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EDILTON MEIRELES

SILVIA TEIXEIRA DO VALE


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ESCOLA BAIANA
DE DIREITO DO
TRABALHO
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Escola baiana de direito do trabalho / organização de Edilton Meireles, Silvia Teixeira
E74 do Vale – 1.ed. – Curitiba: Editorial Casa, 2022.
442p.; 23cm

Vários colaboradores
ISBN 978-65-5399-167-5

1. Direito do trabalho. I. Meireles, Edilton (org.). II. Vale, Silvia Teixeira do (org.).

CDD 344.01
(22.ed)
CDU 331.16

Nº. Registro Doi: 10.55371/

1ª edição – Ano 2022


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Assistente: Cláudia Valéria Moés Galvão
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Chefia: Valdicéa Costa do Val
SUMÁRIO
A FIGURA DO EMPREGADO
HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17:
UMA ANÁLISE DA INCONVENCIONALIDADE
E INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 444,
PARÁGRAFO ÚNICO DA CLT. . . . . . . . . . . . 9
Adriana Wyzykowski

A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS


(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS
RELAÇÕES DE TRABALHO. . . . . . . . . . . . . . 41
Cláudio Mascarenhas Brandão

UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA


INCONSTITUCIONALIDADE E INEFICÁCIA DO ARTIGO
444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA . . . . . . 83
Débora Carvalho Reis
Valter Bastos Cunha Filho
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA:
UMA ANÁLISE COMPARATIVA DO INSTITUTO À LUZ
DA LEGISLAÇÃO, DOS PRINCÍPIOS DA OIT, E DA
JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES. . . 123
Dervana Santana Souza Coimbra

MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES


TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA
ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA . . . . . . . 167
Edilton Meireles

O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO


COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA SEM JUSTA
CAUSA OU ARBITRÁRIA . . . . . . . . . . . . . . 195
Edilton Meireles
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS
PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A
ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR . . . . 217
Estêvão Fragallo Ferreira

A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA
DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS COMO FORMA DE EFETIVAÇÃO
DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO
DECENTE NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . . 245
Felipe Macêdo Pires Sampaio

TELETRABALHO E GÊNERO: SEGUNDO UMA


ÓTICA INTERDISCIPLINAR E JURÍDICA. . . . . . . 281
Giovanna Martins Sampaio

A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS


OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI
13.467/2017. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 301
Juliana Gabriela Hita Neves
JOSÉ MARTINS CATHARINO: PROFESSOR
DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO
TRABALHO NO BRASIL . . . . . . . . . . . . . . . 339
Murilo C. S. Oliveira

CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE


DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS . . . . . . . 355
Pablo Fernandez Patterson

SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS?


UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE. . . 383
Renata Queiroz Dutra

TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM:
A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM . . . . . . . . . . 411
Rosangela Rodrigues Dias de Lacerda
Silvia Teixeira do Vale
A FIGURA DO EMPREGADO
HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA
LEI 13.467/17: UMA ANÁLISE
DA INCONVENCIONALIDADE
E INCONSTITUCIONALIDADE
DO ART. 444, PARÁGRAFO
ÚNICO DA CLT

Adriana Wyzykowski1

1  Doutora em Jurisdição Constitucional e Novos Direitos pela Universidade Federal da


Bahia. Mestre em Direito Privado – Relações Sociais e Novos Direitos da Universidade
Federal da Bahia – UFBA. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Facul-
dade Baiana de Direito. Professora Adjunta da Universidade Federal da Bahia - UFBA.
Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia - UNEB. Professora Adjunta da
Faculdade Baiana de Direito e Gestão. Email para contato: adrianawyzy@gmail.com
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
A análise da figura do empregado hipersuficiente foi o mote desta pesquisa, em
especial por conta da mudança de paradigmas que esta proporciona dentro do
sistema protetista trabalhista. A hipossuficiência do empregado fez com que se
criasse uma rede protetora no mundo do trabalho, tolhendo negociações individuais
que fossem prejudiciais a este sujeito. No entanto, a Lei 13.467/17, conhecida como
Reforma Trabalhista, pareceu mudar este paradigma, uma vez que equiparou os
poderes negociais do empregado hipersuficiente aos poderes dos sindicatos, não
levando em consideração o direito fundamental à igualdade. Utilizou-se o método
dedutivo proposto por René Descartes, além da utilização do método de Karl
Popper. Partiu-se de premissas gerais para premissas específicas, realizando-se
uma análise crítica da doutrina, legislação e jurisprudência, com experimentação
das propostas aprioristicamente formuladas. Como resultados, vislumbrou-se que
não há como se falar em exercício de liberdade em relações desequilibradas, de
sorte a ser necessário tratamento desigual que permita uma verdadeira liberdade
de escolha. Dessa forma, o art. 444, parágrafo único da CLT, padece de vício de
inconvencionalidade e inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da isonomia.
Palavras-chave: Liberdade Negocial. Direito do Trabalho. Empregado Hipersuficiente.
Isonomia.

1. INTRODUÇÃO

Numa sociedade pluralista, marcada por complexas relações


democráticas, o estudo da autonomia dos indivíduos e dos atores
sociais se mostra deveras importante, uma vez que constituem uma
noção de Estado Constitucional.
Dessa forma, dentro do reconhecimento obtido através de
um ordenamento, os interesses de um grupo ou de pessoas individu-
alizadas podem ser determinados livremente, interesses estes justi-
ficados dentro dos limites trazidos pelas esferas jurídicas atuantes,
com o poder de criação do Direito em questão2.
A autonomia privada, na seara trabalhista, como reflexo da
concepção pluralista do Direito, representa um sistema de ação não
estatal construído para a solução de conflitos relativos ao mundo do

2  CARESSI, Franco. Il Contratto. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1987, p. 99.

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A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

trabalho, em que o direito estatal abre espaços de regulação à norma-


tização por meio da autonomia dos grupos sociais laborais3.
A autonomia privada individual, como um poder conferido às
partes para a criação de normas jurídicas trabalhistas, deve levar em
consideração que as relações individuais laborais possuem um maior
ou menor grau de assimetria diante da vulnerabilidade do emprega-
do, que pode ser mais ou menos intensa no caso concreto. Por isso,
o sistema protetivo trabalhista deve abarcar a autonomia privada,
no sentido de que esta precisa estar em afinamento com os ideais
de liberdade e igualdade que permeiam o poder jurídico em questão.
No entanto, não parece ter sido este o caminho seguido pela
Lei 13.467/17, conhecida como Reforma Trabalhista, que buscou
remodelar o Direito do Trabalho em sua gênese, dando uma maior
relevância às negociações em detrimento do padrão legal estabe-
lecido. Inclusive, a referida legislação criou a figura do empregado
hipersuficiente, que seria aquele que poderia negociar nos mesmos
termos garantidos aos sindicatos no art. 611-A da Consolidação das
Leis do Trabalho - CLT, sendo necessário apenas que o empregado
possua diploma de nível superior e perceba salário mensal igual ou
superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime
Geral da Previdência Social.
Discute-se neste artigo a criação da figura do empregado
hipersuficiente no contexto da Reforma Trabalhista, em especial
diante da mudança de paradigmas que esta representa no que tange
ao sistema protetivo trabalhista. Ademais, tratar-se-á dos critérios
estabelecidos pelo art. 444, parágrafo único da CLT à luz do princípio
da igualdade, de sorte a analisar a convencionalidade e constitucio-
nalidade deste dispositivo.

3  GIUGNI, Gino. Introducción al estúdio de la autonomia colectiva. Trad. y estúdio


preliminar de José Luis Monereo Pérez e José Antônio Fernández Avilés. Granada:
Editorial Comares, 2004, p. XX.

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

2. O CONTEXTO DA CRIAÇÃO DA FIGURA DO


EMPREGADO HIPERSSUFICIENTE PELA LEI 13.467/17

Sabe-se que o Brasil enfrentou e enfrenta grave crise econô-


mica e política desde o ano de 2015. Entre 2015 e 2016 a economia
brasileira vivenciou a segunda pior crise da sua história, com queda
acumulada do PIB em 7% e com grave índice de desemprego, chegan-
do ao elevado patamar de treze milhões de desocupados4.
Neste contexto, foi apresentado no Congresso Nacional
anteprojeto de reforma em alguns dispositivos da Consolidação das
Leis do Trabalho e da Lei do Trabalho Temporário – Lei 6019/74. Tal
projeto, advindo do Poder Executivo em 23 de dezembro de 2017,
fora numerado como Projeto de Lei 6787/16 e passou a ser conhe-
cido popularmente como “reforma trabalhista”, possuindo apenas
nove páginas, duas dedicadas à exposição de motivos e as sete res-
tantes prevendo a alteração de sete artigos e revogação, parcial ou
integral, de seis artigos da CLT, além de alterações em oito artigos da
Lei 6019/74 e revogação de dois artigos da mesma lei5.
Foram criadas comissões especiais na Câmara dos Deputa-
dos, visando dar tramitação ao projeto proposto. O relatório final do
projeto em comento propôs mais de duzentas alterações na CLT e na
Lei do Trabalho Temporário, tendo sua redação final aprovada pela
Câmara dos Deputados em 26 de abril de 2017.
Seu relator, o Deputado Rogério Marinho, argumentou que a
urgência na aprovação se deu pela necessidade de diminuir o número
de desempregados, além de buscar modernizar a legislação traba-

4  DIEESE. Boletim de conjuntura. N. 14, maio de 2018. Disponível em: https://www.


dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2018/boletimConjuntura014.html, acesso em 07
de jan. de 2019.
5  BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 6787/16. Disponível em: https://
www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076;
acesso em: 08 de jan. de 2019.

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A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

lhista brasileira, que, pelo excesso de normas advindas do Estado e


rigidez, encontrava-se defasada6.
Após encaminhamento ao Senado Federal, a proposta
supracitada foi aprovada em 11 de julho de 2017, com respeito aos
ditames legais de aprovação para legislação ordinária, sem qualquer
alteração, sendo o referido projeto de lei encaminhado ao Presidente
da República, para sanção presidencial7.
Sem vetos do Presidente da República, foi promulgada a Lei
13.467 em 13 de julho de 2017, apenas 7 meses após a proposição de
projeto de lei para alteração, com período de vacatio legis de 120 dias
após a sua publicação. Visando o aprimoramento de dispositivos
pontuais, conforme exposição de motivos, entrou em vigor em 14
de novembro de 2017 a Medida Provisória 808/17, alterando alguns
dispositivos que haviam sido fruto de alteração pela Lei 13.467/178.
Após receber novecentos e sessenta e sete propostas de emendas,
a Medida Provisória em comento não desfrutou da tramitação ade-
quada, vindo a caducar em 23 de abril de 20189.
Em resumo, a tramitação da aludida legislação, de forma
rápida e sem alterações posteriores, teve como justificativa a ne-
cessidade de criação de postos de trabalho, fortalecimento da ne-
gociação coletiva e, consequentemente, dos sindicatos, bem como
a modernização da legislação. Contudo, traz em seu bojo medidas

6  BRASIL. Câmara dos Deputados. Parecer da Comissão Especial destinada a proferir


parecer ao Projeto de Lei n. 6.787/16. Disponível em: https://www.camara.gov.br/
proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2122076; acesso em: 08 de jan. de
2019.
7 BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei da Câmara n. 38, de 2017 - Reforma
Trabalhista. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/129049, acesso em 08 de jan, de 2019.
8  BRASIL. Medida Provisória 808/17. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho -
CLT. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Mpv/
mpv808.htm; acesso em 08 de jan. de 2019.
9  BRASIL. Congresso Nacional. Medida Provisória 808/17. Disponível em: https://www.
congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/131611; acesso em 08
de jan. de 2019.

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

flexibilizadoras contundentes, principalmente em relação ao Direito


Material do Trabalho10, vislumbrando, em alguns momentos, pontos
de desregulamentação11.
A lei 13.467/17 demonstra seu claro direcionamento em
promover a manutenção das diferenças e segregações sociais, fun-
cionando como um mecanismo de exclusão da classe obreira quando
lhes retira ou flexibiliza direitos trabalhistas até então consagrados12.
Além do evidente déficit de debate social que a legislação
supracitada possui, vício este decorrente da rápida e ansiosa trami-
tação que compromete a legitimidade da lei promulgada, revela viés
flexibilizador e precarizador das relações laborais, com a instituição
de temas como trabalho intermitente, trabalho da gestante e lactan-
te em condições insalubres13, tarifação do dano moral com base no
patamar salarial dos empregados, diminuição das normas de saúde e
segurança no teletrabalho, dentre outros.
A promulgação de consultas a toda a sociedade em matéria
legislativa que sejam referentes ao mundo do trabalho, inclusive, é
pressuposto do Estado Democrático de Direito e compromisso in-

10  MAIOR, Jorge Luiz Souto; SEVERO, Valdete Souto. Manual da Reforma Trabalhista:
pontos e contrapostos. São Paulo: Sensus, 2017, p. 17.
11  A supressão das chamadas horas in itineri seria um exemplo de desregulamentação
implementada pela reforma trabalhista. Antes, para o tempo de deslocamento do
empregado ser computado como jornada de trabalho, deveria ser o percurso de difícil
acesso ou não servido por transporte público, sendo necessário o fornecimento do
veículo pelo empregador, conforme o antigo art. 58, §2º da CLT. Após a Lei 13.467/17,
o tempo de deslocamento não será computado na jornada de trabalho, por não ser
tempo à disposição do empregador. OLIVEIRA, Leandro Antunes de. A supressão das
horas in itinere. In: MIESSA, Élisson; CORREIA, Henrique (org.). A reforma trabalhista e
seus impactos. Salvador: Editora Juspodivm, 2018, p. 387.
12  DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no
Brasil: com os comentários à Lei 13.467/17. São Paulo: LTr, 2017, p. 52.
13  O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal - STF, deferiu liminar
na Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 5938 para suspender norma que admite
a possibilidade de trabalhadoras grávidas e lactantes desempenharem atividades
insalubres em algumas hipóteses em 30 de abril de 2019. Em 29 de maio de 2019, o STF, por
maioria dos votos, julgou procedente a ADI 5938. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI
5938. Min. Relator: Alexandre de Moraes. DJ 29 maio 2019. Disponível em: http://portal.stf.
jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5447065, acesso em 03 jun. 2019.

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A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

ternacional assumido pelo Brasil perante a Organização Internacio-


nal do Trabalho - OIT, nos termos da Convenção de nº 144, ratificada
em 199414. Busca promover, assim, diálogo social amplo, de forma a
atingir todas as camadas da sociedade, sendo necessária consulta
tripartite, sob pena de inconvencionalidade da lei em questão.
A tramitação da reforma trabalhista é, em verdade, a maior
demonstração do seu déficit democrático, pois não se trata de mera
alteração legislativa, e sim de profunda modificação nos paradigmas
de regulação do trabalho, levada a cabo sem ampla discussão. Des-
taca-se que a ausência de debate se deu, pois as audiências públicas,
seminários e reuniões ocorreram com base num texto que veio a ser
descartado por um substitutivo que alterou substancialmente suas
proposições15.
Padece, ainda, de um vício de convencionalidade quando
analisada à luz da Convenção 144 da OIT. Isso porque o controle
de convencionalidade é o processo de compatibilização vertical
dos comandos advindos das normas domésticas com os comandos
encontrados nas Convenções Internacionais em vigor no Estado16.
Trata-se de um mecanismo desenvolvido perante a Corte Interame-
ricana de Direitos Humanos, visando analisar compatibilidade das
normas internas com as normas internacionais na sua atividade. Ao
Estado-Parte não cabe invocar o direito interno para o descumpri-
mento de um tratado internacional que ratificou, conforme o art. 27

14  FLEURY, Ronaldo Curado. A reforma trabalhista, o trabalho digno e o Ministério


Público do Trabalho in: COSTA, Ângelo Fabiano Farias da; MONTEIRO, Ana Cláudia
Rodrigues Bandeira; BELTRAMELLI NETO, Silvio. Reforma trabalhista na visão dos
procuradores do trabalho. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 20.
15  BELTRAMELLI NETO, Silvio. A reforma trabalhista e o retrocesso na proteção jurídica
da saúde e segurança no trabalho: notas críticas sobre jornada e outros dispositivos
alusivos ao meio ambiente laboral. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª
Região, Campinas, SP, n. 51, p. 183-202, jul./dez. 2017, p. 185.
16  MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 3. ed. Rio de Janeiro:
Forense; São Paulo: Método, 2016, p. 244.

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados17. Ademais, cabe


ainda ao Estado-Parte adotar as medidas advindas das convenções
internacionais, garantindo-as pelas normas de direito interno18, in-
cluindo-se os ditames constitucionais19.
Esta conclusão foi apontada na 2ª Jornada de Direito Material
e Processual promovida pela Associação Nacional dos Magistrados
Trabalhistas - ANAMATRA, no enunciado 1 da Parte IV20, que afirma
ser a reforma trabalhista ilegítima nos aspectos material e formal.
Destaca-se a falta de consulta tripartite exigida pela Convenção 144
da OIT, que exige que grupos de representação dos empregados,
empregadores e Governo sejam ouvidos em relação às propostas de
ajustes na legislação interna, visando promoção do diálogo social na
atuação da Organização Internacional do Trabalho.
Em sentido contrário, André Araújo Molina e Valério Ma-
zzuoli entendem que não houve violação direta da Convenção 144 da
OIT no que tange à tramitação da reforma trabalhista, uma vez que

17  BRASIL. Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009.


Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de
maio de 1969, com reserva aos artigos 25 e 66. Disponível em: http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d7030.htm, acesso em 08 de jan. 2019.
18  Neste sentido, vide artigo 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos,
in verbis: “Art. 2 – Dever de adotar disposições de direito interno. Se o exercício
dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por
disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados-partes comprometem-se a
adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta
Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para
tornar efetivos tais direitos e liberdades”. BRASIL. Decreto no 678, de 6 de novembro de
1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José
da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/decreto/D0678.htm; acesso em 08 de jan. de 2019.
19  Isso se dá na medida em que os direitos humanos permeiam todas as relações,
devendo ser preservados a todo custo, sendo vistos como jus cogens, Trata-se,
portanto, da adoção de normas de jus cogens pro homine. FINKELSTEIN, Cláudio.
Hierarquia das Normas no Direito Internacional: Jus Cogens e Metaconstitucionalismo.
São Paulo: Saraiva, 2013. p. 312.
20  FELICIANO, Guilherme; MIZIARA, Raphael. Enunciados da 2ª Jornada de Direito
Material e Processual do Trabalho: organizados por assunto. Disponível em: https://
drive.google.com/file/d/1oZL9_JohYjNInVvehEzYDp-bl0fcF6i6/view; acesso em 08 de
jan. de 2019.

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A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

a mesma não exige que os representantes dos empregados e empre-


gadores sejam ouvidos no trâmite das legislações internas, bastando
para tanto as limitações procedimentais previstas na Constituição
Federal21. Discorda-se da posição adotada, uma vez que a consulta
tripartite representa forma democrática de implementação de mo-
dificações substanciais no padrão legislativo laboral, consagrando os
objetivos constitucionais com um diálogo participativo na busca da
valorização do trabalho humano.
Quanto à autonomia privada individual, a reforma trabalhista
trouxe modificação substancial com a criação da figura do empre-
gado hipersuficiente, conforme disposição contida no art. 444,
parágrafo único da CLT. Referir-se-á a este tema nesta ocasião.

3. AS INOVAÇÕES TRAZIDAS PELO ARTIGO 444,


PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 13.467/17: O EMPREGADO
HIPERSUFICIENTE

Do ponto de vista econômico, Cesarino Júnior dividia os


homens em proprietários e não proprietários. Os não-proprietários,
que apenas possuem sua força de trabalho, seriam chamados de
hipossuficientes para o autor, enquanto aqueles que fossem proprie-
tários de capitais, imóveis, maquinário, terras etc. seriam nomeados
de autossuficientes. O autor ainda vislumbraria outra categoria, dos
chamados hipersuficientes. Estes são “autossuficientes em posição
econômica superior”, de sorte a colocar os autossuficientes numa
posição de hipossuficiência relativa, pois podem ser eliminados da
concorrência pelo hipersuficiente22.

21 MAZZUOLI, Valério de Oliveira; MOLINA, André Araújo. O controle de


Convencionalidade da Reforma Trabalhista. Revista Dat@venia, V.9, Nº.1 (Jan./
Abr.2017 ), p.38-39.
22  CESARINO JÚNIOR, Antônio Ferreira. Direito Social. São Paulo: LTr, 1980, p. 44-45.

17
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Percebe-se que o autor se utilizava dos conceitos de Direito


Econômico acima relatados para definir a abrangência do Direito
Social, de sorte que este se encontrava apto a tutelar apenas os
hipossuficientes ou a debilidade econômica absoluta, dependendo
o empregado do produto do seu trabalho para se manter e manter
à sua família. Os hipersuficientes, na visão do autor, seriam os gran-
des capitalistas ou grandes industriais, que colocariam os pequenos
capitalistas numa posição de hipossuficiência relativa, mas que não
encontravam tutela no Direito Social.
Com o advento da reforma trabalhista, a expressão hipersu-
ficiente passou a ser utilizada de forma diversa, para tratar do em-
pregado que percebe salário mensal igual ou superior a duas vezes o
limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdência Social
- RGPS e que possua nível superior. Este empregado possui o mesmo
poder de negociação que a entidade coletiva trabalhista, podendo
negociar individualmente seus direitos trabalhistas nos mesmos
moldes do art. 611-A da CLT23.

23  Art. 611-A.  A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência
sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: 
I - pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais; 
II - banco de horas anual;  
III - intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas
superiores a seis horas;  
IV - adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei no 13.189, de 19
de novembro de 2015; 
V - plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do
empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções
de confiança; 
VI - regulamento empresarial;
 VII - representante dos trabalhadores no local de trabalho; 
VIII - teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente;  
IX - remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado,
e remuneração por desempenho individual;  
X - modalidade de registro de jornada de trabalho;  
XI - troca do dia de feriado; 
XII - enquadramento do grau de insalubridade; 
XIII - prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das
autoridades competentes do Ministério do Trabalho;  

18
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

A escolha da criação de um padrão de diferenciação entre


empregados foi política, conforme se observa do relatório elaborado
pelo relator da reforma trabalhista, o Deputado Rogério Marinho.
Fundamenta a inserção do artigo 444, parágrafo único da CLT, na
premissa da igualdade, alegando que os desiguais precisam ser tra-
tados com desigualdade. A CLT teria sido pensada para empregados
hipossuficientes, não se admitindo que um trabalhador com “gradu-
ação em nível superior e salário acima da média remuneratória da
grande maioria da população seja tratado como alguém vulnerável,
que necessite de proteção do Estado ou de tutela sindical para nego-
ciar seus direitos trabalhistas”24.
Jorge Boucinhas Filho25 acredita que o legislador brasileiro,
neste ponto, poderia ter criado uma lei específica para trabalhadores

XIV - prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em


programas de incentivo;  
XV - participação nos lucros ou resultados da empresa. 
§ 1o  No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça
do Trabalho observará o disposto no § 3o do art. 8o desta Consolidação.  
§ 2o  A inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em
convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por
não caracterizar um vício do negócio jurídico.  
§ 3o  Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva
ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra
dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo. 
§ 4o  Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de convenção
coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula compensatória,
esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito.  
§ 5o  Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de
trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou
coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos.  BRASIL.
Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.
htm, acesso em 08 de jan. de 2019.
24  BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei da Câmara n. 38, de 2017 - Reforma
Trabalhista. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/129049, acesso em 10 abr. 2019.
25  BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. Autonomia negocial dos trabalhadores
hipersuficientes in: DALLEGRAVE NETO, José Affonso; KAJOTA, Ernani. Reforma
trabalhista ponto a ponto.Estudos em homenagem ao professor Luiz Eduardo Gunther.
São Paulo: LTr, 2018, p. 129.

19
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

por ela considerados parassubordinados, garantindo-lhes menos


direitos ou ter criado uma lei específica para tratar de forma distinta
os mais bem remunerados. No entanto, frisa que a opção do legisla-
dor foi no sentido de reconhecer maior autonomia para negociar e
menor interferência estatal em relação ao negociado.
Com base em tal justificativa, aprovou-se a criação do pará-
grafo único do art. 444 da CLT:

Parágrafo único. A livre estipulação  a que se refere o


caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no
art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia
legal e preponderância sobre os instrumentos cole-
tivos, no caso de empregado portador de diploma de
nível superior e que perceba salário mensal igual ou
superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios
do Regime Geral de Previdência Social. 

Por meio desta, criou-se três categorias de trabalhadores


no Brasil: o empregado padrão, qualificado doutrinariamente como
hipossuficiente ou vulnerável; o hipersuficiente e o autônomo. The-
reza Nahas chama o empregado padrão de desqualificado e o hiper-
suficiente de qualificado, mantendo a nomenclatura do autônomo
e ressalvando que este está sujeito às disposições do Código Civil26.
Discorda-se da posição adotada pela autora em face de uma possível
discriminação no que tange aos empregados hipossuficientes ou
vulneráveis, que ao serem nomeados como desqualificados, podem
ser considerados incapazes tecnicamente por falta de qualificação
profissional, indignos ou até mesmo incompetentes.
Nota-se que a legislação se preocupou em elencar dois requi-
sitos de natureza objetiva para fins de configuração do empregado

26  NAHAS, Thereza Cristina. Novo Direito do Trabalho: institutos fundamentais. Impactos
da reforma trabalhista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 142-143.

20
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

hipersuficiente27. O primeiro deles consiste no grau de escolaridade do


empregado em comento. Para que seja considerado hipersuficiente,
este empregado necessita ter nível superior completo, em Instituição
de Ensino Superior autorizada a funcionar por meio de credenciamen-
to no Ministério da Educação - MEC, sendo periodicamente avaliada
em processo de recredenciamento de cursos superiores.
O segundo critério possui viés econômico a partir do mo-
mento que estabelece que o empregado em questão deve perceber
salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos
benefícios do Regime Geral da Previdência Social. Em 2019, o teto
dos benefícios pagos pelo Instituto Nacional do Seguro Social - INSS
foi estabelecido no patamar de R$ 5.839,4528, de sorte que o empre-
gado deveria perceber salário igual ou superior a R$11.678,90 para
ser enquadrado como hipersuficiente, se possuir nível superior.
Salienta-se que, em face da natureza excepcional da regra em
comento, impõe-se uma interpretação restritiva, de sorte que o pa-
râmetro salarial deve considerar o salário-base do empregado, sem o
acréscimo de complementos salariais. Deve o empregado “estar no
patamar da remuneração mínima em qualquer hipótese do ano, com
ou sem salários condicionais, com ou sem fatores aleatórios”29.

27  Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga defende que os critérios estabelecidos


pelo art. 444, parágrafo único da CLT são plenamente aplicáveis aos atletas
empregados, desde que cumpridos os requisitos estabelecidos pelo dispositivo.
Considerando a rotina de treinos dos atletas e a dura realidade dos mesmos, o autor
acredita que estes requisitos podem ser preenchidos por aquele que acompanham a
carreira do atleta, como seu empresário ou advogado, de sorte a prevalecer a livre
estipulação nos moldes do art. 611-A da CLT. Discorda-se deste posicionamento, uma
vez que a legislação visa consagrar a autonomia individual do trabalhador com base
em parâmetros controversos, é verdade, mas que estão relacionados à liberdade
negocial do ser humano em questão. VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da.
Reforma Trabalhista e seus impactos. 2. ed. São Paulo: LTr, 2018, p. 112.
28  BRASIL. Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. Portaria oficializa reajuste de 3,43%
para benefícios acima do mínimo em 2019. Disponível em: http://www.previdencia.
gov.br/2019/01/portaria-oficializa-reajuste-de-343-para-beneficios-acima-do-minimo-
em-2019/, acesso em 10 abr. 2019.
29  SILVA, Homero Batista Mateus da. Comentários à reforma trabalhista. Análise da lei
13.467/2017 - artigo por artigo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 70.

21
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Em relação ao mercado de trabalho brasileiro, o preenchi-


mento dos requisitos supracitados não é uma constante, diante dos
dados apontados pela PNAD contínua. No período que corresponde
do primeiro trimestre de 2012 ao terceiro trimestre de 2018, a
proporção de trabalhadores com ensino superior avançou de 13,7%
para 18,5%. Isso significa que o número de trabalhadores com ensino
superior completo aumentou, passando para 19,4 milhões de traba-
lhadores no terceiro trimestre de 2018. Neste cenário, a população
ocupada com nível superior apresenta expansões interanuais positi-
vas, crescendo 6,0% no período mencionado30.
O rendimento médio habitualmente recebido por aqueles
que ocupam cargos de nível superior foi de R$ 4.791,00 no terceiro
trimestre de 201831, patamar este que não atinge sequer o limite má-
ximo dos benefícios do RGPS, quiçá o dobro. Percebe-se por estes
dados que uma parcela pequena dos empregados brasileiros con-
seguirá atingir os requisitos estabelecidos pelo artigo em questão,
contudo estes empregados possuem a tutela do Direito do Trabalho
e não podem ser desprezados apenas por se tratar de um percentual
pequeno da massa de trabalhadores no Brasil.
Frisa-se ainda que os empregados considerados hipersufi-
cientes não devem ser confundidos com os altos empregados, que
são aqueles que exercem cargos ou funções de confiança, segundo
art. 62 da CLT, e percebem, pelo menos, acréscimo salarial de 40%.
Os altos empregados apenas serão considerados hipersuficientes
se vierem a preencher os requisitos já mencionados. Reconhece-se,
todavia, que o patamar salarial dos altos empregados faz com que

30  BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica aplicada - IPEA. Carta de Conjuntura n.


41, 4º Trimestre de 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/conjuntura/181211_cc41_nota_tecnica_mercado_de_trabalho.pdf, acesso em
11 abr. 2019.
31  BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica aplicada - IPEA. Carta de Conjuntura n.
41, 4º Trimestre de 2018. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/
PDFs/conjuntura/181211_cc41_nota_tecnica_mercado_de_trabalho.pdf, acesso em
11 abr. 2019.

22
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

estes possam ocupar a posição de hipersuficiente com mais frequên-


cia, caso possuam nível superior.
Outra constatação da legislação em apreciação diz respeito
à possibilidade de instituição de cláusula compromissória de arbi-
tragem, independentemente de formação em nível superior, desde
que perceba remuneração superior a duas vezes o limite máximo do
estabelecido pelo RGPS, nos moldes do art. 507-A da CLT32.
Nota-se certa dissonância do Legislador ao estabelecer
os critérios para fixação de arbitragem individual e negociação
individual pelo empregado hipersuficiente, por não se exigir o nível
superior no que tange à arbitragem e por utilizar padrão econômico
distinto33. Enquanto a negociação individual do hipersuficiente exige
recebimento de patamar salarial igual ou superior a duas vezes limite
máximo do teto previdenciário, na arbitragem se exige remuneração
superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios previdenciários.
O critério limita-se, na arbitragem, a um aspecto financeiro e
não assegura averiguação de maior ou menor hipossuficiência, afinal
esta pode ocorrer nos contratos com remuneração mais elevada
desde que o empregado dependa do emprego e tenha manifestação
de vontade mitigada pelo risco da dispensa34.
Ademais, o artigo 507-A somente admitiu a adoção de cláusu-
la compromissória de arbitragem, ou seja, de um acordo prévio entre

32  Art. 507-A. Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior
a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de
Previdência Social, poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem,
desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa,
nos termos previstos na Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.
33  DALLEGRAVE NETO, José Affonso. GARCIA, Phelippe Henrique Cordeiro. Arbitragem
em dissídios individuais de trabalho. Revista eletrônica do Tribunal Regional do Trabalho
da 9ª Região, Curitiba, PR, v. 8, n. 73, p. 26-42, nov. 2018, p. 27.
34  MATTOS, Felipe Montenegro. Formas alternativas de solução de conflitos trabalhistas:
arbitragem e acordo extrajudicial. In: MANNRICH, Nelson (coord.). Reforma trabalhista:
reflexões e críticas. 2. ed. São Paulo: LTr, 2018, p. 17.

23
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

as partes, quando não há nenhum conflito a ser dirimido35. Também


ressaltou a necessidade da iniciativa pela utilização da arbitragem ser
do empregado ou ter havido sua concordância expressa para tanto.
O art. 444, parágrafo único da CLT ainda se preocupa em equi-
parar os poderes conferidos aos sindicatos no momento da negocia-
ção coletiva aos empregados hipersuficientes, uma vez que determina
que estes possam negociar nos mesmos moldes do art. 611-A da CLT.
Elevou pela lei o status do trabalhador “visando atribuir simetria entre
as partes e liberdade de contratação, elevando-a ou até mesmo confe-
rindo-lhe maior capacidade negocial que os sindicatos”36.
Percebe-se que o sobredito artigo traz um rol de direitos
trabalhistas que podem ser objeto de negociação coletiva, onde
ocorrerá prevalecimento da convenção ou acordo coletivo em face
da lei estatal. Em sentido oposto, o art. 611-B do mesmo diploma
legal elucida que os direitos ali dispostos não podem ser suprimidos
ou reduzidos por acordo ou convenção coletiva, de sorte que, se
caso o instrumento negocial assim o faça, incorrerá em objeto ilícito,
com consequente invalidação. Ressalta-se que o dispositivo não faz
menção ao princípio da norma mais favorável no tocante à matéria
de compatibilização de normas trabalhistas por estabelecer, de
antemão, um critério hierárquico que privilegia a autonomia coletiva.

35  MUKNICKA, Rosana. Arbitragem Trabalhista. In: MARTINE NETO, Aldo Augusto,
BURMANN, Márcia Sanz; LACERDA, Nadia Demoliner; GALO, Thais (coord.). Reforma
Trabalhista brasileira em debate. São Paulo: LTr, 2019, p. 91. Georgenor de Souza
Franco Filho entende que a cláusula compromissória pode ser instituída a qualquer
tempo, inclusive para aqueles empregados que foram contratados antes da
Reforma Trabalhista. Discorda-se da posição do autor por se entender que, diante
da subordinação jurídica que é inerente ao vínculo empregatício, o empregado se
encontra em posição de vulnerabilidade que faria com que tal assunção não fosse
válida. FRANCO FILHO, Georgenor. Reforma Trabalhista em pontos. De acordo com a
Lei n. 13.467/17. 2. ed. São Paulo: LTr, 2018, p. 48.
36  MOURA, Alessandra Christiane Bittencourt Ambrogi. Livre estipulação contratual
entre empregado e empregador. Solução do litígio por meio da arbitragem. In:
CREMONESI, André; NAKANO, Silvia (coor). Reforma Trabalhista: avanço ou retrocesso?
São Paulo: LTr, 2018, p. 93.

24
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

Um dos fundamentos utilizados para a permissibilidade


trazida no art. 611-A da CLT consiste no fato de que a própria Cons-
tituição trouxe em seu bojo casos em que se permitiu a flexibilização
de certos direitos trabalhistas, no seu artigo 7º, incisos VI, XIII, XIV,
conforme fora visto anteriormente37. Outro fundamento utilizado
consiste no já mencionado reconhecimento das convenções e acor-
dos coletivos como uma parte integrante dos direitos trabalhistas
pelo art. 7º, XXVI, da CF. Sendo estas partes de um ramo do direito
plurinormativo, ou seja, com muitos centros de positivação da nor-
ma, seriam admitidas normas advindas do ato de liberdade negocial,
seja por sua origem autônoma, seja como forma delegada38.
Embora não seja objeto central desta pesquisa, também se
questiona a convencionalidade do art. 611-A e 611-B da CLT com base
nas Convenções 98, 151 e 154 da OIT, que possuem como objetivo a
promoção na negociação coletiva, cabendo a ela estabelecer condi-
ções mais favoráveis aos trabalhadores. Assim, o objetivo dos ins-
trumentos coletivos não seria antagônico à norma estatal, devendo
estes andar juntos, na busca pela melhoria nas condições laborais39.

37  ARAÚJO, Adriana Hilgenberg de. Limites da autonomia normativa coletiva:


controle exercido pelo ministério público do trabalho. Revista De Direito Do Trabalho,
Curitiba: Genesis, n.77, p. 651-668, maio., 1999, p. 658.
38  SILVA, Homero Batista Mateus da. Comentários à reforma trabalhista: análise da
lei 13.467/2017 artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 113.
39  Neste sentido: CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DA REFORMA TRABALHISTA,
AUSÊNCIA DE CONSULTA TRIPARTITE E DE CONSULTA PRÉVIA ÀS ORGANIZAÇÕES
SINDICAIS. NEGOCIAÇÃO “IN PEJUS”. INCONVENCIONALIDADE. EFEITOS PARALISANTES.
A comissão de expertos em aplicação de Convênios e Recomendações da OIT
(CEACR), no contexto de sua observação de 2017 sobre a aplicação, pelo Brasil, da
Convenção 98 da OIT, reiterou que o objetivo geral das Convenções 98, 151 e 154 é a
promoção da negociação coletiva para encontrar acordo sobre termos e condições
de trabalho que sejam mais favoráveis que os previstos na legislação. Segundo
a CEACR, um dispositivo legal que institui a derrogabilidade geral da legislação
laboral por meio da negociação coletiva é contrário ao objetivo da promoção da
negociação coletiva livre e voluntária prevista em tais convenções. O artigo 611-A
da CLT “reformada” não é verticalmente compatível com a Convenção 98 da OIT e
remanesce formalmente inconvencional, circunstância que impede a sua aplicação,
em virtude da eficácia paralisante irradiada pelas Convenções. FELICIANO, Guilherme;
MIZIARA, Raphael. Enunciados da 2ª Jornada de Direito Material e Processual

25
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Mais adiante, tratar-se-á da inconvencionalidade e inconstitucio-


nalidade do art. 444, parágrafo único da CLT à luz do princípio da
igualdade.
Por ora, ainda que o argumento da inconvencionalidade
seja superado, a redação do art. 444, parágrafo único da CLT causa
estranheza. O art. 611-A enumera hipóteses em que as disposições
de acordo e convenção coletivas tem prevalência sobre a lei. Ocorre
que o parágrafo único do supracitado artigo não diz que cláusulas
do contrato de emprego do trabalhador hipersuficiente também
poderiam ter prevalência sobre a lei40.
Ademais, o artigo sobredito afirma que estas cláusulas pode-
riam ter prevalência sobre os instrumentos coletivos. Havendo con-
flito entre as manifestações de vontade do empregado e as normas
coletivas, estas não poderiam ser aplicadas, mas de qualquer sorte o
marco legal estaria respeitado. Infere-se que “a norma contratual pre-
pondera sobre os instrumentos coletivos, mas se sujeita à ordem legal.
Isso é o que se extrai da aparente literalidade do dispositivo legal”41.
A construção de uma regra que esvazia a autonomia coletiva
também deve ser mencionada com relação a este aspecto. Desqualifi-
ca-se o conceito de autonomia privada coletiva tal como constitucio-
nalizado, uma vez que “as entidades coletivas constituem espécies de
associações civis dotadas de prerrogativas institucionais específicas,

do Trabalho: organizados por assunto. Disponível em: https://drive.google.com/


file/d/1oZL9_JohYjNInVvehEzYDp-bl0fcF6i6/view; acesso em 08 de jan. de 2019.
40  MELHADO, Reginaldo. Trabalhador pseudossuficiente: o conto do vigário da
autonomia da vontade na reforma trabalhista in: FELICIANO, Guilherme Guimarães;
TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia; FONTES, Saulo Tarcísio de Carvalho (org.). Reforma
trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTr, 2017, p. 101.
41  MELHADO, Reginaldo. Trabalhador pseudossuficiente: o conto do vigário da
autonomia da vontade na reforma trabalhista in: FELICIANO, Guilherme Guimarães;
TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia; FONTES, Saulo Tarcísio de Carvalho (org.). Reforma
trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTr, 2017, p. 101.

26
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

como a representação institucional de um fenômeno socioeconômi-


co que é a categoria profissional [...]”42.
Neste caso, a norma cria, de forma criticável, uma preferência
pela negociação individual em detrimento da negociação coletiva
para os empregados que possuam nível superior e percebam salário
compatível, desmerecendo a atuação sindical e enfraquecendo ainda
mais estas entidades43.
Os problemas que envolvem este artigo vão além desta ques-
tão, em especial diante da tutela jurídica do trabalhador vulnerável
com base no direito fundamental à igualdade. Abordar-se-á este
conteúdo agora.

4. INCONVENCIONALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE
DA NOÇÃO DE HIPERSUFICIÊNCIA ADOTADA PELA CLT:
UMA ANÁLISE À LUZ DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A opção legislativa acerca da adoção do conceito de empre-


gado hipersuficiente, que contempla a possibilidade de negociação
individual no contrato de emprego, é, no mínimo, paradigmática. Isso
porque se equipararam as figuras do empregado e do empregador
no mesmo patamar de negociação, traçando uma nova categoria de

42  MENDES, Marcus Menezes Barberino. Autonomia coletiva e a lei 13467/2017:


apertem os cintos porque o garante do interesse público sumiu. Será? In: MAIOR, Jorge
Luiz Souto; SEVERO, Valdete Souto. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso
trabalhista. São Paulo: Expressão popular, 2017, p. 446.
43  Sabe-se que um modelo sindical forte perpassa por organizações sindicais
representativas e organizadas na luta pela representação dos trabalhadores. Um
modelo de precarização social vislumbrado encontra substrato exatamente na
fragilidade do sistema sindical brasileiro, devido a sua heterogeneidade e divisão,
que implica numa pulverização dos sindicatos, conforme preleciona Graça Druck. Tal
modelo é ainda vislumbrado, segundo Ricardo Antunes, por conta do eterno dilema
dos sindicatos brasileiros, quer seja olhar para além do capital, além de ter ações
estratégicas contra afrontas aos direitos já conquistados. DRUCK, Graça. Trabalho,
precarização e resistência: novos e velhos desafios? Caderno CRH. Salvador, Vol. 24,
n. spe 01, p. 37-57, 2001, p. 50 e ANTUNES, Ricardo. Mundo do trabalho e sindicatos na
era da reestruturação produtiva: impasses e desafios do novo sindicalismo brasileiro.
Transinformação. Vol. 8, n. 3, p. 130-137, set/dez, 1996, p. 136.

27
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

trabalhador. De certo, tal alteração é uma das mais emblemáticas


da reforma trabalhista, por atingir o núcleo de proteção essencial
do Direito do Trabalho, determinando igualdade entre os sujeitos
contratantes44.
A leitura que se faz da disposição acerca do empregado hiper-
suficiente é a de que esta não se encontra de acordo com os ditames
do Direito Internacional do Trabalho e da Constituição Federal de
1988, possuindo o referido artigo problemas de convencionalidade e
de constitucionalidade.
Viu-se linhas atrás que o controle de convencionalidade
consiste no processo de compatibilização vertical dos comandos
que advém de normas domésticas em relação aos comandos que
são encontrados nas Convenções Internacionais que se encontram
em vigor no Estado. Garante, portanto, que o Estado-Parte adote as
medidas advindas das Convenções Internacionais, assegurando as
mesmas no âmbito do Direito interno.
No que tange à negociação individual do empregado hipersu-
ficiente, o problema de convencionalidade é marcante. Aprovada por
Decreto Legislativo e incorporada ao sistema normativo brasileiro
tem-se a Convenção 111 da OIT45, que dispõe sobre discriminação em
matéria de ocupação e emprego. O art. 2º desta Convenção impõe
aos Estados-Parte a formulação e adoção de política nacional que
busque garantir igualdade de oportunidades e de tratamento em
matéria de emprego e profissão, com o objetivo de eliminar toda e
qualquer forma de discriminação nessa matéria.

44  GOULART, Rodrigo Fortunato. Empregado hipersuficiente e negociação individual.


In: DALLEGRAVE NETO, José Afonso; KAJOTA, Ernani (coord.). Reforma Trabalhista ponto
a ponto: estudos em homenagem ao professor Luiz Eduardo Gunther. São Paulo: LTr,
2018, p. 120.
45  BRASIL. Decreto nº 62.150, de 19 de janeiro de 1968. Promulga a Convenção nº
111 da OIT sobre discriminação em matéria de emprego e profissão. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1950-1969/D62150.htm, acesso em: 12
abr. 2019.

28
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

Infere-se deste raciocínio que a igualdade de oportunidades


e de tratamento implica em assegurar o mesmo regime a trabalha-
dores que se encontrem em situação igual, sendo legítimo desigualar
apenas em circunstâncias desiguais. O art. 1º ressalta que distinções
fundadas em qualificações exigidas para um determinado emprego
não são tidas como discriminatórias. Contudo, entende-se que este
dispositivo está abordando a possibilidade de exigência de titulação
ou qualificação específica para determinadas profissões, não permi-
tindo discriminação pautada em capacidade negocial por um critério
econômico e técnico46.
A formulação contida na Convenção 111 da OIT se refere às
discriminações diretas e indiretas. As discriminações diretas são
aquelas que afetam os trabalhadores com base na idade, sexo, esta-
do civil, crenças políticas, religiosas, etc. As discriminações indiretas,
por sua vez, são realizadas por meio de qualquer tipo de acordo que,
embora aparentemente não seja discriminante, produz efeitos nega-
tivos para um grande número de trabalhadores, ocorrendo nos con-
textos em que não são aplicados a todos os trabalhadores os mesmos
critérios e os mesmos tratamentos ou as mesmas condições47.
Em relação ao hipersuficiente, nota-se a existência de discri-
minação indireta, uma vez que, por conta do seu patamar salarial e
formação intelectual, sofre ônus maior que os outros empregados
perante um mesmo empregador, suportando uma negociação in-
dividual nos mesmos termos de uma negociação coletiva, sem ter,
contudo, o aparato da coletividade e do interesse coletivo que são
ínsitos a esta modalidade negocial.

46  MELHADO, Reginaldo. Trabalhador pseudossuficiente: o conto do vigário da


autonomia da vontade na reforma trabalhista in: FELICIANO, Guilherme Guimarães;
TREVISO, Marco Aurélio Marsiglia; FONTES, Saulo Tarcísio de Carvalho (org.). Reforma
trabalhista: visão, compreensão e crítica. São Paulo: LTr, 2017, p. 101.
47  ALVARENGA, Rúbia Zanotelli de. A declaração de princípios e direitos fundamentais
no trabalho e as convenções fundamentais da OIT comentadas. São Paulo: LTr, 2018,
p. 114.

29
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

A não tão sutil discriminação que ocorre com o empregado


hipersuficiente o coloca em posição de igualdade de condições nego-
ciais com o empregador, detentor do poder diretivo e econômico, de
sorte a afrontar o ordenamento internacional protetor trabalhista,
em especial a Convenção 111 da OIT, no que concerne à busca por
melhorias nas condições laborais48.
Conquanto seja superada a questão da inconvencionalidade,
o art. 444, parágrafo único da CLT demonstra ainda uma afronta ao
texto constitucional e ao sistema protetivo trabalhista, por despre-
zar as noções de vulnerabilidade e isonomia.
A vulnerabilidade do empregado não decorre apenas de um
critério econômico ou técnico, sendo fruto de uma conjugação de
fatores. A vulnerabilidade econômica é uma marca do vínculo em-
pregatício na medida em que os frutos do trabalho do empregado
são explorados por outrem, tornando-se propriedade do emprega-
dor. Pode ensejar uma noção de dependência econômica, em face
da possibilidade fática de ser aquela atividade a única ou a principal
fonte de renda do empregado.
Nota-se que o patamar salarial estabelecido pela CLT, em-
bora alto para os padrões do mercado de trabalho brasileiro, não
elimina a circunstância fática de ser o empregado economicamente
dependente daquele emprego, encontrando-se numa posição de
vulnerabilidade econômica.
Em verdade, os intitulados de hipersuficientes ainda estariam
em patamar de vulnerabilidade acentuado diante da subordinação
jurídica, que promove um desequilíbrio de forças em razão do exer-
cício do poder diretivo do empregador. Não há, no sistema jurídico
trabalhista, diferenciação protetiva no tocante ao empregado subor-

48  LIMA, José Edmilson de Souza; SILVA, Marcos Alves da; LIMA, Erick Alan de. O
empregado hipersuficiente sob a perspectiva do direito fundamental da igualdade e
da Convenção 111 da OIT. Anais do V Congresso Luso-brasileiro de Direitos Humanos
na Sociedade da Informação. vol. 3, n°.26, p. 452-475. Curitiba, 2018, p. 471.

30
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

dinado, de sorte que este merece proteção ainda que o exercício do


poder diretivo se dê em linha mais tênue. A apropriação do poderio
econômico ocorre para qualquer empregado, independentemente
de uma submissão maior ou menor ao poder diretivo.
Inclusive, segundo Silvia Isabelle do Vale, os hipersuficientes
seriam mais subordinados do que os clássicos empregados, “pois
detém um padrão financeiro que é mais raro de ser encontrado no
mercado e, para manter este dito padrão, suportam toda sorte de
dissabores perpetrados pelo empregador”49.
A reforma buscou, assim, aproximar o Direito do Trabalho ao
Direito Civil, entendendo que o contrato de trabalho deve possuir
tratamento semelhante ao cível em relação ao poder negocial dos
hipersuficientes50. No entanto, a vulnerabilidade não é uma escolha
do trabalhador ou de uma determinada categoria51.
Não é razoável, pois, se entender que este empregado possua
maior autonomia em relação aos demais por conta de sua retribuição
mais elevada e formação intelectual, afinal por vezes se vislumbra a
situação contrária, com a preocupação destes obreiros em relação à
manutenção dos seus postos de trabalho52.
O desequilíbrio de forças das partes integrantes do contra-
to de trabalho torna o empregado propenso a aceitar condições

49 VALE, Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira do . Reforma Trabalhista e o hipersuficiente.


Disponível em: http://www.amatra5.org.br/images/a/A%20REFORMA%20
TRABALHISTA%20E%20O%20%20HIPERSUFICIENTE_.pdf; acesso em 11 abr. 2019.
50  ALVES, Amauri Cesar; ALVES, Roberto das Graças. Reforma Trabalhista e o Novo
“Direito do Capital”. Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária, São Paulo, v. 338, p.
61- 63, ago. 2017.
51  HONÓRIO, Cláudia. Derrogação de proteção jurídico-trabalhista aos empregados
com maior remuneração e diploma de nível superior. In: COSTA, Ângelo Fabiano
Farias da; MONTEIRO, Ana Cláudia Rodrigues Bandeira; BELTRAMELLI NETO. Reforma
trabalhista na visão de procuradores de trabalho. Salvador: Jus Podivm, 2018, p. 117.
52  MARTINEZ, Luciano. Reforma Trabalhista – entenda o que mudou: CLT comparada
e comentada. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 117.

31
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

prejudiciais aos seus interesses e necessidades53, muitas vezes pela


dependência econômica, necessidade de manutenção do posto de
trabalho e até mesmo pela falta de conhecimento.
Em relação a este aspecto, não se pode esperar que, pelo
simples fato do empregado possuir nível superior, haja conhecimento
acerca das normas de Direito do Trabalho advindas do Poder Legislati-
vo e das convenções e acordos coletivos. A finalidade social do conhe-
cimento fica comprometida diante da vulnerabilidade informacional
do empregado hipersuficiente, que pode se deparar com informações
incorretas, de difícil compreensão e sem a clareza esperada.
O fato de o empregado ser um médico, engenheiro, cientista
da computação, economista, etc., não significa, repise-se, que este
possui conhecimentos adequados para fins de negociação individual.
E ainda que este possuísse grande conhecimento trabalhista, esta
circunstância não elimina as outras vulnerabilidades existentes na
relação jurídica ali estabelecida com seu empregador.
Neste aspecto, considerar o empregado hipersuficiente dife-
rente dos demais empregados seria uma violação do princípio da iso-
nomia e da dignidade da pessoa humana. Este trabalhador possui igual
dignidade e direitos independentemente da atividade desempenhada,
sendo irrelevante sua qualificação profissional e valor de retribuição54.
A Constituição assegura tratamento isonômico no seu artigo 5º, caput,
e no art. 7º,  XXXII, com a proibição de distinção entre trabalho manual,
técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos.

53  DINIZ, Ana Paola Santos Machado; VARELA, Maria da Graça Antunes. O
hipersuficiente e a presunção de invulnerabilidade (análise do parágrafo único do art.
444 À luz do princípio da igualdade. In: PAMPLONA FILHO, Rodolfo; LUDWIG, Guilherme
Guimarães; VALE, Silvia Teixeira do. (coord). Interpretação e aplicação da reforma
trabalhista no direito brasileiro. São Paulo: LTr, 2018, p. 87.
54  MURADAS, Daniela. A reforma Trabalhista e o Mito da Classe Média Esclarecida:
Capital Cultural e dependência dos fatores os organizados da produção. In:
PAMPLONA FILHO, Rodolfo; LUDWIG, Guilherme Guimarães; VALE, Silvia Teixeira do.
(coord). Interpretação e aplicação da reforma trabalhista no direito brasileiro. São
Paulo: LTr, 2018, p. 50.

32
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

O parágrafo único do art. 444 da CLT contrária, destarte, os


princípios do Direito do Trabalho, em especial o princípio da igualda-
de e da proteção, além de afrontar a Constituição Federal e o sistema
de proteção ao trabalho estabelecido pela OIT, em especial no que
tange à Convenção 11155.
Assim, defende-se nesta pesquisa que a única interpretação
capaz de harmonizar este dispositivo com os ditames advindos do
sistema protetivo trabalhista é condicionar a negociação individual
ao princípio da norma mais favorável. Não é possível permitir nego-
ciação aquém do padrão normativo legal relacionado aos direitos
indisponíveis em absoluto, uma vez que isso implicaria em renúncia,
vedada tanto pelo art. 9º da CLT quanto pelos arts. 1.707 do Código
Civil e 100 da Constituição56.
A negociação individual encontraria limites no princípio da
norma mais favorável, amoldando o sistema das fontes trabalhis-
tas legais e negociais ao intuito protetivo esperado deste sistema
jurídico, em face do reconhecimento e tutela das vulnerabilidades
existentes no vínculo empregatício no que tange ao empregado.

5. CONCLUSÕES

Pode-se afirmar, em síntese, que:

55  Neste sentido: TRABALHADOR HIPERSUFICIENTE. ART. 444, PARÁGRAFO ÚNICO DA


CLT I. O parágrafo único do art. 444 da CLT, acrescido pela Lei 13.467/2017, contraria
os princípios do Direito do Trabalho, afronta a Constituição Federal (arts. 5º, caput,
e 7º, XXXII, além de outros) e o sistema internacional de proteção ao Trabalho,
especialmente a Convenção 111 da OIT. II. A negociação individual somente pode
prevalecer sobre o instrumento coletivo se mais favorável ao trabalhador e desde que
não contravenha as disposições fundamentais de proteção ao trabalho, sob pena de
nulidade e de afronta ao princípio da proteção (artigo 9º da CLT c/c o artigo 166, VI,
do Código Civil). FELICIANO, Guilherme; MIZIARA, Raphael. Enunciados da 2ª Jornada
de Direito Material e Processual do Trabalho: organizados por assunto. Disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1oZL9_JohYjNInVvehEzYDp-bl0fcF6i6/view; acesso em
12 de abr. de 2019.
56  SEVERO, Valdete Souto; MAIOR, Jorge Luiz Souto. Manual da reforma trabalhista:
pontos e contrapontos. São Paulo: Sensus, 2017, p. 99.

33
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

I- Em relação ao Direito do Trabalho, tradicionalmente,


protege-se a parte mais débil da relação jurídica, quer
seja o empregado, em razão da sua hipossuficiência
perante o empregador. Desenvolve-se uma disciplina
jurídica para regulação do processo econômico, com
garantia dos Direitos Sociais e padrões legais e nego-
ciais de proteção ao empregado, diante do desequilí-
brio inerente à relação empregatícia;
II - A Lei 13.467/17 - Reforma Trabalhista - criou a figura
do empregado hipersuficiente, onde é possível a
livre estipulação negocial, nos mesmos moldes do
art. 611-A da CLT, com a mesma eficácia legal e pre-
ponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso
de empregado portador de diploma de nível superior
e que perceba salário mensal igual ou superior a duas
vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral
da Previdência Social;
III - Entende-se que a opção legislativa padece de vício de
inconvencionalidade e inconstitucionalidade por vio-
lação do princípio da igualdade e ao sistema protetivo
nacional e internacional trabalhista. Ainda que este
argumento seja superado, visando dar interpretação
conforme a Constituição a este dispositivo, defen-
de-se interpretação com base no princípio da norma
mais favorável, critérios e limitações ao exercício da
liberdade negocial;
IV - A existência de acordo ou convenção coletiva mais
favorável ao empregado consiste num limite à auto-
nomia privada individual. Rechaça-se a prevalência
do negociado sobre o legislado com base na aplicação
do princípio da norma mais favorável, que afirma o

34
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

primado da proteção à parte vulnerável da relação


trabalhista;
V - A reflexão que se faz é no sentido de que as conven-
ções e acordos coletivos devem fixar mínimos que
podem ser ultrapassados em sentido mais favorável
ao empregado em âmbito individual trabalhista,
compatibilizando a autonomia privada individual e a
autonomia privada coletiva. Apenas assim o art. 444,
parágrafo único da CLT pode sobreviver dentro do
sistema jurídico trabalhista brasileiro.

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39
40
A LGPD E A PROTEÇÃO
DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS)
NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES
DE TRABALHO

Cláudio Mascarenhas Brandão1

1  Ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Doutorando em Ciências Jurídicas pela


Universidade Autônoma de Lisboa. Mestre em Direito pela Universidade Federal da
Bahia. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Membro da Academia
de Letras Jurídicas da Bahia. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro Correspondente da
Academia Paulista de Letras Jurídicas. Investigador Integrado do Ratio Legis - Centro
de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Jurídicas da Universidade Autônoma
de Lisboa (Projeto: Cultura de Paz e Democracia).
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

1. INTRODUÇÃO

Com a edição da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais


no Brasil – LGPD (Lei n° Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018,
com a redação dada pela Lei nº 13.853, de 8 de julho de 2019), uma
importante questão jurídica emergiu em vários campos da vida em
sociedade, concernente à existência – ou não – de proteção às in-
formações coletadas em bancos de dados públicos ou publicamente
disponibilizados pelo seu titular.
O tema ganhou relevância de modo particular no contexto
das relações de trabalho, diante da possibilidade de serem coletados
diretamente e utilizados pelo empregador – ou tomador de serviços
–, ou mediante serviços oferecidos por empresas especializadas na
coleta nesses mesmos bancos de dados para a elaboração de perfis
de trabalhadores destinados às mais variadas finalidades, inclusive
para subsidiar a confecção de relatórios de gerenciamento de riscos
para outras empresas.
Anteriormente à vigência das mencionadas leis, compreen-
dia-se (pelo menos fazia parte da jurisprudência de tribunais) que,
por envolver a coleta de dados públicos e não existir vedação legal
para a sua utilização, inexistia ilegalidade nesse procedimento, desde
que não houvesse a comprovação de efetiva discriminação sofrida
pelos empregados.
Contudo, a partir das alterações mencionadas, questiona-se
se os novos parâmetros normativos autorizam a revisão do tema e
permitem nova compreensão. Esse é, pois, o cerne do presente estudo.

42
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

2. ORIGEM E NATUREZA DO DIREITO À PROTEÇÃO


DOS DADOS PESSOAIS

A proteção de dados pessoais veio a ser introduzida no Brasil


para atender às necessidades das práticas internacionais, notada-
mente no continente europeu, como ressaltado pela doutrina, de
modo especial sobre o contexto em que a referida lei foi editada.
Assim afirmam, entre muitos, Luiz Eduardo Gunther, Rodrigo Tho-
mazinho Comar e Luciano Ehlke Rodrigues:
Hoje em dia, o compartilhamento de informações através das
mídias sociais, como é o caso do Facebook, são o novo contexto.
Ocorre que tal compartilhamento de informações pode trazer
sérios riscos ao vazamento de dados pessoais em caso de fragilidade
do sistema ou ataques de hackers, por exemplo, ou ainda quando os
dados pessoais alcançam conotação de mercadoria.
Os rastros são detectados no mundo tecnológico por meio
de dados que são trafegados por meio da rede mundial de compu-
tadores. Para buscar dinamizar esse instantâneo tráfego de dados, a
União Europeia se reuniu e editou o GDPR, ou seja, um Regulamento
Geral de Proteção de Dados em 2018, visando dinamizar o tratamen-
to dos dados pessoais sensíveis dos cidadãos no âmbito dos países
integrantes da EU e conferir maior proteção os dados pessoais que
circulam no ambiente digital. [...].
A referida comunidade europeia revelou ao mundo sua preo-
cupação com a forma como os dados pessoais sensíveis são tratados
e buscou estabelecer todo um arcabouço normativo que era tratado
pela Diretiva 45/96/CE e em 2018 foi alterado pela GDPR para tratar
da questão afeita à Proteção de Dados.
A importância e atualidade da discussão reside no fato de que
o Brasil publicou em dezembro de 2018, a Lei 13.709/2018, que en-
trará em vigor em agosto de 2020 e causará profundas modificações

43
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

na forma como as empresas, o Estado e terceiros vem dando ao tra-


tamento dos dados pessoais sensíveis dos brasileiros, inclusive com
a previsão de aplicação de multa de até 50 milhões de reais a cargo
da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), em casos em
que restar evidenciada a ocorrência de descumprimento da LGPD, o
que passará por futuras definições da respectiva ANPD vinculada à
Presidência da República do Brasil.2
Também é de sabença comum a inspiração da lei brasileira,
mais precisamente o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados/
General Data Protection Regulation – GDPR – EU 2016/679, de 27
de abril de 2016, editado para regular o tema no continente europeu,
regramento já incidente sobre empresas brasileiras que mantinham
relações comerciais com os países nele situados:
Em relação ao âmbito de aplicação, devemos ter em mente
que o GDPR aplica-se a empresas brasileiras que tratam dados de ci-
dadãos europeus, como, por exemplo, empresas que tenham matriz
ou filial europeia, com sistema integrado para tratamento de dados.3
A motivação subjacente à edição de normas dessa natureza
se insere no contexto da denominada “economia movida a dados”,
caracterizada pela circunstância de serem eles – os dados – consi-
derados como o “novo petróleo”, tamanhas as possibilidades de sua
utilização e manipulação, inclusive de serem a eles “atribuídas utiliza-
ções e aplicações que não seriam sequer imagináveis há poucos anos
atrás e que, na ausência de uma regulação adequada, passaram a ser
realizadas sem limites e com resultados que podem se projetar para
sempre”, como alerta Ana Frazão, em texto de destacada percepção,
no qual, com apoio em Alec Ross, também afirma que “as escolhas

2  GUNTHER, Luiz Eduardo, COMAR, Rodrigo Thomazinho, RODRIGUES, Luciando Ehlke,


A proteção e o tratamento dos dados pessoais sensíveis na era digital e o direito à
privacidade: os limites da intervenção do Estado. Revista Relações Internacionais do
Mundo Atual, Curitiba, v. 2, n. 27, 2020, p. 4.
3  AGUIAR, Antônio Carlos, A Proteção de Dados no Contrato de Trabalho. Revista LTr.
82-06/655, Vol. 82, junho de 2018, p. 4.

44
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

sobre como vamos gerenciar e administrar os dados na atualidade


são tão importantes quanto as decisões sobre o gerenciamento da
terra durante a era agrícola ou da indústria durante a era industrial”.4
Representa – a nova legislação – a consagração de “ver-
dadeiro direito fundamental autônomo, expressão da liberdade
e da dignidade humana, que está intrinsecamente relacionada à
impossibilidade de transformar os indivíduos em objeto de vigilância
constante”, na expressão de Stefano Rodotà, citado por Ana Frazão,
para quem a nova lei
(...) pode, igualmente, ser vista com um freio e um agente
transformador das técnicas atualmente utilizadas pelo capitalismo
de vigilância, a fim de conter a maciça extração de dados e as diversas
aplicações e utilizações que a eles podem ser dadas sem a ciência ou
o consentimento informado dos usuários.5
A facilidade de acesso às informações, permitida pela tec-
nologia e pela era digital, exige, em contrapartida, proteção para os
usuários titulares dos dados pessoais, porquanto estes não podem
ser objeto de divulgação em nenhum meio, inclusive na rede mundial
de computadores, sem o consentimento específico para tanto. Isso
porque a visualização e o conhecimento desses dados, sem o referido
consentimento, violam o direito à privacidade consagrado no inciso
X do art. 5º da Constituição Federal de 1988.
E, no que tange ao direito à privacidade, a doutrina é uníssona:
A privacidade está ligada a dignidade da pessoa humana,
princípio também insculpido na Constituição Federal em seu art. 1º,

4  FRAZÃO, Ana. Fundamentos da proteção de dados pessoais - Noções introdutórias


para a compreensão da importância da lei geral de proteção de dados. In TEPEDINO,
Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA; Milena Donato. Lei geral de proteção de dados
pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, Revista
dos Tribunais, 2019. p. 25.
5  Idem. Objetivos e alcance da lei geral de proteção de dados. In TEPEDINO, Gustavo;
FRAZÃO, Ana; OLIVA; Milena Donato. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas
repercussões no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, Revista dos Tribunais,
2019. p. 103.

45
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

inciso III e está intimamente ligada com a confidencialidade nos ca-


sos envolvendo dados sensíveis relativos à saúde das pessoas, onde
no ambiente da internet e das aplicações de internet, a possibilidade
da violação da privacidade ganha níveis exponenciais, quer seja pela
falta de zelo daqueles que realizam o tratamento dos dados pessoais,
quer seja dos próprios usuários (...).6
Mister esclarecer que, ao se falar em proteção, num ambiente
de acesso livre propiciado pela tecnologia, não se pretende garantir
ao indivíduo total proibição quanto ao acesso à sua vida privada ou
à sua intimidade. Ao contrário, o que pode e deve ser observado é o
controle desses dados. E nesse sentido afirma Antônio Carlos Aguiar:
Quando se fala em proteção, dentro de um contexto social
permeado por questões tecnológicas, o que está em jogo não é a
construção de meios e formas que garantam ao indivíduo (a pessoa
humana) uma proibição plena quanto ao acesso à sua vida privada; à
sua intimidade (algo como: me deixe em paz).
O que é possível e deve ser respeitado é outro modo ga-
rantidor, qual seja, o controle. Dispositivos legais que delimitem o
acesso e uso dos seus dados pessoais, formadores da sua identidade
e personalidade, que protejam o segredo (se assim a pessoa o quiser)
sobre esses dados; sobre o fluxo dessas informações.7
É, pois, complexa a questão controvertida, sobretudo diante
da necessidade de não se considerar a internet “terra sem lei” ou
“terra de ninguém”, onde tudo seria possível, ninguém poderia ser
responsabilizado pelos atos “nela” praticados e a liberdade seria a
sua marca registrada.

6  BARRETO JUNIOR, Irineu Francisco; FAUSTINO, André. Aplicativos de serviços de


saúde e proteção dos dados pessoais dos usuários. Revista Jurídica vol. 01, n°. 54,
Curitiba, 2019. pp. 292-316. Disponível em: <http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/
RevJur/article/view/3311/371371803> Acesso em 25 de abril de 2020.
7  AGUIAR, Antônio Carlos. Idem, p. 4

46
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

3. CONTEXTO DA PROTEÇÃO DOS DADOS PESSOAIS EM GERAL

A partir desse contexto, o primeiro aspecto a ser destacado


diz respeito à aplicação do novo regramento à questão jurídica em
análise e não remanesce nenhuma dúvida quanto a alcançar as pesso-
as naturais e todas as entidades públicas ou privadas que promovam
o tratamento de dados pessoais, em face do quanto disposto no seu
art. 1º, que transcrevo para melhor compreensão:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre o tratamento de dados pessoais,
inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica
de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos
fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimen-
to da personalidade da pessoa natural.
Se até então não encontrava vedação legal, essa prática se
tornou lícita somente se encontrar abrigo na referida lei. Veja-se o
que afirmam Joyceane Bezerra de Menezes e Hian Silva Colaço:
Anteriormente à lei, essa prática (o tratamento de dados
pessoais) estava situada no vasto campo da licitude, sendo integral-
mente permitida até que esbarrasse nos limites do que estivesse
expressamente proibido por lei. Agora a situação se inverteu e o
tratamento dos dados passou a se sujeitar a objetivos, finalidades,
interesses e princípios próprios. Somente será autorizado quando
autorizado pelo titular e se estiver em conformidade com as dez
exigências ou base legal, assinaladas no art. 7º, que, relativamente
aos dados sensíveis, serão ampliadas pelo art. 11.8
O segundo ponto se relaciona aos diversos conceitos por ela
introduzidos no sistema normativo e, entre aqueles que se relacionam
à questão em análise, extraio do art. 5º da LGPD:

8  MENEZES, Joyceane Bezerra de; COLAÇO, Hian Silva. Quando a Lei Geral de
proteção de Dados não se aplica? In TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA; Milena
Donato. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito
brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2019. p. 16.

47
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

I- dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural


identificada ou identificável;
II - dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial
ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a
sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico
ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado
genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa
natural;

(...)

X - tratamento: toda operação realizada com dados


pessoais, como as que se referem a coleta, produção,
recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução,
transmissão, distribuição, processamento, arquivamen-
to, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da
informação, modificação, comunicação, transferência,
difusão ou extração;

(...)

XII - consentimento: manifestação livre, informada e inequí-


voca pela qual o titular concorda com o tratamento de
seus dados pessoais para uma finalidade determinada;
XIV - eliminação: exclusão de dado ou de conjunto de dados
armazenados em banco de dados, independentemente
do procedimento empregado;

(...)

48
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

XVI - uso compartilhado de dados: comunicação, difusão,


transferência internacional, interconexão de dados pes-
soais ou tratamento compartilhado de bancos de dados
pessoais por órgãos e entidades públicos no cumprimen-
to de suas competências legais, ou entre esses e entes
privados, reciprocamente, com autorização específica,
para uma ou mais modalidades de tratamento permitidas
por esses entes públicos, ou entre entes privados;

O dado é o “estado primitivo e fragmentado da informação,


ou seja, uma informação em estado potencial, sendo temporalmente
localizado no momento anterior ao tratamento”, diz Giovanna Mila-
nez Tavares.9 Por sua vez, ainda consoante a Autora,
Sob o ponto de vista da natureza da informação, depreen-
de-se da LGPD que a definição de dado pessoal abrange qualquer
tipo de declaração sobre o indivíduo, sejam elas objetivas (como o
resultado de um exame indicando a presença de certa substância no
sangue de uma pessoa) ou subjetivas (como informações, opiniões
e avaliações a respeito de alguém). Além disso, aparentemente, a
declaração poderia ser verdadeira, comprovada, falsa, incompleta,
inexata, incorreta, e, ainda assim, estar inclusa no conceito.
Da perspectiva do conteúdo da informação, o conceito
abrange todos os aspectos relacionados ao indivíduo, sejam eles
públicos ou privados, familiares ou sociais, físicos ou mentais, pro-
fissionais, amorosos, ou quaisquer outras informações relacionadas
a atividades desenvolvidas pela pessoa em causa, como seus hábitos,
sua rotina e seu tempo livre.
Por fim, quanto ao formato, a LGPD aplica-se independen-
temente do meio ou suporte em que consta a informação. Dessa

9  TAVARES, Giovanna Milanez. o tratamento de dados pessoais disponíveis


publicamente e os limites impostos pela lgpd. Rio de Janeiro: Processo, 2021. P. 33.

49
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

forma, inclui meios físicos ou eletrônicos/digitais (conforme art. 1º


e 5º, IV, da Lei), a exemplo da memória de um computador, CD, pen
drive, nuvem, HD externo, papel, mural, entre outros. O conceito
também não faz distinção em relação ao modo de apresentação das
informações, abrangendo aquelas disponíveis em formato alfabéti-
co, gráfico, fotográfico, numérico ou acústico.10
As informações a respeito de cada trabalhador que lhe presta
serviços, seja ou não empregado, inequivocamente se incluem no
conceito de dado pessoal e no desempenho da atividade econômica,
a empresa vincula-se ao novo regramento. Tal compreensão emana
do citado inciso I: as informações públicas relativas aos trabalhado-
res, obtidas mediante a utilização de bancos de dados legalmente
constituídos e de acesso franqueado, são dados pessoais. São infor-
mações sobre pessoa natural identificada ou identificável.
Também positiva é a resposta à indagação que consiste em
saber se, ao criar e alimentar banco de dados com informações sobre
os trabalhadores, essa atividade estaria enquadrada no conceito de
tratamento de dados.
O inciso X do citado art. 5º não deixa nenhuma dúvida, ao
conceituá-lo de maneira extremamente abrangente e afirmar que
tratamento é “toda operação realizada com dados pessoais, como as
que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utiliza-
ção, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento,
arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle
da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão
ou extração”.
Analiso detalhadamente:
a) ao obter a informação, a empresa “coleta” diretamente,
promove o “acesso”, a “extração” ou, se passivamente, a
atividade é de “recepção”;

10  autora e obra citadas, p. 45-47 – com destaques.

50
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

b) ao se valer desse dado, o trabalho é de “utilização”, “arqui-


vamento” e “armazenamento”;
c) ao selecionar as informações de que deseja, catalogá-las
conforme critérios definidos no algoritmo que embasa o
programa, ela promove a “classificação”, a “avaliação” ou o
“controle da informação”;
d) ao construir o perfil de cada trabalhador ou utilizar a
informação para os fins que desejar, promove a “modifi-
cação”;
e) ao fornecer ou utilizar a informação, realiza a “transfe-
rência” e a “comunicação”.

Em todas elas está incluído o “processamento”, compreendi-


do como a execução de rotinas prévia e ordenadamente definidas no
algoritmo de programação ou, em outras palavras:
Processamento de dados é a coleta, compilação, organização
e disposição de informações específicas presentes em um banco de
dados. Ou seja, quando um usuário acessa o banco e faz uma pesquisa
específica, ele se utiliza do processamento de dados.
Para exemplificar, os dados são como a matéria-prima, en-
quanto a organização e a busca para utilização são o processamento.
Tratando-se do processamento de dados, as informações extraídas
são o resultado do processo.11
A depender do tipo de dado utilizado nessas operações, a vio-
lação pode ser ainda mais grave, na medida em que pode ela ingressar
no campo dos “dados pessoais sensíveis”, compreendidos como
quaisquer informações relativas às características da pessoa natural
cujo conhecimento seja capaz de gerar discriminação, enumerados
exemplificativamente no art. 5º, II, da LGPD.

11  Processamento de dados: o que é e qual a relação com a LGPD? CERTIFIQUEI.


Disponível em: <https://www.certifiquei.com.br>. Acesso em 08 dez. 2021.

51
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Segundo Vólia Bomfim e Iuri Pinheiro, “os dados sensíveis são


os dados pessoais associados a determinados contextos que sejam
capazes, em tese, de gerar uma discriminação injustificada”.12
Rony Vainzof, ao conceituá-los, destaca a potencialidade da
discriminação resultante do seu tratamento:
Os dados pessoais sensíveis, em linhas gerais, são dados pes-
soais que podem trazer algum tipo de discriminação quando do seu
tratamento (origem racial, convicção religiosa, opinião política, dado
referente à saúde, para citar alguns exemplos) bem como, diante de
sua criticidade, dados genéticos e biomédicos. Ou seja, são dados pes-
soais que podem implicar riscos e vulnerabilidades potencialmente
mais gravosas aos direitos e liberdades fundamentais dos titulares.13
Mais adiante, assinala diversos aspectos reveladores de
maior proteção por parte do legislador a essa categoria de dados
pessoais, tais como bases legais específicas e diferenciadas, confor-
me art. 11; qualificação do consentimento, quando existente, como
livre, inequívoco, informado, específico e destacado; ausência do
interesse legítimo e da proteção ao crédito entre as bases legais para
tratamento; no caso dos contratos, restringir-se a base legal para
tratamento ao exercício legal dos contratos e não haver base legal
para tratamento nos procedimentos preliminares relacionados ao
contrato ou à sua execução.14
Por consguinte, não é necessário – tal como ocorria na inter-
pretação anterior da legislação – que ocorra a efetiva discriminação
para ser tida como ilícita; é suficiente que seja potencialmente discri-
minatória.

12  PINHEIRO, Iuri; BOMFIM, Vólia. A lei geral de proteção de dados e seus impactos
nas relações de trabalho. In MIZIARA; Raphael; MOLLIXONE, Bianca; PESSOA, André.
Reflexos da lgpd no direito e no processo do trabalho. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2020. p. 54.
13  VAINZOF, Rony. Comentário ao art. 5º. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM,
Renato Opice (Coord.). LGPD - Lei geral de proteção de dados comentada. 3ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 97.
14  Idem, op. cit., p. 97-98.

52
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Quanto ao apontado tratamento particular dos dados pes-


soais sensíveis, Giovanna Milanez Tavares refere-se à motivação do
legislador voltada à proteção especial do seu titular quanto ao seu
uso para fins discriminatórios:
(...) ao construir um regime diferenciado de proteção aos dados
sensíveis, mais rígido que aquele aplicável aos dados pessoais em geral,
a preocupação é justamente proteger o titular de eventual distinção
ou diferenciação por conta de aspectos específicos da sua personali-
dade. Isso porque, os dados sensíveis são particularmente suscetíveis
de utilização para fins discriminatórios, como exclusão, segregação e
estigmatização, de forma que o seu tratamento pode atingir negati-
vamente a dignidade do titular dos dados, lesionando sua identidade
pessoal e, muitas vezes, até mesmo a sua privacidade.15
Some-se a tudo isso a possibilidade de serem criados padrões
discriminatórios, definidos no algoritmo que promove o tratamento
dos dados, e atingir de modo direto o direito à igualdade, diante da
clara possibilidade estabelecer critérios classificatórios dos traba-
lhadores e, com isso, viabilizar a adoção das denominadas “decisões
automatizadas”, capazes de atingir os direitos fundamentais, entre
os quais o direito à igualdade, sem que se possa assegurar ao titular
dos dados o direito à revisão, previsto no art. 20 da LGPD, que ex-
pressamente inclui, entre as informações sujeitas à possibilidade de
revisão, as alusivas ao seu “perfil pessoal, profissional, de consumo e
de crédito ou os aspectos de sua personalidade”. Confira-se:
Art. 20. O titular dos dados tem direito a solicitar a revisão de
decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatiza-
do de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões
destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de
crédito ou os aspectos de sua personalidade.

15  TAVARES, Giovanna Milanez. o tratamento de dados pessoais disponíveis


publicamente e os limites impostos pela lgpd. Rio de Janeiro: Processo, 2021. p. 55-56.

53
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

§ 1º O controlador deverá fornecer, sempre que solicitadas,


informações claras e adequadas a respeito dos critérios e dos pro-
cedimentos utilizados para a decisão automatizada, observados os
segredos comercial e industrial.
§ 2º Em caso de não oferecimento de informações de que tra-
ta o § 1º deste artigo baseado na observância de segredo comercial e
industrial, a autoridade nacional poderá realizar auditoria para veri-
ficação de aspectos discriminatórios em tratamento automatizado
de dados pessoais.
O terceiro aspecto se relaciona com os fundamentos adota-
dos pelo legislador e, neste particular, destaco, do art. 3º, o respeito à
privacidade (I) e a autodeterminação informativa (II).
Ressalto, pela importância e pela novidade, o segundo deles –
a autodeterminação informativa. Apesar de poder parecer utópica,
diante do impressionante volume de dados que diariamente trafe-
gam sobre cada pessoa, consiste em atribuir ao titular dos dados o
controle sobre o que se faz com eles. Na expressão de Rony Vainzof,
(...) é o direito de controle pessoal sobre o trânsito de dados
relativo ao próprio titular – e, portanto, uma extensão das liberdades
do indivíduo – conjuga as duas (...) concepções de privacidade de
dados: a primeira de caráter negativo e estático; e a moderna, em que
a intervenção (proteção) é dinâmica, durante todo o ciclo de vida dos
dados nos mais variados meios em que possa circular. Nas palavras
de Stefano Rodotà é um “poder permanente de controle sobre seus
próprios dados”.16
Para Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia Silva, a con-
cepção de autodeterminação informativa, pela sua própria designa-
ção, converte a privacidade, em larga medida, no direito atribuído a
cada pessoa de controlar a circulação dos seus próprios dados, por

16  VAINZOF, Rony. Comentário ao art. 1º. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM,
Renato Opice (Coord.). LGPD - Lei geral de proteção de dados comentada. 3ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 30.

54
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

meio de uma série de medidas e procedimentos. Em outros termos,


trata-se, precipuamente, do balizamento, pelo titular, do tratamento
de seus dados por terceiros, e não propriamente da mera preserva-
ção desses dados contra o conhecimento público (como no conceito
tradicional de privacidade). Esse sentido contemporâneo de privaci-
dade, segundo a mais autorizada doutrina (...).17
Exsurge nítida, portanto, a grande preocupação do legislador
relativamente a possíveis abusos no tratamento de dados pessoais
sensíveis de todos os cidadãos brasileiros, porquanto o direito à
privacidade foi erigido à categoria de direito fundamental na Consti-
tuição Federal de 1988, à luz do art. 5º, inciso X, in verbis:
Art. 5º.

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a


imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

O quarto aspecto a ser considerado diz respeito aos princípios


que regem o tratamento de dados, previstos no art. 6º da mencio-
nada Lei, também transcrito (com destaques) para melhor elucidar a
controvérsia:
Art. 6º As atividades de tratamento de dados pessoais deve-
rão observar a boa-fé e os seguintes princípios:

I- finalidade: realização do tratamento para propósitos


legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular,

17  SOUZA, Eduardo Nunes; SILVA; Rodrigo da Guia. Direitos do titular de dados pessoais
na lei 13.709/2018: uma abordagem sistemática. In TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana;
OLIVA; Milena Donato. Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões
no direito brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2019. p. 262.

55
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

sem possibilidade de tratamento posterior de forma


incompatível com essas finalidades;
II - adequação: compatibilidade do tratamento com as fina-
lidades informadas ao titular, de acordo com o contexto
do tratamento;
III - necessidade: limitação do tratamento ao mínimo
necessário para a realização de suas finalidades, com
abrangência dos dados pertinentes, proporcionais e não
excessivos em relação às finalidades do tratamento de
dados;
IV - livre acesso: garantia, aos titulares, de consulta facilitada
e gratuita sobre a forma e a duração do tratamento, bem
como sobre a integralidade de seus dados pessoais;
V - qualidade dos dados: garantia, aos titulares, de exatidão,
clareza, relevância e atualização dos dados, de acordo
com a necessidade e para o cumprimento da finalidade
de seu tratamento;
VI - transparência: garantia, aos titulares, de informações
claras, precisas e facilmente acessíveis sobre a realização
do tratamento e os respectivos agentes de tratamento,
observados os segredos comercial e industrial;

(...)

IX - não discriminação: impossibilidade de realização do tra-


tamento para fins discriminatórios ilícitos ou abusivos;
X - responsabilização e prestação de contas: demonstração,
pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de
comprovar a observância e o cumprimento das normas
de proteção de dados pessoais e, inclusive, da eficácia
dessas medidas.

56
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Os três primeiros (finalidade, adequação e necessidade)


juntamente com o sexto (transparência) formam o que Rony Vain-
zof considera “o cerne dessa norma jurídica”, por determinarem a
compreensão do “respeito da proteção dos direitos fundamentais de
liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalida-
de da pessoa natural, por meio da tutela dos dados pessoais”.18
Ainda de acordo com o mencionado autor, ao analisar o
princípio da finalidade com base na doutrina de Danilo Doneda, esse
princípio é “o que carrega de forma mais incisiva os traços caracte-
rísticos da matéria de proteção dos dados pessoais, pois o motivo da
coleta deve ser compatível com o objetivo final dos dados”.19 Con-
siste, pois, na necessária vinculação entre os motivos que ensejaram
a autorização concedida previamente pelo titular dos dados à sua
efetiva utilização pelo agente de tratamento.
Por meio desse princípio,

(...) é garantido ao titular, mediante informação prévia,


as fronteiras da legalidade do tratamento de seus da-
dos, delimitando os propósitos do tratamento, desde
que lícitos, e de terceiros que poderão ter ou não acesso
aos dados. Visa mitigar o risco de uso secundário à
revelia do titular.20

A vinculação entre a autorização e o efetivo tratamento


concretiza-se, no Direito Europeu, mais especificamente no GDPR,
por meio do “Princípio da Limitação da Finalidade” (art. 5º, “b”), que
envolve a necessidade de que seja informado de maneira prévia ao
titular o motivo pelo qual os seus dados serão coletados e o que será
feito com eles (“finalidade” e “transparência”), tudo isso para que se

18  VAINZOF, Rony. Comentário ao art. 6º. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM,
Renato Opice (Coord.). LGPD - Lei geral de proteção de dados comentada. 3ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 145.
19  Idem, ibidem.
20  Idem, ibidem.

57
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

possa delimitar, com precisão, quais são os dados (“adequação”), o


que, deles, realmente é minimamente necessário (“necessidade”),
permitido ao titular, a qualquer tempo, consultá-los (“livre acesso”).
Sobre os princípios, convém mencionar a enumeração contida
no art. 5º, itens 1 e 2, do citado Regulamento, que podem servir de
orientação a aplicar a legislação brasileira: princípio da licitude, lealda-
de e transparência (lawfulness, fairness and transparency); princípio
da adequação e limitação da finalidade (purpose limitation); princípio
da necessidade ou minimização (data minimisation); princípio da
qualidade dos dados ou exatidão (accuracy); princípio da limitação da
conservação (storage limitation); princípio da segurança, integridade
e confidencialidade (integrity and confidentiality), princípio da pres-
tação de contas ou responsabilização (accountability).
O quinto ponto a ser registrado se refere aos direitos assegu-
rados na nova lei ao titular dos dados, em especial os previstos nos
arts. 9º e 18.
No primeiro dos dispositivos mencionados, é definida a ma-
neira pela qual deve ser concretizado o direito ao acesso facilitado às
informações sobre o tratamento de seus dados:
Art. 9º O titular tem direito ao acesso facilitado às informa-
ções sobre o tratamento de seus dados, que deverão ser disponibili-
zadas de forma clara, adequada e ostensiva acerca de, entre outras
características previstas em regulamentação para o atendimento do
princípio do livre acesso:

I - finalidade específica do tratamento;


II - forma e duração do tratamento, observados os segredos
comercial e industrial;
III - identificação do controlador;
IV - informações de contato do controlador;

58
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

V - informações acerca do uso compartilhado de dados pelo


controlador e a finalidade;
VI - responsabilidades dos agentes que realizarão o trata-
mento; e
VII - direitos do titular, com menção explícita aos direitos
contidos no art. 18 desta Lei.

Conforme leciona Ingo Sarlet, o direito de acesso e conheci-


mento dos dados pessoais engloba:

a) o direito de acesso e conhecimento dos dados pessoais exis-


tentes em registros (bancos de dados); b) direito ao não conhecimen-
to, tratamento, utilização e difusão de determinados dados pessoais
pelos Estado ou por terceiros, aqui incluído o direito de sigilo quanto
aos dados pessoais; c) direito ao conhecimento da identidade dos res-
ponsáveis pela coleta, armazenamento, tratamento e utilização dos
dados; d) o direito ao conhecimento da finalidade da coleta e eventual
utilização dos dados; e) direito a ratificação e, a depender do caso, de
exclusão de dados pessoais armazenados em banco de dados.21
No art. 18, são catalogados diversos outros direitos mais dire-
tamente vinculados à relação havida com o controlador:
Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do
controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qual-
quer momento e mediante requisição:
I - confirmação da existência de tratamento;
II - acesso aos dados;
III - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados;
IV - anonimização, bloqueio ou eliminação de dados des-
necessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o
disposto nesta Lei;

21  SARLET, Ingo W; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito
Constitucional. São Paulo: Ed. RT, 2014. pp. 433-434.

