Você está na página 1de 18

UNIÃO DE FACTO

• Breve resenha histórica

Moçambique tornou-se independente em 1975 e herdou o Código Civil Português, de 1966, que
reconhecia efeitos ao casamento civil e ao casamento católico. Com a consagração do princípio da
laicidade do Estado, as disposições do Código Civil sobre o casamento católico deixaram de vigorar no
ordenamento jurídico Moçambicano, porque inconstitucionais.

A preocupação pela tutela jurídica a outras modalidades de constituição da famílias, à margem do


Código Civil, foi revelada desde os primeiros momentos da independência nacional; assim, o Código de
Registo Civil de 1976, no seu artigo 4.º, previa a possibilidade de registo de casamentos celebrados
segundo os usos e costumes legais; com o registo, tais casamentos passavam a produzir os mesmos
efeitos que o casamento civil.

Em 1982, através da Directiva nº 1/82, de 27 de Fevereiro, o Tribunal Superior de Recurso determinou


a entrada em vigor da parte do Projecto da Lei da Família de 1982 que tratava das matérias atinentes
ao divórcio, união de facto e uniões poligâmicas.

A Constituição da República de 1975 (então República Popular), com as alterações introduzidas em


1978, previa o princípio da separação de poderes, cabendo o poder legislativo à Assembleia Popular,
razão porque a Directiva nº 1/82, passados alguns anos, simplesmente deixou de ser aplicada dada a
sua manifesta inconstitucionalidade.

Ciente de que um universo bastante reduzido de Moçambicanos enveredava pelo casamento civil, para
além do reconhecimento das modalidades de celebração dos casamentos religioso e tradicional, a Lei
da Família de 2004, naquilo que constitui uma das principais inovações no Direito da Família
Moçambicano, passou a consagrar o instituto da união de facto.

Na Fundamentação da Lei, a Assembleia da República considerou que “no relativo às uniões maritais,
forma comum de constituição de família nos centros urbanos do nosso país, não se quis dar-lhes o
estatuto de autêntico casamento, mas porque importava tutelar a situação dos filhos e dos bens
patrimoniais, atribuiu-se-lhes efeitos apenas no concernente às relações paterno-filiais e aos direitos
patrimoniais”.1

Nos termos do artigo 202.º da Lei da Família, entende-se por união de facto “a ligação singular, existente
entre um homem e uma mulher, com carácter estável e duradouro que, sendo aptos a celebrar
casamento não o tenham celebrado”; por outro lado, a mesma disposição estabelece que “a união
pressupõe a comunhão plena de vida por tempo superior a um ano”.

1Fundamentação da Proposta de Lei que Altera as Disposições do Código Civil Atinentes às Normas
Reguladoras das Relações de Família

1
Da noção, retiramos como requisitos ou pressupostos de relevância da união de facto os seguintes:

➢ Diversidade de sexo: a união de facto só produz efeitos se for de duas pessoas de sexo
diferente (sexo oposto); a nossa lei não reconhece efeitos às uniões homossexuais. O não
reconhecimento de efeitos jurídicos as uniões homossexuais não se confunde com a sua
proibição, mas tão somente a não atribuição de efeitos jurídicos a tais uniões. Nos casos em
que os tribunais moçambicanos são confrontados com situações de uniões homossexuais
validamente constituídas nos Países de origem, poderão afastar a aplicação da lei estrangeira
competente, com fundamento na excepção de ordem pública.

➢ A união deve ser singular: tal significa que à união de facto apenas é dada tutela jurídica
quando ela não seja polígama; por esta razão, se um dos companheiros da união de facto contrai
casamento, cessam ipso facto e para o futuro os efeitos da união de facto, passando a vigorar
os efeitos do casamento; quanto às uniões polígamas, a excepção é apenas em relação aos
alimentos pois, nos termos do artigo 426.º da Lei da Família, “em caso de morte, as
companheiras que com o falecido viviam em união polígama têm direito a ser alimentadas pelos
rendimentos dos bens do falecido”;

➢ Os companheiros devem estar aptos a celebrar casamento: ou seja, não devem existir
impedimentos matrimoniais para a celebração do casamento, afectando qualquer dos
companheiros; deste modo, não são reconhecidas as uniões entre indivíduos com menos de 18
anos, ou em que um dos companheiros se encontra unido por casamento ainda não dissolvido,
etc;

➢ A ligação deve ter carácter estável e duradouro: a própria lei encarrega-se de esclarecer que
a união pressupõe a comunhão plena de vida pelo tempo superior a um ano; haverá, como é
óbvio, situações em que, ao longo da vigência da união, verificam-se vicissitudes que perturbam
a estabilidade da união, mas se tais vicissitudes não chegam, na essência, a retirar o carácter
estável da união, a união merecerá sempre a tutela legal.

A união de facto é, assim, uma relação que, em tudo, assemelha-se ao casamento monogâmico, com
a diferença de que as pessoas não estão casadas (seguindo as formalidades que a lei estabelece); ou
seja, na forma de ver de todos os que rodeiam os companheiros, tudo se passa como se fossem duas
pessoas casadas.

Pode até ser uma situação em que as pessoas contraíram casamento seguindo a religião ou segundo
a tradição, mas não seguirem as formalidades previstas por lei (processo de publicações, do acto de
celebração e registo); nestes casos, a lei não atribui relevância civil como casamentos, mas se
estiverem preenchidos todos os pressupostos de relevância da união de facto, tais uniões valem como
uniões de facto.

