Você está na página 1de 398

HORIZONTES DO DIREITO PÚBLICO

PEMBROKE COLLINS
EDITORIAL BOARD

PRESIDENT Felipe Dutra Asensi

MEMBERS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, Brazil)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Brazil)
Adriano Rosa (USU, Brazil)
Alberto Shinji Higa (Procuradoria Geral de Jundiaí, Brazil)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Brazil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, Brazil)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colombia)
Carlos Mourão (PGM, Brazil)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, Brazil)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Brazil)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Brazil)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Brazil)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Brazil)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, United States)
Elaine Teixeira Rabello (KIT, Netherlands)
Glaucia Ribeiro (UEA, Brazil)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Brazil)
Jonathan Regis (UNIVALI, Brazil)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura, Spain)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, Brazil)
Luciano Nascimento (UEPB, Brazil)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Brazil)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Brazil)
Marcia Cavalcanti (USU, Brazil)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Brazil)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Brazil)
Rogério Borba (UVA, Brazil)
Rosangela Tremel (JusCibernética, Brazil)
Roseni Pinheiro (UERJ, Brazil)
Sergio de Souza Salles (UCP, Brazil)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brazil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Brazil)
ORGANIZAÇÃO:
ORGANIZADORES
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA, GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, ROGERIO BORBA DA SILVA

DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE E EFETIVIDADE
HORIZONTES DO DIREITO
PÚBLICO

GRUP O M ULTIF O CO
Rio de Janeiro, 2019

DEERFIELD BEACH, FL – UNITED STATES


PEMBROKE COLLINS
2023
Copyright © 2023 | Arthur Bezerra de Souza Junior, Fernanda Cláudia Araújo da Silva,
Gabriel Vinícius Carmona Gonçalves (orgs.)

EDITORIAL PRESIDENCYFelipe Asensi


PUBLISHING Felipe Asensi
EDITORIAL COORDINATION Vanessa Abraim

PROOFREADING Pembroke Collins' Team

GRAPHIC PROJECT AND COVER Diniz Gomes

FORMATTING Diniz Gomes

PEMBROKE COLLINS
1191 E Newport Center Dr #103 - Deerfield Beach
FL 33442 - United States
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

ALL RIGHTS RESERVED

No part of this book can be used or reproduced by any means without this Publisher's written permission.

FINANCING

This book was financed by the International Council for Higher Studies in Law (CAED-Jus), by the
International Council for Higher Studies in Education (CAEduca) and by Pembroke Collins.

All books are submitted to the peer view process in double blind format by the Publisher and, in the case
Collection, also by the Editors.

H811

Horizontes do direito público / Arthur Bezerra de Souza Junior,


Fernanda Cláudia Araújo da Silva, Gabriel Vinícius Carmona
Gonçalves (org.). – Deerfield Beach, FL: Pembroke Collins, 2023.

398 p.

ISBN 979-8-88670-075-6

1. Direito público. 2. Direito privado. 3. Direitos sociais. I.


Souza Junior, Arthur Bezerra de (org.). II. Silva, Fernanda Cláudia
Araújo (org.). III. Gonçalves, Gabriel Vinícius Carmona (org.).

CDD 340

Librarian: Aneli Beloni


CRB7 049/21
SUMÁRIO

ARTIGOS 13

NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS E OS SEUS EFEITOS


COMPORTAMENTAIS NO DIREITO TRIBUTÁRIO BRASILEIRO  15
Ketlin de Araújo Souza
Gianfranco Faggin Mastro Andréa

A (IM)POSSIBILIDADE DE INCLUSÃO DE CRITÉRIOS AMBIENTAIS NA FASE


DE HABILITAÇÃO NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS BRASILEIRAS 34
Leonardo Carvalho Gusmão

PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS (PPPS): UMA ANÁLISE DOS PRINCIPAIS


ELEMENTOS DOS CONTRATOS DE CONCESSÃO DE PARCERIAS
PÚBLICO-PRIVADAS 53
Eduardo Lopes Machado

A INCONSTITUCIONALIDADE DA PRISÃO ESPECIAL PARA CIDADÃOS


QUE POSSUEM DIPLOMAS UNIVERSITÁRIOS 72
Joseph Murta Chalhoub

A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA: UMA BREVE ANÁLISE 85


Sabrina Durães Veloso Neto

ASPECTOS GERAIS DA CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917: BASE


DA CONSTRUÇÃO DO CONSTITUCIONALISMO SOCIAL LATINO-
AMERICANO (ESTADO SOCIAL) 102
Tiago Romano
A ECONOMIA COMPORTAMENTAL NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
SUPERAR A CRISE DO ESTADO NA ENTREGA DE SERVIÇOS E RESULTADOS 117
Isabella Nunes Borges

LICITAÇÕES SUSTENTÁVEIS: O DESAFIO NO MODELO BRASILEIRO 135


Yuri Alexander Nogueira Gomes Nascimento

A ASSIMETRIA DE INFORMAÇÕES E MECANISMOS ECONÔMICOS DE


APERFEIÇOAMENTO DO PROCESSO LICITATÓRIO 149
Yuri Alexander Nogueira Gomes Nascimento

A CONSTITUCIONALIDADE DO ENSINO DOMICILIAR NO BRASIL DIANTE


DOS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA FAMILIAR E LIBERDADE DE ENSINO 164
João Paulo Ferreira Silva

A ALOCAÇÃO DE RISCOS NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS: ANÁLISE DA


MATRIZ DE RISCO À LUZ DA LEI Nº 14.133/2021 181
Érika Capella Fernandes Sfeir
Jurema Maciel Saldanha
Monique Previero de Souza
Kelvin Nunes Pavaneli

O FENÔMENO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E SUAS REPERCUSSÕES


NO DIREITO 194
Ricardo Ribeiro de Souza

LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO E LEGITIMIDADE DO PROCESSO


ELEITORAL EM SISTEMAS DE VOTO OBRIGATÓRIO 214
Lucas de Souza Gimenes
Alvaro Luiz Carvalho da Cunha Junior

O MOVIMENTO PENDULAR DO FEDERALISMO BRASILEIRO:


CENTRALIZAÇÃO VERSUS DESCENTRALIZAÇÃO 227
Lucienne M. T. Cwikler Szajnbok

CONSENSUALIDADE NA IMPROBIDADE: REFLEXÕES SOBRE O ACORDO


DE NÃO PERSECUÇÃO CIVIL 242
Marcela Rodrigues Pavesi Lopes
A POSSIBILIDADE DE OFERECIMENTO DO ACORDO DE NÃO
PERSECUÇÃO PENAL AOS PROCESSOS INSTAURADOS ANTES DA
VIGÊNCIA DO PACOTE ANTICRIME 259
Felipe Argentino Ambrosio Alves

MARCOS REGULATÓRIOS PARA FORTALECIMENTO DA INDÚSTRIA DE


DEFESA BRASILEIRA 275
João Claudio Faria Machado

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE, SISTEMA DE FREIOS E


CONTRAPESOS E A JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA 288
Luiz Gustavo Santos Silva

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO NO EXERCÍCIO


DO PODER DE POLÍCIA  301
Grasiela Grosselli

A OBRIGATORIEDADE DO ESTADO NO FORNECIMENTO DE


MEDICAMENTOS SEM REGISTRO DA ANVISA (ANÁLISE DE TESES
FIRMADAS PELO STJ E STF) 320
Elaine Cristina Bezerra da Silva

O INTERESSE PÚBLICO NOS PEQUENOS NEGÓCIOS 349


Josué Edson Leite
Sabrina Durães Veloso Neto
Graciete Afonso Prioto de Castro
Dalton Max Fernandes de Oliveira

O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES E O REGIME JURÍDICO


EXTRAORDINÁRIO DA CRISE: A ADOÇÃO DE MEDIDAS E OBRIGAÇÕES
VIA DECRETOS E ATOS REGULAMENTARES EM INOBSERVÂNCIA AO
DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO E SUA EXTENSÃO NO CENÁRIO PÓS-
PANDEMIA 365
Larissa de Moura Guerra Almeida
RESUMOS 383

COMPLIANCE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E SUA APLICABILIDADE


COMO FERRAMENTA DE COMBATE ÀS FRALDES E À CORRUPÇÃO 385
Dejanair Alves Amorim
Maria Alyne dos Santos Silva
Rosy Anny Camilo Da Silva Araújo
Samila Sousa e Silva

IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS DAS CAIXAS DE ASSISTÊNCIA DOS ADVOGADOS 390


Matheus Chebli de Abreu
Pedro Treviso Rubio
Gustavo Rodrigues Sousa
CONSELHO CIENTÍFICO DO CAED-JUS

Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)


Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (Universidade Nove de Julho, Brasil)
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo (Universidade Federal
do Sul da Bahia, Brasil)
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano, Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Felipe Asensi (Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil)
Fernando Bentes (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas, Brasil)
Gunter Frankenberg (Johann Wolfgang Goethe-Universität —
Frankfurt am Main, Alemanha)
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)

9
Jose Buzanello (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo Rebouças dos Santos (Universidade Federal do Sul
da Bahia, Brasil)
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Paula Arévalo Mutiz (Fundación Universitária Los Libertadores,
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)
Santiago Polop (Universidad Nacional de Río Cuarto, Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
Tiago Gagliano (Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil)
Walkyria Chagas da Silva Santos (Universidade de Brasília, Brasil)

10
APRESENTAÇÃO — SOBRE O CAED-Jus

O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito


(CAED-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de aca-
dêmicos para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões inter-
disciplinares de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia parte
importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os par-
ticipantes por meio de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes di-
ferenciais:

• Abertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o


Direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações;
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso no Brasil (com ISBN),
com envio da versão e-book aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes por meio de ferramentas
via internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes;
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados.

11
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmicos


de alta qualidade no campo do Direito em nível nacional e internacional,
tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argentina, Portu-
gal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2023, o CAED-Jus organizou o seu tradicional Congresso In-
ternacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus 2023), que
ocorreu entre os dias 24 a 26 de maio e contou com 21 Grupos de Traba-
lho com mais de 479 artigos e resumos expandidos de 54 universidades e
29 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos trabalhos apre-
sentados ocorreu por meio do processo de peer review com double blind, o
que resultou na publicação dos 10 livros do evento.
Os coordenadores de GTs foram convertidos em organizadores dos
respectivos livros, ao passo que os trabalhos apresentados em GTs que não
formaram 18 trabalhos foram realocados noutro GT, conforme previsto
em edital específico.
Os coordenadores de GTs indicaram artigos para concorrerem ao
Prêmio CAED-Jus 2023. A Comissão Avaliadora foi composta pelas pro-
fessoras Daniela Lacerda Santos (Centro Universitário Arthur Sá Earp
Neto — UNIFASE), Renata Ferreira dos Santos (Universidade do Es-
tado do Amazonas — UEA) e Isabela Cristina de Miranda Gonçalves
(Universidade do Estado do Amazonas — UEA). O trabalho premiado
foi de autoria de Evandro Borges Martins Bisneto e Ana Elizabeth Neirão
Reymão, sob o título “A (ir)racionalidade neoliberal e a urgência do bem-
-estar social para uma retomada civilizatória”.
Esta publicação americana é financiada por recursos do Conselho In-
ternacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho In-
ternacional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora Pem-
broke Collins, todos sediados nos Estados Unidos, e cumpre os diversos
critérios de avaliação de livros com excelência acadêmica internacionais.

12
ARTIGOS

13
NORMAS TRIBUTÁRIAS
INDUTORAS E OS SEUS EFEITOS
COMPORTAMENTAIS NO DIREITO
TRIBUTÁRIO BRASILEIRO
Ketlin de Araújo Souza1
Gianfranco Faggin Mastro Andréa2

INTRODUÇÃO

O tributo se tornou a principal fonte de arrecadação de receitas para


o Estado, a partir do implemento do Estado Fiscal, sendo essa a sua função
basilar, inerente à existência do Estado. Ao lado desse aspecto de angaria-
ção de recursos financeiros para o custeio das funções sociais e reguladoras
do Estado, foram reconhecidos novos papéis fiscais, ao passo que se criou
o entendimento de que a tributação, por si só, gera efeitos sobre a econo-
mia que ultrapassam a singela arrecadação.
O reflexo da função indutora vinculada às normas tributárias é a in-
dução de comportamentos, tendo em vista que a tributação está atrelada

1 Bacharel em Direito pela Universidade Paulista. Advogada.


2 Doutorando e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Especialista em Direito Público. Professor universitário. Analista do Ministério
Público Federal.

15
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ao comportamento dos contribuintes e a incidência tributária é fator re-


velado pelas decisões dos agentes econômicos.
O presente estudo direciona-se à análise das normas tributárias in-
dutoras no plano do Sistema Tributário Nacional, tendo como contexto
um modelo de Estado direcionado ao desenvolvimento econômico como
propulsor do bem-estar social, em consonância com os ditames inaugura-
dos pela ordem constitucional de 1988. Os tributos não são utilizados tão
somente como fonte de abastecimento dos cofres públicos, mas também
desempenham outras funções capazes de influenciar de forma significativa
a economia e o comportamento dos cidadãos. As normas indutoras são
compreendidas como uma espécie de mecanismos extrafiscais inerentes
à tributação, cujo objetivo é influenciar as escolhas dos atores sociais na
direção almejada pelo interesse público.
Este trabalho está dividido em três partes. Na primeira parte serão
analisadas as normas tributárias indutoras. Em seguida, passa-se ao estudo
da ciência comportamental e, nessa seara, intervenções comportamentais
baseadas em evidências, que em um contexto de recursos escassos e de-
mandas sociais ilimitadas passam a ser desejáveis, pois podem contribuir
para um melhor processo de formulação e implementação das normas in-
dutoras, gerando melhores resultados. Por fim, será explorado o controle
para a utilização dessas normas em prol do desenvolvimento socioeconô-
mico como medida adequada e proporcional ao fim destinado.
A intenção deste estudo é contribuir para o debate da temática na
tentativa de demonstrar como o comportamento humano está intrinseca-
mente ligado à função tributária indutora, mas não é levado em conside-
ração quando o legislador valida uma norma estimuladora ou desestimu-
ladora na sociedade.