59
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

V - portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou


produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamen-
tação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e
industrial;
VI - eliminação dos dados pessoais tratados com o consenti-
mento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta Lei;
VII - informação das entidades públicas e privadas com as
quais o controlador realizou uso compartilhado de dados;
VIII - informação sobre a possibilidade de não fornecer con-
sentimento e sobre as consequências da negativa;
IX - revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art.
8º desta Lei.
Observam-se, na regra transcrita, manifestações claras do
princípio da transparência, na medida em que ao titular dos dados
é assegurado, por primeiro, o direito de saber da existência de
informações a seu respeito que estejam ou tenham sido objeto de
tratamento (e já mencionei a gama de operações que envolvem o tra-
tamento) e, se positiva a resposta, exsurgem diversos outros direitos
que emanam do princípio da autodeterminação informativa e da
necessária observância da finalidade, da necessidade e da adequação
dos dados por parte do controlador.
O sexto aspecto a merecer destaque vincula-se à denominada
“base legal” para tratamento dos dados. Representa as hipóteses
legal e taxativamente previstas para tornar possível o tratamento de
dados pessoais, previstas nos art.s 7º e 11 da LGPD, em relação aos
dados pessoais em geral e dados pessoais sensíveis, respectivamente.
Significa dizer que o tratamento dos dados pessoais somente
será legalmente admitido se se enquadrar em alguma das hipóteses
previstas nos citados dispositivos; “o tratamento somente é per-
mitido nas hipóteses legais autorizativas e desde que os indivíduos
saibam exatamente quais dados estão sendo coletados, para quais

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A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

finalidades e, ainda, com quem estão sendo compartilhados”, nas


palavras de Giovanna Milanez Tavares.22

1. A proteção dos dados pessoais públicos ou


disponibilizados publicamente

O grande debate em análise, porém, envolve a proteção de


dados coletados no ambiente público, pois, em relação a estes, uma
leitura menos atenta e mais apressada da regra contida no § 4º do
art. 7º poderia levar à conclusão de ser possível o tratamento de da-
dos dessa natureza, mais especialmente no caso de “dados tornados
manifestamente públicos pelo titular”, em relação aos quais é dispen-
sada a exigência do consentimento e, nesse campo está enquadrada
a possibilidade de sua livre utilização pelo empregador ou tomador
dos serviços.
Essa ilação não prospera, pois se verifica que, em ambos
os casos – dados tornados públicos pelo titular e dados de acesso
público –, por expressa previsão contida no mesmo dispositivo, são
“resguardados os direitos do titular” e o tratamento deve ser regido
consoante “os princípios previstos nesta Lei”.
Portanto, não há dúvida quanto ao resguardo dos direitos
assegurados ao titular dos dados e à incidência dos princípios
contidos no art. 6º, alguns deles transcritos acima, o que também o
ocorre com os dados de acesso público, em face da previsão contida
no § 3º do art. 7º: “§ 3º O tratamento de dados pessoais cujo acesso
é público deve considerar a finalidade, a boa-fé e o interesse público
que justificaram sua disponibilização”.
Clara é a afirmação de Gustavo Tepedino e Chiara Spadaccini
de Teffé sobre essa espécie de dados:

22  TAVARES, Giovanna Milanez. Idem. p. 90.

61
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Como restou estabelecido, mesmo nos casos de dispensa da


exigência do consentimento, os agentes de tratamento continuarão
obrigados com as demais disposições previstas na lei, especialmente
com os princípios gerais e os direitos do titular. Ou seja, as proteções
conferidas ao titular permanecem e são de observância obrigatória.

(...)

Dispensa o legislador a exigência do consentimento previsto


no caput do artigo 7º para os dados ‘tornados manifestamente pú-
blicos pelo titular’, resguardados os direitos do titular e os princípios
previstos na norma. Assim, como na hipótese dos dados de acesso
público, aqui, deve ser considerado o contexto em que a informação
foi disponibilizada, bem como haver compatibilidade entre o seu uso
e as circunstâncias pelas quais tal informação foi tornada pública,
tendo em vista a ressalva disposta na lei, que não autoriza o uso
indiscriminado desses dados. Esses tipos de dados, ainda que sejam
considerados públicos, não deixam de ser pessoais, sendo necessário
considerar sempre a finalidade da circulação e o que justifica a sua
disponibilização.23
Na mesma linha, Caio César de Carvalho Lima, ao comentar o
mencionado art. 6º:
Nas situações em que o próprio usuário tornar públicos seus
dados pessoais não se fará necessária a obtenção do seu consenti-
mento para tratamento dos seus dados pessoais, sendo fundamental
observar que, mesmo nessa hipótese, não será totalmente livre a
utilização dos dados, a qual somente poderá ocorrer, desde que

23  TEPEDINO, Gustavo; TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Consentimento e proteção de


dados pessoais na LGPD. In TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA; Milena Donato.
Lei geral de proteção de dados pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. São
Paulo: Thomson Reuters, Revista dos Tribunais, 2019. p. 298; 304.

62
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

sejam resguardados os direitos (artigos 9º e 18, principalmente) e os


princípios (artigo 6º) previstos na Lei.24
Em obra dedicada ao tema, em que analisa com profundidade
a específica questão dos dados disponíveis publicamente pelo titu-
lar, já referida, Giovanna Milanez Tavares realça a preservação das
características das informações, consideradas no contexto da con-
ceituação dos dados pessoais, ainda que sejam elas disponibilizadas
pelo titular ou de acesso público.
A referida Autora conceitua com precisão as duas modalida-
des de dados:

(...) enquanto o elemento caracterizador do dado


público é sua natureza pública, isto é, ter sido gerado
ou estar sob a guarda do Poder Público, o elemento
caracterizador do dado disponível publicamente é a
sua ampla acessibilidade, ou seja, independentemente
de quem os gerou, eles encontram-se em ambientes de
acesso público, que permitem o livre acesso e posterior
tratamento à luz do regramento legal, por óbvio.25

Para ambos os casos, ela afirma que o mais importante é o


contexto em que os dados são utilizados, e não a natureza da infor-
mação em si. A partir dessa nova realidade, a Autora invoca a “Teoria
da Privacidade Contextual”, de Helen Nissenbaum, “que leva em
especial consideração o contexto pelo qual os dados pessoais são
publicamente acessíveis”.26
No cenário das mudanças normativas, também registra que a
nova legislação afastou o entendimento no sentido da liberdade de
utilização dos dados públicos. Transcrevo a abalizada lição:

24  LIMA, Caio César Carvalho. Comentário ao art. 7º. In MALDONADO, Viviane
Nóbrega; BLUM, Renato Opice (Coord.). LGPD - Lei geral de proteção de dados
comentada. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. p. 199 - com destaques.
25  TAVARES, Giovanna Milanez. Op. cit., p. 62 – grifos postos.
26  Idem, op. cit., p. 95.

63
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Assim, é possível confirmar que, desde o início, a proposta


normativa da LGPD é romper com a lógica binária entre o público e o
privado, destacando que o mais importante, na verdade, é a análise do
contexto no qual os dados são publicamente acessíveis. Dessa forma,
a LGPD não deixa dúvidas de que os dados de caráter público conti-
nuam sendo pessoais ainda que não expressem informações privadas
ou íntimas do indivíduo, superando definitivamente o entendimento,
antes comum, de que os dados pessoais obtidos de fontes públicas,
que são de livre circulação e acesso amplo, poderiam ser utilizados por
qualquer um, de qualquer forma e para qualquer finalidade”.27
Na mesma linha de raciocínio, a Autora exemplifica essas
espécies de dados:
Nesse sentido, inclui-se na definição de dados pessoais de
acesso público (i) dados pessoais cuja divulgação é obrigatória por lei,
como o fato de alguém ser proprietário de um imóvel, sócio de uma
empresa ou até mesmo casado, bem como nome, cargo e renda de
servidores públicos para fins de transparência; (ii) dados geridos pela
Administração Pública, como a distribuição de ações judiciais, os pro-
testos, os registros de nascimento, a inscrição em cadastro de contri-
buintes; (iii) dados pessoais constantes em bancos de dados públicos,
como da Receita Federal (em que o CPF é consultado normalmente
para fins de confirmação de titularidade para operações financeiras),
do Repositório do TSE, de cartórios públicos, diários oficiais, diários
de justiça e sites públicos da internet, do Datasus, do Inep, do sistema
SIDRA do IBGE, entre tantos outros; (iv) dados pessoais que constam
de cadastros públicos e podem ser facilmente encontrados na Internet;
(v) dados pessoais disponibilizados pelo Poder Judiciário em processos
judiciais; (vi) dados pessoais abertos – a exemplo das iniciativas Ce-
pesp Data (para dados eleitorais) e Brasil.io (para dados da Covid-19);
(vii) informações de interesse geral ou coletivo de divulgação pública

27  Idem, op. cit., p. 60.

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A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

obrigatória por órgãos e entidades públicas em decorrência da Lei de


Acesso à Informação; entre tantos outros28.
Ao ser valer de informações colhidas em bancos de dados
disponibilizados publicamente ou mediante serviço contratado, a
empresa promove o que se pode enquadrar como tratamento de da-
dos de acesso público, em muitos casos até com a utilização de dados
pessoais sensíveis, tal como acontece com antecedentes criminais e
restrições creditícias.
Um dos exemplos citados por Giovanna Milanez Tavares,
aliás, bem se assemelha à hipótese versada ora analisada:
Os dados pessoais dos cidadãos disponibilizados pelo Poder
Judiciário em certidões judiciais de acesso público emitidas especi-
ficamente para aferir a capacidade de solvência dos cidadãos dificil-
mente poderiam ser reutilizados para desclassificar um candidato
em determinado processo seletivo para uma vaga de emprego em
virtude da existência de uma cobrança de dívida.29
O tratamento dessas espécies de dados encontra-se vinculado
ao já citado § 3º do art. 7º, que impõe sejam observados “a finalidade, a
boa-fé e o interesse público que justificaram a sua disponibilização”.
Sobre essas restrições, a Autora mencionada vincula o prin-
cípio da boa-fé à necessidade de que sejam observadas, obrigatoria-
mente, as “legítimas expectativas dos titulares, ou seja, remete à ideia
de fidelidade no cumprimento da expectativa alheia, honestidade,
lealdade e confiança.”.30 Posteriormente, ela conclui:
(...) quando a LGPD estabelece a boa-fé enquanto requisito
para o tratamento equivalente de dados de acesso público, deve-
-se entender como a imposição de uma regra de conduta (boa-fé
objetiva), ou seja, um padrão de comportamento leal, baseado em
uma conduta proba e transparente, que se materializa a partir da

28  Idem, op. cit., p. 70-72.


29  Idem, op. cit., p. 96-97, com destaques.
30  Idem, op. cit., p. 100.

65
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

observância dos interesses legítimos e das expectativas razoáveis do


titular, a partir de um tratamento que não lhe cause qualquer tipo de
abuso, lesão ou desvantagem.

(...)

Dessa forma, a observância da boa-fé objetiva exige que a re-


lação entre o controlador e o titular dos dados tenha como alicerces
fundamentais a lealdade (a partir da tutela da confiança), a licitude e
a transparência.
A lealdade, contudo, ganha papel de destaque, especialmente
quando considerada sob o ponto de vista da tutela da confiança e
da legítima expectativa do titular. Trata-se, em suma, de o indivíduo
confiar que os seus dados pessoais serão adequadamente tratados
e protegidos pelos agentes de tratamento, tudo em conformidade
com a LGPD. Ou seja, a confiança torna-se um valor indispensável
para a confirmação da licitude do tratamento equivalente de dados
de acesso público, ao considerar, no final das contas, a legítima ex-
pectativa que foi criada no titular dos dados pessoais.31
As informações utilizadas nem sempre são “tornados ma-
nifestamente públicos pelo titular”, pois, quanto a estas, hão de ser
observados os requisitos exigidos para que possam ser considerados
como tais:
Nesse sentido, conclui-se que, para confirmar se os dados pes-
soais foram tornados manifestamente públicos pelo titular, é funda-
mental analisar (i) quem divulgou os dados (se foi o próprio titular ou
um terceiro); (ii) o contexto no qual o dado foi tornado público (se há
alguma espécie de restrição ou ’filtro‘); e (iii) a intenção do titular no
momento da divulgação. Somente assim, será possível compreender
quem realisticamente pode (ou deveria poder) acessá-lo e tratá-lo

31  Idem, op. cit., p. 101-103, com destaques.

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A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

na prática. Ou seja, o dado pessoal tornado manifestamente público


pelo titular é aquele divulgado intencionalmente pelo próprio titular
de forma manifestamente pública.32
Não sempre são dados tornados públicos por parte de cada
trabalhador. Nem sempre são obtidas em perfis criados para veicula-
ção de informações privadas em redes sociais e, mesmo que assim o
fossem, não deixariam de desfrutar da proteção legal.
Assim, a edição da LGPD retira o caráter de licitude das
atividades aludidas, uma vez que não observam os fundamentos da
disciplina da proteção de dados pessoais.

4. A PRIMEIRA (E IMPORTANTE) DECISÃO DO STF SOBRE A


PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS DE ACESSO PÚBLICO

A matéria pertinente à utilização de dados pessoais de acesso


público foi objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal por
meio de paradigmática – e importantíssima – decisão. Refiro-me ao
julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstituciona-
lidade nº 6387/DF, em que foi referendada pretensão liminar conce-
dida pela Ministra Relatora, Rosa Weber, para suspender a eficácia da
Medida Provisória nº 954/2020, que autorizava o compartilhamento
de dados de rede de telefonia móvel.
A decisão objetivou prevenir danos irreparáveis à intimidade e
ao sigilo da vida privada de mais de uma centena de milhão de usuários
dos serviços de telefonia fixa e móvel. Assim encontra-se ementada:
MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITU-
CIONALIDADE. REFERENDO. MEDIDA PROVISÓRIA Nº 954/2020.
EMERGÊNCIA DE SAÚDE PÚBLICA DE IMPORTÂNCIA INTERNA-
CIONAL DECORRENTE DO NOVO CORONAVÍRUS (COVID-19).

32  Idem, op. cit., p. 80.

67
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

COMPARTILHAMENTO DE DADOS DOS USUÁRIOS DO SERVIÇO


TELEFÔNICO FIXO COMUTADO E DO SERVIÇO MÓVEL PESSOAL,
PELAS EMPRESAS PRESTADORAS, COM O INSTITUTO BRASILEI-
RO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. FUMUS BONI JURIS. PERICU-
LUM IN MORA. DEFERIMENTO.

1. Decorrências dos direitos da personalidade, o respeito


à privacidade e à autodeterminação informativa foram
positivados, no art. 2º, I e II, da Lei nº 13.709/2018 (Lei Ge-
ral de Proteção de Dados Pessoais), como fundamentos
específicos da disciplina da proteção de dados pessoais.
2. Na medida em que relacionados à identificação – efe-
tiva ou potencial – de pessoa natural, o tratamento e
a manipulação de dados pessoais hão de observar os
limites delineados pelo âmbito de proteção das cláusulas
constitucionais assecuratórias da liberdade individual
(art. 5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento
da personalidade (art. 5º, X e XII), sob pena de lesão a
esses direitos. O compartilhamento, com ente público,
de dados pessoais custodiados por concessionária de
serviço público há de assegurar mecanismos de proteção
e segurança desses dados.
3. O Regulamento Sanitário Internacional (RSI 2005) ado-
tado no âmbito da Organização Mundial de Saúde exige,
quando essencial o tratamento de dados pessoais para
a avaliação e o manejo de um risco para a saúde pública,
a garantia de que os dados pessoais manipulados sejam
‘adequados, relevantes e não excessivos em relação a esse
propósito’ e ‘conservados apenas pelo tempo necessário.’
(artigo 45, § 2º, alíneas ‘b’ e ‘d’).

68
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

4. Consideradas a necessidade, a adequação e a proporcio-


nalidade da medida, não emerge da Medida Provisória nº
954/2020, nos moldes em que editada, interesse público
legítimo no compartilhamento dos dados pessoais dos
usuários dos serviços de telefonia.
5. Ao não definir apropriadamente como e para que serão
utilizados os dados coletados, a MP nº 954/2020 desa-
tende a garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV, da
CF), na dimensão substantiva, por não oferecer condi-
ções de avaliação quanto à sua adequação e necessidade,
assim entendidas como a compatibilidade do tratamento
com as finalidades informadas e sua limitação ao mínimo
necessário para alcançar suas finalidades.
6. Ao não apresentar mecanismo técnico ou administrativo
apto a proteger, de acessos não autorizados, vazamentos
acidentais ou utilização indevida, seja na transmissão,
seja no tratamento, o sigilo, a higidez e, quando o caso,
o anonimato dos dados pessoais compartilhados, a MP
nº 954/2020 descumpre as exigências que exsurgem do
texto constitucional no tocante à efetiva proteção dos
direitos fundamentais dos brasileiros.
7. Mostra-se excessiva a conservação de dados pessoais
coletados, pelo ente público, por trinta dias após a decre-
tação do fim da situação de emergência de saúde pública,
tempo manifestamente excedente ao estritamente ne-
cessário para o atendimento da sua finalidade declarada.
8. Agrava a ausência de garantias de tratamento adequado e
seguro dos dados compartilhados a circunstância de que,
embora aprovada, ainda não vigora a Lei Geral de Prote-
ção de Dados Pessoais (Lei nº 13.709/2018), definidora
dos critérios para a responsabilização dos agentes por

69
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

eventuais danos ocorridos em virtude do tratamento de


dados pessoais. O fragilizado ambiente protetivo impõe
cuidadoso escrutínio sobre medidas como a implementa-
da na MP nº 954/2020.
9. O cenário de urgência decorrente da crise sanitária defla-
grada pela pandemia global da COVID-19 e a necessidade
de formulação de políticas públicas que demandam dados
específicos para o desenho dos diversos quadros de en-
frentamento não podem ser invocadas como pretextos
para justificar investidas visando ao enfraquecimento de
direitos e atropelo de garantias fundamentais consagra-
das na Constituição.
10. Fumus boni juris e periculum in mora demonstrados. De-
ferimento da medida cautelar para suspender a eficácia da
Medida Provisória nº 954/2020, a fim de prevenir danos
irreparáveis à intimidade e ao sigilo da vida privada de mais
de uma centena de milhão de usuários dos serviços de
telefonia fixa e móvel.
11. Medida cautelar referendada.33

Nessa pioneira decisão, a Corte Maior fincou os primeiros


pilares jurisprudenciais em torno do novo regramento, conquanto se
encontrasse em período de vacatio legis, e consagrou a interpreta-
ção da existência de novos contornos do direito à privacidade, es-
pecialmente quanto ao princípio da autodeterminação informativa
e à autonomia do direito fundamental à proteção de dados pessoais,
para além da proteção à privacidade.

33  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MC-ADI 6387/DF, Relatora Ministra Rosa Weber,
Pleno, DJe 12/11/2020. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?-
classeNumeroIncidente=%22ADI%206387%22&base=acordaos&sinonimo=true&plu-
ral=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true>. Acesso
em: 23 jun. 2022.

70
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Destaco passagens dos votos proferidos pelos eminentes


Ministros, a fim de identificar os fundamentos determinantes da
decisão (com destaques sublinhados):
Ministra Rosa Weber: Tais informações, relacionadas à
identificação – efetiva ou potencial – de pessoa natural, configuram
dados pessoais e integram, nessa medida, o âmbito de proteção das
cláusulas constitucionais assecuratórias da liberdade individual (art.
5º, caput), da privacidade e do livre desenvolvimento da personalida-
de (art. 5o, X e XII). Sua manipulação e tratamento, desse modo, hão
de observar, sob pena de lesão a esses direitos, os limites delineados
pela proteção constitucional.
Decorrências dos direitos da personalidade, o respeito à pri-
vacidade e à autodeterminação informativa foram positivados, no
art. 2º, I e II, da Lei no 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais), como fundamentos específicos da disciplina da proteção
de dados pessoais.)

(...)

Nessa linha, ao não definir apropriadamente como e para que


serão utilizados os dados coletados, a MP n. 954/2020 não oferece
condições para avaliação da sua adequação e necessidade, assim en-
tendidas como a compatibilidade do tratamento com as finalidades
informadas e sua limitação ao mínimo necessário para alcançar suas
finalidades. Desatende, assim, a garantia do devido processo legal
(art. 5º, LIV, da Lei Maior), em sua dimensão substantiva.
Alexandre de Moraes: Dessa forma, ao meu ver, nunca é
excessivo relembrar que a inviolabilidade do sigilo de dados com-
plementa a previsão do direito à intimidade e vida privada. Tanto
complementa e é tão importante que o legislador constituinte
entendeu por bem colocar expressamente. Tradicionalmente

71
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

havia sempre grande discussão, mas intimidade e vida privada,


obviamente, acabavam abarcando dados relacionados às pessoas.
O legislador constituinte de 1988 entendeu por bem consagrar, de
forma específica, além de a intimidade e a vida privada - art. 5º, X
-, o sigilo de dados, sendo todas essas espécies de gênero maior: a
defesa da privacidade individual.

(...)

Mas todas as limitações, todas as possíveis limitações, a


direitos e garantias individuais precisam seguir os parâmetros cons-
titucionais de excepcionalidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Além desses parâmetros constitucionais, precisam atentar para a
finalidade de satisfação a justas exigências de moral, ordem pública
e bem-estar de uma sociedade democrática - como já disse, também
referidas na Declaração de Direitos Humanos das Nações Unidas.
Luís Roberto Barroso: No outro prato dessa balança, estão
os direitos constitucionais elencados no art. 5º da Constituição, X
e XII, notadamente o direito à intimidade e à vida privada, generi-
camente identificados com o direito de privacidade, que é o direito
que toda pessoa tem de ter uma esfera da sua vida que não seja
acessível, quer ao Estado, quer a outras pessoas, salvo, eventual-
mente, por vontade própria.

(...)

Aliás, os dados são, possivelmente, o principal ativo da nossa


época, ou um dos principais ativos da nossa época, junto com a tec-
nologia.

(...)

72
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

O problema - e essa é a equação com a qual estamos lidando


aqui - são os riscos e as ameaças envolvidos. Nós vivemos a era da
terceira revolução industrial, que é revolução industrial da internet,
da conexão mundial entre os computadores, que nos trouxeram
grandes vantagens, que nos trouxeram grandes proveitos, inclusive
a possibilidade de estarmos conectados, em tempo real, com bilhões
de pessoas pelo mundo, mas que também trazem riscos e ameaças
graves, que têm um peso relevante na discussão que estamos aqui
desenvolvendo, porque é pela via da internet que vêm as campanhas
de desinformação, as campanhas de colocar qualquer um de nós,
aqui, na frente de uma câmera, dizendo coisas que jamais dissemos,
de uma forma que é quase impossível detectar a fraude.
Além disso, nós vivemos tragicamente um tempo de milícias
digitais robotizadas, operadas por marginais que se abrigam nos lu-
gares mais insólitos, inclusive em diferentes partes do mundo, podem
estar ali na esquina ou podem estar em qualquer parte do mundo. Há
os riscos do hackeamento, vira e mexe nós lemos, pela imprensa, a
ameaça representada pela captura de dados em diferentes empre-
sas que retém dados dos seus clientes. Há risco do uso indevido
desses dados, inclusive e sobretudo para fins políticos. E nós todos
temos, no Brasil, eu lamento dizer, uma compreensível desconfiança
em relação ao Estado, de uma maneira geral, simplesmente porque o
passado condena.
Luiz Fux: A proteção de dados pessoais e a autodetermi-
nação informativa são direitos fundamentais autônomos, que
envolvem uma tutela jurídica e âmbito de incidência específicos.
Esses direitos são extraídos da interpretação integrada da garantia
da inviolabilidade da intimidade e da vida privada (art. 5º, X), do
princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da garantia
processual do habeas data (art. 5º, LXXII), todos previstos na Cons-
tituição Federal de 1988.

73
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

(...)

As leis que tratam de coleta e processamento de dados devem


(i) atender a propósitos legítimos, específicos, explícitos e informa-
dos; (iii) limitar a coleta ao mínimo necessário para a realização das
finalidades normativas; (iv) prever medidas técnicas e administrati-
vas de segurança aptas a proteger os dados pessoais de acessos não
autorizados e (v) prevenir a ocorrência de danos, consoante os parâ-
metros desenhados no direito comparado e no art. 6º da Lei Geral de
Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18).
Ricardo Lewandowski: Vale lembrar que a própria Lei Geral
de Proteção de Dados -LGPD (Lei 13.708/2018), ainda em período
de vacatio legis, abriga em seu texto os princípios limitadores re-
lativos ao trato de dados pessoais, estipulando que a sua coleta só
pode ocorrer tendo em conta, rigorosamente, a finalidade por ela
pretendida, rejeitando a captação excessiva, conforme decorre de
seu seu art. 6º, incisos II e III.

(...)

Neste aspecto, a disciplina da proteção de dados pessoais


trazida pela norma questionada, ao menos aparentemente, vai de
encontro ao direito de privacidade, à autodeterminação informa-
tiva, à inviolabilidade da intimidade dos consumidores, ferindo, por
consequência, os princípios da ordem econômica, da defesa do con-
sumidor, do livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade,
bem como o exercício da cidadania quanto às pessoas naturais.
Gilmar Mendes: Embora as novas tecnologias de comunicação
tenham se tornado condiçao necessária para a realização de direitos
básicos – como se faz evidente no campo da liberdade de expressão,
de manifestação política e de liberdade religiosa – verifica-se que

74
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

esses mesmos avanços tecnológicos suscitam riscos generalizados


de violação de direitos fundamentais básicos, para além da questão
comunicacional
O direito fundamental à igualdade – enquanto núcleo de qual-
quer ordem constitucional – é submetido a graves riscos diante da
evolução tecnológica. A elevada concentração de coleta, tratamento
e análise de dados possibilita que governos e de empresas utilizem
algoritmos e ferramentas de data analytics, que promovem classi-
ficações e esteriotipações discriminatórias de grupos sociais para a
tomada de decisões estratégias para a vida social, como a alocação de
oportunidades de acesso a emprego, negócios e outros bens sociais.
Essas decisões são claramente passíveis de interferência por vieses
e inconsistências que naturalmente marcam as análises estatísticas
que os algoritmos desempenham.

(...)

A adequada compreensão do parâmetro de controle invocado,


no entanto, perpassa o aprofundamento do inevitável debate teórico
acerca da afirmação da autonomia do direito fundamental à pro-
teção de dados pessoais como categoria dentro do rol dos direitos
fundamentais, para além da mera evolução do direito ao sigilo.

(...)

O marco identificador da reconceptualização do direito à


privacidade coincide com o desenvolvimento jurisprudencial do
conceito de autodeterminação informacional (die informationelle
Selbsstbestimmung) pelo Tribunal Constitucional Alemão.

(...)

75
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

É justamente essa reconfiguração que possibilita a afirma-


ção do direito à autodeterminação informacional como um contra-
ponto a qualquer contexto concreto de coleta, processamento ou
transmissão de dados passível de configurar situação de perigo.

(...)

Essa abrangência da proteção atribuída ao direito de au-


todeterminação constitui importante chave interpretativa do
âmbito de proteçãão do direito fundamental à proteção de dados
pessoais, o qual não recai propriamente sobre a dimensão privada
ou não do dado, mas sim sobre os riscos atribuídos ao seu proces-
samento por terceiros.

(...)

A afirmação de um direito fundamental à privacidade e à


proteção de dados pessoais deriva, ao contrário, de uma compre-
ensão integrada do texto constitucional lastreada (i) no direito
fundamental à dignidade da pessoa humana, (ii) na concretização do
compromisso permanente de renovação da força normativa da pro-
teção constitucional à intimidade (art. 5o, inciso X, da CF/88) diante
do espraiamento de novos riscos derivados do avanço tecnológico
e ainda (iii) no reconhecimento da centralidade do Habeas Data en-
quanto instrumento de tutela material do direito à autodeterminação
informativa.

(...)

A afirmação da autonomia do direito fundamental à proteção


de dados pessoais – há de se dizer – não se faz tributária de mero

76
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

encantamento teórico, mas antes da necessidade inafastável de


afirmação de direitos fundamentais nas sociedades democráticas
contemporâneas.
Considerando que os espaços digitais são controlados por
agentes econômicos dotados de alta capacidade de coleta, arma-
zenamento e processamento de dados pessoais, a intensificação
do fluxo comunicacional na internet aumenta as possibilidades de
violação de direitos de personalidade e de privacidade.

(...)

Desse modo, a afirmação da força normativa do direito


fundamental à proteção de dados pessoais decorre da necessidade
indissociável de proteção à dignidade da pessoa humana ante a con-
tínua exposição dos indivíduos aos riscos de comprometimento da
autodeterminação informacional nas sociedades contemporâneas.
Cármen Lúcia: Somos uma sociedade de dados, como aqui foi
lembrado, em que, acaba de mencionar o Ministro Gilmar a profes-
sora Laura, realmente não há dados insignificantes. O que pode ser
significante ou insignificante é o uso que do dado é feito, que, com
a conectividade possível, faz com que todos nós tenhamos de estar
atentos a isto que hoje é uma sociedade que depende de dados para
passar não apenas informações, mas dados que acabam levando a
uma modificação enorme na convivência, quer por seu vazamento,
uso indevido, pela malversação desses dados, quer quando tenham
situações de vida e morte de alguém, de honra e desonra - e foi men-
cionado aqui, especialmente no voto do Ministro Luiz Fux.
A par de reconhecer a importância dos dados na realidade
contemporânea e o elevado risco de sua manipulação indevida, o Su-
premo Tribunal Federal afirmou que os novos direitos fundamentais,

77
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

criados pela LGPD, gozam de autonomia e independência, além de


incorporar outros fundamentos:
a) a positivação do respeito à privacidade e a autodetermi-
nação informacional como fundamentos específicos da proteção de
dados pessoais;
b) a incidência dos princípios previstos na LGPD que disci-
plinam o tratamento de dados pessoais, com menção expressa aos
princípios da necessidade e adequação;
c) a proteção de dados pessoais compõe o universo do direito
à intimidade e vida privada e qualquer limitação deve observar parâ-
metros relacionados à finalidade, excepcionalidade, razoabilidade e
proporcionalidade;
d) a proteção de dados pessoais e a autodeterminação infor-
mativa são direitos fundamentais autônomos, que envolvem uma
tutela jurídica e âmbito de incidência específico;
e) o tratamento de dados pessoais deve atender a propósitos
legítimos, específicos, explícitos e informados; limitar a coleta ao mí-
nimo necessário para a realização das finalidades normativas; prever
medidas técnicas e administrativas de segurança aptas a proteger os
dados pessoais de acessos não autorizados; e prevenir a ocorrência
de danos.
Em comentário sobre a referida decisão, Giovanna Milanez
Tavares destaca alguns dos seus principais aspectos:

(...) pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal


ampliou a proteção constitucional destinada aos dados
pessoais, adotando o conceito expansionista já previsto
na LGPD e deslocando o eixo de proteção dos tipos de
dados tratados (ou no fato de quão sensíveis ou íntimos
são) para a forma e a finalidade do próprio tratamento.

Com isso, superaram o entendimento que antes prevalecia de


limitação da tutela constitucional apenas às informações pertencen-

78
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

tes à esfera privada ou íntima, conferindo destaque agora na forma


pela qual o tratamento destes dados (públicos ou privados) poderia
afetar a esfera de direitos e garantias fundamentais dos indivíduos
enquanto titulares.

(...)

Contudo, isso somente foi possível a partir da evolução do


conceito de privacidade e da alocação do direito à proteção de dados
pessoais como uma nova espécie autônoma do rol aberto de direitos
da personalidade, o que conferiu maior elasticidade à cláusula geral
da tutela da pessoa humana. Isso porque, tradicionalmente, a privaci-
dade tinha como núcleo de sua tutela jurídica o direito de ser deixado
só ou em paz (right to be let alone), pressupondo a prerrogativa do
indivíduo de estar a salvo de interferências alheias, o que, na prática,
é calibrado pela dicotomia entre as esferas pública e privada.

(...)

Com efeito, a privacidade passou a ser definida também a partir


da noção de controle do indivíduo sobre o fluxo dos seus próprios dados
pessoais. Ou seja, o poder do indivíduo de decidir sobre a divulgação e
uso dos seus dados, sobre quais informações da sua vida pessoal po-
deriam ser divulgadas publicamente e em que condições, além de ter
conhecimento sobre quem sabe e o que sabem sobre si mesmo.

(...)

Exatamente por isso, o direito à proteção de dados pessoais


busca tutelar também eventuais bancos de dados que não conte-
nham dados pessoais relacionados à intimidade e à vida privada

79
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

dos indivíduos, mas tão somente dados pessoais públicos, partindo


da premissa de que informações aparentemente inócuas ou triviais
também podem ser integradas a outras a ponto de provocar danos
ao seu titular, quaisquer que sejam. Transcendendo, assim, a ideia de
privacidade como mera liberdade negativa, passa-se a adotar a ideia
de proteção de dados pessoais como um direito positivo, que con-
fere, ao titular, protagonismo nos processos decisórios relacionados
ao fluxo informacional dos seus dados, exigindo sua participação
ativa e contínua e conferindo-lhe o direito de desenvolver livremente
a sua personalidade.34
Assim, a compreensão extraída da decisão do STF revela a
primeira interpretação a ser conferida pela jurisprudência quanto
aos diversos aspectos relativos à proteção de dados pessoais e, ape-
sar de haver sido nela discutida questão jurídica específica, finca as
linhas mestras a serem doravante observadas.

5. CONCLUSÃO

Expostos os fundamentos, pode-se concluir que não subsiste


espaço normativo autorizador para o tratamento de dados pessoais,
sem que sejam observados os intransponíveis limites traçados pela
LGPD, inclusive a atingir os dados públicos ou tornados públicos pelo
titular. O não atendimento das balizas legais gera danos e o conse-
quente dever de reparação.
Portanto, ao contrário do que muitos pensam, a internet não
é, de fato, “terra sem lei” ou “terra de ninguém”.
Brasília, junho de 2022

34  Idem., op. cit., p. 25; 28-29; 32.

80
A LGPD E A PROTEÇÃO DOS DADOS PÚBLICOS
(OU TORNADOS PÚBLICOS) NO CONTEXTO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

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______. Comentário ao art. 6º. In MALDONADO, Viviane Nóbrega; BLUM, Renato


Opice (Coord.). LGPD – Lei geral de proteção de dados comentada. 3ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2021.

82
UMA ANÁLISE NA REGIÃO
NORDESTE ACERCA DA
INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO
444 DA CLT PÓS-REFORMA
TRABALHISTA

Débora Carvalho Reis1


Valter Bastos Cunha Filho2

1  Mestranda em Desenvolvimento Regional e Urbano pelo Programa de Pós-


Graduação em Desenvolvimento Regional e Urbano (PPDRU/UNIFACS); bolsista pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB); Advogada, graduada
pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). Pós-Graduada em Direito e Processo
do Trabalho (CERS). E-mail: deboracarvvalho.r@gmail.com;
2  Mestrando em Desenvolvimento Regional e Urbano (UNIFACS), Especialista em
Engenharia de Segurança do Trabalho (EEMBA), Bacharel em Engenharia Civil (UCSAL)
e Teologia (STBNe), Coordenador de Infraestrutura (UFOB). E-mail: valterbastoscunha@
gmail.com
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
A lei nº 13.417 de 2017 da Reforma Trabalhista trouxe mudanças significativas à
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e dentre as diversas alterações, inseriu a
categoria do trabalhador hipersuficiente modificando o artigo 444, possibilitando a
flexibilização quanto à proteção do trabalhador quando o equipara ao empregador
apenas pelo fato de possuir diploma de ensino superior e perceber salário igual ou
superior a duas vezes o teto de benefícios do Regime Geral da Previdência Social
(RGPS). Neste teor, tem-se que o objetivo deste trabalho é analisar o artigo 444
da CLT verificando se os requisitos caracterizadores de hipersuficiência justificam
a criação dessa nova categoria e se encaixam na realidade social. Por certo, tem-
se como hipótese norteadora demonstrar que ante análise das estatísticas, no
que diz a respeito à renda e escolaridade dos trabalhadores formais sobretudo na
região nordeste, houve um equívoco do legislador em viabilizar a possibilidade de
o trabalhador negociar os seus direitos trabalhistas não levando em consideração
os fatores sociais e históricos existentes na relação de trabalho o que, por
consequência, não justifica a criação desta categoria. Á vista disso, a pesquisa se
utilizará da legislação; princípios e normas que norteiam o Direito do Trabalho,
doutrinadores jurídicos e dados estatísticos da Pesquisa Nacional Por Amostra de
Domicílios Contínua (PNAD) no ano de 2021, elaborada pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), que se fundamentam na Relação Anual de Informações
Sociais (RAIS). Busca-se, portanto, evidenciar o desacerto do legislador quanto a
constitucionalidade do referido dispositivo e a ineficácia aparente ante a análise
dos dados que demonstraram, considerando a região nordeste, e pensando na
segregação realizada entre hipossuficientes e hipersuficientes, que mais de 90%
desta região seria caracterizada como hipossuficiente. Além disso, esse novo caráter
atribuído ao trabalhador surgiu em contraponto à existência de entendimento
majoritário da doutrina jurídica, em que a relação trabalhista, na sua ideia prática,
é assimétrica e o trabalhador, independente do seu nível de escolaridade e renda,
juridicamente, é a parte hipossuficiente da relação.
Palavras-chave:  Lei nº 13.417. CLT. Trabalhador Hipersuficente. Região Nordeste.

Abstract
Law No. 13,417 of 2017 on the Labor Reform brought significant changes to the
Consolidation of Labor Laws (CLT), and among the various changes, it inserted the
category of the hypersufficient worker, modifying article 444, enabling flexibility in
terms of worker protection when equating it to the employer simply because they
have a higher education degree and receive a salary equal to or greater than twice
the benefit ceiling of the General Social Security System (RGPS). In this regard, the
objective of this work is to analyze article 444 of the CLT, verifying whether the
requirements that characterize hypersufficiency justify the creation of this new
category and fit into social reality. Certainly, the guiding hypothesis is to demonstrate
that, in view of the analysis of the statistics, with regard to the income and education
of formal workers, especially in the northeast region, there was a mistake on the part
of the legislator in enabling the possibility of the worker to negotiate his labor rights

84
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

not taking into account the social and historical factors existing in the employment
relationship, which, consequently, does not justify the creation of this category. In view
of this, the research will make use of legislation; principles and standards that guide
Labor Law, legal scholars and statistical data from the Continuous National Household
Sample Survey (PNAD) in 2021, prepared by the Brazilian Institute of Geography and
Statistics (IBGE), which are based on the Annual Report of Social Information (RAIS).
Therefore, we seek to highlight the legislator’s mistake regarding the constitutionality
of the aforementioned device and the apparent ineffectiveness in the face of the
analysis of the data that showed, considering the northeast region, and thinking about
the segregation carried out between the hyposufficient and hypersufficient, that
more than 90% of this region would be characterized as hyposufficient. In addition,
this new character attributed to the worker emerged in counterpoint to the existence
of a majority understanding of legal doctrine, in which the labor relationship, in its
practical idea, is asymmetric and the worker, regardless of their level of education and
income, is legally the under-sufficient part of the relationship.
Keywords: Law No. 13,417. CLT Hypersufficient Worker. Northeast Region.

1. INTRODUÇÃO

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), sancionada e


aprovada pelo Decreto Lei nº 5.452 em 01/05/1943, dispõe sobre
as normas trabalhistas (direito material e processual) inerentes à
relação de trabalho e emprego seja ele urbano ou rural, bem como,
a regulamentação das relações individuais e coletivas, possuindo na
sua essência caráter tutelar protetivo, visando também assegurar os
direitos dos trabalhadores que integram tal relação.
A sua origem teve como objetivo de unificar as leis trabalhis-
tas dando atenção às necessidades dos trabalhadores que vendiam
a sua energia de trabalho sem qualquer proteção ou preocupação
quanto a sua integridade física, mental e/ou biológica.
A evolução do pensamento jurídico e a lutas sindicais, trouxe-
ram a percepção de não ser possível dissociar a energia de trabalho,
da pessoa do trabalhador, sendo necessária a constituição de um
contrato de trabalho com direitos e obrigações de ambas as partes,
tendo reconhecida ao poucos a dignidade no ambiente de trabalho

85
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

com condições favoráveis à execução dos seus serviços, bem como a


necessidade de proteção dos mesmos trabalhadores a fim de equili-
brar a relação empregatícia, uma vez que, são juridicamente conside-
rados como a parte hipossuficiente3 e mais vulneráveis, não obtendo
conhecimentos jurídicos específicos para dispor de seus contratos.
Com o advento da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988 (CRFB/88), consolidou-se de fato a justiça do traba-
lho dando força à CLT para que fosse possível defender os interesses
dos trabalhadores com sendo uma grandiosa conquista no estado
democrático de direito brasileiro com melhoria na condição de vida
destes e assegurando a sua dignidade humana (GARCIA, 2010).
No entanto, no cenário atual, nota-se, que o contrato de tra-
balho se equipara ao contrato de adesão, onde, na realidade, o traba-
lhador submete-se às cláusulas ali contidas, ou seja, subordinado4 a
este, ao ponto de não o contestar mantendo-se inerte com relação a
possíveis cláusulas abusivas.
Desta forma, verifica-se que, a figura do hipossuficiente se
deu ante o histórico de lutas e sofrimento enfrentado pelo ser hu-

3  “Para o direito do trabalho, em linhas gerais, hipossuficiente é o trabalhador que


não possui suficiência plena. Que está, em razão da superioridade econômica do
capital, em situação de inferioridade. Para que essa situação de desigualdade entre
capital e trabalho se restabeleça, o Estado brasileiro confere “superioridade” jurídica
àquele que possui inferioridade econômica, protegendo o empregado diante de seu
empregador” (PASTORE, 2008 p.36).
4  “[...] a característica da relação de emprego de mais difícil verificação costuma ser
a subordinação do trabalhador intelectual à pessoa ou empresa que o contrata. O
trabalhador intelectual é empregado se põe a sua energia de trabalho à disposição de
quem lhe toma os serviços. Isso pode revelar-se de várias maneiras: tempo reservado
ao atendimento do suposto empregador (mormente se há um local destinado por
este para o atendimento), obrigação de apresentar relatórios periódicos sobre a
atividade profissional, exigência de exclusividade na prestação de serviço, restrição
da localidade de atuação, indicação da clientela a ser atendida pelo profissional em
virtude da relação laboral ou remuneração relacionada ao tempo de disponibilidade
(em vez de relacionar-se com a produção). Todas essas circunstâncias são indiciárias,
ou seja, não REVISTA DO TRT10 95 Rev. do Trib. Reg. Trab. 10ª Região, Brasília, v. 23, n.
2, 2019 esgotam o significado de “subordinação” (fato jurídico decisivo), mas fazem
pressupor a sua presença” (CARVALHO, 2018, p. 161).

86
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

mano trabalhador, e foi justificado em análise à assimetria da própria


natureza da relação de trabalho, onde o empregador utilizava da sua
hierarquia para obter vantagem sobre a parte mais vulnerável (traba-
lhador) que se propunha a realizar as mais diversas atividades em si-
tuações degradantes e muitas vezes humilhantes por sobrevivência.
No ano de 2017, a Lei nº 13.417 trouxe mudanças significativas
à CLT, bem como discussões polêmicas no meio jurídico a respeito
do novo texto inserido que em muitos dispositivos não se encontra
em conformidade com a CRFB/88, inclusive com a própria essência
da CLT, “[...]desponta por seu direcionamento claro em busca do
retorno ao antigo papel do Direito na História como instrumento de
exclusão, segregação e sedimentação da desigualdade entre as pes-
soas humanas e grupos sociais” (DELGADO; DELGADO, 2017, p. 39).
Neste sentido, o presente artigo, procura demonstrar, que
problemas sociais existentes no País como os indicadores socioe-
conômicos de renda e escolaridade, tornam evidente o equívoco do
legislador em trazer com a reforma trabalhista a figura do trabalha-
dor hipersuficiente, pautando-se no nível de escolaridade e salário
recebidos, bem como a ineficácia por alcançar apenas parcela ínfima
da população inserida no mercado de trabalho, sobretudo na Região
Nordeste do Brasil.
Faz-se necessário arrazoar neste caso, que toda relação labo-
ral é pautada na observância hierárquica existente entre empregador
e empregado, bem como, no caráter dos serviços prestados e na
vulnerabilidade do meio em que este se encontra. Desta maneira, a
importância da abordagem temática se justifica, por mostrar a rea-
lidade laboral nos Estados do nordeste brasileiro, por questionar as
modificações legislativas na vida do trabalhador, que atentam contra
a sua segurança jurídica perante a empresa/empregador detentor de
uma hierarquia no ambiente profissional, e por evidenciar o quanto
nossos legisladores desconhecem a realidade educacional e salarial

87
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

da maioria dos trabalhadores brasileiros. Tal explanação trará con-


tribuições significativas aos debates jurídicos com uma revisão de
literatura e abordagens estatísticas demonstrando a importância
de alteração do dispositivo da CLT aqui em questão, abrindo portas
para mais trabalhos nesta linha.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os trabalhadores antes explorados em sua força de trabalho,


sem receber proventos suficientes à sua subsistência e da sua famí-
lia, realizando um labor em condições precárias, tiveram uma maior
segurança jurídica perante os seus empregadores após a entrada em
vigor da CLT em maio de 1943. Mas, com a reforma trabalhista em
2017, esta segurança apresenta-se prejudicada em razão das altera-
ções realizadas em importantes artigos do texto desta consolidação,
flexibilizando direitos conquistados pelos trabalhadores, inclusive,
podendo trazer uma regressão no bojo da legislação trabalhista.
Segundo Vólia Bomfim Cassar: “A reforma trabalhista é uma
imposição do atual governo, que começou timidamente com um pro-
jeto de poucos artigos e se transformou num monstrengo jurídico
consubstanciado[...]” (CASSAR, 2017, p. 1), ou seja, inicialmente sur-
giu uma tentativa silenciosa para suprimir direitos trabalhistas que
veio a se concretizar de forma significativa na CLT com a reforma,
indo contra diversas diretrizes já estabelecidas, inclusive constitu-
cionalmente.
Nesse diapasão, destaca-se a inserção da figura do trabalha-
dor hipersuficiente em contraponto ao caráter hipossuficiente já
definido para aos trabalhadores, o que lhes proporcionava seguridade
jurisdicional, ou seja, o trabalhador hipossuficiente de acordo com as
normas a CLT e quando se busca a literatura, passa a ser configurado
ante ao desequilíbrio existente na relação empregador – empregado e

88
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

deve estar livre de explorações e/ou cláusulas contratuais que tenham


objetivos prejudiciais.
Este entendimento se dá através dos preceitos do direito tra-
balhista que visam proteger o trabalhador da figura do seu superior
em ambiente laboral, o que recai sobre a função tutelar do direito
do trabalho, na tentativa de reduzir na esfera judicial a assimetria
inerente ao contrato pactuado entre o empregador – empregado
(DELGADO, 2017).
Assim, é possível perceber que há uma tentativa de suprimir
os direitos dessa categoria sem sequer compreender a função da
CLT, suas normas e princípios. Uma vez que, a nova legislação ao
trazer o trabalhador hipersuficiente volta-se apenas ao fato de o
empregador possuir diploma de curso superior, bem como o salário
mensal igual ou superior ao dobro do limite máximo dos benefícios do
Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que atualmente chegam
a R$ 12.867,14 (doze mil oitocentos e sessenta e sete reais e quatorze
centavos), e não de fato sobre os grandes empresários que pactuam
contratos entre si (DELGADO, 2018), por exemplo, deixando-o livre
para pactuar os seus próprios contratos sem o conhecimento técni-
co jurídico necessário, abrindo brecha para ocorrência de abusos.
O artigo 3º da CLT, traz a caracterização do vínculo de empre-
go como sendo de natureza não eventual, com pessoalidade, pres-
tado por pessoa física, com subordinação e onerosidade, e nenhum
desses elementos são eliminados quando se trata do trabalhador
hipersuficiente, ele não deixa de ser vulnerável perante o emprega-
dor, pelo contrário, fica ainda mais suscetível a explorações ante a
abrangência do artigo trazida pelo legislador.
Desta forma, o valor percebido pelo empregado não pode
tornar-se justificativa para que se altere a natureza do seu direito,
pois a sua vulnerabilidade não desaparece, nem a relação de emprego
tem diminuída a sua subordinação (CASSAR, 2017).

89
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

2.1. Função tutelar do direito do trabalho

O direito do trabalho, trazendo o entendimento do autor Sér-


gio Pinto Martins, é “o conjunto de princípios, regras e instituições
atinentes à relação de trabalho subordinado e situações análogas,
visando assegurar melhores condições de trabalho e sociais ao tra-
balhador, de acordo com as medidas de proteção que lhes são des-
tinadas” (MARTINS, 2015, p.18). Ou seja, o direito do trabalho tem
por base os princípios, regras e demais instituições para disciplinar
a sua aplicação nos casos concretos, e tais bases são consequências
históricas do trabalhador na sociedade. Outrossim, visa assegurar a
concretude dos direitos inerentes ao trabalhador obtendo no meio
ambiente de trabalho condições favoráveis ao seu exercício, garan-
tindo medidas protetivas às quais tem direito.
Neste sentido, existe uma desproporcionalidade/desigual-
dade econômica entre empregador e empregado sendo este último
prejudicado, devendo o Direito do Trabalho através de uma proteção
jurídica compensar tais desigualdades (CASSAR, 2017).
Sobre isso, entende Maurício Godinho Delgado (2001) que:

O princípio tutelar influi em todos os seguimentos


do Direito Individual do Trabalho, influindo na
própria perspectiva desse ramo ao construir-se,
desenvolver-se e atuar como direito. Efetivamen-
te, há ampla predominância nesse ramo jurídico
especializado de regras essencialmente proteti-
vas, tutelares da vontade e interesse obreiros[...].
Na verdade, pode-se afirmar que sem a idéia (sic)
protetiva-retificadora o Direito Individual do Traba-
lho não se justificaria histórica e cientificamente.
(DELGADO, 2001, p. 23).

Assim sendo, a função tutelar do direito do trabalho perpassa


pelo princípio da proteção; proteção do empregado ante o poder

90
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

econômico do empregador, no intuito de fornecer uma justiça social


forçando o empregador a seguir as regras contidas na CLT.
Isto significa, que a função tutelar do direito do trabalho
é também social e visa proteger o ser humano trabalhador ante as
regras e princípios a ele inerentes e a sua violação deve ser entendida
como risco ao bem-estar social da classe trabalhadora. Necessita-se
a compreensão de que o direito do trabalho surgiu como forma de
garantir que o empregado detivesse direitos e garantias, protegen-
do-o das grandes irregularidades existentes no meio ambiente labo-
ral em decorrência de uma desigualdade econômica e hierárquica na
relação empregatícia.

2.1.1. Princípio da Proteção

Os princípios são fundamentos que visam disciplinar e facili-


tar a compreensão de normas e leis. Através deles é que são aplicadas
regras e interpretações normativas.

“É o princípio o primeiro passo na elaboração das regras,


pois dá sustentáculo a elas. O princípio é muito mais
abrangente que uma simples regra; além de estabelecer
certas limitações, fornece fundamentos que embasam
uma ciência e visam a sua correta compreensão e in-
terpretação. Violar um princípio é muito mais grave do
que violar uma regra. A não observância de um princípio
implica ofensa não apenas a específico dispositivo, mas
a todo o sistema jurídico” (MARTINS, 2014, p.32).

No Direito do Trabalho, dentre os princípios próprios nor-


teadores; princípio da irrenunciabilidade, da primazia da realidade,
da proteção e da continuidade da relação de emprego, da inaltera-
bilidade contratual, destaca-se o princípio da proteção como sendo
um dos principais e fundamentais, pois, volta-se diretamente para a

91
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

parte mais vulnerável da relação trabalhista, qual seja, o trabalhador


hipossuficiente.
O princípio da proteção funda-se na relação trabalhista entre
empregador e empregado onde, como vimos anteriormente, existe
um desequilíbrio econômico e uma hierarquia entre as partes, vindo
o princípio da proteção sanar esta assimetria com uma certa equida-
de, conforme dispõe Vólia Bomfim Cassar (2017):

“O princípio da proteção ao trabalhador tem funda-


mento na desigualdade, diferente do Direito Civil, em
que teoricamente as partes contratantes possuem
igualdade patrimonial. No Direito do Trabalho há uma
desigualdade natural, pois, o capital possui toda a força
do poder econômico. Desta forma, a igualdade preco-
nizada pelo Direito do Trabalho é tratar os desiguais de
forma desigual. O trabalhador já adentra na relação de
emprego em desvantagem, seja porque vulnerável eco-
nomicamente, seja porque dependente daquele empre-
go para sua sobrevivência, aceitando condições cada
vez menos dignas de trabalho, seja porque primeiro
trabalha, para, só depois, receber sua contraprestação,
o salário” (CASSAR, 2017, p. 170).

Assim, o princípio da proteção, essência do Direito do Traba-


lho, busca uma relação mais igualitária onde se preze pela concretude
e defesa dos direitos inerentes ao trabalhador bem como que seja
garantida sua dignidade no ambiente laboral.
Com o advento da CRFB/88, destacou-se a importância em
preocupar-se com os trabalhadores, para tanto, importa frisar que
os direitos trabalhistas atualmente fazem parte do Capítulo “Dos
Direitos Sociais”, indo do artigo 6º ao 11º da referida Constituição. Os
Direitos Sociais, são direitos que possuem o objetivo de viabilizar a
concretização dos direitos fundamentais, que são os direitos huma-
nos positivados na constituição.

92
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

“[...] os direitos sociais, inclusive os de natureza tra-


balhista, não podem sofrer supressão prejudicial e
restrição desproporcional e injustificada, nem mesmo
por emenda constitucional, sendo vedada a alteração
que se consubstancie em retrocesso social, em afronta
aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa
humana, do valor social do trabalho e a justiça social”
(GARCIA, 2017, p. 31-44).

Em vista disso, faz-se necessário o entendimento à luz do


princípio da proteção no sentido de que, por sua própria natureza
tem o objetivo de compensar a relação desigual em que está inse-
rido o trabalhador ante a hierarquia e poder econômico que detém
o empregador. Tratar de forma igualitária indivíduos que ocupam
posições desiguais na relação contratual trabalhista, nitidamente
significa flexibilizar e ferir os direitos do trabalhador.

2.2. Flexibilização do princípio da irrenunciabilidade


dos direitos trabalhistas

O princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas,


assim como os outros citados, é um princípio garantidor, e tem como
objetivo, inviabilizar juridicamente que o empregado seja privado
de seus direitos e garantias adquiridas pela legislação trabalhista ou
que abra mão destes de forma tácita ou expressa, ou seja, o que foi
acordado em contrato não pode sobrepor a lei, protegendo então o
empregado de possíveis abusos do empregador, conforme artigo 9º
da CLT5. Assim assegura Miguel Hernainz Márquez (1969):

“A irrenunciabilidade deve ser entendida em seu ver-


dadeiro sentido, como a não possibilidade de privar-se

5  “Art. 9º - Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar,
impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”
(BRASIL, 1943).

93
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

voluntariamente, em caráter amplo e por antecipação,


dos direitos concedidos pela legislação trabalhista.
Cremos que a noção deve ser mais abrangente, ou seja,
abarcar tanto a privação ampla como restrita, tanto a
que se realize por antecipação como a que se efetue
posteriormente” (MÁRQUEZ, 1969, p. 89).

Desta forma, o princípio da irrenunciabilidade é uma garantia


que já nasce com o empregado, não sendo possível, a priori, a sua
flexibilização. Mas, cabe aqui frisar que embora seja de suma im-
portância, este princípio não é absoluto. Existem situações em que
pode ser admitida a sua flexibilização, o que leva a tratar brevemente
sobre a indisponibilidade absoluta e a indisponibilidade relativa.
A indisponibilidade relativa trata de direitos referentes à
interesses públicos, enquanto que, a indisponibilidade relativa,
diz respeito a alguns direitos que podem ser alterados em comum
acordo sem que cause prejuízo ao empregado, conforme preceitua
o artigo 468 da CLT6, ou seja, ainda que seja possível se alterar
direitos e garantias na relação trabalhista, deve ser observado se
esta alteração configura abuso do empregador, bem como se causa
prejuízo ao empregado, trazendo novamente o pensamento sobre a
dissonância da legislação trabalhista em toda a sua estrutura com a
figura do trabalhador hipersuficiente.
A flexibilização deste princípio torna-se um ato gravoso. Não
pode a justiça trabalhista compactuar com o legislador sobre a via-
bilidade do trabalhador tratar de forma “autônoma” o seu contrato,
abrindo mão de direitos (artigo 611-A7) que lhes são garantidos e

6  “Art. 468 - Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas
condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou
indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente
desta garantia” (BRASIL, 1943).
7  “Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência
sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I - pacto quanto à jornada de
trabalho, observados os limites constitucionais ;II - banco de horas anual; III - intervalo
intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a

94
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

irrenunciáveis por lei, ou seja, compactuar com tal entendimento


à respeito desta categoria, é desconsiderar totalmente as lutas
travadas em busca de melhores e dignas condições de trabalho e
percepção de salários.

2.3. O trabalhador hipersuficiente

Conforme explicado anteriormente, sempre foi reconhecida


a hipossuficiência e a vulnerabilidade do trabalhador no âmbito
laboral tanto pela CLT, como na CRFB/88 ante a hierarquia existente
na relação empregador-empregado.
No entanto, com o advento da Reforma Trabalhista, surgiu,
por sua vez, a figura do trabalhador hipersuficiente, cabendo a este
a isonomia, possibilitando a existência de contratos de trabalho
especiais/diferenciados, podendo negociar termos do contrato

seis horas; IV - adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a Lei nº 13.189,
de 19 de novembro de 2015 ; V - plano de cargos, salários e funções compatíveis
com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos
que se enquadram como funções de confiança; VI - regulamento empresarial; VII -
representante dos trabalhadores no local de trabalho; VIII - teletrabalho, regime de
sobreaviso, e trabalho intermitente; IX - remuneração por produtividade, incluídas as
gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual;
X - modalidade de registro de jornada de trabalho; XI - troca do dia de feriado; XII -
enquadramento do grau de insalubridade; XIII - prorrogação de jornada em ambientes
insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;
XIV - prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em
programas de incentivo; XV - participação nos lucros ou resultados da empresa. § 1º
No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do
Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação. § 2º A inexistência
de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou
acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um
vício do negócio jurídico. § 3º Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a
jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a
proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do
instrumento coletivo. § 4º Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula
de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula
compensatória, esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito. § 5º
Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho
deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva,
que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos” (BRASIL, 1943).

95
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

diretamente com o seu empregador, afastando de forma equivocada


a assimetria existente na relação. Tal negociação ainda se sobrepõe
aos instrumentos coletivos.
Para melhor compreensão, como requisitos para caracteri-
zar-se como trabalhador hipersuficiente temos: a) ser detentor de
diploma de nível superior e b) salário mensal igual ou superior a duas
vezes o limite máximo dos benefícios do RGPS, o que em nada afasta
a vulnerabilidade ou elementos caracterizadores do vínculo de em-
prego como a subordinação.
Segundo o artigo 444 da CLT, parágrafo único, tem-se que:

“Art. 444  – As relações contratuais de trabalho podem


ser objeto de livre estipulação das partes interessadas
em tudo quanto não contravenha às disposições de pro-
teção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam
aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único. A livre estipulação a que se refere o


caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no
art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia
legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos,
no caso de empregado portador de diploma de nível
superior e que perceba salário mensal igual ou superior
a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime
Geral de Previdência Social (Incluído pela Lei nº 13.467,
de 2017)” (BRASIL, 1943).

Não é justo nem razoável afastar a vulnerabilidade de tra-


balhadores que possuam diploma de nível superior, e que perceba
salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos
beneficiários do RGPS, que segundo o DOU-13/01/2021-Portaria
SEPRT/ME nº 477/2021- da Secretaria Especial de Previdência e
Trabalho do Ministério da Economia, o limite máximo da previdência
corresponde a R$ 6.433,57 (seis mil quatrocentos e trinta e três reais

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UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

e cinquenta e sete centavos) (BRASIL,2021). Portanto, o piso a que


se refere a reforma trabalhista, que personifica o trabalhador hiper-
suficiente, equivale a R$ 12.867,14 (doze mil oitocentos e sessenta e
sete reais e quatorze centavos).
Nenhum dos referidos requisitos são dignos de fornecer a
hipersuficiência ao trabalhador. O diploma superior em qualquer área,
não o torna possuidor de conhecimentos técnicos específicos para
analisar um contrato de trabalho, na prática, sabe-se que é reconhecido
como um contrato de adesão o qual o trabalhador está subordinado.
Além disso, a reforma trabalhista vem conseguindo demons-
trar diversas contradições no seu texto indo de encontro, como já
dito, à própria CRFB/88, bem como contra a própria realidade social
do trabalhador. O artigo 611-A da CLT, também inserido com a re-
forma, traz elementos que revelam prevalência do negociado sobre
o legislado/livre estipulação, a qual, por si só não deveria impedir a
nulidade do contrato, tão pouco ferir a atual constituição.

“Assim, verifica-se a gravidade da introdução do discrí-


men proposto pela Lei 13.467/2017, tendo em vista que
além de desequiparar o “hipersuficiente” dos demais
empregados, acaba, em última instância, por equipará-
-lo à figura do empregador, já que a lei reconhece uma
igualdade de negociação que historicamente nunca foi
constatada pelo ordenamento pátrio e que também
não condiz com as normas constitucionais vigentes”
(GOMIDE; SANTOS, 2018, p. 47-62).

Isto significa, que além da segregação de um certo grupo de


trabalhadores caracterizando-os como hipersuficientes, estes ain-
da poderão ser coagidos e consequentemente expostos a contratos
de trabalho abusivos em razão da nítida assimetria da relação, mas
tal assimetria foi negada pela reforma trabalhista tendo flexibiliza-

97
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

do, de forma totalmente equivocada, os instrumentos garantidores


de proteção dos trabalhadores.
Defender o negociado sobre o legislado, significa violar di-
reitos antes garantidos à classe trabalhadora, colocando desiguais
em condição de igualdade. O que se percebe, na realidade, é uma
tentativa de reduzir direitos garantidos aos trabalhadores violando
princípios constitucionais e trabalhistas, atitude que traz descrédito
e apaga toda a história de luta contida na criação da CLT em busca de
proteção e melhores condições de trabalho.

3. METODOLOGIA

O artigo, introdutoriamente objetiva, mediante revisão biblio-


gráfica, consultar diversos teóricos do direito, para demonstrar que
ao inserir em sua legislatura a figura do trabalhador hipersuficiente,
lhes dando autonomia para dispor dos seus direitos trabalhistas em
contrato pactuado entre empregador-empregado, a reforma traba-
lhista contradiz princípios da CLT, bem como da CRFB/88, deixando
o trabalhador exposto à possíveis ocorrências de abusos e perda de
direitos já garantidos em lei.
Em seguida, por meio de pesquisa documental, valendo-se
dos dados representativos da Pesquisa Nacional Por Amostra de
Domicílios Contínua (PNAD), base 2021, elaborada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), fundamentada na Rela-
ção Anual de Informações Sociais (RAIS), que mostram os dados e
indicadores trabalhistas do país, realiza-se um estudo de caso sobre
o perfil dos trabalhadores nordestinos no ano de 2020.
A pesquisa atém-se aos parâmetros citados na reforma tra-
balhista para classificação dos trabalhadores em hipossuficientes
e hipersuficientes, quais sejam: nível de escolaridade e faixa salarial.
Limita-se aos informes dos nove Estados que compõem a Região

98
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

Nordeste do Brasil: Alagoas, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Maranhão,


Piauí, Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará.
Dentre cada Estado seleciona-se dez municípios mais repre-
sentativos, em termos do número de trabalhadores em atividade no
período. A pesquisa atenta para que a amostra em nenhum dos casos
seja inferior a 55%, ou seja, sempre maior que a metade do efetivo
da população laboral do Estado. Assim, busca-se demonstrar qual
o significado numérico, em uma população bastante abrangente
e diversificada, da divisão dos trabalhadores em hipossuficientes e
hipersuficientes, incorporada pela reforma trabalhista.
Parte-se do pressuposto de que o número de hipersuficientes
seja irrisório, que a reforma trabalhista criou, na verdade, um pre-
cedente para a paulatina perda de direitos trabalhistas, bem como
desvia o foco da realidade, quanto a baixa escolaridade dos trabalha-
dores e ainda pune os mais escolarizados.
À vista disso, segundo Spiegel e Stephens (2009, p.365) a
correlação, ou grau de relação entre variáveis, procura determinar
quão bem uma equação linear, ou de outra espécie, descreve ou
explica a relação entre as variáveis. Quando duas variáveis são en-
volvidas, têm-se a correlação e regressão simples e se houver mais
de duas variáveis fala-se em correlação e regressão múltipla. No caso
em apreço apresentam-se apenas duas variáveis, portanto trata-se
da forma simples.
Em um conceito de linguagem ainda mais estatística, Larson e
Farber (2010, p.395) buscam definir correlação simples como sendo
a relação entre duas variáveis, cujos dados podem ser representados
por pares ordenados (x, y), onde x é a variável independente (ou
explanatória) e y é a variável dependente (ou resposta).
Para o cálculo do coeficiente de correlação geral de toda a
amostra, segundo Larson e Farber (2010, p. 399), adotou-se o se-
guinte formulário:

99
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Obtendo em planilha Excel os resultados: n= 90; Σx


=1.386.136; Σy= 229.027; Σxy=2,937x10^10; Σx²=1,56018x10^11;
Σy²=5.651.509.389; logo, o coeficiente de correlação linear →rxy
≈ 0,989 (coeficiente de correlação produto-momento de Pearson),
valor que sugere uma correlação linear positiva forte.
Quanto ao coeficiente de determinação r², será obtido ele-
vando-se o coeficiente de correlação ao quadrado. Assim, tem-se
r²= 0,989² → r²= 0,978. Assim, pode-se afirmar que 97,81% dos
trabalhadores que recebem salários entre 10 e 20 a mais SM, são
explicados por portarem de diploma de nível superior, e que 2,19%
serão explicados por outros fatores.

4. RESULTADOS

A amostra das dez cidades de cada estado com maior número


de trabalhadores ativos em dezembro de 2020, considerando as nove
unidades da federação, quantificam o número representativo de 90
(noventa) municípios nordestinos. A tabela 1, mostra o significado
percentual obtido em cada Estado.

Tabela 1 – Amostra dos 10 (dez) municípios nos estados de maior número de


vínculos ativos

Fonte: elaboração própria.

100
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

A partir da Tabela 1, observa-se que o Estado do Maranhão


possui o menor percentual de sua população ativa com 10,4% e o
Rio Grande do Norte o maior com 16% da população. Em todos os
Estados o percentual da amostra ultrapassa 55% dos trabalhadores
ativos. A Bahia possui o menor percentual de 58,3%, portanto, com
maior distribuição espacial de sua população ativa entre os municí-
pios e Sergipe apresenta o maior percentual com 80,6%, indicando
a maior concentração da população trabalhadora ativa nos dez
municípios selecionados.
O primeiro requisito imposto pela reforma trabalhista,
quanto a condição de hipersuficiência do trabalhador, seria a sua
escolaridade, no caso, ser portador do diploma de nível superior. De
modo a analisar este requisito, foi construída a Tabela 2.

Tabela 2- Escolaridade dos trabalhadores de Alagoas

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O estado de Alagoas apresenta 24% dos seus trabalhadores


como portadores de diploma de nível superior, no entanto, possui
a maior taxa de analfabetos entre os trabalhadores, 1,68%, quando
comparado aos demais Estados. Mostra 24,5% sem ter concluído o
ensino médio e 76% do seu efetivo laboral na condição de hipossufi-
cientes, por não possuírem diplomação superior.

101
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Tabela 3- Escolaridade dos trabalhadores da Bahia

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado da Bahia apresenta 21,71% dos seus trabalhadores


como portadores de diploma de nível superior, o menor índice dentre
os Estados nordestinos. Mostra ainda 13,9% sem ter concluído o
ensino médio e 78% do seu efetivo laboral na condição de hipossufi-
cientes, por não possuírem diplomação superior.

Tabela 4 - Escolaridade dos trabalhadores de Pernambuco

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado de Pernambuco apresenta 26,8% dos seus trabalha-


dores como portadores de diploma de nível superior. Mostra 17,31%
sem ter concluído o ensino médio e 74% do seu efetivo laboral na con-
dição de hipossuficientes, por não possuírem diplomação superior.

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UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

Tabela 5- Escolaridade dos trabalhadores de Sergipe

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado de Sergipe apresenta 23,65% dos seus trabalhadores


como portadores de diploma de nível superior. Mostra 19,65% sem ter
concluído o ensino médio e 76% do seu efetivo laboral na condição de
hipossuficientes, por não possuírem diplomação superior.

Tabela 6 - Escolaridade dos trabalhadores de Maranhão

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado do Maranhão apresenta 24,25% dos seus trabalhado-


res como portadores de diploma de nível superior. Mostra 12,79% sem
ter concluído o ensino médio e 76% do seu efetivo laboral na condição
de hipossuficientes, por não possuírem diplomação superior.

103
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Tabela 7- Escolaridade dos trabalhadores de Piauí

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado do Piauí apresenta 27,81% dos seus trabalhadores


como portadores de diploma de nível superior, o percentual mais alto
entre os Estados nordestinos, conforme a amostra tomada. Mostra
20,5% sem ter concluído o ensino médio e 72% do seu efetivo laboral na
condição de hipossuficientes, por não possuírem diplomação superior.

Tabela 8- Escolaridade dos trabalhadores de Rio Grande do Norte

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado do Rio Grande do Norte apresenta 24,69% dos


seus trabalhadores como portadores de diploma de nível superior.
Mostra 18,5% sem ter concluído o ensino médio e 75% do seu
efetivo laboral na condição de hipossuficientes, por não possuírem
diplomação superior.

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UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

Tabela 9- Escolaridade dos trabalhadores de Paraíba

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado da Paraíba apresenta 24,32% dos seus trabalhadores


como portadores de diploma de nível superior. Mostra 27,43% sem ter
concluído o ensino médio e 76% do seu efetivo laboral na condição de
hipossuficientes, por não possuírem diplomação superior.

Tabela 10- Escolaridade dos trabalhadores de Ceará

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado do Ceará apresenta 22,35% dos seus trabalhadores


como portadores de diploma de nível superior. Mostra 17,82% sem
ter concluído o ensino médio e 78% do seu efetivo laboral na condi-
ção de hipossuficientes, por não possuírem diplomação superior.

105
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Tabela 11- Escolaridade dos trabalhadores do Nordeste

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

Os estados nordestinos apresentam uma performance muito


aproximada, no requisito escolaridade dos trabalhadores. Piauí se
destaca com o maior percentual de trabalhadores que portam diplo-
ma do nível superior, 27,81%, enquanto, o Alagoas se destaca nega-
tivamente com a maior taxa de analfabetos entre os trabalhadores
1,68%. De modo geral, todos os estados gravitam em torno da média
do NE de 23,39% para portadores de diploma do nível superior, re-
quisito inicial, questionável, para ser considerado hipersuficiente
segundo a Reforma Trabalhista, e 76,1% para os não diplomados,
tidos como hipossuficientes.
Por si só, o número de 76,1% de trabalhadores não portadores
de diploma superior no Nordeste, dos quais 17,93% sequer completa-
ram o ensino médio, equivalentes a mais de um milhão de pessoas que
trabalham, deveria preocupar os legisladores e dirigentes da nação. A
discussão acalorada seria: como enfrentar o drama da baixa escola-
ridade? De que modo poderia o país prover ensino de qualidade para
as massas trabalhadoras? No entanto, no que se refere à escolaridade
dos trabalhadores, parece que a intenção objetiva manter o estado

106
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

como se encontra e que sejam punidos, com a chamada “hipersufici-


ência”, os que arvorem galgar para o nível superior.
Além disso, esses trabalhadores segregados pelo requisito esco-
laridade, não confirmam que possuem conhecimento técnico jurídico
para tratarem diretamente do seu contrato de trabalho com o empre-
gador, sem a intervenção de um sindicato, por exemplo. A tentativa que
se mostra presente é a possibilidade de supressão de direitos.
O segundo requisito imposto pela Reforma Trabalhista para
definição da hipersuficiência possui caráter pecuniário: receber salá-
rio mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefi-
ciários do RGPS. Que conforme referenciado anteriormente, o limite
máximo da previdência corresponde, no momento, a R$ 6.433,57 (seis
mil quatrocentos e trinta e três reais e cinquenta e sete centavos)
(BRASIL, 2021). Portanto, o piso a que se refere a reforma trabalhista,
que personifica o trabalhador hipersuficiente, equivale a R$ 12.867,14
(doze mil oitocentos e sessenta e sete reais e quatorze centavos).
Para efeito de facilitar a quantificação por faixa salarial, fo-
ram considerados como atendendo o pressuposto estabelecido pela
Reforma Trabalhista, todos os trabalhadores inclusos nas faixas sa-
lariais entre 10,1 a mais de 20 salários mínimos (SM), como mostram
as tabelas a seguir.

Tabela 12- Faixa de Renda dos trabalhadores de Alagoas

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

107
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O Estado de Alagoas, conforme a amostra, apresenta cerca


de 39,78% dos trabalhadores ativos recebem renda de até dois salá-
rios mínimos. Dentre os dez municípios, nenhum ultrapassa 5% dos
trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência.
Apenas 3,1% dos trabalhadores poderiam ser considerados “hiper-
suficientes”, enquanto 96,9% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 13 - Faixa de Renda dos trabalhadores da Bahia

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado da Bahia, conforme a amostra, apresenta 36,19% dos


trabalhadores ativos percebem renda até dois salários mínimos. Den-
tre os dez municípios, somente Salvador e Camaçari ultrapassam 5%
dos trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência.
Apenas 4,4% dos trabalhadores poderiam ser considerados “hipersu-
ficientes”, enquanto 95,6% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 14- Faixa de Renda dos trabalhadores de Pernambuco

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

108
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

O Estado de Pernambuco, conforme a amostra, apresenta


37,28% dos trabalhadores ativos percebem renda até dois salários
mínimos. Dentre os dez municípios, somente Recife e Ipojuca ultra-
passam 5% dos trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a
hipersuficiência. Apenas 4,1% dos trabalhadores poderiam ser con-
siderados “hipersuficientes”, enquanto 95,9% são pecuniariamente
hipossuficientes.

Tabela 15 - Faixa de Renda dos trabalhadores de Sergipe

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado de Sergipe, conforme a amostra, apresenta 38,34%


dos trabalhadores ativos percebem renda até dois salários mínimos.
Dentre os dez municípios, somente Itabaiana ultrapassa 5% dos
trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência.
Apenas 3,8% dos trabalhadores poderiam ser considerados “hiper-
suficientes”, enquanto 96,2% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 16- Faixa de Renda dos trabalhadores do Maranhão

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

109
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O Estado do Maranhão, conforme a amostra, apresenta


35,36% dos trabalhadores ativos percebem renda até dois salários
mínimos. Dentre os dez municípios, nenhum ultrapassa 5% dos
trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência.
Apenas 3,4% dos trabalhadores poderiam ser considerados “hiper-
suficientes”, enquanto 96,6% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 17- Faixa de Renda dos trabalhadores de Piauí

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado do Piauí, conforme a amostra, apresenta 38,91%


dos trabalhadores ativos percebem renda até dois salários mínimos.
Dentre os dez municípios, somente Teresina ultrapassa 5% dos
trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência.
Apenas 4,6% dos trabalhadores poderiam ser considerados “hiper-
suficientes”, enquanto 95,4% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 18-Faixa de Renda dos trabalhadores de Rio Grande do Norte

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

110
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

O Estado do Rio Grande do Norte, conforme a amostra,


apresenta 37,17% dos trabalhadores ativos percebem renda até
dois salários mínimos. Dentre os dez municípios, somente Natal
ultrapassa 5% dos trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a
hipersuficiência. Apenas 4,5% dos trabalhadores poderiam ser con-
siderados “hipersuficientes”, enquanto 95,5% são pecuniariamente
hipossuficientes.

Tabela 19 - Faixa de Renda dos trabalhadores da Paraíba

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

O Estado da Paraíba, conforme a amostra, apresenta 39,11%


dos trabalhadores ativos percebem renda até dois salários mínimos.
Dentre os dez municípios, somente João Pessoa alcança 5% dos
trabalhadores com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência.
Apenas 3,7% dos trabalhadores poderiam ser considerados “hiper-
suficientes”, enquanto 96,3% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 20- Faixa de Renda dos trabalhadores do Ceará

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

111
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O Estado do Ceará, conforme a amostra, apresenta 38,77%


dos trabalhadores ativos percebem renda até dois salários mínimos.
Dentre os dez municípios, nenhum ultrapassa 5% dos trabalhadores
com faixa salarial que caracteriza a hipersuficiência. Apenas 3,6%
dos trabalhadores poderiam ser considerados “hipersuficientes”,
enquanto 96,4% são pecuniariamente hipossuficientes.

Tabela 21- Classificação dos trabalhadores do NE, conforme faixa de renda na


reforma trabalhista

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

A Tabela 21, mostra que nenhum dos nove estados do Nordeste


ultrapassa a faixa de 5% dos trabalhadores com renda igual ou superior
a duas vezes o limite máximo dos beneficiários do RGPS. Considerando
a amostra adotada, apenas 3,9% dos trabalhadores do NE percebem
valores iguais ou acima do piso à que se refere a reforma trabalhista,
que caracterizaria a “hipersuficiência”, equivalente a R$ 12.867,14
(doze mil oitocentos e sessenta e sete reais e quatorze centavos).
Quanto à hipossuficiência, nenhum dos Estados do Nordeste
apresenta percentual abaixo de 95%, ou seja, os trabalhadores per-
cebem salários inferiores ao critério pecuniário da classificação de
hipersuficientes. Na realidade 66,57% dos trabalhadores represen-
tados pela amostra, estão na faixa salarial até dois salários mínimos,

112
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

ou seja, menor igual a R$ 2.200,00 (dois mil e duzentos reais). Com


essa renda e abaixo da mesma, sobrevivem 3.864.387 trabalhadores
dos que compõem a amostra.
Pergunta-se: qual o real significado dessa condição estabele-
cida pela Reforma Trabalhista? Parece muito mais concorrer para a
abertura de um precedente que permita outras incursões, com novas
quebras de princípios, do que a preocupação com a condição do tra-
balhador. Por que não envidar esforços para melhorar a faixa salarial,
concedendo condições dignas ao trabalhador para si e o sustento
familiar? Talvez não seja essa a prioridade.
Silvia Isabelle Ribeiro Teixeira do Vale, sobre a reforma e a
figura do trabalhador hipersuficiente dispõe que: “modifica substan-
cialmente a racionalidade do Direito do Trabalho, ignorando que o
empregado, mesmo mais esclarecido culturalmente e recebendo re-
muneração maior, permanece subordinado ao empregador” (VALE,
online, p. 1).
Quanto ao critério de escolaridade, conforme apresentado,
76,1% dos trabalhadores do Nordeste não se enquadram, por não
possuírem curso de nível superior. Quanto à faixa salarial, 96,10% dos
trabalhadores da região não estão incluídos na pretensa hipersuficiên-
cia. No entanto, segundo a Reforma Trabalhista, a laureada “hipersufi-
ciência” seria bi condicional, sendo alcançada mediante o atendimento
simultâneo de ambas as condições. Como apenas 3,9% dos trabalha-
dores do NE percebem valores iguais ou acima do piso à que se refere
a reforma trabalhista, que caracterizaria a “hiper suficiência”, convém
analisar a possível correlação entre essas duas variáveis.
Assim, como trata-se de condições necessárias e coinci-
dentes, deve-se verificar se existe correlação de fato entre as duas
variáveis.

113
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Tabela 22- Amostra, 90 cidades do NE – trabalhadores com nível superior e renda


10 e 20 a mais salários mínimos

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

A Tabela 22, apresenta a amostra geral com 90 municípios,


sendo dez de cada estado nordestino, destacando as suas respecti-
vas capitais. Encerra ainda os dados quantitativos de trabalhadores
portadores de diploma de nível superior e que estão na faixa salarial
em 10 e 20 a mais salários mínimos (SM). Do lançamento dos dados
em plano cartesiano, tendo como variável dependente (X), nível
superior e variável independente (Y), faixa salarial acima de 10 e mais
de 20 SM, resulta o diagrama de dispersão abaixo.

Gráfico 1- Dispersão das variáveis: trabalhadores com nível superior X faixa salarial
de 10 e 20 a mais salários mínimos (SM) no NE

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

114
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

O Gráfico 1, mostra uma tendência de correlação entre as


variáveis consideradas. Os três pares em destaque, correspondem
às maiores capitais do Nordeste pela ordem, Salvador, Recife e
Fortaleza, nas quais ocorre maior concentração de trabalhadores
portadores de diploma de nível superior e cuja faixa salarial situa-se
entre 10 e 20 a mais SM. Em seguida, um conjunto formado por seis
pares, que se referem às demais capitais, também pela ordem: São
Luís, Natal, Teresina, Maceió, João Pessoa e Aracajú. Vindo então,
um bloco com pouca dispersão formado pelos 81 municípios que
compõem o restante da amostra nordestina.

Gráfico 2- Dispersão das variáveis: trabalhadores com nível superior X faixa salarial
de 10 e 20 a mais salários mínimos (SM) no NE, excluindo as capitais

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

No Gráfico 2, apenas para permitir melhor visualização do


comportamento da dispersão nas demais cidades, foram suprimidos
os dados referentes às nove capitais dos Estados. Assim, observa-se
que a tendência de correlação entre as variáveis, com exceção ape-
nas de alguns pontos dispersos, se mantém visualmente ainda mais
evidente.

115
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Gráfico 3 – Correlação entre nível superior e renda 10 e 20 a mais salários mínimos

Fonte: Elaboração própria-base RAIS 2020

Buscando testar a significância do coeficiente de correlação,


segundo Larson e Farber (2010, p.404), no nível de significância α de
5%, têm-se as regiões de rejeição to < -1,960 e to > 1,960, usando o
teste “t”, conforme programa para o cálculo estatístico MINITAB:

Teste
Hipótese nula 1 - =0
Hipótese 1 - 0
Alternativa
Valor – T GL Valor – p
3,08 95 0,003

116
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

t = 3,08 como t está na região rejeição, rejeita-se a hipótese nula e


conclui-se que o coeficiente de correlação é significante.

Para conhecer a reta de regressão de Y para X, segundo Spie-


gel e Stephens (2009, p.373), com a reta de regressão tipo Y= ao +
a1X, adota-se as equações normais:

Σy= ao + a1 Σx; Σxy= ao Σx + a1 Σx²;

Assim, com os valores apresentados anteriormente, foram


obtidos:
ao= - 411,15247; a1 = 0,191923.
Fica definida a equação da reta de regressão como sendo: Y=
- 411,15247+0,191923X.

Gráfico 4 – Reta de regressão

Fonte: programa MINITAB

117
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Os achados mostram uma correlação entre ser portador de


diploma de nível superior e a renda de 10 e 20 a mais salários mínimos,
fato que deveria servir de incentivo ao estudo e não para outros fins.

5. CONCLUSÃO

Consoante ao apresentado, a reforma trabalhista, Lei nº 13.417


de 2017, modificou artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, em
especial o parágrafo único do artigo 444 da referida lei, criando figura
do trabalhador “hipersuficiente” para as relações laborais.
Da análise legislativa desta remodelagem da CLT tal como,
em comparação com a CRFB/88, percebeu-se um desequilíbrio e
incoerência nas alterações trazidas, de modo que não enlaçam nem
representam os princípios, normas e valores estabelecidos no direito
do trabalho.
Os critérios estabelecidos para configurar a pretensa “hiper-
suficiência”, escolaridade de nível superior e renda igual ou acima
duas vezes o limite máximo dos beneficiários do RGPS, não se justi-
ficam perante os fatos. A partir da amostra significativa que envolve
os nove estados da Região Nordeste do país, constata-se que 76,1%
dos trabalhadores com vínculo não possuem nível superior. Dentre
os mesmos, apenas os Estados do Piauí com 27,81% e Pernambuco
com 26,8%, conseguem ultrapassar o baixo limite de 25% dos traba-
lhadores portando diploma de nível superior. O Nordeste, como um
todo, apresenta média de apenas 23,39%.
Como dito anteriormente, os legisladores e dirigentes da
nação deveriam travar calorosas discussões na busca de enfrentar
o drama da baixa escolaridade dos trabalhadores. Pugnarem para
prover a população e as massas trabalhadoras de um ensino de quali-
dade. No entanto, no que se refere à escolaridade dos trabalhadores,
parece que a intenção seria manter o estado como se encontra e que

118
UMA ANÁLISE NA REGIÃO NORDESTE ACERCA DA INCONSTITUCIONALIDADE
E INEFICÁCIA DO ARTIGO 444 DA CLT PÓS-REFORMA TRABALHISTA

sejam punidos, com a chamada “hipersuficiência”, os que por esforço


próprio alcancem o nível superior.
Quanto à faixa salarial, como demonstrado, dentre os no-
venta municípios nordestinos analisados, 96,10% dos trabalhadores
não estão incluídos na pretensa “hipersuficiência” por perceberem
valores inferiores ao piso à que se refere a reforma trabalhista. Na
realidade 66,57% dos trabalhadores representados pela amostra,
estão na faixa salarial até dois salários mínimos, ou seja, menor igual
a R$ 2.200,00 (dois mil e duzentos reais).
A análise que correlaciona, trabalhadores portadores de nível
superior e faixa salarial igual ou acima duas vezes o limite máximo
dos beneficiários do RGPS, leva à conclusão da existência de forte
correlação entre a escolaridade superior e a faixa salarial. Fato que
deve ser apontado como caminho para melhorar a condição de renda
dos trabalhadores, qual seja, garantir a contínua escolarização.
No entanto, tal correlação em nada confirma que essa ca-
tegoria de trabalhadores, de qualquer que seja a área profissional,
possuam condições para tratarem do seu contrato de trabalho
diretamente com o empregador. O legislador, ao criar esses requi-
sitos não pode abrir portas para violar direitos trabalhistas que são
garantidos e irrenunciáveis por lei.
Assim, frente aos dados mostrados no estudo de caso
da Região Nordeste, a alteração na legislação trabalhista deixa
transparecer que, além de questionável quanto à constitucionali-
dade violando e ofendendo direitos, apresenta-se irrisória quanto
à aplicabilidade. Além disso, o legislador não conseguiu afastar a
subordinação do trabalhador hipersuficiente, ou retirar a sua vulne-
rabilidade da relação, não podendo deste modo, a remuneração ou
escolaridade atuar como um instrumento que venha a segregar com
cunho discriminatório qualquer classe de trabalhadores que seja.