2
Quanto à aptidão para contrair casamento, não se colocam dúvidas quanto aos efeitos duma relação
de coabitação existindo um impedimento dirimente. Neste caso não pode existir união de facto, por
inaptidão de um ou ambos para contrair casamento.

No caso de uma união singular, estável e duradoura, existindo impedimento impediente, a solução não
parece pacífica.

O impedimento impediente não invalida o casamento e a questão é saber se obsta à existência da


união de facto, legalmente tutelada.

Nos termos do Código Civil de Macau, por exemplo, a existência de impedimento impediente não
obsta a que a união de facto produza os seus efeitos.

Parece ser esta a solução a perfilhar também no nosso caso, tendo em conta as razões principais
proclamadas pelo legislador ao introduzir o instituto da união de facto, que se prendem com a
necessidade de “tutelar a situação dos filhos e dos bens patrimoniais”2.

O regime da união de facto é normalmente invocado no momento da sua dissolução. Tendo as partes
vivido, durante mais de 12 meses e de forma ininterrupta, em condições análogas às dos cônjuges, não
vemos razões para afastar a presunção de paternidade e maternidade ou de não reconhecer o esforço
comum na aquisição, conservação e frutificação do património, que justifica que o regime de bens da
união de facto seja o da comunhão de adquiridos. Até porque, mesmo no casamento, boa parte dos
impedimentos impedientes são susceptíveis de dispensa por razões de interesse público ou relativas às
famílias dos nubentes. Justifica-se, também, a manutenção dos efeitos da união de facto existindo um
impedimento impediente porque ocorrem, sem dúvidas, razões de interesse público e relativas às
famílias dos companheiros da união de facto, que são reputadas como marido e mulher, com óbvias
consequências no seu relacionamento com terceiros.

A nosso ver, a “aptidão para contrair casamento” deve ser entendida em sentido restrito, ou seja, quando
existam impedimentos dirimentes, quer relativos quer absolutos.

No caso de separação de facto ou de separação de pessoas e bens, seguida de divórcio, a Lei não fixa
o momento a partir do qual a sentença de divórcio produz efeitos, o que conduz a que se entenda ser o
momento do seu trânsito em julgado.

Assim sendo, se um dos cônjuges, na pendência do divórcio, passar a coabitar com uma terceira pessoa,
ainda que esta nova relação tenha carácter estável e duradouro, não poderá ser considerada de união
de facto, por existência de impedimento dirimente absoluto do casamento anterior ainda não dissolvido.
Só poderá passar a existir união de facto e a produzir os seus efeitos, com o trânsito em julgado da
sentença de divórcio.

Em Portugal, o Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, introduziu no Código Civil uma nova
disposição sobre a data em que se produzem os efeitos do divórcio. Assim, de acordo com o n.º 1 do
artigo 1789.º do Código Civil Português, os efeitos do divórcio produzem-se com o trânsito em julgado

2Fundamentação da Proposta de Lei que Altera as Disposições do Código Civil Atinentes às Normas
Reguladoras das Relações de Família.

3
da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da acção3. Por outro lado, a mesma
disposição admite que, mediante requerimento de qualquer dos cônjuges, os efeitos retrotraiam à data
em que a coabitação tenha cessado.

Se a solução prevista no Código Civil português fosse adoptada em Moçambique, poderia o indivíduo
casado passar a coabitar com uma terceira pessoa na pendência do processo de divórcio e, decretado
este, com efeitos retroativos a partir da data da propositura da acção ou do fim da coabitação com o ex-
cônjuge, seria a partir dessa data que a relação de coabitação iniciada na pendência do divórcio passaria
a ser considerada de união de facto.

O artigo 203.º da Lei da Família prevê alguns dos efeitos4 da união nos seguintes termos:

“1. A união de facto releva para efeitos de presunção de paternidade e maternidade, nos termos do
disposto na alínea c) do nº 2 do artigo 225º e na alínea c) do nº 2 do artigo 277.
2. Para efeitos patrimoniais, à união de facto aplica-se o regime de comunhão de adquiridos.”

Ao n.º 2 do artigo 203.º da Lei da Família têm sido, entre nós, atribuídos sentidos diferentes.
Há quem entenda que a união de facto apenas releva para efeitos de partilha, segundo o regime de
comunhão de adquiridos, no momento da dissolução. O nosso entendimento é diferente.
Para a correcta interpretação do n.º 2 do artigo 203.º é importante, antes de mais, compreende o
significado de “regime de bens”.

Para Antunes Varela entende-se por regime de bens “ o conjunto de preceitos (normas ou cláusulas
negociais) que regulam as relações de carácter patrimonial (quer entre os cônjuges, quer entre eles e
terceiros) ligados à vida familiar”5.

Entendido neste sentido amplo, o regime de bens do casamento e, por conseguinte, da união de facto,
abrange todos os preceitos que regulam as relações de carácter patrimonial, incluindo as dívidas.

Embora a noção de regime de bens apresentada por Pereira Coelho seja, na essência, similar à de
Antunes Varela, aquele autor considera haver efeitos patrimoniais do casamento que são independentes
do regime de bens. E entre os efeitos patrimoniais independentes do regime de bens, a que Pereira
Coelho chama de “regime primário”, incluem-se: administração dos bens, dívidas dos cônjuges e bens
que respondem por elas, partilha de bens do casal etc6. Mas entendemos que o autor apenas pretendeu
referir-se à sistemática adoptada no Código Civil, sem com isso tomar posição divergente da do
Professor Antunes Varela.

