDA EXTRAJUDICIALMENTE
PELO AUTOR. IMPROCEDÊNCIA. Preliminar de cerceamento de defesa. Diante
do contexto probatório, relativo à defesa do réu, de existência da paternidade
socioafetiva, anterior ao reconhecimento formal da paternidade, a oitiva de outras
testemunhas (além das ouvidas) e a vinda de prontuários médicos dos últimos 15 anos,
é prova desnecessária. Correta a decisão que limitou o número de testemunhas do
apelante, bem como a vinda de prontuários médicos aos últimos 02 anos, antes da
morte do irmão do apelante. MÉRITO Tendo em conta o reconhecimento do próprio
autor - de que o réu é filho do irmão falecido - cai por terra a alegação de falsidade da
escritura pública de reconhecimento da filiação, bem como de eventual incapacidade
do falecido para praticar o ato jurídico de reconhecimento da filiação. Também
desnecessário questionamento acerca da formalidade das testemunhas instrumentais
para escritura do testamento (segunda escritura), pois sendo o réu o único filho do
falecido, já seria o apelado herdeiro universal do falecido, independente do
testamento. REJEITARAM A PRELIMINAR E NEGARAM
PROVIMENTO.(Apelação Cível, Nº 70081763773, Oitava Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em: 23-04-2020)
Data de Julgamento: 23-04-2020 Publicação: 24-09-2020
279
O apelante, irmão do falecido, ingressou com a ação pleiteando a desconstituição do ato
de reconhecimento de filiação e do testamento em que deixou a totalidade do patrimônio para
o filho reconhecido.

Em discussão no processo se o de cujus era realmente pai biológico daquele que


reconheceu, foram trazidas questões, além da paternidade biológica, a existência de uma
inegável paternidade socioafetiva, o Des. Rui Portanova, em seu voto, defende que o réu foi
criado pelo falecido em “uma relação baseada no convívio e no afeto, o que caracteriza a
paternidade socioafetiva.”.

4.3 Apelação cível nº. 50000019320158210039

Na sequência, importa analisar a apelação cível de nº. 50000019320158210039, julgada


pela Oitava Câmara Cível, tendo como Desembargadora Relatora Rosana Broglio Garbin com
data de julgamento em 01/07/2021 e publicada em 02/07/2021. Neste julgado há a discussão de
pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva post mortem. Leia-se a respectiva
ementa:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DECLARATÓRIA DE


RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PEDIDO
FORMULADO PELA AUTORA APÓS A MORTE DO PRETENSO PAI. NÃO
COMPROVADO FATO CONSTITUTIVO DO DIREITO ALEGADO. Para que seja
declarado estado de filiação em decorrência de vínculo socioafetivo, não basta a
vontade do autor da demanda, sendo imprescindível prova inequívoca da vontade do
pretenso pai socioafetivo, além da caracterização da denominada "posse de estado de
filho". No caso em apreço, ainda que demonstrado o vínculo afetivo entre a autora e
o falecido companheiro de sua genitora, não restaram demonstrados os referidos
requisitos. Sentença de improcedência mantida. RECURSO DESPROVIDO, POR
MAIORIA. (Apelação Cível, Nº 50000019320158210039, Oitava Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rosana Broglio Garbin, data de julgamento: 01-
07-2021e publicação: 02-07-2021).

Desprovido o recurso, por maioria, verifica-se que o voto da relatora tem como
fundamento a ausência de “uma prova inequívoca da vontade do pretenso pai socioafetivo” e
de que a relação deles caracterizava um bom relacionamento entre enteada e padrasto.

Por outro lado, o voto vencido do Des. Rui Portanova é firmado no sentido de havia
uma relação de paternidade socioafetiva, arrolando cartões em que a autora havia feito na
infância com mensagens chamando de pai.