119
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

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122
O DIREITO DE GREVE NA
INICIATIVA PRIVADA: UMA
ANÁLISE COMPARATIVA
DO INSTITUTO À LUZ DA
LEGISLAÇÃO, DOS PRINCÍPIOS
DA OIT, E DA JURISPRUDÊNCIA
DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Dervana Santana Souza Coimbra1

1  Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (1998) e Especialista em


Direito do Estado pela Associação Educacional Unyahna (2006). Advogada militante
nas áreas de Direito do Trabalho, Previdenciário, Consumidor e Administrativo. Foi
Conselheira Estadual da Seccional Bahia da OAB, mandatos 2016/2018, e 2019/2021.
Foi Presidente da Comissão de Direitos Coletivos e Difusos da OAB/BA - gestão
2016/2018, sendo Presidente da mesma Comissão da Seccional baiana para o período
de 2019/2021. Foi membro consultor da Comissão Nacional de Direitos Sociais do
Conselho Federal da OAB, gestão 2019/2021. Atualmente é Presidente da Comissão
Especial de Meio Ambiente e Segurança do Trabalho da OAB/BA - Gestão 2022/2024.
É professora universitária e da Escola Superior de Advocacia da OAB/Bahia. É aluna
especial do Mestrado em Direito do PPGD/UFBA.
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

1. INTRODUÇÃO

Em tempos como os atuais, em que se vislumbra na socieda-


de brasileira retrocessos relacionados a conquista e efetivação de
direitos fundamentais sociais, parece ser necessário analisar os ins-
trumentos de pressão popular disponíveis no ordenamento jurídico,
a fim de se extrair a compreensão do seu alcance, de modo, inclusive,
a que se reivindique a sua devida extensão, e que se busque a sua
efetividade em maior dimensão para a concretização da democracia.
Dentre os instrumentos de pressão popular, que historicamente
auxiliaram no desenvolvimento civilizatório da sociedade brasileira,
não há dúvidas que a greve é um dos mais representativos, consti-
tuindo-se em direito fundamental individual, de exercício coletivo,
assegurado pela Constituição da República Federativa do Brasil.
A Constituição Federal de 1988 admite, de forma ampla, o
direito de greve, nos termos do artigo 9º: “É assegurado o direito de
greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade
de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”
(BRASIL, 1988). Enquanto a Constituição assim o faz, a Lei 7.783, de
1989 o define em seu artigo 2º: “Para os fins desta Lei, considera-se
legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, tempo-
rária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a
empregador” (BRASIL,1989). Já Uriarte (2002) defende que não se
limite a greve à suspensão do trabalho, deixando de fora outros com-
portamentos conflitivos que denotam formas de exercício do direito
de greve que não importem nessa suspensão.
Busca-se no presente trabalho analisar o direito de greve e
sua real dimensão à luz da Constituição Federal, da Lei de Greve, dos
princípios do Comitê de Liberdade Sindical e da Comissão de Peritos
da OIT, bem como da jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho
e do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de identificar como

124
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

vem se admitindo o seu exercício, refletindo-se sobre a concretiza-


ção desse direito, e sobre eventuais caminhos à perfectibilizá-lo.
Inicialmente é analisado o direito de greve sob o prisma do
quanto estabelecido pela Constituição Federal, pela Lei 7.783/1989,
bem como através dos entendimentos da Comissão de Liberdade
Sindical e da Comissão de Peritos da OIT. Após essa prévia análise,
decisões e posicionamentos do Tribunal Superior do trabalho e do
Supremo Tribunal Federal são também analisados, com vistas a ve-
rificar se existem e quais são as condições ou limitações ao exercício
do direito de greve no entendimento destes Tribunais, e por fim, é
comparado o conteúdo extraído do conjunto de decisões verifica-
das, traçando-se um paralelo entre os entendimentos dos diversos
órgãos referidos, com o objetivo de revelar eventuais discrepâncias
e convergências sobre a matéria em estudo, elucidando-se, neste
cenário, os contornos do direito de greve.
A metodologia empregada para a realização da pesquisa pode
ser considerada como qualitativa, bibliográfica e documental, atra-
vés de livros, artigos científicos, jurisprudência e legislação aplicada
ao Brasil acerca do direito de greve e afins.
Ao final, o estudo propõe que o direito de greve seja tratado em
sua máxima efetividade, como direito fundamental que é, na sua con-
cepção ampla dada pelo art. 9º., da Constituição Federal, a fim de que
ele sirva a viabilizar, no âmbito de relações de manifesta assimetria – e
desequilíbrio – de poder econômico e social, que sejam respeitados os
direitos dos trabalhadores, e conquistados outros direitos que reper-
cutam na melhoria da sua condição de vida e de trabalho à concretizar
o Estado Democrático e Social preconizado pela Constituição da
República, que tem por objetivos, dentre outros, a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária; a redução das desigualdades sociais e
regionais, e a promoção do bem estar de todos.

125
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

2. O DIREITO DE GREVE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E


NA LEI 7.783/1989

No Brasil, o art.  9º. da Constituição da República, que trata


especificamente do instituto, tem a seguinte redação:

Art. 9º. É assegurado o direito de greve, competin-


do aos trabalhadores decidir sobre a oportunida-
de de exercê-lo e sobre os interesses que devam
por meio dele defender.

§ 1o A lei definirá os serviços ou atividades essen-


ciais e disporá sobre o atendimento das necessi-
dades inadiáveis da comunidade.

§ 2o Os abusos cometidos sujeitam os responsá-


veis às penas da lei. (BRASIL, 1988)

É de fácil percepção pela simples leitura do texto destacado,


que a Lei Maior do Estado Brasileiro não restringe o direito de greve,
sequer o define.

A Constituição da República, portanto, assegura o


direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir
sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses
que devam por meio dele defender, não condicionando
a eficácia daquele direito a existência de qualquer outro
diploma legislativo. Na qualidade, pois, de direito funda-
mental social, a interpretação do dispositivo deve estar
pautada em sua máxima efetividade” (COIMBRA, 2018)

Oscar Ermida Uriarte (2002), a respeito da Constituição


Brasileira, refere:

A Constituição não cria e nem concede o direito de


greve. Reconhece a sua existência. Assim sendo, toda

126
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

definição corre o risco de tornar-se restritiva e dar


razão às sentenças de que “definir é limitar” ou “definir
é excluir”. (URIARTE, 2002, p. 105,106)

Por outro lado, há um inegável prestígio da chamada Lei de


Greve, que diferentemente do diploma constitucional, definiu o ins-
tituto, limitando-o, contudo, em confronto com o que estabelece a
Constituição Federal. Para Rafael Borges de Souza Bias (2018), a Lei
7.783/1989 não poderia, prima facie, como o fez, restringir o direito
de greve:

[...]seguindo a doutrina constitucionalista contemporâ-


nea, os direitos fundamentais só permitem interpreta-
ções e intervenções ampliativas, sendo absolutamente
vedada qualquer interpretação ou produção legislativa
capaz de ferir o núcleo essencial de direitos dessa estir-
pe, sobretudo quando essa restrição é promovida prima
facie, como faz a dita Lei de Greve. (BIAS, 2018, p.265)

Conquanto alguns defendam a incompatibilidade da Lei


7.783/1989 com o art. 9º. da Constituição Federal, o diploma le-
gislativo em comento tem servido efetivamente a balizar o direito
de greve, definindo-o: “Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se
legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, tempo-
rária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a
empregador” (BRASIL,1989).
A Lei expressamente prevê no parágrafo único, do art. 1º.,
que: “O direito de greve será exercido na forma estabelecida nesta
Lei” (BRASIL,1989).
Claramente se infere das disposições normativas sob estudo
que o direito de greve é um direito individual que é exercido coletiva-
mente, ou seja, para que seja reconhecido como greve, é necessário,
nos termos do que dispõe a Lei, que haja a cessação coletiva da presta-

127
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

ção pessoal de serviços, ainda que de forma parcial. Na mesma toada, a


Lei de Greve considera greve apenas a suspensão coletiva da prestação
de serviços ao empregador, excluindo outras possíveis manifestações
coletivas de pressão dos trabalhadores de sua caracterização.
Vê-se que a limitação da caracterização como greve apenas
a suspensão temporária da prestação de serviços, de maneira cole-
tiva, não encontra eco no art. 9º., da Constituição da República, que
sequer possui em seu texto um conceito de greve. Ao contrário, em
16 de agosto de 1988, ao ser levado à votação o direito irrestrito
de greve, este foi aprovado por esmagadora maioria, com base nos
dados coletados e lançados na brilhante Dissertação de Mestrado
do Dr. José Carlos de Carvalho Baboin (2013), sob a orientação do
Professor Associado Jorge Luiz Souto Maior, da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo. Defende Baboin (2013):

Ao não proibir nenhum tipo de greve, e nem limitar os


grupos que dela podem fazer uso (com exceção feita aos
militares, de acordo com o artigo 142, §  3º., IV), a nova
Constituição alterou o parâmetro para determinação
da legalidade de uma greve, consagrando o princípio da
responsabilidade, na medida em que sujeita os respon-
sáveis por abusos às penas da lei. (BABOIN, 2013, p. 22)

É importante elucidar que a greve tem sua existência como


fato social desvinculada da regulamentação jurídica, e a ela precede,
sendo “meio real e espontâneo de manifestação e reivindicação dos
trabalhadores por melhores condições de vida e trabalho. [...] A greve
é, pois, um fato social que se desdobra em fato jurídico” (BABOIN,
2013, p. 26,27).
Sendo um fato social que se desdobra em fato jurídico, não se
deve deixar de observar que há uma tendência para a diversificação
das modalidades do exercício de greve, fruto da própria modificação
que vem ocorrendo na organização e dinâmica do trabalho. Dessa

128
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

forma, estabelecer um molde rígido para o encaixe do direito de


greve, é ignorar o dinamismo social e frustrar a eficácia desse típico
instrumento de luta dos trabalhadores por melhores condições de
vida e de trabalho.
Conquanto se defenda o direito amplo de greve, com base no
que diz o art. 9º., da Constituição Federal, não há que se olvidar, como
dito, que a Lei 7.783/1989 além de conceituar o referido direito, limi-
tando a sua amplitude, estabelece um conjunto de limitações ao seu
exercício, que vem sendo consideradas como válidas, à luz do quanto
verificado pela jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, e
em alguma medida pelo Supremo Tribunal Federal, conforme seguirá
demonstrado, que, entretanto, admite todos os tipos de greve, numa
interpretação ampliativa do direito, na forma preconizada pelo arti-
go 9º., da Constituição da República.
Antes, contudo, impõe-se adentrar na análise do direito de
greve, a partir dos princípios concatenados pelo Comitê de Liberdade
Sindical e pela Comissão de Peritos da OIT, a fim de evidenciar quais
as orientações deste organismo internacional acerca do instituto.

3 . DIREITO DE GREVE: PRINCÍPIOS ESTABELECIDOS PELO


COMITÊ DE LIBERDADE SINDICAL E PELA COMISSÃO
DE PERITOS DA OIT

De início, cabe o registro de que a OIT, através de suas Re-


comendações e Convenções, não trata expressamente do direito
de greve. Embora não conste registro expresso do direito de greve
nesses instrumentos normativos, tal circunstância não afasta o reco-
nhecimento e proteção desse direito por parte da OIT, manifestados
em diversas Resoluções de Conferências Regionais e de Comissões
Setoriais.

129
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O Comitê de Liberdade Sindical e a Comissão de Peritos da OIT,


a partir do estabelecido pela Convenção 87, de 1948, que trata sobre
liberdade sindical e proteção do direito de sindicalização, reconhecem
o direito de greve como fundamental, fixando como princípio básico
de que é “um dos meios legítimos e fundamentais de que dispõem
os trabalhadores e suas organizações para a promoção e defesa dos
seus interesses econômicos e sociais” (GERNIGON; ODERO; GUIDO,
2002, p.20), reconhecendo que a greve não é somente um fato social,
mas também um direito.
Seguindo essa linha de raciocínio, tanto uma como a outra
defendem que o direito de greve não se limita à interrupção típica
de tarefas, admitindo outras modalidades de greve, desde que se
revistam de caráter pacífico.
Observam Gernigon, Odero e Guido (2002)

que o Comitê de Liberdade Sindical e a Comissão de


Peritos têm rejeitado a tese de que o direito de greve
deveria limitar-se aos conflitos de trabalho susceptí-
veis de finalizar numa convenção coletiva (GERNIGON;
ODERO; GUIDO, 2002, p.22)

E que:

o Comitê tem observado que os trabalhadores e


suas organizações deveriam poder manifestar seu
descontentamento com questões econômicas e
sociais que guardem relação com os interesses
dos trabalhadores, num âmbito mais amplo que os dos
conflitos de trabalho susceptíveis de resultar numa de-
terminada convenção coletiva. (GERNIGON; ODERO;
GUIDO, 2002, p.23)

130
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

Nesse sentido:

o Comitê de Liberdade Sindical tem considerado que “a


declaração de ilegalidade de uma greve nacional de pro-
testo contra as conseqüências sociais e trabalhistas da
política econômica do governo e sua proibição consti-
tuem grave violação da liberdade sindical (GERNIGON;
ODERO; GUIDO, 2002, p.23)

A Comissão de Peritos não tem admitido a possibilidade de


greves de natureza puramente política como decorrentes da liberda-
de sindical, alinhada ao Comitê de Liberdade Sindical, mas admitem
a greve

na busca de soluções para os problemas derivados das


grandes questões de política econômica e social, que
têm conseqüências imediatas para seus membros e
para os trabalhadores em geral, especialmente em ma-
téria de emprego, de proteção social e de nível de vida
(GERNIGON; ODERO; GUIDO, 2002, p.24)

Portanto, tanto o Comitê de Liberdade Sindical, quanto a


Comissão de Peritos da OIT entendem pela possibilidade da greve
política, que tem consequências imediatas para os trabalhadores
“em matéria de emprego, de proteção social e de nível de vida”
(GERNIGON; ODERO; GUIDO, 2002) mas não a puramente política,
assim como referendam a possibilidade da greve de solidariedade,
desde que seja legal a greve inicial apoiada pela organização dos tra-
balhadores, deixando claro “que se trata de um direito do qual devem
gozar as organizações de trabalhadores (sindicatos, federações e
confederações)” (GERNIGON; ODERO; GUIDO, 2002).
Por fim, resumidamente, Gernigon, Odero e Guido (2002)
sintetizam um conjunto de princípios e regras mínimas de conduta

131
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

estabelecidos pela Comissão de Peritos e pelo Comitê de Liberdade


Sindical em matéria de direito de greve. São eles, dentre outros:

[...]

É admissível o estabelecimento de um serviço mínimo


de segurança em todos os casos de greve quando
têm como finalidade respeitar a segurança das
pessoas, a prevenção de acidentes e a segurança das
instalações. É admissível o estabelecimento de um
serviço mínimo de funcionamento (da empresa ou ins-
tituição de que se trate) no caso de greve em serviços
de utilidade pública ou nos serviços públicos de impor-
tância transcendental; na determinação desse serviço
mínimo deveriam poder participar empregadores,
organizações de trabalhadores e autoridades públicas.

São aceitáveis como condições para o exercício do


direito de greve a obrigação de dar aviso prévio; a obri-
gação de recorrer à conciliação ou à mediação, o recurso
à arbitragem voluntária; a obrigação de respeitar um
determinado quorum e de obter o acordo de uma certa
maioria (na medida em que não torna, na prática muito
difícil ou impossível o exercício do direito de greve), e a
celebração de um escrutínio secreto para decidir a greve.

As restrições aos piquetes de greve deveriam limitar-se


aos casos em que deixassem de ser pacíficos e esses
piquetes não devem impedir o exercício da liberdade de
trabalho aos não grevistas.

[...]

A contratação de trabalhadores em substituição de


grevistas fere gravemente o direito de greve, e só é
admissível em caso de greve num serviço essencial ou
em situação de crise nacional aguda.

132
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

Não são contestáveis as disposições legislativas que


prevêem o desconto salarial dos dias parados.

Adequada proteção deve ser assegurada aos dirigentes


sindicais e aos trabalhadores contra a dispensa e outros
atos prejudiciais ao emprego, por organização ou
participação em greves legítimas, principalmente por
meio de procedimentos rápidos, eficazes e imparciais,
acompanhados de remédios e sanções suficientemente
dissuasivos. Os princípios da liberdade sindical não
amparam os excessos no exercício do direito de greve
que suponham o descumprimento de exigências razo-
áveis de licitude ou que consistam em ações de caráter
delituoso; as sanções que vierem a ser adotadas no caso
de excessos não deveriam ser desproporcionadas à
gravidade das violações. (GERNIGON; ODERO; GUIDO,
2002, p. 70,71)

Estabelecidos os contornos do direito de greve sob o prisma


do entendimento consolidado nos princípios apontados pela Comis-
são de Peritos e pelo Comitê de Liberdade Sindical da OIT, segue-se
com a avaliação do direito de greve à luz da jurisprudência atual do
Tribunal Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal.

4 . O DIREITO DE GREVE E SUA DIMENSÃO À LUZ DA


JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES

Uma das questões de grande relevância acerca do direito de


greve com que já se deparou a mais alta Corte Trabalhista Brasileira,
através da sua Seção Especializada em Dissídios Coletivos do TST, foi
a análise acerca da abusividade do exercício do direito de greve de-
flagrada como forma de protesto dirigida contra o Poder Público, e
com objetivos direcionados à proteção de interesses que não podem
ser atendidos pelo empregador.

133
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Por maioria dos seus membros, o atual entendimento unifor-


mizado pela SDC, do TST, é no sentido de que é abusiva a greve defla-
grada nestes termos, a que reputam a condição de greve política. É o
que se vislumbra das ementas dos julgados abaixo:

DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. RECURSO ORDI-


NÁRIO DO SINDICATO OBREIRO. 1) GREVE GERAL
COMO PROTESTO CONTRA AS REFORMAS TRABA-
LHISTA E PREVIDENCIÁRIA. ABUSIVIDADE, SEGUN-
DO A MAIORIA DOS MEMBROS DESTA SEÇÃO. O
atual entendimento desta Seção Especializada é de que
a greve deflagrada como forma de protesto contra as
Reformas Trabalhista e Previdenciária tem conotação
política, porquanto dirigida contra o Poder Público e
com objetivos direcionados à proteção de interesses
que não podem ser atendidos pelo empregador. Por
essa razão, a maioria dos membros desta SDC considera
que a greve, nessa situação, deve ser declarada abusiva.
Assim, por disciplina judiciária, mantém-se a declaração
de abusividade da greve deflagrada pelo Sindicato Sus-
citado no dia 14/6/2020. Ressalva de entendimento do
Relator, o qual entende que a Constituição não consi-
dera inválidos os movimentos paredistas que defendam
interesses que não sejam estritamente contratuais,
desde que ostentem também dimensão e impacto pro-
fissionais e contratuais importantes - o que seria o caso
dos autos, já que as reformas trabalhista e previdenciá-
ria, cerne da deflagração da greve, são eventos com alto
potencial de repercussão nas condições de trabalho,
pois podem promover modificações prejudiciais para
os trabalhadores no contexto do contrato de trabalho.
Nessa linha de raciocínio, não haveria abusividade
no movimento paredista ora analisado, sob o ponto
de vista material, ou seja, dos interesses defendidos.
Recurso ordinário desprovido, no aspecto. 2) MULTA
FIXADA PELO DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO
LIMINAR. REDUÇÃO DO VALOR, EM OBSERVÂNCIA

134
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. A Consti-


tuição apresenta limitações ao direito de exercício de
greve, como a que diz respeito à noção de serviços ou
atividades essenciais. Nesse segmento destacado, cujo
rol compete à lei definir, caberá a esta também dispor
sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade (art. 9º, § 1º da CF). Planejada a greve em
setor primordial, seus condutores deverão atentar
para o atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade (art. 11, Lei n. 7.783/89), podendo o Poder
Judiciário, se instado a se pronunciar, definir uma justa
proporção atinente ao percentual de trabalhadores
que devam se manter em atividade durante a greve. A
decisão judicial, evidentemente, deve pautar-se pelo
equilíbrio entre a proteção ao interesse público envol-
vido (direitos da população diretamente afetada) e a
proteção ao direito individual e coletivo fundamental
de greve assegurado aos trabalhadores. Tal ponderação
deve possibilitar o menor impacto negativo da greve
perante a sociedade, assim como permitir que o movi-
mento represente efetiva forma de pressão perante a
categoria econômica - afinal, a greve é o meio legítimo
conferido aos trabalhadores para reivindicarem direitos
e melhores condições de trabalho. Na hipótese, a ativi-
dade desempenhada pelos trabalhadores representa-
dos pelo Sindicato Suscitado - transporte coletivo - é
essencial (art. 10 da Lei 7783/89), devendo, portanto,
ser garantida, durante a greve, a prestação dos serviços.
A decisão liminar expedida pelo Tribunal de origem foi
no sentido de que as Partes (empresas e trabalhadores)
mantivessem o transporte público, em toda área de
regular atendimento, com o mínimo de 70% (setenta
por cento) dos trabalhadores nos horários de pico
(considerando-se como tal das 06h00 às 09h00 e das
17h00 às 20h00) e 50% (cinquenta por cento) dos tra-
balhadores nos demais horários de funcionamento do
serviço, sob pena de multa diária de R$100.00,00 (cem
mil reais). [...]Recurso ordinário provido parcialmente

135
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

(ROT-1001600-96.2019.5.02.0000, Seção Especiali-


zada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro Mauricio
Godinho Delgado, DEJT 24/06/2022).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA.


PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTE-
RIOR À LEI 13.467/2017. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GREVE
GERAL CONTRA AS REFORMAS TRABALHISTA E
PREVIDENCIÁRIA. ABUSIVIDADE, SEGUNDO A MAIO-
RIA DOS MEMBROS DA SEÇÃO ESPECIALIZADA EM
DISSÍDIOS COLETIVOS. DESCONTO DAS HORAS
NÃO TRABALHADAS EM FACE DA DEFLAGRAÇÃO
DA GREVE. O atual entendimento da Seção Especiali-
zada em Dissídios Coletivos é de que a greve deflagrada
como forma de protesto contra as Reformas Trabalhis-
ta e Previdenciária tem conotação política, porquanto
dirigida contra o Poder Público e com objetivos dire-
cionados à proteção de interesses que não podem ser
atendidos pelo empregador. Por essa razão, a maioria
dos membros desta SDC considera que a greve, nessa
situação, deve ser declarada abusiva. Assim, por disci-
plina judiciária, mantém-se a declaração da abusividade
da greve deflagrada pelo Sindicato nos dias 15/03/2017,
28/4/2017 e 30/06/2017. Ressalva de entendimento do
Relator, o qual entende que a Constituição não consi-
dera inválidos os movimentos paredistas que defendam
interesses que não sejam estritamente contratuais,
desde que ostentem também dimensão e impacto pro-
fissionais e contratuais importantes - o que seria o caso
dos autos, já que as reformas trabalhista e previdenciá-
ria, cerne da deflagração da greve, são eventos com alto
potencial de repercussão nas condições de trabalho,
pois podem promover modificações prejudiciais para
os trabalhadores no contexto do contrato de trabalho.
Nessa linha de raciocínio, não haveria abusividade no
movimento paredista ora analisado, sob o ponto de
vista material, ou seja, dos interesses defendidos. Espe-
cificamente em relação aos descontos salariais, a regra

136
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

geral no Direito brasileiro, segundo a jurisprudência


dominante, é tratar a duração do movimento paredista
como suspensão do contrato de trabalho (art. 7º,
Lei 7.783/89). Isso significa que os dias parados, em
princípio, não são pagos, não se computando para fins
contratuais o mesmo período. Entretanto, caso se trate
de greve em função do não cumprimento de cláusulas
contratuais relevantes e regras legais pela empresa
(não pagamento ou atrasos reiterados de salários, más
condições ambientais, com risco à higidez dos obreiros,
etc.), em que se pode falar na aplicação da regra contida
na exceção do contrato não cumprido, a greve deixa de
produzir o efeito da mera suspensão. Do mesmo modo,
quando o direito constitucional de greve é exercido
para tentar regulamentar a dispensa massiva. Nesses
dois grandes casos, seria cabível enquadrar-se como
mera interrupção o período de duração do movimento
paredista, descabendo o desconto salarial. O caso
dos autos não se amolda à hipótese de interrupção do
contrato de trabalho, mas de suspensão contratual,
não sendo devido, a princípio, o pagamento das horas
não trabalhadas - considerando que a greve ocorreu
em apenas 3 dias. Agravo de instrumento desprovido
(AIRR-1034-13.2017.5.09.0010, 3ª Turma, Relator Mi-
nistro Mauricio Godinho Delgado, DEJT 27/05/2022).

Em ambas as decisões, o Exmo. Ministro Relator, Dr. Mau-


ricio Godinho Delgado, registrou seu entendimento pessoal sobre
a matéria, defendendo a não abusividade do movimento paredista,
ante a alta repercussão das reformas (trabalhista e previdenciária)
nas condições de trabalho, com potencial de prejuízo contratual aos
trabalhadores.
No entanto, a maioria dos atuais componentes da Seção Espe-
cializada em Dissídios Coletivos do TST vem, como dito, entendendo
como greve política, aquela que envolva protestos direcionados ao
poder público, ainda que as reivindicações dos trabalhadores tenham

137
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

pertinência com a melhoria das suas condições de vida e trabalho,


com impacto profissional e contratual significativos, como se viu
nos julgamentos dos processos em destaque, em que se declarou a
abusividade da greve deflagrada como protesto contra as Reformas
Trabalhista e Previdenciária implementadas no Brasil recentemente.
Além da premissa de que a greve política não encontra ampa-
ro na liberdade sindical no âmbito do ordenamento jurídico pátrio,
sendo considerada abusiva, é possível se extrair desses julgados
outras premissas sobre o direito de greve. Uma delas é de que deve
ser observada a limitação ao direito de greve contida no § 1º, do art.
9º, da Constituição Federal, e do art. 11, da Lei 7.783/89, no que tange
à manutenção da prestação dos serviços indispensáveis ao atendi-
mento das necessidades inadiáveis da comunidade, em se tratando
de atividade essencial.
Outra premissa é de que, via de regra, a greve suspende o
contrato de trabalho, possibilitando o desconto dos dias parados
por parte do empregador, mas, em situações específicas, em que o
movimento paredista aconteça em razão de descumprimento pelo
empregador de suas obrigações, ou para buscar “regulamentar” a
dispensa coletiva de trabalhadores. Nesses casos o TST vem en-
tendendo pelo não desconto dos dias não trabalhados, gerando a
interrupção do contrato de trabalho.
Ainda que a greve não seja considerada abusiva, inexistindo
acordo entre as partes a respeito dos descontos dos dias parados,
prevalece o entendimento pela possibilidade dos descontos, ante a
suspensão contratual. Todavia, ainda que a situação não se enquadre
nas exceções específicas de interrupção do contrato de trabalho,
em caso de greves longas, a SDC, do TST, invocando a razoabilidade,
vem adotando o entendimento pelo desconto de 50% (cinquenta por
cento) dos dias parados, e compensação dos outros 50% (cinquenta

138
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

por cento), a fim de evitar que os trabalhadores e suas famílias sofram


prejuízos consideráveis à sua mantença.
Na ementa do julgado abaixo, além de tratar desta situação,
o TST ainda evidencia a possibilidade de enquadramento como
interrupção contratual (sem descontos dos dias de paralisação), a
greve deflagrada por contribuição decisiva de conduta antissindical
promovida pelo empregador. Confira-se:

DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. RECURSO ORDI-


NÁRIO DE IMC SASTE - CONSTRUÇÕES, SERVIÇOS
E COMÉRCIO LTDA. PROCESSO ANTERIOR À
LEI Nº 13.467/2017. 1. GREVE EM ATIVIDADE NÃO
ESSENCIAL. NÃO ABUSIVIDADE DO MOVIMENTO
PAREDISTA. DIREITO FUNDAMENTAL COLETIVO
INSCRITO NO ART. 9º DA CF. ARTS. 3º E 4º DA LEI
7.783/89. A Constituição reconhece a greve como um
direito fundamental de caráter coletivo, resultante
da autonomia privada coletiva inerente às sociedades
democráticas. Não se considera abusivo o movimento
paredista se observados os requisitos estabelecidos
pela ordem jurídica para sua validade: tentativa de ne-
gociação; aprovação pela respectiva assembleia de tra-
balhadores; aviso prévio à parte adversa. Preenchidos
os requisitos legais, no caso concreto, não se declara a
greve abusiva. Sobre a alegação recursal de abusividade
da greve sob a ótica da ausência de representatividade
do Sindicato Suscitado em relação aos empregados da
Empresa Suscitante, também não prospera o apelo,
já que a legitimidade de representação sindical foi
definitivamente reconhecida no julgamento do AIRR-
212-24.2011.5.15.0121, com decisão transitada em
julgado envolvendo as mesmas Partes deste dissídio
coletivo. Recurso ordinário desprovido. 2. DESCONTO
DOS DIAS DE PARALISAÇÃO. A regra geral no Direito
brasileiro, segundo a jurisprudência dominante, é tratar
a duração do movimento paredista como suspensão do

139
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

contrato de trabalho (art. 7º, Lei 7.783/89). Isso signifi-


ca que os dias parados, em princípio, não são pagos, não
se computando para fins contratuais o mesmo período.
Entretanto, caso se trate de greve em função do não
cumprimento de cláusulas contratuais relevantes e
regras legais pela empresa (não pagamento ou atrasos
reiterados de salários, más condições ambientais, com
risco à higidez dos obreiros, etc.), em que se pode falar
na aplicação da regra contida na exceção do contrato
não cumprido, a greve deixa de produzir o efeito da
mera suspensão. Do mesmo modo, quando o direito
constitucional de greve é exercido para tentar regula-
mentar a dispensa massiva. Nesses dois grandes casos,
seria cabível enquadrar-se como mera interrupção o
período de duração do movimento paredista, desca-
bendo o desconto salarial. Destaque-se que eventual
conduta antissindical por parte do empregador, que
tenha contribuído de maneira decisiva para a paralisa-
ção, poderia afastar o enquadramento dos dias parados
como mera suspensão contratual, passando o lapso
temporal paredista a ser enquadrado como interrupção
contratual, com o pagamento dos dias parados. Verifi-
ca-se que o caso dos autos não se amolda à hipótese de
interrupção do contrato de trabalho, mas de suspensão
contratual, não sendo devido, a princípio, o pagamento
dos dias parados. Contudo, esta Seção Especializada
em Dissídios Coletivos construiu, nos últimos anos,
uma jurisprudência sólida no sentido de que é possível
se adotar uma solução intermediária quando a greve
perdurou por elevado número de dias - como é o caso
dos autos, em que a greve perdurou por praticamente
um mês -, a fim de evitar o comprometimento de um
ou dois meses inteiros de salário dos trabalhadores,
acarretando um prejuízo considerável ao mantimento
de sua sobrevivência e o de sua família. Observe-se que,
na maioria desses julgados, o critério utilizado por esta
SDC foi o de autorizar o desconto de 50% dos dias não
trabalhados e a compensação dos outros 50%. Não se

140
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

olvida que, em relação à greve realizada no âmbito da


Administração Pública, o STF prolatou interpretação
bastante severa sobre o assunto, assentando a viabi-
lidade jurídica de o Administrador Público realizar o
corte do ponto dos servidores grevistas, para fins da
subsequente não efetivação do pagamento salarial
mensal (tese jurídica fixada a partir da apreciação do
tema 531 da repercussão geral). Embora este Relator
entenda que a decisão do STF mereça ser interpretada
em suas distintas facetas, não podendo prevalecer uma
interpretação que impeça de forma absoluta a resolu-
ção da controvérsia a partir da ponderação e equilíbrio
entre os interesses envolvidos - o da Administração, o
dos grevistas e o interesse da população envolvida - ,
fato é que, no caso concreto, não se trata de greve reali-
zada no âmbito da Administração Pública , podendo ser
aplicável o critério mediador adotado por esta Seção
Especializada, em que se autoriza a compensação de
parte dos dias parados. Assim, embora o caso dos autos
não se amolde à hipótese de interrupção do contrato
de trabalho, tendo em vista a longa duração da greve,
entende-se razoável a autorização do desconto de
50% dos dias não trabalhados e a compensação dos
outros 50%. Recurso ordinário provido parcialmente,
no ponto. [...](RO-7628-42.2016.5.15.0000, Seção
Especializada em Dissídios Coletivos, Relator Ministro
Mauricio Godinho Delgado, DEJT 30/07/2020).

Outra premissa que pode ser extraída da ementa imediata-


mente acima transcrita, e do conteúdo do segundo julgado (AIRR-
1034-13.2017.5.09.0010) apresentado nesse trabalho, cujo trecho
pertinente seguir-se-á transcrevendo, é a de que para o exercício do
direito de greve devem ser atendidos requisitos formais (tentativa de
negociação; aprovação pela respectiva assembleia de trabalhadores;
aviso prévio à parte adversa; e se em atividades essenciais, atendi-
mento das necessidades inadiáveis da comunidade). Veja-se:

141
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

[...]O Texto Constitucional reconhece a greve como um


direito fundamental de caráter individual e coletivo,
resultante da autonomia privada coletiva inerente às
sociedades democráticas. Consiste em direito indivi-
dual dos trabalhadores que, simultaneamente, ostenta
caráter e dimensão coletivos, pois tem de ser exerci-
tado por certa coletividade profissional. É um direito
que resulta da liberdade de trabalho, mas também, na
mesma medida, da liberdade associativa e sindical e
da autonomia dos sindicatos, configurando-se como
manifestação relevante da chamada autonomia privada
coletiva, própria às democracias.

A ordem jurídica infraconstitucional estabelece alguns


requisitos para a legitimidade do movimento grevista.
Em seu conjunto, não se chocam com o sentido da
garantia magna: apenas civilizam o exercício de direito
coletivo de tamanho impacto social.

Nessa linha, o primeiro requisito é a ocorrência de


real tentativa de negociação, antes de se deflagrar o
movimento grevista: desde que frustrada a negociação
coletiva ou verificada a impossibilidade de recurso à via
arbitral, abre-se caminho ao movimento de paralisação
coletiva (art. 3º, caput, Lei nº 7.783).

O segundo requisito é a aprovação da respectiva


assembleia de trabalhadores (art. 4º, Lei nº 7.783),
também cumprido pelas entidades sindicais obreiras,
como comprovam os documentos juntados com as
contestações.

O terceiro requisito é o aviso prévio à parte adversa


(empregadores envolvidos ou seu respectivo sindica-
to), que deverá ser dado com antecedência mínima de
48 horas da paralisação (art. 3º, parágrafo único, Lei
nº 7.783) ou 72 horas, no caso de greve em atividade
essencial, nos termos do art. 13 da Lei 7.783/89.

142
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

Deve ser analisado, ainda, o cumprimento de um quarto


requisito, que se trata, mais precisamente, de uma
limitação constitucional ao direito de exercício de
greve nos serviços ou atividades essenciais (art. 9º, §
1º, CF/88, c/c arts. 10, 11 e 12, Lei de Greve): planejada
a greve nesse segmento destacado, seus condutores
deverão atentar para o atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade.

Note-se que a Constituição de 1988 não proíbe a greve


em tais segmentos (ao contrário do que já ocorreu em
tempos anteriores da história do País); mas cria para o
movimento paredista imperiosos condicionamentos,
em vista das necessidades inadiáveis da comunidade.

A Lei de Greve dispôs que “os sindicatos, os emprega-


dores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum
acordo, a garantir, durante a greve, a prestação dos
serviços indispensáveis ao atendimento das necessida-
des inadiáveis da comunidade” (art. 11, Lei n. 7.783/89).
Completa a lei que, no caso de inobservância da regra
anterior, o “Poder Público assegurará a prestação dos
serviços indispensáveis” (art. 12). O mesmo diploma
esclareceu serem necessidades inadiáveis da comuni-
dade “aquelas que, não atendidas, coloquem em perigo
iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da
população” (parágrafo único do art. 11 da Lei 7.783/89).

Saliente-se que a Lei de Greve (Lei 7.783/89) não prevê


expressamente um determinado percentual de traba-
lhadores que deve se manter em atividade durante a
greve para a preservação “dos serviços indispensáveis
ao atendimento das necessidades inadiáveis da comu-
nidade” (art. 11), deixando claro que a obrigação dos
grevistas é, efetivamente, manter os serviços mínimos.

De todo modo, cabe ao Poder Judiciário avaliar, caso


instado a se pronunciar, no caso concreto, qual o per-

143
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

centual mínimo razoável para que sejam prestados os


serviços inadiáveis referidos na lei, numa ponderação
do direito constitucional de greve, conferido aos tra-
balhadores, com os direitos da população diretamente
afetada, eventualmente violados pela deflagração do
movimento paredista.

Tal ponderação deve possibilitar menor impacto negati-


vo da greve perante a sociedade, aliado à efetividade do
movimento como forma de pressão perante a categoria
econômica e meio legítimo conferido aos trabalhado-
res para reivindicarem direitos e melhores condições de
trabalho.[...] (AIRR-1034-13.2017.5.09.0010, 3ª Turma,
Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado, DEJT
27/05/2022).

É de se notar, portanto, que os limites impostos ao exercício


do direito de greve pela Lei 7.783/89 vem sendo validados e rea-
firmados pelo TST, sendo digno de nota que ao tratar do dever de
manutenção da prestação de serviços inadiáveis, o entendimento
defendido é de que instado o Judiciário a se pronunciar a respeito em
um caso concreto, este deve fixar um percentual mínimo razoável
do contingente de trabalhadores, a fim de que não haja solução de
continuidade na prestação de serviços indispensáveis à população,
sem, contudo, retirar a efetividade da greve como instrumento de
pressão, meio legítimo conferido à classe trabalhadora à reivindica-
ção por direitos e melhores condições de trabalho.
Além das premissas verificadas, a Corte Superior trabalhista
vem adotando a definição restritiva do direito de greve, que descon-
sidera como tal, para os fins das proteções e deveres legais de parte
a parte, movimentos de pressão realizados pelos trabalhadores
que não impliquem em “efetiva ruptura do processo produtivo da
atividade econômica”, ou que não causem repercussão significativa
na comunidade laboral, excluindo o caráter de greve, por exemplo,

144
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

da operação tartaruga e/ou excesso de zelo, bem como das reuniões


setoriais no ambiente de trabalho. É o que se verifica da ementa de
julgado abaixo destacada:

DISSÍDIO COLETIVO DE GREVE. SINDICATO DAS


EMPRESAS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS DO
ESTADO DO AMAZONAS. PROCESSO ANTERIOR À
LEI 13.467/2017. MOVIMENTO CONDUZIDO POR PE-
QUENO GRUPO DE TRABALHADORES NO AMBIEN-
TE DE TRABALHO. AUSÊNCIA DE REPERCUSSÃO
SIGNIFICATIVA DO ATO. MERO PROTESTO. NÃO
ENQUADRAMENTO COMO EFETIVA GREVE. A figura
paredista tem traços característicos destacados. Trata-
-se, essencialmente, do caráter coletivo do movimento;
da sustação provisória de atividades laborativas, total
ou parcial, como núcleo desse movimento, embora,
às vezes, associada a atos positivos concertados; do
exercício direto de coerção, que representa; dos obje-
tivos profissionais ou extraprofissionais a que serve; do
enquadramento variável de seu prazo de duração (regra
geral, suspensão contratual, podendo, entretanto,
convolar-se em interrupção). A correta definição do
conceito de greve é importante para o enquadramento
de situações concretas, de modo a lhes atribuir os
efeitos jurídicos pertinentes, sejam as prerrogativas
e proteções que os trabalhadores e empregadores
recebem do Direito, sejam os seus respectivos deveres.
Nada obstante, há figuras próximas ou associadas à
greve, que, ainda que consistam atos de resistência ou
protesto em face da insatisfação com condições ou
questões relacionadas ao contrato de trabalho, não
traduzem efetivo movimento grevista. Assim, certos
movimentos de pressão de trabalhadores, por não re-
presentarem efetiva ruptura do processo produtivo da
atividade econômica, ou por não causarem repercussão
significativa na comunidade laboral, não podem ser
qualificados como greve - sob pena de banalização do

145
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

instituto e da própria instrumentalização judicial perti-


nente (o dissídio de greve e as ferramentas processuais
inerentes). Exemplos dessas situações são a “operação
tartaruga e/ou excesso de zelo” e as “reuniões seto-
riais” no ambiente de trabalho, utilizadas como forma
de pressão para reivindicação imediata ou ameaça
para futuro movimento mais amplo, bem como alerta
ao empregador em contextos de descumprimentos
pontuais de obrigações patronais, sem consequências
diretas graves. Na situação vertente, o dissídio coletivo
de greve foi ajuizado pelo Sindicato das Empresas de
Transporte de Passageiros do Estado do Amazonas
para análise de movimento conduzido por um grupo
de empregados da Empresa Via Verde Transportes
Coletivos LTDA., uma das concessionárias de trans-
porte público da cidade de Manaus, que supostamente
causou uma pequena paralisação parcial das atividades
empresariais, no dia 14/06/2017. O Tribunal Regional
admitiu o dissídio coletivo de greve e, no mérito, julgou
improcedente a presente ação, registrando que o
Sindicato Suscitante não se desincumbiu do ônus de
“comprovar que houve efetivamente a alegada greve
dos trabalhadores rodoviários das 4 horas até às 5
horas e 10 minutos do dia 14 de junho 2017” e, ainda,
que “os trabalhadores da empresa Via Verde Trans-
portes Coletivos LTDA realizaram um protesto por
melhores condições de trabalho e percepção de alguns
benefícios”. Após a análise do material probatório
juntado aos autos, verifica-se que, de fato, não se pode
qualificar o referido movimento como efetiva greve. A
esse respeito, nota-se que o evento em análise ocorreu
de maneira espontânea e imprevista, dele participaram
pouquíssimos trabalhadores de uma única empresa e
perdurou mais ou menos 1 hora. É incontroverso que
o movimento não chegou a ser coletivamente concer-
tado, originou-se de reivindicações pontuais (suposta
perseguição aos trabalhadores, descontos indevidos e
falta do pagamento de horas extras), teve uma reper-

146
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

cussão mínima e transcorreu sem transtorno ou violên-


cia, na cidade de Manaus. Nessa medida, realmente, não
se pode enquadrar o movimento como greve. Convém
observar que o Tribunal Regional, bem mais próximo
da realidade fática que é discutida nos autos - ainda
mais considerada a peculiaridade da prova, que con-
siste inclusive em depoimentos testemunhais -, tem
melhor aptidão para a compreensão da controvérsia e,
consequentemente, para a sua solução. Em situações
como a dos autos, a conclusão do órgão de origem deve
ser prestigiada. Nesse contexto, deve ser mantida a
decisão recorrida, que entendeu inexistente a greve, e
desprovido o recurso do Sindicato patronal. Julgados
desta SDC. Recurso ordinário desprovido (RO-279-
62.2017.5.11.0000, Seção Especializada em Dissídios
Coletivos, Relator Ministro Mauricio Godinho Delgado,
DEJT 21/08/2020).

Confirmando-se o entendimento pela necessidade inexo-


rável da sustação coletiva de atividades contratuais por parte dos
trabalhadores, ocasionando uma ruptura no processo produtivo em-
presarial para que o movimento possa ser qualificado como greve, a
decisão cuja ementa segue abaixo, também da Seção Especializada
em Dissídios Coletivos do TST:

RECURSO ORDINÁRIO EM DISSÍDIO COLETIVO


DE GREVE. MOVIMENTO PAREDISTA - NÃO CA-
RACTERIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE PARALISAÇÃO DE
SERVIÇOS POR TRABALHADORES EM ATIVIDADES
PERANTE O SUSCITADO. Greve, segundo o texto da
Lei n. 7.783, de 1989, é a “ suspensão coletiva, tempo-
rária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal
de serviços a empregador “ (art. 2º). Pode-se definir
também a figura, à luz da amplitude a ela conferida pela
Constituição do Brasil (art. 9º), e em vista da prática
histórica do Direito do Trabalho, de modo mais abran-
gente. Seria a paralisação coletiva provisória, parcial

147
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

ou total, das atividades dos trabalhadores em face de


seus empregadores ou tomadores de serviços, com o
objetivo de lhes exercer pressão, visando à defesa ou
conquista de interesses coletivos, ou com objetivos
sociais mais amplos. Com efeito, a figura paredista tem
traços característicos destacados. Trata-se, essencial-
mente, do caráter coletivo do movimento; da sustação
provisória de atividades laborativas, total ou parcial,
como núcleo desse movimento, embora, às vezes, asso-
ciada a atos positivos concertados; do exercício direto
de coerção que representa; dos objetivos profissionais
ou extraprofissionais a que serve; do enquadramento
variável de seu prazo de duração (regra geral, sus-
pensão contratual, podendo, entretanto, convolar-se
em interrupção). Note-se que a greve tem seu núcleo
situado em torno da sustação provisória de atividades
laborativas pelos trabalhadores, em face de seu res-
pectivo empregador ou tomador de serviços. É óbvio
que não se pode falar apenas em greve de empregados
contra os respectivos empregadores; mas também
trabalhadores contra os respectivos tomadores de ser-
viços. É que, há mais de 100 anos, no Brasil, a categoria
avulsa (formada, basicamente, por não empregados) já
era organizada o bastante para realizar significativos
movimentos paredistas contra seus tomadores de
serviços. E, hoje, mais ainda, com a terceirização e
outras fórmulas de contratação da força de trabalho
humano, os movimentos grevistas não teriam como
se limitar à equação dual dos arts. 2º e 3º da CLT (em-
pregados/empregadores). De qualquer forma, o núcleo
do movimento é sempre uma grande omissão coletiva,
uma paralisação, uma sustação do cumprimento das
respectivas obrigações contratuais pelos trabalhado-
res - o que pressupõe, ao menos, a existência de efetiva
demanda pela utilização dessa força de trabalho pelo
empregador ou tomador de serviços. Evidentemente,
a correta definição de um movimento coletivo como
greve é importante para o enquadramento de situações

148
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

concretas, de modo a lhes atribuir os efeitos jurídicos


pertinentes, sejam as prerrogativas e proteções que
os trabalhadores e empregadores recebem do Direito,
sejam os seus respectivos deveres, bem como a própria
utilização do dissídio coletivo como via adequada para
a tutela jurisdicional. No caso dos autos, a solução da
controvérsia passa pela qualificação jurídica de uma
mobilização de trabalhadores portuários inativos
conduzida pelo Sindicato Obreiro contra a Empresa
Suscitada (operadora portuária), ocorrida no dia
27/3/2018. Consta, como motivação para a deflagra-
ção do movimento, o insucesso na renovação do ACT
2016/2018, que determinava a requisição de trabalha-
dores avulsos junto ao OGMO para desempenharem a
função de “encarregado de turma de capatazia”, bem
como a suposta irregularidade na admissão de profis-
sionais daquela função pela Empresa após o término da
vigência do ACT (28/2/2018) - uma vez que ela estaria
contratando trabalhadores não registrados no OGMO,
em desrespeito ao art. 40, § 2º, da Lei 12.815/13. Ocorre
que a referida mobilização sobreveio um mês após o
término da vigência do acordo coletivo, em 27/3/2018,
momento em que, de modo incontroverso nos autos,
o vínculo jurídico entre as Partes (mediante norma
coletiva autônoma) não mais existia, e os trabalhadores
avulsos envolvidos não prestavam serviços nem eram
requisitados pela Empresa. Ficou demonstrado, ainda,
que o evento em análise não produziu nenhuma reper-
cussão na rotina empresarial. Não se extrai dos autos,
por outro lado, qualquer notícia sobre a participação
de outros trabalhadores que, eventualmente, prestas-
sem serviços ou estivessem sendo requisitados pela
Empresa, de modo a divisar efetiva omissão coletiva
no cumprimento das obrigações contratuais perpe-
trada por obreiros com interesses conexos às pessoas
envolvidas no episódio em análise. Registre-se que a
configuração de mobilização nesse sentido poderia au-
torizar, em tese, e no máximo, a verificação de eventual

149
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

qualificação jurídica como uma greve de solidariedade.


Não é essa hipótese, porém. Em conclusão, apesar do
interesse coletivo envolvido (manutenção da cláusula
normativa que previa a requisição dos trabalhadores
portuários avulsos para a função de “ encarregado de
turma de capatazia “), falta ao movimento a caracterís-
tica central e núcleo de toda greve: a sustação de ati-
vidades contratuais pelos trabalhadores. Mantém-se,
pois, a decisão do Tribunal Regional, que extinguiu o
processo, sem resolução de mérito, nos termos do art.
485, VI, do CPC. Recurso ordinário desprovido” (RO-
1000671-97.2018.5.02.0000, Seção Especializada em
Dissídios Coletivos, Relator Ministro Mauricio Godinho
Delgado, DEJT 28/10/2020).

Nesta decisão, a SDC sinaliza para a admissão em tese de gre-


ve de solidariedade, em que pese não a reconhecer no caso concreto
julgado. Também se extrai dessa decisão a admissão de greve em face
de tomadores de serviços e não somente empregadores.
Sobre a greve de solidariedade, a ementa de decisão abaixo
evidencia o seu acolhimento no âmbito do TST, porém consideran-
do-a possível quando legal a greve inicial que está sendo apoiada.
Confira-se:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE


REVISTA. GREVE DE SOLIDARIEDADE. PENA DE SUS-
PENSÃO APLICADA A EMPREGADO QUE ADERIU A
MOVIMENTO PAREDISTA CONSIDERADO ILEGAL. “
Demonstrado no agravo de instrumento que o recurso
de revista preenchia os requisitos do art. 896 da CLT,
dá-se provimento ao apelo para melhor análise da
alegada violação do art. 9º da CF. Agravo de instru-
mento provido.” II - RECURSO DE REVISTA. GREVE
DE SOLIDARIEDADE. PENA DE SUSPENSÃO APLI-
CADA A EMPREGADO QUE ADERIU A MOVIMENTO
PAREDISTA CONSIDERADO ILEGAL. O direito de

150
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

greve, assegurado pelo art. 9º da Constituição Federal


de 1988, deve ser respeitado, desde que regularmente
exercido, nos termos da Lei nº 7.783/89, cujo art. 2º
dispõe que “considera-se legítimo exercício do direito
de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica,
total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a
empregador”. Revela-se, portanto, abusivo o exercício
de tal direito quando não cumpridas as exigências
formais e materiais estabelecidas na Lei nº 7.783/79.
Na hipótese dos autos, ainda que se cuide de greve de
solidariedade, que se insere em outra empreendida
por outros trabalhadores, tal ação somente se justifica
quando legal a greve inicial que apoiam. No presente
caso, o acórdão regional revela que não restou com-
provado que a greve foi precedida de deliberação em
assembleia e comunicação ao empregador, consoante
a Lei nº 7.783/89. Diante de tal constatação, não se
pode considerar legítima a conduta do autor de faltar
injustificadamente ao trabalho para participar de greve
ilegal e abusiva em serviço essencial. Recurso de revista
não conhecido (RR-48700-39.2009.5.02.0057, 3ª Tur-
ma, Redator Ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan
Pereira, DEJT 19/05/2017).

Sem qualquer pretensão de esgotar a matéria, os julgados


sob estudo evidenciam em boa medida o entendimento do Tribunal
Superior do Trabalho sobre o instituto, sendo imperiosa, de outra
banda, a análise da posição do Supremo Tribunal Federal sobre o
direito de greve.
Apesar de não ser o foco do trabalho tratar do direito de greve
atinente ao servidor público, se faz ilustrativo do entendimento do
STF sobre a matéria, o julgamento do Tema 531 - Desconto nos ven-
cimentos dos servidores públicos dos dias não trabalhados em virtude
de greve, de Repercussão Geral (RE 693456), cuja ementa segue:

151
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Recurso extraordinário. Repercussão geral reconhe-


cida. Questão de ordem. Formulação de pedido de
desistência da ação no recurso extraordinário em que
reconhecida a repercussão geral da matéria. Impossibi-
lidade. Mandado de segurança. Servidores públicos civis
e direito de greve. Descontos dos dias parados em razão
do movimento grevista. Possibilidade. Reafirmação da
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Recurso
do qual se conhece em parte, relativamente à qual é
provido. 1. O Tribunal, por maioria, resolveu questão de
ordem no sentido de não se admitir a desistência do
mandado de segurança, firmando a tese da impossibili-
dade de desistência de qualquer recurso ou mesmo de
ação após o reconhecimento de repercussão geral da
questão constitucional. 2. A deflagração de  greve  por
servidor público civil corresponde à suspensão do tra-
balho e, ainda que a greve não seja abusiva, como regra, a
remuneração dos dias de paralisação não deve ser paga.
3. O desconto somente não se realizará se a greve tiver
sido provocada por atraso no pagamento aos servidores
públicos civis ou por outras situações excepcionais que
justifiquem o afastamento da premissa da suspensão
da relação funcional ou de trabalho, tais como aquelas
em que o ente da administração ou o empregador
tenha contribuído, mediante conduta recriminável,
para que a greve ocorresse ou em que haja negociação
sobre a compensação dos dias parados ou mesmo o
parcelamento dos descontos. 4. Fixada a seguinte tese
de repercussão geral: “A administração pública deve
proceder ao desconto dos dias de paralisação decor-
rentes do exercício do direito de greve pelos servidores
públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional
que dela decorre, permitida a compensação em caso
de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar
demonstrado que a  greve  foi provocada por conduta
ilícita do Poder Público”. 5. Recurso extraordinário provi-
do na parte de que a Corte conhece.(RE 693456, Órgão

152
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI,


Julgamento: 27/10/2016, Publicação: 19/10/2017).

A premissa adotada novamente, e aqui pelo STF, é de que a


deflagração de greve corresponde à suspensão do trabalho e, ainda
que a greve não seja abusiva, como regra, não é cabível o pagamento
da remuneração dos dias de paralisação. Eis a tese fixada:

A administração pública deve proceder ao desconto


dos dias de paralisação decorrentes do exercício do
direito de  greve  pelos servidores públicos, em virtude
da suspensão do vínculo funcional que dela decorre,
permitida a compensação em caso de acordo. O des-
conto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que
a  greve  foi provocada por conduta ilícita do Poder Pú-
blico. (RE 693456, Órgão julgador:  Tribunal Pleno, Re-
lator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Julgamento:  27/10/2016,
Publicação: 19/10/2017).

Nesse aspecto há certa coincidência de entendimentos entre


o TST e STF sobre a questão dos descontos dos dias de paralisação
paredista.
Já no âmbito do julgamento dos MIs n.ºs 670, 708 e 712, o
Pleno do STF entendeu pela aplicabilidade da Lei de Greve aos ser-
vidores públicos, naquilo que couber. É o que se denota do trecho
abaixo, extraído do MI n.º 670:

[...]Aplicabilidade aos servidores públicos civis da


Lei no 7.783/1989, sem prejuízo de que, diante do
caso concreto e mediante solicitação de entidade
ou órgão legítimo, seja facultado ao juízo compe-
tente a fixação de regime de  greve  mais severo,
em razão de tratarem de “serviços ou atividades
essenciais” (Lei no 7.783/1989, arts. 9o a 11) (MI
670 / ES, Mandado de Injunção. Órgão julgador:
Tribunal Pleno, Relator(a): Min. MAURÍCIO

153
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

CORRÊA, Redator(a) do acórdão: Min. GILMAR


MENDES, Julgamento: 25/10/2007, Publicação:
31/10/2008).

No julgamento do MI n.º 712, foi assentado no Voto do Exmo.


Ministro Relator, Dr. Eros Grau, o seguinte:

12. A greve é a arma mais eficaz de que dispõem os


trabalhadores visando à conquista de melhores condi-
ções de vida. Consubstancia um poder de fato; por isso
mesmo que, tal como positivado o princípio no texto
constitucional [art. 9º.], recebe concreção, imediata -
sua auto- aplicabilidade é inquestionável – como direito
fundamental de natureza instrumental.

13. A Constituição, tratando dos trabalhadores em


geral, não prevê limitação do direito de greve: a eles
compete decidir, sobre a oportunidade de exercê-lo,
e sobre os interesses que por meio dela defender. Por
isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo
constitucionalmente admissíveis todos os tipos de
greve: greves reivindicatórias, greves de solidariedade,
greves políticas, greves de protesto. Não obstante os
abusos no seu exercício, sujeitam os responsáveis às
penas da lei [§ 2º, do art. 9º.] - lei que, repito, não pode
restringir o uso do direito. A Constituição [§  1º, do art.
9º.] apenas estabelece que lei definirá os serviços ou
atividades essenciais e disporá sobre o atendimento
das necessidades inadiáveis da comunidade. (MI 712
/ PA, Mandado de Injunção. Órgão julgador: Tribunal
Pleno, Relator(a): Relator(a): Min. EROS GRAU, Julga-
mento: 25/10/2007 Publicação: 31/10/2008).

Na ementa da decisão do MI n.º 712 foi explicitamente reto-


mada a impossibilidade de limitação ao direito de greve, consignando
que a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo, sendo constitu-
cionalmente admissíveis todos os tipos de greve, em que pese ter

154
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

sido acolhida aplicação da Lei de Greve ao servidor público, com os


parâmetros definidos pela Corte Suprema. Verifique-se:

MANDADO DE INJUNÇÃO. ART. 5º, LXXI DA CONSTI-


TUIÇÃO DO BRASIL. CONCESSÃO DE EFETIVIDADE À
NORMA VEICULADA PELO ARTIGO 37, INCISO VII, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. LEGITIMIDADE ATIVA
DE ENTIDADE SINDICAL. GREVE DOS TRABALHA-
DORES EM GERAL [ART. 9º DA CONSTITUIÇÃO DO
BRASIL]. APLICAÇÃO DA LEI FEDERAL N. 7.783/89
À GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO ATÉ QUE SOBRE-
VENHA LEI REGULAMENTADORA. PARÂMETROS
CONCERNENTES AO EXERCÍCIO DO DIREITO DE
GREVE PELOS SERVIDORES PÚBLICOS DEFINIDOS
POR ESTA CORTE. CONTINUIDADE DO SERVIÇO
PÚBLICO. GREVE NO SERVIÇO PÚBLICO. ALTERA-
ÇÃO DE ENTENDIMENTO ANTERIOR QUANTO À
SUBSTÂNCIA DO MANDADO DE INJUNÇÃO. PREVA-
LÊNCIA DO INTERESSE SOCIAL. INSUBSISTÊNCIA
DO ARGUMENTO SEGUNDO O QUAL DAR-SE-IA
OFENSA À INDEPENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS
PODERES [ART. 2O DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]
E À SEPARAÇÃO DOS PODERES [art. 60, § 4o, III, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL]. INCUMBE AO PODER
JUDICIÁRIO PRODUZIR A NORMA SUFICIENTE PARA
TORNAR VIÁVEL O EXERCÍCIO DO DIREITO DE GRE-
VE DOS SERVIDORES PÚBLICOS, CONSAGRADO NO
ARTIGO 37, VII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. [...]7.
A Constituição, ao dispor sobre os trabalhadores em
geral, não prevê limitação do direito de greve: a eles
compete decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e
sobre os interesses que devam por meio dela defender.
Por isso a lei não pode restringi-lo, senão protegê-lo,
sendo constitucionalmente admissíveis todos os tipos
de greve. [...](MI 712 / PA, Mandado de Injunção. Órgão
julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Relator(a): Min.
EROS GRAU, Julgamento: 25/10/2007 Publicação:
31/10/2008).

155
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Dessa forma, essa pesquisa não tendo vislumbrado a mudança


de entendimento do STF no particular, revela que a posição da Corte
Máxima do Estado Brasileira, interpretando o art. 9º., da Constitui-
ção, não atribui limitações aos tipos de greve, razão porque, nesse
aspecto resta demonstrado que o entendimento do TST se encontra
em posição de conflito com a posição do Supremo Tribunal Federal,
violando o art. 9º., da Constituição Federal.

5. DIREITO DE GREVE: ANÁLISE COMPARATIVA

Buscando traçar de forma didática uma análise comparativa


entre os principais aspectos do conteúdo extraído dos julgados
apresentados nos tópicos anteriores, afetos ao TST e ao STF, com o
quanto estabelecido pela Lei Maior, pela Lei de Greve, e os princípios
estabelecidos pelo Comitê de Liberdade Sindical e pela Comissão de
Peritos da OIT, subdivide-se o direito de greve quanto aos subtemas
que se segue apresentando.

5.1. Quanto aos tipos e modalidades de greve

O art. 9º. da Constituição Federal não conceitua o direito de


greve, apenas lhe reconhecendo a existência, e assegurando o direito,
“competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de
exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”
(BRASIL,1988). Em que pese, portanto, a norma que exprime o
direito fundamental não prever qualquer limitação, ou autorização
de limitação por lei infraconstitucional, a Lei 7.783/89, em seu art.
2º., limita o direito de greve ao defini-lo como “suspensão coletiva,
temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de servi-
ços a empregador” (BRASIL,1989), destituindo o caráter de greve de
qualquer outra manifestação coletiva de pressão do trabalhador que
não implique na suspensão da prestação pessoal de serviços.

156
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

A Lei de Greve, salvo melhor juízo, por outro lado, não estabe-
lece quais os interesses podem ser defendidos através da greve. É o
que se vislumbra do que diz o art. 1º., da Lei 7.783/89: “É assegurado o
direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a opor-
tunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele
defender” (BRASIL,1988), se atendo apenas a tratar da forma como o
direito será exercido (parágrafo único, do art. 7.783/89).
Já o Comitê de Liberdade Sindical e a Comissão de Peritos
da OIT defendem que o direito de greve não se limita à interrupção
típica de tarefas, admitindo outras modalidades de greve, desde
que se revistam de caráter pacífico. Entendem pela possibilidade da
greve política, que tem consequências imediatas para os trabalhado-
res “em matéria de emprego, de proteção social e de nível de vida”
(GERNIGON; ODERO; GUIDO, 2002) mas não a puramente política,
assim como referendam a possibilidade da greve de solidariedade,
desde que seja legal a greve inicial apoiada pela organização dos tra-
balhadores, deixando claro “que se trata de um direito do qual devem
gozar as organizações de trabalhadores (sindicatos, federações e
confederações)” (GERNIGON; ODERO; GUIDO, 2002).
Na contramão das posições acima ressaltadas, o TST vem
limitando os interesses que podem ser defendidos pelo direito de
greve, entendendo pela abusividade do exercício do direito de greve
deflagrada como forma de protesto dirigida contra o Poder Públi-
co, e com objetivos direcionados à proteção de interesses que não
possam ser atendidos pelo empregador, inviabilizando o que vem
chamando de greve política.
Quanto à greve de solidariedade, o TST admite a sua não abu-
sividade, porém quando legal a greve inicial que está sendo apoiada.
Em momento algum o art. 9º., da Constituição Federal exclui
outros tipos de manifestação coletiva de pressão, que não impliquem
a suspensão coletiva da prestação de serviços pelos trabalhadores.

157
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Defendem tanto o Comitê de Liberdade Sindical, quanto a Comissão


de Peritos da OIT que o direito de greve não se limita à interrupção tí-
pica de tarefas, admitindo outras modalidades de greve, desde que se
revistam de caráter pacífico. Todavia, o TST vem rechaçando outras
modalidades de greve, entendendo pela necessidade inexorável da
sustação coletiva de atividades contratuais por parte dos trabalha-
dores, ocasionando uma ruptura no processo produtivo empresarial
para que o movimento possa ser qualificado como greve, na linha do
que estabelece o art. 2º., da Lei 7.783/89.
Conclui-se, destarte, que há uma incompatibilidade das deci-
sões do TST sobre o tema em estudo, com o quanto estabelecido pelo
art. 9º. da Constituição Federal e a interpretação que lhe é dada pelo
Supremo Tribunal Federal, não havendo também sintonia das decisões
do TST com os princípios do Comitê de Liberdade Sindical, e da Co-
missão de Peritos da OIT, ressalvando-se apenas o seu entendimento
(do TST) sobre a greve de solidariedade, quando as reivindicações
puderem ser atendidas pelo empregador/tomador de serviços.

5.2. Quanto aos requisitos formais

No que tange aos requisitos formais para a deflagração da


greve, nada é dito pela Constituição Federal, a não ser que compete
aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercer o direito
de greve (art. 9º., da Constituição Federal). Lado outro, a Lei 7.783/89
estabelece como o direito de greve pode ser exercido pelos traba-
lhadores, e com base nela o TST firmou o entendimento de que para
o exercício do direito de greve devem ser atendidos os seguintes re-
quisitos formais: tentativa de negociação; aprovação pela respectiva
assembleia de trabalhadores; aviso prévio à parte adversa; e se em
atividades essenciais, atendimento das necessidades inadiáveis da
comunidade.

158
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

O Comitê de Liberdade Sindical e a Comissão de Peritos da


OIT defendem que os princípios da liberdade sindical não amparam os
excessos no exercício do direito de greve que suponham o descumpri-
mento de exigências razoáveis de licitude ou que consistam em ações
de caráter delituoso; as sanções que vierem a ser adotadas no caso
de excessos não deveriam ser desproporcionadas à gravidade das
violações. (GERNIGON; ODERO; GUIDO, 2002, p. 70,71).
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, ao definir as condi-
ções de exercício do direito de greve no serviço público, acolhendo a
aplicação da Lei 7.783/89, no que couber, demonstra que são exigí-
veis os requisitos formais dispostos na Lei, para que a greve não seja
considerada abusiva.
Assim, salvo melhor juízo, não há discrepância de entendi-
mento entre as decisões e princípios dos órgãos estudados, quanto
a possibilidade de estabelecimento de exigências razoáveis para o
exercício do direito de greve, sendo elas, na realidade brasileira, para
os trabalhadores da iniciativa privada, as dispostas na Lei de Greve,
com as interpretações dadas pelo TST, a respeito.

5.3. Quanto aos serviços inadiáveis em atividades


essenciais

No geral, não há controvérsias de que o exercício do direito


de greve não pode prejudicar o atendimento das necessidades inadi-
áveis da comunidade, em caso de prestação de serviços ou atividades
consideradas essenciais. Diz o § 1º, do art. 9º., da Constituição da Re-
pública: “A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá
sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade”
(BRASIL,1988). Nos arts. 10 e 11, da Lei 7.783/89, ficaram definidos
os serviços ou atividades considerados essenciais, e que “os em-
pregadores e os trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo,
a garantir, durante a greve, a prestação dos serviços indispensáveis

159
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade” (BRA-


SIL,1989).
O Comitê de Liberdade Sindical e a Comissão de Peritos da
OIT entende que:

É admissível o estabelecimento de um serviço míni-


mo de funcionamento (da empresa ou instituição
de que se trate) no caso de greve em serviços
de utilidade pública ou nos serviços públicos de
importância transcendental; na determinação
desse serviço mínimo deveriam poder participar
empregadores, organizações de trabalhadores e
autoridades públicas. (GERNIGON; ODERO; GUI-
DO, 2002, p. 70,71)

Para o TST deve ser observada a limitação ao direito de greve


contida no § 1º, do art. 9º, da Constituição Federal, e do art. 11, da Lei
7.783/89, no que tange à manutenção da prestação dos serviços in-
dispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comu-
nidade, sendo digno de nota que ao tratar do dever de manutenção
da prestação de serviços inadiáveis, o entendimento defendido é de
que instado o Judiciário a se pronunciar a respeito em um caso con-
creto, este deve fixar um percentual mínimo razoável do contingente
de trabalhadores, a fim de que não haja solução de continuidade na
prestação de serviços indispensáveis (serviços mínimos) à popula-
ção, sem, contudo, retirar a efetividade da greve como instrumento
de pressão, meio legítimo conferido à classe trabalhadora à reivindi-
cação por direitos e melhores condições de trabalho.
O Supremo Tribunal Federal agasalha os termos da Lei
7.783/89 no tocante à matéria, porém, conquanto a greve dos ser-
vidores públicos não seja objeto desse trabalho, entende por uma
maior rigidez dos requisitos quanto a manutenção do serviço público,

160
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

excluindo qualquer possibilidade de greve de servidores voltados para


a segurança pública.
Conclui-se, pois, que em se tratando da prestação de ser-
viços inadiáveis em atividades essenciais, os entendimentos entre
os órgãos demonstram convergência, tendo-se por exigível que se
mantenha a prestação de serviços mínimos, que segundo o parágrafo
único, do art. 11, da Lei 7.783/89, são aqueles que “não atendidos, co-
loquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança
da população”. (BRASIL,1989)

5.4. Quanto ao desconto da remuneração dos dias de


paralisação paredista

A Constituição Federal não trata do assunto, porém, o art. 2º.,


da Lei de Greve, estabeleceu que a greve é uma suspensão coletiva da
prestação pessoal de serviços, tendo a jurisprudência do TST com-
preendido que essa suspensão pode gerar efeitos de suspensão ou de
interrupção contratual, a depender do caso.
Ainda que a greve não seja considerada abusiva, inexistindo
acordo entre as partes a respeito dos descontos dos dias parados,
prevalece o entendimento pela possibilidade dos descontos, ante a
suspensão contratual. Todavia, ainda que a situação não se enquadre
nas exceções específicas de interrupção do contrato de trabalho
(descumprimento contratual pelo empregador/tomador de serviços,
más condições de trabalho, conduta antissindical), em caso de greves
longas, a SDC, do TST, invocando a razoabilidade, vem adotando o
entendimento pelo desconto de 50% (cinquenta por cento) dos dias
parados, e compensação dos outros 50% (cinquenta por cento), a
fim de evitar que os trabalhadores e suas famílias sofram prejuízos
consideráveis à sua mantença.
O Supremo recentemente, ao julgar o tema 531, de Repercus-
são Geral, definiu tese que comunga com o entendimento do TST,

161
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

sobre a matéria, mutatis mutandis. Há, pois, também com relação a


esta temática específica, um certo alinhamento entre os Tribunais
Superiores, sendo importante mencionar que o Comitê de Liberdade
Sindical e a Comissão de Peritos da OIT entende que “não são con-
testáveis as disposições legislativas que preveem o desconto salarial
dos dias parados”.
Destarte, conclui-se pela possibilidade de desconto dos dias
de paralisação, ainda que a greve não seja abusiva, a não ser quan-
do a motivação da deflagração da greve envolva descumprimento
contratual e/ou conduta ilícita do empregador/tomador de serviços,
ante os entendimentos analisados.

6. CONCLUSÃO

Nas lições de Ingo Sarlet, os direitos sociais relacionam-se


com o fato de corresponderem ao direito a prestações do Estado na
consecução da justiça social,

seja “mediante a compensação de desigualdades


fáticas e garantia do acesso a determinados bens e ser-
viços por parte de parcelas da população socialmente
vulneráveis”, ou mesmo vinculados “à garantia de tutela
de uma determinada classe social (os trabalhadores)
no âmbito de relações no mais das vezes marcadas por
níveis de manifesta assimetria – e desequilíbrio – de
poder econômico e social.” (SARLET, 2012, p. 195)

Portanto, o direito de greve como direito instrumental social


fundamental trabalhista que é, deve ser efetivamente garantido, a
fim de que ele sirva a viabilizar, no âmbito de relações de manifesta
assimetria – e desequilíbrio – de poder econômico e social, que sejam
respeitados os direitos dos trabalhadores, e conquistados outros
direitos que repercutam na melhoria da sua condição de vida e de

162
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

trabalho à concretizar o Estado Democrático e Social preconizado


pela Constituição da República, que tem por objetivos, dentre outros,
a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a redução das
desigualdades sociais e regionais, e a promoção do bem estar de todos.
Na esteira desse raciocínio, impõe-se que as normas constitu-
cionais de direitos fundamentais, com especial destaque as de direi-
tos sociais, sejam interpretadas atribuindo-lhes o sentido de maior
eficácia (máxima efetividade dos direitos fundamentais), exigindo
que o intérprete sempre tente fazer com que o direito fundamental
atinja sua plena realização (SARLET, 2012).
Contudo, o presente trabalho ao analisar o direito de greve
no Brasil dos trabalhadores da iniciativa privada, a partir das disposi-
ções constitucionais que lhe são atinentes, da chamada Lei de Greve,
dos princípios adotados pelo Comitê de Liberdade Sindical e pela
Comissão de Peritos da OIT, e da jurisprudência do TST e STF sobre
a matéria, concluiu que à este direito não tem sido atribuído à maior
eficácia possível, inerente ao princípio da máxima efetividade dos
direitos fundamentais, desprovendo-o da condição de atingir sua
plena realização.
Isto porque, na prática, tem sido limitado o exercício do di-
reito de greve pelos trabalhadores, especialmente no que tange aos
interesses que devam ser defendidos através da deflagração da greve,
bem como de que forma esta greve pode ser manifestada, já que só
se tem aceitado, ao arrepio do direito constitucionalmente previsto,
que a greve implique a cessação coletiva da prestação de serviços ao
empregador/tomador.
Nas condições atuais, e enquanto a discussão não reste
pacificada de maneira cogente pelo Supremo Tribunal Federal, no
sentido de se atribuir uma concepção mais ampla ao direito de greve,
e por via de consequência, garantindo-lhe maior eficácia, parece que
a solução para uma maior potencialização desse instrumento de

163
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

pressão dos trabalhadores é buscar assegurar essa amplitude, coro-


lário da lídima aplicação do art. 9º. da Constituição Federal, por via
de instrumento coletivo negociado. Não resta dúvida, contudo, que
este será um grande desafio para as organizações dos trabalhadores,
que precisarão vencer o estado de letargia dócil em que se encontra
imersa a classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

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Brasil. 2013. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universida-
de de São Paulo, São Paulo, 2013.

BIAS, Rafael Borges de Souza. Direito fundamental à greve e a


Constituição de 1988. Da sua amplitude no texto constitucional à
restrição pelos tribunais. RIL Brasília a. 55 n. 219, p. 263-290, jul./set. 2018. Disponí-
vel em <https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/55/219/ril_v55_n219_p263.pdf>.
Acesso em 30 junho 2022.

_______________BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa


do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em: <http://
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_______________BRASIL. Lei nº 7.783, de 27 de junho de 1989. Dispõe sobre o exercí-


cio do direito de greve, define as atividades essenciais, regula o atendimento das
necessidades inadiáveis da comunidade, e dá outras providências. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 29 de junho de 1989. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/leis/l7783.HTM>. Acesso em 30 junho 2022.

_______________BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de


Preceito Fundamental 324. Distrito Federal. Relator: Ministro Roberto Barroso. DJ:
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164
O DIREITO DE GREVE NA INICIATIVA PRIVADA

Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 25/10/2007, Publicação: 31/10/2008. Dispo-


nível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur87282/false>. Acesso
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julgador: Tribunal Pleno, Relator(a): Relator(a): Min. EROS GRAU, Julgamento:
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166
MANDADO DE INJUNÇÃO
E AS DISPOSIÇÕES
TRANSITÓRIAS MAIS DE 30
ANOS DEPOIS DA CF/88. O
CASO DA PROTEÇÃO CONTRA
DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU
SEM JUSTA CAUSA1

Edilton Meireles2

1  Este artigo é resultado de pesquisa desenvolvida no âmbito do grupo de pesquisa


“Relações de Trabalho na Contemporaneidade”, liderado pelo Prof. Edilton Meireles,
vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito (PPGD) da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), cadastrado no Diretório Nacional de Grupos
de Pesquisa do CNPq (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/2745276903507261), e
que compõe “Rede de Grupos de Pesquisas em Direito e Processo do Trabalho –
RETRABALHO”.
2  Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor pela
PUC/SP. Desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região,
professor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado
da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa).
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O presente trabalho é fruto da pesquisa quanto a possibilidade de impetração do
mandado de injunção para tornar viável o exercício do direito à proteção contra
a despedida arbitrária ou sem justa causa. Analisou-se a jurisprudência do STF
a respeito desta questão em face da existência da regra transitória do art. 10 do
ADCT. Ao final se conclui que, transcorrido mais de 30 anos desde a promulgação
da CF de 1988, revela-se viável a impetração do mandado de injunção diante do
abuso moratório do legislador constitucional. Na pesquisa foi utilizado o método
dedutivo, com revisão da doutrina, análise da jurisprudência e interpretação de
textos normativos.
Palavras-chave: Mandado de injunção. Omissão constitucional. Despedida arbitrária.
Despedida sem justa causa. Disposição transitória.

Abstract
The present work is the result of the research regarding the possibility of impetration of
injunction for the protection order to make viable the exercise of the right to protection
against arbitrary dismissal or without just cause. The case law of the Supreme Court
was analyzed on the subject in view of the existence of the transitional rule of art.
10 of ADCT. At the end, it is concluded that, more than 30 years after the enactment
of the 1988 Constitution, it is possible to impose an injunction in the face of the
moratorium of the constitutional legislator. In the research was used the deductive
method, with revision of the doctrine, analysis of jurisprudence and interpretation of
normative texts.
Keywords: injunction. constitutional omission. arbitrary dismissal. dismissal without
just cause.

1. INTRODUÇÃO

Transcorridos mais de três décadas desde a promulgação da


Constituição Federal de 1988, ainda hoje o Congresso Nacional não
regulamentou de forma ampla o direito fundamental social-traba-
lhista estabelecido no inciso I do art. 7º da Carta Magna.
Essa lacuna jurídica, caracterizada pela omissão do legislador
infraconstitucional, por sua vez, induz a possibilidade do ajuizamento
de mandado de injunção com o objetivo de tornar viável o exercício
do direito à proteção contra a despedida arbitrária.
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, possui antigo pre-
cedente não reconhecendo o direito à injunção neste caso diante da

168
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

regra transitória do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais


Transitórias.
Neste trabalho, no entanto, abordaremos essa questão, in-
vestigando a possibilidade da injunção ou não transcorrido mais de
30 (anos) da promulgação da Constituição de 1988.
Neste trabalho será utilizado o método dedutivo, com revi-
são da doutrina, análise da jurisprudência e interpretação de textos
normativos.

2. DO DIREITO À INJUNÇÃO

Dispõe o art. 5º, inciso LXXI da Constituição Federal que cabe


a impetração de “mandado de injunção sempre que a falta de norma
regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades
constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à so-
berania e à cidadania”3.
O mandado de injunção é instrumento processual consti-
tucionalmente previsto para a hipótese na qual, por falta de norma
regulamentadora, não se torne viável o exercício do direito ou liber-
dade constitucional e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à
soberania e à cidadania.
Assim, quando diante da omissão do legislador em regula-
mentar o preceito constitucional, cabe a impetração do mandado de
injunção de modo que se possa, mediante atuação do Poder Judiciá-
rio, obter a prestação a qual o Estado se obrigou por força da eficácia
constitucional dos direitos fundamentais.

3  BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial. Bra-


sília. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui-
caocompilado.htm. Acesso em: 13 nov. 2018. Essa citação serve para todas as demais
referências ao texto constitucional, evitando-se a repetição desnecessária da fonte.

169
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

3. PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA E A


OMISSÃO CONSTITUCIONAL

Dispõe o inciso I do art. 5º da CF que é direito “dos trabalha-


dores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social”, a “relação de emprego protegida contra despedida
arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que
preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.
Do teor deste dispositivo fica claro que o Constituinte impôs
ao legislador infraconstitucional o dever de regulamentar, mediante
lei complementar, o direito e garantia constitucional de proteção da
relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa.
Isso sem prejuízo da pactuação individual no mesmo sentido e da
possibilidade de norma coletiva regulamentando essa matéria4.
Transcorrido, no entanto, mais de 30 (trinta) anos, o Con-
gresso Nacional ainda não se dignou a regulamentar essa garantia
constitucional, inviabilizando o exercício do respectivo direito em
face dos empregadores.
Essa omissão, portanto, a princípio, justifica a concessão da
injunção nos moldes previsto no art. 5º, inciso LXXI da Constituição
Federal.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, em decisão colegiada,
em pelo menos duas oportunidades, já recusou a concessão a injun-
ção ao fundamento da existência de uma regra transitória, o que
descaracterizaria a omissão constitucional.

4  MEIRELES, Edilton. O dever de contratar os direitos fundamentais, p. 61-74; MEIRELES,


Edilton. A Constituição do Trabalho. O trabalho nas Constituições da Alemanha, Brasil,
Espanha, França, Itália e Portugal, p. 111-117.

170
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

4. DA REGRA TRANSITÓRIA E DO ABUSO POR OMISSÃO


DO LEGISLADOR

Quando do julgamento do Mandado de Injunção n. 114, o


STF, diante de pedido de concessão de injunção para tornar viável o
direito assegurado no inciso I do art. 7º da CF, decidiu por não conce-
der a ordem injuncional ao fundamento de que o próprio legislador
constituinte, no art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Tran-
sitórias, tratou de, provisoriamente, “suprir a mora”5, estabelecendo
regra que estaria viabilizando o exercício do direito reclamado.
Vale destacar que essa decisão foi proferida em 04 de abril de
1991, menos de três anos após a edição da Constituição Federal.
E, sem dúvida, pode-se afirmar que, diante da regra transitória
do art. 10 do ADCT, estar-se-ia diante de uma situação de inexistência
da mora legislativa, já que o próprio texto constitucional tratou de
estabelecer uma regra transitória. Logo, provisoriamente a garantia
posta no inciso I do art. 7º da CF já estaria regulamentada ab initio.
Da mesma forma, pode-se afirmar que essa regra transitória
tornaria viável o exercício do direito constitucional, de modo que
faltaria interesse em demandar em mandado de injunção, haja vista a
existência da norma regulamentadora.
Toda essa argumentação, no entanto, tinha sua razão de ser
quando do julgamento do MI n. 114, em abril de 1994, menos de 3
(três) anos da data de promulgação da Constituição de 1988. Contu-
do, desde essa promulgação já se passaram mais de 30 anos. E desde
o julgamento do MI n. 114 já se passaram mais de 27 anos.
Vale destacar que, no Mandado de Injunção n. 278, julgado
em 20016, o STF revistou essa questão, proferindo decisão idênti-

5  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de injunção n. 114. Rel. Min. Octavio
Gallotti. Julgado em 04 abr. 1991.
6  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de injunção n. 278. Redª. Minª. Ellen
Gracie. Julgado em 03 out. 2001.

171
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

ca, invocando o precedente posto no MI n. 114. Sobre essa mesma


questão, anteriormente, em decisão monocrática, com os mesmos
fundamentos, foi rejeitado o MI n. 4877.
Ao longo dessas quase três décadas, no entanto, o legislador
infraconstitucional se manteve na mesma posição, sendo abusiva-
mente omisso em sua obrigação de regulamentar o inciso I do art. 7º
da CF, talvez se valendo da regra transitória acima mencionada e dos
precedentes do STF.

5. DA INVIABILIDADE DO EXERCÍCIO PLENO DO DIREITO


CONSTITUCIONAL

Apesar das decisões do STF a respeito desta matéria, na rea-


lidade, transcorrido mais de 30 anos desde a promulgação da Carta
Magna de 1988, não se pode, neste caso, continuar a apontar a falta
de interesse em demandar em mandado de injunção ao fundamento
de que o exercício do direito constitucional à proteção contra des-
pedida arbitrária ou sem justa causa não se revela inviável diante da
existência da regra transitória. Isso porque, na realidade, o que quis
o legislador constitucional foi criar uma regra aplicável de imediato,
mas de forma transitória e precária, até que, em tempo razoável, o
legislador infraconstitucional pudesse regulamentar o preceito do
inciso I do art. 7º de modo amplo e exaustivo, para que a proteção
constitucional pudesse ser viabilizada de forma plena e perene.
Na verdade, criou-se apenas uma regra transitória, e, portan-
to, uma norma simplória e não-exaustiva (como não poderia deixar
de ser enquanto regra constitucional transitória), de modo a viabi-
lizar, de imediato, ainda que precariamente, o exercício do direito
fundamental à proteção contra despedida arbitrária ou sem justa
causa. Mas isso de forma precária e não exaustiva quanto a proteção

7  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de injunção n. 487. Rel. Min. Celso de
Mello. Julgado em 22 jun. 1995.

172
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

constitucional. O que o legislador constituinte quis, com essa regra


transitória, foi tornar efetiva e eficaz, de imediato, o direito funda-
mental à proteção contra a despedida arbitrária e sem justa causa.
Daí se tem que a persistir o entendimento de que falta interes-
se por se entender como viável o exercício do direito constitucional
diante da regra transitória, estar-se-á, não só se desviando da pró-
pria regra transitória (que passa a ter natureza de regra principal),
como fraudando o mandamento constitucional que determinou a
regulamentação por lei complementar. Isso sem desconsiderar que
se estaria violando flagrantemente o direito à proteção contra des-
pedida arbitrária ou sem justa causa de forma plena.
Neste sentido é preciso ter em mente, ainda, que o consti-
tuinte quis tanto ressaltar a eficácia do direito à proteção contra
despedida arbitrária ou sem justa causa que, de forma imediata,
antes mesmo de qualquer regulamentação infraconstitucional, já
estabeleceu uma regra transitória. A importância dada pelo consti-
tuinte à proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa foi
tamanha que ele próprio tratou de estabelecer uma regra precária
para o exercício do direito constitucional. Mas, ao mesmo tempo,
delegou ao legislador infraconstitucional o dever de regulamentar
de forma ampla e perene essa proteção, de modo tornar eficaz, em
sua inteireza, o direito constitucional.
Assim, a persistir com o argumento de que essa regra tran-
sitória torna viável o exercício do direito constitucional à proteção
contra despedida arbitrária ou sem justa causa, estar-se-á agindo de
forma contrária à intenção deliberada do constituinte em tornar efi-
caz, de forma imediata, sem lacuna no tempo e de forma perene, essa
garantia social posta no art. 7º, inciso I, da CF. Isso porque a intenção
do constituinte foi tornar eficaz a proteção contra despedida arbi-
trária ou sem justa causa, mas de forma imediata e ampla. Contudo,
não podendo, desde logo, o constituinte, regulamentar de forma am-

173
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

pla a proteção, procurou estabelecer, ao menos, uma regra precária e


transitória de modo a garantir um mínimo de eficácia imediata.
Logo, persistir nessa situação é fraudar a intenção do le-
gislador constitucional que quis, na realidade, privilegiar o direito
à proteção contra despedida arbitrária ou sem justa causa com o
estabelecimento de sua regra transitória de eficácia.
Dessa forma, transcorrido mais de 30 (trinta) anos, ter-se
como viável o exercício do direito assegurado no inciso I do art. 7º
da CF ao argumento da existência da regra transitória do art. 10 do
ADCT é agir contra a intenção do constituinte em assegurar a efi-
cácia ampla e exaustiva do direito à proteção constitucional contra
despedida arbitrária ou sem justa causa.
De qualquer modo, ainda que se possa dizer que é viável de
forma precária e não exaustiva a proteção contra despedida arbitrá-
ria ou sem justa causa, o que se busca com o mandado de injunção é a
eficácia plena, ampla e exaustiva do direito constitucional à proteção
contra despedida arbitrária ou sem justa causa.
Pode-se, assim, na pior das hipóteses, afirmar que a proteção
prevista no art. 10 do ADCT se revela mínima e precária. A injunção,
dessa forma, justifica-se para que se torne viável o direito à proteção
de forma ampla e exaustiva. E aqui, ao menos nesta parte, revela-se a
omissão constitucional.

6. DA PERDA E DA INEFICIÊNCIA DA PROTEÇÃO


TRANSITÓRIA

Cabe, porém, acrescentar outro argumento a se demonstrar


que o direito constitucional à proteção contra despedida arbitrária
ou sem justa causa como assegurado transitoriamente no art. 10 do
ADCT, na realidade fático-normativa, já não regulamenta o disposto
no inciso I do art. 7º da CF. Ou seja, a regra transitória perdeu seu

174
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

objetivo de tornar eficaz a proteção contra a despedida arbitrária e


sem justa causa.
Veja-se que o constituinte transitório estabelece, no art. 10
do ADCT, que

Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a


que se refere o art. 7º, I, da Constituição:

I - fica limitada a proteção nele referida ao aumento,


para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º,
“caput” e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966;

II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa:

a) do empregado eleito para cargo de direção de co-


missões internas de prevenção de acidentes, desde o
registro de sua candidatura até um ano após o final de
seu mandato;

b) da empregada gestante, desde a confirmação da


gravidez até cinco meses após o parto.