3 É esta também este, essencialmente, a solução que resulta do artigo 262.º do Código Civil Francês.
4 A união de facto também produz efeitos no domínio da legislação da função pública, de impostos, segurança
social etc.
5 Antunes Varela, ob.cit, p. 423
6 Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, ob.cit. p.119

4
No nosso entender, é no sentido amplo, tal como descrito pelo Professor Antunes Varela, que devemos
interpretar a referência feita pelo n.º 2 do artigo 203.º ao regime de bens de comunhão de adquiridos.

Se o entendimento fosse o de que o n.º 2 do artigo 203.º da Lei da Família apenas pretendeu dar às
partes, após a dissolução da união, o direito de reclamar a partilha dos bens comuns, teríamos algumas
situações indesejáveis e absurdas, que jamais poderiam ter sido pretendidas pelo legislador. Na
verdade, se à união de facto não fossem aplicadas as disposições que regulam os efeitos patrimoniais
do casamento, poderíamos ter situações como as seguintes:

➢ O companheiro não poderia usar dos meios de defesa reconhecidos aos cônjuges nos casos
de alienação de bens comuns; com efeito, por exemplo, nos termos do n.º 3 do artigo 103.º da
Lei da Família, vigorando o regime de comunhão de adquiridos o imóvel próprio ou comum só
pode ser alienado com o consentimento do outro cônjuge; ora, se este regime não fosse
aplicável aos companheiros da união de facto, o companheiro que não desse o seu
consentimento na alienação do imóvel próprio do outro, ainda que constituísse a casa de morada
da família, não teria qualquer meio para obter a invalidade do acto;

➢ Para os casos de dívidas contraídas por apenas um dos companheiros da união de facto,
mesmo que em proveito comum da família, apenas o que contraiu a dívida seria o responsável
por ela, o que seria injusto.

A propósito das dívidas, José Pitão entende que “…a comunhão de vida gerada pela união de facto,
com a consequente contribuição de ambos os membros, quer com o rendimento do seu trabalho, quer
com a sua participação nas tarefas domésticas, proporciona o aparecimento de situações patrimoniais
que bem mereciam a tutela do direito. É o caso, por exemplo, do mobiliário adquirido para rechear o lar
comum, as despesas contraídas com a alimentação, vestuário ou saúde do agregado familiar ou do
casal homossexual, o apartamento que se comprou para nele instalar a casa de morada. Ora, neste tipo
de situações levanta-se a pertinentemente a questão da propriedade dos bens adquiridos ou da
responsabilidade pelas dívidas contraídas, quer num, quer noutro, na constância da união de facto7”.

O texto da Lei da Família é o seguinte: “para efeitos patrimoniais, à união de facto aplica-se o regime de
comunhão de adquiridos”.

Não nos parece que a pretensão do legislador fosse tão somente de remeter para as regras de
classificação de bens em próprios e comuns e para as de partilha dos bens comuns.

O texto “para efeitos patrimoniais…” levanta, desde logo a questão seguinte: para que efeitos
patrimoniais? A interpretação correcta, a nosso ver, deve ser aquela que é abrangente. Para nós, o que
se retira do n.º 2 do artigo 203º é que à união de facto aplica-se o regime de comunhão de bens e todos
os efeitos patrimoniais do casamento conexos ao tal regime, no domínio da administração de bens, da
alienação de bens e dívidas.

7 Pitão, José, União de Facto________

5
• Alguns Exemplos de Direito Comparado

As dúvidas que são suscitadas em Moçambique, não se colocam em boa parte de Países Africanos de
Língua Portuguesa. Com efeito:

➢ O artigo 119º do Código da Família de Angola dispõe que “o reconhecimento da união


de facto produz os mesmos efeitos da celebração do casamento, com retroactividade à
data do início da união, em conformidade com a lei”8. Nos casos em que a união não é
reconhecida, a solução parece ser remetida à disciplina geral do enriquecimento ilícito,
porquanto resulta do nº 2 do artigo 113º que “caso a união de facto não possa ser
reconhecida por falta de pressupostos legais, ela será atendida para além dos casos
previstos nesta lei, quando se verifique enriquecimento ilícito9 nos termos gerais da lei,
designadamente para o efeito de partilha de bens comuns e para atribuição do direito à
residência comum”.

➢ No caso da Guiné Bissau, a Lei nº 3/76, de 3 de Maio de 1976, manda que se aplique
ao casamento não formalizado (designação atribuída à união de facto) o regime do
casamento, logo que é obtido o reconhecimento, sendo aplicável o regime de comunhão
de adquiridos, na falta de acordo em contrário (vide artigos 1º e 7º da Lei).

➢ Na República de Cabo Verde, a união de facto reconhecida é havida, para todos os


efeitos legais, como casamento formalizado e produz os mesmos efeitos do casamento
desde a data do início da sua existência (assim estabelece o nº 1 do artigo 168º do
Código da Família da República de Cabo Verde, aprovado pelo Decreto-Legislativo nº
12-C/97, de 30 de Junho).

No caso Brasileiro, o Código Civil10 contém uma disposição muito próxima à contida na Lei da Família
Moçambicana; com efeito, o artigo 1.725.º do Código Civil Brasileiro “na união estável, salvo contrato
escrito dos companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime de comunhão
parcial de bens”.

Discutindo o alcance da tal disposição, na questão relativa à alienação dos bens na união estável e
embargos de terceiro, Rodrigo Toscano de Brito11, entende que, no silêncio do Código Civil quanto à
administração dos bens e quanto às dívidas, a interpretação do artigo 1.725.º do Código Civil de 2002
resulta na aplicação do artigo 1.663.º do mesmo Código, que regula a administração dos bens entre os
cônjuges e regime de dívidas contraídas pelo cônjuge administrador.