1. NORMAS TRIBUTÁRIAS INDUTORAS

A teoria da tributação (ou teoria econômica da tributação) estabelece


que não existe um sistema tributário neutro, isto é, uma tributação que
não interfira nas escolhas dos agentes econômicos e não resulte em efeitos
distorcivos no mercado. Isso pois todos os tributos intervêm no comporta-
mento econômico, em maior ou menor grau (STIGLITZ, 2000, p. 518).

16
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

São denominadas normas tributárias indutoras aquelas utilizadas


pelo Estado com a finalidade de intervenção na economia, conferindo
aos agentes econômicos direções possíveis de serem seguidas para alcançar
um objetivo socioeconômico. Elas se revestem de função extrafiscal, que
constitui meio de intervenção do ente estatal sobre o domínio econômico,
incentivando ou estimulando, ou seja, diminuindo e majorando a carga
tributária, respectivamente, de determinada atividade nessa seara.
Luís Schoueri explica que o termo “extrafiscalidade” abarca dois sen-
tidos, podendo referir-se ao gênero e à espécie. A espécie, denominada
“extrafiscalidade em sentido estrito”, trata do “consciente estímulo ao
comportamento das pessoas e de não ter por fundamento precípuo arre-
cadar recursos pecuniários ao ente público” (SCHOUERI, 2005, p. 32).
Já o gênero da extrafiscalidade “inclui todos os casos não vinculados nem
à distribuição equitativa da carga tributária, nem à simplificação do siste-
ma tributário” (SCHOUERI, 2005, p. 33). Seriam as normas extrafiscais
que não se movem por razões fiscais e estão desvinculadas da busca do
impulsionamento econômico por parte do Estado (SCHOUERI, 2005,
p. 32).
A tributação produz efeitos que causam impacto nos processos eco-
nômicos de produção, distribuição e consumo de bens e serviços, in-
cumbindo ao poder tributante o planejamento de políticas fiscais aptas a
influírem na ordem econômica e moldarem as ações dos agentes econô-
micos, guiando-os para a obtenção dos objetivos delineados pelo Estado à
sociedade. Assim, para Eugenio Nunes, é nesse contexto em que a norma
tributária indutora “tem seu campo de atuação, estatuindo benefícios para
os comportamentos desejados e gravames para aqueles não pretendidos”
(SILVA, 2017, p. 72).
No que tange à indução do Estado com o objetivo de desencorajar
determinados comportamentos, é possível identificar que o meio mais
utilizado é o agravamento das circunstâncias nas quais o contribuinte se
encontra, na medida em que se pretende que ele não incorra na hipótese da
incidência tributária. Desse modo, o agravamento realizado pela indução
tributária deve ser aplicado de uma maneira que o contribuinte entenda
ser mais vantajosa que adoção de conduta distinta.

17
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Um exemplo de norma tributária indutora por agravamento está nos


bens de consumo que o ente estatal deseja desincentivar – apesar de não
proibir –, como o uso de nicotina e álcool. Nesses produtos há incidência
de carga tributária majorada com a finalidade de desestimular tais hábitos.
Entretanto, Luís Schoueri cita Bocklin quanto à tributação agravada nesse
segmento na Europa, onde não ocorreu o efeito desejado, servindo apenas
como fonte de arrecadação fiscal, aludindo que “o prazer do indivíduo
leva ao vício do Fisco” (SCHOUERI, 2005, p. 206).
Por conseguinte, a indução tributária a partir das medidas de enco-
rajamento é capaz de estimular determinados comportamentos de forma
positiva. Segundo preceitua André Elali, tais medidas são inseridas no
ordenamento jurídico-tributário por meio dos incentivos fiscais e “podem
assumir as formas de imunidades, isenções, reduções de alíquota e base de
cálculo, anistias, regimes especiais de tributação, diferimento e remissões”
(ELALI, 2007, p. 114).
No que concerne a espécies de normas indutoras por vantagem, a
imunidade tributária é uma delas. Trata-se de exclusão da competência
tributária incidente sobre determinados bens e direitos, prevista no artigo
150 da Constituição Federal, que limita a capacidade tributária ativa dos
entes federados. Nesse sentido, nas imunidades o atributo da indução está
presente, por exemplo, nos livros em que há o fomento à liberdade de
expressão, de pensamento, do incentivo à cultura, do estímulo à educação.
Em relação à isenção tributária, trata-se de meio pelo qual o ente
competente dispensa o crédito tributário, possuindo como efeito princi-
pal “impedir o nascimento do débito tributário”, conforme delimita José
Borges (2001, p. 191). É benefício previsto na Constituição Federal e de
competência instituidora da legislação infraconstitucional que garante ao
contribuinte a não incidência de um tributo.
A remissão, modalidade de extinção do crédito tributário, nos ter-
mos do artigo 156, IV, do Código Tributário Nacional (CTN), tem seu
cabimento disposto no artigo 172 do referido diploma. Dentre suas pre-
visões feitas, o inciso V estabelece a possibilidade da remissão do crédito
tributário em função das “condições peculiares a determinada região do
território da entidade tributante”, sendo capaz de induzir condutas de-

18
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

terminadas nos agentes econômicos da localidade (BRASIL, 1966). Em


seguimento, a anistia, modalidade de exclusão do crédito tributário, pre-
vista no artigo 175, inciso II, do CTN, consiste no perdão das penalidades
pecuniárias decorrentes de obrigações acessórias (BRASIL, 1966).
À vista do exposto, os regimes fiscais especiais explanados são
instrumentos externalizados pelo poder público por meio da criação de
incentivos fiscais capazes de interferir no setor econômico ou em uma
região do Estado, a fim de estimular condutas nos contribuintes.

2. ECONOMIA COMPORTAMENTAL

Segundo Márcia Ribeiro, a Economia Comportamental, também


denominada behaviorismo, surgiu na década de 1970 “como uma respos-
ta sólida e sistematizada ao pressuposto dogmático da racionalidade eco-
nômica, pilar teórico da Escola Neoclássica da Economia” (RIBEIRO;
KLEIN, 2016, p. 64-65).
A teoria da racionalidade das escolhas (rational choice theory), também
conhecida como teoria da utilidade esperada (expected utility theory), foi o
paradigma da Escola Neoclássica de Economia e o principal fundamen-
to do pensamento econômico a partir do século XIX (TOMKOWSKI,
2016, p. 484-485). Ela considera que as decisões dos indivíduos sempre
são estáveis e constantes, sendo pautadas por uma análise racional entre o
custo-benefício e a utilidade, de modo que os sentimentos, as influências
cognitivas, emocionais e sociais, além das ilusões de conhecimento, não
exercem influência nessas escolhas (BRITO; JARDIM, 2022, p. 273-
288), fornecendo maior convicção nas previsões econômicas.
Esse pensamento construído pelos teóricos de que o ser humano seria
um tomador de decisão centrado e ponderado, baseando suas escolhas
em expectativas racionais, buscando otimização e equilíbrio (THALER,
2019, p. 19), teve uma supressão a partir dos estudos de Amos Tversky
e Daniel Kahneman nos campos da economia e da psicologia compor-
tamental, quando desenvolveram a teoria da perspectiva (prospect theory)
baseada na criação de um novo ramo da economia (behavioral economics),
que apresentou nova perspectiva para as referidas áreas com o objetivo de

19
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

contestar a racionalidade do “homus economicus” (RIBEIRO; DOMIN-


GUES, 2018, p. 462).
Para Tversky e Kahneman (TVERSKY; KAHNEMAN, 1974, p.
1124-1131), as motivações racionais e emocionais dos agentes econômicos
são fundamentais no processo de escolhas econômicas, que agem como
modo de delinear a percepção dos incentivos econômicos, de forma po-
sitiva ou negativa. Nesse contexto, a Economia Comportamental exerce
um papel central ao criticar o pressuposto da racionalidade dos agentes
econômicos (SHAFIR, 2012, p. 32).
Desse modo, os comportamentalistas buscam explicar as razões pelas
quais os agentes econômicos não se comportam como previsto pelos “mo-
delos economáticos”, com a identificação dos desvios cognitivos decorren-
tes de processos mentais (RIBEIRO; DOMINGUES, 2018, p. 462).
Diante da criação da teoria da perspectiva houve a descoberta de que
as decisões tomadas nem sempre são ótimas, sendo pautadas em constru-
ções a respeito de fatos que não são plenamente conhecidos e submetidas
a uma série de distorções do julgamento, denominadas vieses – erros siste-
máticos –, e a atalhos mentais simples, os quais, diante de problemas com-
plexos, apresentam respostas singelas e automatizadas, que surgem da falta
de consideração da lógica ou da probabilística de fatos passados pelo indi-
víduo e violam a racionalidade, produzindo decisões nem sempre corre-
tas, mas que foram tomadas em um tempo menor; tais atalhos podem ser
chamados, também, de heurísticas (MURAMATSU, 2009, p. 62-81).
Nessa esteira, Daniel Kahneman conceitua as heurísticas como sendo
os atalhos mentais facilitadores da tomada de decisão: “um procedimento
simples que ajuda a encontrar respostas adequadas, ainda que geralmen-
te imperfeitas, para perguntas difíceis. A palavra vem da mesma raiz que
‘heureca’” (KAHNEMAN; REYMÃO; CAÇAPIETRA, 2018, p. 557).
As constantes falhas de juízo são originadas dos atalhos simplifica-
dores utilizados para a realização de um julgamento complexo, que leva
a vieses inconsistentes, passíveis de conduzir a decisões equivocadas
(TOMKOWSKI, 2016, p. 484-485). Por tais motivos, em face de incer-
tezas e informações incompletas os indivíduos podem ser considerados
irracionais em suas decisões, dado que as suas escolhas dependem “da for-

20
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ma como as questões são apresentadas (framing) e de sua disposição para


assumir riscos (risk aversion), especialmente num ambiente de incertezas”
(RIBEIRO; DOMINGUES, 2018, p. 462).
Por consequência, Márcia Ribeiro declara que as escolhas são limita-
das a uma série de fatores que bloqueiam a melhor decisão a ser tomada,
os quais se expressam como manifestações neurocognitivas que podem ser
estimuladas ou desestimuladas conforme os objetivos dos incentivos ex-
postos aos agentes econômicos, tais como “a disposição de manter o ‘status
quo’ (inertia), o sentimento de apego e posse (endowment effect), o equívoco
no julgamento sobre os efeitos ao longo do tempo (hyperbolic discount), a in-
sistência em escolhas ruins (sunk cost) etc” (RIBEIRO; DOMINGUES,
2018, p. 462).
De fato, a Economia Comportamental apresenta relevante atuação no
cenário econômico quanto a aplicação de políticas públicas. O behavio-
rismo pressupõe que os agentes econômicos são irracionais e que as suas
decisões equivocadas podem ter impacto significativo na ordem econô-
mica, sendo capazes de produzir desastres nessa área, de acordo com Dan
Ariely (2010, p. 5). Uma vez que a teoria da perspectiva observa como se
realizam as resoluções e os comportamentos, a compreensão sobre a forma
como ocorre a tomada de decisões se revela crucial para o exame tanto
das decisões dos agentes no plano da execução das normas, com a prática
ou não da conduta desejável ou indesejável, como a dos entes estatais na
aplicação das referidas normas.
A Economia Comportamental assevera que existe um campo de
atuação para influenciar (nudging) o comportamento dos agentes limita-
damente racionais (MURAMATSU; FONSECA, 2012, p. 445-458). O
behaviorismo parte da premissa de que quando as pessoas detêm a devida
informação, passam a estar dispostas a contribuir para o bem-estar co-
mum, com a concepção de que os agentes econômicos são naturalmente
altruístas, e esperam contribuições recíprocas de outras pessoas (KORO-
BKIN; ULEN, 2000, p. 1138-1144). Ademais, a disponibilidade de in-
formações conduzirá o agente econômico a tomar decisões mais eficazes,
com menor influência das chamadas armadilhas mentais compostas pelos
vieses e heurísticas (RIBEIRO; DOMINGUES, 2018, p. 464).