Deste texto constitucional transitório se tem que a proteção


contra a despedida arbitrária e sem justa causa fica limitada: i) “ao au-
mento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, “caput”
e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966”; ii) da vedação da
despedida arbitrária e sem justa causa do “empregado eleito para
cargo de direção de comissões internas de prevenção de acidentes,
desde o registro de sua candidatura até um ano após o final de seu
mandato”; e, iii) da vedação da despedida arbitrária e sem justa causa
da “empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco
meses após o parto”.
Em relação à proteção contra a despedida arbitrária do
“empregado eleito para cargo de direção de comissões internas de

175
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

prevenção de acidentes, desde o registro de sua candidatura até um


ano após o final de seu mandato”, essa mesma garantia já estava es-
tabelecida no art. 1658 da CLT, com a redação dada pela Lei n. 6.514
de 22/12/19779.
A regra constitucional transitória, na realidade, de forma
bastante acanhada, somente ampliou a proteção já existente em lei
ordinária para assegurá-la até um ano após o final do mandato do ci-
pista. O que antes era uma garantia durante o exercício do mandato,
ampliou-se até um ano após o seu final.
Essa proteção, pois, revela-se mínima, sem maiores amplitu-
des em relação à situação normativa anterior. Logo, é uma proteção
insuficiente ao desiderato do inciso I do art. 7º da CF.
Além disso, essa proteção trata apenas de uma situação es-
pecífica e dirigida a um grupo restrito de trabalhadores, quais sejam,
aqueles que ocupam cargo nas comissões internas de prevenção de
acidentes. Não se trata, portanto, de uma regra para proteção da
generalidade dos trabalhadores contra a despedida arbitrária ou sem
justa causa.
Já quanto a proteção à maternidade, esta já estava assegu-
rada e atualmente está garantida pelo disposto nos arts. 39110 e

8  Art. 165 - Os titulares da representação dos empregados nas CIPA (s) não poderão
sofrer despedida arbitrária, entendendo-se como tal a que não se fundar em motivo
disciplinar, técnico, econômico ou financeiro. Parágrafo único - Ocorrendo a
despedida, caberá ao empregador, em caso de reclamação à Justiça do Trabalho,
comprovar a existência de qualquer dos motivos mencionados neste artigo, sob
pena de ser condenado a reintegrar o empregado. BRASIL. Decreto-lei n. 5.452, de
1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial. Rio
de Janeiro. 1943. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
Del5452.htm>. Acesso em: 13 nov. 2018. Também aqui, essa referência serve para todas
as demais nas quais são citados dispositivos da CLT, de modo a se evitar repetições
desnecessárias relativas à mesma fonte normativa.
9  BRASIL. Lei n. 6.514, de 22 de dezembro de 1977. Altera o Capítulo V do Título II da
Consolidação das Leis do Trabalho, relativo a segurança e medicina do trabalho e dá
outras providências.
10  Art. 391 - Não constitui justo motivo para a rescisão do contrato de trabalho da
mulher o fato de haver contraído matrimônio ou de encontrar-se em estado de
gravidez.

176
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

391-A11 da CLT, de modo que, ainda que seja revogado o art. 10 do


ADCT, a proteção à empregada gestante continuará a mesma. Logo,
a regra constitucional transitória, por si só, já não mais satisfaz com
exclusividade o seu objetivo, já que regra infraconstitucional dispõe
no mesmo sentido.
Além disso, como ressaltado acima em relação aos cipistas,
essa outra regra transitória de proteção à maternidade apenas regu-
lamenta uma situação específica das trabalhadoras grávidas. Logo,
não se cuida de uma regra dirigida a todo o grupo dos trabalhadores.
Trata-se de regra especial.
Por fim, quanto a proteção geral assegurada no inciso I do art.
10 do ADCT, ela se repete no art. 18, § 1º, da Lei n. 8.036/9012. Logo,
ainda que revogado o art. 10, inciso I, do ADCT, ao trabalhador será
assegurado proteção semelhante, qual seja, o pagamento do equiva-
lente a 40% dos depósitos do FGTS (salvo se se entender que aquela
seja de 160% do valor dos depósitos do FGTS). Isto é, a princípio, a
regra transitória perdeu, com o texto da Lei n. 8.036/90 (que regu-
lamentou o direito social ao FGTS), qualquer razão de existir. E isso
desde 1990 (antes mesmo do julgamento do MI n. 144)! A não ser que
se tenha o disposto nesta lei infraconstitucional como sendo outro

Parágrafo único - Não serão permitidos em regulamentos de qualquer natureza


contratos coletivos ou individuais de trabalho, restrições ao direito da mulher ao seu
emprego, por motivo de casamento ou de gravidez.
11  Art. 391-A. A confirmação do estado de gravidez advindo no curso do contrato
de trabalho, ainda que durante o prazo do aviso prévio trabalhado ou indenizado,
garante à empregada gestante a estabilidade provisória prevista na alínea b do inciso
II do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
12  Art. 18. Ocorrendo rescisão do contrato de trabalho, por parte do empregador,
ficará este obrigado a depositar na conta vinculada do trabalhador no FGTS os valores
relativos aos depósitos referentes ao mês da rescisão e ao imediatamente anterior,
que ainda não houver sido recolhido, sem prejuízo das cominações legais. § 1º
Na hipótese de despedida pelo empregador sem justa causa, depositará este, na
conta vinculada do trabalhador no FGTS, importância igual a quarenta por cento do
montante de todos os depósitos realizados na conta vinculada durante a vigência
do contrato de trabalho, atualizados monetariamente e acrescidos dos respectivos
juros. BRASIL. Lei n. 8.036, de 11 de maio de 1990. Dispõe sobre o Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço, e dá outras providências.

177
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

direito assegurado ao trabalhador, diversa da proteção também


assegurada no art. 10 do ADCT13.
Tudo isso demonstra, pois, que a proteção assegurada no art.
10 do ADCT já perdeu seu objetivo transitório, pois além de ineficaz
para o fim que ele almejava transcorrido mais de 30 anos de sua
edição, o que ali está garantido hoje já se encontrava consolidado em
textos infraconstitucionais.
Assim, na realidade, a proteção jurídica hoje consolidada de
forma infraconstitucional já induz a conclusão de que não se pode
continuar a afirmar que o art. 10 do ADCT é regra transitória que asse-
gura o exercício do direito à proteção contra a despedida arbitrária ou
sem justa causa. Isso porque o arcabouço infraconstitucional já dispõe
de proteção idêntica ao texto constitucional transitório, o que torna
desnecessária a própria existência deste último. O art. 10 do ADCT,
na realidade, tornou-se um “nada jurídico”, tendo em conta, ainda, a
impossibilidade do retrocesso social em relação às normas infracons-
titucionais em face do que dispõe a parte final do art. 7º da CF14.

7. DA PROTEÇÃO TRANSITÓRIA INÓCUA

Não fosse os argumentos acima, é preciso, ainda, destacar


que a proteção transitoriamente assegurada na CF, no art. 10 do
ADCT, transcorrido mais de 30 anos e diante da mudança das con-
dições socioeconômicas, revela-se, hoje, inócuo para o fim que se
busca alcançar.
Lembre-se que a Constituição procura proteger os traba-
lhadores contra a despedida arbitrária ou sem justa causa. Ou seja,
o direito assegurado na Constituição é o da manutenção do posto

13  Cf. MEIRELES, Edilton. Estabilidade decenal ainda vigente, p. 161-169.


14  CF. MEIRELES, Edilton. Princípio do não-retrocesso social no Direito do Trabalho, p.
339-342.

178
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

de trabalho. E para sua manutenção, assegura-se a proteção contra


despedida arbitrária ou sem justa causa.
O legislador constitucional, porém, de logo, estabeleceu que
se pode prever, quando diante da violação deste direito ao emprego,
uma “indenização compensatória, dentre outros direitos”. Aliás, en-
sina José Afonso da Silva que, por norma infraconstitucional, pode o
legislador

... reconhecer estabilidade após certo tempo de empre-


go e indenização compensatória. Mas poderá também
não conferir estabilidade, resolvendo-se a controvérsia
sempre pela via de indenização, progressiva ou não.
Além disso, poderá estabelecer outros direitos...15.

Mas, ainda, que possa prever apenas a indenização compen-


satória, não se assegurando a estabilidade (manutenção do empre-
go) em si, o que se quer é a proteção do posto de trabalho contra a
despedida arbitrária ou sem justa causa. Logo, a proteção há de ser
eficiente e eficaz de modo que a despedida arbitrária ou sem justa
causa não seja atrativa para o empregador. Do contrário, o direito
fundamental será mera carta de intenção... Uma cláusula decorativa.
E, neste ponto, o legislador há de levar em conta que a própria
ordem econômica está fundada na valorização do trabalho humano
(caput do art. 170 da CF) e que tem como um de seus princípios a
busca do pleno emprego (inciso VII do art. 170 da CF). Logo, o bem
jurídico a se proteger é o emprego, isto é, a manutenção do contra-
to de emprego firmado pelo trabalhador contra a sua despedida
arbitrária ou sem justa causa, valorizando-se o trabalho humano e
assegurando o pleno emprego.
Daí se tem que a proteção jurídica deve ser de tal forma efi-
ciente e eficaz que o empregador não se sinta atraído a descumprir

15  Comentário contextual à Constituição. 8 ed., p. 194.

179
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

a proteção constitucional contra a despedida arbitrária ou sem justa


causa, preferindo, em violação ao art. 170 da CF, pagar a indeniza-
ção compensatória, desvalorizando o trabalho humano e agindo de
modo contrário ao princípio da busca do pleno emprego.
Contudo, atualmente, transcorrido mais de 30 anos da pro-
mulgação da CF de 1988 e diante da mudança nas condições socioe-
conômicas brasileiras, a proteção assegurada no art. 10 do ADCT se
revela ineficiente e ineficaz ao objetivo da norma social fundamental
de proteção contra a despedida arbitrária e sem justa causa. E para
assim concluir basta citar estudos que revelam que em 2013 cerca de
46,4% dos trabalhadores eram despedidos antes de completar seis
meses de tempo de serviço, alcançando-se o patamar de 66% dos
empregados despedidos com menos de um ano de contrato firmado16.
Estudos do Departamento Intersindical de Estatística e Estu-
dos Socioeconômicos (DIEESE) revelam, ainda, que, entre os anos de
2001 e 2010,

os resultados da mensuração das taxas de rotatividade,


mesmo depois de descontados os quatro motivos de
desligamentos, decorrentes de transferência, desliga-
mento a pedido do trabalhador, aposentadoria, fale-
cimento, indicam taxas de rotatividade ainda bastante
expressivas: em 2001, a taxa foi de 34,5%; em 2004,
de 32,9%; em 2007, de 34,3%; em 2008, de 37,5%;
em 2009, de 36,0%; e, em 2010, de, 37,28%17.

Este mesmo estudo conclui afirmando algo que chega a ser


senso comum no Brasil, a de que “a rotatividade é uma característica
marcante do mercado de trabalho formal brasileiro”18.

16  NERY, Pedro Fernando. O que é rotatividade (e porque é um problema)?


17  DIEESE. Rotatividade e flexibilidade no mercado de trabalho brasileiro, p. 14.
18  DIEESE. Rotatividade e flexibilidade no mercado de trabalho brasileiro, p. 17.

180
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

Estudos mais recentes revelam, ainda, que “a rescisão do


contrato de trabalho por demissão sem justa causa realizada por
iniciativa do empregador é a que predomina no mercado de trabalho
brasileiro e, em termos absolutos, foi crescente mesmo” no “período
de aquecimento do mercado de trabalho” (entre 2003 e 2014) e que
“o volume das demissões sem justa causa dobrou entre 2002 e 2014,
passando de 6,6 milhões para 12,3 milhões no período”19. Em 2015, o
total de desligamentos por demissão sem justa causa alcançou 51,9%,
participação de 3,2 p. p. superior à verificada no ano anterior20.
Pesquisa mais recente revela, ainda, que

Em 2015, o mercado de trabalho registrou movimen-


tação total de 62,0 milhões de vínculos celetistas
de emprego na RAIS, sendo que 22,8 milhões foram
rescindidos durante o ano e cerca de 39,2 milhões de
vínculos ativos formaram o estoque de empregos final
do ano.... Trata-se de um volume inferior ao verificado
nos anos anteriores ..., mas que ainda assim retrata a
expressiva movimentação de vínculos no mercado de
trabalho. Neste sentido, observa-se ainda que parte
significativa destes vínculos refere-se a contratos de
trabalho que foram estabelecidos – e parte deles foi
estabelecida e também rompida – no decorrer do ano.
Assim, considerando-se o universo dos 39,2 milhões
de vínculos celetistas que representavam o estoque
da RAIS, em 2015, um terço referia-se a contratos que
foram realizados neste mesmo ano (33,2%). Entre os
desligados no ano, esse percentual é ainda maior, em
cerca de 39%. A ordem de grandeza desse percentual é

19  DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.


Movimentação no mercado de trabalho: rotatividade, intermediação e proteção ao
emprego, p. 83.
20  DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
Movimentação no mercado de trabalho: rotatividade, intermediação e proteção ao
emprego, p. 84.

181
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

indicador de que um volume considerável dos empregos


não atinge sequer a duração de um ano completo21.

Outro estudo conclui que o Brasil “é o atual campeão mundial


em rotatividade de funcionários”22, alcançando o maior índice tur-
nover (taxa de rotatividade dos trabalhadores em uma empresa)23.
Dados de 2021, por sua vez, indicam que esse índice aumentou em
82% no Brasil nos últimos 3 (três) anos, enquanto no resto do mundo
o percentual alcançou apenas 32%24.
Esses estudos, pois, revelam que, no mundo concreto da re-
alidade laboral, a proteção contra despedida arbitrária e sem justa
causa, com pagamento de apenas 40% dos depósitos do FGTS, con-
forme previsto no art. 10, inciso I, do ADCT, há muitos anos é inócua,
ineficiente e ineficaz para que se torne viável o exercício do direito
social constitucional assegurado no inciso I do art. 7º da CF.
Essa desproteção ao emprego, por sua vez, tem conduzido
ao crescimento da informalidade, como adverte estudo da Fundação
Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE). E “[o] trabalho informal
sempre vem associado à ideia de precariedade deste tipo de ocupa-
ção. Isto não deixa de ser verdade...”25. E esse índice somente tem se
elevado nos últimos anos, alcançando cerca de 40,4% da população
economicamente ativa já em janeiro de 202226.
Precariedade esta que implica prejuízo não apenas em
relação ao trabalhador. Na realidade, a desproteção ineficiente do
emprego induz não só a precariedade, como “seu lado mais perverso

21  DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.


Movimentação no mercado de trabalho: rotatividade, intermediação e proteção ao
emprego, p. 88.
22  BISPO, Nathaly. Brasil tem o maior índice de rotatividade.
23  XERPAY. Índice de turnover no Brasil: o desafio da retenção nas empresas brasileiras
24  BARRETO, Rodrigo Barreto. O turnover está aumentando nas empresas
25  CHAHAD, José Paulo Zeetano. O mercado de trabalho brasileiro – 2012/2019:
retrospectiva e perspectivas, p. 15
26  ALMEIDA, Pauline. Informalidade volta a crescer e ajuda a derrubar renda no país,
aponta IBGE.

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MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

seja, talvez, o impacto que causa nas contas nacionais. De fato, seja
pela sonegação ou pela ausência de legislação, ela impacta de forma
significativa o PIB”27.
Ou seja, a regra transitória de proteção contra a despedida
arbitrária ou sem justa causa (pagar 40% dos depósitos do FGTS)
sequer, no mundo dos fatos e da atual realidade socioeconômica bra-
sileira, transcorrido mais de 30 anos da promulgação da Constituição
de 1988, não se revela capaz e eficiente ao fim que busca atingir, isto
é, proteger o trabalhador em seu posto de trabalho, valorizando o
trabalho humano e buscando o pleno emprego.
A nova realidade brasileira e os dados estatísticos revelam
que, com o passar do tempo, a regra transitória criada com o objetivo
de proteger, ainda que provisoriamente, a relação de emprego contra
a despedida arbitrária ou sem justa causa, tornou-se insuficiente ao
que se propõe, isto é, a proteger o direito social fundamental (ao
emprego contra despedida arbitrária ou sem justa causa).
A partir desse entendimento se pode, então, ter que o legis-
lador infraconstitucional se revela omisso, modificadas as condições
socioeconômicas brasileira, ao não regular de modo eficiente o
direito fundamental à proteção da relação de emprego contra a des-
pedida arbitrária e sem justa causa, violando o princípio da proibição
de proteção insuficiente ao direito fundamental28.
Pode-se, ainda, nesta mesma trilha, afirmar que a própria re-
gra transitória, hoje, revela-se inconstitucional, por regular de modo
ineficiente, considerando a mudança das condições históricas, ainda
que de forma temporária, a proteção ao direito fundamental29.

27  CHAHAD, José Paulo Zeetano. O mercado de trabalho brasileiro – 2012/2019:


retrospectiva e perspectivas, p. 16
28  SILVA, Jorge Pereira da Silva. Deveres do Estado de proteção de direitos
fundamentais, p. 585-634.
29  BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais?

183
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

8. DA MORA ABUSIVA E DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL

De tudo que já foi exposto se pode afirmar que essa situação


de omissão, se era aceitável transcorrido poucos anos a contar da
promulgação da CF de 1998, levando em conta a regra transitória,
revela-se hoje, mais de 30 anos depois, verdadeiramente abusiva, a
demandar a atuação do Judiciário para se evitar a vitaliciedade da
conduta constitucionalmente omissa.
É certo que se pode alegar, como entende(ia) o STF, que

o legislador constituinte - tendo presente a necessi-


dade de afastar os efeitos prejudiciais derivados de
eventual inadimplemento da prestação legislativa
reclamada pela norma inscrita no art. 7º, n. I, da Carta
Política -, formulou, ele próprio, solução normativa
destinada a suprir, ainda que transitoriamente, a inércia
do Estado na concretização do seu dever de editar a lei
complementar exigida por aquele preceito constitucio-
nal. Com efeito, o ADCT/88 veiculou cláusula destinada
a colmatar a eventual omissão do Poder Público na
adoção concreta de medidas tendentes a viabilizar a tu-
tela jurídica da relação de emprego contra despedidas
arbitrárias ou abusivas30.

Contudo, o abuso do legislador se extrai da sua omissão em


não regulamentar o texto constitucional, valendo-se da regra tran-
sitória para justificar sua passividade. O abuso se revela quando não
se produz a norma necessária para tornar definitivo algo que apenas
está regulado de modo transitório.
E esse entendimento acabou por ser consagrado pelo STF ao
julgar a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO) n.
30. Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, em

30  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Mandado de injunção n. 487. Rel. Min. Celso de
Mello. Julgado em 22 jun. 1995.

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O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

julgamento unânime, a omissão legislativa na regulamentação do


disposto no art. 91, caput e parágrafos, do ADCT, que remete à edição
de lei complementar a definição quanto a compensação de prejuízos
experimentados por Estados, pelo Distrito Federal e Municípios em
razão de desoneração tributária.
Decidiu-se que a regra provisória estabelecida do ADCT “não
configura razão suficiente para afastar a omissão inconstitucional”.
Conforme dito pelo Ministro Relator Gilmar Mendes, “o sentido de
provisoriedade estampado no teor do § 2º do art. 91 só confirma a
omissão do Congresso Nacional na matéria. Não tem o condão de
convalidá-la”31.
Já no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade por
omissão (ADO) n. 20, em voto divergente do relator, o Min. Edson
Fachin, ao tratar da omissão quanto a não regulamentação da licença
paternidade, apontou que

“Não obstante se reconheça a complexidade e densi-


dade da questão posta nos presentes autos, não creio
ser possível enfrentá-la pelo argumento da inexistência
da omissão inconstitucional pela suficiência normativa
do artigo 10, §1°, do ADCT, nem muito menos pela exis-
tência de legislação infraconstitucional setorial – com
especial destaque para a Lei Federal n. 13.257/2016 –,
que regula parcialmente o tema”32.

O Min. Edson Fachin ainda destacou que

“Passados mais de 30 anos da promulgação da Consti-


tuição, não pode ser considerado suficiente o disposto
no artigo 10, §1°, do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias. Como também não há uma regulação

31  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por


omissão n. 25. Rel. Min. Gilmar Mendes. Julgado em 30 nov. 2016.
32  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por
omissão n. 20. Min. Edson Fachin. Voto divergente.

185
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

plena pelas leis especiais que cuidam, de forma setorial,


do direito à licença-paternidade para algumas cate-
gorias profissionais. Todos os cidadãos brasileiros,
indistintamente, devem gozar do direito fundamental à
licença-paternidade”33.

Entendimento este, por sua vez, também sustentado pelo


Min. Dias Toffoli, que, em voto divergente na ADO n. 25, afirmou que

“a previsão de um prazo transitório no artigo 10, § 1º,


do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
para o gozo da licença paternidade, não somente não
elide a alegação da existência de uma omissão incons-
titucional como também a confirma, dada o enorme
lapso temporal decorrido sem que o legislador tenha
cumprido o dever de regulamentar o art. 7°, inc. XIX,
da Constituição de 1988. Tampouco a existência de
projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional
destinados a regulamentar esse preceito constitucional
afastam a existência de omissão”34.

O Min. Dias Toffoli ainda ressaltou, ao tratar da licença pater-


nidade, cujo entendimento se aplica literalmente à proteção contra
despedida arbitrária ou sem justa causa, que

“já transcorreram mais de 32 (trinta e dois) anos sem


que tenha havido a regulamentação do tema pelo Poder
Legislativo. Em que pese existir norma transitória fixan-
do um período para o gozo da licença paternidade – a
qual permite que não seja inviabilizado por completo o
exercício desse direito –, a subsistência, por tão longo
período, de regra que deveria ostentar natureza tran-

33  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por


omissão n. 20. Min. Edson Fachin. Voto divergente.
34  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por
omissão n. 20. Min. Dias Toffoli. Voto divergente.

186
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

sitória evidencia a omissão inconstitucional do Poder


Legislativo em deliberar sobre a questão”35.

Diga-se, ainda, que, na ADI n. 3.682, o STF decidiu que a exis-


tência de anteprojetos de lei em tramitação no Congresso Nacional
não impede de se reconhecer a omissão inconstitucional quanto ao
dever constitucional de legislar36.
E, in casu, em relação à proteção contra despedida arbitrária
ou sem justa causa, a omissão resta ainda mais caracterizada pelo
fato de que a regra transitória se revelar verdadeiramente dis-
pensável diante da consolidação da legislação infraconstitucional
produzida nesses mais de 30 anos de vigência da CF de 1988. Ou,
como dito pelo Min. Dias Toffoli em relação à licença paternidade,
no que se aplica ao caso em comento, a regra transitória se tornou
desatualizada diante da mudança da realidade transcorrido mais de
30 anos da promulgação da Constituição de 1988.

“O tempo transcorrido desde a promulgação da Consti-


tuição Federal de 1988 até os dias atuais tornou a regra
transitória do art. 10, § 1º, do ADCT desatualizada, pois
o exíguo prazo de 5 (cinco) dias para o gozo da licença
paternidade não mais se compatibiliza com a realidade
das famílias brasileiras, sob diversos aspectos, visto
que a ideia de família não é mais a mesma que existia
em 1988”37.

Da mesma forma, pode-se afirmar que a regra transitória se


revela ineficaz para o fim que se busca, ou seja, à de proteção contra a
despedida arbitrária ou sem justa causa, pois, na prática, ela é inócua,

35  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por


omissão n. 20. Min. Dias Toffoli. Voto divergente.
36  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade n. 3.682.
Rel. Gilmar Mendes. Julgado em 09 maio 2007.
37  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade por
omissão n. 20. Min. Dias Toffoli. Voto divergente.

187
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

já que não impeditiva do agir que se quer evitar, isto é, a despedida


desmotivada, a revelar a conduta abusiva do legislador infraconsti-
tucional omisso.
Outrossim, a mora abusiva se revela ainda pelo fato de não
ter sido regulamentado os “outros direitos” de proteção contra a
despedida arbitrária ou sem justa causa.
Vejam, neste sentido, que o inciso I do art. 7º da CF dispõe que
o legislador infraconstitucional deverá regulamentar a “indenização
compensatória, dentre outros direitos”. A indenização compensató-
ria até que se pode dizer que, transitoriamente, está assegurado, mas
esses “outros direitos” não estão previstos em qualquer dispositivo
legal. Eles podem ser, por exemplo, o direito à manutenção do plano
de saúde por determinado período após a despedida arbitrária ou
sem justa causa, o direito a recontratação preferencial, o direito ao
custeio de curso de requalificação, etc.
Assim é que, transcorrido mais de 30 anos da promulgação
da CF de 1998, não se pode mais argumentar que inexiste a omissão
diante da regra transitória do art. 10 do ADCT. Isso porque, a se
assim concluir e em assim persistir, estar-se-á diante de verdadeira
mutação constitucional. Isso porque, a regra do art. 10 do ADCT, que
deveria ser transitória, passaria a ter natureza de regra definitiva,
colocando-se mesmo no lugar do inciso I do art. 7º da CF.
Tudo isso, pois, revela que é inexorável concluir que o legisla-
dor infraconstitucional se encontra em mora para com os trabalha-
dores brasileiros ao não regulamentar o disposto no inciso I do art. 7º
da CF de 1988.
Logo, pode concluir-se que o legislador constitucional, com
o estabelecido no inciso I do art. 7º da Constituição Federal de 1988,
quer assegurar a proteção eficaz e imediata do direito à proteção
contra a despedida arbitrária ou sem justa causa.

188
MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

A regra transitória posta no inciso I do art. 10 do Ato das Dis-


posições Constitucionais Transitórias (ADCT) cumpriu seu papel de
norma ao tornar eficaz de modo imediato a garantia constitucional
referida no inciso I do art. 7º da CF até determinado período após a
promulgação da Carta Magna de 1988.
Contudo, transcorridos mais de 33 (trinta e três) anos desde a
promulgação da Constituição Federal de 1988, considerando, ainda,
a mudança das condições socioeconômicas brasileiras, essa prote-
ção transitória se revela inócua, ineficiente e ineficaz ao fim que se
busca alcançar com a garantia do seu art. 7º, inciso I, que é a proteção
contra a despedia arbitrária e sem justa causa.
A conduta omissiva do legislador infraconstitucional em não
regulamentar essa garantia social-trabalhista fundamental, trans-
corridos mais de 33 (trinta e três) anos da promulgação da Constitui-
ção de 1988, ainda que diante da regra do art. 10, inciso I, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), revela-se abusiva,
já que transforma uma norma que deveria ser transitória, em disposi-
tivo a reger, na prática, de modo definitivo, perene e com natureza de
regra geral, a proteção constitucional assegurada no inciso I do art.
7º da Carta Magna brasileira.
A omissão do legislador infraconstitucional, assim, torna
inviável o exercício do direito constitucional à proteção contra a des-
pedida arbitrária e sem justa causa, de modo a atrair a possibilidade
da impetração do mandado de injunção para que seja concretizada,
de modo eficaz, eficiente e perene, a garantia constitucional assegu-
rada aos trabalhadores.

189
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

9. CONCLUSÃO

A partir da pesquisa revelada acima se pode concluir que o


legislador constitucional, com o estabelecido no inciso I do art. 7º da
CF, quer assegurar a proteção eficaz e imediata do direito à proteção
contra a despedida arbitrária e imediata.
A regra transitória posta no inciso I do art. 10 do Ato das Dis-
posições Constitucionais Transitórias cumpriu seu papel de norma a
tornar eficaz de modo imediato a garantia constitucional referida no
inciso I do art. 7º da CF até determinado período após a promulgação
da Carta Magna de 1988.
Contudo, transcorrido mais de 30 anos desde a promulgação
da CF, considerando, ainda, a mudança das condições socioeconômi-
cas brasileiras, essa proteção transitória se revela inócua, ineficiente
e ineficaz ao fim que se busca alcançar com a garantia do art. 7º,
inciso I, da CF, que é a proteção contra a despedia arbitrária e sem
justa causa.
A conduta omissiva do legislador infraconstitucional em não
regulamentar essa garantia social-trabalhista fundamental, trans-
corrido mais de 30 anos da CF de 1988, ainda que diante da regra do
art. 10, inciso I, do ADCT, revela-se abusiva, já que transforma uma
norma que deveria ser transitória, em dispositivo a reger, na prática,
de modo definitivo e perene a proteção constitucional.
A omissão do legislador infraconstitucional, assim, torna
inviável o exercício do direito constitucional à proteção contra a des-
pedida arbitrária e sem justa causa, de modo a atrair a possibilidade
da impetração do mandado de injunção para que seja concretizado,
de modo eficaz, eficiente e perene, a garantia constitucional assegu-
rada aos trabalhadores.

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MANDADO DE INJUNÇÃO E AS DISPOSIÇÕES TRANSITÓRIAS MAIS DE 30 ANOS DEPOIS DA CF/88.
O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

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191
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

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192
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O CASO DA PROTEÇÃO CONTRA DESPEDIDA ARBITRÁRIA OU SEM JUSTA CAUSA

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193
194
O FGTS E O VALOR
DA INDENIZAÇÃO
COMPENSATÓRIA NA
DESPEDIDA SEM JUSTA CAUSA
OU ARBITRÁRIA

Edilton Meireles1

1  Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor pela PUC/


SP. Desembargador do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região, pro-
fessor adjunto da Universidade Católica do Salvador (UCSal) e professor associado da
Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBa).
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

1. INTRODUÇÃO

A atual Constituição Federal assegura aos trabalhadores a


proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa ao lado do
fundo de garantia do tempo de serviço (FGTS).
Dois são os direitos fundamentais trabalhistas assegurados
na Constituição. Contudo, talvez por conta da regra existente na
Constituição anterior, que apenas previa em favor dos trabalhadores
um ou outro direito (indenização por tempo de serviço ou FGTS), a
doutrina brasileira há mais de 30 (trinta) anos confunde esses insti-
tutos trabalhistas. Neste trabalho, no entanto, procura-se apontar
as suas distinções e os direitos assegurados aos trabalhadores.
Na pesquisa será utilizado o método dedutivo com revisão
da literatura, interpretação de textos normativos e apreciação da
jurisprudência.

2. DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA

É sabido que o inciso I do art. 7º da CF de 1988 assegura aos


trabalhadores a “relação de emprego protegida contra despedida
arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que
preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”.
A CF protege o emprego. Contudo, estabeleceu que essa
garantia constitucional deve ser regulada por lei complementar, que
“preverá” (melhor dizendo: pode prever) indenização compensatória
em caso de despedida arbitrária ou sem justa causa.
O próprio constituinte, porém, no art. 10 dos Atos das Dispo-
sições Constitucionais Transitórias (ADCT´s) estabeleceu que “Até
que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da
Constituição”:

196
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

I - fica limitada a proteção nele referida ao aumento,


para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º,
“caput” e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966;

II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa:

a) do empregado eleito para cargo de direção de co-


missões internas de prevenção de acidentes, desde o
registro de sua candidatura até um ano após o final de
seu mandato;

b) da empregada gestante, desde a confirmação da


gravidez até cinco meses após o parto.        

Vejam que, transitoriamente, o constituinte regulamentou


o inciso I do art. 7º da CF limitando a proteção do emprego contra
a despedida arbitrária e sem justa causa ao pagamento de uma
indenização compensatória “ao aumento, para quatro vezes, da
porcentagem prevista no art. 6º, “caput” e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13
de setembro de 1966”.
Ao lado dessa proteção indenizatória, ainda assegurou a
estabilidade temporária ao “empregado eleito para cargo de direção
de comissões internas de prevenção de acidentes, desde o registro
de sua candidatura até um ano após o final de seu mandato”, e da
“da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco
meses após o parto”.        
Aqui, porém, apenas interessa o disposto no inciso I do art. 10
dos ADCT´s.
Vê-se que, por esse dispositivo, o constituinte, disciplinando
transitoriamente o inciso I do art. 7º, da CF assegurou ao empregado
despedida de forma arbitrária ou sem justa causa o pagamento de
uma indenização compensatória, em valor correspondente a quatro
vezes “da porcentagem prevista no art. 6º, “caput” e § 1º, da Lei nº
5.107, de 13 de setembro de 1966”, que disciplinava o FGTS.

197
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Vale lembrar que a Lei n. 5.107/66 dispunha nesse dispositivo


que

“Art. 6º. Ocorrendo rescisão do contrato de trabalho,


por parte da empresa, sem justa causa, ficará esta
obrigada a pagar diretamente ao empregado optante
os valores relativos aos depósitos referentes ao mês
da rescisão e ao imediatamente anterior, que ainda não
houver sido recolhido ao Banco Depositário, além da
importância igual a 10% (dez por cento) desses valores
e do montante dos depósitos da correção monetária e
dos juros capitalizados na sua conta vinculada, corres-
pondentes ao período de trabalho na empresa.

§ 1º Quando ocorrer despedida por culpa recíproca ou


força maior, reconhecidas pela Justiça do Trabalho, o
percentual de que trata este artigo será de 5% (cinco
por cento), obrigada a empresa aos demais pagamen-
tos nele previstos”

Verifica-se, então, que, a partir da remissão à Lei n. 5.107/66,


quis o constituinte transitório fixar a indenização compensatória
quando da despedida arbitrária ou sem justa causa em quantia equi-
valente a quatro vezes ao acréscimo devido a título de FGTS quando
da despedida do trabalhador de forma desmotivada.
Aqui, porém, deve ficar bem claro que o constituinte transitó-
rio, no art. 10 dos ADCT´s não disciplinou o FGTS, mas, sim, a indeni-
zação compensatória mencionada no inciso I do art. 7º da CF. E para
ficar claro, a CF de 1988 tanto assegurada o FGTS (inciso III do art.
7º da CF), como a proteção contra despedida arbitrária ou sem justa
causa, podendo prever o pagamento de indenização compensatória
(inciso I do art. 7º da CF).
Esse regramento (assegurando os dois benefícios), por sua
vez, difere do texto constitucional anterior, que apenas previa, em

198
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

favor do trabalhador, o direito à “estabilidade, com indenização ao


trabalhador despedido, ou fundo de garantia equivalente” (art. 165,
inciso XIII, da CF/67, com redação dada pela EC n. 1/69).
Antes, portanto, ou se assegurado o emprego, com pagamen-
to de indenização, ou se garantia o FGTS. A CF de 1988, no entanto,
assegura ambos os benefícios: a proteção do emprego, com possi-
bilidade de pagamento de indenização compensatória, e o FGTS. O
que, portanto, o inciso I do art. 10 dos ADCT´s disciplina é a proteção
contra despedida arbitrária ou sem justa causa assegurada no inciso I
do art. 7º da CF de 1988.

3. DO FGTS

Como dito, ao lado dessa proteção contra despedida arbi-


trária ou sem justa causa, o legislador constitucional assegurou, en-
quanto direito fundamental dos trabalhadores, o fundo de garantia
do tempo de serviço (FGTS).
A Constituição, no entanto, não aponta o que seria esse
“fundo”. Ele, na realidade, acabou por se apropriar de um instituto
previsto originalmente em lei ordinária (Lei n. 5.107/66), editada
antes mesmo da promulgação da CF de 1967, a partir de quando,
então, quando de sua promulgação, o FGTS passou a gozar de status
constitucional. Daí porque cumpre a lei ordinária disciplinar o FGTS,
definindo-o, dando conteúdo e concretizando, no plano jurídico, o
direito fundamental respectivo.
Atualmente o FGTS está regulamentado na Lei n. 8.036/90,
que define o direito do trabalhador como sendo “a importância
correspondente a oito por cento da remuneração paga ou devida,
..., a cada trabalhador, incluídas na remuneração as parcelas de que
tratam os art. 457 e art. 458 da Consolidação das Leis do Trabalho,
aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943, e a Gratificação de
Natal de que trata a Lei nº 4.090, de 13 de julho de 1962” (art. 15).

199
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Ou seja, o FGTS, para a generalidade dos trabalhadores,


corresponde a 8% de sua remuneração mensal. Mas não só. A Lei n.
8.036/90 define, ainda, que o FGTS também é composto, “na hipó-
tese de despedida pelo empregador sem justa causa”, de uma “impor-
tância igual a quarenta por cento do montante de todos os depósitos
realizados na conta vinculada durante a vigência do contrato de
trabalho, atualizados monetariamente e acrescidos dos respectivos
juros” (§ 1º do art. 18 da Lei n. 8.036/90) ou da quantia equivalente
a 20% de todos os depósitos “quando ocorrer despedida por culpa
recíproca ou força maior” (§ 2º, do art. 18 da Lei n. 8.036/90).
Vejam, então, aqui, que o legislador ordinário, regulando o di-
reito fundamental trabalhista do FGTS definiu que este corresponde
a importância de 8% da remuneração, acrescido de 40% se ocorrer
a despedida sem justa causa ou acrescido de apenas 20% “quando
ocorrer despedida por culpa recíproca ou força maior”.
Destaque-se, ainda, que esse acréscimo (de 40% ou de 20%)
constitui o próprio FGTS. É uma parte do FGTS. Não é multa, nem
indenização, é, na realidade, o próprio FGTS. Logo, essa parcela
acrescida (de 40% ou de 20%) em caso de despedida arbitrária ou
sem justa causa não é a indenização compensatória prevista no in-
ciso I do art. 7º da CF, nem aquela referida no inciso I do art. 10 dos
ADCT da CF. Isso porque a Lei n. 8.036/90 apenas regula o FGTS.
Ou seja, essa parcela de 40% não é a mesma disposta no
inciso I do art. 10 do ADCT. Logo, ao trabalhador, quanto despedido
sem justa causa ou de forma arbitrária, tanto é devido o acréscimo
do FGTS, como a indenização prevista no inciso I do art. 10 dos ADCT
(40% do FGTS, mais indenização compensatória).
E para tanto concluir se deve ter em vista que, como dito an-
teriormente, o FGTS (disciplinado em lei ordinária) não se confunde
com a indenização compensatória em face da despedida arbitrária ou

200
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

sem justa causa. Logo, os dois benefícios são assegurados de forma


cumulada.
Diga-se, ainda, que mesmo que se afirme que o acréscimo
devido a título de FGTS, quando da despedida sem justa causa, tenha
natureza de indenização, como equivocadamente se refere o inciso
III do art. 611-B da CLT, com a redação dada pela Lei n. 13.467/17 (“III -
valor dos depósitos mensais e da indenização rescisória do Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)”), esta não se confunde com a
indenização compensatória assegurada na Constituição.   
Não fosse isso, é preciso interpretar a Lei n. 8.036/90 e o
inciso III do art. 611-B da CLT conforme a Constituição. Logo, se se
entender que estes dispositivos, ao dispor sobre o acréscimo de 40%
do FGTS, estaria regulando a indenização compensatória a que se
refere o inciso I do art. 7º da CF, ter-se-ia que aquelas normas seriam
inconstitucionais, pois elas têm natureza de lei ordinária e este
dispositivo constitucional dispõe que a proteção contra despedida
arbitrária deva ser regulada por lei complementar. Logo, dando a
interpretação conforme a CF, tem-se que a Lei n. 8.036/90 e o inciso
III do art. 611-B da CLT apenas regulam o FGTS e não a indenização
compensatória pela despedida arbitrária ou sem justa causa, de
modo que as duas parcelas seriam devidas.
Mas não só. Essa interpretação fica bem clara quando se tem
em mente a Lei Complementar n. 150, que dispõe sobre o contrato do
empregado doméstico. Vejam que a LC n. 150/15, ao lado de assegurar
aos domésticos o FGTS correspondente a 8% de sua remuneração
mensal (art. 34, inciso IV), dispõe que “o empregador doméstico
depositará a importância de 3,2% (três inteiros e dois décimos por
cento) sobre a remuneração devida, no mês anterior, a cada empre-
gado, destinada ao pagamento da indenização compensatória da
perda do emprego, sem justa causa ou por culpa do empregador, não

201
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

se aplicando ao empregado doméstico o disposto nos §§ 1º a 3º do


art. 18 da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990” (art. 22).
Observem que este dispositivo da lei complementar, regulan-
do o inciso I do art. 7º da CF em relação somente aos domésticos,
dispôs que, a título de indenização compensatória pela perda do
emprego, “sem justa causa ou por culpa do empregador”, é devida
uma “indenização compensatória”, correspondente a 3,2% da re-
muneração do trabalhador. Essa parcela, pois, não tem natureza de
FGTS, mas, sim, de indenização compensatória em face da despedida
arbitrária ou sem justa causa dos domésticos, tal como prevista no
inciso I do art. 7º da CF.
Vejam que essa LC n. 150/15, em relação aos domésticos, está
regulando a proteção contra despedia arbitrária ou sem justa causa,
referida no inciso I do art. 7º da CF. Logo, ao doméstico não se aplica,
desde então, a regra transitória disposta no inciso I do art. 10 dos ADCT.
E mais. Vejam que este mesmo dispositivo da LC n. 150/15
dispõe que aos domésticos não se aplica o “disposto nos §§ 1º a 3º
do art. 18 da Lei no 8.036, de 11 de maio de 1990”. E o que este outro
dispositivo legal dispõe é, justamente, sobre a parcela do FGTS cor-
respondente a 40% devida aos demais trabalhadores quando des-
pedidos de forma arbitrária ou sem justa causa. Ou seja, enquanto
à generalidade dos empregados é devido i) o FGTS de 8%, acrescido
de 40% (Lei n. 8.036/90), mais ii) a indenização compensatória do
inciso I do art. 10 dos ADCT, aos domésticos somente é devido i) o
FGTS correspondente a 8% da remuneração (LC n. 150/15), mais ii)
a indenização compensatória regulada no art. 22 da LC n. 150/2015.
Pode-se, assim, afirmar que a parcela do FGTS correspon-
dente a 40% dos seus depósitos, integra o conteúdo do direito
fundamento trabalhista assegurado no inciso III do art. 7º da CF (do
próprio FGTS), enquanto a indenização compensatória referida no
inciso I do art. 10 dos ADCT é a proteção, transitória, a que se refere
o inciso I do art. 7º da CF.

202
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

Dois benefícios distintos, portanto.


Destaque-se, ainda, que a parcela dos 40 (ou 20%) do FGTS,
devida quando da despedida sem justa causa, deve ser depositada
na conta vinculada do trabalhador (art. 18 da Lei n. 8.036/90). Já a
indenização compensatória referida no inciso I do art. 10 dos ADCT
deve ser paga diretamente ao trabalhador (e não depositado na con-
ta vinculada do FGTS).
A questão, porém, duvidosa se tem quanto ao valor dessa
indenização compensatória.

4. DO VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA

O constituinte, ao dispor transitoriamente sobre a proteção


ao emprego, prevista no inciso I do art. 7º da CF, estabeleceu que “até
que seja promulgada a lei complementar”, aquela (proteção) “fica
limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da
porcentagem prevista no art. 6º, “caput” e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13
de setembro de 1966” (inciso I do art. 10 dos ADCT).
De logo se reitere que esse dispositivo transitório regula a
proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa prevista
no inciso I do art. 7º da CF. Ele, portanto, não regula o FGTS, benefício
este assegurado, acumuladamente, em outra cláusula constitucional
(inciso III do art. 7º da CF).
Ao estabelecer qual seria a proteção, o constituinte transitó-
rio, no entanto, estabeleceu que a proteção seria limita ao pagamento
de uma parcela indenizatória correspondente a quatro vezes a “por-
centagem prevista no art. 6º, “caput” e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de
setembro de 1966”.
Ou seja, estabeleceu que a indenização corresponderia a 40%
dos depósitos do FGTS em caso de despedida sem justa causa ou de
20% “quando ocorrer despedida por culpa recíproca ou força maior”,
já que a Lei n. 5.107/66, em seu artigo 6º, caput e 1º, dispunha que seria

203
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

devido o acrescido de 10% ao FGTS em caso de despedida injusta e


de 5% em caso de despedida por culpa recíproca ou força maior.
Mas – repetimos -, vejam que a CF, nos seus ADCT, não re-
gulou o FGTS, elevando a parcela que era de 10% para 40%. O que
o constituinte fez, na realidade, foi fixar qual seria o valor da indeni-
zação compensatória em caso de despedida arbitrária ou sem justa
causa. E para tanto se valeu da técnica legislativa de reenvio ou re-
missão (ou norma indireta ou de devolução)2. Tal ocorre quando um
texto normativo (chamada de norma de remissão) se refere a outra
norma (objeto da remissão), que, por sua vez, passa a fazer parte do
conteúdo daquela outra (norma de remissão). Ou seja, uma norma
remete a outra que passa a fazer parte daquela primeira, em função
integradora3. Diz-se, assim, ser norma remissiva, de remissão ou
indireta aquela na qual o legislador, ao invés de regular diretamente
a questão de direito em causa, manda aplicar outra norma, contidas
no mesmo (remissão interna) ou em outro diploma legal (remissão
externa)4 ou, ainda, intra-sistemática (remissão à norma integrante
do mesmo ordenamento jurídico) ou extra-sistemática (remissão à
norma de outro sistema jurídico – internacional ou estrangeiro)5.
A questão controvertida que se apresenta nestes casos é
quando a norma referida é revogada ou alterada.
Para tratar essa questão, no entanto, é preciso distinguir duas
situações. A primeira é aquela na qual a norma referida é revogada
sem que outra seja editada tratando da mesma matéria; a segunda
ocorre quando apenas há uma modificação no texto da lei referida,
ainda que com a revogação da norma anterior e edição de outra

2  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo de


Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 191.
3  RODRIGUES, Telmo Coutinho. “Com as devidas adaptações” sobre os comandos de
modificação nas normas remissivas como fonte de discricionariedade, p. 612.
4  MENDES, Gilmar. Questões fundamentais de técnica legislativa, p. 18.
5  MACHADO, João Baptista. Introdução ao direito e ao discurso legitimador, p. 105-
108.

204
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

tratando da mesma matéria. E, neste segundo caso, tem-se, ainda, a


hipótese da lei nova tratar de forma idêntica, como dispor da matéria
de forma diversa.
Aqui, neste trabalho, interessa essa última situação. Isto por-
que o inciso I do art. 10 dos ADCT faz remissão ao art. 6º, caput e § 1º,
da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966. Ocorre que este disposi-
tivo foi revogado pela Lei n. 7.839/89, que passou a tratar da matéria
mesma de forma diversa. Mas esta lei acabou sendo revogada pela
Lei n. 8.036/90, sendo que esta regulou a mesma matéria de forma
idêntica à Lei n. 7.839/89, mas de forma diversa ao disposto no art.
6º, caput e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966.
A questão então que se coloca é: a revogação da Lei n. 5.107,
com a disciplina da mesma matéria regulada no seu art. 6º, caput e
§ 1º, de forma diversa pelas leis que lhe sucederam, alterou o valor
da indenização a que se refere o art. 10, inciso I, dos ADCT? Ou seja,
a base de cálculos desta indenização é 10 ou 40% dos depósitos do
FGTS, multiplicado por quatro?
Essa indagação se revela pertinente, pois a se ter a remissão
como estática, a indenização compensatória em face da despedida
arbitrária corresponderá a 40% dos depósitos do FGTS (“aumento,
para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, “caput” e §
1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966”). Se se entender, no
entanto, que a remissão é dinâmica, ter-se-á que essa indenização,
desde a edição da Lei n. 7.839/89, passou a corresponder a 160% dos
depósitos do FGTS (o que seria, atualmente: “aumento, para quatro
vezes, da porcentagem prevista no art. 18, § 1º, da Lei n. 8.036/90”).
E aqui cumpre lembrar que a remissão é estática (ou material)
quando é feita para certa norma, tendo em conta seu conteúdo e que,
por isso mesmo, seria imutável. Já a remissão dinâmica (ou formal)
é aquela que é feita em relação a certa norma, mas apenas tendo em
conta que ela, em certo momento, regula determinada matéria, acei-

205
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

tando-se, porém, seu novo conteúdo quando posteriormente alterado.


Em resumo, a remissão é estática quando é indiferente às alterações
da norma referida que se possam vir a suceder no tempo e dinâmica
quando a norma de remissão for receptiva a essas alterações6. Neste
segundo caso, a norma de remissão (ou referente) seria dependente da
outra (a referida), “ao menos de um ponto de vista textual”7.
A doutrina portuguesa adota o entendimento de que, em
regra, a remissão procedida pelo legislador é dinâmica. Já aquela re-
ferida pelas partes num negócio jurídico seria estática. Isto porque,
no caso dos negócios jurídicos, as partes fazem a remissão à lei que
conhecem e escolheram. Logo, ela é estática. Já o legislador “remete
para a melhor solução existente: a escolha é formal e logo dinâmica,
variando com as normas ad quem”8.
Ou seja, conforme remissão estática, a revogação ou alteração
do conteúdo da norma referida não altera o sentido da norma de remis-
são. Ulteriores alterações seriam irrelevantes para os fins tratados na
norma de remissão9. Neste caso, então, a norma referida continuaria
a “viger” para fins de aplicação da norma de remissão. Ou, em outras
palavras, ter-se-ia o conteúdo da norma referida se incorporado ao
texto da norma de remissão de modo que a alteração ou revogação
daquela (referida) não alteraria esta outra (norma de remissão).
Já na remissão dinâmica a alteração do conteúdo da norma
referida é incorporada à norma de remissão, pois o que se busca
apenas é se referir à matéria como tratada pela norma referida,
aceitando-se suas modificações posteriores. Ou seja, na remissão
dinâmica a norma de remissão se adapta ao novo texto vigente da

6  MENDES, João de Castro. Introdução ao estudo do direito, p.


7  TAVARES, André Ramos. As normas remissivas nas constituições subnacionais e a
constituição total invertida, p. 306.
8  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo de
Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 193.
9  SALVADOR CODERCH, Pablo. La Disposición Final Tercera de la Compilación
catalana y la técnica legislativa de las remisiones estáticas, p. 985.

206
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

norma referida10, acolhendo a nova redação vigente em cada mo-


mento de aplicação da norma de remissão11. Isto porque, neste caso,
a norma de remissão, quando se refere a outra, não visa, em regra,
a regulamentação originária desta, mas, sim, o regime que estiver
disciplinado no momento em que haja de se proceder na aplicação
daquela (da norma de remissão).
A regra, por sua vez, é ter a remissão como dinâmica12. Isto
porque, em geral, não se quer “congelar” no tempo a matéria como
tratada no texto referido. A norma referida, assim, ao ser alterada,
afetaria também o conteúdo da norma de remissão, que seria fle-
xível, aceitando a nova redação tão logo se produz a modificação
da lei referida sem necessidade de uma nova decisão do legislador
originariamente competente para introduzir a alteração na norma
de remissão13.
António Menezes Cordeiro menciona, então, que a remissão
se justifica por duas razões. A primeira seria

“a economia de textos: a remissão dinâmica torna tal


economia possível porque permite, com a alteração
de um simples texto, modificar todos os outros; uma
remissão estática, pelo contrário, mantendo textos
revogados parcialmente em vida, redundaria numa
complexidade pior do que a evitada com a remissão
inicial” 14.

10  CARBONELL, Miguel. Los objetos de las leyes, los reenvíos legislativos y las
derogaciones tácitas. Notas de técnica legislativa. Boletín Mexicano De Derecho
Comparado, n. 89, 1997, p. 438.
11  SALVADOR CODERCH, Pablo. La Disposición Final Tercera de la Compilación
catalana y la técnica legislativa de las remisiones estáticas, p. 985.
12  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo
de Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 192.
13  SALVADOR CODERCH, Pablo. La Disposición Final Tercera de la Compilación
catalana y la técnica legislativa de las remisiones estáticas, p. 986.
14  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo
de Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 194.

207
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Além disso, ela se justifica em face da

“igualdade de institutos e soluções: a remissão equivale


a um juízo de valor de igualdade; num certo momento,
o legislador entendeu que as razões que justificam um
regime num ponto o justificavam também noutro pon-
to; fez a remissão; quando essas mesmas razões se alte-
rem, a modificação a introduzir no regime do primeiro
ponto deverá sê-lo também no outro. A manutenção da
igualdade assim o exige” 15.

Remissões dinâmicas, por exemplo, são as contidas em leis


esparsas ou outro código ao se referir às normas do “Código de
Processo Civil”. Por exemplo, tem-se o art. 836 da CLT, que admite o
processamento da ação rescisória “na forma do disposto no Capítulo
IV do Título IX da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de
Processo Civil”. Logo, em sendo dinâmica, por certo que, com a edição
do CPC de 2015, a remissão passou a ser a este novo diploma legal.
Destaque-se, no entanto, para retirar qualquer dúvida, o legislador
assim dispôs expressamente no CPC de 2015, ao preceituar, em seu
art. 1.046, § 4º, que “As remissões a disposições do Código de Processo
Civil revogado, existentes em outras leis, passam a referir-se às que
lhes são correspondentes neste Código”, seguindo uma técnica já
adotada no Código Civil de 2002 (“Art. 2.046. Todas as remissões, em
diplomas legislativos, aos Códigos referidos no artigo antecedente,
consideram-se feitas às disposições correspondentes deste Código”).
António Menezes Cordeiro, ainda, ensina que

“quando a remissão é específica, isto é dirigida a um


preceito concreto, a um artigo da lei designada pelo seu

15  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo


de Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 194. Ressaltando o princípio da
igualdade, cf. RODRIGUES, Telmo Coutinho. “Com as devidas adaptações” sobre os
comandos de modificação nas normas remissivas como fonte de discricionariedade,
p. 612-613.

208
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

número, já o problema pode revestir maior dúvida. Em


todo o caso, ainda aí, na maior parte das vezes, haverá
de considerar-se dinâmica a remissão” 16.

Contudo, como ainda leciona António Menezes Cordeiro

“não devem ser estabelecidas regras rígidas no domínio


da interpretação das normas de remissão; apenas em
cada caso será possível determinar o seu sentido e,
designadamente, a natureza estática ou dinâmica da
remissão efectuada”17.

Aqui, então, cumpre saber se o inciso I do art. 10 dos ADCT faz


uma remissão estática ou dinâmica.
No caso cabe se inclinar para remissão dinâmica, inclusive
por ser a regra geral. Isto porque a regra constitucional transitória,
ao se referir à quantia acrescida ao FGTS quando da despedida do
trabalhador, quis ter este benefício como base de cálculos. Ou seja, o
constituinte, quando da promulgação da CF de 1988, teve em mente
que, além dos 10% do FGTS devido a este título (que não se confun-
de com a indenização compensatória devida em face da despedida
arbitrária ou sem justa causa), quando da despedida desmotivada,
para desencorajar o rompimento arbitrário do contrato de empre-
go, estabeleceu o pagamento de uma indenização compensatória
correspondente a quatro vezes aquela outra quantia. Ou seja, aos
empregados a partir da promulgação da CF de 1988 passaria a ser
devido o FGTS, acrescido de 10%, mais a indenização compensató-
ria correspondente a 40% dos depósitos do FGTS. Dois institutos
distintos, que, somados, buscam a melhoria da condição social do
trabalhador no momento do desemprego involuntário.

16  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo


de Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 193.
17  CORDEIRO, Menezes António. “Anotação” à sentença do Tribunal Administrativo
de Círculo de Lisboa de 15 de Março de 1987, p. 194.

209
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Alterada a lei do FGTS, tendo o legislador ordinário elevado


o acréscimo devido a título de FGTS de 10 para 40% quando da des-
pedida sem justa causa, a indenização compensatória passou a ter
como base de cálculo esse novo parâmetro, mantendo-se, assim, a
paridade ou igualdade de tratamento legislativo, na proporção de um
para quatro vezes. Assim, a indenização constitucional passou a ser
no correspondente a quatro vezes o percentual de 40%.
Ou seja, o que o legislador transitório pretendeu foi assegurar
o pagamento de uma indenização que correspondia a quatro vezes o
valor devido a título acrescido de FGTS quando da despedida injusta.
No caso, a norma remissiva invoca o valor acrescido devido a título
de FGTS quando da despedida. Logo, alterada a condição considera-
da pela norma referida, ela gera efeito na norma remissiva. Invoca-se
o acréscimo do FGTS, multiplicado por quatro vezes. Logo, alterado
aquele acréscimo, ele serve de base para a garantia assegurada na
norma remissiva.
No caso a remissão foi dinâmica, pois ela não visou a ter de
forma estática o percentual de 10% acréscimo devido a título de
FGTS quando da despedida arbitrária ou sem justa causa, mas, sim,
visou o parâmetro ou base de cálculo adotado pelo legislador ordi-
nário. Logo, uma vez alterado esse regime ou parâmetro (de 10 para
40%), a norma de remissão absorve a alteração.
E para tanto se inclinar é preciso destacar que o que a Cons-
tituição protege é a relação de emprego. Logo, tanto quanto mais
se estabelecer regra que visa desencorajar o ato contrário à essa
garantia constitucional mais se estará se aproximando da intenção
do constituinte. Daí porque ser dinâmica a norma de remissão neste
caso, pois a norma constitucional transitória quis se referir à matéria
como tratada na norma referida, admitindo sua alteração, e não ao
conteúdo originário da norma referida.

210
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

É preciso, ainda, destacar que a República brasileira tem como


um dos seus fundamentos o princípio do valor social do trabalho (art.
1º, IV, da CF), daí porque assegura o direito social ao trabalho (art. 6º
da CF), o avanço na melhoria social do trabalhador (art. 7º, caput, in
fine, da CF), estabelecendo, ainda, que a nossa Ordem Econômica
está fundada na valorização do trabalho (art. 170, caput, da CF), tendo
como um de seus princípio a busca do pleno emprego (inciso VIII do
art. 170 da CF), além da nossa Ordem Social ter por base o primado do
trabalho (art. 193 da CF). Todos esses princípios, pois, por certo que
revelam que a intenção do legislador, ainda que transitório, foi o de
estabelecer normas que visem ampliar a proteção da relação de em-
prego contra seu rompimento arbitrário ou sem justa causa. Logo, as
alterações na norma referida que visem a ampliar essa proteção, por
certo que se adequam ao fim pretendido pela norma constitucional
protetora.
Longe, portanto, de ser uma remissão estática, aquela posta
no inciso I do art. 10 dos ADCT se revela dinâmica, aceitando-se as
alterações introduzidas pelo legislador ordinário, tendo o constituinte
conferido, implicitamente, poderes para tanto, o que, aliás, mais se com-
patibiliza com o caráter transitório dessa regra constitucional. E por ser
transitória, por lógica, ela mais aceita as alterações da norma referida.
É certo que, neste caso, poder-se-ia afirmar que a remissão
seria estática, já que, no caso, exige-se lei complementar para regular
a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, aplican-
do-se a norma constitucional transitória até a sua edição. Logo, ao se
admitir a remissão dinâmica indiretamente se estaria dando ao legis-
lador ordinário o poder para regular a proteção contra a despedida
arbitrária ou sem justa causa à medida que poderia alterar a base de
cálculo da indenização compensatória transitoriamente estabelecida
por lei ordinária. Estar-se-ia, assim, diante de uma possível violação à
reserva da lei complementar.

211
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Aliás, a técnica legislativa recomenda que o legislador não


faça remissões às normas secundárias (decreto, regulamentos, etc.)
ou de hierarquia inferior para se evitar a afronta à reserva de lei ou da
reserva à norma superior18.
Contudo, nesse caso, o que se tem, em verdade, mediante uma
norma constitucional transitória (art. 10 dos ADCT), é a concessão,
também transitória, do poder de regulamentação dessa matéria ao
legislador ordinário. Ou seja, o constituinte não só estabeleceu, desde
logo, uma regra transitória regulando a proteção contra a despedida
arbitrária ou sem justa causa, até superveniente lei complementar,
como, ainda, indiretamente, estabeleceu uma regra transitória de
competência legislativa, conferindo ao legislador ordinário o poder
de modificar a base de cálculo da indenização compensatória tran-
sitoriamente regulada até superveniente lei complementar. Transi-
tório, assim, é a proteção estabelecida no art. 10 dos ADCT, como é
transitória a competência do legislador ordinário para alterar a base
de cálculo da indenização compensatória ali prevista.
E, no caso, não à toa se fez a remissão dinâmica, pois do
contrário, se quisesse ser estático, neste caso, seria mais fácil fixar
de forma específica a indenização, estabelecendo seu valor no cor-
respondente a 40% dos depósitos do FGTS, ao invés de se referir ao
percentual mencionado na lei ordinária elevado a quatro vezes. Em
outras palavras, ao se referir ao percentual mencionado pelo legis-
lador ordinário, o constituinte transitório admitiu a sua modificação
(do percentual) por norma de natureza ordinária.
Vale, por fim, destacar que o sustentado acima não prejudica
ou afasta o entendimento de que as leis ordinárias vigentes antes da
promulgação da atual CF e que regulavam a indenização quando da
despedida arbitrária ou sem justa causa foram recepcionadas pela
nova ordem constitucional como de natureza de lei complementar,

18  CARVALHO, Kildare Gonçalves. Técnica legislativa: legística formal, p. 168.

212
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

de modo a incidir nas relações jurídicas por elas disciplinadas. Logo,


tendo em conta essas regulamentações, cabe assegurar a indeniza-
ção compensatória prevista na lei recepcionada como de natureza
de lei complementar, afastando-se a incidência da regra transitória
estabelecida no art. 10 dos ADCT. Essa regra, assim, somente incidiria
nas relações jurídicas não acobertadas pelas leis ordinárias recepcio-
nadas pela CF de 1988 como de natureza de lei complementar.

5. CONCLUSÃO

Assim, em síntese, pode-se concluir que:

i) a CF de 1967 assegurava aos trabalhadores a estabilida-


de, com pagamento de indenização compensatória ou o
FGTS (art. 165, inciso VIII). Um ou outro direito;
ii) a CF de 1988 assegura aos trabalhadores a proteção
contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, com
pagamento de eventual indenização, e o FGTS. Um mais
o outro;
iii) o art. 10 dos ADCT apenas regula, de modo transitório,
o direito de proteção da relação de emprego contra a
despedida arbitrária ou sem justa causa, prevendo o
pagamento de uma indenização compensatória;
iv) a Lei n. 8.036/90, por sua vez, disciplina o direito fun-
damental trabalhista do fundo de garantia do tempo de
serviço (FGTS), que não se confunde com a indenização
compensatória devida quando da despedida arbitrária ou
se justa causa;
v) a forma da Lei n. 8.03690 define o FGTS como sendo
uma parcela correspondente a 8% da remuneração dos
trabalhadores, podendo ela ser acrescida de 40% em
caso de rompimento contratual sem justa causa;

213
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

vi) esse acréscimo de 40%, previsto na Lei n, 8.036/960, tem


natureza de FGTS, não se confundindo com a indenização
compensatória devida quando da despedida arbitrária ou
sem justa causa mencionada no inciso I do art. 7º da CF;
vii) quando da despedida arbitrária ou sem justa causa, ao
trabalhador é devido tanto a) a parcela do FGTS corres-
pondente a 40% dos depósitos devidos a este mesmo
título ao longo da relação de emprego, como b) a indeni-
zação a que se refere o inciso I do art. 10 dos ADCT;
viii) ao trabalhador doméstico, na forma da LC n. 150/15, so-
mente é devido o FGTS correspondente a 8% da sua re-
muneração mensal, além da indenização compensatória
em face de sua despedida arbitrária ou sem justa causa,
no equivalente a 3,2% de sua remuneração mensal;
ix) ao empregado doméstico não é assegurado o pagamento
dos 40% do FGTS referido na Lei n. 8.036/90;
x) a regra do inciso I do art. 10 dos ADCT é uma norma de
remissão dinâmica ao se referir a outra norma (art. 6º,
caput e § 1º, da Lei n. 5.107/66);
xi) em sendo uma norma de remissão dinâmica, o inciso I do
art. 10 dos ADCT admite as alterações da norma referida,
incorporando as mudanças legislativas;
xii) a partir da edição da Lei n. 7.839/89 a indenização men-
cionada no inciso I do art. 10 dos ADCT passou a corres-
ponder a 160% de todos os depósitos devidos a título de
FGTS quando da despedida arbitrária ou sem justa causa;
xiii) as conclusões acima não afastam a incidência das leis
ordinárias que foram recepcionadas pela CF de 1988
como de natureza de lei complementar e que regulavam e
continuam a regular a indenização compensatória devida
quando da despedida arbitrária ou sem justa causa no
que se refere às relações jurídicas por elas disciplinadas.

214
O FGTS E O VALOR DA INDENIZAÇÃO COMPENSATÓRIA NA DESPEDIDA
SEM JUSTA CAUSA OU ARBITRÁRIA

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215
216
GERENCIAMENTO
ALGORÍTMICO NAS
PLATAFORMAS DIGITAIS DE
TRABALHO: UMA LEITURA DA
RELAÇÃO DE TRABALHO SOB
A ÓTICA DOS PODERES DO
EMPREGADOR

Estêvão Fragallo Ferreira1

1  Mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade


Federal do Pará (PPGD/UFPA). Pós-Graduando em Direito e Processo do Trabalho pela
Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ) e em Advocacia Cível pela Fundação
Escola Superior do Ministério Público (FMP/RS). Bacharel em Direito pela Universidade
Federal do Pará (UFPA). Advogado (OAB/PA 32.059). Membro dos grupos de pesquisa
“Contemporaneidade e Trabalho” (CNPq), “Novas Formas de Trabalho, Velhas Práticas
Escravistas” (CNPq) e “Emprego, Subemprego e Políticas Públicas na Amazônia”
(CNPq).
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O artigo tem por proposta analisar o gerenciamento algorítmico de trabalho a partir
dos poderes do empregador consagrados na doutrina majoritária trabalhista. Tem-
se, por hipótese, que as técnicas de controle, organização e gestão de trabalho por
meio de algoritmos possui elementos análogos aos poderes diretivo, regulamentar
e disciplinar dos empregadores, viabilizando-se, portanto, o reconhecimento da
chamada subordinação algorítmica. O estudo se propõe a partir da necessidade
de vislumbrar a possível configuração de relação empregatícia a partir da figura
do empregador, de forma a agregar a produção científica que o faz baseado no
sujeito empregado. Para tanto, pretende-se analisar, aprioristicamente, a figura do
empregador a partir das teorias normativas da relação de trabalho, passando-se à
digressão dos poderes patronais consagrados, tipicamente, na doutrina juslaboral.
Por fim, busca-se analisar a organização decorrente do gerenciamento algorítmico
à luz dos poderes do empregador, para fins de possível constatação da subordinação
a partir das plataformas digitais.
Palavras-Chave: Gerenciamento Algorítmico, Empregador, Plataformas Digitais,
Subordinação, Contrato de Trabalho.

Abstract:
The article aims to analyze the algorithmic management of work from the employer’s
powers enshrined in the majority labor doctrine. We hypothesize that techniques of
control, organization and management of work through algorithms have elements
similar to the directive, regulatory and disciplinary powers of employers, thus enabling
the recognition of the so-called algorithmic subordination. The study proposes itself
from the need to envision the possible configuration of employment relationship, on
digital platforms, from the figure of the employer, in order to add the vast scientific
production that makes it based on the employed subject. In order to do so, it is
intended to analyze, a priori, the figure of the employer from the normative theories of
the work relationship, moving on to the digression of the employers’ powers typically
enshrined in the labor law doctrine. Finally, we seek to analyze the organization
resulting from algorithmic management in the light of the employer’s powers, for the
purpose of possible verification of subordination from digital platforms.
Keywords: Algorithmic Management, Employer, Digital Platforms, Subordination,
Employment Contract.

1. INTRODUÇÃO

As mudanças tecnológicas têm ocupado espaço de centralida-


de nos rumos da humanidade no século XXI. É inegável a forma como
a tecnologia tem permeado as relações econômicas, sociais, afetivas,

218
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

de consumo e, por óbvio, as relações de trabalho, levando a mudanças


de paradigmas de modelos sociais anteriores2.
Nas relações laborais, o principal impacto tecnológico nas
relações de trabalho tem sido apontado como as plataformas digi-
tais, responsável pela geração de novos ciclos econômicos e tipolo-
gias trabalhistas. Por se tratar de uma realidade viçosa, os serviços
prestados por meio dessas plataformas têm suscitado controvérsias
acerca da possibilidade de regulação pelo Direito do Trabalho, fato
justificado pela dita “zona cinzenta” entre a subordinação e a auto-
nomia dessas plataformas3.
Essa suposta imprecisão quanto à definição jurídica dos
trabalhadores de plataformas digitais, nesse sentido, é justificada
pelo meio operacional dessas infraestruturas: o gerenciamento algo-
rítmico, meio de organização laboral que atribui a responsabilidade
da atribuição de tarefas e da tomada de decisões a um sistema de
controle por algoritmos, limitando o envolvimento humano4.
A doutrina trabalhista, nesse sentido, já tem produzido en-
tendimento no sentido de que devem ser garantidos direitos, ainda
que mínimos, aos trabalhadores submetidos às plataformas digi-
tais5. Entretanto, há uma considerável resistência quanto ao enten-
dimento de que os gig workers são titulares de direitos trabalhistas
plenos, uma vez que o gerenciamento algorítmico tem engendrado

2  OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara.


Conceito e Crítica das Plataformas Digitais de Trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11,
n. 4 (2020), p. 2611.
3  CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio;
NETO, Raimundo Dias de Oliveira. Plataformas Digitais e Vínculo Empregatício? Os
Indícios de Autonomia, Subordinação e Dependência. Revista dos Tribunais, vol.
1034/2021, dez/2021, p. 320.
4  ILO. International Labour Office. World Employment and Social Outlook: The Role of
Digital Labour Platforms in Transforming the World of Work. Geneva, 2021, p. 33.
5  SANTOS, Ariane Joice dos; MANUS, Pedro Paulo Teixeira. A desproteção do
trabalhador na economia compartilhada e a necessidade de observância dos direitos
fundamentais sociais mínimos. Revista de Direito do Trabalho e Seguridade Social. vol.
221. ano 48. São Paulo: Ed. RT, jan./fev. 2022, p. 86.

219
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

um fetichismo tecnológico6, no sentido de que se trata de artifício


nebuloso que obstaria a constatação de subordinação entre os tra-
balhadores e as plataformas.
Há significativas contribuições acadêmicas, contudo, em sen-
tido contrário, indicando a plena possibilidade de aferição de vínculo
empregatício no caso das plataformas digitais, sobretudo conside-
rando a falta de autonomia do trabalhador e, ainda, a necessidade
de adequação do Direito do Trabalho a relações de subordinação
para além dos moldes tradicionais7. Entretanto, entende-se como
necessária a defesa plena de direitos trabalhistas à luz de reflexões
de outros arranjos jurídicos, ocupando-se da figura do empregador.
Nesse sentido, busca-se averiguar o possível reconhecimento
de vínculo empregatício aos trabalhadores das plataformas digitais,
a partir da análise do gerenciamento algorítmico. Isso porque intui-
-se que os elementos desta tecnologia de gestão equiparam-se aos
poderes do empregador, em razão da administração do comporta-
mento e comando dos trabalhadores até a otimização do trabalho
em sua dimensão coletiva8.
Assim, depreende-se que o gerenciamento algorítmico, en-
quanto mecanismo equiparado ao poder patronal, pode oportunizar
o reconhecimento das plataformas digitais como empregadores e,
por conseguinte, expandir a compreensão sobre as possibilidades de
aferição da subordinação algorítmica.

6  OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara.


Conceito e Crítica das Plataformas Digitais de Trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11,
n. 4 (2020), p. 2615.
7  OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio; CARELLI, Rodrigo de Lacerda; GRILLO, Sayonara.
Conceito e Crítica das Plataformas Digitais de Trabalho. Revista Direito e Práxis, v. 11,
n. 4 (2020), p. 2629.
8  D’ANDREA, Carlos Frederico de Brito; GUERRA, Ana Gonçalves. Dimensões
algorítmicas do trabalho plataformizado: Cartografando o preço dinâmico da Uber.
Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação,
v. 24, jan–dez, publicação contínua, 2021, p. 7. doi.org/10.30962/ec.2046.

220
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

Para tanto, pretende-se realizar uma digressão acerca da natu-


reza do empregador, a fim de verificar o seu enquadramento jurídico
e características quanto a suas atribuições nas relações de trabalho.
Posteriormente, intenta-se analisar os poderes do empregador diante
da doutrina trabalhista brasileira. Por derradeiro, propõe-se investigar
o conceito e elementos essenciais do gerenciamento algorítmico, a
fim de compará-los aos poderes do empregador e, enfim, explorar a
possibilidade de enquadramento da subordinação por algoritmos.
Quanto à metodologia, fez-se uso de método hipotético-
-dedutivo e pesquisa qualitativa, compreendendo como técnica a
pesquisa bibliográfica, a partir da digressão de escritos nas áreas de
Direito e Sociologia do Trabalho.

2. CARACTERIZAÇÃO HISTÓRICA DO EMPREGADOR NA


RELAÇÃO DE TRABALHO

As relações de trabalho envolvem, por natureza, um conflito


de interesses entre o trabalhador e o empregador. O caráter anta-
gonista da relação pressupõe uma tensão dinâmica que permanece
durante todo o vínculo laboral, tendo como premissa, ainda, o dese-
quilíbrio entre o polo obreiro e o patronal: o primeiro, como parte
que põe à disposição sua força e trabalho, e o último como aquele
que dela se beneficia, exercendo ainda direitos sobre o trabalhador9.
É nesse sentido que Supiot10 classifica a relação laboral como
uma subordinação, pelo trabalhador, à vontade do empregador. E é
precisamente diante do desequilíbrio fático entre capital e trabalho
que o Direito do Trabalho manifesta a sua razão de ser: a integração

9  ROMITA, Arion Sayão. A subordinação no contrato de trabalho. Rio de Janeiro:


Forense, 1979, p. 73.
10  SUPIOT, Alain. Crítica do direito do trabalho. Trad. António Monteiro Fernandes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2016, p. 163.

221
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

dos conflitos sociais trabalhistas11, o que se opera mediante um con-


trato de trabalho.
Essa visão hodierna, contudo, está longe de representar
um conceito pacífico entre os juslaboralistas. Pelo contrário: a
controvérsia quanto à razão de ser do Direito do Trabalho gerou,
historicamente, várias divergências quanto ao próprio objeto das
relações de trabalho, influenciando diferentes pensamentos acerca
dos conceitos de empregado, empregador e, ainda, da natureza de
sua relação jurídica.
Em que pese a eleição pela teoria da contratualidade como a
regência jurídica adequada para as relações de trabalho, conforme se
verifica do Artigo 442 da CLT, o constructo normativo do Direito do
Trabalho se ampara também em outras fontes normativas, entre as
quais se destaca a teoria da instituição das relações trabalhistas.
Foge aos propósitos do presente artigo buscar dissecar
profundamente todo o histórico da formação jurídica do contrato
de emprego, havendo ampla produção acadêmica que se reserva
à análise do tema. Contudo, se faz importante demonstrar que as
teorias analisadas, mormente a institucionalista, constituem etapas
importantes para a formação de diversos institutos ainda vigentes.
E esses institutos, conforme pretende-se desenvolver a se-
guir, não são desvinculados aos princípios da teoria institucionalista:
aderem o seu caráter totalitário e a sua tendência à centralização
da empresa como elemento central do Direito do Trabalho – o que
se comprova, de forma mais particular, à figura do empregador nas
relações laborais.

1.1. Breve Apontamentos sobre as Teorias da


Natureza das Relações de Trabalho

11  LÓPEZ, Manuel Carlos Palomeque. Direito do trabalho e ideologia. Trad. Antonio
Moreira. Coimbra: Almedina, 2001, p. 17.

222
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

Atribui-se à regência jurídica das relações de trabalho duas


tradições históricas: a romana e a germânica12. A primeira tradição
foi fortemente incorporada no Direito Civil e outros ramos do direito
privado, sobretudo a partir do Código Civil Napoleônico e os ideais
de autonomia e liberdades individuais. A lógica do trabalho humano,
nesse primeiro momento, foi inserida em ideais de plena autonomia e
capacidade negocial do trabalhador para com o empregador, de modo
que a relação de trabalho foi idealizada como de trato contratual.
A relação sinalagmática do trabalho, entretanto, deixava de
reconhecer o aspecto humano da prestação de serviços: inseriu-se
o contrato de trabalho, neste momento histórico, como um ramo do
Direito das Obrigações, sendo o trabalho reduzido a um bem presta-
do ao empregador, beneficiário deste labor.
Por óbvio, a adesão das relações de trabalho ao modelo con-
tratual cível gerou críticas, sobretudo pelo seu viés essencialmente
patrimonialista e pela redução do trabalhador à lógica mercadológica.
Como resposta à inadequação da teoria contratual “pura”, em especial
pela reconhecida subalternidade do empregado em relação ao empre-
gador, passou-se a sugerir outro modelo de regência contratual.
Assim ganha força a teoria germânica das relações de traba-
lho, que criticam o viés individualista das relações sociais para pensar
no trabalhador numa visão ligada a uma comunidade. Dentro das
relações laborais propriamente ditas, a tradição germânica foi dire-
cionada ao ideal de uma comunidade de trabalho, traduzida naquela
que seria uma entidade objetiva: a empresa13.
Contudo, a visão comunitária pregada pela tradição germânica
preconizava uma total comunhão de interesses entre o empregado e
o empregador, pressupondo vínculo de “colaboração” do empregado

12  SUPIOT, Alain. Crítica do direito do trabalho. Trad. António Monteiro Fernandes.
Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2016, p. 16.
13  BAYLOS, Antonio. Direito do trabalho: modelo para armar. Trad. Flávio Benites
Cristina Schultz. São Paulo: LTr, 1999, p. 64.

223
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

para com aquela corporação que compunha14. Assim surge a teoria da


instituição, baseada nos ideais de fidelidade do empregado para com
o empregador, para fins de harmonia da comunidade de trabalho.
Não tardou para que a teoria institucionalista passasse a
demonstrar seus reais alicerces: o viés coercitivo do empregado ao
impor códigos de conduta e comportamento, e a centralidade da
comunidade empresarial como equiparada à comunidade nacional.
Exatamente por isso, a teoria da instituição teve maior adesão du-
rante governos totalitários, de matriz nazifascista15.
Nenhuma das duas teorias acabou por se firmar, ao menos em
sua acepção originária, na atual regência jurídica das relações jurídi-
cas. Conforme aduz Baylos16, diversos atores passaram a moldar o
contrato de trabalho – em especial, o Estado e os sindicatos –, não
apenas influindo diretamente no seu objeto, como também no con-
ceito das suas partes integrantes e características fundantes, preva-
lecendo a teoria contratualista moderna, que incorpora ao contrato
de trabalho valores democráticos e direitos fundamentais17.
Entretanto, também as teorias da contratualidade, em sua
acepção clássica, e a teoria da instituição, moldaram características
fundamentais ao conceito de empregador e aos seus efeitos no
contrato de trabalho, tornando-o uma figura ambivalente quanto
ao empregado: ora resumindo-o a mero beneficiário da prestação de
serviços, como herança da tradição romana, ora como detentor de
uma série de prerrogativas diante do trabalhador, como herança da
tradição germânica.

14  MESQUITA, Luiz José de. Direito disciplinar do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1950, p. 14.
15  MEIRELES, Edilton. A persistente interpretação institucionalista (positivista-
nazifascista) no Direito do Trabalho brasileiro. In: NEMER NETO, Alberto et al. 80 anos
da Justiça do Trabalho: a democracia e a cidadania à luz da tutela jurisdicional
trabalhista. São Paulo: LEX ; OAB Nacional, 2021. p. 343.
16  BAYLOS, Antonio. Direito do trabalho: modelo para armar. Trad. Flávio Benites
Cristina Schultz. São Paulo: LTr, 1999, 66-76.
17  DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 Ed. São Paulo: LTr,
2017, p. 337.

224
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

1.2. Conceito de Empregador no Direito Brasileiro

A definição e caracterização de empregador, na doutrina pá-


tria, não gozam da mesma atenção tradicionalmente dedicada à figura
do empregado, beneficiário da proteção juslaboral. Pelo contrário: o
conceito jurídico de empregador, formalmente, é tido como relacional
ao de empregado, uma vez que identificados os requisitos do contrato
de emprego, haverá, por presunção, a determinação do empregador.
É por esse motivo que Delgado18 limita a definição de empregador a
“pessoa física, jurídica ou ente despersonificado que contrata a uma
pessoa física a prestação de seus serviços, efetuados com pessoalida-
de, onerosidade, não eventualidade e sob sua subordinação”.
Consequência direta do caráter relacional do conceito de
empregador é a ausência de requisitos essenciais à sua caracteri-
zação, já que esta se dará apenas a partir da formação do vínculo
empregatício. Limita-se, portanto, ao apontamento de alguns dos
efeitos jurídicos práticos do empregador, a saber: a assunção dos
riscos do empreendimento (também conhecido como alteridade) e
a despersonalização.
Veja-se, assim, que o conceito de empregador é genérico e
justifica, precisamente, os dois efeitos acima transcritos: o da alteri-
dade, porque qualquer pessoa que se beneficie da prestação de ser-
viços assumindo os riscos do empreendimento se caracterizará como
empregador; e o de despersonalização, porque estende o conceito a
qualquer indivíduo que assuma essa posição em nome do empregador.
Mesmo a definição de empregador a partir da lei não encontra
maiores dificuldades. Em que pese as críticas doutrinárias à redação
do Artigo 2º, caput, da CLT, que limita ao conceito de empregador à
“empresa individual ou coletiva”, já há um consenso de que se trata

18  DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 Ed. São Paulo: LTr,
2017, p. 492.

225
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

de conceito extensível a outros entes – situação confirmada pelo


Artigo 2º, § 1º, da CLT, , que apresenta um rol não exaustivo de outros
possíveis empregadores.
Ademais, a singeleza do conceito legal e doutrinário de em-
pregador revela uma herança da teoria da contratualidade, já que,
reduzindo o tomador de serviços a um mero beneficiário das ativi-
dades prestadas pelo trabalhador, abstrai-se o desequilíbrio factual
entre as partes, tratando a figura patronal apenas como parte num
contrato comum.
É situação oposta, nesse sentido, ao empregado, parte con-
tratual que é definida por todos os requisitos do vínculo emprega-
tício. Conclui-se, assim, que a lógica do legislador é atribuir o ônus à
comprovação de uma relação de subordinação jurídica integralmente
ao empregado, desonerando de qualquer ônus inicial o empregador.
Ao contrário da frugalidade do conceito e dos efeitos jurídicos
do empregador são as suas prerrogativas, faculdades incumbidas ao
empregador em razão de assumir os riscos da atividade empresarial
sobre o empregado. Trata-se de tema de maior atenção perante a
doutrina e jurisprudência brasileiras, que não encontra paralelo à
estrutura jurídica do empregado, que não gozam de especiais prerro-
gativas perante o empregador.
Portanto, a existência de certas prerrogativas – classificada
pela doutrina como poderes do empregador, conforme será analisado
mais tarde – parece destoar, a princípio, do cânone fundamental do
Direito do Trabalho, o princípio protetivo, que tem como parte pro-
tegida o trabalhador, polo mais frágil da relação de trabalho. E essa
dissonância é herança direta da teoria da instituição, responsável
por atribuir ao empregador ampla autoridade sobre o empregado na
condução da atividade empresarial, em razão de sua suposta superio-
ridade hierárquica.

226
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

Portanto, o paradoxo da figura do empregador: ao mesmo


tempo que não guarda, em seu conceito, nenhum dos elementos
formadores da relação de empregatícia, atribuindo o ônus da ca-
racterização de possível vínculo exclusivamente ao empregado, que
absorve todos os elementos do pacto laboral, goza de uma série de
prerrogativas jurídicas que, apesar de não integrarem formalmente
o contrato de trabalho, são amplamente aceitas como legítimas e
vinculantes ao empregado. É diante desse cenário que se faz neces-
sário compreender a estrutura e alcance dessas prerrogativas, mais
conhecidas como poderes do empregador.

2. PODERES DO EMPREGADOR NA DOUTRINA TRABALHISTA

Romita19 define poder jurídico como a “concretização, em


favor de um sujeito (ativo) de direito, da possibilidade jurídica, assegu-
rada pelo ordenamento, de modificar situações jurídicas atinentes ao
sujeito passivo”. Esse poder se alicerça, ao mesmo tempo, na situação
fática de autoridade, força e potência que uma parte possui e, no
plano jurídico, em uma prerrogativa.
Os poderes do empregador são entendidos, nesse sentido,
como um poder jurídico, já que são exercidos para atender aos inte-
resses da instituição tomadora de serviços. Nota-se que, na doutrina
tradicional, idealiza-se a figura do empregador, nesse particular,
como um terceiro (empregador de fato) que age fazendo as vezes da
empresa ou instituição (empregador de direito). É por esse motivo
que Romita20 aduz que deve ser exercido por um sujeito distinto do
titular do poder.

19  ROMITA, Arion Sayão. Poderes do empregador e ideologia. Revista do TRT da 8ª


Região, 2015, v. 48, n. 94, p. 129.
20  ROMITA, Arion Sayão. Poderes do empregador e ideologia. Revista do TRT da 8ª
Região, 2015, v. 48, n. 94, p. 129.

227
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Entretanto, para fins analíticos, a figura do empregador será


compreendida, aqui, como única, já que são os interesses do empre-
gador de direito que serão atendidos pelo exercício desses poderes.
Enfim, vale ressaltar também que os poderes do empregador encon-
tram limites nos direitos fundamentais do trabalhador.
De início, temos que os poderes do empregador não estão
definidos, expressamente, na Consolidação das Leis do Trabalho, de-
correndo de criação doutrinária e aceitação jurisprudencial. Por esse
motivo, são vários os poderes citados e conceituados pela doutrina
trabalhista. Romita21, contudo, ao investigar vastamente as obras
dos juristas trabalhistas brasileiros destaca três poderes: o diretivo,
o regulamentar e o disciplinar22.
O poder diretivo pode ser interpretado, segundo a maior
parte da doutrina, do Artigo 2º da CLT, ao elucidar que o empregador
“admite, assalaria e dirige” a prestação pessoal de serviço. O poder
diretivo envolve uma das principais controvérsias acerca da figura do
contrato de trabalho, instrumento jurídico eleito para a regulação
das relações laborais na contemporaneidade: a concordância prática
entre a subordinação e a autonomia privada23.
Explica-se: é através do poder de direção do empregador que
se justifica a subordinação do empregado: ou seja, o empregado se
sujeita ao empregador em razão de seu poder diretivo. Assim, o poder

21  ROMITA, Arion Sayão. Poderes do empregador e ideologia. Revista do TRT da 8ª


Região, 2015, v. 48, n. 94, p. 129.
22  Vale observar que esses exatos três poderes são citados por Luiz José de Mesquita
como um tríplice poder da empresa de forma análoga aos três poderes públicos: o
poder diretivo como análogo ao Poder Executivo, o poder regulamentar ao Poder
Legislativo e, enfim, o poder disciplinar como o Poder Judiciário (MESQUITA, 1950, p. 31).
Trata-se de orientação obviamente antidemocrática, especialmente considerando
que, de acordo com o autor, o exercício de todos os poderes deveria ser centralizado
na mesma pessoa, o empregador, em total desacordo ao princípio da separação dos
poderes que rege os Estados democráticos.
23  BRAVO-FERRER, Miguel Rodríguez-Piñero y. Poder de dirección y derecho
contractual. In: ESCUDERO RODRÍGUEZ, Ricardo (coord). El poder de dirección del
empresario: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 6.