8 Código da Família de Angola, aprovado pela Lei nº 1/88, de 20 de Fevereiro


9 O sublinhado é nosso.
10 O Código Civil Brasileiro vigente foi aprovado pela Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002.
11 de Brito, Rodrigo Toscano, Afeto, Ética, Família e Novo Código Civil Brasileiro – Anais do IV Congresso

Brasileiro de Direito da Família, IBDFAM/DelRev, Belo Horizonte, 2004, p. 552

6
Madaleno12 também é da opinião que “decorre do artigo 1.725.º do Código Civil uma presunção plena
de comunhão dos bens amealhados durante a convivência estável, com a aplicação literal dos
dispositivos pertinentes ao regime de comunhão parcial de bens prevista para o casamento”; ou seja,
entende que são aplicáveis à união estável os artigos 1.663.º à 1.666.º do Código Civil, que regulam o
regime de comunhão parcial no tocante a propriedade, administração dos bens e dívidas dos cônjuges.

ALGUMAS NOTAS SOBRE FILIAÇÃO

Nascimento como acto autónomo

O nascimento é um facto jurídico, por ser gerador de efeitos jurídicos. Sabe-se que,
desde logo, a personalidade jurídica adquire-se com o nascimento (que deve ser
completo e com vida); é a partir do nascimento que, regra geral, a pessoa adquire a
suscetibilidade de ser titular de sujeito de relações jurídicas; adquire capacidade
jurídica de gozo, mas ainda carece de capacidade de exercício.

O nascimento está sujeito a registo obrigatório. Embora, em regra, o registo do


nascimento e da filiação ocorram ao mesmo tempo, é importante frisar que não há
dependência entre o nascimento (o parto) e a filiação; aliás, é possível que a criança
seja registada (o nascimento) sem menção da paternidade ou maternidade. Basta
pensar nas situações de crianças abandonadas.

ESTABELECIMENTO DA FILIAÇÃO

12 Madaleno, Rolf, Curso de Direito de Família, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2008, p. 810

7
1. Período legal de concepção

A Lei da Família, no seu artigo 207, estabelece que o período legal de concepção do
filho é fixado, para efeitos legais, dentro dos primeiros cento e oitenta dias dos
trezentos que precedem o nascimento (artigo 207 da Lei da Família), salvas as
excepções que a própria Lei admite nos artigos 208 e 209.

A fixação do período de concepção não se mostra de grande relevância, ou pelo menos


não suscita grandes controvérsias, quando se trate de nascimento dum filho na
constância dum casamento que já tenha duração superior ao período normal de
gestação. Imaginemos que os progenitores se encontram casados desde 2015 e no ano
de 2016, estando eles ainda casados, nasça um filho. Nestes casos, a presunção de que
o filho resulta da união não suscitará, em princípio, grandes dúvidas. O mesmo não
se poderá dizer em relação a filhos que nascem depois de finda a coabitação entre os
presumíveis progenitores (por divórcio, morte de um deles ou separação de facto); as
dúvidas também poderão se colocadas se o nascimento ocorre pouco tempo depois
do casamento (imagine-se um caso em que o filho nasce 5 meses depois do casamento
da mãe), tendo em conta a experiência comum que aponta para uma duração da
gestação de aproximadamente 9 meses.

Embora hoje os avanços tecnológicos permitam determinar com precisão o momento


da concepção e a data provável do parto, a Lei trata de fixar um período legal, para
efeitos de estabelecimento da presunção, que é ilidível mediante prova em contrário.

Na verdade, embora o período legal de concepção tenha sido fixado tendo em conta a
experiência comum, há situações em que o tempo de gestação é inferior ou superior
ao normal; por isso, a Lei tratou de indicar as excepções.

A primeira excepção é a apresentada no artigo 208, que manda afastar, para efeitos de
fixação do período legal de concepção, os dias decorridos até à interrupção de
gravidez que ocorra dentro dos trezentos dias anteriores ao nascimento. Trata-se de
uma excepção lógica, se considerarmos que, interrompida a gravidez, o filho que
posteriormente vem a nascer só pode ter sido concebido depois daquela interrupção.

8
A segunda excepção, prevista no artigo 209, a possibilidade de fixação de um período
diferente, por via judicial, mediante apresentação da competente prova.

Há uma regra importante correspondente ao período legal de concepção, que é a da


indivisibilidade; ou seja, para efeitos legais, considera-se que o filho pode ter sido
concebido em qualquer dos 180 dias dos 300 que precedem o nascimento.

Uma importante inovação foi introduzida pela Lei da Família, que é a contida no
artigo 212, nos termos do qual “nas acções relativas à filiação, são admitidos como meios de
prova os exames de sangue e quaisquer métodos científicos comprovados”.

A Lei n.º 10/2004, de 25 de Agosto, introduziu importantes inovações nos capítulos


da filiação e do direito matrimonial.

Manteve a solução da irrelevância da esterilidade nas finalidades do casamento, não


sendo aquela causa de anulação do casamento ou divórcio. Mas não deixa de ser
estranha, e até absurda, a manutenção, no artigo 211.º da Lei da Família, da
inadmissibilidade da invocação da fecundação artificial para estabelecer a
partenidade do filho procriado por meio dela, nem para impugnar a paternidade
presumida por lei.