21
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Para os teóricos do Behavioural Law and Economics, o Estado regula-


dor, como gestor das políticas públicas, deve incorporar o papel de um
“Arquiteto das Escolhas” (RIBEIRO; DOMINGUES, 2018 p.466), o
qual detém como desígnio preservar a liberdade das pessoas enquanto são
coordenadas para desenvolver o seu bem-estar social, bem como organi-
zar o contexto no qual elas tomam decisões, visto que pequenos detalhes
podem gerar grande impacto em seu comportamento, constituindo uma
alternativa indispensável para conceder ao indivíduo maior capacidade de
escolha. Assim, o agente econômico poderá decidir com maior clareza
entre as possibilidades apresentadas, sobretudo quando identificadas as li-
mitações cognitivas às quais está submetido, diante dos mecanismos de
heurísticas e vieses cognitivos (RIBEIRO; DOMINGUES, 2018 p. 466).
Acerca disso, Thaler e Sunstein sustentam que o arquiteto de escolhas
possui competência e legitimidade para influenciar na esfera comporta-
mental, contudo, essa intervenção deve primar pela longevidade, saúde
e prosperidade dos contribuintes (THALER; SUNSTEIN, 2019, p. 13-
14). Desse modo, para os autores a indução comportamental deve atuar
em favor dos contribuintes, aplicando o “nudge” (empurrão ou indicação
implícita de opções programadas pelo agente público a serem apresentadas
ao contribuinte para que este faça uma escolha, sem ensejar em proibi-
ções), para que estes adotem decisões que correspondam aos seus interes-
ses (KAHNEMAN, 2012, p. 516).
Em defesa dessas intervenções na ordem econômica, os referidos au-
tores elaboraram o conceito de Paternalismo Libertário, sustentando que,
embora sejam formas de tutelar e promover fins e valores ao bem-estar
social, elas não necessariamente representam uma ameaça à liberdade de
escolha dos indivíduos (THALER; SUNSTEIN, 2019, p. 13-14). Isso
porque, o ente estatal tem o dever de efetivar os direitos fundamentais e
sociais e proteger a coletividade, logo, as técnicas de indução comporta-
mental estabelecidas pela Economia Comportamental podem ser empre-
gadas para a efetivação de tais direitos sem que ocorra uma limitação de
escolhas.
O incentivo do tipo “nudge” é utilizado como forma de persuasão an-
tecipada, sendo posto à disposição do agente econômico para avaliação no

22
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

momento da escolha. Esses pequenos impulsos, elaborados por arquitetos


de escolha, preservam a autonomia dos indivíduos com o uso de estudos
comportamentais, porém dispõem da possibilidade de orientação para um
maior bem-estar, sem a utilização de coação por meio de proibições li-
mitadoras das alternativas disponíveis ou alteração, significativa, dos seus
incentivos econômicos (THALER; SUNSTEIN, 2009, p. 6).
Nessa conjuntura, a tributação, ao ser praticada com razoabilidade
e sem o efeito de confisco, poderá ser considerada um “nudge”, ou, em
outros termos, uma indução capaz de modificar o comportamento dos
contribuintes de forma previsível, capaz de mudar condutas individuais
indesejáveis, fortalecer o bem comum e preservar a liberdade de escolha
dos agentes, reduzindo atos abusivos do Estado (THALER; SUNSTEIN,
2019, p. 14).
Assim, a arquitetura de escolhas pode auxiliar os agentes econômicos
a decidirem melhor a partir das alternativas apresentadas. Essa construção
provém de um complexo ciclo de aprendizagem, baseado em evidências
eficientes para a criação de incentivos significativos para os comportamen-
tos desejáveis.
Por meio das normas tributárias extrafiscais atreladas à utilização da
Economia Comportamental, é possível inovar o modo pelo qual se levam
os agentes econômicos a realizarem escolhas que de outra forma não o
fariam, sem que ocorra a necessidade de estabelecer normas de proibição.
Para que o Estado possa proporcionar grandes opções de política social,
econômica, ambiental e de saúde é fundamental a manipulação do do-
mínio econômico, influenciando as condutas a serem tomadas pelos con-
tribuintes com o objetivo de construir um ambiente econômico e social
mais justo e próspero.

3. ANÁLISE DO IMPACTO SOCIOECONÔMICO DAS


POLÍTICAS EXTRAFISCAIS

Precipuamente, o autor Norberto Bobbio trata da função promocio-


nal do direito em duas modalidades, correspondentes ao incentivo e ao
prêmio, de modo que ambas possuem a forma de indução, contudo, con-
têm estruturas normativas autônomas e com efeitos diversos. Em síntese,

23
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

os incentivos são instrumentos de auxílio com o objetivo de induzir deter-


minada atividade econômica e, por sua vez, os prêmios são medidas para
oferecer a satisfação ao agente econômico que já executou determinada
atividade (BOBBIO, 1984, p. 80).
Nesse campo, a indagação fundamental é a das possibilidades opera-
tivas desses institutos como estimuladores fiscais, prevalecendo, portanto,
sobre as considerações ditas técnico-jurídicas. De fato, é imprescindível
a constatação do alcance, bem como a análise do grau de eficiência dos
instrumentos fiscais aplicados para que exista a possibilidade de induzir a
mudança de comportamento dos agentes econômicos capazes de autori-
zar a concessão dos instrumentos normativos indutores.
No que concerne ao emprego dos incentivos extrafiscais para o fo-
mento do desenvolvimento e da redução das desigualdades regionais, rela-
cionados à atração de investimentos e à criação de novos setores econômi-
cos, a demonstração da eficiência socioeconômica das normas tributárias
aplicadas torna-se de suma importância.
A inserção de novas empresas para regiões cujo objetivo é a promo-
ção do seu desenvolvimento demandam novos postos de trabalho, que
dispõem do potencial de movimentar o ambiente socioeconômico da re-
gião, resultante da circulação de renda; disso poderá haver a expansão de
atividades econômicas já existentes e, de forma oportuna, a formação de
novas; também poderá gerar uma maior especialização do trabalho, devi-
do à precisão de profissionalização dos trabalhadores; os níveis de emprego
e renda também tenderão a aumentar, assim como a economia regional
terá um crescimento natural, criando a expectativa de que a demanda por
novas atividades econômicas se conserve no transcurso do tempo; nes-
sa esteira, os polos de desenvolvimento poderão proporcionar a inovação
tecnológica.
A princípio, a alteração do cenário econômico e social das regiões
com menor desenvolvimento no país, como o Norte e o Nordeste, é fruto
da instalação de grandes indústrias destinatárias de incentivos extrafiscais,
mormente o IRPJ e o ICMS, sustentando que tais empreendimentos não
teriam se deslocado para a região caso não tivessem percebido referidos
incentivos. Assim, André Elali defende que diante dos projetos de atração

24
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

de investimentos privados, especialmente subsidiados pelo Estado, atra-


vés de fundos, incentivos extrafiscais e empréstimos bancários, os agentes
econômicos passaram a desenvolver uma série de atividades de base, o
que acarreta a geração de empregos, razão pela qual o autor fundamenta
que se não fossem as normas tributárias indutoras, instituindo benefícios
fiscais para a redução de desigualdades regionais e sociais por meio do de-
senvolvimento econômico, a situação não teria melhorado (ELALI, 2006,
p. 124). Em contraste, a análise do autor não considera fatores diversos
que podem influenciar nas decisões dos agentes, como, por exemplo, a
existência de infraestrutura adequada na região e a presença de recursos
naturais e humanos necessários para o desenvolvimento das atividades.
Além disso, a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 151, con-
cede ao Poder Executivo a possibilidade de utilizar incentivos fiscais para
promover um desenvolvimento socioeconômico equilibrado entre as dife-
rentes regiões do país, além de estabelecer como um princípio da atividade
econômica, no inciso VII do artigo 170, a redução das desigualdades regio-
nais e sociais. A Zona Franca de Manaus (ZFM), por exemplo, foi criada no
ano de 1967 com o pressuposto de promover o desenvolvimento socioeco-
nômico da Região Amazônica, compreendendo os estados de Amazonas,
Roraima, Rondônia e Acre. De fato, foi fundada e construída por intermé-
dio de ações de indução de comportamento, principalmente por normas
tributárias extrafiscais, gerando o progresso e desenvolvimento da região e
sendo capaz de reduzir as desigualdades regionais. À vista disso, as indústrias
instaladas no polo de Manaus têm a diminuição de até 88% no Imposto de
Importação, além de serem isentas do IPI, da contribuição para o PIS/Pasep
e da Cofins possuírem, também, redução de 75% no IRPJ.
Adjacente ao desenvolvimento econômico, o desenvolvimento so-
cial também é pilar para a criação das normas tributárias indutoras, como
meio de perseguir os direitos fundamentais e o bem-estar social, tornando
os incentivos extrafiscais eficazes na plenitude de sua criação. De igual
modo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) medido nas pers-
pectivas de renda, educação e longevidade pressupõe a melhoria na quali-
dade de vida dos cidadãos e deve ser analisado em conjunto com a aferição
dos incentivos extrafiscais na região beneficiada.

25
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

No Estado do Amazonas, ambiente caracterizado pela presença do


modelo da ZFM, compreendeu-se variações positivas no IDH entre os
anos de 1991 e 2010, alcançando 0,674% (IBGE, 2010). Apesar disso, o
Produto Interno Bruto per capita cresceu, em média, 7,88% no referido
período, demonstrando que o desenvolvimento social não acompanha o
crescimento econômico da região, sendo desproporcionais, o que implica
em uma menor redução das desigualdades sociais (PALHARES, 2021, p.
116-137).
Enquanto instrumento para consecução dos preceitos do artigo 170
da Constituição Federal, a política extrafiscal possui o escopo de mode-
lar comportamentos econômicos ou sociais dos agentes privados tanto no
campo econômico quanto na promoção dos direitos fundamentais pre-
vistos na carta. Entretanto, nota-se que o desenvolvimento econômico
não caminha ao lado do social, acarretando a deformidade dos incentivos
extrafiscais em sua eficiência integral.
Outra região do país onde a prática de indução comportamental
repercutiu no seu desenvolvimento é o Nordeste, que sofreu com efei-
tos climáticos causadores da seca, mas seu progresso, também, deparou-se
com impasses relacionados à organização econômica inadequada do terri-
tório (TAVARES, 2012, p. 104).
Nesse contexto, criou-se o SUDENE (Superintendência do Desen-
volvimento do Nordeste), que traçou estratégias para diversas áreas para o
desenvolvimento da região. No campo financeiro, especialmente, houve
o emprego de incentivos fiscais destinados às empresas privadas, como a
redução de 50% do IRPJ para o reinvestimento nos projetos do Nordeste
(RUDGE, 2004, p. 27).
Com a implementação do desenvolvimento da região, o PIB do Nor-
deste teve alto crescimento durante a última década, alcançando uma va-
riação de 14,2% no ano de 2019. Já no ano de 2020, os incentivos do
Sudene alcançaram investimentos de R$9,8 bilhões, proporcionando a
criação e a manutenção de cerca de 113 mil postos de trabalho (GOV,
2021). Contudo, os efeitos positivos econômicos não foram acompanha-
dos pelo respectivo desenvolvimento social, traduzido pelos baixos índices
de IDH do Nordeste.

26
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Para alcançar um contexto de desenvolvimento humano e, como


consequência, a minimização das desigualdades sociais, torna-se im-
prescindível o meio como se dá a política de criação das normas tribu-
tárias indutoras, observando os critérios e fundamentos dos incentivos e
a efetiva fiscalização destes quanto ao atendimento dos objetivos para a
sua concessão, bem como a correlação entre PIB e IDH, haja vista que
as normas tributárias indutoras são o instrumento que têm como fun-
damento precípuo a interferência no domínio econômico para regular
e aperfeiçoar o crescimento do mercado e assegurar o desenvolvimento
dos direitos fundamentais.

3.1. MEDIDAS DE CONTROLE E FISCALIZAÇÃO DOS


BENEFÍCIOS FISCAIS

A concessão de benefícios fiscais, quaisquer que sejam suas espécies,


provoca uma renúncia de receitas por parte do ente federado. Importa
destacar que as renúncias de receitas tributárias têm como efeito a dimi-
nuição de investimento em outros serviços e investimentos públicos, haja
vista que o Estado não pode promover as espécies de normas tributárias
extrafiscais sem a prévia análise de que os demais objetivos orçamentários
previstos para o período poderão ser atingidos. Isso devido aos recursos
disponíveis serem escassos, sendo certo que o fomento pelo Estado de
uma atividade acarreta a retirada de incentivos extrafiscais para o desen-
volvimento de outro setor econômico.
A determinação das consequências socioeconômicas da instituição de
benefícios fiscais não é atribuição simples e, em virtude da complexidade
das relações econômicas, não foi encontrado instrumento para aferição da
sua eficiência e quantificação precisa. Isso posto, a Lei de Diretrizes Or-
çamentárias (LDO) tem como principal finalidade designar as diretrizes
para a elaboração dos orçamentos fiscais anuais, incluindo as metas e prio-
ridades do governo federal, despesas de capital, alterações na legislação e
política tributária, assim como fixa limites para os orçamentos dos demais
Poderes, dispondo sobre os gastos com pessoal e políticas fiscais.
À vista disto, a fim de guiar a elaboração dessa lei anual no tocante às
concessões de incentivos ou benefícios fiscais da qual decorra a renúncia

27
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

de receita, a Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade


Fiscal – LRF), em seu artigo 14, preceitua as condições para a autorização
e a criação dessas normas indutoras pelo Estado.
Embora a LRF apresente mecanismos de controle anteriores à cria-
ção de renúncias de receitas, a maior controversa no que diz respeito à
concessão de benefícios fiscais se dá no período posterior à sua implemen-
tação, em relação à verificação do cumprimento de suas finalidades e de
sua real efetividade, em razão da necessidade do emprego de fiscalização
efetiva, pelo Estado, da eficácia das normas tributárias indutoras quanto
ao desenvolvimento do setor econômico e à sua atuação na concretização
dos direitos fundamentais, além de coibir privilégios injustificados para
determinados agentes econômicos.
Nesse aspecto, o artigo 70 da Constituição Federal prevê que a União
fiscalizará a aplicação das subvenções e renúncias fiscais quanto a sua lega-
lidade, legitimidade e economicidade, por meio do Congresso Nacional e
pelo sistema de controle interno de cada Poder. Outrossim, o artigo 165,
parágrafo 6 também prevê certo controle orçamentário sobre as renúncias
fiscais ao estabelecer que, do projeto de lei orçamentária, conste o “de-
monstrativo regionalizado do efeito, sobre as receitas e despesas, decor-
rente de isenções, anistias, remissões, subsídios e benefícios de natureza
financeira, tributária e creditícia”.
No que diz respeito a órgãos de acompanhamento, o Decreto nº
9.834/2019 instituiu o Conselho de Monitoramento e Avaliação de Po-
líticas Públicas (CMAPP), cuja estrutura é composta tanto pelo CMAS
quanto pelo Comitê de Monitoramento e Avaliação de Gastos Diretos,
com o objetivo de acompanhar os programas implementados para a ava-
liação dos seus resultados, ou seja, a efetividade no alcance do objetivo
proposto, possuindo papel informativo, não sendo atribuída função san-
cionadora ou corretiva.
Na medida em que os benefícios fiscais são instituídos sem prazo
de vigência estipulado, eles tendem a perder sua eficácia, corrompendo
a incumbência do desenvolvimento e a correção de falhas do mercado,
transformando-se em mecanismo de transmissão de privilégios injus-
tificados. Por isso, a LDO traz uma cláusula de vigência de cinco anos

28
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

para novos benefícios fiscais concedidos por leis federais, como a Lei nº
13.707/2018.
Porém, ainda não há, hoje, mecanismos de controle consolidados
voltados à fiscalização dos benefícios fiscais concedidos pelo Poder Públi-
co, tampouco do cumprimento de seus objetivos para eventual e posterior
redesenho institucional de suas estruturas, ou mesmo de sua extinção,
verificado seu insucesso.
Como meio de compensar essa ausência de fiscalização, estão em tra-
mitação projetos de leis com intenção de criar mecanismos de controle
e eficiência da transparência dos benefícios fiscais em caráter nacional,
vinculando todos os entes federados, sendo eles o PL nº 561/2018 e o nº
41/2019, os quais intentam, então, a alteração da LRF para que nela conste
a instauração de critérios objetivos de implementação e acompanhamento
dos benefícios fiscais.