228
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

diretivo consubstancia, ao mesmo tempo, um papel jurídico – a prerro-


gativa do empregador de conduzir a atividade empresarial – e social e
econômico, ao convalidar a relação de subordinação do empregado24.
Além disso, o poder diretivo é considerado o mais importante
dentre os poderes do empregador, porque dele decorrem os demais
poderes. Conforme alude Bravo-Ferrer25, ainda que os poderes
diretivo e disciplinar, por exemplo, sejam juridicamente distintos, no
plano prático o jus puniendi apenas é possível em razão do uso legí-
timo do poder de direção. Vale ressaltar que parte da doutrina nem
sequer reconhece o poder regulamentar como um poder autônomo,
entendendo-o como um corolário do poder diretivo26.
Em termos práticos, o poder diretivo consiste nos poderes
de condução empresarial: o poder de comandar, controlar, gerir, or-
ganizar, fiscalizar e, em resumo, coordenar a atividade empresarial,
sendo tal poder exercido frente aos empregados. É justamente em
razão da amplitude de suas atribuições que emanam as outras classi-
ficações dos poderes patronais. Parte da doutrina define o poder do
empregador como poder hierárquico, termo menos aceito em razão
de seu caráter autoritário27.
Enfim, vale ressaltar que há parte da doutrina que defende
a existência do poder fiscalizatório como poder autônomo28, de
modo que o poder diretivo se limitaria à parte de organização e
comando da atividade e a fiscalização se exerceria pelo controle e

24  BRAVO-FERRER, Miguel Rodríguez-Piñero y. Poder de dirección y derecho


contractual. In: ESCUDERO RODRÍGUEZ, Ricardo (coord). El poder de dirección del
empresario: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 7.
25  BRAVO-FERRER, Miguel Rodríguez-Piñero y. Poder de dirección y derecho
contractual. In: ESCUDERO RODRÍGUEZ, Ricardo (coord). El poder de dirección del
empresario: nuevas perspectivas. Madrid: La Ley, 2005, p. 10.
26  ROMITA, Arion Sayão. Poderes do empregador e ideologia. Revista do TRT da 8ª
Região, 2015, v. 48, n. 94, p. 133-139.
27  DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 Ed. São Paulo: LTr,
2017, p. 750.
28  DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 Ed. São Paulo: LTr,
2017, p. 750.

229
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

monitoramento dos empregados em relação às normas e comandos


do empregador29. Embora seja menos reconhecido entre os juristas,
destaca-se tal poder para fins analíticos deste artigo.
O poder regulamentar, por sua vez, é elevado à classificação
de poder do empregador pela sua importância na ordem jurídica: o
poder de criar normas no ambiente laboral. Apesar de não ser reco-
nhecido expressamente como fonte do Direito do Trabalho (Artigo
8º, da CLT), a doutrina tem reconhecido nos regulamentos empresa-
riais uma fonte subsidiária autônoma, por atribuir direitos e deveres
às partes. Não por acaso, a divergência jurisprudencial em relação à
interpretação de regulamento de empresa é uma das hipóteses en-
sejadoras do Recurso de Revista no âmbito do Processo do Trabalho
(Artigo 896, alínea ‘b’, da CLT).
Ainda que não haja unanimidade na compreensão do regula-
mento de empresa como um poder propriamente dito, fato é que a
prerrogativa empresarial de criar normas vinculantes no ambiente
do trabalho é atribuição limitada ao empregador, que impõe as suas
regras de conduta e comportamento ao empregado e cuja violação é,
inclusive, apta a ensejar a dispensa por justa causa.
Enfim, o poder disciplinar se caracteriza como o jus puniendi
do empregador – o direito que este possui de aplicar sanções ao em-
pregado. Não há expressa previsão legal acerca do poder disciplinar,
limitando-se apenas à referência da suspensão quando decorrente
da aplicação de uma sanção, conforme o Artigo 474, da CLT30.
A doutrina e a jurisprudência, entretanto, abraçaram am-
plamente a existência do poder disciplinar, indicando ainda que as
hipóteses de falta grave previstas no Artigo 482, da CLT, não apenas

29  LIMA, Francisco Meton Marques de. Elementos de Direito do Trabalho e Processo
Trabalhista. 12 Ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 155.
30  MEIRELES, Edilton. A persistente interpretação institucionalista (positivista-
nazifascista) no Direito do Trabalho brasileiro. In: NEMER NETO, Alberto et al. 80 anos
da Justiça do Trabalho: a democracia e a cidadania à luz da tutela jurisdicional
trabalhista. São Paulo: LEX ; OAB Nacional, 2021. p. 355.

230
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

são causas extintivas do contrato de trabalho, como constituem


hipóteses em que o empregador poderia exercer o seu direito de
punir. Há, ainda, a construção doutrinária das sanções empresariais,
citando-se a advertência, a suspensão contratual e a demissão31.
O poder disciplinar possui forte influência na teoria institu-
cionalista das relações de trabalho, uma vez que, concebe-se, nessa
corrente de pensamento, a necessidade de um Direito Disciplinar do
Trabalho, exercida por um chefe natural hierarquicamente relaciona-
do em relação ao empregado, a saber, o empregador32.
Além disso, vale ressaltar que o poder disciplinar não encontra
correspondência em outros ramos do Direito, dentre os quais desta-
ca-se a legislação consumerista, que veda expressamente o estabe-
lecimento de sanções ao consumidor33. Outro exemplo da influência
institucionalista do poder disciplinar é a existência de hipóteses de
falta grave patronal (Artigo 483, da CLT) que, ao contrário da falta
grave obreira, não dão a possibilidade direta de rescisão contratual
pelo empregado de forma sancionatória: obriga-se o trabalhador a
buscar o Poder Judiciário para que reconheça a sua rescisão indireta.
Fato é que os poderes inerentes à figura do empregador detêm
ampla aceitação entre os juristas trabalhistas, sem representativas
críticas à sua existência. Mais do que isso: é a partir do poder patronal
que se tende a aferir, geralmente, a existência do requisito nuclear para
a aferição da relação empregatícia – a saber, a subordinação.
Portanto, em que pese a crítica quanto às origens e fundamen-
tos axiológicos que justificam os poderes do empregador, a ampla

31  DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 16 Ed. São Paulo: LTr,
2017, p. 782.
32  MESQUITA, Luiz José de. Direito disciplinar do trabalho. São Paulo: Saraiva, 1950, p.
37.
33  MEIRELES, Edilton. A persistente interpretação institucionalista (positivista-
nazifascista) no Direito do Trabalho brasileiro. In: NEMER NETO, Alberto et al. 80 anos
da Justiça do Trabalho: a democracia e a cidadania à luz da tutela jurisdicional
trabalhista. São Paulo: LEX ; OAB Nacional, 2021. p. 358.

231
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

aceitação dessa prerrogativa jurídicas pela doutrina e jurisprudência


brasileira nos permitem utilizar de tais poderes para averiguar a exis-
tência fática de vínculo empregatício, sobretudo considerando que
a subordinação é seu elemento fulcral e consiste no lado passivo do
poder patronal34.
Essa lógica se torna ainda mais interessante ao analisarmos si-
tuações jurídicas controversas, que provocam intensas divergências
interpretativas acerca da existência (ou não) de uma subordinação
e, consequentemente, de vínculos empregatícios, como é o caso das
plataformas digitais de trabalho.

3. SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA: CARACTERIZAÇÃO À


LUZ DOS “PODERES” DAS PLATAFORMAS DIGITAIS

As plataformas digitais são definidas por Srnicek35 como


infraestruturas tecnológicas de intermediação. Tratam-se de meios
telemáticos que oportunizaram novos mercados de trabalho e
arranjos econômicos, dentre os quais a gig economy, mercados
caracterizados pela contratação independente de trabalhadores via
plataformas digitais36.
Em que pese o grande entusiasmo na adesão das novas tec-
nologias, seja por inaugurar uma nova etapa no avanço tecnológico
global – a chamada Quarta Revolução Industrial37 – ou ainda por
permitir atividades produtivas ditas flexíveis ou autônomas, é ine-
gável que tais plataformas, em realidade, representam tão somente
uma nova forma de exploração do trabalho: o autogerenciamento

34  ROMITA, Arion Sayão. A subordinação no contrato de trabalho. Rio de Janeiro:


Forense, 1979, p. 73.
35  SNIRCEK, Nick. Platform Capitalism. Cambridge: Polity Press, 2017, p. 43.
36  WOODCOCK, Jamie; GRAHAM, Mark. The Gig Economy: A Critical Introduction.
Cambridge: Polity Press, 2020, p. 12.
37  SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução de Daniel Moreira Miranda.
São Paulo: Edipro, 2016, p. 17.

232
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

subordinado38. Tom Slee39, por exemplo, alerta que as promessas


da economia de plataformas mascaram uma forma mais severa do
capitalismo, a partir da desregulação, incentivo ao hiperconsumo e
um novo mundo de trabalho precário.
Ainda nesse sentido, Prassl40 aponta para a propensão das
plataformas digitais para a descartabilidade humana, visto que os
serviços prestados (“gigs”) nesse sistema seriam tão temporários e
instantâneos quanto os trabalhadores neles envolvidos. Ricardo An-
tunes41, enfim, alerta que tais modalidades de trabalho flexível incen-
tivam a atomização dos trabalhadores e o adoecimento pelo trabalho.
Todos os potenciais danos descritos alhures têm, como fonte
comum, a base tecnológica utilizada nas plataformas digitais de
trabalho: o gerenciamento algorítmico. Trata-se de sistema de con-
trole em que algoritmos “autodidatas” possuem a responsabilidade
de tomar e executar decisões concernentes ao trabalho, portanto,
limitando o envolvimento e supervisão humana no processo labo-
ral42. Traduz-se, portanto, em processo que envolve comandos por
parte das plataformas, levando em consideração os interesses dos
consumidores e organizações43.

38  ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: Gerenciamento e Controle do Trabalhador


Just-In-Time. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0.
São Paulo: Boitempo, 2020, p. 112.
39  SLEE, Tom. What’s Yours Is Mine: Against the Sharing Economy. New York: OR Books,
2015, p. 163.
40  PRASSL, Jeremias. Human as a Service: The Promise and the Perils of Work in the Gig
Economy. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 10.
41  ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão: O Novo Proletariado de Serviços na Era
Digital. 1ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 127.
42  DUGGAN, James; SHERMAN, Ultan; CARBERY, Ronan; MCDONNELl, Anthony.
Algorithmic management and app‐work in the gig economy: A research agenda
for employment relations and HRM. Human Resource Management Journal, 2019, p.
6. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/epdf/10.1111/1748-8583.12258.
Acesso em: 20 set. 2021.
43  WOOD, Alex J; GRAHAM, Mark; LEHDONVIRTA, Vili; HJORTH, Isis. Good Gig, Bad
Gig: Autonomy and Algorithmic Control in the Global Economy. Work, Employment
and Society, Vol. 33(1), 2019, p. 62. Disponível em: https://journals.sagepub.com/
doi/10.1177/0950017018785616. Acesso em: 20 ago. 2021.

233
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Embora vise a tornar o processo produtivo mais eficaz no


trabalho digital, o gerenciamento algorítmico tem como uma de suas
principais críticas a falta de transparência dos critérios utilizados
pelos algoritmos para o processo produtivo44, fator que influencia a
seleção das atribuições e trabalhadores envolvidos e para a contra-
prestação aos trabalhadores45. Newlands46 cita ainda o exacerbado
incentivo à disciplina.
Enfim, as principais características do gerenciamento algorít-
mico são: o monitoramento constante dos trabalhadores, a avaliação
frequente por meio de dados, a tomada automática de decisões, a
interação direta com um “sistema” e, por fim, a baixa transparência
de tal mecanismo47.
Nota-se, desde já, que toda a estrutura de gerenciamento
por algoritmos, cerne da organização do trabalho por meio das
plataformas digitais, guarda não apenas um paralelismo como uma
verdadeira exacerbação da prerrogativa empresarial analisada linhas
acima: os poderes do empregador.
Vale ressaltar que a incumbência ao gerenciamento da plata-
forma a um algoritmo não humano traça um interessante paralelis-
mo ao poder patronal: a atuação de um intermediário em nome do
empregador. Trata-se de um mecanismo sofisticado e não humano
de exercício de controle e gestão laboral, que atende aos diretos in-

44  DE STEFANO, Valerio. “Negotiating the algorithm”: Automation, artificial intelligence


and labour protection. Geneva: International Labour Office, 2018, p. 7-8.
45  BUCHER, Eliane Léontine; SCHOU, Peter Kalum; WALDKIRCH, Matthias. Pacifying the
algorithm: Anticipatory compliance in the face of algorithmic management in the gig
economy. Organization, 2021, p. 2021, Vol. 28(1), p. 45. Disponível em: https://journals.
sagepub.com/doi/full/10.1177/1350508420961531. Acesso em: 5 set. 2021.
46  NEWLANDS, Gemma. Algorithmic surveillance in the gig economy: The organisation
of work through Lefebvrian conceived space. Organization Studies, 2021, Vol. 42(5),
p. 723. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0170840620937900.
Acesso em: 30 ago. 2021.
47  MÖLMANN, Mareike; ZALMANSON, Lior. Hands on the wheel: Navigating algorithmic
management and Uber drivers’ autonomy. Proceedings of the International Conference
on Information Systems (ICIS 2017), December 10-13, Seoul, South Korea, p. 4-5.

234
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

teresses da plataforma, sob o pretexto da neutralidade tecnológica,


a fim de mascarar a real condição de subordinação que se encontram
os trabalhadores48.
Portanto, o paralelismo entre os poderes do empregador e do
gerenciamento algorítmico se faz necessário à compreensão de que
a tecnologia atua como uma inteligência artificial que faz as vezes do
real empregador (a plataforma), utilizando-se de prerrogativas jurí-
dicas para obter os resultados que se esperam do trabalhador. Assim,
pretende-se, a seguir, explorar o modus operandi do gerenciamento
algorítmico comparando-o analiticamente aos poderes patronais.
Inicialmente, no que diz respeito ao modo de operacionali-
zação das plataformas digitais, vale registrar o cenário operacional
elaborado por Filgueiras e Antunes49: a) determina-se, na platafor-
ma, quem pode trabalhar; b) há uma delimitação da atividade a ser
feita (com restrições a realização de serviços fora da plataforma); c)
define-se qual trabalhador irá realizar cada tarefa e não se permite a
captação pessoal de clientes; d) delimita-se o modo como as ativida-
des devem ser efetuadas, desde as rotas que os motoristas e entre-
gadores de aplicativo devem seguir até padrão de comportamento
do trabalhador; e) determina-se o prazo de execução de serviços; f)
estabelece-se a remuneração específica; g) determina-se a forma de
comunicação com as plataformas; h) pressiona-se os trabalhadores
à assiduidade e à não recusa de tarefas; i) pressiona-se pela amplia-
ção do tempo à disposição da plataforma; j) usa-se do artifício de
bloqueio para ameaça de restrição para com a plataforma; k) e, fi-
nalmente, utiliza-se do descadastramento da plataforma a qualquer
momento, sem aviso prévio.

48  PASQUINI, Fernando; MARANHÃO, Ney. Três Dimensões da Não Neutralidade


Tecnológica: um Esforço de Sistematização na Perspectiva das Plataformas Digitais de
Trabalho. Revista Magister de Direito do Trabalho, Nº 104, Set-Out/2021, p. 130.
49  FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e
regulação no capitalismo contemporâneo. In: In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização,
Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 67-68.

235
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Ora, os itens ‘a’ a ‘e’, acima descritos, demonstram que o


gerenciamento algorítmico imprime claros traços do poder dire-
tivo patronal: desde a seleção dos trabalhadores até o comando
pormenorizado das atividades, definindo-se a natureza das tarefas,
o tempo utilizado para o serviço, o modo de condução, traços com-
portamentais do trabalhador, numa clara atividade de organização
de trabalho, cujo gerenciamento é delegado a algoritmos, por meio
do manejo de dados dos trabalhadores.
Vale ressaltar que o gerenciamento algorítmico não apenas é
estrutura análoga ao poder diretivo patronal: trata-se de elemento
presente de forma pormenorizada em todo o comando e processo
produtivo, utilizando-se inclusive do georreferenciamento e de ou-
tros dados pessoais dos trabalhadores para o seu funcionamento50.
Portanto, o exercício das prerrogativas pelo empregador por meio
dos algoritmos excede consideravelmente as capacidades humanas
de gestão.
Apesar de menos expressivo e não ser realizado diretamente
pelos algoritmos, o poder regulamentar se faz presente nas plata-
formas digitais ao se determinar a forma de contato com o tomador
de serviços. As plataformas, ainda, exercem o poder regulamentar
por outros instrumentos, a exemplo dos termos e condições dos
usuários, disponíveis na própria plataforma, e que pode se estender
a comandos via e-mail ou mensagem de texto aos trabalhadores51.
O poder fiscalizatório também existe, por meio da pressão
exercida aos trabalhadores para o cumprimento de tarefas e tam-
bém ao incentivo à permanência temporal na plataforma. Trata-se,
portanto, de constante controle e monitoramento das atividades

50  ILO. International Labour Office. World Employment and Social Outlook: The Role of
Digital Labour Platforms in Transforming the World of Work. Geneva, 2021, p. 21.
51  DUARTE, Fernanda da Costa Portugal; GUERRA, Ana Gonçalves. Plataformização
e trabalho algorítmico: contribuições dos Estudos de Plataforma para o fenômeno da
uberização. Eptic On-Line (UFS), v. 22, 2020, p. 51.

236
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

do trabalhador, tornando evidente a ausência de autonomia na


prestação de serviços e incentivando, ainda, outro requisito típico da
relação de emprego – a habitualidade.
Vale ressaltar que os mecanismos de monitoramento algorít-
micos são operados de forma diferenciada: enquanto os algoritmos
operam por um controle rígido, manipulando os dados dos trabalha-
dores para a sua atividade, a interface do trabalhador não revela um
caráter coercitivo, utilizando-se de uma linguagem mais sedutora
e sugestiva ao trabalhador52. Atua-se, portanto, a partir do soft
control: exercício do poder fiscalizatório por meio do algoritmo,
enquanto se convence o trabalhador de que suas atribuições são
exercidas por escolhas autônomas.
Enfim, o poder disciplinar resta configurado pela possibilidade
de imposição de penalidades aos trabalhadores. É uma consequência
do não atendimento das normas impostos pelos demais poderes, equi-
parando-se à suspensão do contrato de trabalho (bloqueio temporá-
rio dos trabalhadores nas plataformas) e à demissão por justa causa
(desligamento da plataforma). Os algoritmos, assim, ao avaliarem a
má frequência, rendimento e habitualidade dos empregados – ainda
que nenhuma de tais características implique falta grave, nos termos
do Artigo 482, da CLT – dão ensejo a sanções aos trabalhadores, que
se veem impedidos de seguir a prestação de serviços.
Os exemplos de exercício de poder disciplinar pelas plata-
formas encontram similaridade ao processo de gradação das penas
impostas pelos empregadores. Duarte e Guerra53, por exemplo, ao
analisarem a influência das taxas de cancelamento, não aceitação de
viagens e performances insatisfatórias em geral pelos motoristas da

52  DUARTE, Fernanda da Costa Portugal; GUERRA, Ana Gonçalves. Plataformização


e trabalho algorítmico: contribuições dos Estudos de Plataforma para o fenômeno da
uberização. Eptic On-Line (UFS), v. 22, 2020, p. 46.
53  DUARTE, Fernanda da Costa Portugal; GUERRA, Ana Gonçalves. Plataformização
e trabalho algorítmico: contribuições dos Estudos de Plataforma para o fenômeno da
uberização. Eptic On-Line (UFS), v. 22, 2020, p. 48-49.

237
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Uber, constatam que a plataforma, num primeiro momento, deixa


de premiar os usuários com promoções exclusivas. Posteriormente,
passam a enviar advertências aos trabalhadores por mensagens na
própria plataforma ou e-mail, para então procederem ao bloqueio
automático do motorista e seu desligamento.
Ainda no caso da Uber, o gerenciamento algorítmico opera
também a partir das avaliações dos clientes: motoristas que não re-
cebem boas avaliações correm o risco de serem desligados da plata-
forma54, mecanismo que combina o poder disciplinar, pela punição
aplicada ao motorista que não atende às expectativas da plataforma,
e ainda o poder fiscalizatório, por se tratar de instrumento coercitivo
para buscar a alta performance dos trabalhadores.
Enfim, para além de refletir os paralelos entre o gerenciamen-
to algorítmico e os poderes do empregador, é preciso estender a sua
crítica para as possíveis violações aos direitos dos trabalhadores: o
abuso do poder patronal. Isso porque, assim como o empregador
tradicional, a utilização dos algoritmos pelas plataformas digitais
tende a representar afrontas aos direitos fundamentais dos traba-
lhadores, utilizando-se da tecnologia empregada como um meio de
mascarar violações à legislação.
. Assim, permite-se que a tomada das decisões oriundas da
machine learning sejam potencialmente lesivas aos trabalhadores,
afetando desde questões contratuais, como o pagamento de salários
insuficientes e o exercício de longas horas de trabalho, até mesmo
precárias condições labor-ambientais, levando a problemas de saúde
pela exaustão laboral e isolamento social dos trabalhadores55.

54  DUARTE, Fernanda da Costa Portugal; GUERRA, Ana Gonçalves. Plataformização


e trabalho algorítmico: contribuições dos Estudos de Plataforma para o fenômeno da
uberização. Eptic On-Line (UFS), v. 22, 2020, p. 49.
55  WOOD, Alex J; GRAHAM, Mark; LEHDONVIRTA, Vili; HJORTH, Isis. Good Gig, Bad
Gig: Autonomy and Algorithmic Control in the Global Economy. Work, Employment
and Society, Vol. 33(1), 2019, p. 56. Disponível em: https://journals.sagepub.com/
doi/10.1177/0950017018785616. Acesso em: 20 ago. 2021.

238
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

Enfim, por se tratar de meio de produção pautado na utiliza-


ção de dados pessoais dos trabalhadores, o gerenciamento algorít-
mico tende a pôr em risco uma série de direitos fundamentais dos
trabalhadores, tais como a não-discriminação, o acesso à informação
e à privacidade dos trabalhadores56.
Conclui-se, assim, que à exceção do poder regulamentar, de
baixa incidência, todos os demais poderes patronais analisados en-
contram fortes paralelos na figura do gerenciamento algorítmico. Vale
reiterar que, assim como os poderes do empregador são exercidos por
sujeito que faz as vezes do real tomador de serviços, os algoritmos
possuem o papel de “terceirizar” a gestão e tomada de decisões das
plataformas, agindo de forma equiparada aos empregadores.
Salienta-se, ainda, que a ampla eficiência buscada e promovi-
da pelos algoritmos para resultados mais lucrativos às plataformas
implica, necessariamente, no exercício muito mais frequente e rígido
dos poderes exercidos pelos algoritmos sobre os trabalhadores. E da
mesma forma que as prerrogativas são exercidas, os trabalhadores
tornam-se muito mais suscetíveis a abusos do poder patronal, mas-
caradas pela utilização de um meio tecnológico.
Portanto, a negação à relação empregatícia aos trabalhadores
das plataformas digitais implica, necessariamente, na alta permissi-
vidade dos algoritmos sobre a vida e trabalho exercidos por esses
indivíduos, legitimando o uso de verdadeiros poderes equiparados
ao empregador sem qualquer contraprestação ao trabalhador, que
continuará a operar sob a crença da autonomia de seu labor.

4. CONCLUSÃO

O gerenciamento algorítmico, cerne operacional das plata-


formas digitais, escancara um paradoxo gritante da Indústria 4.0: ao

56  ILO. International Labour Office. World Employment and Social Outlook: The Role
of Digital Labour Platforms in Transforming the World of Work. Geneva, 2021, p. 216-217.

239
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

mesmo tempo que a utilização tecnológica torna mais evidente do


que nunca a necessidade de proteção dos trabalhadores, prevalece
um discurso em sentido contrário, que exalta as potencialidades tec-
nológicas e tende a enxergar a plataformização como uma realidade
jurídica completamente nova57.
Assim, a adesão da maior parte da doutrina trabalhista ao feti-
chismo tecnológico e a recusa em reconhecer direitos fundamentais
plenos aos trabalhadores plataformizados desperta a necessidade
de análises mais profundas entre os sujeitos e objetos das relações
tecnológicas de trabalho, comparando-as aos mesmos institutos no
Direito do Trabalho.
Para tanto, buscou-se compreender num primeiro momento
a figura do empregador e suas características na história, tida como
figura ambivalente por possuir, ao mesmo tempo, características
formalmente isonômicas com o trabalhador, como herança da teoria
da contratualidade, e fortes prerrogativas jurídicas, garantidas pelo
viés autoritário que é herdado da teoria da instituição.
Posteriormente, passou-se à análise específica dos pode-
res do empregador, que nada obstante não encontrem expressa
previsão legal, são pacificamente recepcionados pela doutrina e
jurisprudência trabalhistas como um efeito jurídico do contrato de
trabalho. Destaca-se, nesse sentido, o poder diretivo patronal, e os
demais poderes são seus corolários: o regulamentar, o fiscalizatório
e o poder disciplinar.
Enfim, analisou-se o conceito e principais características do
gerenciamento por algorítmicos e seus principais elementos, com-
parando-os, em seguida, aos poderes no empregador. Diante desta
comparação, entende-se como plenamente possível estabelecer um
paralelo entre ambos, em razão da ampla gama de prerrogativas de-

57  FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, uberização do trabalho e


regulação no capitalismo contemporâneo. In: In: ANTUNES, Ricardo (org.). Uberização,
Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 60.

240
GERENCIAMENTO ALGORÍTMICO NAS PLATAFORMAS DIGITAIS DE TRABALHO:
UMA LEITURA DA RELAÇÃO DE TRABALHO SOB A ÓTICA DOS PODERES DO EMPREGADOR

legadas a terceiro – que no caso das plataformas, será um algoritmo


– para fins de atender aos interesses do tomador de serviços. Entre
os poderes exercidos pelas plataformas, destacam-se o diretivo, o
fiscalizatório e o disciplinar.
Pelo exposto, o esforço acadêmico empreendido leva à
conclusão não apenas pela possibilidade do reconhecimento da
subordinação algorítmica dos trabalhadores às plataformas digitais,
mas da sua real necessidade. Isso porque os poderes incumbidos aos
algoritmos, por ultrapassarem as capacidades e limitações humanas,
são muito mais frequentes e incisivos do que os poderes exercidos
por seres humanos. Além disso, torna ainda mais lesiva a ameaça a
abusos de poderes pelas plataformas digitais, sobretudo conside-
rando a constante manipulação de dados dos trabalhadores.
Por derradeiro, vale rememorar que a própria existência dos
poderes do empregador como um efeito jurídico do contrato do
trabalho é efeito de uma equívoca legitimação do viés autoritário
patronal na regência das atividades laborais. E a negação ao reco-
nhecimento de que o gerenciamento algorítmico implica, necessa-
riamente, no exercício de tais poderes, conduz à nova legitimação
da barbárie: a exploração do trabalho digital sob o manto jurídico da
autonomia contratual plena.

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244
A FISCALIZAÇÃO
ADMINISTRATIVA DO
CUMPRIMENTO DOS TRATADOS
INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO
DIREITO FUNDAMENTAL AO
TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Felipe Macêdo Pires Sampaio1

1  Auditor-Fiscal do Trabalho. Coordenador Acadêmico da Escola Nacional da


Inspeção do Trabalho - ENIT, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho - SIT, do
Ministério do Trabalho e Previdência. Editor-Chefe da Revista da Escola Nacional da
Inspeção do Trabalho. Coordenador e professor de cursos da Inspeção do Trabalho.
Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho (Juspodivm - BA). Pós-
Graduado em Inovação e Novas Tecnologias na Educação (ENAP - DF). Graduado
em Direito pela Universidade Federal da Bahia - UFBA.
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O presente trabalho buscou analisar a disciplina sobre os tratados internacionais de
direitos humanos no Brasil, concedendo um enfoque à visão constitucional sobre
o assunto, em especial o tratamento conferido à temática pelo Supremo Tribunal
Federal. Após, buscou-se analisar a competência administrativa da Inspeção do
Trabalho para a fiscalização desses instrumentos, enfocando também a prática da
fiscalização. Por fim, investigou-se se esse órgão fiscalizatório exerce fiscalização
efetiva dos tratados internacionais sobre direitos humanos em matéria trabalhista
ratificados pelo Brasil, com foco na análise do ementário da Inspeção do Trabalho
utilizado para a lavratura de Autos de Infração.
Palavras-chave: Direitos humanos; Inspeção do Trabalho; controle de
convencionalidade

Abstract
The present work sought to analyze the discipline on international human rights
treaties in Brazil, focusing on the constitutional view on the subject, especially
the treatment given to it by the Supreme Court. After that, sought to analyze the
administrative competence of the Labor Inspection for the fiscalization of these
instruments, also focusing on the practice activities of inspection. Finally, it was
investigated whether this institution exercises effective supervision of international
treaties on human rights in labor matters ratified by Brazil, focusing on the analysis
of the Labor Inspection manual used for the issuance of Infraction Notices.
Key words: Human rights; Labor Inspection; conventionality control

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo trata sobre a fiscalização administrativa do


cumprimento dos tratados internacionais como forma de efetivação
do direito fundamental ao trabalho decente no Brasil. Nesse sentido,
tem o objetivo de analisar os limites impostos à Inspeção do Traba-
lho ao fiscalizar a aplicação de tratados internacionais sobre direitos
humanos relacionadas ao trabalho no Brasil, além de verificar em que
medida esses diplomas normativos são efetivados no ordenamento
jurídico nacional.
Ademais, o estudo em comento tem como cerne uma aborda-
gem crítica sobre os procedimentos que devem ser adotados em caso
de choque da normativa internacional com as normas infraconstitu-

246
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

cionais brasileiras, à luz da decisão do Supremo Tribunal Federal no


RE 466.343-1 SP acerca da supralegalidade de tratados internacio-
nais de direitos humanos e da aplicação do princípio da proteção,
notadamente por meio da aplicação da norma mais favorável.
Nesse contexto, o estudo proposto guarda relação com o fato
de que, apesar de o Brasil ser signatário de diversos desses diplomas
internacionais, ainda não foi difundida no país uma cultura jurídica
de efetivo cumprimento dessas normas internacionais de proteção
ao trabalho.
Essa conjuntura torna-se ainda mais grave por ignorar
o mandamento constitucional que assegura a observância dos
tratados internacionais de direitos humanos, como também por
desrespeitar o caráter supralegal das convenções internacionais
em matéria trabalhista, devendo prevalecer inclusive quando con-
trários à legislação interna.
A temática ora em comento ganha especial importância no
contexto de inúmeras revisões normativas sem o compromisso com
a fundamentalidade dos direitos sociais e com a sua efetividade,
primando pelo desrespeito aos parâmetros constitucionais e inter-
nacionais de proteção ao trabalho, e atentando contra o princípio da
vedação ao retrocesso social.
Com efeito, o presente artigo busca investigar sobre a impor-
tância do respeito e aplicação das normas internacionais em temas
relacionados ao trabalho, além de identificar a sua fundamentalidade
e sustentáculo constitucional. Para tanto, busca-se analisar critica-
mente a atuação da Inspeção do Trabalho, órgão constitucionalmente
incumbido da fiscalização da legislação trabalhista no âmbito extraju-
dicial, que conta, inclusive, com previsão nas normas da Organização
Internacional do Trabalho, de modo a garantir a defesa do direito
fundamental ao trabalho decente.

247
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Para tanto, o estudo parte do seguinte problema: Inspeção


do Trabalho brasileira fiscaliza plenamente a aplicação dos tratados
internacionais de direitos humanos em matéria trabalhista?
Utiliza-se a vertente metodológica jurídico-sociológica, pois
a pesquisa compreende o fenômeno jurídico no ambiente social mais
amplo, analisando as noções de eficiência, eficácia e efetividade das
relações entre direito interno, tratados internacionais sobre direito
do trabalho, Inspeção do Trabalho e sociedade.2
O método de abordagem adotado na presente pesquisa será
o hipotético-dedutivo, que parte de um problema, ao qual se oferece
uma espécie de solução provisória (hipótese), e, com base na teoria-
-tentativa, defendida por Karl Popper, passa-se a criticar a solução
previamente colocada, buscando eliminar o erro.3
A pesquisa exploratória, na maioria dos casos, utiliza o levan-
tamento bibliográfico e a análise de exemplos que facilitem a com-
preensão4, como, na pesquisa em comento, a atuação da Inspeção
do Trabalho. Assim, para a consecução da pesquisa, será utilizada a
pesquisa documental, que, por seu turno, será desenvolvida com base
em materiais que ainda não receberam um tratamento analítico, bem
como por intermédio de materiais já elaborados, como livros, teses
e dissertações, artigos científicos, publicações periódicas, anais de
encontros científicos e impressos diversos.5

2  GUSTIN, Miracy Brabosa de Sousa. (Re) pensando a pesquisa jurídica: teoria e


prática. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 22.
3  LAKATOS, Eva Maria. Fundamentos de metodologia científica. 3. ed. São Paulo:
Atlas, 1991, p. 95.
4  Ibid, p. 41.
5  GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas,
2002, p. 45.

248
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

2. DISCIPLINA CONSTITUCIONAL SOBRE OS TRATADOS


INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO BRASIL

No âmbito internacional, existe um robusto arcabouço


de proteção ao direito humano ao trabalho decente, sendo o seu
principal expoente a Organização Internacional do Trabalho – OIT.
Esse órgão foi criado pela Conferência de Paz, em 1919, após o fim da
Primeira Guerra Mundial, sendo o Brasil um dos membros fundado-
res. Em 1944, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a OIT adotou a
Declaração de Filadélfia que, como anexo à sua Constituição, até hoje
constitui a carta de princípios e objetivos da Organização, além de
ter servido como referência para a Carta das Nações Unidas (1945)
e para a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Nos
mais de 100 anos da OIT, diversos foram os esforços para promover
o trabalho digno, em especial por meio da adoção de Convenções e
Protocolos em várias matérias relacionadas ao trabalho.
Durante todo esse tempo, outros órgãos internacionais, sen-
síveis à necessidade de defesa do direito humano ao trabalho decen-
te, também adotaram diplomas normativos. A título exemplificativo,
é possível citar o Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre
Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Cul-
turais (Protocolo de San Salvador), no âmbito do Sistema Interame-
ricano de Direitos Humanos, bem como o Pacto Internacional sobre
os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na esfera do Sistema
Global de Direitos Humanos.
Essa preocupação no âmbito internacional também foi com-
partilhada pelo constituinte brasileiro, já que a Constituição da Re-
pública de 1988, em seu art. 4º, II, consagra a prevalência dos direitos
humanos. Além disso, o art. 5º, § 2º, estabelece a cláusula de abertura
material dos direitos e garantias fundamentais, reconhecendo, por-
tanto, que os tratados internacionais sobre direitos humanos fazem

249
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

parte do ordenamento jurídico brasileiro e que, portanto, compõem


o bloco de constitucionalidade. No § 3º do art. 5º a constituição
ainda prevê a possibilidade de tratados e convenções internacionais
sobre direitos humanos terem status equivalentes às emendas cons-
titucionais, desde que sejam aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos
membros. Já o § 4º do mesmo artigo afirma que o Brasil se submete à
jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha mani-
festado adesão.
Nesse sentido, a Constituição reconhece que o ordenamento
jurídico brasileiro está alicerçado na coexistência entre o sistema
jurídico brasileiro e as normas e tratados internacionais ratificados
pelo Brasil, conferindo especial importância para aquelas que tute-
lem direito direitos humanos.
Flávia Piovesan afirma que os direitos humanos são “uma
plataforma emancipatória voltada para a proteção da dignidade hu-
mana”.6 No mesmo sentido, Gabriela Neves Delgado leciona que “a
dimensão ética dos Direitos Humanos revela-se em plenitude pelas
noções de dignidade humana, de cidadania e de justiça social”7.
Ao tratar dos direitos humanos, Valerio de Oliveira Mazzuo-
li ensina que:
8

Os direitos humanos são, portanto, direitos protegidos


pela ordem internacional (especialmente por meio de
tratados multilaterais, globais ou regionais) contra as
violações e arbitrariedades que um Estado possa come-
ter às pessoas sujeitas à sua jurisdição. São direitos in-
dispensáveis a uma vida digna e que, por isso, estabele-

6  PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 9 ed. São Paulo: Saraiva,
2019, p. 64.
7  DELGADO, Gabriela Neves. Os direitos sociotrabalhistas como dimensão dos direitos
humanos. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, v. 79, p. 199-219, 2013, p. 200.
8  MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 8 ed. São Paulo: Método,
2021, p. 23.

250
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

cem um nível protetivo (standard) mínimo que todos os


Estados devem respeitar, sob pena de responsabilidade
internacional. Assim, os direitos humanos são direitos
que garantem às pessoas sujeitas à jurisdição de um
dado Estado meios de vindicação de seus direitos, para
além do plano interno, nas instâncias internacionais de
proteção (v.g., em nosso entorno geográfico, perante
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que
poderá submeter a questão à Corte Interamericana de
Direitos Humanos).

Dessa forma, os direitos humanos estão ligados ao direito


internacional público. Isso porque eles são garantidos por normas
de internacionais, sejam elas convenções, declarações ou tratados
celebrados entre Estados com o propósito específico de proteger os
direitos das pessoas sujeitas à sua jurisdição9. Esses direitos podem
ser das mais variadas naturezas, como: os civis e políticos; econômi-
cos, sociais e culturais, etc. Para o presente estudo, importa o direito
ao trabalho, que está localizado no âmbito dos direitos humanos
econômicos, sociais e culturais.
Para que um tratado internacional tenha validade no territó-
rio nacional, é necessária a manifestação convergente do Poder Exe-
cutivo e do Poder Legislativo. A apreciação do tratado internacional
pelo Congresso Nacional comporta a sua aprovação, com a conse-
quente promulgação mediante Decreto Legislativo. O Congresso
pode não aprovar a norma internacional, oportunidade na qual fica
inviabilizada a ratificação do tratado internacional pelo Chefe do
Poder Executivo. O Congresso Nacional poderá, ainda, aprovar em
parte o tratado.
Ressalte-se que, em que pese existir uma minoritária con-
cepção monista, acerca da comunicabilidade da ordem interna
e do ordenamento internacional, por força do julgamento do RE

9  Ibid, p. 22.

251
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

466.343-1 SP pelo Supremo Tribunal Federal, o Brasil adota, de for-


ma majoritária, uma concepção dualista, no sentido de que os dois
ordenamentos são distintos. Contudo, isso não quer dizer que não
devem ser tratados de forma harmônica e que não devem coexistir e
serem observados. Uma vez cumprido o rito de aprovação pelo Exe-
cutivo e pelo Legislativo o tratado internacional, ele deve ser cum-
prido no ordenamento jurídico brasileiro. E se a norma internacional
versar sobre direitos humanos, ela terá status supralegal, estando,
portanto, hierarquicamente, acima das Leis Federais, mas abaixo da
Constituição da República.
Para que não reste qualquer dúvida: uma vez que o tratado
internacional sobre direitos humanos é aprovado pelo Executivo e
pelo Legislativo e ratificado ele passa a ter força maior que as leis
ordinárias, estando em um patamar superior a elas; ficam abaixo
apenas da Constituição. Dessa forma, havendo um choque entre as
disposições constantes em leis brasileiras e aquelas constantes em
tratados internacionais sobre direitos humanos ratificados, estas
últimas prevalecerão. Sendo assim, havendo uma colisão entre essas
normas, deverá ser aplicada a técnica do controle de convencionali-
dade. A lei ordinária só prevalece se for mais benéfica ao empregado,
em razão do princípio da norma mais favorável.
Dessa forma, considerando essa concepção dualista e a
diretriz constitucional de prevalência dos direitos humanos e das
normas internacionais, emerge a necessidade de discutir o controle
de convencionalidade. Valério Mazzuoli afirma que “o controle de
convencionalidade das leis, nada mais é do que o processo de compa-
tibilização vertical (sobretudo material) das normas domésticas com
os comandos encontrados nas convenções internacionais de direitos
humanos em vigor no Estado”10.

10  MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos. 8 ed. São Paulo: Método,
2021, p. 189.

252
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Sobre esse instituto jurídico, Rodolfo Pamplona Filho ensina


que “o mecanismo do controle de convencionalidade é uma impor-
tante ferramenta que deve ser utilizada para que os ordenamentos
jurídicos dos Estados possam promover a efetivação dos direitos tra-
balhistas, bem como dos demais direitos humanos fundamentais”11.
Com efeito, os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo,
devem, obrigatoriamente, zelar pela normatividade e efetividade do
cumprimento dos tratados internacionais no ordenamento jurídico
brasileiro. É necessário lembrar, contudo, que no âmbito do Direito
do Trabalho, naturalmente, esse cumprimento deve sempre respei-
tar o princípio da norma mais favorável.

3. A INSPEÇÃO DO TRABALHO COMO ÓRGÃO DE


FISCALIZAÇÃO DO CUMPRIMENTO DO ORDENAMENTO
JURÍDICO TRABALHISTA

A Inspeção do Trabalho tem previsão na Convenção nº 81 da


Organização Internacional do Trabalho - OIT, instituída na 30ª reu-
nião da Conferência Internacional do Trabalho em 1947, na cidade de
Genebra, na Suíça, que confere aos Inspetores de Trabalho a função
de assegurar a aplicação das disposições legais concernentes às con-
dições de trabalho e à proteção dos trabalhadores no exercício das
suas profissões, em especial aquelas relativas: à duração do trabalho,
aos salários, à segurança, à higiene e ao bem-estar, ao emprego das
crianças e dos adolescentes e a outras matérias conexas.
No Brasil, essa Convenção foi aprovada pelo Decreto Legis-
lativo nº 24, de 29 de maio de 1956, e promulgada pelo Decreto nº
41.721, de 25 de junho de 1957. Atualmente, em vigência pelo Decreto

11  PAMPLONA FILHO, Rodolfo; ROCHA, Matheus Lins. O controle de convencionalidade


como mecanismo efetivador do direito humano fundamental ao trabalho: a sua
aplicação no âmbito da reforma trabalhista. Revista eletrônica do Tribunal Regional
do Trabalho da Bahia, Salvador, v. 7, n. 10, p. 210-236, out. 2018.

253
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Nº 10.08812, de 5 de novembro de 2019, que consolidou atos nor-


mativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre
a promulgação de convenções e recomendações da Organização In-
ternacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Federativa
do Brasil.
É possível notar uma preocupação da Convenção 81 com a
independência da Inspeção do Trabalho, ao afirmar no seu artigo 6º
que “o pessoal da inspeção será composto de funcionários públicos
cujo estatuto e condições de serviços lhes assegurem a estabilidade
nos seus empregos e os tornem independentes de qualquer mudança
de governo ou de qualquer influência externa indevida”.
Seguindo o contexto internacional, a Constituição da Repú-
blica de 1988, com o objetivo de reforçar a diretriz do efetivo acesso
dos brasileiros ao direito social ao trabalho decente, no seu art. 21,
XXIV, atribuiu à União a competência para organizar, manter e exe-
cutar a Inspeção do Trabalho.
A transição para a Ordem Constitucional democrática, a par-
tir da promulgação da Constituição Federal de 1988, foi um momen-
to importante para a Inspeção do Trabalho brasileira. Isso porque
a competência atribuída à União foi fixada no plano constitucional
pela primeira vez, desde a sua criação, ainda com o mero status de
“inspeção de fábricas” (Decreto nº 1.313, de 1891)13.
Tal competência é exercida pelos Auditores-Fiscais do Tra-
balho, que, vinculados diretamente à Subsecretaria de Inspeção do

12  BRASIL. Decreto Nº 10.088, de 5 de novembro de 2019. Consolida atos normativos


editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de
convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT
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254
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Trabalho, órgão do Ministério do Trabalho e Previdência, são autori-


dades integrantes de carreira típica de Estado, cuja organização legal
ficou a cargo da Lei nº 10.593, de 06 de dezembro de 2002. Foi por
meio dessa lei que se alcançou a similaridade das denominações en-
tre as fiscalizações federais da Previdência Social, da Receita Federal
e do Trabalho14. Ela ainda conferiu a denominação de Auditores-Fis-
cais do Trabalho aos membros da Inspeção do Trabalho, conhecidos
como Inspetores do Trabalho no âmbito da OIT.
O art. 11 da referida Lei refere-se às atribuições dos Audito-
res-Fiscais do Trabalho da seguinte forma, in verbis:

Art. 11. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do


Trabalho têm por atribuições assegurar, em todo o
território nacional:

I - o cumprimento de disposições legais e regulamenta-


res, inclusive as relacionadas à segurança e à medicina
do trabalho, no âmbito das relações de trabalho e de
emprego;

II - a verificação dos registros em Carteira de Trabalho


e Previdência Social - CTPS, visando a redução dos
índices de informalidade;

III - a verificação do recolhimento e a constituição e


o lançamento dos créditos referentes ao Fundo de
Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e à contribuição
social de que trata o art. 1o da Lei Complementar no
110, de 29 de junho de 2001, objetivando maximizar os
índices de arrecadação;

14  MATTJE, Emerson. MATTJE, Daiane. A Auditoria-Fiscal do Trabalho no Brasil em


Perspectiva Histórica. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, 2017, p.
128-147. Disponível em: < https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php/RevistaEnit/
article/view/8/9 >. Acesso em 13.03.2022.

255
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

IV - o cumprimento de acordos, convenções e contratos


coletivos de trabalho celebrados entre empregados e
empregadores;

V - o respeito aos acordos, tratados e convenções inter-


nacionais dos quais o Brasil seja signatário;

VI - a lavratura de auto de apreensão e guarda de


documentos, materiais, livros e assemelhados, para
verificação da existência de fraude e irregularidades,
bem como o exame da contabilidade das empresas, não
se lhes aplicando o disposto nos arts. 17 e 18 do Código
Comercial.

VII - a verificação do recolhimento e a constituição e o


lançamento dos créditos decorrentes da cota-parte da
contribuição sindical urbana e rural.

§1º. O Poder Executivo regulamentará as atribuições


privativas previstas neste artigo, podendo cometer aos
ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho ou-
tras atribuições, desde que compatíveis com atividades
de auditoria e fiscalização.

§ 2º. Os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do Traba-


lho, no exercício das atribuições previstas neste artigo,
são autoridades trabalhistas.

É possível verificar que essas atribuições estão diretamente


ligadas à promoção de políticas públicas e o exercício de funções
correspondentes a um poder-dever do Estado. No caso da Auditoria,
há relevante importância da sua linha de atuação, nos mais diversos
âmbitos da promoção do direito ao trabalho, como por exemplo: no
combate ao trabalho infantil; na erradicação do trabalho escravo ou
análogo ao de escravo; fiscalização do trabalho portuário e aquaviário;

256
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

na promoção da segurança e saúde no trabalho; ou ainda na arrecada-


ção de recursos para o FGTS e contribuições sociais, entre outros.
Cabe ressaltar, ademais, que as atribuições da Inspeção do
Trabalho impactam direta e positivamente no Sistema de Seguridade
Social, com maior projeção na Saúde e Previdência, sendo interesse
da sociedade a manutenção de uma força de trabalho produtiva,
sadia e que dependa menos da Previdência e dos serviços da Saúde.
Assim, além das importantes funções sociais exercidas pelos Au-
ditores-Fiscais do Trabalho no sentido da inclusão no mercado de
trabalho e a promoção do trabalho digno, há uma inegável função ar-
recadatória nas suas atribuições e, principalmente, a função de evitar
que o Estado Brasileiro tenha de destinar mais recursos à Saúde ou
à Previdência, para custear benefícios por incapacidade decorrentes
de acidentes de trabalho ou do adoecimento ocupacional.
Note-se que o art. 11, §1º da Lei 10.593, de 06 de dezembro
de 2002, prevê que o Poder Executivo regulamentará as atribuições
privativas previstas no referido artigo, podendo cometer aos ocu-
pantes do cargo de Auditor-Fiscal do Trabalho outras atribuições,
desde que compatíveis com atividades de auditoria e fiscalização.
Tendo em vista essa disposição, o quanto previsto no art. 21, XXIV,
da Constituição da República de 1988 e na Convenção 81 da OIT, foi
editado o Regulamento da Inspeção do Trabalho por meio do Decre-
to Nº 4.552, de 27 de dezembro de 200215. O art.  18 deste Decreto
dispõe sobre a competência dos Auditores-Fiscais do Trabalho em
extenso rol.
A necessidade desse órgão fiscalizatório encontra alicerce
no fato de que não há razão de ser em um ordenamento jurídico sem
a exigência de sua observância. Dessa forma, o Direito do Trabalho,
como parte desse ordenamento jurídico, destinou à Auditoria-Fiscal

15  BRASIL. Decreto Nº 4.552, de 27 de dezembro de 2002. Aprova o Regulamento da


Inspeção do Trabalho. Brasília, DF, 27 dez. 2002. Disponível em: < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2002/d4552.htm>. Acesso em: 02 jun. 2022.

257
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

do Trabalho o papel de zelar pelas leis trabalhistas16. Fiscalização do


Trabalho, dessa forma, consiste em uma ação destinada à verificação
da observância das disposições legais sobre condições de trabalho,
à orientação das partes envolvidas na relação de trabalho, no que se
refere ao regular cumprimento das normas trabalhistas17.
Com efeito, considerando as competências previstas na
Constituição da República de 1988, na Lei 10.593/2002 e no De-
creto Nº 4.552/2002, com facilidade, é possível perceber que os
Auditores-Fiscais do Trabalho têm competência para fiscalizar o
cumprimento das leis, acordos coletivos e convenções coletivas de
trabalho. Contudo, cabe investigar agora o que mais importa para a
presente pesquisa: a competência da Inspeção do Trabalho brasileira
para a aplicação direta de normas internacionais.
Nesse sentido, o art. 11, inciso V, da referida Lei nº 10.593, de 06
de dezembro de 2002 que os ocupantes do cargo de Auditor-Fiscal do
Trabalho têm por atribuições assegurar, em todo o território nacional
“o respeito aos acordos, tratados e convenções internacionais dos
quais o Brasil seja signatário”. Fica claro, por conseguinte, a intenção
do legislador de que a Inspeção do Trabalho dê cumprimento aos
diplomas internacionais dos quais o Estado brasileiro seja signatário.
Essa intenção é reiterada no Decreto Nº 4.552, de 27 de de-
zembro de 2002, da seguinte forma:

Art. 18. Compete aos Auditores-Fiscais do Trabalho,


em todo o território nacional:

(…)

16  MATTJE, Emerson. MATTJE, Daiane. A Auditoria-Fiscal do Trabalho no Brasil em


Perspectiva Histórica. Revista da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho, 2017, p.
128-147. Disponível em: < https://enit.trabalho.gov.br/revista/index.php/RevistaEnit/
article/view/8/9 >. Acesso em 13.03.2022.
17  Ibidem.

258
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

d) o cumprimento dos acordos, tratados e convenções


internacionais ratificados pelo Brasil;

Dessa forma, é cristalina a possibilidade de os Auditores-


-Fiscais do Trabalho fiscalizarem os acordos, tratados e convenções
internacionais dos quais o Brasil seja signatário. E não poderia ser
diferente, já que não faria sentido que só fosse possível que a fisca-
lização ocorresse apenas quanto à legislação ordinária, aos acordos
coletivos de trabalho e convenções coletivas de trabalho. Isso porque,
como exposto no capítulo anterior, os tratados internacionais ratifi-
cados pelo Brasil integram o ordenamento jurídico interno e, ao se
versarem sobre direitos humanos, têm status superior à Lei, estando
abaixo apenas da Constituição. Além disso, se seguiram o rito do art.
5º, § 3º da Constituição Federal de 1988, têm status constitucional.
Dessa forma, para que a fiscalização seja efetiva, é necessário
que ela ocorra sobre todas as normas de natureza trabalhistas que
integram o ordenamento jurídico brasileiro, devendo incluir, por-
tanto, os acordos, tratados e convenções internacionais ratificados
pelo Brasil. Não é desnecessário lembrar que, ao ratificar um diploma
normativo internacional, a República Federativa do Brasil assume um
compromisso perante a comunidade internacional de fazer cumprir
as suas disposições concretamente.
Os mencionados diplomas são efetivas normas e, como tal,
devem ser cumpridas. Sendo assim, é um poder-dever da Inspeção
do Trabalho fiscalizar o cumprimento dos acordos, tratados e con-
venções internacionais ratificados pelo Brasil, já que essa instituição
tem a finalidade de exercer as funções de vigilância e fiscalização do
cumprimento das normas de proteção ao trabalho, bem como impor
sanções aos infratores, prestar assessoramento e informações aos
envolvidos na relação de trabalho18.

18  MANNRICH, Nelson. Inspeção do Trabalho. São Paulo: LTr, 1991.

259
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

4. A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO


DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO FORMA
DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO
TRABALHO DECENTE NO BRASIL

O Brasil, como uma república democrática relativamente


jovem e de tradição jurídica estritamente legalista, ainda não tem
consolidado um devido comprometimento com a aplicação plena da
Constituição Federal de 1988 e com a sua utilização como parâmetro
de filtragem do ordenamento jurídico. Essa conjuntura tem reflexos
na aplicação do Direito do Trabalho. Em alguns casos a Consolidação
das Leis do Trabalho continua a ser interpretada como se a ordem
constitucional não tivesse sido alterada e como se o Brasil não ti-
vesse se redemocratizado; ou seja, ao invés de se interpretar a CLT
conforme a nova Constituição, continuou-se a conferi-la o mesmo
sentido original, de acordo com a ideologia da Constituição de 193719.
Esse padrão é transposto para a aplicação de normas interna-
cionais, já que apesar de o Brasil ser signatário de diversos diplomas
internacionais, ainda não foi difundida no país uma cultura jurídica
de efetivo comprometimento com essas normas internacionais de
proteção ao trabalho. No presente trabalho, por necessidade de de-
limitar o objeto da pesquisa, focar-se-á apenas no tema da aplicação
das normas internacionais.
Nesse sentido, Valdete Souto Severo20 afirma que, “no Brasil,
ainda não desenvolvemos uma cultura jurídica verdadeiramente

19  SANTOS, Edilton Meireles de Oliveira.. A persistente interpretação institucionalista


(positivista-nazifascista) no Direito do Trabalho brasileiro. In: NEMER NETO, Alberto
et al. 80 anos da Justiça do Trabalho: a democracia e a cidadania à luz da tutela
jurisdicional trabalhista. São Paulo: LEX ; OAB Nacional, 2021. p. 335-370.
20  SEVERO. Valdete Souto. O Tribunal Superior do Trabalho e a Importância da
Aplicação das Normas da Organização Internacional do Trabalho em Tempos de
Exceção. In: ROCHA, Cláudio; PORTO, Lorena; ALVARENGA, Rúbia; Pires, Rosemary.
A organização internacional do trabalho: sua história, missão e desafios. Vol. 1. São
Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 246.

260
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

comprometida com as normas internacionais de proteção ao tra-


balho”. A autora defende, ademais, que essa deficiência permanece,
apesar da produção de diplomas internacionais ao longo do século
XX que impuseram limites ao capital. Segundo ela, apenas em 1988,
com a abertura democrática e a nova Constituição, o Brasil se com-
prometeu com “o caráter fundamental desses direitos, albergando
a doutrina que, em nível internacional, reconhece a importância dos
parâmetros internacionais de validade desse mínimo que deve estar
no fundamento de qualquer estado capitalista”.
Contudo, esse comprometimento não se efetivou plena-
mente. Essa conjuntura torna-se ainda mais grave por importar no
descumprimento do mandamento constitucional que assegura a
observância dos tratados internacionais de direitos humanos, como
também por desrespeitar o caráter supralegal das convenções inter-
nacionais em matéria trabalhista, as quais devem prevalecer inclusive
quando contrárias à legislação interna.
Apesar disso, é importante ressaltar o fato de que cada vez
mais os parâmetros internacionais têm sido utilizados em decisões
trabalhistas no âmbito judicial. Em algumas decisões proferidas pelo
Tribunal Superior do Trabalho é possível verificar uma inicial preo-
cupação em fundamentar, ainda que em alguns casos para afastar
o direito, com base em normas da Organização Internacional do
Trabalho21. Severo elenca alguns exemplos:

Em Agravo interposto no processo ARR - 924-


74.2013.5.08.0012, publicado em 06/09/2019, a Mi-
nistra Relatora Maria Helena Mallmann salienta que “a
OIT aprovou a Convenção nº 190, ratificada pelo Brasil

21  SEVERO, Valdete Souto. O Tribunal Superior do Trabalho e a Importância da


Aplicação das Normas da Organização Internacional do Trabalho em Tempos de
Exceção. In: ROCHA, Cláudio; PORTO, Lorena; ALVARENGA, Rúbia; Pires, Rosemary.
A organização internacional do trabalho: sua história, missão e desafios. Vol. 1. São
Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 253.

261
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

em junho de 2019, que é contra a violência e assédio


no mundo do trabalho e reconhece que a violência e
o assédio alcançam tanto as trabalhadoras, como os
trabalhadores e outras pessoas pertencentes a um ou
vários grupos vulneráveis ou em situação de vulnerabi-
lidade que sejam afetados de maneira desproporcional
pela violência ou assédio no ambiente de trabalho
(artigos 6 e 7)”. Com esse fundamento, e reconhecendo
que “a vulnerabilidade da trabalhadora é ainda maior
por se tratar de empregada terceirizada vítima de
assédio sexual por parte de superior hierárquico que é
empregado de empresa pública”, a decisão restabeleceu
a sentença que havia fixado um condenação a título de
dano moral no valor de R$ 111.400,00 (cento e onze mil
e quatrocentos reais), para o caso de assédio sexual
e perseguição no ambiente de trabalho, em razão da
recusa em ceder às investidas.

Também é da Ministra Maria Helena Mallmann a deci-


são proferida no processo RR-1199-15.2010.5.06.0002,
publicada em 05/04/2019, na qual ela refere, em caso
de trabalhador acometido por doença decorrente do
agente etiológico amianto, “cujo prazo de latência é
bastante extenso, chegando até a 30 anos”, que a Con-
venção 162 da OIT, aliada à Lei 9055/95, estabelece a
necessidade de submissão a exames médicos (incluindo
raio-x e espirometria), “além da avaliação clínica, na
admissão, periodicamente e pós-demissionais por até
30 anos, em periodicidade determinada pelo tempo de
exposição”. Conclui-se em que casos como esse é “invi-
ável declarar prescrita a pretensão, porque não houve
efetiva consolidação das lesões para fins de fixação do
marco temporal respectivo”.

No Ag-AIRR-24335-36.2015.5.24.0076, o Ministro
Relator Mauricio Godinho Delgado, em decisão pu-
blicada em 21/06/2019, mantendo a compreensão de
impossibilidade de despedida de empregado doente,

262
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

refere-se expressamente à Convenção 111 da OIT, que


impõe “o rechaçamento a toda forma de discriminação
no âmbito laboral”. É também do Ministro Maurício
Godinho Delgado a decisão proferida no RR-588-
54.2013.5.04.0021, publicado em 24/05/2019, em que
há referência à observância da Convenção nº 155 da OIT,
“que expressamente estabelece a adoção de medidas
relativas à segurança, à higiene e ao meio ambiente do
trabalho” e que em seu artigo 4º “suscita o compromis-
so, por parte dos Estados-Membros, de adotar medidas
necessárias à garantia de trabalho digno, seguro e sau-
dável para os trabalhadores”. A hipótese concreta era
de trabalhador sujeito à atividade insalubre e à regime
de compensação de jornada. A conclusão foi no sentido
de que “a previsão de compensação de jornada deve ser
considerada inválida”, porque constatado o trabalho
em atividade insalubre, sendo devida a integralidade
das horas extras. A decisão afasta, inclusive, a aplicação
da súmula 85.

(GRIFOS NO ORIGINAL)

A título exemplificativo, também é possível mencionar das se-


guintes decisões do TST: nos autos do AIRR-2476-17.2013.5.02.0085,
onde o Ministro Relator Cláudio Mascarenhas Brandão, na decisão
publicada dia 05/07/2019, buscou fundamentação em Convenção
nº 81 da OIT; nos autos do ARR-57462.2013.5.15.0054, o Ministro
Cláudio Mascarenhas Brandão fundamenta sua decisão na Conven-
ção nº 155 da OIT; e no processo E-ED-RR - 68-29.2014.5.09.0245,
publicado em 26/04/2019, novamente o Ministro Cláudio Brandão
utiliza-se das disposições das Convenções 158 e 111 da OIT.
Nota-se, por conseguinte, que a Corte Trabalhista começa a
dar os primeiros passos, ainda que tímidos, no caminho da aplicação
efetiva das normas internacionais das quais o Brasil é signatário. A
rigor, assim fazendo, também está dando efetividade à Constituição

263
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Federal de 1988, já a norma fundamental determina o respeito às


convenções internacionais.
Contudo, para a presente pesquisa, é necessário verificar se a
Inspeção do Trabalho também segue o caminho da efetiva aplicação
das normas internacionais. Ou seja, Inspeção do Trabalho brasileira
fiscaliza plenamente a aplicação dos tratados internacionais de di-
reitos humanos em matéria trabalhista?
No capítulo anterior do presente trabalho, tratou-se sobre a
competência da Inspeção do Trabalho. Cabe, portanto, agora, para
responder à pergunta anterior, analisar como se dá a atuação dos
Auditores-Fiscais do Trabalho na prática, para então verificar se as
normas internacionais são aplicadas.
De forma simplificada, na sua atuação, os Auditores fiscali-
zam empregadores de forma impessoal, tomando como parâmetro
as disposições normativas do ordenamento jurídico brasileiro e
buscando a retificação de situações contrárias à Lei. A Inspeção do
Trabalho atua tanto de forma preventiva, instruindo empregados
e empregadores, por meio da prestação de informações sobre o
correto cumprimento da Lei, quanto de forma repressiva, no caso
de descumprimento dos preceitos normativos. Cabe mencionar que
a atuação dos membros da Auditoria-Fiscal do Trabalho é norteada
pelo Direito Administrativo, já que esses são agentes públicos inte-
grantes do Poder Executivo dotados do poder de polícia administra-
tivo, devendo agir para prevenir ou reprimir ilícitos administrativos.
Cabe ressaltar que os seus atos administrativos são dotados de:
presunção de legalidade (legitimidade, veracidade); imperatividade
(coercibilidade ou poder extroverso); e autoexecutoriedade (execu-
toriedade e exigibilidade).
Os principais instrumentos de atuação da Inspeção do Traba-
lho, sem prejuízo de outros, são: a lavratura de Autos de Embargo ou

264
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Interdição; a lavratura de Notificação de Débito de FGTS e da Contri-


buição Social – NDFC; e a lavratura de Autos de Infração - AI.
Os embargos e as interdições ocorrem quando presentes
circunstâncias caracterizadoras de grave e iminente risco que pos-
sam causar acidente ou doença com lesão grave ao trabalhador,
conforme disciplina da Norma Regulamentadora N.º 0322. Não têm o
caráter punitivo, mas apenas de prevenção de grave e iminente risco.
A lavratura de Notificação de Débito de FGTS e da Contribuição So-
cial – NDFC ocorre quando detectados débitos em relação ao FGTS
e à respectiva contribuição social, e tem o objetivo de ser o primeiro
passo para a cobrança do valor devido.
O embargo, a interdição e a NDFC não impedem, contudo, a
lavratura de Autos de Infração, que, por sua vez, são lavrados quando
detectadas irregularidades trabalhistas. Em geral, esses documentos
fiscais são acompanhados de Autos de Infração. De acordo com o
art. 628 da CLT, salvo algumas exceções, notadamente a dupla visita,
“a toda verificação em que o Auditor-Fiscal do Trabalho concluir pela
existência de violação de preceito legal deve corresponder, sob pena
de responsabilidade administrativa, a lavratura de auto de infra-
ção”23. O Auto de Infração é, portanto, o documento de constatação
da infração ao ordenamento jurídico. Uma vez lavrado, abre-se um
processo administrativo no qual é possibilitado ao administrado
o contraditório e a ampla defesa; ao final, caso mantido o Auto de
Infração, é aplicada uma multa administrativa.

22  BRASIL. Norma Regulamentadora N.º 03. Embargo e Interdição. Brasília, DF,
Última modificação: Portaria SEPRT 1068, de 23/09/2019. Disponível em: < https://
www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/
secretaria-de-trabalho/inspecao/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/normas-
regulamentadoras-nrs>. Acesso em: 27 jun. 2022.
23  BRASIL. DECRETO-LEI Nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das
Leis do Trabalho. Brasília, DF, 1º mai. 1943. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/decreto-lei/Del5452compilado.htm>. Acesso em: 05 jun. 2022.

265
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

De acordo com o art. 6º da Portaria Nº 667, de 8 de novembro


de 2021, do Ministério do Trabalho e Previdência – MTP24, entre os
elementos obrigatórios que um Auto de Infração deve conter estão:
“ementa da autuação e seu código”; e “capitulação do fato, mediante
citação expressa do dispositivo legal infringido”. A cada Ementa cor-
responde um código diferente. A ementa é uma descrição da conduta
ilícita, elaborada com base no respectivo dispositivo legal infringido.
A seguir alguns exemplos ilustrativos:

CÓDIGO EMENTA CAPITULAÇÃO


Deixar de conceder período mínimo de 11 Art. 66 da
000035-3 (onze) horas consecutivas para descanso Consolidação das Leis
entre duas jornadas de trabalho. do Trabalho.
Manter empregado trabalhando durante Art. 71, caput, da
000046-9 o período destinado ao repouso ou Consolidação das Leis
alimentação. do Trabalho.
Art. 129 da
Manter empregado trabalhando no período
000086-8 Consolidação das Leis
destinado ao gozo de férias.
do Trabalho.
Art. 134, caput, da
Deixar de conceder férias nos 12 (doze)
000091-4 Consolidação das Leis
meses seguintes ao período aquisitivo.
do Trabalho.
Fonte: Ementário da Inspeção do Trabalho

Com o objetivo de cumprir esses requisitos, a Inspeção do


Trabalho elabora um ementário, no qual estão previstas diversas
ementas, com a pretensão de que elas sejam exaustivas para o orde-
namento jurídico trabalhista. Vale dizer: o ementário é construído de
tal forma que a toda infração trabalhista corresponda uma ementa,
já que não é possível lavrar um auto de infração sem ementa. Toda

24  BRASIL. Portaria Nº 667, de 8 de novembro de 2021, do Ministério do Trabalho e


Previdência – MTP. Organização e a tramitação dos processos administrativos de auto
de infração e de notificação de débito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
- FGTS e da Contribuição Social. Brasília, DF, 8 nov. 2021. Disponível em: < https://
in.gov.br/en/web/dou/-/portaria/mtp-n-667-de-8-de-novembro-de-2021-359094059 >.
Acesso em: 27 jun. 2022.

266
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

ementa tem um código; além disso, toda ementa tem uma capitula-
ção como base jurídica.
Dessa forma, é possível perceber que o ementário é um ponto
norteador para a lavratura de Autos de Infração e que é um documen-
to de tamanho considerável, já que busca abarcar toda a legislação
trabalhista, inclusive as normas regulamentadoras. Sendo assim,
o exame deste ementário é um bom parâmetro a ser utilizado para
verificar se há ou não a fiscalização direta acerca do cumprimento das
normas internacionais pela Inspeção do Trabalho.
Até o momento da presente pesquisa, esse ementário não está
publicamente disponibilizado por completo em versão atualizada. O
ementário de segurança e saúde no trabalho está disponibilizado na
Norma Regulamentadora nº 2825, de forma atualizada. Já o restante
do ementário, relacionado à legislação geral do trabalho, não está
disponibilizado de forma atualizada, já que a última versão pública
encontrada é de 200826. Há uma versão atualizada em tempo real,
contudo disponível apenas para a carreira de auditoria.
No âmbito da presente pesquisa analisou-se tanto o ementá-
rio da NR 28 quanto o de legislação de 2008. Além disso, tomou-se
o cuidado de analisar também o ementário atualizado que não está
público. Como resultado de tal pesquisa, chegou-se à conclusão
de que não há qualquer ementa desenvolvida com capitulação em
normas internacionais. Vale dizer, não foi encontrada sequer uma
ementa desenvolvida com base em convenções internacionais e
capitulada nesses diplomas. Além disso, durante a análise, não foram

25  BRASIL. Norma Regulamentadora N.º 28. Fiscalização e Penalidades. Brasília, DF,
Última modificação: Portaria SEPRT n.º 9.384, de 06 de abril de 2020. Disponível em:
< https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/composicao/orgaos-especificos/
secretaria-de-trabalho/inspecao/seguranca-e-saude-no-trabalho/ctpp-nrs/normas-
regulamentadoras-nrs>. Acesso em: 27 jun. 2022.
26  BRASIL. Ementário. Elementos para Lavratura de Autos de Infração.
Brasília, DF, 2008. Disponível em: < http://acesso.mte.gov.br/data/files/
FF8080812BCB2790012BCFB3F0F26BE5/pub_ementario_2008.pdf>. Acesso em: 27 jun.
2022.

267
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

encontrados dispositivos da legislação trabalhista interna sem a


correspondente ementa.
É possível concluir, por conseguinte, que a Inspeção do Tra-
balho, potencialmente, fiscaliza toda a legislação interna brasileira.
Contudo, é possível concluir, também, que não há a aplicação “direta”
de normas internacionais pela Inspeção do Trabalho.
Em uma conclusão apressada poder-se-ia imaginar, portanto,
que essas normas internacionais não seriam fiscalizadas. Contudo,
essa conclusão estaria equivocada. Isso porque afirmar que “não há
a aplicação ‘direta’ das normas internacionais” é diferente de afirmar
que “não há a aplicação das normas internacionais”. Isso porque várias
disposições da legislação interna brasileira promovem o quanto pre-
visto em normas internacionais. Em alguns casos são similares e em
outros casos vão além do mínimo previsto por elas.
Dessa forma, para verificar se a Inspeção do Trabalho aplica
plenamente as normas internacionais ratificadas pelo Brasil, é ne-
cessário analisar se apenas fiscalizar a legislação interna é suficiente
para dar cumprimento aos referidos diplomas internacionais. Assim,
caso sejam encontrados casos em que a legislação interna seja omis-
sa quanto à previsão de uma norma internacional ou que com essa
seja conflitante, seria possível concluir que a respectiva fiscalização
pela Inspeção do Trabalho da respectiva aplicação não é plena.
Metodologicamente, seria inviável fazer essa análise de forma
exaustiva no presente trabalho. Em razão disso, focar-se-á em alguns
casos, que são suficientes para responder à questão norteadora da
presente pesquisa.
Inicia-se essa investigação pelo trabalho doméstico, cujo con-
texto teve importante avanço com a Emenda Constitucional n. 72/2013
e a Lei Complementar n. 150/2015, que trouxeram considerável incre-
mento da proteção a essa modalidade de trabalho no Brasil. A esses
diplomas soma-se a Convenção Relativa ao Trabalho Digno para as

268
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Trabalhadoras e Trabalhadores do Serviço Doméstico, da Organização


Internacional do Trabalho, conhecida como Convenção n. 189 da OIT,
que entrou em vigor no Brasil em 31 de janeiro de 2019.
A Convenção n. 189, contudo, toca em temas não aventados
pelos anteriores diplomas internos, como, por exemplo, o estabe-
lecimento de garantias e proteções aos trabalhadores domésticos
migrantes (artigos 8 e 15), como ressaltado por Maurício Godinho
Delgado27. Por exemplo, o artigo 8 prevê que trabalhadores domésti-
cos migrantes, que são contratados em um país para prestar serviços
domésticos em outro país, devem receber uma oferta de emprego
por escrito ou contrato de trabalho, que seja válido no país onde os
trabalhadores prestarão serviços. Esses documentos devem incluir
as condições de emprego assinaladas no Artigo 7, antes de cruzar as
fronteiras nacionais para assumir o emprego sobre o qual a oferta ou
o contrato dizem respeito.
Desse modo, o ordenamento jurídico interno é omisso a esse
respeito. Veja-se, portanto, que, caso o trabalho doméstico seja
fiscalizado apenas com base na legislação interna, a Convenção n.
189 da OIT, que é um tratado internacional sobre direito humano de-
vidamente ratificado e em vigor, não será efetivada na sua plenitude.
É possível verificar, por conseguinte, que o ementário da Inspeção do
Trabalho é omisso a esse respeito, devendo ser revisto.
Relevantes incompatibilidades das normas internas com as
normas internacionais podem ser encontradas também no contexto
de inúmeras revisões normativas sem o compromisso com a funda-
mentalidade dos direitos sociais e com a sua efetividade, primando
pelo desrespeito aos parâmetros constitucionais e internacionais de
proteção ao trabalho, e atentando contra o princípio da vedação ao
retrocesso social. Diversos são os exemplos desse movimento, mas

27  DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2020,
p. 477.

269
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

aquele mais emblemático é a Lei 13.467/201728, pela sua abrangência.


Tais incompatibilidades não devem ser ignoradas pela Inspeção do
Trabalho, que tem o poder-dever de fiscalizar os tratados interna-
cionais sobre direitos humanos em matéria de Direito do Trabalho
ratificadas pelo Brasil.
Diversos autores, como Maurício Godinho Delgado29, Ga-
briela Neves Delgado30, Rodolfo Pamplona Filho31, Valdete Souto
Severo32 e Silvio Beltramelli Neto33 apontam para a possibilidade de
aplicação do controle de convencionalidade a dispositivos inseridos
no ordenamento jurídico brasileiro pela reforma trabalhista institu-
ída pela Lei 13.467/2017, bem como em outras situações nas quais a
legislação interna brasileira se encontra em desconformidade com
os tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Feitas tais considerações, passa-se ao exame do art. 75-D da
CLT, que assim prevê:

28  BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do
Trabalho(CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452,de 1o de maio de 1943, e as Leis
nos 6.019,de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho
de 1991, a fim de adequar a legislação às novasrelações de trabalho. Disponível em: <
https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/19173773/
do1-2017-07-14-lei-no-13-467-de-13-de-julho-de-2017-19173618>. Acesso em: 18 de
março 2022.
29  DELGADO, Maurício Godinho; DELGADO, Gabriela Neves. A Reforma Trabalhista
no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017. 2. ed. São Paulo: LTr, 2018.
30  Ibidem.
31  PAMPLONA FILHO, Rodolfo; ROCHA, Matheus Lins. O controle de convencionalidade
como mecanismo efetivador do direito humano fundamental ao trabalho: a sua
aplicação no âmbito da reforma trabalhista. Revista eletrônica do Tribunal Regional
do Trabalho da Bahia, Salvador, v. 7, n. 10, p. 210-236, out. 2018.
32  SEVERO, Valdete Souto. O Tribunal Superior do Trabalho e a Importância da
Aplicação das Normas da Organização Internacional do Trabalho em Tempos de
Exceção. In: ROCHA, Cláudio; PORTO, Lorena; ALVARENGA, Rúbia; Pires, Rosemary.
A organização internacional do trabalho: sua história, missão e desafios. Vol. 1. São
Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
33  BELTRAMELLI NETO, Silvio. A reforma trabalhista e o retrocesso na proteção
jurídica da saúde e segurança no trabalho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 15ª Região, n. 51, 2017. Disponível em: < https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/
handle/20.500.12178/125458/2017_beltramelli_neto_silvio_reforma_trabalhista.
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270
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Art. 75-D.   As disposições relativas à responsabilidade


pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equi-
pamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e
adequada à prestação do trabalho remoto, bem como
ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado,
serão previstas em contrato escrito.

Ocorre que contrato de trabalho deve dispor sobre a estru-


tura e a forma de reembolso de despesas do teletrabalho, mas não
pode transferir para o empregado seus custos, que devem ser supor-
tados exclusivamente pelo empregador34, nos termos do artigo 21 da
Convenção 155 da OIT. O referido dispositivo assim dispõe: “Artigo
21 - As medidas de segurança e higiene do trabalho não deverão im-
plicar nenhum ônus financeiro para os trabalhadores”.
Não consta no Ementário da Inspeção do Trabalho disposição
que possibilite a lavratura de Auto de Infração caso identificada con-
duta empresarial no sentido de transferir para o trabalhador o ônus
pelo cumprimento das medidas de segurança e higiene do trabalho.
Outro dispositivo digno de menção é o §1º do artigo 510-D da
CLT, que dispõe que o membro que houver exercido a função de re-
presentante na comissão não poderá ser candidato nos dois períodos
subsequentes. Tal previsão, além de violar o art. 8º, I, da Constituição
da República de 1988, contraria as Convenções 98 e 135 da OIT, já
que enfraquece a efetividade da representação. Não há no ementário
a previsão ementa que combata essa prática empresarial de vedar a
recondução do empregado.
Assim, tendo em vista o quanto examinado no presente capí-
tulo, é possível concluir que os tratados internacionais sobre direitos

34  ANAMATRA, Associação Nacional do Magistrados da Justiça do Trabalho. 2ª


Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho. Enunciado 70 Teletrabalho:
Custeio de Equipamentos. Brasília. 09 e 10 out. 2017. Disponível em: < http://www.
jornadanacional.com.br/listagem-enunciados-aprovados-vis1.asp >. Acesso em: 27
jun. 2022.

271
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

humanos relacionados ao direito fundamental ao trabalho decente,


em alguns casos, têm o seu conteúdo aplicado no Brasil e contam
com fiscalização por parte da Inspeção do Trabalho. Contudo, o mo-
nitoramento da observância desses diplomas normativos é realizado
de forma meramente indireta, ocorrendo apenas nos casos em que a
legislação brasileira trata sobre o tema de forma similar.
É necessário reformular o ementário da Inspeção do Trabalho
para que passe a prever os casos nos quais os tratados internacionais
contenham disposições distintas da legislação interna brasileira.
O ementário deve passar a prever, ademais, casos em que há uma
disposição em tratados internacionais sobre a qual o ordenamento
interno seja omisso.
Importante salientar que o cumprimento de obrigações
internacionais assumidas pelo Brasil é uma medida que se impõe.
Inclusive porque o respectivo descumprimento pode acarretar a
responsabilização direta do Estado brasileiro a indenizar o ofendido.
A título exemplificativo, quando não observadas as decisões da Corte
Interamericana, os Estados membros da Organização dos Estados
Americanos podem vir a ser condenados a indenizar aqueles que tive-
ram seus direitos não reconhecidos no plano interno de cada Estado.
Foi o que ocorreu, por exemplo, no caso “Lagos del Campo
contra a República do Peru”, no qual o Estado peruano não respeitou
o compromisso que assumiu com as normas internacionais do plano
interamericano. Neste caso, o Peru, mais especificamente o seu Po-
der Judiciário, não assegurou a proteção ao emprego do trabalhador
Lagos del Campo. Este, então, processou o Estado peruano perante
a Corte Interamericana, que, por sua vez, reconheceu o descumpri-
mento da legislação internacional pertinente e condenou a República
peruana a indenizar o demandante, diante da violação do seu direito
de proteção ao emprego por parte do Estado35.

35  SANTOS, Edilton Meireles de Oliveira. Corte Interamericana de Direitos Humanos e a


garantia de emprego no Brasil. Revista de Direito Brasileira, v. 24, p. 378-395, 2019, p. 389.

272
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

Sempre que o Estado membro não cumpre a norma inter-


nacional, ou viola os precedentes da Corte, ele estará sujeito a uma
condenação com o objetivo de reparar a lesão causada à pessoa cujo
direito não foi reconhecido no plano interno do país. No caso men-
cionado, a Corte reconheceu a proteção ao emprego, impondo que
o Estado membro deverá providenciar que o empregador reintegre
ou indenize o trabalhador despedido arbitrariamente ou sem justa
causa, ou o próprio Estado membro poderá ser condenado a indeni-
zar diretamente o trabalhador. Ou seja: ou o empregador responde
pelos seus atos, ou o Estado membro pode ser responsabilizado por
sua decisão em não condenar o empregador. O Estado nacional, pois,
responde pela violação da norma internacional36, devendo indenizar
diretamente o empregado.
Assim, cabe à Inspeção do Trabalho, como órgão do Poder
Executivo, buscar a efetiva aplicação dos tratados internacionais so-
bre direitos humanos e das convenções da Organização Internacional
do Trabalho pela Inspeção do Trabalho, analisando-se, para tanto, o
respeito à supralegalidade, como decidido no RE 466.343-1 SP, bem
como à sua eficácia paralisante e o princípio pro homine. Dessa for-
ma, serão respeitados os preceitos da Constituição Federal de 1988
acerca da fundamentalidade do direito ao trabalho e garantida a sua
concretude e o Estado brasileiro agirá proativamente para cumprir
os seus compromissos internacionais.

36  HITTERS, Juan Carlos. La responsabilidad del Estado por violación de tratados
internacionales. El que “rompe” (aunque sea el Estado) “paga”. Estudios
Constitucionales, v. 5, n. 1, junio, 2007, p. 203-222. Centro de Estudios Constitucionales
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www.redalyc.org/pdf/820/82050108.pdf. Acesso em: 30 jun. 2022.

273
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

5. CONCLUSÃO

Uma vez que o tratado internacional sobre direitos humanos


é aprovado pelo Executivo e pelo Legislativo e ratificado ele passa a
ter status supralegal, estando em um patamar hierárquico superior a
elas; ficam abaixo apenas da Constituição. Dessa forma, havendo um
choque entre as disposições constantes em leis brasileiras e aquelas
constantes em tratados internacionais sobre direitos humanos
ratificados, estas últimas prevalecerão, por meio da aplicação do
controle de convencionalidade.
Com efeito, os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo,
devem, obrigatoriamente, zelar pela normatividade e efetividade do
cumprimento dos tratados internacionais no ordenamento jurídico
brasileiro. A lei ordinária só prevalece em relação aos tratados inter-
nacionais sobre direitos humanos se for mais benéfica ao empregado,
em razão do princípio da norma mais favorável.
Os Auditores-Fiscais do Trabalho tem competência para a
fiscalização direta de acordos, tratados e convenções internacionais
dos quais o Brasil seja signatário, já que para que a fiscalização seja
efetiva, é necessário que ela ocorra sobre todas as normas de natu-
reza trabalhistas que integram o ordenamento jurídico brasileiro,
devendo incluir, portanto, os acordos, tratados e convenções inter-
nacionais ratificados pelo Brasil.
Os tratados internacionais sobre direitos humanos em maté-
ria trabalhista são efetivas normas e, como tal, devem ser cumpridas.
Sendo assim, é um poder-dever da Inspeção do Trabalho fiscalizar
o cumprimento dos acordos, tratados e convenções internacionais
ratificados pelo Brasil.
Na prática, constatou-se que a fiscalização do ordenamento
jurídico trabalhista ocorre apenas por meio da inspeção de itens da
legislação interna brasileira. Dessa forma, os tratados internacionais

274
A FISCALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DO CUMPRIMENTO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS COMO
FORMA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DECENTE NO BRASIL

sobre direitos humanos relacionados ao direito fundamental ao traba-


lho decente, em alguns casos, têm o seu conteúdo aplicado no Brasil e
contam com fiscalização por parte da Inspeção do Trabalho. Contudo,
o monitoramento da observância desses diplomas normativos é rea-
lizado de forma meramente indireta, ocorrendo apenas nos casos em
que a legislação brasileira trata sobre o tema de forma similar.
Nos casos em que há divergência de tratamento sobre deter-
minado tema entre os tratados internacionais sobre direitos huma-
nos e a legislação interna, a aplicação e a fiscalização desta última
acaba prevalecendo, em desrespeito ao status de supralegalidade
daqueles. A desconsideração da normativa internacional também
ocorre quando os tratados internacionais versam sobre determina-
do tema acerca do qual a legislação interna é omissa. Há, portanto, o
desrespeito à Constituição da República de 1988 e à autoridade da
decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 466.343-1 SP.
É necessário reformular o ementário da Inspeção do Trabalho
para que passe a prever os casos nos quais os tratados internacionais
contenham disposições distintas da legislação interna brasileira.
O ementário deve passar a prever, ademais, casos em que há uma
disposição em tratados internacionais sobre a qual o ordenamento
interno seja omisso. Além disso, foi verificado que é necessário dis-
ponibilizar publicamente o ementário da Inspeção do Trabalho de
forma atualizada para a sociedade.
Identificou-se que é importante o cumprimento de obriga-
ções internacionais assumidas pelo Brasil, inclusive porque o respec-
tivo descumprimento pode acarretar a responsabilização direta do
Estado brasileiro a indenizar o ofendido.
Por fim, concluiu-se que cabe à Inspeção do Trabalho, como
órgão do Poder Executivo, buscar a efetiva aplicação dos tratados
internacionais sobre direitos humanos e das convenções da Orga-
nização Internacional do Trabalho, em respeito à supralegalidade

275
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

desses diplomas, como decidido no RE 466.343-1 SP, bem como à


sua eficácia paralisante e o princípio pro homine. Dessa forma, serão
respeitados os preceitos da Constituição Federal de 1988 acerca da
fundamentalidade do direito ao trabalho e garantida a sua concre-
tude e o Estado brasileiro agirá proativamente para cumprir os seus
compromissos internacionais.

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280
TELETRABALHO E GÊNERO:
SEGUNDO UMA ÓTICA
INTERDISCIPLINAR E JURÍDICA

Giovanna Martins Sampaio1

1  Doutoranda em PI, Universidade federal de Sergipe; Mestrado em Propriedade


Intelectual, Transferência de Tecnologia e Inovação – Universidade Federal da Bahia
(2019-2020);
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O artigo detém como objetivo principal analisar a regulação do teletrabalho pela
reforma trabalhista de 2017 observando as consequências jurídicas dessa nova
legislação, já que o recorte mais aparente para a autora é relativo às condições
ambientais e sanitárias para a tele-empregada, utilizando-se uma perspectiva de
direito comparado e das relações de gênero, considerando o seu respectivo caráter
sui generis e demais implicações no âmbito da COVID-19 nesta forma específica
de trabalho para as mulheres trabalhadoras. Dessa forma, ainda foi necessário
abordar brevemente o contexto político, de forma comparativa e comparada,
quanto ao controle deste Vírus nas distintas nações; Assim, os resultados parciais
desta pesquisa envolveram a avaliação das diferentes normas e diretrizes dos EUA,
União Europeia, e América Latina e Brasil quanto ao telework e ao “manejo do
Covid” pelas Distintas instituições Governamentais; Os resultados parciais relatam
ainda “assimetrias” entre os países quanto às condições de tele-emprego, no
“direcionamento” da crise de 2019/2020 no seio da gestão das políticas públicas,
e primordialmente quanto às desigualdades laborais de gênero, e às políticas de
acesso e inclusão feminina no trabalho enquanto questão e matéria de relevância
pública, demonstrando as diferenças constantes e existentes a partir dos sistemas
políticos desses Estados-nações; A metodologia usada foi a revisão sistemática
e bibliográfica, de cunho descritivo e concomitantemente exploratório, visando-
se atingir os objetivos e resultados interdisciplinares da pesquisa, pelo que foram
utilizados trabalhos teóricos e conceituais acerca do teletrabalho, relações públicas
e políticas, feminismo, e das desigualdades laborativas de gênero.
Palavras-chave: Desigualdades laborais de gênero; Telework; Impactos e
implicações;

1. INTRODUÇÃO

A proposta que justifica o presente trabalho consiste em


estabelecer, de certo modo com inovação, a relação que deve ser de-
senvolvida entre as transformações trazidas pela chamada Reforma
Trabalhista, Lei 13.467/2017, e os impactos daí decorrentes para a
saúde da teletrabalhadora, pelo que se mostrou essencial para este
intento abordar e analisar o meio ambiente laboral sob a ótica dos
direitos fundamentais.
Outrossim, não se poderia deixar de mencionar os principais
elementos inovadores trazidos no capítulo destinado ao teletrabalho

282
TELETRABALHO E GÊNERO

(Lei 13.467/17), enfocando e priorizando o presente estudo na figura


do Termo de Responsabilidade a ser assinado pela teletrabalhadora,
a fim de trazer a possibilidade devida de responsabilização civil do
empregador pelos danos e perdas, pelos acidentes e doenças que a
tele-empregada venha a sofrer no exercício da atividade laborativa.
Com isso, visou-se concluir o artigo com a ideia de responsa-
bilização cível do empregador, pelas doenças e acidentes laborativos
ocorridos com a teletrabalhadora no local de exercício das suas “ati-
vidades funcionais”, independentemente da assinatura do termo de
responsabilidade. Finalmente, o trabalho se propôs a abordar e tra-
zer as diferenças constantes entre sistemas políticos de “referência”,
abarcando primordialmente também questões de política pública, e
de relações políticas e internacionais.