O legislador ao adoptar tal solução peca, primeiro, por ser totalmente desenquadrada
com a realidade actual, face à rápida evolução da ciência e dos costumes. Hoje,
especialmente nas zonas urbanas, é normal e frequente o recurso à fecundação
artificial. O legislador também peca porque, em diversas disposições dá a entender
que pretende enraizado o princípio da verdade biológica e ao mesmo tempo sacrifica tal
princípio com a prevalência das presunções legais; com efeito, no n.º 2 do artigo 245.º
da Lei da Família, impõe-se que, na impugnação de paternidade o autor prove que “de
acordo com as circunstâncias, a paternidade do marido da mãe é manifestamente improvável”
e no n.º 1 do artigo 277.º da mesma lei é fixada a regra segundo a qual na acção de
investigação de paternidade o autor deve “provar a paternidade biológica” (sublinado é
nosso); não se compreende, por isso, o disposto no artigo 211.º.

9
É caricato que no artigo 211.º da Lei da Família seja vedado o recurso à fecundação
artificial e no artigo seguinte, o 212.º, cujo conteúdo constiui cópia integral do artigo
1801.º do Código Civil português, com a redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de
Novembro, se admita nas acções relativas à filiação “como meios de prova os exames de
sangue e quaisquer outros métodos científicos comprovados” (sublinhado é nosso). Ora, se
os métodos científicos permitem comprovar que o filho é resultado de fecundação
artificial e que o pretenso pai não o é biologicamente, como compreender que, ao
mesmo tempo, a lei vede a invocação desta realidade tão evidente nos dias que
correm?

Mais ainda, no n.º 3 do artigo 245.º lê-se textualmente que “não é admissível ao cônjuge
a impugnação de paternidade com fundamento na inseminação artificial se nela houver
consentido”13; por interpretação a contrario sensu desta mesma disposição se pode
concluir que o cônjuge pode impugnar com fundamento na inseminação artificial se
não tiver nela consentido.

Em que ficamos? Parece manifesta a distração do legislador moçambicano que,


inspirando-se no direito português, não cuidou de harmonizar as soluções
“importadas” com as que já vinham contidas no Código Civil que ainda vigorava em
Moçambique. Na verdade, o actual artigo 211.º da Lei da Família é uma repetição do
que já vinha contido no 1799.º do C. Civil; o legislador português, na reforma de 1977,
revogou o artigo 1799.º e consagrou a solução hoje contida no artigo 1801.º, que passou
a admitir nas acções relativas à filiação “quaisquer outros métodos cientificamente
comprovados”, precisamente para que passassem a ser aceites meios científicos
dignos de crédito, designadamente os que permitem a fecundação artificial. O
legislador moçambicano foi buscar o texto inovador do artigo 1801º do C. Civil
português, que constitui o artigo 212.º da Lei da Família, e manteve, no artigo 211.º
deste Lei, o mesmo que vinha contido no anterior 1799.º do C. Civil.

13Esta também é uma cópia integral do n.º 3 do artigo 1839.º do Código Civil português, com a redacção
introduzida pela reforma de 1977.

10
E nem faz sentido negar o recurso aos métodos da fecundação artificial (conhecida
também por inseminação artificial), pois a natureza não é igual para todos e tais
métodos permitem que as pessoas possam usufruir do mesmo direito de procriar,
mesmo na situação de esterilidade. Entendemos, até, que a proibição do recurso aos
métodos de fecundação artificial pode estar em conflito o direito de constituir família,
que resulta de vários instrumentos internacionais de que Moçambique é parte e da
própria Constituição da República.

Parece óbvio que a nova Lei da Família, até pelo facto de ter sido inspirada na lei
portuguesa que também segue o mesmo paradigma, está assente na premissa de que
as acções relativas à filiação devem visar essencialmente a descoberta da verdade
biológica e, por isso, impõe-se uma interpretação correctiva do artigo 211.º.

Perfilhação

Na prática, as questões do estabelecimento de da filiação não se colocam quando os


progenitores não estão desavindos, ocorrendo normalmente o registo de nascimento,
com as implicações dai decorrentes.

O problemas surgem, normalmente, quando o filho nasce fora da constância duma


união marital. Nestes casos, a perfilhação, definida no artigo 259 da Lei da Família
como “o acto pelo qual o progenitor ou a progenitora declara a sua partenidade”, é o
mecanismo usual para estabelecer a filiação; neste caso, por se tratar de um acto de
vontade, o progenitor ou a progenitora, por acto voluntário, declara que assume a
parternidade ou a maternidade, usando qualquer das formas previstas no artigo 263
da LF: declaração prestada perante o funcionário do registo civil, testamento, escritura
pública ou termo lavrado em processo judicial.

A perfilhação só pode ser feita por pessoa com capacidade (artigo 261 da LF) a todo o
tempo (artigo 264) e é irrevogável (artigo 266), embora possa ser anulada nos termos
dos artigos 269 e 270 da LF.

11
Mas há situações em que o suposto pai não aceita a paternidade, ou porque não
acredita ser o progenitor ou porque, simplesmente, não pretende assumir as
consequências da filiação. As situações em que a mãe não é conhecida ou não aceita
assumir a maternidade são raras, mas podem ocorrer, por exemplo, quando a pretensa
mãe abandona o recém nascido ou entende ter havido troca de bebés no berçário.

Em qualquer dos casos, como afirmamos acima, porque o nascimento é um acto


autónomo, é efectuado o registo, com menção de pai incógnito ou mãe incógnita.

Averiguação oficiosa de maternidade e paternidade

Resulta dos artigos 219 e 273 da LF, sempre que a maternidade ou a paternidade não
esteja mencionada no registo de nascimento de nascimento, o funcionário do registo
civil deve remeter ao tribunal certidão integral do registo, a fim de ser oficiosamente
averiguada a maternidade ou paternidade.