CONCLUSÃO

A extrafiscalidade tem como objetivo a intervenção nos comporta-


mentos, com a redução ou com o aumento do ônus tributário, de for-
ma específica sobre pessoas que adotam condutas que se deseja estimular
ou desestimular. Entretanto, conforme demonstrado, a forma como tais
medidas efetivamente interferem no comportamento das pessoas e nos
resultados decorrentes constitui aspectos que não são considerados pelo
legislador quando da criação dessas normas. Isso se dá pelo fato de que os
incentivos fiscais são voltados para agentes econômicos plenamente racio-
nais que baseiam as suas escolhas entre perdas e ganhos, porém, a neuro-
ciência apresenta estudos quanto a irracionalidade dos indivíduos no que
concerne à tomada de decisões.
Os estudos e teorias elaborados a respeito da economia comporta-
mental e da neurociência revelam que estímulos e desestímulos econômi-
cos nem sempre funcionam, e às vezes podem produzir efeito inverso ao
pretendido pela norma indutora. Em consequência, o que se extrai acerca
do modo como é realizada a instituição dos benefícios fiscais, é de que a
complexidade das relações econômicas é constantemente ignorada pelo
legislador quando de sua adoção.

29
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O acompanhamento dos resultados dos benefícios fiscais pelos entes


estatais instituidores deles também enfrenta empecilhos, dado que inexis-
te órgão autônomo e independente que tenha como atribuição a função
de acompanhar e apresentar dados relativos à produtividade dos benefí-
cios, acarretando incentivos extrafiscais “eternos” e ineficientes, cujos
privilégios os setores econômicos não pretendem renunciar, ainda que sua
finalidade esteja relacionada ao seu caráter auxiliar e transitório.
Para além do viés orçamentário, a instituição de incentivos fiscais ine-
ficientes e incapazes de induzir o comportamento almejado pode elevar a
regressividade do sistema tributário brasileiro, equivalendo a um instru-
mento outorgador de benefícios para parcelas do setor econômico que re-
duzem o volume arrecadatório e não vislumbram qualquer efeito positivo
para o desenvolvimento socioeconômico do Estado, bem como aumen-
tam a complexidade da estrutura tributária.
A legislação nacional é insuficiente ao determinar mecanismos de
controle e fiscalização da implementação e acompanhamento de benefí-
cios fiscais, e a manutenção dos incentivos extrafiscais de forma desregu-
lada, em detrimento de uma dependência regulatória e de financiamento
dos agentes econômicos, significa despesa contínua com gastos tributá-
rios, manutenção de reserva de mercado, permanente concessão de sub-
sídios ao barateamento de importações, bem como a constante criação de
benefícios fiscais para suprir as necessidades dos setores econômicos a fim
de que inovem e devolvam os recursos investidos em forma de desenvol-
vimento socioeconômico sem que estes criem, voluntariamente, suas in-
dependências e capacidades de autorregulação e competição no mercado.
Tal dependência gera, usualmente, conflito entre o interesse privado em
detrimento do interesse e da gestão pública.

REFERÊNCIAS

ARIELY, Dan. Positivamente irracional. Rio de Janeiro: Elsevier,


2010.

BORGES, José Souto Maior. Teoria geral da isenção tributária. 3. ed.


São Paulo: Malheiros, 2001.

30
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BOBBIO, N. Dalla. Struttura alla funzione: nuovi studi di teoria


del diritto. 2. ed. Milão: Edizione di Comunità, 1984.

ELALI, André. Tributação e regulação econômica: um exame da


tributação como instrumento de regulação econômica na busca da
redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP, 2007.

KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio


de Janeiro: Objetiva, 2011.

KOROBKIN, Russell B.; ULEN, Thomas S. Law and behavioral sci-


ence: removing rationality assumption from law and economics.
California Law Review, Berkeley, v. 88, p. 1138-1144, 2000.

MURAMATSU, R. The death and resurrection of economics with psy-


chology: remarks from a methodological standpoint. Revista de
Economia Política, São Paulo, v. 29, p. 62-81, jan./mar. 2009.

MURAMATSU, Roberta; FONSECA, Patrícia. Freedom of choice in a


world of boundedly rational agents: remarks about the light paternal-
istic policy implications of behavioral economics. Brazilian Journal
of Political Economy, [s. l.], v. 32, n. 3, p. 445-458, jul./set. 2012.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rep/a/tMPqWmRDzsqhJ-
9DPtNGjq7N/?lang=en. Acesso em: 29 out. 2022.

PALHARES, T. C. S. Implicações no Índice de Desenvolvimento Hu-


mano (IDH) a partir da perspectiva de revogação da Zona Franca de
Manaus/AM: indicadores de desenvolvimento humano para o perío-
do 2018-2022. Revista Videre, Dourados, MS, v. 13, n. 27, 2021.

PREVALÊNCIA do tabagismo. INCA, Brasília, DF, 19 out. 2022. Dis-


ponível em: https://www.inca.gov.br/observatorio-da-politica-na-
cional-de-controle-do-tabaco/dados-e-numeros-prevalencia-taba-
gismo. Acesso em: 28 out. 2022.

RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Racionalidade limitada. In: RIBEIRO,


Márcia Carla Pereira; KLEIN, Vinicius (coord.). O que é análise

31
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

econômica do direito: uma introdução. 2. ed. Belo Horizonte:


Fórum, 2016. p. 59-65.

RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; DOMINGUES, Victor Hugo. Econo-


mia comportamental e direito: a racionalidade em mudança. Revis-
ta Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, DF, v. 8, n. 2, 2018.

RUDGE, Tomás de Carvalho. Incentivos Fiscais: a experiência da


Sudene. 2004. 35 f. Monografia (Especialização em Economia) –
Departamento de Economia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.

SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutoras e Inter-


venção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

STIGLITZ, Joseph E. Economics of public sector. 3rd. Nova York:


W. W. Norton & Company, 2000.

SILVA, Eugênio Nunes. Normas tributárias indutoras. 2017. Disser-


tação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2017.

SHAFIR, Eldar. The behavioral foundations of public policy. Prin-


ceton: Princeton, 2012.

TAVARES, Hermes Magalhães. Desenvolvimento e dinâmica em Celso


Furtado. Revista de Políticas Públicas, São Luís, v. 16, n. 1, p.
99-110, jan./jun. 2012. Disponível em: http://periodicoseletronicos.
ufma.br/index.php/rppublica/article/view/1181. Acesso em: 10 nov.
2022.

THALER, Richard H; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: como tomar me-


lhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2019.

THALER, Richard H. Misbehaving: a construção da economia com-


portamental. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

32
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgement under uncer-


tainty: heuristics and biases. Science, Pensilvânia, v. 185, n. 4157, p.
1124-1131, set. 1974.

TOMKOWSKI, Fábio. A tributação extrafiscal e as teorias da decisão


como indutores de comportamentos sustentáveis. Revista Jurídica
Luso-Brasileira, Lisboa, ano 2, n. 2, p. 483-501, 2016. Disponível
em: https://www.cidp.pt/publicacao/revista-juridica-lusobrasileira-
-ano-2-2016-n 2/163. Acesso em: 29 out. 2022.

33
A (IM)POSSIBILIDADE DE INCLUSÃO
DE CRITÉRIOS AMBIENTAIS NA
FASE DE HABILITAÇÃO NAS
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS
BRASILEIRAS
Leonardo Carvalho Gusmão3

INTRODUÇÃO

A noção de contratação pública ficou vinculada aos negócios econo-


micamente vantajosos envolvendo a Administração Pública e as empre-
sas. Entretanto, ocorreu uma mudança do paradigma dos Estados liberal
e social para o Estado que visa promover a sustentabilidade ambiental na
contratação pública por meio de certificações ambientais, ciclo de vida dos
produtos e licenças ambientais.
No cenário brasileiro, a temática ambiental transitou, inicialmente,
na Lei nº 8.666/1993 e, atualmente, concentra-se na Lei nº 14.133/2021,
que, conforme art. 193, II, revogará a lei anterior a partir de 30 de de-

3 Advogado. Mestre em Direito e Ciência Jurídica (Especialidade Ciências Jurídico-Ambien-


tais) pela Universidade de Lisboa — ULISBOA. Especialista em Direito Ambiental, Agrário e
Urbanístico pela Universidade de Santa Cruz do Sul — UNISC. Especialista em Direito Público
pela Universidade Salvador — UNIFACS.

34
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

zembro de 2023; ainda, com alteração pela Medida Provisória nº 1.167 de


2023, faculta aos gestores, até a data citada, a escolha de com qual legisla-
ção licitar. Em Portugal, destacam-se as Estratégias Nacionais para Com-
pras Públicas Ecológicas 2008-2010 e 2020 e a promulgação do Código
de Contratos Públicos em 2008.
No entanto, a inclusão de critérios ambientais/ecológicos nas contra-
tações públicas encontra objeções entre aqueles que não estão convencidos
de que tais exigências, de fato, refletiriam em melhores e mais baratos
serviços e obras para a população, bem como de que não resultariam em
direcionamento dos certames, fim da competitividade, da paridade de ar-
mas e da igualdade de condições. Já os propensos a compreender as mu-
danças nos padrões defendem que a introdução dessas especificidades não
ofenderia os princípios da competitividade e da isonomia, na medida em
que os critérios estariam definidos em lei e em consonância com a discri-
cionariedade do administrador público.
Um ponto que é debatido consiste na (im)possibilidade de implan-
tação de critérios de sustentabilidade ambiental na fase de habilitação dos
certames brasileiros, tendo em vista que, por ser uma etapa em que se
pergunta como fazer ou se é possível fazer, a linha é tênue entre o dire-
cionamento e o respeito à isonomia e à competitividade na contratação
pública. Dito isso, o presente trabalho buscou responder a seguinte ques-
tão: a inclusão de critérios de sustentabilidade ambiental na fase de habi-
litação das licitações públicas brasileiras ofende os princípios da isonomia
e da competitividade?
O artigo teve como objetivo principal explicar se é possível ou não in-
cluir critérios de sustentabilidade ambiental na fase de habilitação das lici-
tações públicas brasileiras. Atendeu-se aos seguintes objetivos específicos:
(i) discutir o que é e para que serve a licitação sustentável; (ii) identificar
as possibilidades e os entraves observáveis quanto à inclusão de critérios
de sustentabilidade ambiental na fase de habilitação das licitações públi-
cas brasileiras, tendo em vista o Código de Contratos Públicos português
(CCP).
O método utilizado foi o normativo-descritivo, cujos procedimentos
de pesquisa são o documental, pela interpretação de diplomas legais bra-

35
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

sileiros e portugueses e de decisões judiciais, e o bibliográfico, através do


exame da doutrina jurídica.

1. REFLEXÕES SOBRE A CONTRATAÇÃO PÚBLICA


AMBIENTALMENTE SUSTENTÁVEL

Indaga-se: o que é contratação pública ambientalmente sustentável?


E, ainda, para que serve esse tipo de ajuste? Por isso, a pretensão desta
seção é explorar as particularidades e as funções das licitações públicas
sustentáveis do ponto de vista ecológico.