2. NORMAS INTERNACIONAIS: TELETRABALHO

Percebe-se que determinados países e nações constituíram,


aceitaram e regulamentaram a figura do teletrabalho bem anterior-
mente à Lei 13.467/2017, dentre as quais se destacam Portugal, e
França. Portanto, a seguir serão tecidas breves e distintas considera-
ções acerca do instituto nesses países2.
Quanto à conjuntura e legislação portuguesas3, segundo
o expressamente prescrito no art. 169 do Código do Trabalho, de

2  Por fim, na esfera do direito internacional sobre o teletrabalho, cabe ainda relatar
as observações de Vera Loureiro Winter, quando aborda o tema do trabalho a domi-
cílio , “Na Alemanha, considera-se trabalho a domicílio quando uma pessoa ocupa
exclusivamente pessoas de sua família em trabalho industrial ou quando uma ou várias
pessoas executam trabalho industrial, sem serem dirigidas por um empregador em
uma oficina”, pelo que a autora não dispõe especificamente quanto à existência ou
a regulação do teletrabalho no direito alemão. (WINTER, V. R. L. Teletrabalho: uma
forma alternativa de emprego. Editora LTr: São Paulo. 2005, pg. 43).
3  Ainda, João Leal Amado comenta em seu livro, referindo-se ao artigo 167 do Có-
digo do Trabalho, que “naquele caso, porém, a lei mostra-se mais cautelosa quanto
a faculdade de as partes modificarem o contrato de trabalho, convertendo-o num
contrato para prestação subordinada de teletrabalho, dado que não permite que

283
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Portugal, a responsabilidade de manutenção e adequação das ins-


talações para exercício do teletrabalho fica a cargo do empregador
– enquanto a Lei da Reforma de 2017 parece ir na contramão disso,
como será mais bem analisado adiante.
Ademais, a lei respectiva traz descrição sobre a função do
empregador em qualificar tecnicamente a empregada para fins de
exercício do teletrabalho, além de colocar expresso o direito de
privacidade da teletrabalhadora a ser pontualmente respeitado pelo
empregador (fixando horário para o exercício prático dos poderes de
controle patronais), posto que, de forma expressa, assegura o gozo
dos momentos descanso da respectiva empregada e de sua família,
incluindo prescrição sobre norma de proteção da saúde psicológica (o
empregador deve zelar pelo bem-estar mental da teletrabalhadora).
No âmbito do presente trabalho acadêmico, ainda se consi-
dera relevante trazer as lições e reflexões de João Leal Amado sobre
a normatividade e termos dispostos no Código Português: quanto à
igualdade de tratamento da trabalhadora em regime de teletrabalho,
para o autor o art. 169, inciso 3º consagra “deveres secundários espe-
cíficos”, nomeadamente, os direitos a sociabilidade informática & os
direitos ao “não-isolamento”; (AMADO, 2013, p. 162-163)
Já no plano do Direito Francês, a regulamentação recente do
Teletrabalho, após reformulação ocorrida também em 2017, engloba
que a instalação do regime de teletrabalho em determinada empresa
deverá ser feita por acordo coletivo, ou após ter sido obtido parecer
“favorável” do Comitê Social Econômico (nas áreas e localidades em
que exista o determinado órgão). Ademais, aborda que a empregada
possui o direito de recusa quanto a passar para o regime de teletra-

tal modificação opere a título definitivo, antes estabelecido como limite máximo o
período inicial de três anos, decerto por uma questão de prudência, desta forma
permitindo que o teletrabalhador retome a prestação “normal” de trabalho caso
alguma das partes assim o deseje no termo do prazo acordado (art. 167).” (AMADO, J.
L. Contrato de Trabalho. Coimbra Editora: Coimbra. 2013, pg. 162).

284
TELETRABALHO E GÊNERO

balhadora, sendo vedada ao empregador, a despedida arbitrária da


empregada devido ao exercício do direito de recusa.
Ainda no que tange às normas francesas sobre o teletrabalho,
a nova legislação define as horas durante as quais o empregador
poderá entrar em contato com a teletrabalhadora, pelo respeito ao
direito a desconectar-se existente na legislação francesa. Ademais,
para tanto, existe a previsão de contagem das horas extraordinárias,
ou seja, à teletrabalhadora está assegurado o exercício da jornada de
trabalho normal, regular, protegendo-se o trabalho extra.
Ainda quanto à legislação do teletrabalho na França, assevera
expressamente que o empregador detém obrigações especiais,
pontuais e específicas frente à empregada submetida ao regime do
teletrabalho.4
A lei francesa do teletrabalho prevê expressamente que o
empregador deverá agendar uma entrevista pessoal, por ano, com o
trabalho submetido a este regime em específico, com vistas a per-
ceber e organizar, especialmente, as condições em que a empregada
exerce as suas atividades laborais, além de regular as suas respectivas
cargas (e jornadas) de trabalho.
Quanto à segurança da teletrabalhadora, a lei francesa pre-
nuncia que os acidentes ocorridos no âmbito do teletrabalho, duran-
te o horário de exercício laboral da tele-empregada, presumem-se
como sendo acidentes de trabalho, cabendo ao empregador afastar
essa presunção, de modo que deve provar que o acidente em questão

4  Ademais, quanto ao teletrabalho, e seus modos de exercício na França, importa


trazer alguns ensinos de Vera Winter: “Essa solução intermediária busca direcionar
os teletrabalhadores de acordo com o perfil de cada um: teletrabalho domiciliar,
para quem consegue ultrapassar as dificuldades inerentes a um trabalho isolado, e
telecinéticos, para os que necessitam de ambiente de escritórios e da convivência de
outros empregados, dependendo ainda do tipo de atividade a ser desenvolvida. [...]
Dessa maneira, há ocupação de espaços vazios, com a fixação desses telecentros
como polos locais de atividades diversificadas de telesserviços. Ocorre, assim, “uma
aposta na divulgação da opção pelo teletrabalho como política de ordenamento
do território e do tempo das pessoas”. (WINTER, 2005, p. 70-71)

285
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

não se referia ou relacionava com o desempenho funcional de traba-


lho. Além disso, a legislação francesa assegura as mesmas condições
para a percepção de ticket alimentação à trabalhadora submetida ao
referido regime de emprego.
Destarte, percebe-se que a normatividade francesa, no
campo internacional, mostra-se desenvolvida, no que tange à regu-
lamentação do teletrabalho, bem como no âmbito da tutela do meio
ambiente laboral, conforme foi detalhado no primeiro capítulo do
presente trabalho.

3. REGULAÇÃO E TELETRABALHO

A Reforma trouxe a regulamentação expressa da modalidade


do teletrabalho. Quanto ao artigo da Lei que “formata” o contrato
da teletrabalhadora, é interessante trazer a lume os comentários de
Rafael Miziara, posto que reconhece a necessidade de que o contra-
to, apesar de individual, deva ser necessariamente escrito, de modo a
conferir maior segurança e estabilidade jurídicas à tele-empregada5;
Releva apenas tecer breves anotações acerca do art. 75-C,
quanto à instituição do teletrabalho ser por “mero” contrato individual
de trabalho, revelando a tendência trazida pela Lei de Reforma Traba-
lhista: isso parece desconsiderar a relevância dos instrumentos coleti-
vos de negociação, desprotegendo e vulnerando a classe trabalhadora,
posto que a empregada se encontra “isolada” frente ao empregador
para acertar as condições de trabalho, não estando acompanhada
de qualquer apoio das entidades e organismos sindicais que possa
aumentar sua “força” no momento da negociação contratual.

5  “Não se nega que o contrato verbal também pode ser expresso e especificar
as atividades que serão realizadas. No entanto, aqui parece que a intenção do
legislador foi a de exigir contrato escrito nesse sentido. Ademais, o § 1º fala em
“aditivo” contratual, o que é mais utilizado para contratos escritos”. (MIZIARA, Rafael.
O novo regime jurídico do teletrabalho no Brasil. Disponível em:<https://juslaboris.tst.
jus.br/bitstream/handle/20.500.12178/116314/2017_miziara_raphael_novo_regime.
pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em 01. Mar. 2019.)

286
TELETRABALHO E GÊNERO

Pode-se perceber que o legislador nada falou ou abordou


efetivamente sobre as normas de medicina e segurança da teletraba-
lhadora (normas de ordem pública pelo que devem ser consideradas
irrevogáveis), e não trouxe nada relativamente aos conhecidos
“equipamentos de segurança do trabalho”. Ao contrário, instituiu
uma figura “estranha”, denominada de termo de reponsabilidade,
referente às diretivas dadas pelo patrão a esta trabalhadora; o legis-
lador pareceu isentar o empregador da responsabilidade quanto aos
acidentes de trabalho sofridos, apenas utilizando-se do argumento
da “distância da sede da empresa”.
Desta feita, o empregador parece ter transferido os custos
da atividade empresarial, em relação ao custeio da infraestrutura do
exercício do emprego (BUBLITZ, 2012).
Releva ainda deixar claro o quanto foi modificado no art. 62,
CLT, pelas novas disposições da Lei 13.467/2017. A lei da reforma tra-
balhista incluiu o inciso III no referido artigo (sobre as empregadas
excluídas do controle e fixação da jornada de trabalho), de modo que
não assegura o ressarcimento/remuneração do trabalho extraordi-
nário (horas extras) às teletrabalhadoras, pois o tele-emprego seria,
em tese, incompatível com a limitação de jornada diária de trabalho.
Conforme antes visto, portanto, o que acaba por acontecer é que
a teletrabalhadora labora extraordinariamente, sem a devida compen-
sação pecuniária deste trabalho (AMADO, 2013), ante à necessidade de
atingir determinados resultados e metas específicas de produção, que
são apresentados, ou melhor, impostos, pelo empregador.

4. TERMO DE RESPONSABILIDADE E RESPONSABILIZAÇÃO


DO EMPREGADOR FRENTE `A TELE-EMPREGADA

O entendimento que resta assente, portanto, é no sentido


da existência de responsabilidade do empregador pelos danos e
acidentes sofridos pela teletrabalhadora, onde quer que a empregada

287
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

exerça a sua atividade “tele-laborativa”, posto que são considerados


acidentes de trabalho (mesmo que “atípicos”), pois ocorrem durante a
jornada em que a teletrabalhadora exerce sua função. Além dos ditos
acidentes, existem primordialmente as doenças laborais e enfermida-
des relacionadas aos meios telemáticos, reiterando-se aqui o dever
de indenização do empregador pelos danos porventura sofridos pela
teletrabalhadora.
Destarte, o entendimento principal deste trabalho pode ser
resumido pelas lições de Miziara: “Não obstante, diante da alegação
de acidente de trabalho ou doença ocupacional, o simples fato de a
empregada ter assinado termo de responsabilidade não eximirá a
empresa de indenizar eventuais danos causados, sendo evidenciada
sua conduta culposa ou dolosa”. (MIZIARA, 2017)
Outrossim, prescinde uma breve abordagem sobre a teoria
da responsabilidade civil, conceituada e caracterizada no art. 927,
CC/2002. Doutrinariamente, quanto ao instituto da Responsabi-
lidade Civil, ilustra Susana Lourenço Gonçalves, sobre o sentido da
teoria da responsabilidade, que “O que se pretende é restituir às
pessoas lesadas o gozo dos seus interesses ofendidos. A responsa-
bilidade traduz-se, essencialmente, na obrigação de indemnizar.”
(GONÇALVES, 2013, pg. 20). Neste esteio, é preciso continuar com
as observações trazidas pela autora ao anunciar que essa obrigação
de indenizar o sujeito lesado nasce propriamente por força de lei,
independendo da vontade das partes.
Destarte, relembra-se que os requisitos principais dessa res-
ponsabilidade de caráter civil consistem no dano provocado; na culpa
(perspectiva subjetivista) do agente ou no risco (teoria objetiva) que
este assumiu; e no nexo de causalidade existente entre os dois outros
pressupostos anteriores. Complementares os dizeres da autora a este
respeito: “No quadro da responsabilidade civil (em sentido amplo) é
necessário ter em atenção dois subsectores: da responsabilidade

288
TELETRABALHO E GÊNERO

subjetiva, quando ela depende de culpa do agente e responsabilidade


objetiva, quando o agente se constitui na obrigação de indemnizar
independentemente da culpa”. (GONÇALVES, 2013, pg. 20 e 21.).
Quanto à perspectiva objetivista – adotada no presente
trabalho -, conceitua e relaciona Luciano Martinez (MARTINEZ,
2011) que o risco consiste na realização de um certo e determinado
objetivo, de acordo com determinados limites de segurança.
Neste âmbito, não se pode olvidar das palavras de Vera
Loureiro Winter, posto que expressam a teoria do risco sob especifi-
camente os parâmetros de saúde, segurança e medicina: “Não é sem
sentido que a ideia de risco se associa à possibilidade de exposição
a um evento danoso ou a uma série de circunstâncias e situações
que podem colocar em perigo a saúde e a vida das trabalhadoras,
principalmente através do acontecimento infortunístico, isto é, dos
acidentes e das doenças ocupacionais”6. (WINTER, 2005, pg. 105.)
Elucidativos os ensinos de Dallegrave Neto sobre a responsa-
bilização objetiva dos Riscos: “Nem se diga, contudo, que o parágrafo
único do art. 927 do novo Código Civil é inconstitucional por suposta
afronta à parte final do art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal. A
melhor exegese sistêmica da ordem constitucional garante legitimi-
dade ao parágrafo único do art. 927 do novo Código Civil, vez que o
caput do art. 7 º da Constituição Federal assegura um rol de direitos
mínimos sem prejuízo de outros que visam melhor condição social do
trabalhador”. (DALLEGRAVE NETO, 2010, pg. 113.) Portanto, ao con-
frontar a responsabilidade constitucional do empregador em face
da teoria do Risco, o autor entende pela maior proteção possível das

6  E ademais, nesse mesmo sentido, encerra a autora acima que, “Cabe entender
que os riscos no trabalho são associados, frequentemente, à tomada de medidas de
segurança. Em certo modo, a determinação de patamares mínimos de exposição
(standards, nível de tolerância, limites legais etc.) a agentes agressivos tem como base
o estabelecimento de mensuração do risco a que deve ser submetido o trabalhador e
o próprio ambiente de trabalho.” (WINTER, V. R. L. Teletrabalho: uma forma alternativa
de emprego. Editora LTr: São Paulo. 2005, pg. 105.).

289
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

condições de trabalho da empregada, estando, portanto, englobados


os caracteres ambientais laborativos, bem como relativamente às
condições de saúde físicas e psíquicas das teletrabalhadoras.
José Dallegrave ainda encerra em sua obra que: “Sob o viés
constitucional, que coloca a pessoa humana em posição proeminen-
te, não parece razoável que o trabalhador seja vítima de agressões
em seu ambiente do trabalho, ainda que causadas sem intenção ou
culpa patronal”.
Nesta linha, também releva trazer o complemento de Carlos
Eduardo Soares, quando aduz que: “Princípios do direito ambiental
auxiliam a compreensão de eventos relacionados ao ambiente de
trabalho. Assim, são relevantes aqueles que indicam a preocupação
por um desenvolvimento sustentável, a garantia de participação da
sociedade na defesa do meio ambiente, a precaução, a prevenção e a
responsabilidade objetiva do poluidor em pagar pelos danos”. (SOA-
RES, 2017, pg. 123.)
Ultimamente, é necessário que se compreenda a devida
possibilidade de responsabilização objetiva do empregador, sendo
essa a exegese dos princípios ambientais que dispõem a respeito
da responsabilidade do “poluidor” - no caso, o empregador que não
orienta devidamente à empregada para o exercício laboral ou que
não propicia/proporciona as condições “sanitárias” e “espaciais”
básicas para o bem-estar da tele-empregada.

5. ANÁLISES INTERNACIONALISTAS

A OIT (Organização Internacional do Trabalho), no último


mês de Março, editou diretrizes aos países no que diz respeito ao te-
letrabalho efetivo, pautado na Eficiência (ANDRADE, 2013), pelo que
enumerou/enunciou como premissas primordialmente “suporte de
gerenciamento e administrativo”; ferramentas e treinamentos ade-
quados; expectativas claras; soberania do tempo & confiança (OTI,

290
TELETRABALHO E GÊNERO

2020) num contexto de direito do trabalho de emergência (STU-


MER; FINCATO, 2020) que decorre de fatos ou acontecimentos de
escala mundial e que promove o rearranjo das concepções e práticas
políticas, sociais, econômicas, jurídicas, e filosóficas e ideológicas;
Nesse sentido, nos parece que, no panorama/cenário, não
ocorre o suporte, confiança, treinamento ou “independência” de-
vidos quanto ao teletrabalho no sentido de haver uma disposição
e conexão digital quase que integral por parte da trabalhadora no
contexto telelaborativo: fenômeno já reconhecido como “escravo”
/ de servidão desde o início da presente década (ANTUNES, 2020;
ESTRADA, 2012).
Neste esteio, percebe-se evidência da Uberização corrente
do trabalho, sendo hoje impossível dissociar este fenômeno da ube-
rização do teletrabalho enquanto fenômeno político e jurídico (AN-
TUNES, 2019); Nesta seara, a opção política Brasileira certamente
tem se mostrado “ultraliberal”, ou até “metaliberal”, como já trazido
por Oliveira (2019) e Antunes (2020);
Nesse sentido, as maiores preocupações referem-se ao prová-
vel aumento da jornada, já enunciado nacionalmente pelo Ministério
Público do Trabalho (SAKAMOTO, 2020): mas o que acontecerá na
prática? As transformações e impactos institucionais disso só serão
percebidos no futuro, a médio prazo; Ademais, é também contempo-
rânea a discussão a respeito do “home office/ trabalho à distância”:
seria este um direito ou uma aventura? (LEAL, 2020) De qualquer
forma, pode-se assumir que os sistemas de governo modernos
exigem e pressupõem o cumprimento e a salvaguarda dos direitos e
garantias alçados ao nível das Constituições políticas nacional res-
pectivas, primordialmente no dito mundo ocidental (HALL, D`ELIA,
NEPOMUCENO, 2016; RIBEIRO, LOBATO, OLIVEIRA, LIBERATO,
2012) Então fica a questão: que tipo de “consolidação de leis traba-
lhistas queremos”? Já saberíamos que tipo de trabalho queremos?

291
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O que fazer com a desconectividade, com a falta de pertencimento


e identidade em relação ao trabalho, ambiente e a si mesmo prove-
niente do mundo digital e digitalizado, & “faltas” essas ocasionadas
diretamente pelo uso instrumental das TICS? (OLIVEIRA, 2019)
A que custo os parâmetros de produtividade serão mantidos?
(OCDE, 2020) E quanto ao teletrabalho, regulamentado em 2017
com a Reforma, ora está sendo consolidado: Mas a que custos? Que-
remos novas formas de trabalho, precarizadas? (ZAVARIZE, 2020)
As respostas a essas perguntas envolvem cooperação internacional
para o desenvolvimento econômico sustentável (OCDE, 2020; ITA-
MARATY, 2016; ONU, 2015)
Estudos atualizados da OCDE (Organização para a Coo-
peração e Desenvolvimento Econômico) já avaliam os verdadeiros
impactos do COVID-19 na inovação relativa/quanto ao teletrabalho.
(OCDE, 2020) Ademais, esse cenário demonstra os desafios da real
consolidação de políticas públicas no que tange a esta modalidade
de emprego - e problematiza também a satisfação pessoal quanto ao
trabalho realizado (SIMONARD, SANTOS, 2017; BALIEIRO, BORGES,
2015; RUEDA, SANTOS, LIMA, 2012)
Neste diapasão, é necessário ter em mente que trabalho
digno, e humano, da premissa “o trabalho dignifica o homem”, só
pode ser satisfeita quando as desigualdades em escala mundial (pri-
mordialmente regionais) são atenuadas, pelo que trabalho precário
e precarizado não dignifica o indivíduo/o “proletariado” (ANTUNES,
2020), e não observa o valor social do trabalho (BASILE, 2009; STUR-
ZA, MARQUES, 2017)
Finalmente, outros pontos controversos permeiam a seara do
teletrabalho atualmente, já que o panorama se demonstra bastante
diverso e engloba diferentes fatores, drivers e sujeitos, considerando
como “atores internacionais” sob a ótica das características especí-
ficas da Capacidade, Habilidade e Autonomia (CARVALHO, 2019);

292
TELETRABALHO E GÊNERO

Mesmo no âmbito da União Europeia (acquis communautaire), as


diferenças de tratamento político da matéria são constantes, e rele-
vantes (COMISSÃO, 2020)
Ainda, levanta-se a desigualdade do trabalho quanto à ques-
tão de gênero, a qual é acentuada no contexto do teletrabalho e do
Coronavírus (BBC, 2020); Em 2019, o Fórum Econômico Mundial
apontou que o Brasil ocupa a 92ª posição no ranking dos países que
mais promovem igualdade entre homens e mulheres no trabalho,
concluindo também que levaria 257 anos para que a desigualdade
de gênero acabasse (FRANCE, 2020). Com isso, percebe-se que os
números revelam uma realidade complexa e surreal, e revela a neces-
sidade de cooperação internacional entre as nações, organizações
internacionais e sistemas de governos, enquanto parceiros sociais
(OCDE, 2020). Ademais, é cediço que este panorama impede o de-
senvolvimento sustentável e regular das forças e vetores do mercado
de trabalho (AGÊNCIA BR, 2020), refletindo a relevância de se conti-
nuar investigando a temática (OCDE, 2020).
Nesta senda, convoca-se primordialmente os países do
“norte” global a fim de que liderem o posicionamento acerca de um
trabalho igualitário e digno (CAPPELLIN; AZAIS, 2007), pois é ne-
cessária uma vanguarda que “advogue” contra o retrocesso social de
direitos trabalhistas historicamente conquistados pelo proletariado
(ANTUNES, 2020). Acreditamos que isso envolve para além dos
investimentos financeiros e em TICS (tecnologias de informação e
comunicação), e outrossim, a difusão/compartilhamento das melho-
res práticas corporativas e de gestão (OCDE, 2020).

293
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

6. CONCLUSÕES ACERCA DAS POLÍTICAS


PÚBLICAS: ANÁLISE ACERCA DA INTEGRAÇÃO,
“INTERSETORIALIDADES E INTERSECCIONALIDADES
NO TRABALHO

Utilizamos neste trabalho a doutrina advogada por Secchi


(2010) sobre a conformação de um conceito tripartite para definição
das diretrizes e regulamentações relativas às Políticas públicas no
âmbito de correlação com os Policy Studies; Secchi (2010) vai anali-
sar, do ponto de vista extensivo e formal, os atores governamentais e
institucionais, trazendo um paralelo entre os problemas e necessida-
des públicos e as formulações e implementações de alternativas que
consubstanciam a tomada de decisão acerca das políticas públicas
de gestão e desenvolvimento intersetorial/ transversal;
O autor aborda o enfoque dos Problemas e necessidades
coletivos e públicos relevantes, como “issues”, primeiramente con-
textualizando a interface entre a “hipótese ideal e o status quo no
âmbito das políticas públicas; Neste sentido, Secchi vai trazer diver-
sas ocorrências reais de intervenção ativa dos atores competentes,
e suas implementações em áreas distintas: sanitária, segurança,
saneamento, habitação, educação, associação, empregabilidade,
planejamento urbanístico, Planos diretores territoriais; econômica,
cultural e desportivo, administrativa, Leis e planos municipais de
Inovação e empreendedorismo; infraestrutural, dentre outros;
No âmbito do 1o nó de Definição do Conceito e PP, ele pauta-
-se na abordagem e visão multicêntricas e interpretativas, referentes
aos diferentes policymakers, takers, analistas e mídia, para represen-
tar que políticas governamentais são o maior, mas não o único tipo de
PP, evitando-se uma análise da personalidade jurídica do agente em
causa, e abarcando-se um espectro abrangente de fenômenos políti-
cos e administrativos; Nesta seara, o autor contextualiza através de

294
TELETRABALHO E GÊNERO

exemplos de prefeituras, e traduz que as PPs não apenas se utilizam


do mecanismo jurídico restrito da coerção; Já no 2o nó, Secchi traduz
e alude seu pensamento em torno dos requisitos de implementação
e avaliação de impactos das PPS, para concluir que problemáticas de
Omissão e negligência não poderiam em si constituir PP, em face do
“poder legislativo; Já sobre o 3o nó, o autor apresenta que parâme-
tros de operacionalização das diretrizes não definem estritamente
as diretrizes tidas como PPS, e no âmbito dos Policy studies, também
estão abarcados planos e programas a ser aplicados;
As questões básicas quanto à avaliação de impacto das políti-
cas públicas decorrerem primordialmente das limitações financeiras,
e temporais em relação às metodologias que serão lançadas/dispos-
tas na busca de solucionar desigualdades sociais dos mais diversos
tipos e gêneros;
Ademais, a complexidade dos problemas sociais multifaceta-
dos a serem mitigados por essas políticas fazem com que a imple-
mentação dos métodos e instrumentos seja problemática, resultado
num maior risco para a eficácia e efetividade das políticas e das
próprias metodologias;
Com isso, a compatibilização dos interesses dos diferentes
stakeholders e envolvidos traz patente heterogeneidade e dificulta o
desenvolvimento de políticas públicas mais concatenadas e até efi-
cazes, resultando em caracteres adicionais na implementação dessas
através de suas metodologias;
Nesse sentido também, a carga política substancial existente
nos métodos escolhidos por determinada gestão pública (de certo
ou específico partido político, nas democracias representativas)
põe em risco a construção de uma agenda e/ou de um projeto social
consolidado e uno, restando ineficiente a alocação dos recursos
públicos conforme as metodologias políticas eleitas; Ainda, deve-se
considerar a perspectiva das atividades públicas intersetoriais, que

295
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

estão cada vez mais presentes no contexto atual e que possuem difi-
culdades majoradas de alinhamento das metodologias para aferição/
mensuração da eficiência dessas políticas públicas;
Enfim, tem-se também o quesito do desconhecimento e falta
de preparo “administrativo” por parte dos representantes políticos
eleitos no que que tange às metodologias de impacto e avaliação,
que em geral, não são gestores especializados em políticas públicas,
e ao comporem suas equipes e Secretarias conjuntas, geralmente não
consideram prioridade em ter como integrante da sua equipe, um
especialista em métodos de avaliação e impacto de políticas; Neste
esteio, a incapacidade no sistema político em comportar uma con-
tinuidade no projeto de metodologias e políticas públicas conforma
uma dificuldade de complicada resolução a curto prazo; Além disso,
especialmente no contexto latino, crises políticas contemporâneas
contribuem para uma variação no posicionamento e opção políticos,
dificultando e impactando especialmente a “observância” de progra-
mas políticos mais compostos, plurais e abrangentes;
Finalmente, não se pode esquecer também da discrepância em
relação à causalidade presente no ciclo de políticas públicas, metodo-
logias e avaliação do impacto dessas; Ultimamente, a quantificação
do “retorno social” dessas metodologias de políticas públicas é uma
“característica” a ser pontualmente considerada já que a aferição
do aproveitamento social desses fatores é de difícil mensuração na
prática.

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300
A RESPONSABILIDADE DO
SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES
TRABALHISTAS APÓS A LEI
13.467/2017

Juliana Gabriela Hita Neves1

1  Juíza do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região. Especialista em


Direito do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Aluna especial da disciplina
Estado, sociedade e relações de trabalho, oferecida pelo PPGD/UFBa no semestre
letivo 2022.1.
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O presente artigo busca analisar os fundamentos legais para a responsabilização
do sócio pelas obrigações trabalhistas contraídas pela empresa, sob a ótica dos
princípios constitucionais da livre iniciativa e valorização do trabalho humano, com
seus respectivos desdobramentos, examinando desde a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica até outras hipóteses legais que estabelecem a responsabilidade
pessoal dos sócios, com observância da evolução legislativa mais recente.
PALAVRAS-CHAVE: Autonomia patrimonial. Desconsideração da personalidade
jurídica. Responsabilidade do sócio. Direito do Trabalho.

ABSTRACT: This article analyzes the legal grounds for the liability of the partner
for the labor obligations contracted by the company, from the perspective of the
constitutional principles os livre iniciativa e valorização do trabalho humano, with
their respective developments, examining from the theory of disregard of legal
entity to other legal possibilities of personal liability of the partners, observing
recent legislative amendments.
KEY-WORDS: Autonomy of equity companies. Disregard of legal entity doctrine.
Partner’s liability. Labor law.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A livre iniciativa na ordem econômica da Constituição
Federal de 1988; 2. Pessoa jurídica e a sua autonomia patrimonial como instrumento
de fomento à atividade econômica; 3. Desconsideração da personalidade
jurídica; 3.1. Fundamentos; 3.2. Previsão legal no ordenamento jurídico brasileiro;
4. Responsabilidade patrimonial do sócio; 5. Responsabilidade do sócio e
desconsideração da personalidade jurídica na justiça do trabalho; Conclusão.

INTRODUÇÃO

A Reforma Trabalhista trouxe inovações relativas à responsabi-


lidade do sócio pelas obrigações contraídas pela empresa em sede de
contratos de trabalho, criando hipótese de responsabilidade subsidiária
dos sócios, atual e retirante, bem assim dispondo expressamente acer-
ca da aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade
jurídica (IDPJ) conforme normativo do Código de Processo Civil.
Embora a desconsideração da personalidade jurídica já seja
prática consolidada na jurisprudência trabalhista brasileira, a sua for-
ma de aplicação e as possíveis implicações decorrentes das novidades
legislativas merecem um estudo especial.
Não há dúvidas que a autonomia patrimonial da pessoa jurídi-
ca é uma característica de suma importância para o êxito da atividade

302
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

empresarial, cumprindo papel fundamental na segurança jurídica e


no estímulo necessários à atuação na atividade econômica, tal como
prevista na Constituição Federal no artigo 170.
Entretanto, a mesma Constituição fixou a dignidade da pessoa
humana no seu núcleo fundamental, de forma que todos os preceitos
constitucionais, inclusive aqueles que dispõem sobre a ordem econô-
mica são norteados por tal postulado e devem ser interpretados sob
esta perspectiva.
Em verdade, todos os princípios listados no texto constitu-
cional estão interligados e fazem parte de um sistema integrado,
que deve ser interpretado de forma a equilibrar e compatibilizar os
preceitos ali dispostos, sendo, portanto, assegurada a livre iniciativa,
desde que sua prática respeite a dignidade da pessoa humana, o valor
social do trabalho e os demais princípios constitucionais.
É nessa perspectiva que se pretende analisar as normas
existentes com a finalidade de coibir o uso abusivo e desvirtuado da
personalidade jurídica autônoma das sociedades, desde o desenvolvi-
mento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica até as
demais hipóteses legais que dispõe sobre responsabilidade do sócio
por obrigações contraídas pela empresa.

1. A LIVRE INICIATIVA NA ORDEM ECONÔMICA DA


CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Os direitos econômicos, sociais e culturais compreendem


aqueles direitos conhecidos como de segunda geração ou dimensão e
decorrem das mudanças trazidas com o Estado Social.
Isso porque, enquanto o Estado Liberal representava a com-
pleta abstenção estatal, com a finalidade de resguardar os direitos
de primeira geração, sem qualquer possibilidade de interferência
no exercício de tais direitos pelos cidadãos; o Estado Social, que
despontou notadamente após a Primeira Guerra Mundial e a Grande

303
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Depressão, assumiu uma postura mais intervencionista, voltada para


a solução dos conflitos sociais, sendo caracterizado por prestações
positivas pela Administração Pública.
Neste cenário, foi outorgada a Constituição Federal de 1988,
cujo núcleo fundamental é a dignidade da pessoa humana, consoante
previsão já em seu primeiro artigo:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união


indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como
fundamentos:
I - a soberania;
II - a cidadania;
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V - o pluralismo político. (g.n)2

O modelo que privilegiava a ausência de atuação do Estado, por


meio de prestações negativas, relegando a economia à “mão invisível”
do livre mercado, se mostrou incapaz de assegurar às pessoas uma
sobrevivência digna, sendo gradualmente substituído até a instituição
do atual Estado Democrático de Direito, que permite a intervenção
estatal na economia e em outros setores, através de prestações posi-
tivas, objetivando a máxima concretização do postulado da dignidade
da pessoa humana.
Nesse sentido, as diretrizes estabelecidas para a ordem eco-
nômica brasileira somente podem ser interpretadas com a finalidade
de conformar a realidade econômica ao fundamento da dignidade da
pessoa humana3.

2  BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Senado, 1988.


3  PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional Descomplicado. 18ª
ed. Rio de janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 1017.

304
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

Como se depreende do artigo 1º, IV, a Constituição Federal


situou a livre iniciativa além de um princípio constitucional, como
fundamento da República Federativa do Brasil, mas sempre ao lado
do valor social do trabalho. Não à toa, a Constituição de 1988 dispôs,
em seu artigo 170, que a ordem econômica “fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social”4.
Não se defende aqui que a Constituição Federal tenha opta-
do pelo modelo socialista, já que o Estado brasileiro é nitidamente
capitalista, tendo consagrado uma economia de livre mercado para
a ordem econômica; contudo, tal ordem econômica é limitada pelos
preceitos constitucionais que determinam sua atuação em favor do
bem-estar da sociedade, o que permite a intervenção estatal sempre
que necessário para a consecução de tal finalidade.
Como já visto, a ordem econômica fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa prevista no artigo 170 da
Constituição demonstra claramente a opção do legislador por uma
economia de mercado.
Não se pode esquecer, entretanto, que o princípio da livre
iniciativa assume outras acepções, além da livre iniciativa da atividade
econômica, sendo desdobramento direto do princípio da liberdade,
valor previsto como direito fundamental na Constituição em diversas
formas, como no artigo 5º, caput, incisos XVII, XVIII e LIV.
O texto constitucional dispõe que é plena a liberdade de
associação para fins lícitos, bem como que ninguém será privado da
sua liberdade sem o devido processo legal, ou, ainda, que ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo não previsto em lei,
além de erigir a liberdade a princípio fundamental basilar da ordem
constitucional brasileira, assegurada a todos os cidadãos, brasileiros
ou estrangeiros.

4  BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Senado, 1988.

305
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

É como explica Manoel Jorge e Silva Neto, ao defender que a


liberdade de atuação na economia representa apenas uma das cono-
tações que assume o princípio da liberdade:

O princípio da livre iniciativa está complementado


na Constituição pelo princípio da liberdade – matriz
(ou liberdade de ação), previsto no art. 5º, II (“ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei”), o que nos leva a considerar
que a liberdade de atuação na economia é apenas uma
das porções da garantia fundamental, porquanto pode
reconduzir, inclusive, à escolha de uma profissão pelo
trabalhador5.

A livre iniciativa da atividade econômica, como um dos desdo-


bramentos que o princípio da liberdade pode alcançar, deve ser enten-
dida como a garantia que o cidadão tem, seja para explorar atividade
econômica, para associar-se ou manter-se associado, ou para o exer-
cício da profissão escolhida, desde que atendidos os requisitos legais.
Por outro viés, a livre iniciativa impõe ao Estado uma atuação
negativa, para que não intervenha ou imponha qualquer restrição às
atividades privadas, salvo nos casos excepcionais previstos em lei6.
O princípio da livre iniciativa também se relaciona com a liber-
dade de trabalho, já que a Carta Magna determina ser “livre o exercício
de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações
profissionais que a lei estabelecer”7, consoante disposição do seu
artigo 5º, inciso XIII.
Não se pode esquecer, ainda, do desdobramento do princípio
da liberdade que se reflete na liberdade de contratar. Isso porque a

5  SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: LTr, 2001,
p. 96.
6  TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Editora Méto-
do, 2003, p. 248.
7  BRASIL. Constituição (1988). Brasília, DF: Senado, 1988.

306
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

livre iniciativa também abrange a liberdade contratual, que assegura


ao empresário o direito de escolher se deseja ou não ser parte em de-
terminado contrato, ou escolher com quem deve celebrar o contrato,
ou de fixar o conteúdo a ser contratado8.
André Ramos Tavares ilustra perfeitamente as diferentes
acepções que a livre iniciativa assume dentro do campo econômico:

Assim, sinteticamente, é possível estabelecer a liberda-


de de iniciativa no campo econômico como constituída
pela liberdade de trabalho (incluídos o exercício das
mais diversas profissões) e de empreender (incluindo o
risco do empreendimento: o que produzir, como produ-
zir, quanto produzir, qual o preço final), conjugada com
a liberdade de associação, tendo como pressupostos
o direito de propriedade, a liberdade de contratar e de
comerciar9.

Houve uma clara intenção do constituinte em conciliar, no sis-


tema econômico brasileiro, os fatores de produção capital e trabalho,
de forma a harmonizar o valor social do trabalho e a livre iniciativa,
mas sempre priorizando o trabalho humano, em conformidade com
o núcleo essencial da Constituição – a dignidade da pessoa humana.
Em verdade, todos os princípios listados no texto constitucio-
nal estão interligados, inexistindo a possibilidade de que um dele se
sobreponha aos demais, de forma que devem ser interpretados em
conjunto.
Não há como se falar em livre iniciativa separada da economia
de mercado e, por consequência, da propriedade privada, que cons-
titui um dos pilares de tal sistema econômico; tampouco é possível
tratar da propriedade privada apartada de sua função social, que é

8  TAVARES, André Ramos, Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Editora Méto-
do, 2003, p. 249.
9  TAVARES, André Ramos, Direito Constitucional Econômico. São Paulo: Editora Méto-
do, 2003, p. 250.

307
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

assegurada pela ordem constitucional, ou objetivar a realização da


livre iniciativa sem garantir a livre concorrência, e assim por diante.
Assim como os demais princípios constitucionais, o princípio
da liberdade, entendido no viés da livre iniciativa, não é interpretado
ou aceito como postulado absoluto, a ser exercido sem quaisquer
limites; aliás, não existem garantias constitucionais absolutas,
porquanto estas sempre devem ser interpretadas e limitadas pelos
demais direitos constitucionais, devendo o intérprete utilizar-se da
ponderação de valores para se aproximar, da melhor forma possível,
da intenção do constituinte.
O texto constitucional é um sistema integrado e deve ser
interpretado de forma a equilibrar os princípios ali trazidos, sendo,
portanto, assegurada a livre iniciativa, desde que sua prática respeite
a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho e os demais
princípios constitucionais.
Com base nesta leitura dos princípios constitucionais da livre
iniciativa e do valor social do trabalho, que caminham lado a lado e
devem ser interpretados em conjunto, de forma a assegurar a exis-
tência digna e em conformidade com os ditames da justiça social, é
possível prosseguir na análise da constituição da pessoa jurídica como
instrumento do exercício da atividade econômica, bem como as suas
repercussões no mundo jurídico.

2. PESSOA JURÍDICA E A AUTONOMIA PATRIMONIAL


COMO INSTRUMENTO DE FOMENTO À ATIVIDADE
ECONÔMICA

O homem é um ser gregário, seja por necessidades atreladas à


sua sobrevivência, seja por interesses pessoais, egoístas ou altruístas.
É incontestável que a criação e manutenção de relacionamentos
sociais e comunitários permite ao homem alcançar resultados mais

308
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

eficientes do que aqueles que seriam alcançados através dos esforços


isolados de cada indivíduo.
Além da tendência natural do homem para se reunir e viver
em grupo, as vantagens que podem ser obtidas com a combinação
de esforços dos indivíduos constituem importante fator para o
surgimento e ampla aceitação da pessoa jurídica: com a criação de
um ente coletivo fictício, o homem tem maiores chances de superar
seus limites, além de alcançar a sensação de que pode ultrapassar a
finitude da vida humana.
Assim, a pessoa jurídica surge como uma possível solução para
que o homem consiga suplantar as limitações que a sua condição de
indivíduo impõe e, ainda, para aumentar os resultados almejados nas
relações com a sociedade.
Para se entender o conceito de pessoa jurídica, não é possível
desprezar alguns termos jurídicos importantes, notadamente aqueles
envolvendo sujeito de direito e ente personalizado.
Nas palavras do jurista Orlando Gomes, os entes que surgem
a partir do agrupamento de indivíduos são sujeitos de direito com
personalidade distinta da dos seus membros:

Não são apenas as pessoas naturais que podem ser


sujeito de direito. Entes formados pelo agrupamento de
homens, para fins determinados, adquirem personalida-
des distintas dos seus componentes. Reconhece-lhes a
lei capacidade de ter direitos e contrair obrigações.10

Inicialmente, deve-se partir do pressuposto que o conceito


de sujeito de direito é mais amplo que o conceito de pessoa, uma vez
que nem todos os sujeitos de direito detêm personalidade jurídica.
Enquanto há titulares de direito dotados de personalidade jurídica,

10  GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 19ª ed. rev. atual. e aum. por Edvaldo
Brito e Reginalda Paranhos de Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 167.

309
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

dentre os quais destacamos as pessoas físicas e jurídicas, há também


aqueles despersonalizados, como, por exemplo, o espólio, a massa
falida, o condomínio ou o nascituro. Estes últimos, embora capazes
de contrair direitos e obrigações, não são providos de personalidade
jurídica.
Assim, considerando as diferenças conceituais entre sujeitos
de direitos e entes personalizados, a pessoa jurídica pode ser definida,
nas palavras de Silvio Rodrigues, como “entidades a que a lei empresta
personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica com per-
sonalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de
serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”11.
Caio Mário aponta três requisitos para a constituição da
pessoa jurídica: vontade humana criadora, observância dos requisitos
legais para sua formação e a licitude dos seus objetivos12. Assim, não
basta a reunião de indivíduos para que surja uma pessoa jurídica; é
necessária a manifestação de vontade dos seus membros para a cria-
ção da unidade independente, o atendimento das prescrições legais
(na legislação brasileira, o artigo 45 do Código Civil estabelece como
requisito legal o registro no órgão competente) e delimitação de fins
sociais lícitos.
No momento em que a pessoa jurídica tem o seu ato constitu-
tivo registrado no órgão competente, com observância das condições
legais para sua formação e da licitude de seus objetivos, passa a ter
personalidade jurídica própria, com aptidão para contrair direitos e
obrigações no mundo civil.
O fenômeno da atribuição de personalidade jurídica à pessoa
jurídica existe para favorecer a realização dos fins propostos pelos
indivíduos que pretendem formar a nova pessoa, distinta dos seus

11  RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil – Parte Geral. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1,
p. 86.
12  PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, volume 1. 24ª ed. Rio de
Janeiro: Editora Forense, 2011, p. 248.

310
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

membros individuais. Ao ser criado um ente fictício dotado de per-


sonalidade jurídica, este pode agir com a autonomia necessária para
participar da vida civil, atuando como uma unidade, em nome próprio,
com capacidade e patrimônio próprios.
Após a regular constituição, a pessoa jurídica possui as seguin-
tes características: a) personalidade jurídica distinta dos indivíduos
instituidores; b) patrimônio distinto do patrimônio dos seus membros;
c) existência jurídica diversa dos seus integrantes; d) impossibilidade
de exercer atos privativos das pessoas naturais; e e) possibilidade de
ser sujeito passivo ou ativo em atos civis e criminais13.
A partir da existência da pessoa jurídica independente dos
seus membros, com personalidade jurídica própria e patrimônio apar-
tado, Fabio Ulhoa Coelho destaca a três consequências principais da
personalização do novo ente, sendo elas a titularidade obrigacional, a
titularidade processual e a responsabilidade patrimonial do novo ente
jurídico:

Em outros termos, na medida em que a lei estabelece


a separação entre a pessoa jurídica e os membros que
a compõem, consagrando o princípio da autonomia
patrimonial, os sócios não podem ser considerados os
titulares dos direitos ou os devedores das prestações
relacionadas ao exercício da atividade econômica, ex-
plorada em conjunto. Será a própria pessoa jurídica da
sociedade a titular de tais direitos e a devedora dessas
obrigações. Três exemplos ilustram as consequências da
personalização da sociedade empresária: a titularidade
obrigacional, a titularidade processual e a responsabili-
dade patrimonial.14

13  FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. Cristiano
Chaves de Farias, Nelson Rosenvald. 17ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2019, v. 1, p.
486.
14  COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa.
21ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 30.

311
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Da afirmação de que a pessoa jurídica tem titularidade obri-


gacional, pode-se concluir que é somente ela que responde pelas
obrigações contraídas em decorrência de relações jurídicas, e não os
indivíduos que a formam.
O mesmo entendimento é aplicado no que se refere à titulari-
dade processual: é o grupo personalizado que tem legitimidade para
demandar e ser demandado em juízo.
Por fim, o efeito mais importante da personalização da pessoa
jurídica é a autonomia patrimonial. Como a sociedade é pessoa distin-
ta dos seus membros, os seus patrimônios também são considerados
distintos. É o princípio da separação patrimonial ou autonomia patri-
monial.
Este princípio é fundamental para o fomento da exploração
da atividade econômica pela iniciativa privada, já que estimula in-
vestidores e empreendedores a desenvolver novas atividades com
menos riscos pessoais. Em caso de insucesso do negócio, somente os
bens integrantes do acervo patrimonial da pessoa jurídica, em regra,
respondem pelas obrigações por ela contraídas, evitando-se que os
sócios percam seus bens particulares.
A limitação das perdas pessoais dos sócios é essencial para
impulsionar o desenvolvimento da atividade econômica e, por
consequência, aumentar a oferta de bens e serviços à população,
encontrando respaldo no postulado da livre iniciativa previsto na
Constituição Federal.
Embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha adotado
o sistema de responsabilidade limitada e subsidiária do sócio como
regra, isso não significa dizer que a atuação social resulta na irrespon-
sabilidade ilimitada dos sócios, já que a atividade econômica deve ser
exercida com respeito às normas constitucionais, inclusive a função
social da empresa, sendo vedada a utilização da pessoa jurídica de
forma abusiva ou para a consecução de fins ilícitos.

312
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

Neste contexto, a própria lei estabelece mecanismos para


evitar a ocorrência de práticas abusivas ou ilícitas por meio do uso de-
senfreado e irresponsável da estrutura autônoma da pessoa jurídica,
excepcionando o princípio da autonomia patrimonial, seja atribuindo
responsabilidade patrimonial ao sócio ou administrador em situações
específicas, seja prevendo a possibilidade de desconsideração da per-
sonalidade jurídica da sociedade em outros casos.
Significa dizer que, embora a regra seja de que a responsabili-
dade pelas obrigações contraídas seja apenas do devedor, possuindo
este a legitimidade passiva para figurar em eventual execução (é a
pessoa jurídica, como agente autônomo, que responde pelas obriga-
ções decorrentes das relações jurídicas em que figura), em algumas
situações especiais, o legislador atribui responsabilidade patrimonial
a pessoa distinta daquela que contraiu a obrigação.
Há situações em que a lei atribui responsabilidade a pessoa que
não contraiu a obrigação, como, por exemplo, quando o sócio respon-
de por atos praticados por meio da sociedade nos casos previstos em
lei ou, ainda, quando se autoriza a desconsideração da personalidade
jurídica da sociedade para que sejam pontual e temporariamente
suspensos os efeitos da autonomia patrimonial e alcançados os bens
pessoais dos sócios, observados os requisitos legais.
Aliás, é importante destacar que a utilização do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica não se volta para todos
os tipos de pessoas jurídicas, já que passa ao largo das pessoas jurí-
dicas de direito público, e, até, de algumas pessoas jurídicas de direito
privado como as associações e as fundações, concentrando-se nas
sociedades empresárias.
Se, por um lado, este tipo societário é de extrema importância
para o desenvolvimento da ordem econômica, já que em razão da
autonomia patrimonial da empresa há segregação dos riscos e mo-
tivação aos investimentos na economia, por outro, não é permitida a

313
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

irresponsabilidade destes e nem o uso abusivo da pessoa jurídica, sen-


do exigida dos seus componentes uma conduta que esteja de acordo
com as normas contratuais e legais, sob pena de a responsabilidade
dos sócios ou administradores tornar-se ilimitada.
É neste cenário e com foco nas sociedades empresárias que
serão analisados os mecanismos legais existentes para coibir que a
personalidade jurídica da empresa seja utilizada pelos seus membros
para alcançar fins ilícitos, fraudulentos ou abusivos.

3. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

A doutrina e a jurisprudência têm se preocupado com o mau


uso da pessoa jurídica, desde o século XIX, enquanto a legislação
pátria começou a se ocupar do tema principalmente a partir do final
no século XX.

3.1. FUNDAMENTOS

Sabe-se que uma sociedade empresária é criada a partir do


acordo de vontades de um grupo de pessoas, que se compromete a
conjugar esforços para a consecução de um fim lucrativo, o que não
encontra qualquer óbice legal; ao contrário, esta reunião de interesses
encontra amparo no postulado da livre iniciativa previsto no artigo
170 da Constituição Federal.
Entretanto, vem se tornando cada vez mais frequente a utili-
zação da personalidade jurídica da sociedade para alcançar objetivos
diversos daqueles propostos no momento da constituição da pessoa
jurídica, caracterizados pelo conflito com os fins previstos nos esta-
tutos e com os permitidos pelo legislador.
Apontado como o precursor na defesa da teoria da desconsi-
deração da personalidade jurídica na doutrina brasileira, Rubens Re-
quião, inicia sua conferência sobre o tema expondo esta preocupação:

314
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

Há algum tempo, quando nos iniciávamos no estudo


sistemático do direito comercial, nos foi proposto o
seguinte problema: Se a pessoa jurídica não se con-
funde com as pessoas físicas que a compõem, pois são
personalidades radicalmente distintas; se o patrimônio
da sociedade personalizada é autônomo, não se iden-
tificando com o dos sócios, tanto que a cota social de
cada um deles não pode ser penhorada em execução
por dívidas pessoais, seria então fácil burlar o direito dos
credores, transferindo previamente para a sociedade
comercial todos os seus bens. Desde que a sociedade
permanecesse sob o controle desse sócio, não haveria
inconveniente ou prejuízo para ele que o seu patrimônio
fosse administrado pela sociedade, que assim estaria
imune às investidas judiciais de seus credores.15

Não há dúvidas que a autonomia patrimonial da pessoa jurídi-


ca é uma característica de suma importância para o êxito da atividade
empresarial, cumprindo papel fundamental na segurança jurídica e
no estímulo necessários à atuação na atividade econômica, tal como
prevista na Constituição Federal.
A despeito de tal importância, não se pode permitir, ou pior,
estimular, que a autonomia patrimonial da pessoa jurídica venha a ser
usada como escudo para a prática de atos fraudulentos ou abusivos,
disseminando situações de injustiça.
Assim é que foi desenvolvida pela jurisprudência estrangeira
a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, também cha-
mada de disregard doctrine, tendo como objetivo inibir a prática de
fraude ou abuso de direito através do uso indevido da personalidade
jurídica da empresa.
A disregard doctrine não pretende anular a personalidade
jurídica da empresa ou promover a extinção da pessoa jurídica, mas

15  REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica


(disregard doctrine). In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, dez., 1969, vol. 410, p. 12-13.

315
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

tão somente desconsiderar, no caso concreto, e respeitados limites


legais, a sua personalidade jurídica autônoma em relação às pessoas
ou bens que tentam se esconder atrás dela. É a declaração de inefi-
cácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos,
prosseguindo, contudo, a pessoa jurídica perfeitamente válida para
seus outros fins legítimos16.
José Edwaldo Tavares Borba defende que a referida teoria
somente tem o condão de afastar a personalidade jurídica da socie-
dade em situações especificas, onde os sócios tenham manipulado a
sociedade como instrumento para alcançar seus interesses pessoais,
e não de anular esta personalidade.17
Fábio Ulhoa Coelho sintetiza os aspectos acima analisados,
destacando a finalidade do instituto de coibir o uso fraudulento da
pessoa jurídica, bem como a sua utilização através da suspensão epi-
sódica dos efeitos do ato constitutivo da sociedade, sem invalidá-lo:

Pela teoria da desconsideração, o juiz pode deixar de apli-


car as regras de separação patrimonial entre sociedade e
sócios, ignorando a existência da pessoa jurídica num caso
concreto, porque é necessário coibir a fraude perpetrada
graças à manipulação de tais regras. Não seria possível a
coibição se respeitada a autonomia da sociedade. Note-se,
a decisão judicial que desconsidera a personalidade jurí-
dica da sociedade não desfaz o seu ato constitutivo, não
o invalida, nem importa a sua dissolução. Trata, apenas e
rigorosamente, de suspensão episódica da eficácia desse
ato. Quer dizer, a constituição da pessoa jurídica não pro-
duz efeitos apenas no caso em julgamento, permanecendo
válida e inteiramente eficaz para todos os outros fins.18

16  REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica


(disregard doctrine). In: Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, dez., 1969, vol. 410, p. 14.
17  BORBA, José Edwaldo Tavares, Direito Societário. 9ª ed. São Paulo: Renovar, 2004,
p. 33.
18  COELHO, Fábio Ulhoa, Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa.
21ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 64.

316
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

É possível notar, portanto, que a teoria da desconsideração


da personalidade jurídica não prega a extinção da pessoa jurídica que
tenha sido usada como instrumento para a prática de fraude ou abuso
de direito, mas tão somente de suspensão temporária, e no caso con-
creto, da eficácia dessa personalidade e da consequente autonomia
patrimonial da sociedade, para que se possa responsabilizar pesso-
almente os seus membros, ou seja, os verdadeiros responsáveis pelos
ilícitos eventualmente cometidos.
Na realidade, sequer se trata de uma teoria, já que não corres-
ponde a um conjunto de proposições buscando explicar um determi-
nado problema, aproximando-se mais de uma técnica utilizada para
corrigir abusos que possam decorrer do uso desvirtuado da pessoa
jurídica, a partir da idéia de que a personalidade jurídica não constitui
um direito absoluto, devendo ser limitada pela teoria da fraude contra
credores e pela teoria do abuso de direito.
A doutrina brasileira convencionou o tratamento da des-
consideração da personalidade jurídica com a classificação em duas
vertentes, a teoria maior e a teoria menor, sendo que o elemento
subjetivo é o traço distintivo entre elas: enquanto a teoria maior exige
a ocorrência de fraude ou abuso de direito nos atos praticados por
meio da pessoa jurídica, na teoria menor basta o simples inadimple-
mento da obrigação pela sociedade e o prejuízo do credor para que
seja desconsiderada a sua personalidade jurídica.
Em outras palavras, para a teoria maior, estando presente o
requisito subjetivo, qual seja, agir a pessoa física em nome da pessoa
jurídica com a finalidade de utilizar-se desta como instrumento para
praticar ato fraudulento ou com abuso de direito, surge a situação que
autoriza a desconsideração do princípio da autonomia patrimonial da
pessoa jurídica.
Vale dizer, conforme esta vertente, a autonomia patrimonial
da sociedade deve ser ignorada somente em casos excepcionais e

317
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

de forma temporária, para coibir a utilização fraudulenta da pessoa


jurídica.
Por outro lado, com base na teoria menor, o simples inadim-
plemento do crédito pela pessoa jurídica já autoriza que o patrimônio
pessoal do sócio responda pelas obrigações contraídas pela socieda-
de. Basta que o credor prejudicado demonstre que a sociedade não
tem patrimônio suficiente para cumprir com as obrigações assumi-
das, apontando algum sócio que seja solvente para pagar a dívida em
questão, para que seja autorizada a desconsideração da personalidade
jurídica e este último seja responsabilizado.

3.2. PREVISÃO LEGAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

Foi a Lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor (CDC),


que tratou pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro
da desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita,
ao dispor expressamente, no artigo 28, acerca da possibilidade de
desconsideração da personalidade jurídica da sociedade em algu-
mas situações específicas, envolvendo abuso de direito, excesso de
poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou
contrato social 19.
Fábio Ulhoa Coelho critica a redação do referido dispositivo,
afirmando que a teoria da desconsideração não foi devidamente
retratada no texto legal ora tratado:

19  Lei 8.078/90. Art. 28: O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso
de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato
social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado
de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má
administração.

318
A RESPONSABILIDADE DO SÓCIO PELAS OBRIGAÇÕES TRABALHISTAS APÓS A LEI 13.467/2017

Contudo, tais são os desacertos do dispositivo em


questão que pouca correspondência se pode identificar
entre ele e a elaboração doutrinária da teoria. Com efei-
to, entre os fundamentos legais da desconsideração em
benefício dos consumidores, encontram-se hipóteses
caracterizadoras de responsabilização de adminis-
trador que não pressupõem nenhum superamento da
forma da pessoa jurídica. Por outro lado, omite-se a
fraude, principal fundamento para a desconsideração.
A dissonância entre o texto da lei e a doutrina nenhum
proveito traz à tutela dos consumidores, ao contrário, é
finte de incerteza e equívocos.20

O que o jurista supracitado condena é a falta de técnica que


o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor dispensou ao tema,
ao prever todas as hipóteses em que supostamente a personalidade
jurídica da empresa poderá ser desconsiderada. Para ele, a hipótese
de desconsideração prevista para os casos de abuso de direito tem
correspondência com a doutrina desenvolvida. Entretanto, as demais
possibilidades, como excesso de poder, infração da lei, fato ou ato
ilícito, violação do estatuto ou contrato social, falência, estado de
insolvência e encerramento ou inatividade provocados por má admi-
nistração, se referem a assunto diverso da desconsideração da perso-
nalidade jurídica, uma vez que tais atos que geram a responsabilidade
do sócio, representante legal ou administrador podem perfeitamente
ser imputados a quem praticou a conduta ilícita, sem necessidade de
desconsiderar a personalidade jurídica da empresa.
Isso porque, os danos decorrentes de atos ilícitos ou má admi-
nistração praticados pelo sócio, controlador ou representante legal
da pessoa jurídica podem ser ressarcidos ao consumidor sem que a
personalidade jurídica seja obstáculo à imputação de responsabilida-

20  COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa.
21ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 71.

319
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

de a quem os tenha causado. Em tais casos, ao causador do dano é


imputada obrigação pessoal, não havendo qualquer dificuldade em
estabelecer a sua responsabilidade pelo ilícito cometido21.
O mesmo artigo 28, no parágrafo 5º22, retrata uma “desconsi-
deração objetiva” da personalidade jurídica, sem exigência de qualquer
ato ilícito ou má administração por parte do sócio ou administrador
para que seja imputada a responsabilidade pessoal.
Para Fabio Ulhoa Coelho, inclusive, a interpretação literal do
parágrafo 5º tornaria letra morta o caput do artigo 28, razão pela qual
sugere uma interpretação mais restrita do dispositivo, utilizado ape-
nas nos casos de sanções impostas ao empresário que não cumprir
normas de proteção aos consumidores23.
A maioria da doutrina, entretanto, defende que o legislador
ordinário claramente optou pela teoria menor influenciado pela
concepção objetivista da teoria da desconsideração, que entende ser
prescindível a configuração da fraude ou abuso de direito, bastando,
para a desconsideração da personalidade jurídica, por exemplo, o en-
cerramento das atividades por má administração ao lado do prejuízo
causado ao consumidor.
A segunda menção ao instituto de desconsideração da per-
sonalidade jurídica no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu em
1994, com a edição da Lei Antitruste (Lei no 8.884/94). O referido
diploma legal foi revogado pela Lei 12.529/2011, que passou a disci-
plinar, entre outros assuntos, matérias pertinentes às infrações da
ordem econômica.
Desde a edição da lei revogada havia previsão legal, no artigo
18, da desconsideração da personalidade jurídica para os casos em

21  Ibidem, p. 72.


22  Lei 8.078/90. Art. 28. [...] §5º: Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica
sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de
prejuízos causados aos consumidores.
23  COELHO, Fabio Ulhoa, op. cit., p. 73.

320
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

que houvesse por parte do responsável pela pessoa jurídica abuso de


direito, excesso de poder, dentre outras hipóteses que possam causar
prejuízos à ordem econômica, tendo a redação sido praticamente
replicada no artigo 34 da lei revogadora24.
Posteriormente, a Lei 9.605/98, ao dispor sobre sanções de-
rivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, também
trouxe previsão permitindo se desconsiderar a personalidade jurídica
nos casos em que esta fosse obstáculo ao ressarcimento dos danos
causados ao meio ambiente, como se observa no seu artigo 4º25.
Com um texto semelhante ao parágrafo 5º do artigo 28 do Có-
digo de Defesa do Consumidor, o dispositivo legal traz uma hipótese
de desconsideração da personalidade jurídica na concepção objetiva
para os casos de danos ao meio ambiente.
Mais adiante, o Código Civil promulgado em 2002 (Lei
10.406/2002) não deixou de tratar da possibilidade de superação
episódica da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, embora não
tenha utilizado a exata nomenclatura “desconsideração da persona-
lidade jurídica”.
Inicialmente, o artigo 50 da Lei 10.406/2002, estabeleceu a
possibilidade de o juiz decidir pela extensão dos efeitos de determi-
nadas obrigações da empresa aos bens particulares dos administra-
dores ou sócios da pessoa jurídica, quando verificada a utilização da
personalidade jurídica como escudo para atos abusivos, caracteriza-
dos pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.

24  Lei nº 12.52/2011. Art. 34. A personalidade jurídica do responsável por infração
da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste
abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos
estatutos ou contrato social. Parágrafo único. A desconsideração também será efe-
tivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade
da pessoa jurídica provocados por má administração.
25  Lei nº 9.605/98. Art. 4º: Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que
sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade
do meio ambiente.

321
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O legislador apontou, portanto, duas formas para configu-


ração do abuso da personalidade jurídica: o desvio de finalidade e a
confusão patrimonial.
Tratando-se, inicialmente, de conceitos jurídicos abertos, o
legislador reformador buscou delimitar a aplicação do instituto da
desconsideração da personalidade jurídica, promovendo alterações
no artigo 50 do Código Civil por meio da Lei 13.874/2019 (Lei da
Liberdade Econômica) para apresentar os conceitos de desvio de
finalidade e a confusão patrimonial26.
Em síntese, o desvio de finalidade é a utilização da pessoa
jurídica com o propósito de lesar credores ou de encobrir a prática de
atos ilícitos, enquanto a confusão patrimonial é a ausência de separa-
ção entre os patrimônios da pessoa jurídica e dos seus sócios.
Não deve passar despercebido que a mesma Lei da Liberdade
Econômica inseriu o artigo 49-A no Código Civil, reforçando a sepa-
ração entre a pessoa jurídica e seus sócios, sem deixar margem para
qualquer dúvida acerca da legitimação do princípio da autonomia
patrimonial no ordenamento jurídico brasileiro27.

26  CC/2002. Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado


pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento
da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsi-
derá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam
estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica
beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa
jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer
natureza.
§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os
patrimônios, caracterizada por:
I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador
ou vice-versa;
II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de
valor proporcionalmente insignificante; e
III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
[...]
27  CC/2002. Art. 49-A. A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associa-
dos, instituidores ou administradores.

322
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

O legislador enfatizou que a autonomia patrimonial constituiu


um instrumento lícito de segregação de riscos, que objetiva fomentar
a atividade econômica, conformando-a para a geração de empregos e
aumento de renda, em benefício de toda a sociedade.
Outra previsão legal que apresenta relevância atual sobre o
tema é o artigo 82 da Lei de Falências, a Lei 11.101/200528, segundo
a qual a responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilidade
limitada, controladores e administradores da sociedade falida será
decidida pelo juiz do processo falimentar.
Ante a carência de regulamentação das hipóteses em que
poderia haver responsabilidade pessoal dos sócios, administradores e
controladores da pessoa jurídica, em 2020, a Lei 14.112/2020 inseriu o
artigo 82-A da Lei de Falências admitindo expressamente a desconsi-
deração da personalidade jurídica no processo falimentar, desde que
observados os requisitos previstos na legislação comum29.

Parágrafo único. A autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento


lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de
estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação
em benefício de todos.
28  Lei nº 11.101/2005. Art. 82: A responsabilidade pessoal dos sócios de responsabilida-
de limitada, dos controladores e dos administradores da sociedade falida, estabeleci-
da nas respectivas leis, será apurada no próprio juízo da falência, independentemente
da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, observado
o procedimento ordinário previsto no Código de Processo Civil.
[...] § 2º O juiz poderá, de ofício ou mediante requerimento das partes interessadas,
ordenar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível
com o dano provocado, até o julgamento da ação de responsabilização.
29  Lei nº 11.101/2005. Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos,
no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e
aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da
personalidade jurídica. Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídi-
ca da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou
administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar
com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)
e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código
de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº
13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil).

323
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

A bem da verdade, o legislador confunde a aplicação do insti-


tuto ao prever sua utilização em situações em que a responsabilidade
é atribuída diretamente ao sócio ou administrador causador do dano,
nos casos de infração da lei ou estatuto, fato ou ato ilícito, como, por
exemplo, na previsão do artigo 28 do Código de Defesa do Consumi-
dor e do artigo 34 da Lei 12.529/2011.
Aliás, antes mesmo da Lei 8.078/90 tratar de desconsideração
da personalidade jurídica, o ordenamento jurídico brasileiro já trazia
diversas hipóteses de responsabilidade pessoal do sócio por atos
praticados por meio da pessoa jurídica, como forma de controlar a
utilização do ente fictício em desconformidade com a legislação ou
com os objetivos sociais, que também merecem ser analisadas.

4. RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DO SÓCIO

Fredie Didier Jr. descreve a responsabilidade patrimonial


como “o estado de sujeição do patrimônio do devedor ou de terceiros
responsáveis (cf. art.790, CPC), às providências executivas voltadas à
prestação devida”30.
Em regra, é o devedor quem possui a legitimidade passiva para
responder pelas obrigações contraídas em decorrência das relações
jurídicas que travou, a teor do artigo 789 do Código de Processo Civil,
que dispõe que o “devedor responde com todos os seus bens presentes
e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições
estabelecidas em lei”. Logo, constituindo-se uma dívida da empresa,
é a própria pessoa jurídica, em regra, que responde com os seus bens
presentes e futuros pelo cumprimento da obrigação assumida.
Contudo, a norma processual estabelece exceções em que
atribui responsabilidade a terceiros distintos do devedor, que tam-

30  DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual Civil: execução/ Fredie Didier Jr.,
Leonardo Carneiro da Cunha, Paula Sarno Braga, Rafael Alexandria de Oliveira. 9ª ed.
rev. ampl. e atual. Salvador: Ed. Juspodivm, 2019, p. 337.

324
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

bém podem figurar como sujeitos passivos da execução, como, por


exemplo, os sucessores do devedor, o fiador ou, ainda, o sócio, nos
casos previsto em lei.
E aqui se encontra a figura do sócio que ostenta responsa-
bilidade direta, embora secundária, quando a legislação estabelece
hipóteses em que o sócio deve responder individual e diretamente
por dívidas contraídas pela sociedade da qual faz parte.
A primeira vez que a lei estipulou a possibilidade de respon-
sabilização pessoal dos sócios por atos cometidos através da pessoa
jurídica foi em 1919, por meio do artigo 10 do Decreto 3.70831, que re-
gulava a constituição das sociedades por quotas de responsabilidade
limitada.
Com efeito, o artigo 10 do Decreto 3.708 introduziu uma hipó-
tese de responsabilidade solidária dos sócios, no caso de atuação de
forma contrária ao estatuto ou com excesso de poder, o que significa
que havia a possibilidade de se responsabilizar diretamente os sócios
pelos ilícitos cometidos, sendo caso de responsabilidade direta, e não
de desconsideração da personalidade jurídica.
Embora se trate de legislação obsoleta, já que a sociedade por
quotas de responsabilidade limitada foi substituída pela sociedade
limitada no Código Civil de 2002, não há como negar a importância
que referida previsão legal teve na formulação e desenvolvimento da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil.
Na mesma linha, outras leis cuidaram de hipóteses de respon-
sabilidade pessoal dos sócios, flexibilizando o princípio da autonomia
patrimonial da pessoa jurídica.
É o caso da Lei 5.172/66, que instituiu o Código Tributário Na-
cional (CTN), trazendo no artigo 135 a previsão de responsabilidade

31  Decreto nº 3.708/19. Art. 10: Os sócios-gerentes ou que derem o nome à firma
não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade,
mas respondem para com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo
excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.

325
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

pessoal dos diretores, gerentes ou representantes da empresa por


atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei32.
Ainda, a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404/76), trouxe
alguns dispositivos semelhantes ao anteriormente mencionado na
Lei da Limitada, merecendo atenção especial os artigos 11733 e 15834,
com prescrição da responsabilidade do acionista controlador e do
administrador nos casos de atos praticados com abuso de poder e
com violação da lei ou estatuto.
É possível observar que, nos casos acima mencionados, a legis-
lação estabeleceu hipóteses específicas de responsabilidade pessoal
dos sócios por atos cometidos em nome da pessoa jurídica, seja por
abuso de poder, seja por violação à lei ou ao estatuto, de forma que
a personalidade jurídica da empresa, em tais casos, não representa
um obstáculo a tal responsabilização, motivo pelo qual não se faz
necessária, ainda, qualquer discussão acerca da desconsideração da
personalidade jurídica35.
A Lei 5.869/73 instituiu o Código de Processo Civil anterior e
consagrou o princípio da autonomia patrimonial, estabelecendo no
artigo 596 que os bens particulares dos sócios não respondem pelas
dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei, reforçando,
deste modo, o entendimento de que, em casos específicos e regula-
dos pela legislação, é possível, sim, haver responsabilidade do sócio.

32  CTN. Art. 135: São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a
obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou
infração de lei, contrato social ou estatutos:
[...] III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
33  Lei nº 6.404/76. Art. 117: O acionista controlador responde pelos danos causados
por atos praticados com abuso de poder.
34  Lei nº 6.404/76. Art. 158: O administrador não é pessoalmente responsável pelas
obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de
gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
II - com violação da lei ou do estatuto.
35  GONÇALVES, Oksandro, Desconsideração da Personalidade Jurídica. Curitiba:
Juruá, 2008, p. 90.

326
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

A regra de observância do princípio da autonomia patrimo-


nial da pessoa jurídica foi mantida no Código de Processo Civil de
2015, instituído pela Lei 13.105/2015, que praticamente repetiu a
redação do artigo 596 do diploma anterior no seu artigo 79536. Vale
dizer, os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas
da sociedade, já que esta possui autonomia patrimonial, salvo nos
casos previstos em lei.
Entretanto, o sócio responderá pessoalmente, inclusive com
seus bens particulares, em situações especiais legalmente expressas,
como, por exemplo, em relação aos créditos tributários resultantes de
atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato
social ou estatutos (artigo 135 do CTN) ou responsabilidade pessoal
do controlador da sociedade anônima por danos causados por atos
cometidos com abuso de poder (artigo 117 da Lei das Sociedades
Anônimas).
O Código Civil também trouxe hipóteses de responsabilidade
ilimitada do sócio em alguns tipos societários, como, por exemplo,
na sociedade em comum37, na sociedade em nome coletivo38 e na
sociedade em comandita simples, restringindo-se, neste último caso,
aos sócios comanditados39, ou seja, casos em que a personalidade
jurídica da empresa não configura obstáculo à responsabilização dos
seus sócios, já que estes respondem ilimitadamente pelas obrigações
sociais, conforme previsão legal expressa.

36  CPC/2015. Art. 795. Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas
da sociedade, senão nos casos previstos em lei. [...]
37  CC/2002. Art. 990. Todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas
obrigações sociais, excluído do benefício de ordem, previsto no art. 1.024, aquele que
contratou pela sociedade.
38  CC/2002. Art. 1.039. Somente pessoas físicas podem tomar parte na sociedade
em nome coletivo, respondendo todos os sócios, solidária e ilimitadamente, pelas
obrigações sociais.
39  CC/2002. Art. 1.045. Na sociedade em comandita simples tomam parte sócios de
duas categorias: os comanditados, pessoas físicas, responsáveis solidária e ilimitada-
mente pelas obrigações sociais; e os comanditários, obrigados somente pelo valor de
sua quota.

327
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

É possível notar que sempre houve a preocupação do legisla-


dor em coibir a utilização da pessoa jurídica como escudo para atua-
ção divergente da sua finalidade ou de forma contrária às disposições
legais, o que, de um lado permite o aperfeiçoamento do instituto da
pessoa jurídica, na medida em que, estabelece soluções para que esta
continue existindo mesmo diante de utilização indevida pelos seus
membros, buscando alcançar o verdadeiro responsável pelos danos
causados.
Assim, as normas que foram criadas ao longo do tempo es-
tabelecendo a responsabilidade dos sócios ou administradores das
empresas, bem como as que tentaram inserir a teoria da desconsi-
deração da personalidade jurídica no ordenamento jurídico de forma
expressa apresentam a mesma finalidade, que é impedir a utilização
fraudulenta da pessoa jurídica.

5. RESPONSABILIDADE DO SÓCIO E DESCONSIDERAÇÃO


DA PERSONALIDADE JURÍDICA NA JUSTIÇA DO
TRABALHO

Muito já se discutiu acerca da aplicação da teoria desconsi-


deração da personalidade jurídica na Justiça do Trabalho, já que não
havia, no âmbito da legislação trabalhista, norma expressa admitindo
a desconsideração da personalidade conferida à pessoa jurídica, com
o intuito de inibir o seu uso abusivo.
Para solucionar o problema decorrente da existência de
lacunas normativas, a Consolidação das Leis do Trabalho dispõe, no
artigo 8º, sobre regras de interpretação do direito material fundadas
em analogia, equidade, princípios e normas gerais de direito, prevendo
ainda, em seu parágrafo único, a utilização do direito comum como
fonte subsidiária.
Neste contexto, a discussão clássica acerca do tema não era
se poderia ou não ser desconsiderada a personalidade jurídica no

328
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

âmbito trabalhista, mas, na realidade, qual seria a fonte subsidiária


mais adequada para suprir a omissão legislativa, de forma a se obter o
entendimento mais adequado e em conformidade com os princípios
peculiares do Direito do Trabalho, diante do seu nítido caráter prote-
tivo.
Em virtude da previsão expressa do artigo 8º da CLT, trazendo
o direito comum como fonte subsidiária do direito do trabalho, algu-
mas vozes defendiam a desconsideração da personalidade jurídica
com fundamento no artigo 50 do Código Civil, indiscutivelmente a
norma básica do direito material comum.
Prevaleceu, entretanto, no âmbito da doutrina e da jurispru-
dência deste ramo especializado o entendimento segundo o qual a
desconsideração da personalidade jurídica em relação às obrigações
trabalhistas deveria se pautar na normatização prevista no artigo 28
do Código de Defesa do Consumidor, já que esta guarda evidente co-
nexão com a norma celetista ante o seu caráter protetivo em face da
parte hipossuficiente da relação jurídica, sendo mais adequada para
proteção do credor, além de estar em conformidade com os princí-
pios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do valor social
do trabalho e da natureza alimentar do crédito trabalhista.
De todo modo, a discussão envolvendo a teoria da desconsi-
deração da personalidade jurídica no âmbito trabalhista fundada no
artigo 50 do Código Civil ou no artigo 28 do CDC perdeu força após a
vigência da Lei 13.467/2017, já que o legislador inseriu o artigo 10-A na
CLT40, estabelecendo expressamente a responsabilidade subsidiária
do sócio pelas obrigações trabalhistas.

40  CLT. Art. 10-A. O sócio retirante responde subsidiariamente pelas obrigações
trabalhistas da sociedade relativas ao período em que figurou como sócio, somente
em ações ajuizadas até dois anos depois de averbada a modificação do contrato,
observada a seguinte ordem de preferência:
I - a empresa devedora;
II - os sócios atuais; e
III - os sócios retirantes.

329
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Trata-se de uma nova hipótese legal que prevê a responsabi-


lidade do sócio pelas obrigações contraídas em nome da sociedade.
Isso porque, a norma trabalhista afirma expressa e diretamente que
o sócio responde subsidiariamente (ou solidariamente, quando ficar
comprovada fraude na alteração societária) pelas obrigações na es-
fera laboral, sem que haja algum requisito prévio como ato ilícito ou
abuso de poder.
É possível defender, inclusive, que sequer é necessário se falar
em desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para tan-
to, já que o legislador instituiu a responsabilidade subsidiária do sócio
sem exigir qualquer requisito, limitando-se a apresentar o marco
temporal de dois anos para a responsabilidade do sócio retirante.
Neste sentido, Gustavo Filipe Barbosa Garcia também defen-
de que se trata de uma hipótese de responsabilidade direta do sócio:

Trata-se, no caso, de regra específica de responsabi-


lidade patrimonial na esfera trabalhista, estabelecida
de forma direta por norma legal, não se confundindo,
assim, com a desconsideração da personalidade jurídica,
a qual exige requisitos próprios para ser aplicada (art.
50 do Código Civil e art. 28 do Código de Defesa do
Consumidor).41

Além do limite temporal criado pelo legislador para a respon-


sabilidade do sócio retirante, foi estabelecida a ordem de preferência
contida no artigo 10-A da CLT, de forma que devem responder pelas
obrigações trabalhistas a empresa, os sócios atuais e o sócio retirante,
respectivamente nesta ordem.

Parágrafo único. O sócio retirante responderá solidariamente com os demais quando


ficar comprovada fraude na alteração societária decorrente da modificação do
contrato.
41  GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Reforma Trabalhista. 4ª ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: Juspodivm, 2018, p. 45.

330
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

A norma inserida pelo legislador no artigo 10-A da CLT, longe


de representar violação ao princípio constitucional da livre iniciativa
ou implicar na extinção do instituto da pessoa jurídica e sua corres-
pondente autonomia patrimonial, guarda compatibilidade com o
sistema constitucional de forma integrada.
Com base na livre iniciativa que decorre do princípio consti-
tucional da liberdade, é fato que os empreendedores podem exercer
livremente a atividade econômica, representando a autonomia patri-
monial traço fundamental para assegurar o desenvolvimento da ativi-
dade econômica; todavia, isso não significa que possam atuar de forma
irresponsável, causando prejuízos aos trabalhadores, até porque o valor
social do trabalho também é elencado como fundamento da ordem
econômica e serve para condicionar as atividades do setor privado.
A existência de regras excepcionais que apontam para a pos-
sibilidade de responsabilidade pessoal do sócio quando atue em des-
compasso com a lei ou os fins sociais, na realidade prestigia o instituto
da pessoa jurídica, já que mantém a regra da autonomia patrimonial
e segregação dos riscos, ao tempo em que oferece uma solução que
impele aos seus componentes uma conduta que esteja de acordo
com as normas contratuais e legais, sob pena de a responsabilidade
dos sócios ou administradores tornar-se ilimitada.
Por outro lado, embora o legislador tenha estabelecido a res-
ponsabilidade subsidiária do sócio no artigo 10-A da CLT, sem exigir re-
quisito legal (além do marco temporal de dois anos para sócio retirante)
ou fazer menção ao instituto da desconsideração da personalidade ju-
rídica, não se pode ignorar que a mesma Lei 13.467/2017 inseriu o artigo
855-A na norma consolidada, demonstrando a opção do legislador em
absorver o procedimento previsto no CPC/2015 quanto ao incidente
de desconsideração, que também merece atenção.
Sobre o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurí-
dica (IDPJ), trata-se de rito procedimental para regular o instituto da

331
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

desconsideração que já vinha sendo aplicado há algum tempo, criado


pelo legislador no CPC/2015, entre os artigos 133 e 137, ampliando as
hipóteses legais de responsabilidade dos sócios por atos cometidos
em nome da pessoa jurídica.
Na exposição de motivos do CPC/2015, o legislador deixou clara
a intenção de harmonizar a lei ordinária aos princípios constitucionais,
enfatizando a observância de princípios constitucionais na perspectiva
processual, como no caso da criação do procedimento próprio para o
IDPJ, com respeito ao contraditório e produção de provas.
A inovação legislativa foi comemorada no âmbito do processo
civil por representar uniformização do procedimento em compasso
com a segurança jurídica garantida no artigo 5º, XXXVI, da Consti-
tuição Federal; de outro lado, foi vista com ressalvas e preocupação
pelos estudiosos do processo do trabalho, ante a incompatibilidade
com o princípio da celeridade que norteia o processo trabalhista e
a ameaça a outro princípio constitucional, o da garantia de razoável
duração do processo (artigo 5º, LXXVIII)42.
De forma a evitar decisões conflitantes na seara trabalhista,
o Tribunal Superior do Trabalho se adiantou e aprovou a Instrução
Normativa 39/2016 que, dentre outras matérias, apontou para a
aplicação do incidente regulado a partir do artigo 133 do CPC no
processo do trabalho.
Pouco tempo depois a própria norma trabalhista tratou da
matéria, quando a Lei 13.467/2017 inseriu o artigo 855-A na CLT, su-
plantando qualquer dúvida sobre a possibilidade de desconsideração
da personalidade jurídica no âmbito do direito do trabalho, bem como
acerca da aplicabilidade do incidente regulado pelo CPC/2015.
Convém lembrar que, além do rito criado para o incidente de
desconsideração da personalidade jurídica, o CPC/2015 traz algumas

42  VALE, Diego Siqueira Rebelo. O incidente de desconsideração da personalidade


jurídica e o processo do trabalho: uma contradição aparente e uma distinção imperio-
sa. In: Revista do TRT8. v. 52, n. 102, (jan./jun./2019). Belém: TRT8, 2019, p.186.

332
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

importantes garantias ao sócio, como, por exemplo, o direito ao be-


nefício de ordem (artigo 795, § 1º), quando instado a responder pelo
pagamento de dívida da sociedade, ou seja, o direito a que sejam pri-
meiramente excutidos os bens da pessoa jurídica, devendo, entretanto,
indicar bens livres e desembaraçados bastantes para quitar o débito.
Ainda, o artigo 795, § 4º do CPC estabelece ser obrigatória a
instauração do IDPJ para a desconsideração da personalidade jurídica,
homenageando a segurança jurídica, além das garantias fundamen-
tais do devido processo legal, contraditório e ampla defesa na fase de
cumprimento das obrigações.
Aliás, o benefício de ordem também pode ser extraído da redação
do artigo 10-A da CLT, que exige a observância da ordem de preferência,
incialmente da empresa, seguida dos sócios atuais e, por fim, dos sócios
retirantes, quanto à responsabilidade pelas obrigações trabalhistas.
Diante da opção expressa do legislador pela instauração do
incidente previsto no artigo 133 do CPC, a instauração obrigatória do
IDPJ é solução que guarda compatibilidade com o sistema normativo
como um todo, já que privilegia a segurança jurídica, o devido proces-
so legal e o contraditório.
A Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da
Justiça do Trabalho homenageia este equilíbrio ao estabelecer, no ar-
tigo 78, as providências que devem ser adotadas pelo juiz que preside
a execução trabalhista, quando aplicada a teoria da desconsideração
da personalidade jurídica, como, por exemplo determinar a reautu-
ação do processo, para que conste o nome do sócio nos registros
informatizados e da capa dos autos, ou determinar a citação do sócio
para que, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique bens da
sociedade ou garanta a execução, sob pena de penhora dos seus bens
particulares, com fundamento no artigo 795 do CPC/2015.
Por outro lado, o fundamento de direito material a ser observado
quando da imputação de responsabilidade do sócio é aquele contido no

333
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

artigo 10-A da CLT, que traduz norma excepcional de responsabilidade,


além de especial a ramo do direito do trabalho, convergente com o valor
social do trabalho, que também é elencado como fundamento da ordem
econômica e serve para condicionar as atividades do setor privado.
Assim, instaurado o incidente, o sócio pode requerer o bene-
fício de ordem, indicando bens da empresa livres e desembaraçados,
ou alegar eventual condição de sócio retirante há mais de dois anos,
apontando os sócios atuais, em conformidade com a previsão do artigo
10-A da CLT e o artigo 795 do CPC/2015, que tem aplicação subsidiária.
Por meio do IDPJ, também pode haver a discussão sobre res-
ponsabilidade de acionista controlador ou administrador de sociedade
limitada, nos termos da Lei 6.404/76. A exigência de instauração do
incidente em questão também é expressamente prevista para os casos
de responsabilização de sócio ou administrador da sociedade falida
(artigo 82-A, parágrafo único, da Lei 11.101/2005), embora tal rito seja
determinado especificamente para decisões no juízo falimentar.
Ainda que tais hipóteses de responsabilização de sócios ou
administradores já tenham se afastado um pouco da concepção ini-
cial da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ao esta-
belecer as exceções em que estes devem responder inclusive com seu
patrimônio pessoal por atos praticados por meio da pessoa jurídica,
o intuito do legislador foi o mesmo de antes: reforçar a legitimidade
da autonomia patrimonial da empresa no ordenamento jurídico e, ao
mesmo tempo, coibir o uso de tal autonomia com fins ilícitos.
Portanto, a despeito da aparente falta de técnica, já que as normas
que surgiram nos últimos anos impõem a responsabilidade dos sócios ou
administradores por atos cometidos em nome da pessoa jurídica quando
a personalidade jurídica da empresa não representa, necexssariamente,
um obstáculo a tal imputação, a instauração do incidente previsto no
artigo 133 e seguintes do CPC/2015 busca assegurar o exercício do con-
traditório e ampla defesa, por meio do devido processo legal.

334
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

A solução ora apontada preserva o instituto da pessoa jurídica, já


que respeitada a ideia de que quem responde pelas obrigações contra-
ídas é, em regra, a própria sociedade, salvo nas situações excepcionais
previstas em lei (como no caso da responsabilidade subsidiária do sócio
prescrita no artigo 10-A da CLT), sem que se permita ou estimule atuação
social de forma irresponsável, causando prejuízos aos trabalhadores.

6. CONCLUSÃO

A partir da matéria ora examinada, é possível perceber que


sempre houve a preocupação do legislador em coibir a utilização da
pessoa jurídica como escudo para atuação divergente da sua finali-
dade ou de forma contrária às disposições legais, de forma que foram
editadas diversas leis com esta finalidade inibitória.
Por vezes o legislador dispôs diretamente sobre responsabi-
lidade do sócio ou administrador por ato ilícito cometido por meio
da pessoa jurídica; em outras tratou expressamente de hipóteses que
nomeou como desconsideração da personalidade jurídica. De todo
modo, o intento sempre foi o mesmo, de impedir a utilização fraudu-
lenta da pessoa jurídica.
Com exceção da disposição do artigo 50 do Código Civil,
em que o legislador descreveu expressamente que a consequência
da desconsideração da personalidade jurídica seria a extensão dos
efeitos de determinadas obrigações “aos bens particulares de admi-
nistradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou
indiretamente pelo abuso”, nas demais hipóteses em que tratou do
instituto, não houve clara diferenciação entre a desconsideração da
personalidade jurídica da empresa e as demais exceções legais que
tratam da responsabilidade dos sócios.
Ao contrário. Pode-se dizer, até, que houve um certo deslize,
na medida em que foram estabelecidas hipóteses de desconsideração
quando a personalidade jurídica nem mesmo configurava obstáculo à

335
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

imputação de responsabilidade ao sócio ou administrador (como, por


exemplo, no artigo 28 do CDC).
Da forma como foi importada a teoria do instituto para o
ordenamento brasileiro, verifica-se que, na realidade, o que prevalece
é a intenção legislativa de impedir a utilização do ente fictício em
desconformidade com a legislação ou com os objetivos sociais.
Na mesma linha, o legislador criador da Reforma Trabalhista,
trouxe nova hipótese de responsabilidade do sócio, subsidiária, es-
pecificamente quanto às obrigações abrangidas pela lei especial, ao
mesmo tempo em que prescreveu expressamente acerca da aplica-
bilidade do instituto de desconsideração da personalidade jurídica no
processo do trabalho.
Assim, sugere-se uma interpretação conjunta dos dispositivos
inseridos na CLT pela Lei 13.467/2017 (artigos 10-A e 855-A), para que
haja instauração do incidente ora tratado nos processos trabalhistas,
podendo o sócio invocar a condição de sócio retirante após o marco
legal de dois anos ou requerer o benefício de ordem e apontar bens da
empresa livres e desembaraçados, ou podendo ser discutida eventual
responsabilidade de acionista controlador ou administrador de socie-
dade limitada, nos termos da Lei 6.404/76.
O fundamento de direito material a ser observado quando da
imputação de responsabilidade do sócio é aquele contido no artigo
10-A da CLT, e não mais o artigo 50 do Código Civil ou o artigo 28
do CDC, em interpretação que compatibiliza os princípios da livre
iniciativa e do valor social do trabalho, ambos elencados como fun-
damentos da ordem econômica, que, não se pode esquecer, tem por
finalidade assegurar a todos uma existência digna.