Os processos que mais abundam nos tribunais são os de averiguação oficiosa de


paternidade; nestas situações, feito o registo, constará que a criança é filha da
progenitora identificada e de pai incógnito. Perante tal situação, a conservatória do
registo civil remete a mencionada certidão de registo ao tribunal.

A competência para as acções relativas a menores é dos tribunais judiciais de distrito,


através das suas secções de competência genérica, ou secções de menores, onde elas
já estejam criadas. Mas há casos, como o da Cidade de Maputo, em que existe um
Tribunal de Menores da Cidade de Maputo, com jurisdição sobre toda a Cidade de
Maputo. Também existem, nos Tribunais Judiciais de Província, secções de menores.

A tramitação do processo de averiguação oficiosa da maternidade ou da paternidade,


segue o previsto nos artigos 220, 221, 222, 223, 274 da Lei da Família, bem como os
artigos 149 e seguintes da Organização Tutelar de Menores, aprovada pela Lei nº
8/2008, de 15 de Julho.

Essencialmente, recebida a certidão do registo, o curador de menores junto do tribunal


de menores ou da secção de menores ou das secção cível ou de competência genérica,
12
dependendo das situações, propõe a acção de averiguação oficiosa de maternidade ou
paternidade. Actuado o processo, após análise prévia, o juiz ordena que o curador
proceda à instrução (produção de provas)

O curador pode usar de qualquer meio de prova admitida por lei, designadamente, a
prova testemunhal, documental ou pericial (incluindo exames de sangue ou outros
métodos científicos comprovados).

Neste processo, se o suposto pai ou suposta mãe, aceitar ser o progenitor ou a


progenitora, o processo de averiguação oficiosa de paternidade ou maternidade
termina com um termo de perfilhação (um documento assinado pelo/perfilhante e
funcionário do tribunal, confirmando que é o pai ou mãe); o juiz neste caso, decide
que o(a) perfilhante é o(a) é o pai ou mãe, e ordena a comunicação à conservatória do
registo civil competente para efeitos de registo da filiação.

Se o suposto pai ou a suposta mãe se recusar a aceitar a filiação, das duas uma: ou no
processo não há indícios suficientes da existência da relação de filiação, caso em que
o curador de menores dá um parecer negativo e o juiz ordena o arquivamento, ou há
elementos suficientes de prova da existência da relação de filiação, caso em que o
curador dá um parecer positivo sobre a viabilidade de uma acção de investigação e o
juiz, por despacho, ordena a remessa dos autos ao agente do Ministério Público junto
da secção cível competente, para este instaurar a acção de investigação de paternidade
ou maternidade.

Note-se que, embora sendo uma solução, a nosso ver errada, o artigo 151 da
Organização Tutelar de Menores estabelece que a pessoa que se recusar a submeter
aos exames com vista ao estabelecimento da paternidade ou maternidade, presume-
se pai ou mãe e lavra-se logo termo de perfilhação.

Entendemos ser uma solução errada porque a acção de averiguação oficiosa de


paternidade, desde a sua génese, tem como finalidade apenas aferir se existem
elementos para se intentar uma acção de investigação de paternidade ou maternidade,
podendo findar, ou com o reconhecimento voluntário (perfilhação) ou com a simples
remessa dos autos ao Ministério Público junto das secções cíveis para intentar a acção

13
de investigação (com todas as garantias de uma ampla defesa, contraditório etc). É
precisamente por isso que, entendendo ao carácter administrativo deste procedimento
e considerando que a decisão de remessa dos autos para efeitos de investigação não
constitui caso julgado sobre a questão da filiação, sempre se preconizou que, neste
tipo de acções, não há lugar ao recurso (ver nº 3 do artigo 154 da Oganização Tutelar
de Menores).

Investigação e Impugnação

Para afastar a filiação, pode ser intentada uma acção de impugnação de maternidade
ou paternidade (ou seja, para demonstrar que a maternidade ou paternidade
inicialmente estabelecida ou consentida, não corresponde à verdade). Pode também
haver acção de investigação de paternidade ou maternidade (ou seja, uma acção
visando demonstrar que existe uma relação de filiação).

Se tiver sido estabelecida a paternidade ou maternidade, não pode ser estabelecida


nova relação de paternidade ou maternidade, sem que tenha sido impugnada a
anterior.

ADOPÇÃO (VER O LIVRO DISTRIBUIDO)

FAMÍLIA DE ACOLHIMENTO

• Enquadramento e noção

Tradicionalmente a organização das famílias alargadas em Moçambique, especialmente nas zonas


rurais, permite proporcionar às crianças órfãs um ambiente familiar. Porém, a guerra dos 16 anos, as
calamidades naturais que agravaram a situação de carência das famílias, a migração e a urbanização
são alguns dos factores que abalaram e abalam as famílias alargadas, levando a que existam cada vez
mais crianças em situação de abandono ou desamparo.

Perante a situação de crianças órfãs e vulneráveis, a Lei da Família de 2004 veio acrescentar mais uma
alternativa de amparo familiar, introduzindo o instituto da Família de Acolhimento.
Da Fundamentação da Lei da Família retira-se que o instituto da família de acolhimento foi introduzido
“para dar cobertura a uma situação que tem vindo a ser comum no nosso País, de famílias que têm

14
tomado à sua guarda crianças órfãs ou abandonadas, sem que tenham enveredado pelo caminho da
adopção ou tutela”.
É na esteira do entendimento vertido na Fundamentação que a Família de Acolhimento vem definida no
artigo 381.º da referida Lei como sendo um “meio alternativo de suprir o poder parental, verificada a
impossibilidade da adopção e de tutela” .