A divergência, no presente caso mostra-se apenas no campo probatório. A


socioafetividade foi declarada, mas não reconhecida como provável uma vez que a autora não
conseguiu desincumbir-se do ônus de prova-la, demonstrando, assim, que a situação deve ser

280
bilateral, ou seja, deve haver um liame entre pai e filho e vice-versa. Na falta do reconhecimento
de um desses lados, não haverá como se sustentar a socioafetividade.

4.4 Apelação cível nº. 50035281620158210019

Por fim, a apelação cível de nº. 50035281620158210019, também julgada pela Oitava
Câmara Cível, relator Des. Mauro Caum Gonçalves, julgada em 05/05/2022 e publicada em
19/05/2022 versa acerca de uma investigação de paternidade cumulada com pedido de anulação
de registro civil. Analisa-se a ementa:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. FAMÍLIA. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE


PATERNIDADE CUMULADA COM PEDIDO DE ANULAÇÃO DE REGISTRO
CIVIL. EXISTÊNCIA DE PAI REGISTRAL, MARIDO DA MÃE, E QUEM
EXERCEU O PAPEL DA FIGURA PATERNA POR MAIS DE 40 ANOS, ATÉ O
MOMENTO DE SUA MORTE. RECONHECIMENTO E DECLARAÇÃO DE
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA COM O ALEGADO PAI BIOLÓGICO. TEMA
662 DO STF. EXAME DE DNA. RECUSA. SÚMULA 301/STJ. INCIDÊNCIA.
RECONHECIMENTO DA VERDADE BIOLÓGICA, SEM, CONTUDO,
REVERBERAR EFEITOS REGISTRAIS E PATRIMONIAIS. SENTENÇA
REFORMADA, EM PARTE. HIPÓTESE EM QUE A PARTE AUTORA-
APELADA PLEITEIA O RECONHECIMENTO DA PATERNIDADE
SOCIOAFETIVA COM O PAI BIOLÓGICO APÓS O FALECIMENTO DO SEU
PAI REGISTRAL, CUJA RELAÇÃO - DE PAI E FILHO - PERDUROU POR MAIS
DE 40 ANOS. ASSIM, EXISTE UMA RELAÇÃO JURÍDICA PARENTAL
HÍGIDA LONGAS DÉCADAS, E A SUA DESCONSTITUIÇÃO, DATA MAXIMA
VENIA, NÃO PODE SER MERA CONSEQUÊNCIA DA EXISTÊNCIA DO
LIAME DE CONSANGUINIDADE COM OUTRO HOMEM QUE NÃO O PAI
REGISTRAL, COMO FOI APURADO NA SENTENÇA. NESSE CONTEXTO,
NÃO HÁ COMO AFIRMAR AGORA, DECORRIDOS MAIS DE QUARENTA
ANOS DO REGISTRO, QUE A VERDADEIRA PATERNIDADE DO AUTOR É A
BIOLÓGICA E NÃO A REGISTRAL, PRETENDENDO ESTE DAR VALOR AO
VÍNCULO CONSANGUÍNEO - SABIDO POR ELE POR TODOS ESTES ANOS -
, EM DETRIMENTO DO VÍNCULO FORMADO COM SEU PAI REGISTRAL,
BUSCANDO ISTO APENAS APÓS O SEU FALECIMENTO, COM O QUE NÃO
CABE A RETIFICAÇÃO DO REGISTRO. DE OUTRO LADO, SE ADMITE A
INVESTIGAÇÃO TÃO SOMENTE DA VERDADE BIOLÓGICA, EM
DECORRÊNCIA DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE E DO
RECONHECIMENTO DO DIREITO DE PERSONALIDADE, EM FACE DOS
QUAIS SE DEVE ASSEGURAR INVESTIGAÇÃO AMPLA ACERCA DA
IDENTIDADE DA PESSOA E DE SUA ASCENDÊNCIA GENÉTICA. NA
ESPÉCIE, O APELANTE-DEMANDADO RECUSOU-SE A FAZER O EXAME
DE DNA SEM MOTIVO PLAUSÍVEL. ALÉM DISSO, DO RELACIONAMENTO
HAVIDO COM A MÃE DO APELADO, EXTRAI-SE QUE ESTE SABIA DE SUA
GRAVIDEZ E ACHAVA SER ELE SEU FILHO. NESTA ESTEIRA, FORÇOSO
APLICAR O ENTENDIMENTO TRAZIDO NA SÚMULA N. 301 DO STJ.
PORTANTO, POR PRESUNÇÃO, O APELANTE É PAI BIOLÓGICO DO
APELADO, O QUE TORNA PERTINENTE APENAS O RECONHECIMENTO
BIOLÓGICO - COMO DITO - DA PATERNIDADE, A ORIGEM GENÉTICA
TANTO PLEITEADA PELO APELADO - SEM QUAISQUER EFEITOS
REGISTRAIS OU PATRIMONIAIS. ASSIM, CONSIDERANDO O TEMA 622 DO
STF, IMPÕE-SE O PARCIAL PROVIMENTO DO APELO PARA REFORMAR A
SENTENÇA, EM PARTE, MANTENDO-SE HÍGIDO O ASSENTO REGISTRAL
DO APELADO, RECONHECENDO-SE APENAS A SUA ORIGEM GENÉTICA
ADVINDA DO APELANTE, DADA A PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
INCIDENTE POR FORÇA DA SUM. 301 DO STJ, SEM QUE ISTO REVERBERE
281
QUAISQUER EFEITOS REGISTRAIS OU PATRIMONIAIS. APELO
PROVIDO.(Apelação Cível, Nº 50035281620158210019, Oitava Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mauro Caum Gonçalves, data de julgamento: 05-
05-2022 e publicação: 19-05-2022).