REFERÊNCIAS
BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 9ª ed. São Paulo: Renovar, 2004.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, volume 2: direito de empresa. 21ª
ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

336
A FIGURA DO EMPREGADO HIPERSUFICIENTE CRIADA PELA LEI 13.467/17

COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Edi-


tora Revista dos Tribunais, 1989.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 18ª ed. São Paulo: LTR,
2019.

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337
338
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E
CONSTRUTOR DO DIREITO DO
TRABALHO NO BRASIL

Murilo C. S. Oliveira1

1  Juiz do Trabalho na Bahia e Professor Associado da UFBA, Especialista e Mestre em


Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Membro do Instituto Baiano de Direito
do Trabalho – IBDT. murilosampaio@yahoo.com.br.
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

1. INTRODUÇÃO

José Martins Catharino é um dos nomes indispensáveis no rol


dos pensadores críticos do Direito do Trabalho, deixando neste ramo
jurídico marcas indeléveis com o seu estilo único de escrita. Discorrer
sobre José Martins Catharino tem como propósito reafirmar a con-
tribuição desse autor como um dos construtores, numa perspectiva
crítica, do Direito do Trabalho no Brasil.
Para conhecer a importância de José Martins Catharino, é
preciso antes conhecer um pouco da sua história e biografia. Co-
nhecido o sujeito, passa-se a cuidar da sua trajetória no Direito do
Trabalho, com a transcrição de diversas ideias críticas sobre o Direito
do Trabalho lançadas por Zezé na sua vasta obra. Com particular ên-
fase, destaca-se que Martins Catharino foi um dos autores clássicos
que apresentou consistentes críticas ao critério da subordinação
jurídica, além de fazer uma defesa da dependência econômica. É
esta a proposta e roteiro deste ensaio que, ao final, tenta sintetizar o
legado do socialista Zezé Catharino.

2. UM POUCO DA HISTÓRIA BIBLIOGRÁFICA

Na Bahia, José Martins Catharino era carinhosamente conhe-


cido como “Zezé Catharino”, pela sua polidez, simplicidade e educa-
ção. Nascido em Salvador em 03 de dezembro de 1918, Zezé era da
tradicional e abastada família soteropolitana dos Martins Catharino.
Fora do mundo jurídico, foi atleta, sendo campeão de tênis e tendo
jogado no Esporte Clube Vitória e membro do partido socialista.
Ainda na Faculdade de Direito da Bahia, Zezé foi presidente
do Centro Acadêmico Ruy Barbosa em 1939/40, instituição estu-
dantil que também teve outras personalidades jurídicas baianas
importantes. Em 1º de maio de 1941, fundou seu escritório de advo-
cacia para questões trabalhistas, previdenciárias e cíveis. Antes, em

340
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

1940, iniciou sua trajetória de escritor no jornal local “O Imparcial”,


escrevendo uma coluna de questões trabalhistas. Sua primeira tese
foi publicada com título “Da estabilidade no Direito Brasileiro” pela
Editora Saraiva.
Conjuntamente com Orlando Gomes e Luiz Pinho Pedreira,
Zezé foi a São Paulo participar do I Congresso Brasileiro de Direito
Social promovido por Cesarino Junior em 1940. Justamente a tese
de Pinho Pedreira, foi vencedora sobre a tese de Cesarino Junior, de
modo que, doravante, a designação da disciplina passou a ser Direito
do Trabalho e não mais Direito Social.
Na condição de pesquisador e professor de direito, logrou,
por concurso, a Cátedra de Direito do Trabalho da Faculdade de
Direito da UFBa e também a condição de Professor Titular de Direi-
to do Trabalho. Participou das principais associações nacionais
e internacionais e agrupamentos trabalhistas de sua época, a exem-
plo do Instituto de Direito Social, Academia Nacional de Direito do
Trabalho (Patrono da Cadeira n. 80), da Société Internationale de
Droit du Travail Sociale, da Academia Iberoamericana de Derecho
Previsión Social, entre outras, além de ter sido Presidente da Asso-
ciação Brasileira de Advogados Trabalhistas.
São listados no seu currículo mais de 460 publicações, envol-
vendo livros jurídicos, colunas jornalísticas, livros de literatura, pare-
ceres, verbetes e opinativos sobre projetos de lei. Chama a atenção
sua verve literária que envolveu 9 obras não jurídicas, que iam desde
o “Pequeno dicionário brasileiro de gíria” de 2001 até um conto com
pesquisa histórica com o título “Garimpo-Garimpeiro-Garimpagem”
em 1986.
Sem prejuízo dessas incursões literárias, a extensa obra de
Martins Catharino está mesmo no âmbito jurídico, sobretudo na área
trabalhista. Dos 22 livros jurídicos publicados, alguns se tornaram
clássicos brasileiros sobre Direito do Trabalho. Apesar do risco de

341
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

injustiça com as demais obras, pode-se considerar que os livros mais


importantes de Zezé foram: O Tratado Jurídico do Salário em 1951;
Compêndio de Direito do Trabalho (2 volumes) em 1972; Tratado
Elementar de Direito Sindical em 1977; Neoliberalismo e sequela em
1997. Também Zezé envolvia-se bastante em questões do direito
desportivo, tendo escrito o livro “Contrato de emprego desportivo no
Direito brasileiro” de 1969 e diversos artigos e colunas sobre o tema,
além de ter sido juiz e presidente do Tribunal de Justiça Desportiva da
Bahia.
Na vasta carreira jurídica de 1940 a 2003, Catharino foi ad-
vogado trabalhista militante, embora também atuasse na defesa de
grandes empresas, em especial como parecerista. Aliás, é flagrante
no seu estilo de escrita a capacidade de síntese e de profundidade
dos textos de Zezé, inclusive revelador de toda a sua vasta cultura
jurídica, de sorte que pode escrever sobre temas técnicos jurídicos,
ondas espectrais ou elaborar um romance sobre o garimpo.
Evaristo de Moraes Filho assim descreve o estilo do professor
Zezé:
Catharino nunca é vulgar, emprestando grande elevação aos
temas que trata, pelo seu inegável talento, profunda cultura geral e
especializada, além da sua acurada metodologia. Não é um impro-
visador nem um superficial, tudo que expõe o faz bem, com clareza
e inteiro domínio da matéria. Não se aventura a cuidar de nenhum
assunto – quer em livro, em aula ou em parecer – sem antes fazer uma
exaustiva pesquisa no país e no exterior, comparecendo aos congres-
sos e seminários, dos quais participa ativamente, com teses próprias
e debates no plenário. Nunca se omite e em todos eles deixa a sua
marca inconfundível, vencedor ou vencido2.

2  MORAES FILHO, EVARISTO. Apresentação. In VASCONCELOS, Maria; Esper, Carmem


Quintas. BIBLIOGRAFIA: José Martins Catharino. Salvador: Gráfica LJF, 1983, p. 6.

342
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

Ronad Souza dizia sobre o estilo de Zezé que “Há em sua obra
como eram em suas lições orais, um poder de sintetizar a mensagem
sem perda do conteúdo. Sua vasta obra evidencia a profundeza do
conhecer e a lucidez do raciocínio sempre exposta com clareza e
competência”3. Marcilio Krieger anota que a linguagem de Catha-
rino “assemelha-se não a de doutrinadores acadêmicos, mas à dos
verdadeiros comunicadores: dominando a matéria, são capazes de
transmiti-la de forma simples, direta, com propriedade”4.

3. ZEZÉ E O DIREITO DO TRABALHO

O percurso de Zezé no Direito do Trabalho foi longo, intenso


e muito produtivo. Não sem razão e inconteste mérito, José Martins
Catharino recebeu a medalha “Construtores do Direito do Trabalho”,
concedida pela Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho
da 2ª Região (SP), pois seus livros serviram a consolidação e edifica-
ção do juslaboralismo neste país.
Afirma-se que a obra-prima de Zezé foi o “Tratado sobre o
Salário”, com suas mais de 700 páginas na edição original de 1951, livro
atualmente esgotado. Esse livro é apontado por Evaristo de Moraes, na
apresentação do livro bibliográfico de José Martins Catharino5 como a
melhor obra do tema no direito brasileiro e somente comparável ao
ensaio “El salario en el Uruguay” do professor Américo Plá Rodriguez.
Zezé, neste texto sobre salário, apresenta a regra, que é
utilizada até hoje, que define a natureza salarial ou indenizatória
da retribuição ao trabalho, mediante os vocábulos pelo/para; o pa-
gamento “pelo trabalho” é salário, por contraprestar a atividade do
trabalhador; o pagamento para o trabalho é indenizatório, visto que
compensa algum gasto para viabilizar o trabalho.

3  SOUZA, Ronald (coord). Esporte Direito. Salvador: Gráfica Trio, 2004, p. 4.


4  KRIEGER, Marcilio. Martins Catharino, o atleta profissional e o direito desportivo. In:
Esporte Direito. Ronald Amorim e Souza (coordenador), Salvador: Gráfica Trio, 2004, p. 202.
5  VASCONCELOS, Maria; ESPER, Carmem Quintas. BIBLIOGRAFIA: José Martins
Catharino. Salvador: Gráfica LJF, 1983, p. 6.

343
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Em Tratado Elementar de Direito Sindical, Martins Catharino


aponta que a coalização de trabalhadores é um “imperativo de so-
brevivência”6 devido ao caráter gregário do homem, explicando que:

[...] os seres humanos associam-se, não apenas por


determinismo, instintivo e biológico, mas, também,
por sentimentos, razões e pensamentos, comuns ou
convergentes. [...] associar-se é imperativo de sobrevi-
vência, mais ou menos. Tanto mais quanto mais fracos
forem os que se associam para enfrentarem os mais
fortes. [...] Se o associacionismo (psíquico) e associati-
vismo (ativo) são formas de socialidade e sociabilidade,
nem todas as suas manifestações são profissionais
ou sindicais, nem socialistas. O sindicato é associação
específica e típica, surgida no ventre da primeira revo-
lução industrial [...] não há porque falar-se em sindicato
antes do século XVIII7

Na mesma obra de direito sindical, considera que o Direito do


Trabalho, diante do brutal e fratricida capitalismo inicial com suas
extensas jornadas e baixíssimos salários, seria uma “reação jurídica
em favor de uma liberdade real, capaz de operar em favor de uma
igualdade também mais real, a que resulta do tratamento desigual de
sujeitos desiguais”8.
Particularmente, merece especial consideração o Compên-
dio de Direito do Trabalho, no qual Zezé consegue apresentar um
manual conciso e com diversas ideias críticas no juslaboralismo. A
obra com última edição em 1982, o que já justificaria uma atualiza-
ção, corresponde a um manual de Direito do Trabalho que, além de
expor os principais conceitos, elementos e institutos da disciplina,
consegue com muita sutileza e estilo apresentar elementos críticos

6  CATHARINO, José Martins. Tratado Elementar de Direito Sindical: Doutrina, Legislação.


São Paulo : LTr. 1982, p. 14.
7  Ibibem, p. 13-14.
8  Ibidem, p. 22.

344
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

e interdisciplinares, permitindo que o livro transcenda a função de


simples manual.
Neste Compêndio, Martins Catharino defende com firmeza
a incorreção da designação “Contrato de trabalho”, em razão desta
expressão ser muito ampla e por não enfatizar a especificidade da
relação de emprego. Propõe, então, que seja chamado de “Contrato
de Emprego”9, por ser esta expressão muito mais fiel à relação de
emprego, sem qualquer margem de amplitude e confusão com ou-
tras relações de trabalho não empregatícias. No entanto, também
considerava o autor baiano que o expansionismo juslaboral poderia
ressignificar corrigindo essa locução ampla:

E quem ousará afirmar não ser possível, em futuro pró-


ximo, falar-se em contrato de emprego como espécie
do contrato de trabalho? Para nós, desde já, por força
do expansionismo do Direito do Trabalho, cuja deno-
minação se faz dia a dia menos defeituosa por excesso.
No fundo, trata-se de evolução inevitável, à medida
que a importância jurídica crescer na razão inversa dos
direitos da propriedade privada10

No seu manual, Zezé elucida que o fundamento de proteção


ao trabalho é a própria proteção à pessoa humana e sua dignidade,
posto que não há como separar o trabalho de seu prestador. “Sendo
impossível separar o trabalho das pessoas, concretamente consi-
derada, a disciplina inspira-se num personalismo real, humanista e
socializante”11. Assim, sintetiza a ontologia trabalhista:

Nascido e desenvolvido para compensar a desigual-


dade econômica, mediante desigual e proporcional

9  CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho. 1ª Volume. São Paulo:


Saraiva, 1982, p. 218.
10  Idem, p. 217.
11  Idem, p. 4.

345
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

tratamento jurídico, o Direito do Trabalho protege


os economicamente débeis. Os “hipossuficientes”, na
expressão feliz de A. F. Cesarino Junior12

Correlato com a ontologia trabalhista, Zezé foge de determi-


nações históricas, apontando que o Direito do Trabalho “não é mero
reflexo e automático da realidade. É, também, fruto de aspirações
justiceiras e de pensamentos humanos. Da razão e do sentimento.
No curso histórico, fatos podem ser a causa principal de ideias, sendo
a recíproca verdadeira”13.
Destarte, já acreditava o professor baiano que o Direito
do Trabalho deixa de ser regulador exclusivamente da relação de
emprego para tornar-se regulador da relação de emprego e outras
determinadas em lei, naquilo que a doutrina denomina de expansio-
nismo. Tal movimento realiza-se no seguinte sentido:

A expansão protecionista do Direito do Trabalho sofreu


rápida e sensível evolução. Começada com os emprega-
dos industriais, estendeu-se aos demais, até aos rurais.
E não parou ainda. Muito ao contrário: expande-se a
trabalhadores economicamente fracos, mas juridica-
mente independentes (eventuais, avulsos autônomos,
“pequenos empreiteiros”, etc); a empregados eco-
nomicamente médios (gerentes, superintendentes,
diretores, subdiretores etc, altamente remunerados);
a trabalhadores capitalistas (diretores de sociedades
anônimas, sócios-gerentes de outras sociedade comer-
ciais, p. ex.); e mesmo a capitalistas não-trabalhadores,
com dinheiro investido em sociedades comerciais,
como sócios solidários e meros cotistas, o que não
deixa de ser paradoxal (LOPS, art 5º, III, CLPS, art 5º, III
e § 3º).14

12  Idem, p. 152.


13  Idem, p. 4.
14  Idem, p. 153.

346
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

A explicação para a tendência expansionista do Direito do


Trabalho encontra-se no fato de que as relações de trabalho pos-
suem um caractere singular: a força de trabalho do homem não se
separa do próprio homem trabalhador. Isto é, o trabalho humano é
indissociável do próprio homem.
Ainda nesse manual crítico de Direito do Trabalho, Zezé
formula o mais belo e profundo conceito de empresa e empreen-
dimento, que bem sintetiza seu peculiar estilo refinado, conciso e
crítico. José Martins Catharino descreve a tônica da empresa como
empreendimento:
Empresa é cometimento, e cometimento antes supõe autoria,
não apenas na ideia a ser realizada, pois cometer implica ação para
ser alcançado determinado fim, ou seja, empreender. Para que a ideia
se faça empreendimento, há de contar com os meios adequados ao
fim almejado. Por isso o empreendedor se faz empresário: represa e
apresa os elementos necessários ao empreendimento, os chamados
meios ou fatores da produção: pessoas e bens. O êxito da empresa
empreendida depende do seu duplo e articulado aviamento, subjeti-
vo e objetivo. Represa pessoas, apresa bens e obtém crédito15.
Próximo ao final da sua trajetória e mantendo o senso crítico,
José Martins Catharino foca seu estudo sobre o renovado liberalismo
ao editar, em 1997, um livro com um título profético: Neoliberalismo
e Sequela. Naquele texto, criticou severamente a desconstrução do
Direito do Trabalho por esta ideologia político-económica e ainda
conseguiu fazer a diferenciação importante entre o liberal e o libe-
ralismo. Martins Catharino16 (1997, p. 8) distinguia liberal de libera-
lismo, entendendo que, enquanto o primeiro era atinente ao aberto,
generoso e pródigo (não-conservador), o liberalista encampava um
liberalismo, conceito aproximado do individualismo.

15  Idem, p. 156.


16  CATHARINO, José Martins. Neoliberalismo e seqüela. São Paulo: LTr, 1997, p. 8.

347
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Em chocante denúncia dos efeitos do neoliberalismo, José


Martins Catharino arremata:

Os efeitos práticos do “neoliberalismo” demonstram


ser mais parecido com o seu avô – o liberalismo or-
todoxo ou típico, sem preocupação direta com o ser
humano, “de carne e osso”, como é o trabalhador. Esses
efeitos provam o anti-humanismo do neoliberalismo
econômico, principalmente, e o “custo social” que
acarreta. Esses efeitos nefastos somente os cegos e os
que para eles fecham os olhos não enxergam, ou, o que
é pior, deles conhecem e consideram secundários e irre-
levantes, por serem o “preço” do progresso econômico,
servido pela tecnologia17.

Neste texto sobre neoliberalismo, Martins Catharino definia


flexibilização como atribuir à norma jurídica trabalhista uma elasti-
cidade similar à ductibilidade e maleabilidade18. Entendia que a des-
regulação era a pretensão de “reduzir ao máximo as regras ditadas
pelo Estado e aumentar a privatização normativa. Diminuir a caudal
legiferante pública por assoreamento de origem privada”19.
Como se percebe nos excertos acima, José Martins Catharino
foi um dos construtores críticos do Direito do Trabalho, defendendo
sua ontologia protetiva contra os liberalismos e sempre trabalhando
criticamente as categorias e institutos da disciplina.

4. SUBORDINAÇÃO E DEPENDÊNCIA EM MARTINS


CATHARINO

Na obra de Martins Catharino, a análise sobre o principal


critério de definição do empregado mereceu uma profunda análise,

17  Ibidem, p. 19.


18  Ibidem, p. 49.
19  Ibidem, p. 42

348
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

inclusive com prognósticos que vêm se confirmando. A discussão


sobre subordinação, em um tom crítico, e a preservação do critério
da dependência econômica tornam o Compêndio de Zezé uma obra
clássica sobre o tema.
No seu manual, Zezé não se contentava com a tradicional
dimensão subjetiva e hierárquica da subordinação jurídica. Ao con-
trário, Martins Catharino esboçava um entendimento ampliativo.
Neste sentido, a atuação centrípeta do conceito de subordinação
pugnado por Martins Catharino aludia a contemporânea necessi-
dade de dilatação da proteção. “[...] a elasticidade do conceito de
subordinação atua de maneira centrípeta, atraindo para o centro da
disciplina trabalhadores que não são empregados em sentido estrito
ou cabal”20.
Essa ideia de movimento centrípeto se legitima no dispositivo
legal da CLT que não traz nenhum adjetivo ao termo dependência,
sugerindo uma significação ampla, a qual não deve a doutrina limitar
em teorias adjetivadas.

Propositadamente ou não, o legislador, parco no parti-


cular, favoreceu o que chamamos de movimento centrí-
peto, autorizando, implicitamente, se tenha como em-
pregado todo e qualquer trabalhador que esteja “sob a
dependência” de outrem (empregador – art 2º da CLT),
seja qual for o tipo ou a espécie de dependência. Assim,
o intérprete pode (ver CLT, art 442) ser instrumento
eficaz de uma política salarial extensiva, sem incorrer
em centrifugismo. Havendo trabalho remunerado
dependente, quem se dispõe a prestá-lo empregado é.21

Articulava assim uma conjugação da dependência econômica


com a subordinação jurídica. Inicialmente, busca-se a subordinação,

20  CATHARINO, José Martins. Compêndio de Direito do Trabalho. 1ª Volume. São


Paulo: Saraiva, 198, p. 154.
21  Idem, p. 164.

349
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

sendo esta impossibilitada, recorre-se à dependência econômica. Esta


é a argumentação de Martins Catharino. “[...] quando a subordinação
chega próxima a zero vale-se da insuficiência econômica do trabalha-
dor para considerá-lo como empregado, ou a ele equiparado”22.
Sobre a dependência econômica, o professor baiano argu-
menta que essa teoria confirma o sentido histórico da origem do
Direito do Trabalho:

A força do critério está na história, pois não nos é


possível separar o contrato de emprego da evolução
econômica, da produção sob o regime da empresa.
O Direito do Trabalho surgiu, precisamente, para
compensar desigualdades econômicas. Para reduzir
a coação econômica, viciadora da vontade dos mais
fracos em face dos economicamente poderosos. Surgiu
como instrumento jurídico de reação contra o status
quo implantado pelo capitalismo desenfreado, e com
nítida finalidade humanitária.23

Catharino registra que as divergências com a ideia da depen-


dência econômica não resultam em sua invalidade, graças a sua sólida
raiz histórica e política do critério que lhes garante sustentação24.
Embora a doutrina brasileira à época considerasse superada a depen-
dência econômica, Martins Catharino apresenta posição singular:

A dependência econômica, na sua acepção técnica e


absoluta, parece superada. Para configurá-la, não é
imprescindível que o trabalhador tenha no salário sua
única fonte de sobrevivência, nem que quem o assalaria
absorva integralmente todo o seu tempo dedicado ou
dedicável ao trabalho. Na sua concepção relativa, não,
bastando que o salário seja o principal meio de vida, e

22  Idem, p. 213.


23  Idem, p. 201-202.
24  Idem, p. 204.

350
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

absorção parcial e predominante do seu tempo dispo-


nível por empregador25.

O traço da dependência advindo de determinado pagamento


para garantir a sobrevivência é inerente tanto à figura do trabalhador
como à do empregador, embora em graus distintos para cada um.
Como reparo a esta superficialidade, José Martins Catharino já esbo-
çava uma acepção relativizada da dependência econômica, visando
torná-la juridicamente mais eficaz. “Na sua concepção relativa, [...]
bastando que o salário seja o principal meio de vida, e a absorção
parcial e predominante do seu tempo disponível por empregador”26.
Numa tendência emancipatória (que não se confirmou),
Martins Catharino sustentava que a subordinação ligar-se-ia à
cooperação e a colaboração. Imaginava que, sob uma orientação de-
mocrática, os preceitos de participação iriam também se manifestar
nas relações de trabalho. Vislumbrava que “o trabalhador será mais
livre. Então, poder-se-á falar, com precisão, no gênero contrato de
trabalho do qual de emprego será mera espécie decadente”27.
A projeção quanto à decadência do emprego realizou-se,
contudo, sem guiar-se pela perspectiva democrática ou emancipa-
tória, eis que pós-fordismo tende a eliminação do emprego em favor
de novas figuras contratuais. Martins Catharino já indicava que a
referida proteção deveria ser na medida da dependência. “Proteção
esta que deve ser maior ou menor em função do grau de suficiência
dos resultados obtidos com o trabalho”28.
Aí, inclusive já admitia a falha do critério da subordinação ju-
rídica ao apontar, como prognóstico do que acontece atualmente, a
“rarefação do elemento caracterizador”29. Explica o professor baiano

25  Idem, p. 203.


26  Idem, p. 203.
27  Idem, p. 214.
28  Idem, p. 152.
29  Idem, p. 210.

351
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

que a subordinação se torna cada vez mais rara, na razão em que o


empregado ascende na estrutura hierárquica da empresa. Formu-
la-se a seguinte regra: “a subordinação cresce na proporção inversa
do grau hierárquico e o adelgaçamento, diluição ou rarefação do
elemento caracterizante aumenta na medida em que o empregado
está mais perto do topo”30.
Confirma-se que José Martins Catharino, no seu Compêndio,
já aporta os elementos que contextualizam a crise da subordinação
jurídica e, visionariamente, recoloca a importância do critério da
dependência econômica, o qual já tinha sido renegado pela doutrina.
Assim, aqueles que se propõem a discutir subordinação e dependên-
cia não tem como deixar cotejar a presciência de Zezé sobre o tema.

5. O LEGADO

A obra de Catharino, sujeito sempre elegante e educado, é


muito importante, embora não tão valorizada, como autor progres-
sista no juslaboralismo brasileiro. Atualmente, não é tão conhecido
como a qualidade de seus textos exige, nem mesmo na Bahia.
Seja pela defesa protecionista do Direito do Trabalho, seja
pela predição da crise da subordinação jurídica, ou até pela disse-
cação do tema salarial ainda no século XX ou pelas precisas concei-
tuações em direito sindical, os textos de Zezé são obrigatórios para
aqueles que se propõem estudar, com profundidade e visão crítica, o
juslaboralismo nacional.
Foi a trilha protecionista e crítica de Catharino que este autor
tentou seguir em suas pesquisas acadêmicas. Cabe, então, registrar
o agradecimento teórico pelas bases lançadas nas obras de Zezé,
as quais possibilitaram 55 menções ao nome Catharino nos textos

30  Idem, p. 210.

352
JOSÉ MARTINS CATHARINO:
PROFESSOR DA FDUFBA E CONSTRUTOR DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL

advindos do Mestrado na UFBA31 (OLIVEIRA, 2009) e Doutorado na


UFPR32 (OLIVEIRA, 2013).
Pela perspectiva crítica, pelo domínio técnico e pela concisão
no estilo de escrita, José Martins Catharino é um clássico imprescin-
dível ao Direito do Trabalho brasileiro, nunca podendo ser esquecido.
Oxalá que o legado de Zezé não seja dispensado pelas gerações pre-
sentes e futuras.

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Contemporaneidade. São Paulo: LTr, 2009.
32  OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. Relação de Emprego, Dependência
Econômica e Subordinação Jurídica: Revisitando conceitos. 2ª. Ed. Curitiba: Juruá,
2019.

353
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

______. Relação de Emprego, Dependência Econômica e Subordinação Jurídica: Revi-


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Catharino. Salvador: Gráfica LJF, 1983.

354
CRISE ECONÔMICA COMO
POLÍTICA DE DESMANCHE DE
DIREITOS SOCIAIS

Pablo Fernandez Patterson1

1  Mestre em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador.


Aluno Especial do Programa de Pós Graduação pela Universidade Federal da Bahia.
Membro do Instituto Bahiano de Direito do Trabalho. Advogado. pablopatterson@
gmail.com
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O artigo se propõe a apresentar um panorama das relações de trabalho diante
da perenização do status de alerta global econômico nas últimas três décadas –
amplificado pela mídia corporativista – atrelada ao declínio da pauta do welfare state
e a ascensão de governos conservadores no ocidente inauguram um novo termo
da engenharia do capital – que sempre se reinventa em movimentos autofágicos.
Em nações democraticamente mais pueris como o Brasil surge o cenário perfeito
para justificar o avanço demolitório sobre conquistas sociais que sequer se
materializaram numa malograda tentativa de manter altos índices de produtividade
diante do cenário geopolítico e econômico – muitas vezes empregando medidas que
não lograram êxito a médio prazo em nações europeias ou nossos vizinhos latino-
americanos, especialmente no que tange a reformas legislativas açodadas sob o
discurso da austeridade.
Palavras-chave: trabalho, direitos sociais, economia, ciências sociais, capitalismo

Abstract
The article aims to present an overview of labor relations in the face of the
perenization of the status of global economic alert in the last three decades –
amplified by the emporious media – tied to the decline of the welfare state agenda
and the rise of conservative governments in the West inaugurate a new term of
capital engineering – which always reinvents itself in autophagic movements. In
democratically more puethe nations such as Brazil, the perfect scenario emerges
to justify the demolition advance on social achievements that have not even
materialized in a failed attempt to maintain high productivity rates in the face of
the geopolitical and economic scenario – often employing measures that have not
succeeded in the medium term in European nations or our Latin American neighbors,
especially with regard to legislative reforms under the austerity discourse.
Keywords: labor, social rights, economics, social sciences capitalism.

1. INTRODUÇÃO

Há quase cento e cinquenta anos o jornalista e revolucionário


marxista Paul Lafargue (1842/1911) escreveria a série de artigos – mais
tarde revistos e editados como brochura – resultando no panfleto Di-
reito à Preguiça. Com exímia verve e reflexão lógica, sem deixar apon-
tar o dedo acusador à face do clero e da burguesia, o revolucionário
já apontava como um dos males da religião e da dominação de classe
a doutrina de que o não-trabalho seria pecaminoso, uma doença da
alma, assim plantando a semente perene dentre a classe trabalhadora

356
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

de que esta serviria aos detentores dos meios de produção até sub-
conscientemente, buscando com o suor bíblico de suas frontes não
só a exaustão em face do labor excessivo, mas em um fim genérico o
bem estar das classes opressoras, seu nêmese travestido de benfei-
tor.2 LAFARGUE não estava exposto à ultradifusão contemporânea
e julgamento sumário através da internet, sua obra foi certamente
criticada à exaustão ao longo do tempo, mas recepcionada como
documento valioso ao retratar o dogma da subserviência através
do trabalho, sempre empregado como instrumento de dominação
pelas classes abastadas, que em pleno século XXI, sem abarcar uma
crítica consciente da universalidade abstrata da forma mercadoria
não compreendem que no atual estágio da crise estrutural do capital,
com a ressalva de alguns se beneficiarem mais do que outros, não há
sujeição no processo de dominação por parte do sujeito3.
Esse espírito do tempo nos parece mais irrequieto na segun-
da década do milênio. Manuel Castells4, em seus estudos sobre
a proteção social, nos apresenta ao conceito de ânsia dos tempos.
Uma era de informação pulverizada na qual os estudos de tempos e
movimentos estão superados: o indivíduo bem sucedido é aquele in-
serido, conectado ao labor até mesmo após o encerramento de uma
penosa e extenuante jornada de trabalho efetiva, mas que se perpe-
tua, principalmente com o emprego de dispositivos de comunicação
contemporâneos. Seu aperfeiçoamento humanístico e intelectual
está relegado ao segundo plano ante a necessidade de conexão
constante ao efêmero, raso e circunstancial, porém essencial à ma-
nutenção de relações modernas, nas quais o empregado é inclinado
a assumir o risco da atividade econômica sob pena de não contribuir

2  LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec/Unesp: 1999


3  KURZ, Robert. Dominação sem sujeito, disponível em http://www.obeco-online.org/
rkurz86.html, acesso em 29/06/2022
4  CASTELLS, Manuel. 2010. The Information Age: Economy, Society and Culture Volume
1: The Rise of the Network Society. 2nd ed. Oxford: Wiley Blackwell.

357
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

para a própria preservação do emprego. Espera-se deste indivíduo


que tenha opinião formada sobre quase tudo, embora em evidente
dano existencial seja-lhe tolhido a oportunidade – até mesmo o seu
tempo social – para o seu aprimoramento.

“o tempo intemporal pertence ao espaço de fluxos, ao


passo que a disciplina tempo, o tempo biológico e a
sequência socialmente determinada caracterizam os
lugares em todo o mundo, estruturando e desestrutu-
rando materialmente nossas sociedades segmentadas”
(CASTELLS, 1999)

LAFARGUE pregava, à época da prolação do seu manifesto,


um futuro com jornadas de trabalho de três horas diárias ao longo
de seis meses de labor. Hodiernamente, o trabalhador brasileiro é
bombardeado com informação acerca do peso das obrigações traba-
lhistas sobre o desaquecimento da economia, e como este precisaria
abrir concessões justamente em prol da manutenção desses em-
pregos, mesmo diante de exemplos empíricos de que tais propostas
estão fadadas ao fracasso, ainda assim relegando ao empregado o
ônus por uma crise cíclica e em avanço constante, momento no qual
se preconiza a supressão de direitos historicamente conquistados, o
que não pode prosperar.

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

Pode-se estabelecer como marco de ruptura social a abolição


da escravatura, criando uma casta absolutamente despreparada
para as relações de trabalho que substituiriam a de servidão. Em sua
obra, Octavio Ianni (2004)5 aponta que o fim do regime escravocrata
no Brasil realçou ainda mais a inserção dessas relações entre a socie-
dade civil e o Estado na composição dos setores sociais. O autor já

5  IANNI, Octávio. A questão social, São Paulo em Perspectiva, 1991

358
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

mencionava a subdivisão histórica em república oligárquica, populis-


ta, militar e nova, e essas diversas modalidades históricas, alternando
entre autoritarismo e democracia, representam a influência da
questão social na composição da sociedade. Num salto no tempo, ao
permear os meandros contemporâneos dessas mesmas relações de
trabalho após cento e cinquenta anos onde houve avanço no campo
tecnológico e produtivo, mas pouco no campo de criação de uma cul-
tura isonômica, o que é causa permanente de conflito entre mercado
e força de trabalho.
Invocando estudos que demonstram o desequilíbrio na distri-
buição de renda ao longo desse século XX, IANNI invoca a existência
de duas sociedades superpostas e contrastantes, ensejando o fabulo-
so abismo social que esse dualismo impõe, ainda caracterizado pelos
desafios à mobilidade social, tanto vertical quanto horizontal, dentro
do sistema. Para o autor, diversas correntes de estudo (darwinismo
social, arianismo, positivismo, liberalismo e neoliberalismo, correntes
religiosas) apresentam suas denominações e respostas para essa
mesma questão social, sendo que nenhuma delas pode ser encampada
em sua integralidade. A verdade é que, na alvorada do século XXI,
alternando os ciclos críticos com virtuosos, o sistema econômico bra-
sileiro marcha em franca expansão, mesmo que atrelado a problemas
crônicos, a exemplo da dificuldade em até mesmo identificar direitos
metaindividuais, especialmente nas relações de trabalho.
Por sua vez, para Paul Singer a economia política do trabalho6
pode ser abordada de forma mais empírica, com enfoque nas rela-
ções sociais dentro de reflexos econômicos. A histórica acumulação
da chamada “mão de obra excedente” sempre gerou a acumulação de
capital aos detentores do meio de produção, por sua vez o emprego
dessa reserva latente nem sempre seria absorvido, mesmo em pro-
cessos de industrialização ascendente como o experimentado pelo

6  SINGER, Paul. Economia Política do Trabalho, São Paulo, HUCITEC, 1977.

359
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Brasil. Desta forma, sempre surgiria o cenário propício para amplia-


ção desse excedente do exército de reserva, por sua vez ampliando
a convulsão social com a campanha premente buscando colocar
um custo social sobre essas relações de trabalho, implicando-lhes o
sentido de causa e não de reflexo, assim maquinando o relaxamento
de conquistas históricas que, ainda assim, em grande parte, não são
colocadas em prática.
Neste espeque, Sílvia Maria de Araújo7 sustenta ainda que a
mercantilização do trabalho, sua transformação em força de trabalho
abstrata, demonstra que o valor da força de trabalho é determinado
pelo tempo de trabalho necessário para produzi-la. Daí a importância
do tempo que embasa inclusive a teoria da mais valia. Neste sentido:

Ao centrar a atenção sobre as relações entre con-


cepções e representações do tempo, resguardando a
centralidade do trabalho na estrutura da sociedade
industrial, Marx inaugurou um tema recorrente até
hoje. Também avaliou o poder de controle sobre o
tempo de outros e os meios institucionais para exercê-
-lo, revelando a racionalização que reveste o tempo na
modernidade, processo esse ressaltado nos estudos de
Max Weber8

Harry Braverman aponta para as distinções ao fazer uma


digressão análoga ao trabalho dos outros seres quando comparado
ao trabalho humano: entre o trabalho instintivo daquele planejado e
executado através de métodos humanos, sendo esta atividade tanto
proposital quanto insubstituível. Em segundo exame, o autor salien-
ta a possibilidade, por parte do humano, em fragmentar a força de
trabalho em etapas conceptivas e executivas, algo que não ocorre no

7  CATTANI, Antônio (Org). Trabalho: horizonte 2021. Trabalho sem fim, tempo sem
tempo – Silvia Maria de Araújo (fls. 61-82). Porto Alegre: Escritos, 2014
8  CATTANI, Antônio (Org). Trabalho: horizonte 2021. Trabalho sem fim, tempo sem
tempo – Silvia Maria de Araújo (fls. 68-69). Porto Alegre: Escritos, 2014

360
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

trabalho não-humano, indissolúvel e instintivo. Daí a conclusão, mais


uma vez empregando o auxílio de Marx, do ponto de partida para a
teoria do valor do trabalho e o eterno embate opositor entre forças
burguesas e trabalhadoras. Parte então para a análise das trocas
no mercado de trabalho, no qual a venda da força de trabalho seria
a grande mercadoria. O processo de trabalho começaria, portanto,
com a venda dessa força por parte do trabalhador e sua compra
pelo empregador, já que a expansão do lucro e a mecanização cul-
minaram com o aumento da força de reserva, e como a mercadoria
vendida pelos empregados é tempo de trabalho, e não quantidade
de trabalho, o sistema se enviesava mais ainda em detrimento da
classe trabalhadora. Assim, o processo de trabalho tornou-se res-
ponsabilidade do capitalista. Desta forma consolida-se que a força
de trabalho converteu-se em mercadoria, e o seu valor é ditado pelas
necessidades dos seus compradores, cujo interesse é ampliar o valor
do capital.9
Em sua análise, Claus Offe leciona que o contrato de trabalho
equivale ao contrato de venda de um mero produto: a força de tra-
balho.10 Nos contratos de venda, as relações entre as partes seriam
mais claramente estipuladas (quantitativamente e qualitativamente)
para transferir a posse de algo a outrem. No contrato de trabalho,
por sua vez, é inerente o indeterminismo: não está em negociação um
artigo com uso de valor específico, mas sim força de trabalho viva,
e principalmente tempo à disposição do empregador, justamente
como foi consolidado pela legislação trabalhista pátria. O aumento
do exército de reserva disposto a negociar essa força, portanto, con-
tribuiria para desvalorizar ainda mais a moeda trabalho. David Har-
vey, em seu segmento Superpopulação Relativa, dialoga diretamente
com OFFE acerca de como essa reserva de mão de obra é empregada

9  BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho no


século XX. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1987.
10  OFFE, Claus. Capitalismo Desorganizado, São Paulo: Brasiliense, 1989.

361
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

como instrumento do capital para forjar mais lucros e salários mais


baixos.11 HARVEY inicia com a subdivisão marxiana de classe em
três segmentos: a flutuante, consistindo naqueles já proletarizados,
inseridos no mercado de trabalho e englobando até mesmo os de-
sempregados que estão em busca de reposicionamento; a latente,
que representa aqueles não inseridos no mercado, englobando tanto
os autônomos da subdivisão de OFFE quanto a reserva de mulheres,
crianças, estudantes, todos aptos a ingressar no mercado sob a for-
ma de superpopulação de reserva, ante sua numerosidade; e por fim
a estagnada, que seria o setor precarizado, de difícil mobilização, em
situações de pauperismo e sempre engrossando o corpo do exército
sobressalente de mão de obra.
Desta forma, a maiêutica implica em questionar como as
teorias econômicas clássicas, caso ultrapassassem o plano utópico,
resultariam num mundo com mercado livre, liberdade pessoal, direi-
tos de propriedade privada e livre-comércio. Para Marx, esse laissez-
-faire só geraria acumulação de miséria em um polo e de riquezas em
outro – daí o viés histórico liberal sugerir a vertente mais vantajosa à
classe capitalista. Diminuir salários, criar desemprego através de mi-
gração de trabalhadores ou avanço tecnológico, atacar organizações
coletivas, reduzir ao máximo as políticas de bem estar social: tudo
isso culminou nas crises da globalização neoliberal de 2008, que só
encontra comparação na Grande Depressão. Neste momento surge
o debate acerca de arrefecer a crise cíclica com a supressão de van-
tagens na venda da mercadoria força de trabalho sob o argumento
de que essa mesma massa trabalhadora seria uma das causas do
desaquecimento econômico, quando na verdade só o aumento de
volume econômico seria capaz de gerar novos – e melhores, mais
bem remunerados – postos de trabalho.

11  HARVEY, David. A superpopulação relativa in Para entender o Capital, Livro 1,


Boitempo, 2013.

362
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

Ao analisar historicamente a questão da organização do tra-


balho, Karl Polanyi exemplifica a marcha da luta contra o desequilíbrio
neste eterno embate entre detentores dos meios de produção versus
trabalhadores com o surgimento das guildas feudais e de instituições
cujo surgimento acompanhou a evolução das próprias relações so-
ciais e de trabalho, e que prevaleceram ante a mudança de regimes e
de sistemas de estado, tamanha a força emanada por estes entes na
defesa da venda justa da força de trabalho e que, curiosamente, pas-
saram a ser mais combatidas após a transição para regimes democrá-
ticos com políticas representativas. Ainda assim, infere que nenhuma
sociedade pode existir sem um sistema que regule os métodos de
produção e distribuição de bens, fixando a ordem econômica como
função da ordem social – trazendo para tanto o exemplo de relações
sociais no escopo da civilização pós-Revolução Industrial com o
surgimento dos mercantilistas, que encamparam o combate contra
a estrutura coletiva dos trabalhadores em busca do estabelecimento
do livre mercado.12
Finalmente, Adalberto Cardoso nos apresenta um valioso
registro qualitativo e quantitativo acerca das desigualdades sociais
com a análise das relações de trabalho ao longo da história do Bra-
sil.13 Aduz ainda o enfoque na desigualdade como um fator crônico
da sociedade brasileira e busca uma explicação para a inevitabilidade
deste fenômeno. Desta forma, o alicerce do dogma capitalista da
redistribuição do excedente, mediado por um welfare state, estará
fadado ao fracasso pois os exemplos empíricos demonstram que essa
redistribuição é sempre deficitária e não consegue se avolumar ante

12  POLANYI, Karl. A Grande Transformação – As Origens da Nossa Época. RJ: Ed.
Compus, 2000.
13  CARDOSO, Adalberto. A Construção da Sociedade do Trabalho no Brasil: uma
investigação sobre a persistência secular das desigualdades. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2010.

363
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

o avanço da pobreza, neste caso indicando seis fatores para embasar


suas conclusões:

1. “padrão de incorporação dos trabalhadores na ordem


capitalista no início do século XX, que deixou heranças
profundas na sociabilidade capitalista posterior”;

2. “a estrutural fragilidade do Estado, sempre às voltas


com seus próprios déficits e sua incapacidade de enrai-
zamento no vasto território nacional”;

3. “a persistente violência estatal contra o trabalho


organizado, muito superior à ameaça que este eventu-
almente representou ao longo da história”;

4. “a diminuta participação do operariado industrial na


estrutura social e a enorme fragmentação das formas
desorganizadas de obtenção de meios de vida no mun-
do urbano, fora do mundo do trabalho formal”;

5. “o baixo patamar da riqueza social produzida”;

6. “o padrão de incorporação dos trabalhadores no


mercado de trabalho urbano a partir da década de
1940, resultante da abdicação, pelo Estado, da tarefa
de regular o mundo agrário, com isso transformando
as cidades em polo irresistível de atração para os traba-
lhadores pobres do campo”.

Sob este ângulo, envereda-se pela percepção de ordem so-


cial através do papel dos seus atores e como eles se enquadram em
critérios como igual/desigual ou justo/injusto ditando o ritmo da
determinada ordem social capitalista. Desta forma, os detentores
do poder empregariam conceitos historicamente compreendidos
e massificados acerca de como uma sociedade seria desigual por
desígnios inexoráveis, que por sua vez seria uma perda de tempo

364
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

tentar mitigar essas diferenças, principalmente de forma a consolar


as camadas mais pobres desta sina. Assim, o estado precário nunca é
vislumbrado como resultado da injustiça social, mas sim de fracasso
individual. E sob esse panorama fica aberta a possibilidade de, em
tempos de crise, buscar ampliar ainda mais esse complexo de vira-la-
tas e buscar suprimir ainda mais direitos que sequer foram aplicados
de forma pacífica e natural.

3. MODERNIZAÇÃO OU RETROCESSO NA LEGISLAÇÃO


SOCIAL?

Existe uma dificuldade de obter a construção democrática


dos estados nacionais em países com capitalismo tardio, periférico e
dependente, ainda sob o aspecto neoliberal que conduziu a sociedade
a questões residuais, não centrais. É constante a comparação como
modelo cubano de desenvolvimento, com concepção de políticas
diferentes embasadas num conceito de justiça social justamente ba-
seado na centralidade do Estado com a promoção do bem-estar e de
cidadania, com exemplos práticos do pleno emprego, sobretudo es-
tatizado, que foi marco desde a revolução. O que existe é um modelo
associado à contradição política e resultados obtidos, a exemplo do
IDH, em face da dificuldade de encontrar um modelo econômico que
possa sustentar esse sistema, principalmente a partir dos anos 90:

Sociológicamente, pueden destacarse dos hechos


relacionados con este proceso, que marcaron una reo-
rientación sustantiva de las lógicas de ordenamiento y
estructuración social: por una parte, la emergencia de
una marcada heterogeneidad estructural; y por otra, la
aparición y/o acentuación de brechas de desigualdad,
que han tensionado las bases y resultados del modelo de

365
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

desarrollo social (Espina, 2008; Iñiguez, 2004; Ferriol et


al., 2006). Pg. 38214

Num cenário de crise endêmica global há quase dez anos após


um longo círculo virtuoso de crescimento sob a égide neoliberal, é
chegado o momento de atacar direitos conquistados. Nos mesmos
moldes do thatcherismo ao achincalhar os direitos coletivos, decre-
tando a era da individualidade,15 faz-se necessário convencer a massa
trabalhadora que ela é a culpada pela crise e a saída estaria em unir
esforços. Como a única moeda de troca é a sua força de trabalho, é
esta que deverá ser entregue de forma ainda mais precária e degra-
dante. Neste cipoal de falsas verdades, uma entidade representativa
do grande empresariado brasileiro encampa uma campanha muito
bem engendrada acerca da possibilidade de flexibilizar essas rela-
ções de trabalho, concedendo mais autonomia à livre negociação,
assim libertando-se das amarras de barreiras legais na contratação
e prestação de serviços. Desta forma, precarização, flexibilização e
modernização do trabalho teriam identidade de natureza e conteú-
do, ignorando as suas peculiaridades.
Há o óbvio emprego do discurso efusivo acerca de pretensa
desatualização das leis trabalhistas, algo que não resiste ao con-
fronto de um estudo mais apurado: desde 1943, a CLT já sofreu
497 modificações, além das 67 disposições constitucionais de
1988. Desde a Constituição de 88 já foram propostas 255 ações no
Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade de
regras trabalhistas, conforme levantamento do Grupo de Pesquisa
Configurações Institucionais e Relações de Trabalho da UFRJ.(2013)

14  FARIAS, Ángela I. Peña, HERNANDEZ, Rosa María Voghon. Crítica y Emancipación
Año VI Nº 11. La reconfiguración de la Política de Empleo y Seguridad Social. Horizontes
para pensar la relación igualdad-ciudadanía en el contexto cubano actual www.
clacso.org
15  https://michaelllange.com/2015/11/14/margaret-thatcher-a-sociedade-nao-
existe-reflexao/, acesso em 29/06/2022

366
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

à época da Reforma Trabalhista.16 O peixe entregue, portanto, é


muito diferente do daquele que é vendido, já que um exame super-
ficial do comparativo entre o texto da Lei 13.467/17 e a modelagem
prevista no ”101 Medidas” demonstra que o objetivo final seria o de
superar cláusulas garantistas previstas em nosso ordenamento sob
a embalagem de poder ofertar mais postos de trabalho ou melhor
remuneração, situações de causa/efeito que não possuem qualquer
correlação – contudo, foi difundida (com sucesso) a sugestão de que
a falta de empregos e os baixos salários são fenômenos oriundos de
direitos trabalhistas irrenunciáveis, arcaicos e excessivamente pro-
tecionistas, e que portanto estes devem ser relativizados.
A obsessão em superar os entraves opostos pela legislação
protecionista se alicerça no falso discurso de liberdade de nego-
ciação ampla, desta forma, a propaganda promulga a autonomia
da vontade à massa de trabalhadores, persuadindo-os de que este
seria o caminho para negociação de melhores salários e condições
de trabalho. Contudo, verifica-se que isto não passa de uma grande
inverdade, já que a histórica outorga de direitos trabalhistas no país
não se originou de um movimento de classe estrito, duradouro e
combativo, mas sim através de um conjunto de normas visando a
proteção de uma parcela da sociedade que estava se urbanizando e
modernizando, ainda sob o ranço de relações escravocratas. Quase
cem anos depois de inaugurado o processo de modernização das ati-
vidades profissionais com a industrialização, ainda não se pode dizer
que a grande maioria da classe trabalhadora não se livrou da cultura
da subserviência, e ante crônicas falhas no desenvolvimento social
esta relação de interdependência resulta, dentre muitos fatores, na
incapacidade de exigir e fazer valer melhores condições de trabalho
– em tempos de crise, nem mesmo o alto empregado, de quem se

16  http://www.fiesp.com.br/sietex/noticias/consolidacao-das-leis-do-trabalho-faz-70-
anos-com-186-milhoes-na-ilegalidade/, acesso em 29/06/2022

367
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

espera nível cultural mais avançado, seria capaz de empregar a liber-


dade de contratação e prestação de serviços de forma mais benéfica
para eles. Todas as vantagens, no campo prático, verteriam em face
dos empregadores, nos moldes preconizados pela classe industrial:

“Para promover a modernização trabalhista no Brasil, é


preciso observar que modelo de relações do trabalho o
país deseja para o futuro. Não é difícil encontrar conver-
gências em torno da ideia de substituir o modelo atual-
mente em vigor por outro que privilegie a negociação,
calcado na representatividade dos atores e capaz de se
adequar às diferentes realidades e maximizar os ganhos
para as empresas, os trabalhadores e o país. Um sistema
trabalhista moderno é formado por uma base legal que
trata dos direitos fundamentais e estabelece as regras
do processo de diálogo entre as partes envolvidas,
sendo o restante definido por negociações que levem
em consideração especificidades setoriais, regionais e
mesmo da cada empresa e de cada trabalhador. Nesse
sentido, seria preciso substituir um modelo que quase
tudo é definido em lei e muito pouco é negociado, por
um outro que privilegie a negociação e reduza a tutela
estatal homogênea.” (CNI, 2012, pg. 18)

Todo o retrocesso tem como objeto individualizar as deman-


das, afastando a coletividade da tomada das decisões – ou ainda,
empregando a falsa premissa de autonomia, permitindo que novas
instituições coletivas, novos sindicatos, novos agentes – todos eles
enfraquecidos ou adulterados ao longo do termo neoliberal. Com a
ascensão ao poder, os trabalhistas se imiscuíram da questão social, já
que maculada pela mistura com a política de governabilidade, tanto
que até mesmo entidades sindicais se declaram favoráveis à supressão
desses direitos de forma a meramente garantir a empregabilidade, ou
seja, já estão contaminados pelos empregadores, ou alinhavados com
estes. O fim da unicidade sindical, da obrigatoriedade de contribuição

368
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

sindical, a luta pela eficácia da constitucionalidade de comissões de


conciliação prévia: todas essas premissas na verdade travestem o ob-
jetivo que é enfraquecer o poder de barganha no momento da venda
da mercadoria força de trabalho.
As altas cortes judiciais parecem inclinada a seguir a tendên-
cia neoliberal ante a premente premissa de que existe um compo-
nente denominado “custo Brasil” e que este precisa ser relativizado
– contudo, a resposta estaria em oprimir ainda mais a classe mais
pauperizada sob a forma da supressão de direitos.

Estes processos anunciam um novo momento da


acumulação capitalista, no qual os chamados novos
paradigmas tecnológicos e gerenciais incorporam mu-
danças nos padrões de uso da força de trabalho. Estes
têm resultado numa crescente exclusão social que
atinge largos segmentos incorporados a “sociedade
de bem-estar” na etapa anterior da acumulação. Essa
exclusão se apresenta como um elemento estrutural
da etapa que se inaugura e não como resultante de uma
crise conjuntural e recessiva, que seria superada com a
recuperação da economia mundial.17

Conclui-se que as relações de trabalho no país ainda ecoam


das nossas relações escravocratas, e que a ideologia do fatalismo
social deve ser preservada como instrumento de controle. E esse
dogma persiste, antes e depois dos marcos históricos atinentes à
legislação trabalhista:

Entretanto, nas duas últimas décadas, o contexto mar-


cado pelo neoliberalismo, pela globalização financeira e
pela crise dos estados de bem-estar social, reascendeu
determinados princípios e um “novo espírito do capi-

17  BORGES, Ângela et DRUCK, Graça. Crise global, terceirização e a exclusão no


mundo do trabalho. http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/2376, acesso em 29/06/2022

369
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

talismo” (BOLTANSKY et CHIAPELLO, 1999) se tornou


hegemônico no plano mundial.18

Desta forma o mercado vai moldando novas consciências


acerca da concepção da relação de trabalho em si, perpetuando a
crise como responsável por essa nova demanda de supressão de
direitos. Nesta senda:

Quando o desemprego, como hoje em muitos países


europeus, atinge taxas muito elevadas e a precarieda-
de afeta uma parte muito importante da população,
operários, empregados no comércio e na indústria, mas
também jornalistas, professores, estudantes, o traba-
lho se torna uma coisa rara, desejável a qualquer preço,
submetendo os trabalhadores aos empregadores e
estes, como se pode ver todos os dias, usam e abusam
do poder que lhes é dado. A concorrência pelo trabalho
é acompanhada de uma concorrência no trabalho,
que é ainda uma forma de concorrência pelo trabalho,
que é preciso conservar, custe o que custar, contra a
chantagem da demissão. Essa concorrência, às vezes
tão selvagem quanto a praticada pelas empresas, está
na raiz de uma verdadeira luta de todos contra todos,
destruidora de todos os valores de solidariedade e
humanidade, e, às vezes, uma violência sem rodeios.19

O processo de globalização estabeleceu como imprescindível


a aplicação das novas tecnologias com o fim de alimentar a lógica de
mercado e a competição extrema como uma condição inquestionável,
com suas implicações na economia e na política internacional contem-
porânea. Esses avanços tecnológicos criaram profundas alterações a

18  DRUCK, Graça. A “legalização” da precarização, da flexibilização e da


modernização do trabalho no Brasil: as 101 propostas da Confederação Nacional da
Indústria (CNI). Resumo apresentado no XXIX Congresso ALAS, Chile, 2013.
19  BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998. Pg 122-123.

370
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

partir da revolução industrial inglesa, núcleo do processo industrial,


inaugurando a primazia do trabalho mecanizado – a vapor – sobre o
trabalho braçal. Já o segundo estágio tecnológico, a partir de meados
do século XIX com berço nos Estados Unidos e na Alemanha, represen-
tou a submissão do trabalho mental de rotina pelo esforço repetitivo e
em linha de produção, já com escopo na energia elétrica.
A Terceira Revolução Tecnológica representa o avanço das
novas tecnologias de informação e sua ferramenta-símbolo é o com-
putador, símbolo da comunicação como instrumento a serviço do
mercado. As redes informacionais atravessam o globo facilitando a
circulação do capital em detrimento das forças estatais, fragilizando
sobretudo as economias incipientes baseadas na produção de com-
modities ou produtos primários, ainda extremamente dependentes
destes fluxos de capital. Destarte o processo de globalização experi-
mentado nos últimos quarenta anos, revela-se como crível a econo-
mia da informação, tendo como paradigma da produção o aumento
dos níveis mundiais de desemprego, enquanto somente as nações
mais ricas empregam essa tecnologia de forma a manter aquecida
os seus mercados. As tecnologias contemporâneas vêm sendo
empregadas para reforçar a lógica do capitalismo global, expansão
dos mercados e acumulação, provocando mudanças extremas nas
relações de trabalho e gerando exclusão social. Nesta seara, afirma
Milton Santos:

A globalização marca um momento de ruptura nesse


processo de evolução social e moral que se vinha fa-
zendo nos séculos precedentes. É irônico recordar que
o progresso técnico aparecia, desde os séculos ante-
riores, como uma condição para realizar essa sonhada
globalização com a mais completa humanização da vida
no planeta. Finalmente, quando esse progresso técnico
alcança um nível superior, a globalização se realiza, mas
não a serviço da humanidade. A globalização mata a

371
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

noção de solidariedade, devolve o homem à condição


primitiva de cada um por si e, como se voltássemos a ser
animais da selva, reduz as noções de moralidade pública
e particular a um quase nada (SANTOS, 2001, p.64).

O emprego da ameaça da “concorrência” justifica a exigência


crescente da disposição integral ao ofício como elemento necessário
à manutenção do emprego. Evidencia-se aí uma armadilha que já ti-
nha raiz no próprio taylorismo: ao parcelar as tarefas e criar inúmeras
novas funções – e profissões – surgiram sistemas hierárquicos com-
plexos que prescindem de partilha do poder gerencial, estimulando a
administração da empreitada em níveis de responsabilidade:

Existem inúmeros outros aspectos que podem ser men-


cionados como valores para os trabalhadores, como a
construção de identidades profissionais, o status de
determinadas profissões, e que estavam envolvidos
com esses aspectos da organização das profissões.
Pois bem, a exigência de polivalência, de flexibilidade
e de reagrupamento de funções coloca em xeque toda
essa estrutura historicamente construída em que as
empresas também participaram, urdindo armadilhas
para todos. (DAL ROSSO, 2008, p.117).

Após o surgimento de diversas funções e ofícios, o efeito


natural seria o crescimento de postos de trabalho. Contudo, a ex-
pectativa de geração de muitos empregos na área tecnológica, em
volume capaz de compensar a destruição de emprego provocada
pela introdução dessas mesmas tecnologias, não se confirmou. Sob
o comando do capital, que visa lucros crescentes, observou-se o
efeito oposto: com novas máquinas – essencialmente a informática
– menos pessoas poderiam desempenhar as novas funções, e agora o
trabalhador tem que desempenhar mais tarefas no mesmo intervalo
de tempo.

372
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

Evidencia-se que a dinamização das próprias relações eco-


nômicas gera o resultado de mais trabalho – de forma a manter a
competitividade como forma de ampliar os lucros – mas sempre
em busca por redução de postos de trabalho no âmbito da ativida-
de diretamente atingida, já que, em números absolutos, a força de
trabalho cresce, bem como o exército de reserva, desde a crise do
fordismo, inclusive incorporando novas atividades em novas áreas
ainda não exploradas através dessa transnacionalização. Verifica-se,
por exemplo, o surgimento de call centers de forma a condensar as
funções de vendas de produtos e serviços, manutenção e reclama-
ções, o que antes era prestado de forma centralizada, porém em
departamentos diversos:

[...] está em curso um processo de intensificação do


trabalho, particularmente nos ramos de atividade mais
fortemente disputados pela competição capitalista
internacional: mas tal processo não é homogêneo em
todos os campos em que se manifesta, existindo uma
diversidade de formas a fazê-lo empregada por tipos
de atividade. Talvez a seguinte imagem possa auxiliar a
compreensão. A estratégia central – já completamente
desenvolvida naqueles negócios que concentram
grandes volumes de capital – é única, fazer com que o
trabalho renda mais resultados no mesmo período de
tempo considerado. Mas as táticas, o como fazer e as
formas de intensificar o trabalho variam muito segundo
os ramos de atividade econômica. (DAL ROSSO, 2008,
p.150).

Alcançamos a Quarta Idade da Máquina (ALVES, 2011). A ma-


triz informacional dessa desenvolvida etapa do sistema é caracteri-
zada por redes de comunicação, amparadas pelas TICs (Tecnologias
da Informação e Comunicação) sempre aplicadas desde a produção
industrial até o setor de serviços, atravessando as atividades de ges-

373
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

tão (ALVES, 2011). Este é o resultado de um processo evolucionário


oriundo do surgimento da sociedade global. Estas novas tecnologias
contribuíram para a implementação de novas estratégias empre-
sariais com o fulcro de internacionalizar a produção, flexibilizando
ainda mais o capital e ampliando ainda mais a autonomia neoliberal
nas economias nacionais.
Esta Quarta Revolução Tecnológica – representada pela
ascensão das redes informacionais – se revela como o atual desdo-
bramento da revolução tecnológica, representando a ruptura funda-
mental ou o “salto quântico” na evolução do maquinário do capitalis-
mo (ALVES, 2011). Dela se constitui o ciberespaço e a rede interativa
ou de controle da produção e da reprodução social, daí relevando-se
como ferramenta fundamental não só ao controle, mas também à
exigência da supramencionada qualificação extrema, e mais ainda,
da imposição de consequências a quem não corresponder a essas
exigências, propiciando o trabalho extremo e quase ininterrupto,
sob fiscalização constante e sob a aura de impor ao empregado um
temor em não cumprir uma espécie de quota atrelada ao resultado
final da empreitada, sujeitando-lhe responsabilidade não só sobre o
seu trabalho, mas sobre os resultados alcançados, sobre o lucro final.
O empregado que não corresponde às expectativas não falha
apenas como empregado, mas falha na vida, na sociedade, falha como
indivíduo já que foi convencido de que ele também é o responsável
pelo resultado direto da atividade econômica – e não somente por
oferecer a sua força de trabalho, ou ainda, para ALVES (2011):

Os requerimentos sociotécnicos da nova máquina da


Quarta Revolução Tecnológica se intervém na nova ide-
ologia da ‘gestão por competência’, forma da subsunção
formal-intelectual do trabalho ao capital sob o espírito
do toyotismo. Segundo essa ideologia, a nova produção
de mercadorias deve buscar dispor de ‘trabalhadores
flexíveis’ para lidar com as mudanças no processo

374
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

produtivo, enfrentar imprevistos (incidentes/eventos)


e trabalhadores passíveis de serem transferidos de uma
função a outra dentro da empresa, requerendo-se, para
tanto, a polivalência e a constante atualização de suas
competências. Segundo os ideólogos do toyotismo, fle-
xibilidade e polivalência é o que lhe dá a medida correta
de sua empregabilidade [...]. (ALVES, 2011, p. 76).

Consolidada a visão de que as novas tecnologias influenciam


diretamente a nova sociedade do trabalho, verifica-se que esses
enormes impactos no processo produtivo resultam em enormes
transformações no sistema capitalista de produção nas últimas
décadas. Como forma de adequação aos novos tempos, o modelo de
empregado a ser alcançado é aquele polivalente, qualificado, inserido
no contexto de responsabilidade pelo resultado final da empreitada,
com autonomia e poder decisório. Sua recompensa, em parte, é
retroalimentada pela própria reestruturação do sistema produtivo
como forma de estímulo e integração ao novo mundo do trabalho,
a suas novas regras. O empregado deve estar sujeito ao constante
aperfeiçoamento e reciclagem, a afeição às novas tecnologias passa
a ser não mais uma condição extra, mas sim condição básica e ineren-
te para a prestação do labor.
Essa nova modalidade de interseção laboral aparenta ceder ao
empregado maior liberdade decisória ante a sua conexão a empresas
subsidiárias, empresas terceirizadas que desempenham atividades
complementares, outros autônomos – consultores e especialistas,
por exemplo – redes de fornecedores... o universo não pode ser men-
surado. Contudo, essa conexão – transformada em algo diuturno
ante o emprego das novíssimas tecnologias de comunicação com o
fim de fornecer as informações necessárias para alimentar essa nova
cadeia produtiva – não necessariamente agregam valor à mão de
obra sob a via de pagamento de horas extraordinárias ou até mesmo
bonificações, prêmios ou outras recompensas. O empregado, ao

375
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

passar a se considerar gestor de sua força – ante a suposta autono-


mia que lhe é concedida – se submete de forma mais dócil ao sistema.
Seus colegas de trabalho passam a se enxergar como ilhas de indivi-
dualismo e competição, enfraquecendo ainda mais a unicidade que,
em essência, sustenta o sistema sindical. Em verdade os empregados
passam a ser tratados como mercadorias facilmente substituíveis,
alijando o trabalho de sua condição de sustentáculo da cidadania.

4. CONCLUSÃO: MAIS TRABALHO COMO


CONSEQUÊNCIA DO MODO DE PRODUÇÃO.

Sem a busca a um novo contrato social que volte a compartilhar


democraticamente o trabalho, restituindo-lhe a capacidade de pro-
mover a interação do emprego humano com a revolução tecnológica,
reproduzimos o pensamento de Boaventura de Sousa Santos (1998):

O contrato social é a grande narrativa em que se funda


a obrigação política moderna, uma obrigação complexa
e contraditória porque foi estabelecida entre homens
livres e, pelo menos em Rousseau, para maximizar e
não para minimizar essa liberdade. O contrato social
é assim a expressão de uma tensão dialéctica entre
regulação social e emancipação social que se reproduz
pela polarização constante entre vontade individual
e vontade geral, entre o interesse particular e o bem
comum. O Estado nacional, o direito e a educação cívica
são os garantes do desenrolar pacífico e democrático
dessa polarização num campo social que se designou
por sociedade civil. (SANTOS, 1998, p.5).

As novas tecnologias, contrariando previsões centenárias,


alimentam o distanciamento pois prestigiam a inclusão daqueles
inseridos na chamada sociedade de informação, e a exclusão dos
ausentes. Aos primeiros são dirigidas todas as oportunidades, ge-

376
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

rando um verdadeiro apartheid social. Um novo contrato social a ser


perseguido deve incluir a legitimação, a interação e participação na
política, sociedade e cultura.
A globalização em seu formato atual somente consolida
a posição dos grandes centros, notadamente os Estados Unidos,
como força hegemônica inexorável, apenas representando uma nova
roupagem do liberalismo de outrora. Assim sai fortalecido o discurso
que prega o Estado mínimo, sua não-intervenção na economia e nos
dilemas sociais. Até mesmo porque o estado neoliberal é apenas
mínimo no que tange à proteção social e ao desenvolvimento nacio-
nal, excetuando-se medidas pontuais na macroeconomia de forma
a garantir interesses geopolíticos; mas continua sendo deveras
interessante que este se mantenha forte para garantir segurança na
acumulação de recursos em detrimento de direitos humanos, sociais
e da própria democracia, resultando em uma plutocracia.
A desregulamentação dos sistemas protetivos enseja a pre-
valência da negociação direta entre patrão e empregado, a ampla
abertura de mercados com ilimitada liberdade ao comércio interna-
cional num sistema que reduz as pessoas à condição de mercadorias
e meros consumidores. A retração, a nível global, de direitos sociais
afasta ainda mais as nações periféricas da autonomia para decisões
com escopo internacional, redirecionando-as para organismos
supranacionais como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco
Mundial, que agora se responsabilizam pela edição de metas e proce-
dimentos a serem tomados pelas nações, enfraquecendo ainda mais
a soberania dos Estados e acelerando o processo de privatização de
empresas estatais sob a ótica de que o livre mercado regularia essas
dinâmicas com isenção.
Muito pelo contrário: a lógica de mercado vigente traz muito
mais conflitos do que soluções para as mazelas sociais, ampliando
o abismo de desigualdades não só entre os cidadãos, mas entre as

377
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

próprias nações. O que se vislumbra é que a revolução tecnológica


vem sendo empregada para ampliar os níveis de desemprego e de po-
breza ao invés de promover melhoria de qualidade de vida, redução
das jornadas de trabalho e melhor remuneração aos trabalhadores.
Salta aos olhos, nas últimas décadas, a profunda modificação
na divisão internacional do trabalho sob o comando dos centros
capitalistas mundiais com o emprego do aparato provido pela nova
Revolução Tecnológica.
Esse processo gera ainda mais concentração de riqueza tanto
nos setores produtivos quanto especulativos, concedendo poder
inimaginável às corporações multinacionais. Em sentido contrário,
boa parte das nações em desenvolvimento – como o Brasil – acaba
se tornando mero canteiro de obras e/ou latifúndios dessas corpo-
rações, auxiliadas pelos mencionados organismos internacionais,
ensejando em rebaixamento do custo do trabalho, tendo como
resultado final ainda mais distorções na distribuição de renda. Em
oposição, a China, com base em um regime planificado para o Estado,
contudo extremamente agressivo no campo econômico, tornou-se
um dos grandes empreendedores globais.
Neste espeque, seriam os Estados controlados pelo viés mo-
netizado, aqueles que colocam de lado políticas sociais em detrimen-
to de atender aos interesses corporativos, os “perdedores globais”
(KURZ, 1997), salientando que a globalização tem como ponto nega-
tivo a fragilização do estado nacional, que por sua vez, ao prestar sua
contraparte ao sistema produtivo, ainda seria imprescindível, já que
o mundo não é governado por corporações.
O governo da unidade nacional é o responsável, grosso modo,
pelo welfare dos seus cidadãos – e este deveria ser o resultado do
intercâmbio com o sistema produtivo, após propiciar a infraestrutura
adequada para a exploração da atividade econômica. No entanto com
o advento da 3ª Revolução Industrial a velocidade da racionalização

378
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

eliminadora de trabalho suplantou a capacidade de expansão dos


mercados. Desta forma, o mero fato dos mercados buscarem condi-
ções mais vantajosas para sua atividade – explorar matéria prima em
nações de democracia frágil, beneficiar a matéria em locais onde a
legislação ambiental é obtusa ou facilmente burlável, industrializar os
bens onde a legislação trabalhista é menos coesa – só fragiliza o Estado
como elo desta cadeia, por sua vez, causando prejuízo aos nacionais.
Este novo poder do Capital na alocação dos fatores produti-
vos também resulta em luta contra o trabalho organizado e protegi-
do, transformando a evolução tecnológica – que deveria primar por
menos labor, mais eficiente e mais produtivo – em arma para alterar
os handicaps na luta de classes, notadamente favorecendo os grupos
capitalistas. A questão da soberania de mercado sobre a vontade do
Estado já foi vergastada demasiado, imperando hoje o pensamento
da escola austríaca do laissez faire do Estado. O objetivo seria trans-
mitir ao cidadão a impressão de que não só ele, indivíduo, é incapaz
de gerir o destino de sua nação – para tanto selecionando seus repre-
sentantes nos termos apontados e se resignando quanto a isso – mas
também de, paulatinamente, suscitar a ineficácia dos estamentos
públicos – que, num exercício cômico, são geridos por estes mesmo
representantes – para garantir o fornecimento dos serviços básicos
prometidos aos próprios cidadãos sob a forma de pacto, advindo daí
a necessidade de privatizar, terceirizar, alienar o bem comum, em
verdadeiro arrepio ao próprio conceito do pacto federativo – ou seja:
o indivíduo trabalha, contribui e recebe a sua contraparte que seriam
as salvaguardas sociais. Mas não é o que ocorre:

Trata-se aqui da contradição interna do próprio sistema


moderno de produção de mercadorias, que se reproduz
em níveis cada vez mais elevados: quanto mais total
for o mercado, tanto mais total será o Estado; quanto
maior a economia de mercadorias e de dinheiro, tanto

379
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

maiores serão os custos anteriores, os custos secundá-


rios e os custos subsequentes do sistema e tanto maior
serão também a atividade e a demanda financeira do
Estado. (KURZ, 1997, p.101).

A nova ordem mundial econômica aponta para a tendência


sistêmica da flexibilização dos contratos de trabalho sempre sob
a ótica simplória de que qualquer rigidez imposta por um conjunto
normativo significa freio ao investimento e crescimento. No âmbito
europeu, a crítica se dirige ainda mais especificamente à proteção
extensiva ao despedimento arbitrário – tanto individual quanto
coletivo – em face do poder dos sindicatos (SALA; PERNÍAS, 2017).
O avanço neoliberal e a pressão dos mercados para um novo
movimento do capital implicam, sob sua ótica, em redução de direitos
sociais, dentre outros. Inserido neste contexto, há uma transferência
de responsabilidade ao trabalhador – mais trabalhos, menos empre-
gos – acerca dos resultados do empreendimento. Dentre a supressão
de conquistas, resta imperioso salientar a necessidade de salvaguar-
das ao direito de se desconectar do trabalho, assim preservando-se o
tempo social e o trinômio saúde-intimidade-lazer como garantia da
dignidade humana.
Verifica-se ainda que inexiste paridade entre empregado e
empregador que justifique a sublimação dessas garantias primor-
diais em prol de contratos firmados entre as partes. Nem mesmo a
promessa tecnológica, à qual se acreditava, a cento e cinquenta anos
atrás, que tornaria o trabalho obsoleto, foi capaz de romper a duali-
dade homem/máquina – o trabalho humano não pode se comparar
ao automatizado, mas está longe de ser prescindível. Surge a neces-
sidade de lidar com um novo ambiente de trabalho, em constante
transformação, mais do que nunca pressionado por mais resultados
de mercado – neste caso, impelindo labor mais intenso ao trabalha-
dor: o grande perdedor global.

380
CRISE ECONÔMICA COMO POLÍTICA DE DESMANCHE DE DIREITOS SOCIAIS

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Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1998.

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século XX. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1987.

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tempo – Silvia Maria de Araújo (fls. 61-82). Porto Alegre: Escritos, 2014

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OFFE, Claus. Capitalismo Desorganizado, São Paulo: Brasiliense, 1989.

POLANYI, Karl. A Grande Transformação – As Origens da Nossa Época. RJ: Ed.


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universal. 5.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001

SINGER, Paul. Economia Política do Trabalho, São Paulo, HUCITEC, 1977.

SUPIOT, Alain. Para além do emprego: os caminhos de uma verdadeira reforma do


direito do trabalho. Disponível em <http://publicacoes.udf.edu.br/index.php/mes-
tradodireito/article/view/160/85>Acesso em 29.jun.2022.

381
382
SUJEITOS COLETIVOS
INTERSECCIONAIS?
UMA INTERPELAÇÃO AO
DIREITO DE GREVE

Renata Queiroz Dutra1

1  Professora adjunta de Direito do Trabalho da Universidade de Brasília. Membro


permanente do PPGD/UnB. Presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho
(Biênio 2022-2023).
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
Nesse artigo tratou-se do direito de greve e do paradigma do sujeito coletivo
grevista que se afirmou nos imaginários sociais, acadêmicos e, também, jurídicos,
a partir da figura hegemônica do trabalhador masculino, branco e empregado, que
em um primeiro momento histórico do contexto brasileiro foi também o imigrante.
Em contraponto, foram resgatadas experiências históricas e, também, experiências
contemporâneas mobilizadas por sujeitos que não se encaixam nesse padrão,
porque atravessados por interseccionalidades de gênero, raça e geração, bem
como por modalidades de inserção no trabalho precários e por formas de trabalho
socialmente desconsideradas como tal. O manejo da greve por esses e essas sujeitas
revelou-se disruptivo quanto aos limites clássicos do direito de greve, mas também
política e democraticamente potente, considerado o conjunto de reivindicações
mais amplas que endereçam a uma agenda de transformação social, sempre
articuladas em torno da centralidade política do trabalho. Nesse sentido, projetam-
se horizontes para um aprofundamento do sentido constitucional da greve, com o
necessário estilhaçamento dos limites subjetivos e objetivos postos pela legislação
infraconstitucional e pela tradição jurídica que a interpreta.
Palavras-chave: Direito de Greve, Interseccionalidades, Democracia.

Abstract
This article deals with the right to strike and the paradigm of the striking collective
subject that asserted itself in the social, academic and also legal imaginaries, based on
the hegemonic figure of the male, white and employed worker, who in a first historical
moment was also the immigrant. In contrast, historical experiences were rescued, as
well as contemporary experiences mobilized by subjects who do not fit this pattern,
because they are crossed by intersectionalities of gender, race and generation, as well
as by precarious forms of insertion in work and by forms of work that are socially
disregarded. as such. The handling of the strike by these subjects proved to be
disruptive in terms of the classical limits of the right to strike, but also politically and
democratically powerful, considering the set of broader demands that address social
transformation, always articulated around the political centrality of the job. In this
sense, horizons are projected for a deepening of the constitutional meaning of the
strike, with the necessary shattering of the subjective and objective limits set by the
infra-constitutional legislation and the legal tradition that interprets it.
Keywords: right to strike, intersectionalities, Democracy

384
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

1. INTRODUÇÃO

A greve enquanto fato social2, que precede e instaura o di-


reito do trabalho, depara-se com o fenômeno da regulação jurídica
dessa experiência coletiva de forma tensa. A potência criadora da
greve tem encontrado no reconhecimento jurídico e, por conseguin-
te, na sua regulação, um significativo obstáculo.
Ao regulamentar e disciplinar o exercício do direito reco-
nhecido, molda-se a experiência da greve de maneira a limitá-la ou
encerrá-la, como observa Edelman3, mas, sobretudo, tende-se
a cristalizá-la em uma experiência considerada hegemônica no
momento da produção normativa, de modo a interditar ou limitar
significativamente suas possibilidades de reinvenção e expansão,
necessárias ao processo dialético em um mundo do trabalho em
constantes transformações.
Assim como já identificado no âmbito da regulação das
relações individuais de trabalho, também na experiência coletiva, a
eleição de um sujeito de direitos padrão e universal (que se coletivi-
za) marca a seletividade do nosso paradigma jurídico. Desse modo,
tal como verificado no desenho regulatório do contrato individual
de trabalho, a regulação da greve considera a experiência masculina,
branca, assalariada, formal e, de alguma maneira, industrial, para
regular – limitando – o direito fundamental que supostamente é
extensível a toda a classe trabalhadora4.

2  PAIXÃO, Cristiano; LOURENÇO FILHO, Ricardo. Greve como prática social:


possibilidades de reconstrução do conceito a partir da Constituição de 1988.. In: Sena,
Adriana Goulart de Dignidade humana e inclusão social : caminhos para a efetividade
do direito do trabalho no Brasil I Adriana Goulart de Sena, Gabriela Neves Delgado,
Raquel Portugal Nunes.- São Paulo: LTr, 2010. Pp. 408-424.
3  EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.
4  Para essa importante perspectiva de questionamento dos sujeitos universais
trabalhistas, consultar: NICOLI, Pedro Augusto Gravatá. Fundamentos de Direito
internacional social: sujeito trabalhador, precariedade e proteção global às relações
de trabalho. São Paulo: LTr, 2016; VIEIRA, Regina Stela Correia. O cuidado como
trabalho: uma interpelação do direito do trabalho a partir da perspectiva de gênero

385
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Tratado como universal pela seletividade jurídica, o traba-


lhador cuja coletividade é elegível ao direito de greve representa um
grupo cada vez mais restrito no contexto de heterogeneidade e me-
tamorfoseamento da classe que vive do trabalho5. E, mesmo em sua
limitação subjetiva, esse direito tem sofrido restrições importantes,
que dizem da continuidade de uma cultura autoritária, mesmo após
o advento da redemocratização em 19886.
Desse modo, a pretensa universalização do direito de greve,
assegurado como direito fundamental com destacada amplitude
no texto da Constituição Federal de 1988, esbarra-se justamente
no suposto da universalidade para implicar restrições profundas
ao seu exercício pelo universo cada vez mais heterogêneo de tra-
balhadores e trabalhadoras. A pergunta que emerge, portanto, é:
quem é a classe trabalhadora e qual é a questão social que mobiliza
o direito de greve hoje?
Essa questão, que aliás tem mobilizado um conjunto im-
portante de estudos críticos no campo do direito do trabalho7,
tem implicado relevantes olhares para as narrativas hegemônicas a
respeito da formação histórica do campo justrabalhista, sobretudo
no que concerne a uma perspectiva doutrinária que estanca o con-

(Tese de Doutorado). PPGD-USP. 2018; PEREIRA, Flávia Máximo; NICOLI, Pedro Augusto
Gravatá. Segredos epistêmicos do direito do trabalho. Revista brasileira de políticas
públicas. V. 10, n. 2. Ago, 2020.
5  ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: Ensaio sobre a afirmação e a negação
do trabalho. 2 Ed. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
6  LOURENÇO FILHO, Ricardo. Entre continuidade de ruptura: uma narrativa sobre as
disputas de sentido da Constituição de 1988 a partir do direito de greve. 2014. 293 f.
Tese (Doutorado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2014.
7  Consultar, por todos: ALVES, Raíssa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: uma
análise da CPI do trabalho escravo a ótica do trabalho “livre” da população negra.
Dissertação de Mestrado defendida perante o Programa de Pós-graduação em Direito
da Universidade de Brasília. Orientação: Gabriela Neves Delgado. 2017; MARQUES DA
SILVA, João Victor. O déficit racial do direito do trabalho no Brasil / The racial deficit
of labor law in Brazil. Revista Direito e Práxis, [S.l.], dez. 2021. ISSN 2179-8966. Disponível
em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/60495>.
Acesso em: 16 maio 2022.

386
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

tinuum histórico existente entre o período escravavista e o período


em que se afirma o trabalho livre no Brasil, mediante uma projeção
da experiência europeia que desconsidera o conjunto relevante de
contradições que a experiência colonial, escravidão, racismo e capi-
talismo dependente deixam no país, atravessando sua a trajetória de
sua regulação do trabalho.
Nessa esteira, o próprio apagamento das experiências e
insurgências da população escravizada bem como as relevantes
interações entre escravizados e trabalhadores livres na construção
das primeiras organizações coletivas e nos primeiros movimentos
paredistas nos leva a interpelar, em perspectiva histórica, quem é o
grevista na experiência histórica brasileira8.
Por outro lado, as tensões do capitalismo e o acirramento das
condições de vida da classe trabalhadora sob a égide de austeridade
neoliberal tem feito despontar, enquanto fato social, importantes
mobilizações grevistas forjadas por grupos que não se subsumem à
experiência suposta como universal para o emprego (e, por conse-
quência, para o exercício do direito de greve), mas que se engajam de
modo decisivo e essencial no mundo do trabalho por meio do trabalho
de cuidado e das atividades informais. A irrupção de greves feministas,
como havido na experiência Argentina, inspirando algumas experiên-
cias também no Brasil, e os relevantes breques dos apps, forjado pelos
entregadores das empresas-plataformas, desprovidos de direitos e
do próprio reconhecimento jurídico formal enquanto trabalhadores,
também interpelam: quem são os grevistas do presente?
A partir dessas experiências e aprofundando as contradições
envolvidas na classe trabalhadora que se vê, que se estuda e que
se elege a titular de direitos trabalhistas, esse artigo, visitando as

8  Consultar, por todos: PINTO, Ana Flávia Magalhães. Trabalhadores negros


anteciparam imigrantes na luta trabalhista no Brasil. Uol Notícias. 12 mai 2022. Disponível
em https://noticias.uol.com.br/opiniao/coluna/2022/05/12/trabalhadores-negros-
antenciparam-imigrantes-na-luta-trabalhista-no-brasil.htm Acesso em 14 mai 2022.

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

importantes contribuições de Flávia Máximo Pereira9 a respeito de


uma releitura interseccional do direito de greve, busca discutir os ho-
rizontes para o reconhecimento da tutela constitucional do direito
de greve quanto aos modos de fazer político coletivos orientados
pela centralidade do trabalho.

2. QUEM SÃO OS GREVISTAS NA CONSTRUÇÃO


HISTÓRICA BRASILEIRA?

A discussão a respeito da perspectiva que se tem hoje sobre


o sujeito de direitos da greve não pode ser realizada sem considerar
a narrativa histórica que afirma e reconhece a greve em nossa socie-
dade. É relevante observar, nesse sentido, que, seja na historiografia,
seja na doutrina jurídica, por muito tempo prevaleceu uma perspec-
tiva, até hoje hegemônica, que associa a ideia de greve, desde uma
perspectiva da experiência europeia, ao fenômeno do trabalho livre e
assalariado verificado nas sociedades capitalistas. Essa perspectiva
lançava um olhar para movimentos e lutas coletivas de trabalhadores
em contextos históricos anteriores a esse marco que os diferenciava
significativamente do léxico da greve, considerando um anacronismo
identificá-los enquanto movimentos paredistas.
Se é verdade que um rigor historiográfico e analítico com
relação aos elementos e marcadores que caracterizam a experiência
grevista sob o capitalismo é necessário para uma compreensão situ-
ada do fenômeno, por outro lado, observa-se uma importante des-
consideração das peculiaridades que marcaram a história brasileira,
notadamente a impossibilidade, no nosso caso, de uma demarcação
estanque da afirmação de um modelo de trabalho livre em oposição
ao modelo escravagista e a ausência de um processo de transição

9  PEREIRA, Flavia S. Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo brasileiro para a
construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

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SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

ritmado por outro modelo interposto entre essas duas etapas, como
ocorreu nos países europeus com o feudalismo.
Para além disso, a experiência de uma sociedade colonizada e
na qual estabeleceu-se a escravização específica a um grupo raciali-
zado enraíza na cultura política e jurídica a dependência e o racismo
como particularidades que não podem ser ignoradas10.
Ao negligenciar tais elementos na construção da narrativa a
respeito da organização coletiva dos trabalhadores e, também, do
exercício do direito de greve, a tendência dessa perspectiva teórica
hegemônica é superestimar o papel do imigrante na construção de
um sentido da greve no país e, sobretudo, como a face relevante da
classe trabalhadora brasileira11. A essa superestimação, que Negro
e Gomes denominam de que “mito do imigrante radical”12, corres-
ponde uma perspectiva de apassivamento da população formada
por negros africanos e seus descendentes, escravizados ou libertos,
sobretudo nas disputas relacionadas ao trabalho livre exercido por
esses sujeitos.
Para além desse aspecto, há ainda uma desconsideração do
fato de que as experiências de trabalho livre e trabalho escravizado
não foram separadas por uma linha histórica estanque, mas que
coexistiram por anos e foram comunicadas pelo convívio de gera-
ções de trabalhadores. A pesquisa cuidadosa de Badaró Mattos, por
exemplo, informa o compartilhamento de práticas de solidariedade
e de insurgência entre escravizados e trabalhadores livres, a exemplo
das caixas de solidariedade e de algumas estratégias de luta no início

10  THEODORO, Mário. A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do


Brasil. Editora Zahar, 2022.
11  ALVES, Raíssa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: uma análise da CPI do
trabalho escravo a ótica do trabalho “livre” da população negra. Dissertação
de Mestrado defendida perante o Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade de Brasília. Orientação: Gabriela Neves Delgado. 2017.
12  NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio dos Santos. As greves antes da “grève”:
as paralisações do trabalho feitas por escravos no século XIX. Disponível em http://
cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v65n2/23.pdf Acesso em 14 mai 2022.

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

do século passado13. O marco histórico arbitrariamente imposto


para o estudo da greve, portanto, oculta parte importante das lutas
que assim podem ser reivindicadas e, sobretudo, a comunicabilidade
entre a resistência histórica dos escravizados e ex-escravizados e
dos trabalhadores livres, inclusive imigrantes.
Como então estancar o fato de que a greve dos tipógrafos no
Rio de Janeiro, havida como primeira greve que se tem notícia no país,
em 1858, aconteceu de modo praticamente contemporâneo à Greve
dos Ganhadores em Salvador, em 1857, relatada por João José Reis?14
Como dissociar esse advento reivindicativo daquelas tantas outras
mobilizações por direitos, manejadas por pessoas negras escraviza-
das durante os anos 1800, relatadas por Negro e Gomes, e reforçadas
pela análise de Ana Flávia Pinto15?
Quando se delimita o estudo da formação histórica do direito
coletivo do trabalho e também das primeiras experiências grevistas
ao que estritamente pode ser identificado com a experiência euro-
peia do assalariamento industrial, elege-se, mais uma vez, o imigrante
branco como o sujeito de direitos trabalhistas (como observou Rous-
senq, essa é a base eugenista da construção da legislação do trabalho
no Brasil16) e perde-se, em perspectiva, não apenas a complexidade
da conflitualidade relacionada ao trabalho no Brasil, mas também os
anseios que mobilizavam a ação grevista nos mais diversos segmen-

13  MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores e sindicatos no Brasil. São Paulo: Expressão
Popular, 2009.
14  REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2019.
15  : PINTO, Ana Flávia Magalhães. Trabalhadores negros anteciparam imigrantes na
luta trabalhista no Brasil. Uol Notícias. 12 mai 2022. Disponível em https://noticias.uol.
com.br/opiniao/coluna/2022/05/12/trabalhadores-negros-antenciparam-imigrantes-
na-luta-trabalhista-no-brasil.htm Acesso em 14 mai 2022.
16  ALVES, Raíssa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: uma análise da CPI do
trabalho escravo a ótica do trabalho “livre” da população negra. Dissertação
de Mestrado defendida perante o Programa de Pós-graduação em Direito da
Universidade de Brasília. Orientação: Gabriela Neves Delgado. 2017.