A introdução do instituto da Família de Acolhimento, traduz o reconhecimento, pelo legislador,


de que as famílias estão, de forma única, equipadas para proporcional às crianças o amor, a
compreensão e o apoio emocional de que carecem, essenciais para a sua saúde física e mental
e consequente harmonioso desenvolvimento.

A impossibilidade de adopção ou tutela deve ser vista do ponto de vista legal. Trata-se de
situações em que não verificam os requisitos legais estabelecidos para a adopção ou tutela e
também dos casos em que, no confronto entre aquelas duas formas de colocação do menor
numa família e o acolhimento, este se mostra como a alternativa que melhor serve os interesses
superiores do menor.

Assim sendo, a impossibilidade da adopção e da tutela deve ser vista sem ignorar o facto da
jurisdição de menores ser de equidade se orientar por princípios de bom sendo, não estando
sujeita a critérios de legalidade estrita14. Em especial, o interesse superior da criança, tal como
previsto no n.º 3 do artigo 47.º da Constituição da República de Moçambique, deve ser o
princípio orientador em todos os actos relativos às crianças.

Havendo pessoas interessadas em adoptar um menor que se encontre numa das situações
previstas no n.º 1 do artigo 381.º da Lei da Família e outras interessadas em a acolher, a
preferência deverá ser dada à adopção, desde que reunidos os requisitos legais. E compreende-
se que assim seja, pois a adopção cria laços semelhantes às da filiação natural, com idênticos
direitos e deveres. Porém, se o bem-estar da criança for melhor assegurado pela família de
acolhimento e não pela via da adopção, dever-se-á entender que no caso concreto está
verificada a impossibilidade da adopção.

Da conjugação dos artigos 340.º e 341.º da Lei da Família também se alcança que o Tribunal
pode optar por entregar o menor à família de acolhimento, mesmo existindo parentes que
poderiam exercer a tutela; a decisão do Tribunal será neste caso baseada no interesse superior
do menor.

• Requisitos da integração do menor na família de acolhimento

Os requisitos relativos à família de acolhimento vêm previstos no artigo 382.º da Lei da Família,
sendo eles os seguintes:

• A família de acolhimento deve ter a necessária estabilidade emocional e as condições


financeiras mínimas;

14 Ver artigo 3 da Organização Tutelar de Menores, aprovada pela Lei n.º 8/2008, de 15 de Julho.

15
• Um dos cônjuges da família de acolhimento deve ter mais de 25 anos de idade;
• Ambos os cônjuges, quando não separados judicialmente de pessoas e bens, devem
consentir no acolhimento;
• Os filhos dos cônjuges da família de acolhimento, quando maiores de 12 anos, devem
dar o seu consentimento.

Apesar da Lei fazer referência reiterada a cônjuges, a verdade é que o acolhimento pode ser feito por
companheiros da união de facto e mesmo por uma pessoa. Na verdade, da interpretação do artigo 382.º,
alínea c), da Lei da Família, se retira que, apenas um dos cônjuges pode providenciar pelo acolhimento,
quando separado judicialmente de pessoas e bens que, como sabemos, pode ser convertida em
divórcio. Ora, se o cônjuge separado judicialmente de pessoas e bens, que pode posteriormente ser
divorciado, pode providenciar pelo acolhimento, sem obter o consentimento do outro cônjuge, decorre
daí ser possível o acolhimento singular, isto é, por uma só pessoa. Sendo assim, nenhuma razão legal
justificaria a exclusão dos unidos de facto. Aliás, outro não pode ser o entendimento se se tiver em conta
que a adopção, que cria laços muito mais fortes que o acolhimento, pode ser feita por pessoas casadas,
por pessoas unidas de facto ou vivendo em comunhão de vida e por uma só pessoa (adopção singular).

Os requisitos relativos à família de acolhimento foram estabelecidos, essencialmente, para assegurar


que a criança seja acolhida num seio familiar adequado ao seu bem-estar.

O artigo 383.º da Lei da Família, fixa como idade máxima do menor a acolher os 16 anos. Para além do
requisito da idade do menor a acolher, a integração deste na família de acolhimento deve apresentar
vantagens para o seu bem-estar e desenvolvimento e deve ser feita com o consentimento dos seus pais
naturais ou ascendentes que o tenham à sua guarda, desde que exerçam plenamente o poder parental.

• Efeitos da integração na família de acolhimento

Desde logo a lei não faz cessar o vínculo entre o acolhido e a sua família natural, como se depreende
do artigo 384.º da Lei da Família.

Na relação entre os cônjuges ou pessoas que acolhem e o acolhido, o artigo 385.º da Lei da Família
estabelece como efeitos:

• As pessoas que acolhem exercem plenamente o poder parental sobre o acolhido, com as
necessárias adaptações;
• Os que acolhem o menor devem alimentos a este durante a sua menoridade;
• O acolhido, depois da atingir a maioridade, constitui-se na obrigação de prestar alimentos aos
que o acolheram, na falta de outras pessoas obrigadas, previstas no artigo 313.º da Lei da
Família, em condições de prestar alimentos.

Quando ao exercício do poder parental, importa frisar que o artigo 330.º da Lei da Família prevê como
meios alternativos de suprir o poder parental a tutela ou o acolhimento. Assim sendo, o regime aplicável
ao exercício do poder parental pelos que acolhem um menor é o mesmo que o do exercício do poder
parental pelo tutor.

16
Assim, no exercício do poder parental, o tutor e a(s) pessoa(s) que acolhe(m) o menor, para além dos
actos que os pais naturais não podem praticar sem autorização do tribunal, deve(m) solicitar autorização
do tribunal para a prática dos actos previstos no artigo 349.º da Lei da Família15.