1.1. CONCEITUAÇÃO E POLIMORFIA

Licitação – ou contratação pública – é comumente caracterizada


como um conjunto de procedimentos administrativos de seleção, por
meio do qual a Administração Pública, mediante critérios previamente
estabelecidos, isonômicos, abertos ao público e competitivos, busca
escolher a melhor alternativa para a celebração do contrato. Nada obstante,
assume também um aspecto principiológico, segundo França (2007, p. 5),
quando associado ao cânone da isonomia, “importando ao Estado o dever
de possibilitar aos participantes condições iguais de disputa, a fim de que
a escolha da proposta atenda ao interesse público.”
Por conta do fenômeno descrito por Gomes e Caldeira (2018, p. 745)
como “ambientalização do Direito dos Contratos Públicos”, as temáticas
ambientais ganharam notoriedade para a pactuação de contratos na Ad-
ministração Pública, inclusive com a observação de princípios do Direito
do Ambiente, como o maior nível de proteção ambiental, especificamen-
te. Bim (2011, p. 177) explica que a “contratação pública ambientalmen-
te sustentável é aquela influenciada por padrões ambientais definidos de
acordo com o estado da técnica e da ciência para que o Poder Público
consiga pactuar o negócio mais vantajoso, econômica e ecologicamente,
a toda coletividade”.
Convém salientar a polimorfia, ou seja, a diversidade de formas de
inclusão de critérios ambientais nas contratações públicas. No contexto
português, Estorninho (2014, p. 431-436), além de Gomes e Caldeira

36
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

(2018, p. 750-752), vislumbram a inserção de requisitos de sustentabili-


dade ecológica a) na decisão de contratar; b) na escolha do procedimento;
c) no caderno de encargos; d) nas especificações técnicas e na rotulagem;
e e) na adjudicação. Já no cenário brasileiro, as contratações públicas com
teor sustentável podem, consoante Bim (2011, p. 178), referir-se a aqui-
sições de bens e serviços, alienações de bens, concessões, permissões ou
autorizações; e seus critérios ambientais poderão incidir nas especificações
técnicas e de desempenho do produto, no método de produção e de pres-
tação de serviço, nos projetos e no julgamento das propostas, desde que os
requisitos estejam definidos em sede editalícia.
As licitações sustentáveis, para lograrem êxito e não corromperem o
sistema de princípios da não discriminação, da isonomia, da publicidade
e da concorrência, o qual sustenta os procedimentos licitatórios, devem
atentar-se para a definição precisa do objeto a ser contratado, com vistas
a clarificar as intenções de contratação. O Tribunal de Contas da União
(TCU), no Brasil, em sua Súmula nº 117, aduz sobre a regra indispensável
de definir, precisa e suficientemente, o objeto a ser licitado, para que sejam
ofertadas condições iguais aos participantes, notadamente no que se refere
ao projeto básico e ao orçamento detalhado das obras (BRASIL, 1982).
Na verdade, a intenção do TCU é equilibrar os princípios da susten-
tabilidade ambiental e da isonomia para que não haja direcionamento ou
discriminação entre os participantes. Não seria justo determinado com-
petidor ser surpreendido com um critério ecológico não mencionado no
edital ou totalmente desconexo do objeto contratual, motivo pelo qual
haveria prejuízo individual ao licitante e coletivo, ao erário.

1.2. FUNCIONALIDADES

As licitações tradicionalmente prestam-se a ser um mecanismo estatal


de obtenção de bens e serviços, através de modalidades de contratação,
que garantem a proposta mais vantajosa ao interesse público como ven-
cedora, desde que respeitadas as normas que regem a matéria, como a
isonomia, a impessoalidade e a competitividade.
Com a evolução das demandas sociais, o Estado assume a função de
regulador em áreas estratégicas, utilizando-se, para tanto, da contratação

37
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

pública como instrumento para consecução de finalidades não somente


econômicas, mas também ambientais. É a partir disso que a aceitação do
critério que busca auferir somente a vantagem financeira dá lugar ao es-
crutínio de critérios ecológicos. Justifica-se a nova função das licitações,
na esteira de Ferraz (2009, p. 133), nos resultados sociais benéficos em
curto e em longo prazo.
Nessa linha, Rolim (2019, p. 273-274) apoia a posição do Estado
nas licitações sustentáveis de agente transformador do setor produtivo e
fomentador do desenvolvimento da sustentabilidade nacional, ao passo
que, ao realizar suas compras, a Administração passa a introduzir padrões
ambientais e a atuar como consumidor que possui sua parcela de respon-
sabilidade socioambiental. No mesmo sentido, Barcessat (2011, p. 70) de-
fende que “é poder/dever do administrador público estabelecer e aplicar
critérios ambientais a fim de alcançar a sustentabilidade, ainda que opere
em desigualdade de tratamento entre os participantes do certame”.
De outro modo, Niebuhr (2016) sustenta, de início, que “a finalidade
precípua das contratações públicas é de seleção da proposta mais vantajosa,
tendo o desenvolvimento sustentável caráter subsidiário ou auxiliar para,
na sequência, advertir sobre a dificuldade de implantar demandas sociais
ou morais ao modelo licitatório vigente, podendo ocasionar uma profusão
de pedidos de certidões e comprovativos técnicos que onerariam os par-
ticipantes”. Não se pode olvidar que quando os governos atuam no setor
econômico as falhas surgem, de acordo com Lopes (2020, p. 149), devido
à “incapacidade na gestão empresarial, bem como diante de cenários de
corrupção ou de imposições perpetradas por grupos de interesse que não
se referem aos anseios da sociedade”.
Ao que consta, não se pode concordar quando a Administração
Pública, valendo-se do papel de reguladora da ordem econômica, passa a
interferir em toda e qualquer atividade que opere com lucros. Pior seria
pensar na ingerência estatal sem o respeito às normas licitatórias e aos
princípios da isonomia, da competitividade e da economicidade. Também
não é razoável desconsiderar que as contratações públicas desempenham
um papel com reflexos na sociedade, inclusive nos hábitos.

38
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Não se quer dizer, dessa forma, que seja preciso impor mudanças nos
valores, mas é inevitável perceber que as questões pertinentes ao meio am-
biente são urgentes e já estão inclusas nas rotinas empresariais. D’Oliveira
(2014, p. 114) enfatiza que o Poder Público tem a chance, com a aplicação
de contratações públicas ecológicas, de, diretamente, oferecer caminhos
para que as empresas se adaptem aos requisitos ambientais e de, indireta-
mente, levar o exemplo dado por uma empresa para as cadeias de produ-
ção e de consumo.
Assim, com vistas à proteção e ao equilíbrio ecológico do meio am-
biente, é prudente observar que a inclusão de critérios ambientais deve ser
efetuada nos termos da lei, além de ter relação com o objeto a ser licitado
e previsão em edital ou no caderno de encargos.

2. POSSIBILIDADES E ÓBICES PARA INCLUSÃO DE


CRITÉRIOS AMBIENTAIS NA FASE DE HABILITAÇÃO DAS
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS BRASILEIRAS

A discussão acerca da inclusão de critérios ambientais nas contrata-


ções públicas perpassa as fases preparatória, editalícia, de julgamento de
propostas e de execução contratual. Sobre a fase de habilitação a aborda-
gem perde força, seja pela impossibilidade de ordem prático-jurídica de
anexação dos critérios sustentáveis, seja pelas decisões dos tribunais de
contas proibindo tal inserção. Entretanto, o trabalho não se esquiva de
analisar quais são as possibilidades e os entraves para a inclusão dos crité-
rios acima destacados na fase de habilitação das licitações brasileiras por
meio da comparação entre o Decreto-Lei nº 18/2008 de Portugal e as Leis
nº 8.666/1993 e nº 14.133/2021 do Brasil.
Inicialmente, habilitação é o momento pelo qual a Administração
Pública poderá aferir se o licitante reúne condições específicas para exe-
cutar o objeto pretendido ou a fase de apresentação de informações e do-
cumentos que atestem as capacidades jurídica, técnica, fiscal, social e tra-
balhista e econômico-financeira. Trata-se da forma que o Estado tem de
se precaver para proteger o patrimônio público de participantes que não
tenham a devida experiência ou que não reúnam os atributos mínimos
para desempenhar a função para a qual serão designados. Tal estágio, con-

39
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

soante Mendes (2011, p. 411), presta-se, também, a reconhecer qual é o


sujeito com a proposta mais vantajosa, levando-se em conta sua idoneida-
de e os seus atributos relativos à capacidade técnica e de cumprimento de
encargos trabalhistas e econômicos.
No cenário brasileiro, a respeito da nova lei de licitações, a habilita-
ção acontece após o julgamento das propostas ou dos lances, segundo seu
art. 17, devendo o licitante vencedor fornecer declaração que contenha
os requisitos previstos em edital (BRASIL, 2021). Nota-se que a norma
estabelece a possibilidade de inversão das fases de habilitação, julgamento
e apresentação de propostas e lances, desde que haja fundamentação acerca
dos benefícios de tal alteração e com a devida referência em edital, con-
forme § 1º do art. 17, nas situações em que se adota a concorrência ou o
pregão (BRASIL, 2021).
Vale lembrar que a Lei nº 8.666/1993 prevê a fase de habilitação an-
tes da fase de julgamento das propostas, requisitando dos interessados a
mesma documentação informada na lei mais recente. A diferença entre o
disposto em cada uma é a apresentação do vocábulo exclusivamente na pri-
meira, o que denota a existência de um rol taxativo de documentos. Isso
não quer dizer que a lei de 2021 admita todo e qualquer documento na
fase habilitatória, mas dá azo a um cenário de flexibilidade e discriciona-
riedade ao administrador, desde que ele não cerceie a competição.
A bem da verdade, a oportunidade de identificar a fase de habilitação
antecedendo a fase de julgamento de propostas e vice-versa dependerá das
particularidades do executor do objeto contratual, ao passo que se procura
maior eficiência e qualificação dos certames, na esteira do art. 18, VIII,
da Lei nº 14.133/2021: “para os fins de seleção da proposta apta a gerar
o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública,
considerado todo o ciclo de vida do objeto” (BRASIL, 2021).
Cabe destacar também as determinações do CCP. A habilitação, na
forma do art. 81, decorre da análise de propostas e da adjudicação, período
no qual o adjudicatário deverá apresentar modelo de declaração previsto
no Anexo II e documentos que comprovem não haver sentença transitada
em julgado de certos crimes especificados na norma, além de regulariza-
ção na Segurança Social e nas Finanças (PORTUGAL, 2008).

40
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Entre as possibilidades de incorporação de requisitos relacionados à


sustentabilidade, em sua forma ambiental, encontram-se as habilitações
jurídica e técnica. Explica Gasparini (2016, p. 233) que durante a habili-
tação jurídica são entregues os documentos que têm o condão de provar
que o interessado na contratação pela Administração Pública encontra-se
devidamente registrado juridicamente e, por isso, deve ter seus direitos
preservados. De acordo com o art. 28 da Lei nº 8.666/1993 (BRASIL,
1993), os documentos a serem trazidos pelo licitante na habilitação ju-
rídica são os constitutivos do titular e da empresa; enquanto o art. 66 da
Lei nº 14.133/2021 (BRASIL, 2021) dispõe, quando cabível for, sobre a
autorização para o exercício da atividade a ser contratada. É aqui que se
vislumbra a exigência de uma licença ambiental.
No que tange à habilitação técnica, ela se subdivide em qualificação
técnico-operacional e qualificação técnico-profissional, ambas previstas
nos arts. 30 da Lei nº 8.666/1993 e 67 da Lei nº 14.133/2021. Nos termos
do Acórdão nº 1706/2007 do TCU, ficou definido, com base ainda na lei
de 1993, que “a primeira diz respeito à capacidade operativa da empresa
como um todo, [e] a segunda [...] diz respeito ao profissional que atua na
empresa” (BRASIL, 2007). Em suma, a capacidade técnica voltada à ope-
racionalização da empresa remete às condições de instalações, know-how e
aparelhagem, enquanto a capacitação profissional é o conhecimento inato
aos trabalhadores daquela organização empresarial.
A exigência de critérios ambientais fica evidente quando se trata da ca-
pacidade técnico-operacional, pelo fato de o art. 30, IV, da Lei nº 8.666/1993
e o art. 67, IV, da Lei nº 14.133/2021 informarem que o participante deverá
comprovar, mediante apresentação de documentos, o atendimento aos re-
quisitos previstos em lei especial (BRASIL, 1993, 2021). Assim, relembram
Terra, Csipai e Uchida (2011, p. 236-237) que se abrem brechas para que
decretos ou leis ordinárias apresentem imposições como o cadastramento
junto aos órgãos ambientais dos importadores, produtores ou comerciantes
de mercúrio metálico e o registro de empresas que comercializam produtos
agrotóxicos e pesticidas às autoridades competentes.
A influência dos critérios ecológicos recai sobre as certificações, os
laudos laboratoriais ou outros documentos que são requeridos para com-

41
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

provação da qualidade dos produtos a serem comprados pelo Poder Públi-


co. Deve-se atentar, segundo o art. 42, III, da Lei nº 14.133/2021, para a
“aferição da qualidade e da conformidade do produto ou do processo de
fabricação [...] emitido por instituição oficial competente ou por entidade
credenciada” (BRASIL, 2021). Surge a possibilidade, como salienta Nie-
buhr (2021, p. 107), caso não haja certificado ambiental específico, de o
interessado demonstrar suas alegações por outros meios técnicos similares,
devendo a entidade contratante não instituir preferências injustificadas.
Além disso, ainda existe a pré-qualificação que antecede a habilita-
ção. No Brasil, essa etapa já constava na legislação de 1993, mas estava
associada à modalidade de concorrência, na forma do art. 114: “sempre
que o objeto da licitação recomende análise mais detida da qualificação
técnica dos interessados” (BRASIL, 1993). Por sua vez, a novel lei tratou
o tema de modo conceitual, definindo-o, em seu art. 6º, XLIV, como o
“procedimento seletivo prévio à licitação, convocado por meio de edital,
destinado à análise das condições de habilitação, total ou parcial, dos in-
teressados ou do objeto” (BRASIL, 2021). Para Amorim (2020, p. 154),
a pré-qualificação é “procedimento auxiliar que visa simplificar a contra-
tação pública de modo a antecipar a análise documental que comprova as
capacidades específicas das empresas”.
Aduz Martins (2008, p. 239-240) que, no regime de contratação
pública portuguesa, a fase de habilitação, após adjudicação, é destinada
aos participantes capazes de cumprir requisitos negativos, a exemplo da
obrigação de não estar em situação irregular perante a Segurança Social,
bem como requisitos positivos, a exemplo do exercício profissional. So-
bre o último caso, prossegue expondo que a avaliação dos documentos é
meramente formal, ou seja, sem apreciação valorativa, porquanto o que
está em discussão é se há registro profissional para exercício da função
(MARTINS, 2008, p. 239-240). Acontece que será necessário juízo de
valor para aferir a capacidade econômico-fiscal da empresa adjudicada
para compreender se há meios de executar o contrato.
Raimundo e Martins (2010, p. 265) refletem que a fase de habili-
tação, no que tange ao regime português, não pode conter exigência de
certificação por normas de qualidade ou ambientais, tendo em vista que o