Nesta situação fática, o autor ingressou com a ação aos 46 anos de idade após o
falecimento de seu pai registral. A decisão do relator é no sentido de não reconhecer a
paternidade biológica visto que “a paternidade, mais do que um mero fato biológico, é um fato
social e que ganha expressão no mundo jurídico dado o seu significado social.”, e que para
definir a existência de um vínculo de paternidade “vem sendo cada vez mais prestigiado o
critério da verdade socioafetiva e até, não raro, em detrimento da própria verdade biológica.”.

Em contraponto, há os votos vencidos dos Des. Ricardo Moreira Lins Pastl e Rui
Portanova. Nos votos, o fundamento central se dá em encontro ao RE 898060 SC (mencionado
e discutido nos tópicos acima), no intuito de declarar a multiparentalidade, resultando em
efeitos sucessórios e registrais.

5 CONCLUSÃO

Assim sendo, e partir dos entendimentos trazidos e analisados no último tópico, e em resposta
ao problema de pesquisa inicialmente proposto – “Qual a visão do Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul no reconhecimento da paternidade socioafetiva?” – pode-se constatar
que os julgadores do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul vêm acolhendo o
afeto em supremacia ao interesse patrimonial em ações nas quais são discutidos os
reconhecimentos de vínculos socioafetivos post mortem.

Verifica-se, nos julgados acima expostos, que a pura existência de um pai biológico não
é causa suficiente para negar-se a existência daquele que criou e deu seu amor durante os anos
de criação. Todavia, para que haja uma declaração de paternidade socioafetiva post mortem é
necessária inequívoca vontade do pretenso pai e prova acerca deste fato.

Desta forma, à guisa de conclusão e sem ter a pretensão de esgotar-se o estudo da


matéria, sobretudo porque, como já dito, o Direito das Famílias está sempre em evolução, tem-
se que o princípio do afeto é o protagonista das famílias atuais, sendo o grande divisor de águas
para aferir-se uma entidade familiar e que a jurisprudência vem sendo importante parceira de
difusão desta ideia.

Assim, enquanto a atividade legislativa, morosa por natureza, não regula as situações de
fato que surgem dia a dia no tecido social, conta-se com o apurado, efetivo e preciso olhar das

282
decisões judiciais para que sejam corrigidas eventuais e falhas e injustiças, tornando-se assim
uma sociedade mais atenta ao melhor convívio entre seus membros.

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