O acolhimento, por ser um meio alternativo de suprir o poder parental, tal como a tutela, cessa quando
o menor atinge a maioridade civil. A Lei, porém, excepcionalmente, prevê no n.º 3 do artigo 385.º da Lei
da Família a obrigação de prestação de alimentos que incumbe ao ex-acolhido em relação às pessoas
que o acolheram.

A obrigação de prestação de alimentos só recairá no ex-acolhido se todas as pessoas obrigadas a


prestar alimentos nos termos do artigo 413.º da Lei da Família não puderem. Trata-se duma norma de
carácter ético-jurídico, por fazer sentido que seja prestado apoio às pessoas que igualmente apoiaram
o menor e que contribuíram desta forma para o seu crescimento e consequente criação de capacidade
de auto sustento.

Quando aos direito sucessórios, a integração do menor na família de acolhimento não afecta a sua
posição em relação à família natural. O n.º 1 do artigo 386.º da Lei da Família claramente estabelece
que o menor mantém todos os direitos sucessórios, sendo por isso herdeiro legal, legítimo e legitimário,
da sua família natural.

Na relação com a família de acolhimento, o menor é herdeiro legítimo, ocupando a quinta classe de
sucessíveis na hierarquia estabelecida no artigo 2133.º do C. Civil. Nada obsta, de qualquer modo, que
o menor seja instituído por contrato ou testamento como herdeiro em relação à totalidade da herança,
se não existirem herdeiros legitimários.

Quando aos impedimentos matrimoniais, eles mantêm-se na relação entre o acolhido e a sua família
natural, já que, como foi dito, não cessa a tal relação.

O vínculo que liga o acolhido aos cônjuges da família de acolhimento constitui impedimento impediente
previsto na alínea d) do artigo 32.º da Lei da Família.

O acolhimento cessa com a maioridade do acolhido. A nosso ver, de lege ferenda, faria todo o sentido
que tal impedimento prevalecesse depois da maioridade do acolhido. Na verdade, o impedimento em
questão funda-se em razões de ordem moral, pois o acolhido é integrado e tratado como filho; assim
sendo, não parece fazer sentido, pelas mesmas razões de ordem moral, que qualquer dos membros da
família de acolhimento possa contrair matrimónio com o acolhido, depois de este atingir a maioridade.

O impedimento resultante do acolhimento é, porém, susceptível de dispensa nos termos do artigo 37.º
da Lei da Família.

• Formalidades para a integração do menor na família de acolhimento

15O artigo 349.º, n.º 1, alínea a), da Lei da Família, faz uma remissão errônea ao artigo 299.º da mesma Lei. A
remissão correcta é ao artigo 296.º da Lei da Família. Na verdade, o artigo 349.º da Lei da Família corresponde
ao artigo 1938.º do C. Civil e este fazia menção ao artigo 1887.º do mesmo Código, que actualmente corresponde
ao artigo 296.º da Lei da Família. E faz sentido que assim seja pois a lei pretende atribuir ao tutor menos poderes
que os pais naturais.

17
A integração no menor na família de acolhimento é decretada por tribunal.

O processo relativo à integração do menor na família de acolhimento vem regulado nos artigos 114 a
117 da Organização Tutelar de Menores (OTM), aprovada pela Lei n.º 8/2008, de 15 de Julho.

O processo é essencialmente idêntico ao da adopção, com as necessárias adaptações – é o que diz o


artigo 114 da OTM. Como já foi dito, o processo comporta duas fases: uma instrutória e outra decisória.

Assim, o processo do acolhimento inicia-se com o requerimento dirigido ao Juiz Presidente do tribunal
da área de residência do menor e dá entrada na respectiva secretaria judicial. No requerimento inicial
deve ficar demonstrado que os requerentes reúnem requisitos para acolher e o menor encontra-se numa
das situações previstas no n.º 1 do artigo 381º da Lei da Família e reune os requisitos para ser acolhido,
juntando toda a prova necessária. Deverão ainda os requerentes indicar se existem ou não pessoas
que, por lei, devem prestar o seu consentimento.

Depois da fase instrutória, que corre nos mesmos termos que no processo de adopção, no relatório final,
se o parecer for favorável à integração do menor na família de acolhimento, os Serviços da Acção Social
devem informar das razões da impossibilidade da adopção e da tutela.

Nos termos da OTM, artigo 117, n.º 1, o tribunal pode fixar um período de integração não excedente a
3 meses, tendente a verificar a capacidade de integração entre o menor e a família de acolhimento.
Fixado o período de integração, o menor pode ser entregue à família de acolhimento e só depois deste
período e revelando-se capacidade de adaptação, na sequência do relatório final dos Serviços da Acção
Social e promoção do Ministério Público, o tribunal pode decretar o acolhimento. Tal como na adopção,
o posicionamento dos Serviços da Acção Social e do Ministério Público não são vinculativos.

• Cessação de efeitos da integração do menor na família de acolhimento

O acolhimento, como dissemos, sem prejuízo das excepções previstas por lei, cessa com a maioridade
do acolhido. Mas o tribunal, com fundamento no artigo 387.º da Lei da Família, quando a permanência
na família de acolhimento não satisfaça o interesse superior do menor, pode determinar o afastamento
deste da tal família.
Os efeitos da integração, nos termos do artigo 388.º da Lei da Família, cessam com o trânsito em julgado
da sentença que decrete o afastamento da família de acolhimento.

18

Você também pode gostar