42
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

legislador estipulou apenas a apresentação de documentos que condicio-


nam, objetiva e formalmente, o exercício da função a ser desempenhada
na execução contratual. Entende-se que a discricionariedade do adminis-
trador público nessa etapa fica tolhida por exigência legal. A habilitação
no sistema licitatório português não tem o condão de admitir exigências
subjetivas, mas tão somente aquelas que demonstrem idoneidade e habili-
tação legal para exercício de profissão.
A requisição de critérios de sustentabilidade ambiental fica patente
quando se estuda o concurso limitado por prévia qualificação. A princí-
pio, trata-se, conforme explica Gonçalves (2018, p. 434), de procedimen-
to desenvolvido na fase de qualificação, onde qualquer entidade apresenta
sua candidatura, a fim de preencher os requisitos de capacidade solicitados
pela entidade adjudicante e, depois, se e quando convidada, apresenta sua
proposta com o fito de ser adjudicada. O cenário qualificatório na con-
tratação pública portuguesa assemelha-se à fase de habilitação brasileira,
notadamente pela necessidade de apresentação de requisitos mínimos de
capacidade técnica previstos no art. 164, h), do DL nº 18/2008. O CCP,
em seu art. 165, nº 1, d), explicita a confirmação da “capacidade dos can-
didatos adotarem medidas de gestão ambiental no âmbito da execução do
contrato a celebrar” (PORTUGAL, 2008).
A prova dos documentos de capacidade técnica na qualificação, con-
forme art. 164, nº 2, da lei portuguesa, deve ser feita por meio da apresen-
tação de certificados nacionais, de Estados membros da União Europeia
ou de organismos independentes com respeito às normas de garantia de
qualidade ou de gestão ambiental (PORTUGAL, 2008). Não havendo
acesso aos certificados ou obtendo-os fora do prazo de candidatura, diz o
art. 164, nº 3, que a “entidade adjudicante deve reconhecer também ou-
tras provas de medidas de garantia de qualidade ou de medidas de gestão
ambiental equivalentes” (PORTUGAL, 2008). Demonstra-se, na per-
cepção de Martins (2008, p. 239-240), que “em todo o procedimento
do concurso limitado por prévia qualificação há apreço pela liberdade das
formas, tanto no quesito de fixação de critérios de avaliação de capacidade
técnica, a partir da delimitação do objeto contratual, quanto na aceitação
de diversos certificados de gestão ambiental”.

43
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Todavia, existem óbices para incluir critérios de sustentabilidade eco-


lógica na fase de habilitação. A começar pelo que diz o art. 37, XXI, da
Constituição Brasileira, segundo o qual a Administração, atentando-se
aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência, oportunizará que as condições de disputas nas licitações sejam
igualitárias entre os concorrentes, mantendo-se apenas exigências de qua-
lificação técnica que sejam indispensáveis ao cumprimento das obrigações
contratuais (BRASIL, 1988).
Em julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº
3.670-0/DF, o Supremo Tribunal Federal (STF) adverte que determinada
lei se quedou inconstitucional por ofender a Constituição quando insere
como critério para contratação de empresas pelo Poder Público a discri-
minação dos empregados que estiverem inscritos em cadastros restritivos
de crédito, sem, portanto, relacionar-se com o objeto do certame (BRA-
SIL, 2007). Na mesma esteira está a Súmula nº 272 do TCU (BRASIL,
2012), que sinaliza para a vedação da inclusão de cláusulas na habilitação
que onerem os licitantes antes da celebração do contrato e que torna rele-
vante a exigência de certos requisitos, como quadro de pessoal com téc-
nicos certificados e qualificados, no decorrer do período contratual e não
antes, sob pena de prejudicar pequenas empresas e, consequentemente,
beneficiar as maiores que contam com quadros extensos de funcionários.
A cobrança por parte da Administração dos documentos comprova-
tivos de experiência técnica específica é defendida por Bim (2011, p. 197)
quando sua apresentação for conditio sine qua non para que a contratação
pública transcorra em perfeita harmonia com a legalidade. O que ocorre
com a determinação da integração dos certificados ambientais em sede de
habilitação técnica exige cuidados. Não se pode requerer o tipo específico
de certificado, mas sim os requisitos encontrados no mesmo, devendo a
entidade adjudicante expedir ato normativo que anuncie a utilização do
atestado ou apresente justificação técnica para o uso dessa documentação
em situações concretas – respeitada a discricionariedade administrativa.
Exige-se, como informa Gasparini (2016, p. 233), que haja previsão
em edital a fim de evitar que a entidade pública corra o risco de contratar
empresa ou profissional incapazes de desenvolver determinada atividade

44
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

bem como para frear ofensas principalmente aos princípios da impessoali-


dade e da competição. Reconhece-se, a partir de análise de Torres (2018,
p. 406), que os critérios de habilitação são relativos por representarem os
indicativos de que os concorrentes estão aptos a desenvolverem tarefas ou
a entregarem os bens com especificações definidas em edital, com o pro-
pósito de lograr êxito no cumprimento do contrato.
Ademais, as previsões das leis licitatórias brasileiras acerca da possibi-
lidade de comprovação pelos licitantes de outros requisitos técnicos, des-
de que previstos em lei especial, podem não prosperar. Explica Amorim
(2020, p. 98) que essas exigências deverão estar entabuladas no ato nor-
mativo primário e não nos dispositivos exarados nos atos normativos se-
cundários (decretos, instruções normativas, resoluções e portarias). Nesse
sentido, para Terra, Csipai e Uchida (2011, p. 237) seria preciso haver
justificação técnica para que os requisitos ambientais fossem reconhecidos
como aptos a integrarem a qualificação técnica.
Aliás, um problema encontrado pelos gestores públicos no acréscimo
de critérios ecológicos nas contratações públicas diz respeito à confecção
dos instrumentos convocatórios. Sabe-se que em determinadas situações
não se consubstancia na realidade das empresas de menor investimento
o apreço pelas preocupações socioambientais, motivo pelo qual os regra-
mentos dos certames ou das legislações poderão ocasionar direcionamen-
to na disputa. A variável ambiental, quando estiver na habilitação, deverá
constar de modo objetivo e passível de verificação no instrumento con-
vocatório. Vale dizer, também, que não serão admitidos requisitos habi-
litatórios que diminuam a competição. Para tanto, a definição dos aspec-
tos ambientais nessa fase não só deve seguir o que estabelece a lei, mas
também os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, com vistas
a executar o contrato de maneira segura, eficaz, econômica e sustentável.
É preciso pontuar acerca da linha tênue existente entre a possibilidade
de aplicação discricionária de critérios ecológicos na habilitação das
licitações públicas brasileiras e a ofensa aos princípios da isonomia e da
competitividade, dos quais se entende, respectivamente, a igualdade nas
condições de participação dos concorrentes, sem haver discriminação em
razão de nacionalidade, como explica Carvalho (2019, p. 40), ou de situa-

45
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ção jurídica, segundo Amorim (2020, p. 32); e a oferta, a todos os opera-


dores econômicos, de procedimentos abertos, sem a inclusão de “editais,
cláusulas ou condições irrelevantes e impertinentes que comprometam,
restrinjam ou frustrem o caráter competitivo dos certames” (AMORIM,
2020, p. 34).
No CCP, a habilitação segue a lógica de demonstrar a idoneidade
e a capacidade estritamente profissional dos operadores econômicos, ao
passo que, durante o concurso limitado por prévia qualificação existe uma
margem – ainda assim com respeito ao objeto contratual e ao caderno
de encargos – para exigência de documentos comprovativos de gestão e
qualidade ambiental. No contexto brasileiro, a habilitação pode admitir
a solicitação de critérios ambientais desde que previstos em leis especiais
sobre o ambiente e quando indispensáveis à garantia do cumprimento das
obrigações.
Barcessat (2011, p. 73) crê que toda suposta discriminação a partir de
critérios sustentáveis deve obedecer à correlação entre o fato de discrímen
e a diferenciação decorrente, ou seja, a criação de disparidades pode ser
concebida na medida em que o próprio princípio da igualdade admite
distinções de tratamento aos desiguais. Nada obstante, parece que para
a entrada em vigor desses critérios será preciso ultrapassar a supracitada
jurisprudência do STF, a qual segue o disposto no art. 37, XXI, da Cons-
tituição, e as Súmulas do TCU, que restringem o reconhecimento desses
requisitos ao mínimo possível durante a habilitação.
O fenômeno dos critérios ecológicos nas licitações públicas coa-
duna-se quando a habilitação se processa após o julgamento das pro-
postas, tendo em vista que a antecipação da fase poderá restringir a
disputa às empresas de grande porte que já estão preparadas. Na fase de
pré-qualificação há incidência de aceitação de padrões ecológicos pelo
fato de aludir a uma etapa no procedimento licitatório destinada ao es-
crutínio de qualificações técnicas específicas dos licitantes. O objetivo
é fazer uma triagem no procedimento de contratação do operador eco-
nômico a fim de que, na oportunidade de selecionar a proposta mais
vantajosa à Administração Pública, os concorrentes possam apresentar
as qualificações desejadas.

46
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Segundo Torres (2018, p. 164), o desafio da política pública voltada à


sustentabilidade nas contratações estatais é o de não ocasionar dirigismo
contratual e aumento das contratações que possam ser consideradas como
desarrazoadas, dispendiosas e passíveis de ofender princípios administra-
tivos. Assim, é salutar e possível a inclusão dos critérios ambientais na
fase de habilitação no que tange à licitação brasileira, fruto de análise do
presente artigo. Entretanto, deve-se observar de maneira imprescindível a
delimitação precisa do objeto contratual, evitando-se, também, as estipu-
lações de marcas e tipos de certificados em prol de uma licitação pública
que transcorra saudável e ambientalmente equilibrada, sem ferir as regras
principiológicas que dão suporte aos contratos na Administração, como os
princípios da isonomia e da competitividade.

CONCLUSÕES

É perceptível, nos ordenamentos jurídicos português e brasileiro, uma


mudança paradigmática na contratação pública. Outrora reconhecida
como aquela que deveria trazer como resultado a proposta economicamente
mais vantajosa para a Administração Pública, agora os certames devem
também cumprir uma função de proteção do meio ambiente, inclusive
com a inclusão de critérios ecológicos nos procedimentos e nas fases.
Esforçou-se em compreender a (im)possibilidade de inclusão de cri-
térios ambientais na fase de habilitação, em especial nas licitações bra-
sileiras. Para tanto, foi importante saber que a etapa habilitatória remete
àquele período em que os concorrentes demonstrarão sua idoneidade e
os requisitos técnicos específicos. Em Portugal, a habilitação não permi-
te explicitamente a presença de critérios ambientais, deixando esse mister
à fase qualificatória do concurso limitado por prévia qualificação. No
Brasil, as legislações sobre contratação pública, apesar de preverem uma
etapa qualificatória, dedicam atenção à habilitação quando permitem
que, na comprovação da capacidade técnica, seja levado em considera-
ção documentos permitidos em lei especial. Assim, seria possível exigir
requisitos ecológicos.
No entanto, essa oportunidade encontra óbices: i) legais, com a in-
terpretação restritiva de apresentação dos documentos necessários à com-

47
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

provação das habilidades que sejam indispensáveis à concretização do con-


trato e ii) jurisprudenciais, a partir de decisões do STF e do TCU que
indicam uma prevalência de critérios que tenham relação direta com o
objeto previsto em edital. Esses entraves não oferecem lacunas para mácu-
las aos princípios da isonomia e da competitividade.
Pelo exposto, concorda-se com a importância da mudança de para-
digma das licitações meramente voltadas aos aspectos econômicos para
aquelas em que temas ambientais vêm à tona. Aliás, é possível, no Brasil,
que exigências de sustentabilidade ecológica sejam inclusas na fase de ha-
bilitação quando posterior ao julgamento das propostas, desde que exista
correlação lógica e razoável com o objeto a ser contratado e com as defini-
ções técnicas estabelecidas no edital.
Portanto, ao seguir essas premissas, o gestor público poderá adotar
critérios ambientais nas etapas de habilitação ao mesmo tempo em que
conserva os fundamentos da contração pública: a igualdade e a com-
petição.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 jan. 2021.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art.


37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licita-
ções e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
Brasília, DF: Presidência da República, 1993. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: 30
jan. 2021.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1 de abril de 2021. Lei de Licitações e Con-


tratos Administrativos. Brasília, DF: Presidência da República, 2021.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 30 jan. 2021.