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SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

tos, inclusive aqueles marginalizados e não subsumidos ao padrão do


sujeito de direitos universal trabalhista.
A narrativa, tal como posta, conforma um olhar sobre a greve
que limita a profundidade da crítica quanto a suas insuficiências e que
sinaliza, para parte importante dos sujeitos que vivem do trabalho,
um sentido social de impropriedade em relação ao manejo desse im-
portante instrumento de luta coletiva, notadamente em cruzamento
de outras demandas guiadas pela centralidade do trabalho.
A questão desborda, afinal, para o próprio questionamento
a respeito de quem é a classe trabalhadora destinatária do direito
individual do trabalho e dos institutos do direito coletivo do trabalho
que reavivam e atribuem sentido ao primeiro.
Chalhoub e Silva17, em estudo crítico da produção histo-
riográfica nacional, mas que pode ser estendido também à história
do direito e ao direito do trabalho, revisitam a produção científica
relacionada à história social do trabalho e à história da escravidão
para identificar, durante muito tempo, a construção de um imagi-
nário acadêmico no qual esses dois conjuntos não se encontram ou
se comunicam, engendrando uma cisão pouco produtiva no sentido
da análise das nossas complexidades históricas e, sobretudo, exclu-
dente com relação à grande parcela da população cuja marginalidade
está direta ou indireta relacionada aos processos e desdobramentos
da escravização18.
Para os dois historiadores, a passagem do paradigma da
ausência para o paradigma da agência em relação aos sujeitos es-

17  CHALHOUB, S. & SILVA, F. T. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e


trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas,
v. 14, n. 26, 2009.. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde os anos 1980.
18  CHALHOUB, S. & SILVA, F. T. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas,
v. 14, n. 26, 2009.. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde os anos 1980.

391
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

cravizados implicou um giro epistemológico relevante, que mostra


convergências e possibilidades de agendas relevantes entre a histó-
ria social do trabalho e a história da escravidão, sobretudo no que
concerne às discussões a respeito da reivindicação de justiça:

Afinal, por mais separados que estivessem em seus


nichos institucionais específicos, historiadores sociais
sempre souberam que compartilhavam com seus pares
a ênfase nos modos de os sujeitos históricos dominados
— ou oprimidos, subordinados, subalternos, segundo
o pedantismo teórico de cada um — lidarem com as
estruturas de reprodução de injustiças e desigualdades
às quais, via de regra, não podiam escapar.19

Nessa chave, parece relevante que, tal qual elaborado no


campo historiográfico, aqueles que pesquisam e estudam o direito
do trabalho possam rever separações e ausências, do ponto de vista
histórico, no intuito de aproximar os sentidos da greve de perspecti-
vas de justiça e de inclusão, em sentidos profundos.
Não sem razão, o tema é tocado a partir de uma perspectiva
interseccional. Ao tratar do apagamento das lutas e greves de pessoas
escravizadas, ex-escravizadas e libertas, decerto que estamos a tratar
do apagamento da população negra, inclusive de mulheres negras.
Considerando que a forma de narrar e conhecer a história é
também a forma de reproduzi-la, um estudo permeado por ausên-
cias, colocado a partir dos registros e leituras do passado, também
deita seus tentáculos no presente, como veremos no próximo tópico.

19  CHALHOUB, S. & SILVA, F. T. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e


trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos AEL, Campinas,
v. 14, n. 26, 2009.. Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e trabalhadores na
historiografia brasileira desde os anos 1980.

392
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

3. QUEM É A CLASSE TRABALHADORA INSURGENTE


DESDE UMA PERSPECTIVA INTERSECCIONAL?

Para interpelar os limites do direito de greve em nossa ordem


jurídica, notadamente aqueles estabelecidos infraconstitucional-
mente pela Lei de Greve (Lei nº 7783/89), que, contraditoriamente,
tem prevalecido na jurisprudência recente em detrimento da
perspectiva ampliativa da norma constitucional (art. 9º da CF/88),
colhem-se duas experiências relevantes aptas a evidenciar os con-
tornos limitados de um direito de greve, sobretudo no que concerne
aos seus titulares: um sujeito coletivo que projeta identidades hege-
mônicas e, assim, renega parte relevante da classe trabalhadora.
Uma das experiências, tomada a partir de evento interna-
cional, o qual inspirou manifestações incipientes no Brasil, foi a
greve internacional de mulheres ocorrida no 8 de março de 2017, cuja
análise será feita a partir do olhar da pesquisadora Veronica Gago20,
considerada a experiência desse movimento na Argentina.
Um segundo episódio é o mais recente movimento de luta co-
letiva dos entregadores de aplicativos no Brasil, que ficou conhecido
como breque dos apps. Esse movimento será pensado a partir das
leituras críticas de um conjunto de autores e autoras que discutiram o
movimento ainda quando de sua ebulição, considerando seus impor-
tantes marcadores raciais e geracionais, e, ainda, sua pauta ampliada,
com caracteres políticos e transcendentes dos marcos originais do
direito do trabalho.

3.1. A greve feminista

Veronica Gago apresenta a greve feminista de 2017, na


experiência argentina, conceituando-a como processo e não como

20  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:


Elefante, 2020.

393
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

evento21: “processo ondulante, de longo fôlego, desenha um mapa


de conflitos que diluem a rígida fronteira entre vida e trabalho, corpo
e território, lei e violência”22. Ao fazê-lo, reúne um conjunto de lutas
iniciado a partir da ascensão de Macri ao poder na Argentina, nas
quais a atuação dos coletivos feministas teve destaque. Desde a pri-
meira mobilização em 2016 até o conjunto de reuniões e assembleias
que construiu o movimento de 2017, bem como seus respectivos
desdobramentos no ano seguinte revelam, na perspectiva da autora,
uma mobilização do instrumento da greve peculiar e questionadora
dos seus mais diversos limites.
As mulheres, ao se organizarem nesse processo, questiona-
ram o conceito de trabalho, afirmando que o trabalho reprodutivo
realizado no âmbito doméstico, sem o respectivo salário, também
seria um trabalho suscetível de uma mobilização grevista, que con-
templasse a heterogeneidade dos trabalhos femininos de cuidado,
doméstico, assalariado, informal, precário imigrante, entre outros.
Também questionaram a fronteira entre a violência do patriarcado e
a violência do capital23, mobilizando, pelo mesmo instrumento e mo-
vidas numa mesma articulação, atos contra episódios de feminicídio,
violência contra mulheres, e a violência provocada pela exploração
capitalista e acentuada pelo neoliberalismo, com sua especial afeta-
ção dos corpos femininos encarregados das economias populares,
informais e domésticas.
Ainda, questionaram as estruturas internas do movimento
sindical, com o qual precisaram dialogar e articular para a efetividade

21  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:


Elefante, 2020, p. 9.
22  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:
Elefante, 2020, p. 11.
23  “A greve transforma-se em um dispositivo específico para politizar as violências
contra as mulheres e os corpos feminizados porque as vincula às violências da
acumulação capitalista contemporânea” (GAGO, V. A potência feminista ou o desejo
de transformar tudo. São Paulo: Elefante, 2020, p. 17, grifos no original).

394
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

do movimento paredista, mas de cujas práticas a maioria das mulhe-


res encontrava-se alijada. Assim a ideia de democracia sindical foi
interpelada a dialogar com as demandas feministas. Essa iniciativa
passou pela relevante construção de cozinhas coletivas e comuni-
tárias, que supriram o trabalho doméstico no dia da greve e que se
tornaram espaços políticos e assembleares24.
Por fim, as mulheres trouxeram para a pauta do movimento
paredista, de forma articulada com as outras demandas, as questões
relacionadas aos direitos reprodutivos, sobretudo a questão da lega-
lização do aborto, e também repensaram seus lugares na construção
e defesa das democracias, a partir do resgate do papel feminino na
luta contra a ditadura militar, pelas mães, mas também pelo engaja-
mento das filhas de militares em denúncias contra os abusos de que
tiveram conhecimento em razão de laços familiares.
Tratava-se, pois, de um deslocamento das mulheres do papel
de vítimas, em múltiplas dimensões, para um papel ativo movido pelo
desejo: “Nos mueve el deseo” era a palavra de ordem do movimento
Niunamenos, representativo dessa processualidade da greve femi-
nista identificada por Gago25.
O uso do instrumento greve, com sua denominação assim
reivindicada, consiste em ato consciente e interpelador por parte do
movimento:

Nessa perspectiva, a prática da greve é a redefinição de


uma poderosa forma de luta em um momento histórico
novo. Contra o estreito modelo dos sujeitos da gre-
ve—masculinos, brancos, assalariados, sindicalizados—,
expandimos sua capacidade política, suas linguagens e
suas geografias. Surge assim uma pergunta que a refaz

24  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:


Elefante, 2020.
25  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:
Elefante, 2020.

395
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

por completo: que tipo de corpos, territórios e confli-


tos cabem na greve quando ela se torna feminista? Com
que tipo de generalidade ela se compromete?26

Assim, nas palavras da autora, o esforço de “misturar tudo”


em um mesmo movimento intitulado greve seria exatamente o
responsável por “traçar a relação entre violência sexual e violência
financeira, entre violência trabalhista e violência racista, entre
violência policial e violência obstétrica etc”27. A partir daí, Gago in-
terpela: “como a multiplicidade de ações contidas na noção de greve
do ponto de vista feminista revela e sabota as formas de exploração
e extração de valor que já não se concentram apenas nos âmbitos
reconhecidos como trabalhistas”?28
Nesse sentido, ao propor uma teoria política da greve fe-
minista, a autora destaca a reinvenção da greve articulada nesse
processo, cujo mérito seria o de produzir proximidade com lutas que
pareceriam cronológica e especialmente distantes:

Há um duplo movimento aqui. Por um lado, a produção


de conexão entre as lutas, que não é espontânea nem
natural. Por outro, essa conexão se faz a partir da greve,
o que implica tomá-la como perspectiva não puramen-
te analítica, mas de insubordinação.29

Nesse sentido, ao admitir que o sujeito da prática social


grevista eram mulheres, a autora desloca-se para compreender
que, diferentemente de uma greve tomada como “universal” (ou

26  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:


Elefante, 2020, p. 10.
27  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:
Elefante, 2020, p. 11.
28  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:
Elefante, 2020, p. 16.
29  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:
Elefante, 2020, p. 25.

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SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

seja, masculina, branca, assalariada e sindicalizada), na perspectiva


da greve feminina, as dimensões da existência e do trabalho são
indissociáveis, a tal ponto que corpo, território, tempo e trabalho
articulam-se em torno de demandas complexamente imbricadas,
que um movimento paredista genuinamente feminista não poderia
pretender estancar30.
O desafio ao direito está, portanto, posto: como reconhecer a
universalidade do direito de greve dos trabalhadores e trabalhadoras
se, ao estendê-lo formalmente às trabalhadoras, essas múltiplas
dimensões que marcam, em maior ou menor medida, a experiência
feminina no trabalho não podem ser devidamente acomodadas? Os
temos da Lei de Greve brasileira se prestariam a limitar, inviabilizar
ou instrumentalizar uma greve feminista? Esses termos são consen-
tâneos com o disposto na Constituição? Estariam de acordo com a
ideia de uma greve interseccional, como nos ensina Flávia Máximo
Pereira31?

3.2. O breque dos apps

Para as centenas de milhares de trabalhadores engajados


como entregadores nas plataformas-entregas de alimentos e outras
utilidades, a ausência de salário garantido, de patamares mínimos re-
muneratórios e o agravamento das condições de vulnerabilidade fez
com que, no contexto da pandemia, se organizassem coletivamente
e manifestassem sua insatisfação por meio de uma paralisação que
denominaram de “breque”.
Submetidos às oscilações de preço estabelecidas unilateral-
mente pelas empresas-plataformas, os entregadores depararam-se

30  GAGO, V. A potência feminista ou o desejo de transformar tudo. São Paulo:


Elefante, 2020, p. 28.
31  PEREIRA, Flavia S. Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo brasileiro para a
construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

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ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

com a queda dos preços no cenário pandêmico, que os forçou à ex-


tensão das já exaustivas jornadas de trabalho, a fim de manter-se em
dia com as despesas familiares e com os compromissos financeiros
decorrentes da própria aquisição dos instrumentos de trabalho32.
À greve de 1º de julho de 2020 se seguiram outras duas pa-
ralisações em julho e setembro do mesmo ano, que acumularam um
caldo de organização que implicou a reiteração desses breques em
2021 e 2022, com construção e encaminhamento de uma pauta cada
vez mais consistente sobre a regulação do trabalho desses entrega-
dores. Tais eventos, processualmente articulados, evidenciaram não
apenas a força de mobilização e o impacto político dos entregadores
por aplicativos, como também uma heterogeneidade de posições
políticas e uma não adstrição de suas demandas a pautas estrita-
mente corporativas.
Também aqui, portanto, tem-se a greve sendo manejada para
disputar o próprio conceito de trabalho e a condição de trabalha-
dores dos envolvidos. De fato, embora a mal disfarçada condição de
assalariamento e subordinação desses trabalhadores os aproxime da
perspectiva do sujeito de direitos clássico trabalhista, a permanência
desses trabalhadores em condição de desproteção social, informa-
lidade e marginalidade, a despeito do crescimento quantitativo da
categoria, sobretudo no cenário de desemprego recente, e da sua
relevância na distribuição de mercadorias, sobretudo no cenário
pandêmico, revela dois elementos: um, a astúcia das novas estraté-
gias do capitalismo na burla à regulação protetiva do trabalho; dois,
a facilidade, observada com destaque em países dependentes, nos
quais a informalidade e o desemprego preponderam, de empurrar
determinados grupos sociais para condições de trabalho estranhas

32  DUTRA, Renata Q; FESTI, Ricardo C. A resistência dos entregadores: reflexões sobre
os breques dos apps. In: Edson TELES; Marília O. CALAZANS. (Org.). A pandemia e a
gestão das mortes e dos mortos. 1ed.São Paulo: Universidade Federal de São Paulo:
Centro de Antropologia e Arqueologia Forense, 2021, v. 1, p. 120-129.

398
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

a qualquer estatuto jurídico protetivo e alheias aos paradigmas de-


mocráticos, resgatando, inclusive, a figura histórica dos ganhadores
vislumbrada no pré-abolição33.
Nesses elementos cruzam-se, portanto, as condições de
classe e outros fatores que despontam interseccionalmente como
marcadores da experiência de trabalho, e, por consequência, de luta
coletiva, dessa categoria: pesquisa realizada pelo Aliança Bike reve-
lou que o perfil dos entregadores é composto por 71% de negros e
pardos e tem média de idade de 24 anos34.
Tais marcadores e identidades chegaram a se expressar,
dentro do espectro plural de representações e perspectivas políticas
que despontaram durante o breque, na tendência altamente politi-
zada e que não se satisfaz com a luta corporativa dos Entregadores
Antifascistas, um coletivo que surgiu e se expandiu rapidamente no
recente processo de luta contra o governo Bolsonaro, em defesa da
democracia e contra o racismo35.

33  Para essa analogia, consultar: DUTRA, Renata Q; FESTI, Ricardo C. A resistência
dos entregadores: reflexões sobre os breques dos apps. In: Edson TELES; Marília O.
CALAZANS. (Org.). A pandemia e a gestão das mortes e dos mortos. 1ed.São Paulo:
Universidade Federal de São Paulo: Centro de Antropologia e Arqueologia Forense,,
2021, v. 1, p. 120-129; CARVALHO, F. S. E., PEREIRA, S. dos Santos, & SOBRINHO, G. S.
(2020). #BrequeDosApps e a organização coletiva dos entregadores por aplicativo no
Brasil. Revista Jurídica Trabalho E Desenvolvimento Humano, 3. https://doi.org/10.33239/
rjtdh.v3.85. Para perspectivas quanto à pauta ampliativa do movimento, consultar:
LOURENÇO FILHO, Ricardo. Disputas sobre o direito e a constituição: breque dos apps,
entregadores antifascistas e a greve política. Revista Processus de Políticas Públicas e
Desenvolvimento Social, [S.l.], v. 3, n. 6, p. 41-62, set. 2021.
34  ALIANÇA BIKE. Relatório. Disponível em http://aliancabike.org.br/wpcontent/
uploads/2020/04/relatorio_s2.pdf Acesso em 1/2/2021, 17h18 min
35  Para perspectivas quanto à pauta ampliativa do movimento, consultar:
LOURENÇO FILHO, Ricardo. Disputas sobre o direito e a constituição: breque dos apps,
entregadores antifascistas e a greve política. Revista Processus de Políticas Públicas e
Desenvolvimento Social, [S.l.], v. 3, n. 6, p. 41-62, set. 2021; e DELGADO, Gabriela Neves;
CARVALHO, Bruna V. de. O Movimento coletivo dos entregadores de plataformas
digitais no contexto pandêmico. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário
Newton Paiva | Belo Horizonte | n.42 | p. 396-410 | set./dez. 2020 | ISSN 1678 8729 |
revistas.newtonpaiva.br/redcunp

399
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

A sobreposição de experiências de exclusão e trabalho precá-


rio verificadas nas trajetórias dos sujeitos envolvidos nos breques se
encontra com uma (im)possibilidade de instrumentalizar a tutela pro-
tetiva do direito de greve, notadamente em face do desenho restritivo
e centrado na experiência do emprego que se coloca na Lei de Greve.
Assim, para esses trabalhadores negros, jovens e experi-
mentados na informalidade, a inventividade do manejo do breque
(que por si só já evidencia um afastamento em relação ao léxico da
greve, embora a prática concretizada tenha sido grevista e classista),
o exercício do direito fundamental esteve alheado das proteções
jurídicas que dele decorrem. Não sem razão, desde a primeira pa-
ralisação foi noticiado que as plataformas digitais impulsionaram
estratégias para dividi-los ou enfraquecer o movimento: muitos
ativistas relataram que os aplicativos liberaram, durante os breques,
trabalhadores que estavam bloqueados ou que estavam na fila de
espera para ingressar na atividade, assim como realizaram ameaças
de bloqueio aos que aderissem às mobilizações. Mais recentemente,
a reportagem “A máquina de propaganda do Ifood”, veiculada pela
Agência Pública (4/3/2022)36, a partir de consistente trabalho
investigativo, demonstrou como as práticas predatórias desta em-
presa operaram de forma arquitetada e ilícita contra a organização
coletiva dos trabalhadores.
Os dados da reportagem revelam que, recorrendo a uma
empresa já especializada nas práticas políticas desvirtuadas, a em-
presa Ifood financiou uma ação orquestrada para “desmobilizar o
movimento, desqualificar os que lutavam por melhores condições
de trabalho, polarizar os entregadores, minar o papel de lideranças
que com ele se formavam e criar narrativas que deslegitimavam a
ação”37. Os fatos denunciados enquadram-se como condutas an-

36  https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/
37  ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DO TRABALHO. Nota pública sobre as
condutas antissindicais praticadas pela empresa iFood. 8/4/2022. Disponível em http://

400
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

tissindicais, repreendidas por normas internacionais de proteção à


liberdade sindical38.
O que resta evidente desse episódio (ou dessa processuali-
dade) grevista é que, ainda que sob nomenclaturas diversas, traba-
lhadores não contemplados na perspectiva tradicional do sujeito
de direitos trabalhista reivindicam, na prática, o direito de greve e
vertem por meio desse instrumento inconformismos relacionados
à exploração classista, mas também a outras subalternizações que
suportam interseccionalmente.
Todavia, ao fazê-lo, vem-se alijados mesmo das proteções
mais elementares desenhadas para esse direito fundamental. A
moldura jurídica infraconstitucional do direito de greve, cujos pres-
supostos e objetivos são afinados com a experiência do emprego e
objetivos limitados a pautas corporativas, acaba por excluir os traba-
lhadores que, por marcadores distintos, se apresentam estranhos ao
perfil assimilável pela Lei de Greve, resultando expostos a dispensas,
contratações de outros trabalhadores e antissindicalidades diversas
contra o exercício do seu direito fundamental.

4. POR UMA RELEITURA DO DIREITO DE GREVE: ENTRE A


DEMANDA DA INTERSECCIONALIDADE E OS LIMITES
DEMOCRÁTICOS DO MOMENTO PRESENTE

A compreensão da greve que nos desafia a partir das expe-


riências tratadas neste artigo refere-se àquilo que Crenshaw deno-
mina de uma interação entre dois ou mais eixos da subordinação39

abet-trabalho.org.br/nota-publica-sobre-as-condutas-antissindicais-praticadas-pela-
empresa-ifood/ Acesso em 16 mai 2022.
38  ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ESTUDOS DO TRABALHO. Nota pública sobre as
condutas antissindicais praticadas pela empresa iFood. 8/4/2022. Disponível em http://
abet-trabalho.org.br/nota-publica-sobre-as-condutas-antissindicais-praticadas-pela-
empresa-ifood/ Acesso em 16 mai 2022.
39  CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos
da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10 (1): 171-188, 2002,

401
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

pelas pessoas afetadas pelas experiências do trabalho e engajadas


em processos de resistência. Assim, a abordagem interseccional se
propõe e considerar como “o racismo, o patriarcalismo, a opressão
de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades bá-
sicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras”40.
Essa percepção de que os cruzamentos entre as diversas
opressões, inclusive no âmbito das relações de trabalho, não apenas
aprofundam os vetores relacionados à exploração classista, mas
os modificam e os deslocam para outros lugares e experiências pe-
culiares, é fundamental para que se compreenda que, assim sendo,
as respostas e resistências dos e das sujeitas interseccionalmente
vulnerabilizados tendem a se dar também de modo peculiar e es-
pecífico. Em muitos casos, como visto, tais respostas passarão pela
reivindicação de uma amplitude quanto ao conceito de trabalho,
quanto ao cruzamento de outras violências que serão articuladas
com as pautas tipicamente trabalhistas e quanto ao modo de or-
ganizar as lutas, a partir de horizontes utópicos e de possibilidades
concretas de articulação.
Nesse sentido, em pesquisa atenta aos novos movimentos e
expressões de uma classe trabalhadora cada vez mais heterogênea,
Flávia Máximo Pereira considera que, em uma perspectiva contem-
porânea, a classe trabalhadora não é mais formada por trabalha-
dores sindicalizados, com vínculo de emprego, masculina, nacional
tampouco homogênea. Por isso, ao dar conta da heterogeneidade,
não apenas racial, de gênero, de origem, mas também de formas
de inserção e vivência da experiência do trabalho, a autora observa
que esses trabalhadores e trabalhadoras “tentam sobreviver sobre-

p. 177.
40  CRENSHAW, Kimberle. Documento para o encontro de especialistas em aspectos
da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10 (1): 171-188, 2002,
p. 177.

402
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

carregados por subalternidades interseccionais que vão além das


estratificações econômicas, representadas por gênero, raça, origem
e por outras categorias que atuam na produção e na reprodução das
desigualdades sociais”41.
Mais relevante, observa que essa nova composição importou
também em transformações na luta coletiva, na medida em que
modifica e amplia o rol de sujeitos individuais e coletivamente con-
siderados, de formas de expressar inconformismo e de objetivos dos
movimentos que, cada vez mais, transpõem o espaço econômico/
produtivo para transversalizar outras dimensões da vida e dos con-
flitos sociais42. Nesse enredo, constata que o direito de greve (ou sua
leitura jurisprudencial centrada na norma infraconstitucional) ficou
aquém das necessárias adaptações jurídicas, não acompanhando o
emergente paradigma flexível. Atenta ao movimento conservador
que tem importado, do ponto de vista jurídico, em despolitização e
burocratização do direito de greve, a autora propõe uma acomoda-
ção jurídica dessas expressões para além da greve, como forma de
potencializá-las43.
Com efeito, ao tempo que identificam um processo contínuo
de fragilização do sindicalismo clássico, com recuo programático de
suas pautas e perda da capacidade de mobilização ante transfor-
mações geográficas, produtivas e tecnológicas porque tem passado
o capitalismo, as pesquisas produzidas no âmbito da sociologia do
trabalho identificam, igualmente, o deslocamento das resistências

41  PEREIRA, Flavia S. Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo brasileiro para a
construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 485-486.
42  PEREIRA, Flavia S. Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo brasileiro para a
construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.
43  PEREIRA, Flavia S. Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo brasileiro para a
construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020.

403
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

nos novos contextos para os quais o capital se expande, como aponta


Beverly Silver44.
Estudos recentes, como os de Ruy Braga, observam a potên-
cia política do que o autor classifica como precariado: a despeito de
sua conformação pouco afeita ao sindicalismo clássico, não tem se
mostrado enquanto conjunto passivo ou apático; pelo contrário, tem
adotado formas de resistência política classificadas como subterrâ-
neas e ambivalentes, compatíveis com a vulnerabilidade daqueles
que a engendram45.
A potência viva da luta de classes e da ação coletiva dos tra-
balhadores mostra sua persistência, embora o faça através de novos
mecanismos e estratégias pouco assimiláveis pelos institutos clás-
sicos do direito coletivo do trabalho, como bem observou Henrique
Fernandes46.
Daí porque a relevância de colocar diante da semântica jurí-
dica da greve, sobretudo a partir da amplitude de sua proteção cons-
titucional, uma perspectiva interseccional, a qual desafia os limites
castradores contidos na regulamentação infraconstitucional que, a
uma, supôs o desenho da greve a partir de um sujeito universal unívo-
co, e, a duas, o fez numa perspectiva de conformação e continuidade
em relação ao pensamento prevalecente no período pré-Constitu-
cional, como bem demonstrou Lourenço Filho47.

44  SILVER, Berverly J. Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização


desde 1870. São Paulo: Boitempo, 2005.
45  BRAGA, Ruy. A rebeldia do precariado. A rebeldia do precariado: trabalho e
neoliberalismo no sul global. São Paulo: Boitempo, 2017.
46  FERNANDES, Henrique Araújo e. Entre algoritmos e breques: limites e possibilidades
do direito coletivo do trabalho nas lutas dos entregadores por aplicativo. 2021. 117 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) - Universidade de Brasília,
Brasília, 2021.
47  LOURENÇO FILHO, Ricardo. Entre continuidade de ruptura: uma narrativa sobre as
disputas de sentido da Constituição de 1988 a partir do direito de greve. 2014. 293 f.
Tese (Doutorado em Direito) -Universidade de Brasília, Brasília, 2014.

404
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

Esse esforço de acomodação jurídica da greve a partir de olha-


res interseccionais, como ensina Flávia Máximo Pereira, articula-se
com os horizontes de pluralismo político e da própria substância
democrática:

Esses meio de luta deflagrados por sujeitos plurais, no


contexto transnacional do capitalismo cognitivo-cul-
tural, representam novas modalidades democráticas
de conexão política, ou seja, um direito a novas formas
de cidadania para além de uma condição estática, re-
presentado pela luta política daqueles que trabalham:
um direito ao pluralismo político, que se traduz na
proteção jurídica de ações coletivas concertadas do-
tadas de um animus político, que se traduz na proteção
jurídica de ações coletivas concertadas dotadas de um
animus político, efetuadas por uma interseccional clas-
se-que-vive-do-trabalho, que objetiva transformações
substanciais democráticas, manifestando-se de formas
variáveis e reticulares, articuladas em níveis locais e
globais48.

Se a greve é instrumento essencial à expressão da democracia


nas relações de trabalho, de forma articulada à democracia política49,
a capacidade do sistema jurídico de absorver as denominadas “greves
interseccionais”50, diz também de seus horizontes democráticos.
Em uma conjuntura na qual se observa um recrudescimento
das perspectivas neoliberais em oposição ao trabalho protegido e
desmercantilizado, a austeridade tem se expressado também em
respostas autoritárias ao exercício do direito de greve, mesmo quan-

48  PEREIRA, Flavia S. Máximo. Para além da greve: diálogo ítalo brasileiro para a
construção de um direito de luta. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020, p. 491.
49  GOMES, Ana Virgínia M; PINTO, Flávia Aguiar Cabral Furtado; PINTO, Carlos Eduardo
Furtado. O direito de greve como manifestação do exercício da democracia: Análise
da decisão do TST sobre a legitimidade da greve política. Revista Chilena de Derecho
del Trabajo y de la Seguridad Social. Vol. 11, Núm 21 (2020) • Págs. 47-64.
50  A expressão tem sido trabalhada por Flávia Máximo Pereira.

405
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

do exercido por sujeitos que se enquadram nos limites da moldura


legal do direito de greve, mas que o fazem a partir de uma agenda que
também contempla o questionamento das diretrizes políticas para o
trabalho51.
O encontro do neoliberalismo e sua contraface antidemocrá-
tica com a tradição jurídica autoritária brasileira sobre o direito de
greve, não superada com a redemocratização de 1988, tem reforçado
os limites do direito de greve, mesmo para aqueles trabalhadores que
se encaixam subjetivamente em sua moldura.
Os horizontes traçados nesse artigo supõem, de outra parte, o
estilhaçamento da própria moldura: nesse sentido, a reivindicação de
que as lutas interseccionais não se dissociam, mas se potencializam
pela centralidade política do trabalho e, por isso mesmo, demandam
sua acomodação no sentido constitucional do direito e greve.

5. CONCLUSÃO

Nesse breve artigo foram articuladas primeiras linhas refle-


xivas sobre o direito de greve e o paradigma do sujeito coletivo gre-
vista que se afirmou nos imaginários sociais, acadêmicos e, também,
jurídicos, a partir da figura hegemônica do trabalhador masculino,
branco e empregado, que em um primeiro momento histórico foi
também o imigrante.

51  Sobre as lutas, consultar MARCELINO, Paula; GALVÃO, Andréia. O sindicalismo


brasileiro diante da ofensiva neoliberal restauradora, Tempo Social, revista de sociologia
da USP, v. 32, n. 1, jan-aprl, 2020, pp. 157-182. Sobre as respostas judiciais, relevante o
mapeamento feito por SILVA, Sayonara Grillo Coutinho Leonardo da; GUEIROS, Daniele
Gabrich; LIMA, Henrique Figueiredo de. Greve e direito: estudo de casos judiciais
envolvendo movimentos coletivos de trabalho contra as reformas institucionais de
austeridade. In: RDRST, Brasília, Volume 5, n 1, 2019, p 220-254,Jan-Abr/2019; GOMES,
Ana Virgínia M; PINTO, Flávia Aguiar Cabral Furtado; PINTO, Carlos Eduardo Furtado. O
direito de greve como manifestação do exercício da democracia: Análise da decisão
do TST sobre a legitimidade da greve política. Revista Chilena de Derecho del Trabajo
y de la Seguridad Social. Vol. 11, Núm 21 (2020) • Págs. 47-64.

406
SUJEITOS COLETIVOS INTERSECCIONAIS? UMA INTERPELAÇÃO AO DIREITO DE GREVE

Em contraponto, resgatamos experiências históricas e, tam-


bém, experiências contemporâneas mobilizadas por sujeitos que
não se encaixam nesse padrão, porque atravessados por interseccio-
nalidades de gênero, raça e geração, bem como pelas modalidades
de inserção no trabalho e pelas formas de trabalho experienciadas.
O manejo da greve por esses e essas sujeitas revelou-se disruptivo
quanto aos limites clássicos do direito de greve, mas também política
e democraticamente potente, considerado o conjunto de reivindi-
cações mais amplas que endereçam à transformação social, sempre
articuladas em torno da centralidade política do trabalho.
Ao final, as perspectivas de democracia no trabalho e na
arena política foram aproximadas da necessidade de alargamento
dos sentidos do direito de greve, a partir da perspectiva das greves
interseccionais, trazida por Flávia Máximo. Sem desconsiderar os
desafios do tempo presente, sob a austeridade autoritária imposta
pelo neoliberalismo, os caminhos de transformação dessa conjun-
tura revelam-se afeitos não apenas a um alargamento das molduras
do direito de greve (e de suas leituras em nossa cultura jurídica) mas,
sobretudo, por um estilhaçamento dessas molduras, notadamente
do ponto de vista subjetivo e quanto às pautas assimiláveis, de modo
a atribuir efetiva densidade jurídica ao que dispõe o art. 9º da Cons-
tituição Federal.

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410
TERCEIRIZAÇÃO EM
ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO
AINDA SEM FIM

Rosangela Rodrigues Dias de Lacerda1


Silvia Teixeira do Vale2

1  Procuradora do Trabalho do Ministério Público do Trabalho da 5ª Região. Professora


Adjunta da Universidade Federal da Bahia. Mestre em Direito Público pela Universidade
Federal da Bahia. Doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela
Universidade de São Paulo. Professora convidada do curso de pós-graduação lato
sensu da Faculdade Baiana de Direito, CERS, UCSAL, UNIFACS e das Escolas Judiciais
do TRT da 5ª, 6ª e 16ª Regiões.
2  Juíza do Trabalho no TRT da 5ª Região. Mestra em Direito pela UFBA. Doutora pela
PUC/SP, Pós-Doutora pela Universidade de Salamanca. Professora convidada do
curso de pós-graduação lato sensu da Faculdade Baiana de Direito, EMATRA5, CERS,
CEJAS, UCSAL e da Escola Judicial do TRT da 5ª, 6ª, 10ª e 16ª Regiões. Diretora da
EMATRA5, biênio 2019/2021. Membra do Conselho editorial da Revista eletrônica do
Tribunal Regional do Trabalho da Quinta Região e da Revista Vistos etc. e do Conselho
acadêmico da ENAMATRA, órgão de docência da ANAMATRA. Autora de livros e
artigos jurídicos. Ex-professora substituta da UFRN.
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

Resumo
O presente ensaio objetiva discutir os argumentos utilizados pelo Supremo Tribunal
Federal para possibilitar a terceirização em atividade-fim, analisando questões ainda
em aberto, a despeito da fixação da tese.
Palavras-chave: terceirização – atividade-fim – distinguishing – inexigibilidade do
título judicial.

Abstract
The present essay aims to discuss the arguments used by the Supreme Federal Court
to enable outsourcing in core activity, analyzing issues still open, despite the thesis
fixation.
Keywords: outsourcing - core activity - distinguishing - unenforceability of the judicial
title.

1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em 30 de agosto de 2018 foi fixada a tese no C. Supremo


Tribunal Federal, hodiernamente de todos já conhecida, segundo a
qual é possível terceirizar toda e qualquer atividade nas empresas,
tendo-se o princípio constitucional da liberdade, bem assim a ausên-
cia de lei específica proibindo a intermediação de mão de obra em
atividade-fim, como as grandes razões de decidir.
O presente artigo analisa criticamente os argumentos uti-
lizados pela Excelsa Corte, para propor a distinção possível para os
casos concretos e apresentar soluções viáveis para as decisões con-
denatórias que se basearam na súmula n. 331 do TST, para atribuir
vinculação direta com o tomador de serviços, por considerar ilícita a
terceirização sem peias.

2. TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM, SEGUNDO AS


TESES FIRMADAS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Apesar da existência da súmula n. 331 do C. Tribunal Superior


do Trabalho, jamais houve consenso ou calmaria científica em relação
à divisão das atividades-meio e fim e, muito menos, aceitação por

412
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

parte das empresas da diretriz jurisprudencial que proibia a terceiri-


zação ampla3.
Nesse contexto, o antigo projeto de lei n. 4330 é resgatado
para votação na Câmara dos Deputados, e em 2015 transmudado no
PLC n. 30/15, ano em que também o C. Supremo Tribunal Federal,
rompendo antigo direcionamento hermenêutico, decide colocar
em pauta as ações e recursos extraordinários que questionavam a
proibição sumular da Justiça do Trabalho. Era um prenúncio de que
a questão envolvendo a possibilidade de terceirização em atividade-
-fim seria pacificada de um jeito ou de outro; pelo Estado-Legislador,
ou pelo Estado-Juiz.
A principal ação era a da Associação Brasileira do Agronegó-
cio (ABAG), que havia ingressado com Ação de Descumprimento de
Preceito Fundamental, alegando que as decisões da Justiça do Traba-
lho, ao restringirem a terceirização de parte das atividades realizadas
por diversas empresas, com fundamento na súmula 331 do Tribunal
Superior do Trabalho, violam o art. 1º, IV, da Constituição da Repúbli-
ca, que arrola, como fundamento da República Federativa do Brasil,
os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Apontou a entidade
de classe, como preceitos fundamentais ofendidos, a liberdade de
contratação, a legalidade e a livre concorrência (art. 5º, caput e II, e
art. 170, IV, da CR).
No dia 30/08/2018, o Supremo Tribunal Federal, julgando a
ADPF n. 324/DF e o RE n. 958.252, por maioria de votos (7 a 4), fixou
as seguintes teses, respectivamente:

É lícita a terceirização de toda e qualquer atividade,


meio ou fim, não se configurando relação de emprego

3  Idêntica digressão a respeito do tema já foi elaborada no estudo de OLIVEIRA, Murilo


C. S.; PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário Veiga; VALE, S. T. . Disciplina jurídica trabalhista
contemporânea da terceirização: reflexões pós-reforma trabalhista e decisões do STF.
In: PIRES, Rosemary; GEMIGANI, Teresa; MARANHÃO, Ney. (Org.). Contratos flexíveis na
Reforma Trabalhista. 1. ed. Belo Horizonte: RTM, 2019, v.1, p. 355-375.

413
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

entre a contratante e o empregado da contratada. 2.


Na terceirização, compete à contratante: i) verificar a
idoneidade e a capacidade econômica da terceirizada;
e ii) responder subsidiariamente pelo descumprimento
das normas trabalhistas, bem como por obrigações
previdenciárias, na forma do art. 31 da Lei 8.212/1993.

É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de


divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas,
independentemente do objeto social das empresas
envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da
empresa contratante4.

Restaram vencidos os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber,


Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Nesta assentada, o Relator,
Ministro Barroso esclareceu que a presente decisão não afeta auto-
maticamente os processos em relação aos quais tenha havido coisa
julgada.
No que diz respeito às razões apresentadas pelos ministros,
Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Mores, Dias Toffoli,
Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cármen Lúcia, em defesa da cons-
titucionalidade da terceirização da atividade-fim, restou consignado
nas decisões que a perpetuação da ilegalidade da terceirização da
atividade principal viola os caros princípios constitucionais da livre
iniciativa, livre concorrência e, sobretudo, da segurança jurídica, pois
não havia qualquer impedimento legal quanto à terceirização da
atividade-fim.
De fato, não havia, assim como não há até os dias atuais, lei
específica proibindo a terceirização em atividade-fim no Direito
brasileiro. Ao revés, a Lei n. 6.019, já em 1974, até passou a permitir a
terceirização em atividade-fim, desde que a atividade seja temporária.

4  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 324/ DF.


Relator Ministro Luis Roberto Barroso; Órgão julgador: Plenário; Data de julgamento:
30.08.2018; Data de publicação: 22.02.2019.

414
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

Com todas as vênias possíveis, o argumento lançado por Suas


Excelências não se sustenta em um cenário de hermenêutica consti-
tucional pós-positivista5, no qual princípios possuem normatividade,
vinculam entidades públicas e particulares e arejam a legislação,
independentemente de lei os ratificando.
É dizer, o argumento segundo o qual “o que não é proibido
está permitido” não mantém coerência com a própria jurisprudência
da Excelsa Corte, que tem dado bastante efetividade aos princípios
constitucionais, reconhecendo a normatividade destes, para assegu-
rar direitos fundamentais de liberdade e garantias constitucionais.
Basta recordar que a súmula vinculante número 11, a despeito
da inexistência de lei específica tratando sobre o uso de algemas, pre-
vê que só é lícito o uso destas “em casos de resistência e de fundado
receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por
parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por es-
crito”. O C. Supremo Tribunal Federal estabelece pelo citado verbete
vinculante que se os requisitos estabelecidos não forem observados,
será possível responsabilizar, inclusive, civil, penal e administrativa-
mente, o agente ou a autoridade, acarretando a nulidade da prisão ou
do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade
civil do Estado6.
Percebe-se claramente, pelo teor literal da indigitada súmula,
que o Supremo Tribunal Federal criou critérios para o uso de algemas
(somente em casos de resistência), fez alusão à conceito jurídico in-
determinado (fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física
própria ou alheia), estabeleceu formalidade não prevista formalmente
em lei (justificada a excepcionalidade por escrito), inclusive conside-
rando ilícito administrativo, civil e penal, passível de punição (sob pena

5  Sarmento, Daniel. Direitos Fundamentais e relações privadas. 2. ed. Rio de Janeiro:


Lumen Juris Editora, 2006. p. 57-67.
6  Fonte: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumario.asp?sumula=1220.
Acesso em: 20 out. 2020.

415
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade


e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem pre-
juízo da responsabilidade civil do Estado). Tais critérios não constam
de qualquer lei expressamente positivada, mas a Corte Maior, em sua
constituição plenária, ao analisar e julgar o HC 91952, com decisão pu-
blicada no DJe de 19/12/2008, cuja relatoria coube ao Ministro Marco
Aurélio, invocou os princípios da não-culpabilidade e afirmou que do
princípio do Estado Democrático decorre “o inafastável tratamento
humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a digni-
dade”, que igualmente encerra conteúdo principiológico.
Também foi a Excelsa Corte que em 2011, ao julgar a Ação
Direta de Inconstitucionalidade n. 4277 e a Arguição de Descumpri-
mento de Preceito Fundamental nº 132, a responsável por reconhe-
cer a união estável para casais do mesmo sexo, quando sequer havia
qualquer ato normativo tratando do assunto. Na oportunidade, o
relator das ações, Ministro Ayres Britto, argumentando que o artigo
3º, inciso IV, da CF veda qualquer discriminação em virtude de sexo,
raça, cor, concluiu que ninguém pode ser diminuído ou discriminado
em função de sua preferência sexual. Os ministros Luiz Fux, Ricardo
Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Marco Aurélio,
Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como as ministras Cármen Lúcia
Antunes Rocha e Ellen Gracie,  acompanharam o entendimento do
ministro Ayres Britto, pela procedência dos pedidos nas ações e com
efeito vinculante, no sentido de dar interpretação conforme a Cons-
tituição Federal para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do
Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas
do mesmo sexo como entidade familiar.
Percebe-se, assim, que invocando o princípio da não discrimi-
nação, a Suprema Corte acresceu significado ao artigo do Código Civil,
que igualmente não possui previsão legal específica para casamento
ou união estável entre pessoas do mesmo sexo.

416
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

No julgamento da ADPF n. 54, igualmente sob a relatoria do


Ministro Marco Aurélio de Melo, o Supremo Tribunal Federal decidiu
que o aborto de feto anencefálico não é conduta tipificada nos arti-
gos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal.
Ou seja, por meio do indigitado julgado, a Suprema Corte
descriminalizou a hipótese de aborto de feto anencefálico, também
sem previsão em norma estatuída pelo Estado-Legislador.
Em 13 de junho de 2019, julgando a Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade por Omissão n. 26, de relatoria do ministro Celso de
Mello, e o Mandado de Injunção n. 4733, relatado pelo ministro Ed-
son Fachin, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu
que houve omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não
editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Oito
Ministros da Excelsa Corte votaram pelo enquadramento da homo-
fobia e da transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (Lei
7.716/1989) até que o Congresso Nacional edite lei sobre a matéria.
Percebe-se, somente pela singela e rápida análise dos casos
indicados ao norte, que o C. O Supremo Tribunal Federal, a despeito
de lei específica para autorizar ou não autorizar determinada condu-
ta humana, opta por aplicar uma nova hermenêutica aos princípios
constitucionais, atribuindo-lhes normatividade.
Se o Órgão Maior do Poder Judiciário atribui normatividade
aos princípios7 e caminha no sentido de uma interpretação pós-positi-
vista, por que, então, justificar a possibilidade da terceirização em ati-
vidade-fim na ausência de lei específica vedando a conduta patronal?
Talvez a resposta seja encontrada na própria Corte, que reco-
nhece a fundamentalidade dos direitos sociais à moradia8, à saúde9,

7  Sobre a normatividade dos princípios: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais.
Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008 e DWORKIN, Ronald.
Levando os Direito a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
8  ARE 908.144-AgR, rel. min. Edson Fachin, j. 17-8-2018, 2ª T, DJE de 27-8-2018.
9  ADI 1.931, rel. min. Marco Aurélio, j. 7-2-2018, P, Informativo 890.

417
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

atribuindo-lhes justiciabilidade10, mas no que toca ao direito fun-


damental social ao trabalho e todos os incisos presentes no artigo
7º da Constituição Federal de 1988, a diretriz é em sentido oposto,
encontrando-se nesse particular um Tribunal bem conservador e
muito cauteloso.
Perceba-se, por exemplo, que, por unanimidade, o Plenário
do Supremo Tribunal Federal decidiu que, nos casos de Planos de
Dispensa Incentivada – os chamados PDIs –, é válida a cláusula que
dá quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas decorrentes do
contrato de emprego, desde que este item conste de Acordo Coletivo
de Trabalho e dos demais instrumentos assinados pelo empregado.
Eis o acórdão:

direito do Trabalho. Acordo coletivo. Plano de dispensa


incentivada. Validade e efeitos. 1. Plano de dispensa
incentivada aprovado em acordo coletivo que contou
com ampla participação dos empregados. Previsão de
vantagens aos trabalhadores, bem como quitação de
toda e qualquer parcela decorrente de relação de em-
prego. Faculdade do empregado de optar ou não pelo
plano. 2. Validade da quitação ampla. Não incidência,
na hipótese, do art. 477, § 2º da Consolidação das Leis
do Trabalho, que restringe a eficácia liberatória da qui-
tação aos valores e às parcelas discriminadas no termo
de rescisão exclusivamente. 3. No âmbito do direito co-
letivo do trabalho não se verifica a mesma situação de
assimetria de poder presente nas relações individuais
de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva
da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites
que a autonomia individual. 4. A Constituição de 1988,
em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva
da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhis-
tas, acompanhando a tendência mundial ao crescente

10  Por todos: ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis.
Trad. Luis Carlos Stephanov, Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2011. p. 70.

418
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

reconhecimento dos mecanismos de negociação coleti-


va, retratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção
n. 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho.
O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas
permite que os trabalhadores contribuam para a for-
mulação das normas que regerão a sua própria vida. 5.
Os planos de dispensa incentivada permitem reduzir
as repercussões sociais das dispensas, assegurando
àqueles que optam por seu desligamento da empresa
condições econômicas mais vantajosas do que aquelas
que decorreriam do mero desligamento por decisão do
empregador. É importante, por isso, assegurar a credi-
bilidade de tais planos, a fim de preservar a sua função
protetiva e de não desestimular o seu uso. 7. Provimento
do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão
geral, da seguinte tese: ‘A transação extrajudicial que
importa rescisão do contrato de trabalho, em razão de
adesão voluntária do empregado a plano de dispensa
incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas
as parcelas objeto do contrato de emprego, caso essa
condição tenha constado expressamente do acordo
coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais
instrumentos celebrados com o empregado’” (STF,
Pleno, RE 590.415/SC, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe
29.05.2015)11.

Igualmente, julgando Ação Direta de Inconstitucionalidade, a


Corte Suprema atribuiu constitucionalidade à Lei nº 11.901/2009, que
permite a jornada de 12 horas de trabalho, por 36 horas de descanso,
para os bombeiros civis. Na oportunidade, por maioria, os ministros
entenderam que a norma  não viola preceitos constitucionais, pois,

11  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 590415. Relator Ministro Luis Roberto Barroso;
Órgão julgador: Plenário; Data de julgamento: 30.04.2015; Data de publicação:
29.05.2015.

419
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

além de não ser lesiva à sua saúde ou a regras de medicina e segurança


do trabalho, é mais favorável ao trabalhador12.
Ao examinar a supressão das horas in itinere por meio de
acordo coletivo de trabalho, no qual o Tribunal de origem entendeu
pela invalidade da norma coletiva, uma vez que o direito às horas in
itinere seria indisponível em razão do que dispõe o art. 58, § 2º, da
CLT, decidiu o Supremo Tribunal Federal, no RE 895.759, pela sua
validade, como se observa no seguinte acórdão:

EMENTA : TRABALHISTA. AGRAVOS REGIMENTAIS


NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ACORDO COLETI-
VO DE TRABALHO. TRANSAÇÃO DO CÔMPUTO DAS
HORAS IN ITINERE NA JORNADA DIÁRIA DE TRABA-
LHO . CONCESSÃO DE VANTAGENS DE NATUREZA
PECUNIÁRIA E DE OUTRAS UTILIDADES. VALIDADE. 1.
Conforme assentado pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal no julgamento do RE 590.415 (Rel. Min. ROBER-
TO BARROSO, DJe de 29/5/2015, Tema 152), a Consti-
tuição Federal “reconheceu as convenções e os acordos
coletivos como instrumentos legítimos de prevenção e
de autocomposição de conflitos trabalhistas”, tornando
explícita inclusive “a possibilidade desses instrumentos
para a redução de direitos trabalhistas”. Ainda segundo
esse precedente, as normas coletivas de trabalho
podem prevalecer sobre “o padrão geral heterônomo,
mesmo que sejam restritivas dos direitos dos traba-
lhadores, desde que não transacionem setorialmente
parcelas justrabalhistas de indisponibilidade absoluta”.
2. É válida norma coletiva por meio da qual categoria
de trabalhadores transaciona o direito ao cômputo das
horas in itinere na jornada diária de trabalho em troca

12  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 895.759/PE. Relator Ministro Teori Zavascki;
Órgão julgador: 2ª Turma; Data de julgamento: 08.12.2016; Data de publicação:
22.05.2017.

420
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

da concessão de vantagens de natureza pecuniária e de


outras utilidades13.

No dia 16 de abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal, por


maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ADI nº 3961,
firmando a seguinte tese:

1 - A Lei nº 11.442/2007 é constitucional, uma vez que


a Constituição não veda a terceirização, de atividade-
-meio ou fim. 2 - O prazo prescricional estabelecido
no art. 18 da Lei nº 11.442/2007 é válido porque não
se trata de créditos resultantes de relação de trabalho,
mas de relação comercial, não incidindo na hipótese o
art. 7º, XXIX, CF. 3 - Uma vez preenchidos os requisitos
dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada a
relação comercial de natureza civil e afastada a confi-
guração de vínculo trabalhista”

Almejava-se na referida Ação Direta de Inconstitucionali-


dade a anulação dos artigos 5º, caput e parágrafo único, e 18 da lei.
A Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANTP) e a
Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Ana-
matra), autoras da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3961,
sustentavam que a norma esvazia a competência da Justiça do Tra-
balho ao determinar que, mesmo quando for inequívoca a natureza
empregatícia do vínculo, deve prevalecer artificialmente a natureza
comercial predefinida.
Seguindo o precedente estabelecido a partir do julgamento
da ADPF nº 324, que permite a terceirização em atividade-fim,
decidiu-se pela constitucionalidade dos dispositivos guerreados e
a Corte Suprema foi além, para afirmar que “uma vez preenchidos

13  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3961/


DF. Relator Ministro Luis Roberto Barroso; Órgão julgador: Plenário; Data de julgamento:
16.04.2020; Data de publicação: 05.06.2020.

421
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

os requisitos dispostos na Lei nº 11.442/2007, estará configurada


a relação comercial de natureza civil e afastada a configuração de
vínculo trabalhista”. É dizer, basta, para a Excelsa Corte, que os requi-
sitos formais previstos na lei sejam preenchidos, ignorando-se que
há elevado número de fraudes no cotidiano trabalhista, envolvendo
a terceirização, e que por conta disso, há um grande princípio que
norteia o Direito do Trabalho e é sempre utilizado como caminho
hermenêutico: o da primazia da realidade.
Nessa ordem de análise, muito antes da Lei n. 13.467/2017
colapsar a possibilidade de acesso às horas in itinere, permitir o regi-
me compensatório intitulado 12x36 de forma ampla, sem mediação
sindical e à revelia da autorização do extinto Ministério do Trabalho
e Emprego, ainda que haja atividade insalubre, e do escancaramento
do menoscabo aos direitos constitucionais do trabalhador, estatuí-
do pela permissão do assim chamado “negociado sobre legislado”, a
Suprema Corte brasileira já havia flexibilizado as normas trabalhis-
tas nessa mesma diretriz e agora vai exatamente no mesmo sentido
do Estado-Legislador, ao permitir, de forma retroativa à referida
Lei, a terceirização em atividade-fim, ao argumento positivista de
inexistência de Lei a proibir a prática empresarial, olvidando-se a
Corte de todo o aparato constitucional que atribui normatividade
ao valor social do trabalho, que vincula a livre iniciativa (artigo 1º, IV)
e que toda a ordem econômica (artigo 170) é fundada na valorização
do trabalho humano, para após ser observada a livre iniciativa e que
a primeira tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social e guiada pelo princípio da função social
da propriedade.
É nesse sentido que Bocorny, reflete:

A valorização do trabalho humano, esclareça-se, não


somente importa em criar medidas de proteção ao
trabalhador, como foi destacado nos Estados Sociais.

422
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

[...] o grande avanço do significado do conceito que


se deu no último século foi no sentido de se admitir o
trabalho (e o trabalhador) como principal agente de
transformação da economia e meio de inserção social,
por isso, não pode ser excluído do debate relativo às
mudanças das estruturas de uma sociedade. Assim, o
capital deixa de ser o centro dos estudos econômicos,
devendo voltar-se para o aspecto, talvez subjetivo, da
força produtiva humana14.

Nunca é demais recordar que o valor social do trabalho, na


perspectiva da ordem objetiva em que os valores foram moderna-
mente assimilados pelo Estado constitucional, espraia seus efeitos
para entidades públicas e privadas, vinculando todos os Poderes da
República, máxime o Poder Judiciário, ao qual cabe direcionar seus
julgados de acordo com o valor previsto constitucionalmente, maxi-
mizando o seu conteúdo e dando-lhe concretude por meio de ações
que possam dignificar o trabalho e o trabalhador15.
Na importante votação da ADPF 324, há um trecho do voto
do Ministro Gilmar Mendes que merece comentário, quando Sua
Excelência afirma que o C. Tribunal Superior do Trabalho, por meio
da súmula n. 331, inaugura “uma Era Lochner às avessas”16.
A assim intitulada Lochner Era foi um período iniciado com
um fato inusitado, que modernamente, certamente, acarretaria

14  BOCORNY, L. R. A valorização do trabalho humano no Estado Democrático de


Direito. Porto Alegre: SAFE, 2003. p. 42.
15  Na feliz síntese de Jailton Araújo: “o valor social do trabalho detém uma acepção
que deve nortear a atuação das instituições público-jurídicas, estabelecendo metas
implícitas e/ou expressas que tenham como objetivo culminar com a imperiosidade
de realização do trabalho como instrumento de emancipação e cidadania. Dessa
forma, qualquer ação contrária ao valor social do trabalho é ilegítima, uma vez que
impede a realização dos valores que formatam a sua centralidade” (ARAÚJO, Jailton
Macena de. Valor social do trabalho na constituição federal de 1988: instrumento
de promoção de cidadania e de resistência à precarização, in.: Revista de Direito
Brasileira: São Paulo, SP , v. 16, n. 7, p. 115 – 134, Jan.Abr. 2017).
16  Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=TP&docID=750738975. Acesso em: 22 out. 2020.

423
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

pouca atenção do Judiciário. No alvorecer do Século XX, o Estado de


Nova York, intentando proteger a saúde dos trabalhadores padeiros,
editou uma lei limitando a jornada destes em dez horas por dia ou
módulo semanal de sessenta horas, considerando-se o repouso aos
domingos. No julgamento por maioria, vencidos os juízes Harlan
e Holmes, a Suprema Corte decidiu pela inconstitucionalidade da
lei, por considerá-la uma intervenção arbitrária e desnecessária na
liberdade contratual decorrente da relação entre empregado e em-
pregador, liberdade essa protegida pela Emenda n.º XIV.
A referida Era Lochner, que durou de 1905 a 1937, é um perío-
do na história legal americana, no qual a Suprema Corte dos Estados
Unidos majoritariamente invalidou todas as normas que almejavam
regulamentar a atividade econômica, estabelecendo limitações a
determinadas condições de trabalho, como a fixação de salários e da
jornada, exaltando o direito à liberdade, que decorre da cláusula do
devido processo legal.
Ora, observando tão somente as decisões ao norte indicadas,
é fácil perceber que sim, estamos na nossa Era Lochner17, e esta não
foi implantada pelo C. Tribunal Superior do Trabalho, mas, com todo
respeito, pelo C. Supremo Tribunal Federal, que, no que toca aos direi-
tos dos trabalhadores, tem se direcionado no sentido extremamente
liberal, sempre recordando que o Estado-Juiz não pode interferir nas
relações de trabalho.
O Ministro Barroso, relator da ADPF 324, que teve seu voto
seguido por outros seis Ministros, pontuou que a Constituição “não
impõe a adoção de um modelo de produção específico, não impede
o desenvolvimento de estratégias empresariais flexíveis, tampouco
veda a terceirização”. Mas, “a jurisprudência trabalhista sobre o tema

17  Idêntica análise já foi elaborada de forma mais aprofundada em: VALE, Silvia
Teixeira do. As decisões trabalhistas no STF: a nossa Era Lochner. In: Revista do TST, vol.
86, nº 2, abr/jun. 2020, p. 362-382.

424
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

tem sido oscilante e não estabelece critérios e condições claras e


objetivas, que permitam sua adoção com segurança”18.
Saliente-se, no entanto, que o C. Tribunal Superior do Trabalho
tem desenvolvido em sua jurisprudência, balizas seguras para a identi-
ficação da atividade finalística de um ator econômico. Atividade-fim é
aquela que pode ser visualizada como integrada à dinâmica produtiva
do tomador dos serviços (RR 267-89.2013.5.06.0012, de relatoria do
Ministro José Roberto Freire Pimenta, julgado em 09/12/2015),  in-
trínseca ao seu objeto social  (E-RR 1320-60.2012.5.06.0006, de
relatoria do Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, julgado em
03/12/2015)  e, por isso mesmo, indispensável à consecução des-
te  (AIRR 541-27.2010.5.01.0035, de relatoria do Ministro Luiz Phili-
ppe Vieira de Mello Filho, julgado em 25/06/2014),  abrangendo os
serviços e funções nos quais se consuma a vocação do negócio, bem
como todas aquelas atividades relacionadas com etapas (prévias
ou posteriores) essenciais ao sucesso global da atividade econô-
mica  (RR 85740-44.2001.5.04.0004, de relatoria do Ministro Lelio
Bentes Corrêa, julgado em 03/08/2011), compondo a essência da di-
nâmica empresarial do tomador de serviços e contribuindo inclusive
para a definição de seu posicionamento e classificação no contexto
empresarial e econômico  (AIRR 1829-47.2013.5.03.0003, de relato-
ria do Ministro Mauricio Godinho Delgado, julgado em 24/09/2014).
Também assinalou Sua Excelência, que “a terceirização não
enseja, por si só, precarização do trabalho, violação da dignidade do
trabalhador ou desrespeito a direitos previdenciários. É o exercício
abusivo da sua contratação que pode produzir tais violações”.
Não obstante tais ponderações, por ocasião do parco debate
estabelecido na época em que rapidamente tramitava o projeto que
redundou na Lei nº 13.467/2017, o DIEESE emitiu nota técnica sobre

18  Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI286649,31047-STF+julg


a+constitucional+terceirizacao+de+atividadefim. Acesso em: 22 out. 2020.

425
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

os impactos da terceirização no Brasil. Em síntese e considerando


somente o ano de 2014, os dados obtidos revelam que:

A taxa de rotatividade descontada é duas vezes maior


nas atividades tipicamente terceirizadas (57,7%, contra
28,8% nas atividades tipicamente contratantes); nas ati-
vidades tipicamente terceirizadas, 44,1% dos vínculos de
trabalho foram contratados no mesmo ano, enquanto
nas tipicamente contratantes, o percentual foi de 29,3%;
85,9% dos vínculos nas atividades tipicamente tercei-
rizadas tinham jornada contratada entre 41 e 44 horas
semanais. Já nos setores tipicamente contratantes, a
proporção era de 61,6%; os salários pagos nas atividades
tipicamente terceirizadas fora da região Sudeste eram
menores, o que reforça as desigualdades regionais; o
percentual de afastamentos por acidentes de trabalho
típicos nas atividades tipicamente terceirizadas é maior
do que nas atividades tipicamente contratantes - 9,6%
contra 6,1%; os salários nas atividades tipicamente
terceirizadas eram, em média, 23,4% menor do que nas
atividades tipicamente contratantes (R$ 2.011 contra R$
2.639) 19-20.

É dizer, a terceirização, mesmo nos moldes permitidos


pela súmula nº 331 do C. Tribunal Superior do Trabalho, acarretava
extremada desigualdade regional, ofensa ao princípio da isonomia,
em relação aos empregados contratados diretamente pelo tomador
de serviços e os que lhe prestam serviços de forma intermediada. A
nota técnica igualmente demonstra o que já se constata empirica-

19  Disponível em: https://www.dieese.org.br/notatecnica/2017/notaTec172Terceiriza-


cao.pdf. Acesso em 20 out. 2020.
20  Em seu voto, o Ministro Fux refuta o referido relatório e ainda acrescenta ao final: longe
de “precarizar”, “reificar” ou prejudicar os empregados, a terceirização está associada
a inegáveis benefícios aos trabalhadores em geral, como a redução do desemprego,
diminuição do turnover, crescimento econômico e aumento de salários”. Disponível
em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750738975.
Acesso em: 20 out. 2020.

426
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

mente: os empregados terceirizados trabalham mais, ganham menos


e sofrem mais acidentes de trabalho. Ou seja, ao revés do quanto
pontuado pelo Ministro Barroso21, a terceirização é sim uma forma
de precarização do trabalho humano e isso é constatado estatisti-
camente em um estudo que foi afastado no referido julgado, por se
desacreditar na metodologia utilizada.
Curiosamente, o Ministro Fux em seu voto, retira o crédito
tanto da pesquisa do DIEESE, quanto dos dados apontados pelo
IPEA, mas acolhe uma pesquisa realizada pela FGV, na qual constata-
-se ganhos maiores para os empregados terceirizados, embora não
se aponte a metodologia utilizada para se chegar a tal resultado22.

21  Há, inclusive, uma passagem muito curiosa no voto do Ministro Barroso, que, com
todas as vênias possíveis, caminham no sentido da boa apuração dos fatos que,
sequer, figuram como matéria apta a ensejar análise de uma Corte constitucional:
“Eu estive recentemente no aeroporto de Guarulhos, um funcionário me atendeu e
me contou a vida dele, e disse: “Eu trabalhava para a empresa tal, que passou por
uma crise financeira. Eu tive sorte e fui contratado por uma empresa terceirizada do
aeroporto. E agora a minha antiga empresa está em dificuldade, mas eu presto serviço
a diferentes empresas. E, portanto, para mim, foi melhor estar numa terceirizada e
poder circular em diferentes empresas do que ter permanecido na minha empresa
antiga e ter sido demitido. Agora eu estaria sem emprego algum.” Portanto, acho que
esta lógica de que a terceirização vai prejudicar a empregabilidade é uma lógica que
não tem sustentação econômica”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 324/ DF. Relator Ministro Luis Roberto Barroso; Órgão julgador:
Plenário; Data de julgamento: 30.08.2018; Data de publicação: 22.02.2019.
22  Eis o extrato do voto: “Apreciando o mercado brasileiro, estudo recente elaborado
pela Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGVEESP)
estimou o diferencial de salários entre a mão de obra terceirizada e os trabalhadores
contratados diretamente pelas empresas tomadoras de serviços. A pesquisa constatou
que “características não observáveis exercem um papel relevante na seleção e na
determinação da remuneração dos terceirizados”, motivo pelo qual o comparativo
deve levar em consideração não apenas outras características observáveis dos
trabalhadores e das firmas além da terceirização (v. g., idade, escolaridade e ramo de
atividade), mas também o “efeito fixo dos indivíduos” (v. g., motivação, dedicação,
capacidade de comunicação e maturidade emocional). Uma ênfase semelhante a
características não observáveis como fatores determinantes para explicar diferenças
salariais já era proposta por Gary Becker (BECKER, Gary S. Economic Theory. 2. printing
(2008, Transaction Publishers, New Brunswick, NJ). Original: New York: Knopf, 1971. p.
177). Apurou-se no estudo brasileiro, por exemplo, que “os trabalhadores das atividades
de Segurança/vigilância recebem, em média, 5% a mais quando são terceirizados”,
bem como que “ocupações de alta qualificação e que necessitam de acúmulo de

427
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

O Relator da ADPF nº 324-DF, Ministro Barroso, também


asseverou em seu voto que “em um momento em que há 13 milhões
de desempregados e 37 milhões de trabalhadores na informalidade,
é preciso considerar as opções disponíveis sem preconceitos ideoló-
gicos ou apego a dogmas”.
É isso, caro leitor, cara leitora, a Constituição Federal de 1988
foi reduzida a “preconceitos ideológicos ou apego a dogmas”?
No julgamento da referida ação não se analisou o conteúdo
ou sequer a força normativa do valor social do trabalho. Os sete
Ministros indicados ao norte apenas focaram os seus respectivos
votos na ofensa à livre iniciativa e na ausência de Lei ou previsão
constitucional que proibisse a terceirização em atividade-fim.
Lamentavelmente, não foram analisados seriamente os ar-
gumentos sempre trazidos pela doutrina trabalhista, no sentido de
que a terceirização em atividade-fim precariza o trabalho humano,
conduzindo-o à mera mercadoria e custo, que deve ser diminuído
pelas empresas, para que estas possam se transformar em corpora-
ções mais competitivas. O que se lê nos votos, com todas as vênias,
é a utilização de argumentos metaconstitucionais, como o “desem-
prego”, os “empregos que estão disponíveis”, a “conversa com algum
empregado terceirizado” e a “economia”.
Também não se analisou o conteúdo protetivo previsto na
Carta Política de 1988, que em seu artigo 7º, caput estabelece uma
marcha progressista de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais.
Ao revés disso, permitiu-se que a venda da força de trabalho huma-

capital humano específico, como P&D [pesquisa e desenvolvimento] e TI [tecnologia


da informação], pagam salários maiores aos terceirizados”. Cogitou-se também ser
“possível que [em] serviços nos quais os salários dos terceirizados são menores, o nível
do emprego seja maior exatamente porque o ‘preço’ (salário) é menor” (ZYLBERSTAJN,
Hélio et alii . “Diferencial de salários da mão de obra terceirizada no Brasil”. In : CMICRO
- Nº32, Working Paper Series, 07 de agosto de 2015, FGV-EESP)”. Disponível em: http://
redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=750738975. Acesso em:
20 out. 2020.

428
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

no ficasse ao sabor da lógica de mercado, em franco menoscabo à


diretriz do Estado Social e exaltação aos argumentos que ficariam
muito bem empregados em um cenário positivista e de um Estado
sob a égide liberal.
O argumento de que a liberação da terceirização irrestrita ge-
rará mais empregos, posto que estes são os disponíveis no mercado,
gera uma falsa afirmação de que realmente se deseja a diminuição
do desemprego. Isso porque não há qualquer pesquisa assegurando
que a lógica de menos direitos ensejará mais postos de trabalho, o
que parece até óbvio, já que ao mínimo sinal de crise econômica, nor-
malmente se pensa como primeira solução a diminuição de postos
de trabalho e isso é estimulado quando as cessações contratuais se
tornam mais baratas.
Ao revés do quanto dito e pretendido pelo discurso de “menos
direitos gerarão mais empregos”, segundo a Organização Internacio-
nal do Trabalho, em decorrência da eclosão da crise econômica e da
recessão das suas economias, muitos países introduziram medidas de
diminuição da proteção tanto do trabalho formal, quanto do trabalho
informal e flexibilizado, com o objetivo de alavancar o crescimento
econômico, no entanto, tais medidas não obtiveram êxito, e contribu-
íram para o aumento do trabalho vulnerável, em condições precárias.

A análise do relatório da relação entre a regulamentação


do trabalho e os indicadores-chave do mercado de
trabalho, como o desemprego, sugere, no entanto, que a
redução da proteção dos trabalhadores não se traduziu
na diminuição do desemprego. Na verdade, as con-
clusões deste relatório sugerem que as mudanças mal
concebidas que enfraquecem a legislação de proteção
do emprego muito provavelmente serão contraprodu-
centes para o emprego e a participação no mercado de
trabalho, tanto a curto como a longo prazo23.

23  OIT. Perspectivas sociais e de emprego no mundo- mudança na modalidade


de emprego-sumário executivo. Geneva, 2015. 8 p. Disponível em: <http://www.ilo.

429
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

A última Reforma Trabalhista brasileira, operada em 2017,


liberou irrestritamente a terceirização, e tal medida era apontada
como uma realidade inevitável, para que as empresas locais pudessem
se adaptar ao padrão internacional e, assim, se tornar mais competi-
tivas. No entanto, o resultado de tal medida foi inverso ao pretendi-
do, vez que o desemprego, além de não diminuir, ainda aumentou24
(isso antes do período pandêmico, é bom frisar), demonstrando-se
estatisticamente que a flexibilização da proteção trabalhista não é
capaz, por si só, de acarretar mais empregabilidade.

3. A INSEGURANÇA JURÍDICA CAUSADA A PARTIR DA


DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Argumentou-se na sessão de julgamento da ADPF nº 324, que


os critérios estabelecidos pela súmula nº 331 do C. Tribunal Superior
do Trabalho eram vacilantes, mas a decisão da Corte Suprema não
trouxe mais segurança jurídica, pois desde o dia 30/08/2018 o Su-
premo Tribunal Federal fixou a tese alhures indicada, mas o acórdão
somente foi publicado em 22 de fevereiro de 2019.
O Supremo Tribunal Federal, até o fechamento deste ensaio,
ainda não havia se manifestado formalmente sobre a modulação dos
efeitos da decisão. Aliás, sequer a decisão em relação aos embargos
de declaração foi proferida. Contudo, a decisão tem efeito vinculante
e se aplica imediatamente a todos os processos em trâmite na Justiça
do Trabalho.
Veja-se que os artigos 489, § 1º, IV e 927 do Código de Proces-
so Civil não deixam alternativa aos magistrados e tribunais inferiores,

org/wcmsp5/groups/public/---dgreports/---dcomm/---publ/documents/publication/
wcms_369023.pdf>. Acesso em: 01 out. 2020.
24  https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/02/27/desemprego-sobe-para-12-
em-janeiro-diz-ibge.ghtml. Acesso em 01 out. 2020.

430
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

senão seguir as decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Federal


em controle concentrado de constitucionalidade25.
A questão agora é saber se haverá ou não modulação de
efeitos dessa decisão e se a suposta modulação poderá ser realizada
por meio de embargos de declaração26. A modulação de efeitos de
decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal é facultativa e
mais comumente discutida em questões fiscais27, nas quais se aponta
a existência de conflito entre a Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o
processo e o julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e
da ação declaratória de constitucionalidade, e o Código de Processo
Civil de 2015.
Enquanto o artigo 27 da Lei nº 9.868/9928 exige quórum qua-
lificado  (maioria de 2/3 dos membros), o Código de Processo Civil
nada dispõe a esse respeito. Assim, é possível sustentar que o silêncio
do Código de Processo Civil neste particular não deve ser entendido
como uma concordância com a Lei nº  9.868/99, mas sim como um
sinal de superação da lei anterior e que, agora, o quórum qualificado
é desnecessário nessa questão.
A verdade é que, embora o Supremo Tribunal já tenha debati-
do o tema diversas vezes, até o momento inexiste uma decisão clara

25  Art. 489, § 1º, VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou


precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso
em julgamento ou a superação do entendimento.
Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade.
26  Sobre essa possibilidade, o esclarecedor artigo de Ravi Peixoto, disponível em:
https://www.conjur.com.br/2017-abr-15/ravi-peixoto-stf-modular-efeitos-embargos-
declaracao. Acesso em: 01 out. 2020.
27  SCAFF, Fernando Facury. Modulação do PIS/Cofins e o desrespeito aos contribuintes
litigantes. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-abr-10/justica-tributaria-
modulacao-piscofins-desrespeito-aos-contribuintes-litigantes. Acesso em 01 out. 2020.
28  Lei nº 9.868/99, art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo,
e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social,
poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros,
restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir
de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

431
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

e objetiva sobre o quórum necessário para a modulação de efeitos


de uma decisão que versa sobre constitucionalidade de lei ou atos
normativos.

4. O DISTINGUISHING

Uma outra indagação que se obtém a partir da fixação da


tese no julgamento da ADPF nº 324-DF, diz respeito aos limites da
terceirização em atividade-fim. Ou seja, se é possível às empresas
brasileiras estabelecer qualquer tipo de organização e divisão do
trabalho humano, ainda há alguma restrição a partir do Ordenamen-
to Jurídico, tendo-se em conta unicamente toda a ratio decidendi
utilizada para se chegar à fixação da tese?
A técnica do  distinguishing consiste em o juiz se recusar a
seguir precedente que não se adequa ao caso concreto e afastar o
efeito vinculante característico dos precedentes no modelo estabe-
lecido a partir do § 1º do artigo 489, VI, CPC/2015.
Tendo-se a fixação da tese no sentido de que “é lícita a
terceirização de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se con-
figurando relação de emprego entre a contratante e o empregado
da contratada”, cuja ratio decidendi utilizada para todos os casos
anteriores à Lei n. 13.467/2017, foi a ausência de lei anterior proibin-
do a terceirização em atividade-fim, bem assim o princípio da livre
iniciativa ou liberdade contratual, extraído a partir da Constituição
Federal de 1988, ainda assim é possível a distinção para afastar a
aplicação da tese fixada.
Entende-se, nessa ordem de ideias, que o único distinguishing
possível é a existência de subordinação jurídica clássica, heterodire-
ção, subordinação subjetiva29.

29  No dizer de Lorena Vasconcelos Porto, “a subordinação, em sua matriz clássica,


corresponde à submissão do trabalhador a ordens patronais precisas, vinculantes,
‘capilares’, penetrantes, sobre o modo de desenvolver a sua prestação, e a controles

432
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

O que ora se defende encontra respaldo nos seguintes arestos:

2 - TERCEIRIZAÇÃO. VÍNCULO DE EMPREGO COM


O TOMADOR DOS SERVIÇOS. SUBORDINAÇÃO.
FRAUDE. ILICITUDE. REPERCUSSÃO GERAL. RE
958252. DISTINGUISHING. Todavia, admite-se a
aplicação do distinguishing quanto à tese fixada no
julgamento proferido pelo STF, quando, na análise do
caso concreto, verifica-se a existência de subordina-
ção direta do empregado terceirizado com a empresa
tomadora dos serviços, situação que autoriza o reco-
nhecimento do vínculo empregatício direto com esta,
como ocorre no caso em tela. Na hipótese dos autos,
restou demonstrada a subordinação direta do recla-
mante aos prepostos da primeira reclamada, OI S.A, o
que atrai como consequência a formação de vínculo
empregatício diretamente com este, tomadora e real
empregadora, devendo o reclamante ser enquadrado
na categoria profissional correspondente. Desse
modo, constatada fraude na aplicação da legislação
trabalhista, não em razão do labor na atividade-fim
do tomador dos serviços, mas pela subordinação do
empregado terceirizado ao tomador dos serviços,
impõe-se reconhecer a ilicitude da terceirização
perpetrada pelas reclamadas.

Assim, correto o reconhecimento do vínculo empregatí-


cio com a OI S.A, com enquadramento do reclamante na
categoria respectiva, fazendo jus a todos os benefícios
estendidos a tal categoria profissional, conforme deci-
diu a Corte de origem. Recurso de revista não conhecido.

contínuos sobre o seu respeito, além da aplicação de sanções disciplinares em caso de


descumprimento. É essa a acepção clássica ou tradicional do conceito, que podemos
sintetizar como a sua plena identificação com a ideia de uma forte heterodireção
patronal dos diversos aspectos da prestação laborativa obreira” (PORTO, Lorena
Vasconcelos. A subordinação no contrato de trabalho. Uma releitura necessária. São
Paulo: LTr, 2009. p. 43).

433
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

(proc.TST-RR-380-28.2012.5.04.0402, 2ª Turma, Rel.


Min. Delaíde Miranda Arantes, publ. 05/04/2019).

JUÍZO DE RETRATAÇÃO. AGRAVOS DE INSTRUMEN-


TO EM RECURSOS DE REVISTA DAS RECLAMADAS.
RITO SUMARÍSSIMO. JULGAMENTO ANTERIOR
PELA SEGUNDA TURMA DESTA CORTE. DEVO-
LUÇÃO PARA EVENTUAL EMISSÃO DE JUÍZO DE
RETRATAÇÃO (ART. 1.030, II, DO CPC/2015 E ART.
543-B, § 3º, DO CPC/1973). EMPRESA DE TELECO-
MUNICAÇÕES. LEI 9.472/1997. TERCEIRIZAÇÃO.
RECONHECIMENTO DO VÍNCULO DE EMPREGO.
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA COM A TOMADORA
DOS SERVIÇOS. DISTINGUISHING . 1. A possibilidade
de terceirização de forma ampla, nas atividades-meio
e atividades-fim das empresas, foi tema objeto da Ar-
guição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) 324 e do Recurso Extraordinário (RE) 958.252,
julgados pelo Supremo Tribunal Federal em 30/8/2018
e publicados no DJE em 6/9/2019 e 13/9/2019, respec-
tivamente. A Suprema Corte, em regime de repercussão
geral, consolidou a tese jurídica no sentido de que “ é
lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão
do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, indepen-
dentemente do objeto social das empresas envolvidas,
mantida a responsabilidade subsidiária da empresa
contratante “, afastando, assim, a configuração da
relação de emprego com o tomador dos serviços. 2.
Além disso, em 11/10/2018, no julgamento do Recurso
Extraordinário (RE) 791.932, com repercussão geral, o
Supremo Tribunal Federal, em acórdão publicado no
DJE de 6/3/2019 e transitado em julgado em 14/3/2019,
reafirmou o seu entendimento de que “é lícita a terceiri-
zação de toda e qualquer atividade, meio ou fim, não se
configurando relação de emprego entre a contratante
e o empregado da contratada” . Fixou, então, a tese ju-
rídica de que “é nula a decisão de órgão fracionário que
se recusa a aplicar o art. 94, II, da Lei 9.472/1997, sem

434
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

observar a cláusula de reserva de Plenário (CF, art. 97),


observado o artigo 949 do CPC” . 3. Assim, não se cogi-
ta mais da formação de vínculo de emprego direto com
a empresa tomadora de serviços sob o fundamento de
que houve terceirização de sua atividade-fim. Todavia,
remanesce a possibilidade de reconhecimento do vín-
culo de emprego quando comprovados os requisitos
do artigo 3º da CLT em relação à empresa tomadora de
serviços. Nessa circunstância, não haverá desrespeito
à decisão da Suprema Corte, pois evidenciada típica
relação de emprego nos moldes previstos na legislação
trabalhista. 4. No caso, o Tribunal Regional manteve
o vínculo de emprego com a Claro S.A. não apenas
porque as atividades desempenhadas pelo reclamante
enquadram-se nas atividades-fim da tomadora, mas
também porque ficaram configurados os requisitos
da relação de emprego em relação a ela (subordinação
direta). Dessa forma, a controvérsia não se enquadra
na tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal, razão
pela qual não se exerce o juízo de retratação previsto
no art. 1.030, II, do CPC/2015 (art. 543-B, § 3º, do
CPC/1973). Juízo de retratação não exercido” (AIRR-
1772-60.2012.5.03.0004, 2ª Turma, Relatora Ministra
Maria Helena Mallmann, DEJT 21/08/2020).

É necessário, no entanto, observar que ainda não há enten-


dimento consolidado do Órgão de cúpula da Justiça do Trabalho em
relação à possibilidade de distinção à tese fixada pelo C. Supremo Tri-
bunal Federal, mas igualmente é imperioso esclarecer que a existência
ou não de subordinação jurídica ou se será possível o acolhimento de
formas modernas de subordinação, é questão infraconstitucional e,
nesse sentido, será o C. Tribunal Superior do Trabalho o responsável
por fixar o que poderá ser considerado distinguishing.

435
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

5. QUESTÕES PROCESSUAIS RELEVANTES,


DECORRENTES DA FIXAÇÃO DA TESE NA ADPF
N. 324 E NO RE N. 958.252

Conforme já analisado ao norte, a ADPF e o recurso extra-


ordinário em epígrafe foram julgados no dia 30 de agosto de 2018,
com a fixação da tese pela licitude da terceirização em atividade-fim
antes da reforma trabalhista. Ocorre que, como a questão acerca da
proibição da terceirização em atividade-fim já havia sido pacificada
pelo C. Tribunal Superior do Trabalho desde 2003, muitos são os
processos ainda em trâmite na Justiça do Trabalho, em fase de co-
nhecimento e execução, acolhendo a ilegalidade da terceirização em
atividade-fim, o que tem acarretado muitas dúvidas dos profissionais
de Direito que militam na área trabalhista, sobre qual o instrumento
jurídico hábil para desconstituir o título executivo.
De saída, é preciso registrar que somente estarão aptos à
desconstituição os títulos executivos que se utilizaram da redação
da súmula n. 331 do TST para acolher a ilicitude da terceirização em
atividade-fim. É dizer, se a decisão condenatória não se utilizou da
referida súmula como ratio decidendi (acolhendo, por exemplo, a tese
de subordinação clássica), não será possível a sua desconstituição
com base na tese fixada pelo STF.
A dúvida persiste porque o artigo 525, § 1º, III do CPC, quando
possibilita a impugnação ao título executivo, estatui que o executado
poderá alegar inexequibilidade do título.
Por seu turno, o §12 do mesmo dispositivo legal assevera que:

Para efeito do disposto no inciso III do § 1º deste artigo,


considera-se também inexigível a obrigação reconhe-
cida em título executivo judicial fundado em lei ou ato
normativo considerado inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou inter-
pretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo

436
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

Tribunal Federal como incompatível com a Constituição


Federal , em controle de constitucionalidade concentra-
do ou difuso30.

Sendo o título judicial inexigível, por força de decisão do STF,


a dissolução deste não é automática, sendo necessária a interposição
de recurso próprio ou ação rescisória, conforme se extrai da tese já
fixada pela Excelsa Corte, no tema n. 733 da tabela de repercussão
geral, segundo a qual:

A decisão do Supremo Tribunal Federal declarando


a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade de
preceito normativo não produz a automática reforma
ou rescisão das decisões anteriores que tenham ado-
tado entendimento diferente. Para que tal ocorra, será
indispensável a interposição de recurso próprio ou, se
for o caso, a propositura de ação rescisória própria, nos
termos do art. 485 do CPC, observado o respectivo
prazo decadencial (art. 495).

Nessa ordem de ideias, forçoso é concluir que não caberia ex-


ceção de pré-executividade para desconstituir decisão condenatória

30  O dispositivo já teve a sua constitucionalidade declarada no RE 611503, que


estimulou o tema 360 da tabela de repercussão geral, com a fixação da seguinte tese:
“São constitucionais as disposições normativas do parágrafo único do art. 741 do CPC,
do § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como os correspondentes dispositivos do
CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, o art. 535, § 5º. São dispositivos que, buscando
harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram
agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia rescisória de
sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado
nas hipóteses em que (a) a sentença exequenda esteja fundada em norma
reconhecidamente inconstitucional - seja por aplicar norma inconstitucional, seja por
aplicar norma em situação ou com um sentido inconstitucionais; ou (b) a sentença
exequenda tenha deixado de aplicar norma reconhecidamente constitucional; e
(c) desde que, em qualquer dos casos, o reconhecimento dessa constitucionalidade
ou a inconstitucionalidade tenha decorrido de julgamento do STF realizado em data
anterior ao trânsito em julgado da sentença exequenda”.

437
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

com trânsito em julgado31. Isso porque o referido instrumento proces-


sual não é recurso e, muito menos, ação rescisória. Ademais, acolher
um incidente em execução como meio apto a desconstituir a coisa
julgada, que é garantia constitucional, é extremamente temeroso.
Acrescente-se ao argumento, que as decisões proferidas em
ambos, recurso extraordinário e ação de descumprimento de pre-
ceito fundamental, ainda pendem de análise dos diversos embargos
declaratórios, realidade que torna ainda mais perigoso o direciona-
mento de se desconstituir coisa julgada por mera ação incidental.
A possibilidade de ação rescisória para solucionar a pro-
blemática proposta encontra assento legal no artigo 525, § 15, se
a decisão do STF tiver sido proferida após o trânsito em julgado
da decisão exequenda. Mas aí reside um pequeno detalhe: o prazo
para o ajuizamento da ação rescisória ainda não teve início, já que
o referido dispositivo estatui que o prazo será contado do trânsito
em julgado da decisão proferida pelo STF, ainda não observado até o
fechamento desta edição.
Recorde-se, ainda assim, que o manejo da ação rescisória não
será possível se a decisão condenatória tiver transitado em julgado
antes da edição do CPC de 2015, que passou a prever tal possibilidade
de desfazimento da coisa julgada, fundada em lei ou ato normativo
considerado inconstitucional pelo STF, ou fundada em aplicação ou
interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo Supremo Tribunal
Federal como incompatível com a Constituição Federal de 1988, em
controle de constitucionalidade concentrado ou difuso.
Por fim, se a inexigibilidade do título se dá quando o posicio-
namento do STF é publicado antes do trânsito em julgado da decisão
(art. 525, § 14 do CPC/15), nesse caso caberá embargos à execução,

31  Em sentido oposto, defendem os talentosos Iuri Pinheiro e Raphael Miziara, o


cabimento da exceção de pré-exetutividade (PINHEIRO, Iuri; MIZIARA, Raphael.
Manual da Terceirização: Teoria e Prática, 2.ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Editora
JusPodivm, 2020. p. 238).

438
TERCEIRIZAÇÃO EM ATIVIDADE-FIM: A DISCUSSÃO AINDA SEM FIM

na forma do artigo 884, § 5º da CLT. A interpretação do referido dis-


positivo, que relativiza decisão judicial transitada em julgado, deve
abranger apenas casos em que a sentença é fundamentada em norma
considerada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, confor-
me entendimento sedimentado no RR-87500-50.2007.5.15.0153.

6. CONCLUSÃO

Diante da análise dos discursos empregados pela Excelsa cor-


te na fixação da tese que passou a permitir a terceirização, é possível
concluir, com todas as vênias, que os argumentos utilizados pelos
Senhores Ministros externam racionalidade eminentemente liberal
e apego à legalidade, diretriz hermenêutica esta que não se coaduna
com a jurisprudência da Corte constitucional no que toca à eficácia
dos direitos fundamentais.
A despeito da tese já fixada, ainda sem modulação dos efeitos
até o fechamento deste ensaio, é possível observar uma distinção
viável para os casos concretos, constituída na existência da subordi-
nação clássica, a ser analisada em cada caso submetido a exame.
Por fim, em relação às decisões condenatórias, é possível o
ajuizamento de ação rescisória - cujo prazo bienal decadencial sequer
começou -, recurso, ou embargos à execução, face à inexigibilidade
do título judicial.

REFERÊNCIAS

ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Direitos sociais são exigíveis. Trad.


Luis Carlos Stephanov, Porto Alegre: Ed. Dom Quixote, 2011.

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da


Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.

ARAÚJO, Jailton Macena de. Valor social do trabalho na constituição federal de 1988:
instrumento de promoção de cidadania e de resistência à precarização, in.: Revista
de Direito Brasileira: São Paulo, SP , v. 16, n. 7, p. 115 – 134, Jan.Abr. 2017.

439
ESCOLA BAIANA DE DIREITO DO TRABALHO

BOCORNY, L. R. A valorização do trabalho humano no Estado Democrático de


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