48
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucio-


nalidade 3.670-0 Distrito Federal. Ação direta de inconstitu-
cionalidade: L. Distrital 3.705, de 21.11.2005, que cria restrições
a empresas que discriminarem na contratação de mão-de-obra: in-
constitucionalidade declarada. Requerente: Governador do Distrito
Federal. Requerida: Câmara Legislativa do Distrito Federal. Rela-
tor: Min. Sepúlveda Pertence, 2 de abril de 2007. Disponível em:
http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&do-
cID=456060. Acesso em: 27 mar. 2021.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 1706/2007 – Ple-


nário. Recorrente: Vilanova Maranhão Advogados. Recorrido:
Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB. Relator: Min.
Raimundo Carreiro, 28 de agosto de 2007. Disponível em: https://
pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/redireciona/acordao-completo/%22A-
CORDAO-COMPLETO-33721%22. Acesso em: 10 abr. 2021.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula nº 177 – Plenário. A


definição precisa e suficiente do objeto licitado constitui regra indis-
pensável da competição, até mesmo como pressuposto do postulado
de igualdade entre os licitantes, do qual é subsidiário o princípio
da publicidade, que envolve o conhecimento, pelos concorrentes
potenciais das condições básicas da licitação, constituindo, na hi-
pótese particular da licitação para compra, a quantidade demandada
uma das especificações mínimas e essenciais à definição do objeto
do pregão. Relator: Min. Octávio Gallotti, 26 de outubro de 1982.
Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.gov.br/#/documento/su-
mula/*/NUMERO%253A177/DTRELEVANCIA%2520desc%-
252C%2520NUMEROINT%2520desc/0/sinonimos%253Dtrue.
Acesso em: 30 mar. 2021.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Súmula nº 272 – Plenário. No


edital de licitação, é vedada a inclusão de exigências de habilitação e
de quesitos de pontuação técnica para cujo atendimento os licitantes
tenham de incorrer em custos que não sejam necessários anterior-
mente à celebração do contrato. Relator: Min. José Mucio Mon-

49
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

teiro, 2 de maio de 2012. Disponível em: https://pesquisa.apps.tcu.


gov.br/#/redireciona/sumula/%22SUMULA-EJURIS-22107%22.
Acesso em: 17 mar. 2021.

AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. Licitações e contratos admi-


nistrativos: teoria e jurisprudência. Brasília: Senado Federal, 2017.
Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/533714.
Acesso em: 12 maio 2020.

BARCESSAT, Lena. Papel do estado brasileiro na ordem econômica e


na defesa do meio ambiente: necessidade de opção por contratações
públicas sustentáveis. In: SANTOS, Murillo Giordan; BARKI, Te-
resa Villac Pinheiro (coord.). Licitações e contratações públicas
sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. Cap. 3.

BIM, Eduardo Fortunato. Considerações sobre a juridicidade e os limi-


tes da licitação sustentável. In: SANTOS, Murilo Giordan; BARKI,
Teresa Villac Pinheiro (coord.). Licitações e contratações públi-
cas sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. Cap. 9.

CARVALHO, Raquel. Direito da contratação pública. Porto: Uni-


versidade Católica, 2019.

D’OLIVEIRA, Rafael Lima Daudt. Contratação pública sustentável no


direito europeu e português: reflexões sobre a sua evolução e a di-
retiva 2014/24/UE. Revista de Contratos Públicos, Coimbra, n.
14, maio/ago. 2014.

ESTORNINHO, Maria João. Curso de direito dos contratos públi-


cos: por uma contratação pública sustentável. Coimbra: Almedina,
2014.

FERRAZ, Luciano. Função regulatória da licitação. A&C Revista de


Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano
9, n. 37, p. 133-142, jul./set. 2009. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.21056/aec.v9i37.301. Acesso em: 20 mar. 2021.

FRANÇA, Vladimir da Rocha. A licitação e seus princípios. Revista


Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, n.

50
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

8, nov.-jan. 2006-2007. Disponível em: http://www.direitodoesta-


do.com.br/codrevista.asp?cod=148. Acesso em: 18 fev. 2021.

GASPARINI, Audrey. Habilitação, consórcios e registros cadastrais:


arts. 27 e 37 da lei nº 8.666 de 1993. In: PEREIRA JUNIOR, Jessé
Torres. Comentários ao sistema legal brasileiro de licitações e
contratos administrativos. São Paulo: NDJ, 2016.

GOMES, Carla Amado; CALDEIRA, Marco. Contratação pública


“verde”: uma evolução (eco)lógica. In: GOMES, Carla Amado;
PEDRO, Ricardo; SERRÃO, Tiago; CALDEIRA, Marco (org.).
Comentários à revisão do código de contratos públicos. 2. ed.
Lisboa: AAFDL, 2018. Cap. 8, vol. II.

GONÇALVES, Pedro Costa. Direito dos contratos públicos. 2. ed.


Coimbra: Almedina, 2018.

LOPES, Pedro Henrique Christofaro. Críticas à função regulatória da li-


citação: conhecendo limites para uma aplicação informada. Revista
da procuradoria-geral do banco central (PGBC), Brasília, DF,
v. 14, n. 1, p. 149-151, jun. 2020. Disponível em: https://revistapgbc.
bcb.gov.br/index.php/revista/article/view/1049. Acesso em: 31 mar.
2021.

MARTINS, Ana Gouveia. Concurso limitado por prévia qualificação.


In: GONÇALVES, Pedro (org.). Estudos de contratação pública
I. Coimbra: Coimbra Editora, 2008.

MENDES, Renato Geraldo. Lei de licitações e contratos anotada –


notas e comentários à lei nº 8.666 de 93. 8. ed. Curitiba: Zênite,
2011.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Crítica à utilização das licitações públicas


como instrumento de políticas públicas. Direito do Estado, Salva-
dor, 26 ago. 2016. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.
br/colunistas/joel-de-menezes-niebuhr/critica-a-utilizacao-das-li-
citacoes-publicas-como-instrumento-de-politicas-publicas. Acesso
em: 28 mar. 2021.

51
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

NIEBUHR, Pedro. Licitações sustentáveis. In: NIEBUHR, Joel (coord.).


Nova lei de licitações e contratos administrativos. 2. ed. Curi-
tiba: Zênite, 2021. E-book. Disponível em: https://www.zenite.com.
br/books/nova-lei-de-licitacoes/nova_lei_de_licitacoes_e_contra-
tos_administrativos.pdf. Acesso em: 10 abr. 2021.

PORTUGAL. Decreto-Lei nº 18, de 29 de janeiro de 2008. Aprova o


Código dos Contratos Públicos, que estabelece a disciplina aplicável
à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos
que revistam a natureza de contrato administrativo. Lisboa: PGDL,
2008. Disponível em: https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_ar-
ticulado.php?nid=2063&tabela=leis&so_miolo=. Acesso em: 27
mar. 2021.

RAIMUNDO, Miguel Assis; MARTINS, Marco Real. Documentos de


habilitação e documentos de qualificação nos procedimentos de for-
mação de contratos públicos. In: RAIMUNDO, Miguel Assis. Es-
tudos sobre contratos públicos. Lisboa: AAFDL, 2010. Cap. 6.

ROLIM, Delano Sobral. A finalidade da licitação e os princípios da isono-


mia e vantajosidade nas contratações públicas sustentáveis. In: CAR-
VALHO, Fábio Lins de Lessa; MAIA, Vitor Mendonça (coord.).
Direito administrativo propositivo. Porto: Juruá, 2019.

TERRA, Luciana Maria Junqueira; CSIPAI, Luciana Pires; UCHIDA,


Mara Tieko. Formas práticas de implementação das licitações sus-
tentáveis: três passos para a inserção de critérios socioambientais nas
contratações públicas. In: SANTOS, Murillo Giordan; BARKI, Te-
resa Villac Pinheiro (coord.). Licitações e contratações públicas
sustentáveis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. Cap. 10.

TORRES, Rony Charles Lopes de. Leis de licitações públicas co-


mentadas. 9. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.

52
PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
(PPPS): UMA ANÁLISE DOS
PRINCIPAIS ELEMENTOS DOS
CONTRATOS DE CONCESSÃO DE
PARCERIAS PÚBLICO-PRIVADAS
Eduardo Lopes Machado4

INTRODUÇÃO

A Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004, passou a instituir nor-


mas gerais sobre licitação e contratação de parceria público-privada no
âmbito da Administração Pública, vinculando União, Estados, Distrito
Federal e Municípios à sua observância e aplicando-a, também, aos:

Órgãos da administração pública direta dos Poderes Executivo e


Legislativo, aos fundos especiais, às autarquias, às fundações pú-
blicas, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às
demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União,
Estados, Distrito Federal e Municípios. (BRASIL, 2004).

4 Mestrando em Direito Público pela Universidade FUMEC. Pós-graduado em Mediação e


Gestão de Conflitos (Famart). Graduado em Direito pela Universidade FUMEC.

53
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Em seu art. 2º, a lei define que a parceria público-privada é um con-


trato administrativo de concessão, o qual se subdivide em duas modali-
dades: (i) a modalidade patrocinada; e (ii) a modalidade administrativa
(BRASIL, 2004).
O fundamento constitucional da parceria público-privada está no art.
22, XXVII5, que trata da competência privativa da União para legislar so-
bre normas gerais de licitação e contratação. Isso quer dizer que a lei federal
deve reger de maneira geral os contratos administrativos de concessão de
parceria público-privada celebrados por quaisquer dos entes federativos: a
própria União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios,
alcançando, também, as entidades da administração indireta (autarquias,
fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista).
Ainda dentro do alcance da Lei nº 11.079/2004 estão os fundos especiais
e as entidades controladas direta ou indiretamente pelos entes federativos.
Importante destacar que a competência para legislar sobre o assunto
“contratação” e “licitação” e estabelecer as regras gerais para esses pro-
cessos é da União, entretanto, há a possibilidade de existirem leis sobre
o tema no âmbito dos demais entes federativos, mas elas atuam sempre
de forma suplementar às federais. Essa também é a doutrina de Carvalho
Filho (2009, p. 405) ao afirmar que “a competência da União para editar
normas gerais não impede que os demais entes federativos instituam legis-
lação suplementar.” Outro ponto que corrobora esse entendimento está
no próprio texto da Lei nº 11.079/2004, que em seu Capítulo VI (arts. 14
ao 22) trata das disposições aplicáveis e obrigatórias somente à União, ou
seja, a própria lei esclarece que os outros entes podem legislar de forma
suplementar sobre a matéria nos limites de suas competências.
Os contratos de parcerias público-privadas, ou simplesmente parce-
rias público-privadas (PPPs), têm sido adotados com relativo sucesso em

5 Art. 22, XXVII, da CRFB/88: “XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as
modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União,
Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as em-
presas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;” (BRASIL,
1988).

54
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

vários países europeus, como Portugal, Espanha, Inglaterra6, 7 e Irlanda,


para citar alguns exemplos. Há dois argumentos principais para justificar
a adoção dessa modalidade de concessão em países em desenvolvimento
como o Brasil: “a falta ou insuficiência de recursos financeiros e a eficiên-
cia da gestão do setor privado.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 405,
grifo do autor). Esses mesmos argumentos fundamentam o entendimento
de Brito e Silveira (2005, p. 9-10):

Duas questões permeiam o debate econômico em torno da justi-


ficativa de se adotar um programa de parcerias público-privadas: a
obtenção de espaço orçamentário para viabilizar os investimentos em
um quadro de restrição fiscal e a eficiência na prestação de serviços
públicos.

Na busca por uma Administração Pública mais eficiente é que vários


institutos do modelo de Administração Gerencial foram introduzidos no
Brasil, cujo marco inicial foi a edição da Emenda Constitucional nº 19,
durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. A introdução de um
novo sistema de gestão buscava uma abordagem diferente para a “reorga-
nização patrimonial do setor público, por meio dos grandes processos de
desestatização, que interferiu de maneira decisiva na forma de provimento
de bens e serviços públicos.” (BRITO; SILVEIRA, 2005, p. 7).

1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

Conforme estabelecido no art. 2º da Lei nº 11.079/2004, a “parceria


público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade

6 Para Carvalho (2008, p. 806), “é no Reino Unido, portanto, onde se encontra o pioneirismo
na institucionalização jurídica dos arranjos na cooperação entre o setor público e privado
que culminaram no modelo de parcerias público-privadas já absorvido no ordenamento
jurídico brasileiro.”
7 Para Mello (2007, p. 753), “trata-se de instituto controvertido, forjado na Inglaterra, ao
tempo da sra. Thatcher, e acolhido entusiasticamente pelo Banco Mundial e pelo Fundo
Monetário Internacional no cardápio de recomendações aos subdesenvolvidos.”

55
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

patrocinada ou administrativa” (BRASIL, 2004). Nesse sentido, Carva-


lho Filho (2009, p. 406) conceitua a PPP como:

O acordo firmado entre a Administração Pública e pessoa do setor


privado com o objetivo de implantação ou gestão de serviços pú-
blicos, com execução de obras ou fornecimento de bens, mediante
financiamento do contrato, contraprestação pecuniária do Poder
Público e compartilhamento de riscos e dos ganhos entre os pac-
tuantes.

É interessante destacar que para alguns autores, incluindo José dos


Santos Carvalho Filho, a denominação “parceria” trazida no texto legal
apresenta algumas impropriedades terminológicas e, dessa forma, poderia
causar confusão. Primeiramente porque esse termo contrapõe-se à ideia
de contrato, ou seja, “onde há contrato (tipicamente considerado) não
há parceria em seu sentido verdadeiro” (CARVALHO FILHO, 2009, p.
406). Em segundo lugar, o denominado “parceiro privado” em nada se
diferencia, do ponto de vista jurídico, das pessoas comuns do setor priva-
do, e firmar contrato com a Administração Pública está a “perseguir os
lucros e vantagens da execução de um serviço ou obra pública” (CARVA-
LHO FILHO, 2009, p. 406).
A natureza jurídica do contrato de PPP é o de contrato administrativo
de concessão de serviço público, conforme depreende-se da literalidade
do art. 2º da referida lei. Entretanto, deve-se esclarecer que se trata de uma
concessão especial para distingui-la da concessão comum, regida pela Lei
nº 8.987/1995. Carvalho Filho (2009, p. 407) lembra que, apesar de serem
consideradas concessões especiais com regime próprio, ainda “incidem
sobre tais contratos o princípio da desigualdade das partes e as cláusulas
exorbitantes peculiares aos contratos administrativos [...], entre elas a alte-
ração unilateral do contrato e a aplicabilidade de sanções administrativas.”
Vale ressaltar, também, que a lei expressamente impôs três vedações
para a celebração das PPPs. A primeira está relacionada ao valor do con-
trato: quando da promulgação da Lei nº 11.079/2004, a redação original
estabelecia o patamar quantitativo mínimo de 20 milhões de reais, entre-
tanto, a Lei nº 13.529/2017 reduziu esse patamar para 10 milhões de reais,

56
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

possibilitando, assim, a ampliação do número de contratos de parceria. A


segunda vedação diz respeito ao tempo de prestação do serviço, que não
pode ser inferior a 5 anos nem superar 35 anos, já computada eventual
prorrogação de prazo (art. 5º, I, da Lei nº 11.079/2004). A terceira inter-
dição, expressa no inciso III, § 4º, do art. 2º, é a impossibilidade de realizar
esse tipo de contrato com objetivo único de provimento de mão de obra,
fornecimento e instalação de equipamentos ou execução de obra pública.

2. MODALIDADES

Conforme estabelecido no art. 2º da Lei nº 11.079/2004, os contratos


administrativos de parceria público-privada estão subdivididos em duas
modalidades: a concessão patrocinada e a concessão administrativa.

2.1. CONCESSÃO PATROCINADA

O § 1º do art. 2º define concessão patrocinada como: “A concessão


de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei nº 8.987, de
13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada
dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro
privado” (BRASIL, 2004).
Dessa maneira, o concessionário irá receber recursos de duas fon-
tes: uma é originada do pagamento das tarifas pelos usuários; enquanto a
outra tem caráter complementar, originando-se de uma contraprestação
pecuniária pelo poder concedente ao parceiro privado (CARVALHO FI-
LHO, 2009, p. 407).
A concessão patrocinada tem a característica precípua de oferecer um
serviço público ao usuário, o qual será parcialmente pago por ele e pelo
Poder Público concedente no contrato de concessão. Por ter as caracte-
rísticas muito próximas às concessões comuns, aplica-se subsidiariamente
à concessão patrocinada a Lei nº 8.987/1995 (Lei Geral das Concessões),
bem como outras leis que sejam correlatas a ela (CARVALHO FILHO,
2009, p. 407). Brito e Silveira (2005, p. 14) fortalecem esse entendimento
ao afirmarem que:

57
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

[...] para a concessão patrocinada, por se tratar de prestação de ser-


viço público ao usuário, aplica-se subsidiariamente o disposto na
lei de concessões. É o caso, por exemplo, da concessão de uma
rodovia em que a cobrança de tarifa módica não seria suficiente
para recuperar o investimento e remunerar o capital, sendo neces-
sária uma complementação da receita pela autoridade pública para
tornar o empreendimento viável.

As concessões patrocinadas cujo valor da remuneração paga pelo Po-


der público concedente ultrapasse 70% do valor total da remuneração
paga ao parceiro privado dependerão de autorização legislativa específica
(art. 10, § 3º, da Lei nº 11.079/2004). Nesse ponto há de se observar que,
dependendo do valor pago pelo poder concedente, a concessão patrocina-
da fica mais próxima da modalidade de concessão administrativa, mas sem
se confundir com esta. É o caso, por exemplo, de uma concessão patroci-
nada na qual o poder concedente arcará com 99% do valor da remunera-
ção do parceiro privado. Evidentemente que a celebração desse contrato
está vinculada a uma autorização legislativa específica, porém, nada obsta
que exista tal contrato de concessão patrocinada no qual o usuário arcará
com apenas 1% da remuneração do parceiro privado. É dentro dessa linha
de pensamento que Mello (2007, p. 755) critica tal possibilidade:

Curiosamente, embora a concessão de serviços públicos clássica


seja adotada para poupar investimentos públicos ou para acudir a ca-
rência deles, e esta última razão sempre foi a habitualmente apon-
tada, entre nós, como justificativa para a introdução das PPPs, a
lei pressupõe que na modalidade patrocinada a contraprestação
pecuniária a ser desembolsada pelo Poder Público poderá corres-
ponder a até 70% da remuneração do contrato ou mais que isso,
se houver autorização legislativa (art. 10, § 3º). Logo, é possível,
de direito, que alcance qualquer percentual, desde que inferior a
100%. Seguramente, este não é o modo de acudir à carência de
recursos públicos; antes, pressupõe que existam disponíveis e implica
permissão legal para que sejam despendidos: exatamente a antítese
das justificativas apontadas para exaltar este novo instituto.

58
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Em resumo, as PPPs na modalidade de concessão patrocinada são


aquelas em que o parceiro privado será remunerado por duas fontes distin-
tas e complementares: a primeira é o próprio Poder Público concedente, e
a segunda é paga pelo usuário do serviço através de tarifa. A parcela paga
pelo Poder Público ao parceiro privado deve obedecer ao teto de 70%
da remuneração, estando sujeita a autorização legislativa específica caso
ultrapassem esse limite, a fim de que o contrato celebrado tenha plena
eficácia.

2.2. CONCESSÃO ADMINISTRATIVA

“Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de


que a Administração Pública seja usuária direta ou indireta, ainda que en-
volva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens” (BRASIL,
2004), essa é a definição trazida no § 2º do art. 2º da Lei 11.079/2004. Em
comparação com a concessão patrocinada, ela não admite a tarifa como
fonte de recursos para o pagamento da obra ou serviço, sendo este efetua-
do diretamente pelo poder concedente.
Mello (2007, p. 757) qualifica a concessão administrativa como a falsa
concessão, argumentando que o valor pago pelo Poder Público não cor-
responde a uma tarifa, “mas [a] uma remuneração como qualquer outra
– o que, evidentemente, descaracteriza a parceria como uma concessão.”

3. CARACTERÍSTICAS DAS PPPS

Carvalho Filho (2009, p. 410) aponta três características básicas que


diferenciam os contratos de PPPs dos demais contratos administrativos.
A primeira está no financiamento do setor privado, ou seja, “esse aspecto
indica que o Poder Público não disponibilizará integralmente (até porque
não os têm) recursos financeiros para os empreendimentos públicos que
contratar” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 410).
A segunda é o compartilhamento de riscos:

[...] assim entendido o fato de que o Poder concedente deve soli-


darizar-se com o parceiro privado no caso da eventual ocorrência

59
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

de prejuízo ou outra forma de déficit, ainda que tal consequência


tenha tido como causa fatos imprevisíveis, como o caso fortuito e
a força maior, o fato do príncipe e a imprevisão em virtude de álea
econômica extraordinária. (CARVALHO FILHO, 2009, p. 410).

Essa característica é essencial para diferenciar os contratos de PPP dos


contratos de concessão comum, regidos pela Lei nº 8.987/1995, sendo
possível observar que, nos primeiros, há uma distribuição dos riscos do
empreendimento entre o poder concedente e a concessionária, enquanto
nos segundos os riscos do empreendimento são de total responsabilidade
da concessionária.
Por fim, a terceira característica é a pluralidade compensatória, que é
a “obrigação do Estado em favor do concessionário pela execução da obra
ou serviço.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 410).

4. DIRETRIZES DAS PPPS

Como contrato administrativo, as concessões especiais sob o regime


de parceria deverão ser celebradas atendendo determinadas diretrizes dis-
postas na lei (BRASIL, 2004), “sendo estas consideradas as linhas a serem
observadas quando a Administração elaborar seus projetos para tais es-
pécies de ajuste.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 411). O autor ainda,
ao analisar o art. 4º da referida lei, divide as diretrizes em dois grupos
distintos: no primeiro constam as diretrizes comuns a todos os contratos
administrativos, incisos I, II e V do art. 4º; no segundo estão as diretri-
zes específicas dos contratos de PPP, incisos III, IV, VI, e VII do art. 4º
(CARVALHO FILHO, 2009, p. 411).
Importante destacar o posicionamento de Mello (2007, p. 761-762)
no tocante ao rol de diretrizes estabelecido na Lei das PPPs, segundo o
qual, com exceção do inciso VI do art. 4º, repartição objetiva de riscos
entre as partes, as demais diretrizes são demasiadamente óbvias para não
constarem no texto legal:

Com exceção da “repartição objetiva de riscos entre as partes”,


todas as demais diretrizes, obviamente, não precisariam ser referi-

60
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

das. Com efeito, ninguém no mundo imaginaria que os contratos


em apreço deveriam buscar ineficiência tanto no cumprimento das
missões estatais quanto no emprego de recursos; nem que deve-
riam desrespeitar os interesses diretos dos destinatários dos serviços e dos
entes privados incumbidos da sua execução; nem que, por via de-
les, fossem delegados a função jurisdicional do Estado, ou a sua função
regulatória, ou o exercício do poder de polícia ou de quaisquer outras ativida-
des que o próprio dispositivo menciona como “exclusivas do Estado”; nem
que as parcerias se empenhassem na busca da irresponsabilidade fiscal;
como também ninguém suporia que ditos contratos devessem pri-
mar pela falta de transparência dos procedimentos e das decisões. Do
mesmo modo não se suporia que vieram para promover a insusten-
tabilidade financeira e desvantagens econômicas. Assim, seria o caso de
perguntar: por que tais dispositivos foram incluídos na lei?

5. CLÁUSULAS NOS CONTRATOS DE PPPS

Na Lei nº 11.079/2004 estão dispostos dois grupos de cláusulas


contratuais. No primeiro estão as cláusulas essenciais do art. 23 da Lei
nº 8.987/1995, acrescidas das cláusulas essenciais específicas da Lei nº
11.079/2004. No segundo estão as cláusulas não essenciais, que ficam no
âmbito do poder discricionário do Poder concedente a sua inclusão ou
não nos contratos de parceria.

5.1. CLÁUSULAS ESSENCIAIS

Inicialmente, o art. 5º, caput, da Lei nº 11.079/2004 remete à obser-


vância das cláusulas essenciais previstas no art. 23 da Lei nº 8.987/1995
(Lei Geral das Concessões), que devem também constar nos contratos de
parcerias público-privadas. É importante destacar que a própria lei deno-
mina essas cláusulas como essenciais e, consequentemente, “a ausência ou
distorção de semelhantes cláusulas provoca a nulidade do contrato. Têm,
por conseguinte, intrínseca relação com a validade do pacto concessio-
nal.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 411).

61
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Além das cláusulas essenciais do art. 23 da lei de 1995, ainda deve


conter nos contratos as cláusulas previstas na própria Lei nº 11.079/2004,
denominadas cláusulas essenciais adicionais (CARVALHO FILHO,
2009, p. 412). Dessa maneira, “é obrigatório que no instrumento con-
tratual conste a previsão da repartição de riscos entre concedente e con-
cessionário, inclusive da ocorrência de fatos imprevisíveis (art. 5º, III).”
(CARVALHO FILHO, 2009, p. 412). Por outro lado, “a vigência do
contrato não será inferior a cinco, nem superior a trinta e cinco anos, já
considerada eventual prorrogação (art. 5º, I).” (CARVALHO FILHO,
2009, p. 412). Também não podem faltar, como bem destaca Carvalho
Filho (2009, p. 412) “as cláusulas que prevejam a remuneração e atualiza-
ção dos valores contratuais e as que indiquem os meios de preservação da
atualidade da prestação dos serviços (art. 5º, IV e V).”

5.2. CLÁUSULAS NÃO ESSENCIAIS

Como o próprio nome indica, as cláusulas não essenciais são aquelas


cuja ausência não provoca a nulidade do contrato de parceria. A inserção
dessas cláusulas depende exclusivamente da avaliação do Poder conceden-
te, ou seja, trata-se de ato discricionário no qual a concedente irá avaliar a
conveniência e a oportunidade de sua inclusão no contrato.
O § 2º do art. 5º da Lei nº 11.079/2004 elenca um rol exemplificativo
dessas cláusulas não essenciais:

§ 2º Os contratos poderão prever adicionalmente:

I - os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a


transferência do controle ou a administração temporária da socie-
dade de propósito específico aos seus financiadores e garantidores
com quem não mantenha vínculo societário direto, com o objetivo
de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continui-
dade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o
previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei nº 8.987,
de 13 de fevereiro de 1995 ; (Redação dada pela Lei nº 13.097,
de 2015)

62
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

II – a possibilidade de emissão de empenho em nome dos finan-


ciadores do projeto em relação às obrigações pecuniárias da Admi-
nistração Pública;

III – a legitimidade dos financiadores do projeto para receber in-


denizações por extinção antecipada do contrato, bem como paga-
mentos efetuados pelos fundos e empresas estatais garantidores de
parcerias público-privadas. (BRASIL, 2004).

Importante destacar que o inciso I, acima transcrito, traduz uma


importante inovação trazida pela Lei das PPPs, que é a possibilida-
de de prever, no próprio contrato de parceria, os chamados step-in-
-rights (BRITO; SILVEIRA, 2004, p. 15). Dessa forma, “[...] tra-
ta-se do direito do financiador de intervir no controle da sociedade
de propósito específico, em caso de inadimplência dos contratos de
financiamento ou de queda nos níveis de retorno a patamares que
comprometam o cumprimento das obrigações futuras.” (BRITO;
SILVEIRA, 2004, p. 15).

6. CONTRAPRESTAÇÃO E GARANTIAS

Com o intuito de dar maior estabilidade à relação estabelecida com o


parceiro privado, o legislador determinou um conjunto de regras diferen-
ciadas para os contratos de PPPs, as quais são listadas a seguir.

6.1. CONTRAPRESTAÇÃO

Um dos elementos caracterizadores dos contratos de concessão de


parceria público-privada é a contraprestação pecuniária (BRASIL, 2004).
Nesse sentido, Carvalho Filho (2009, p. 414) lembra que a ideia de con-
traprestação pecuniária pode ser interpretada de duas maneiras: a primeira
é que o Poder concedente deve efetuar o pagamento ao concessionário
diretamente em dinheiro; a segunda se dá através de mecanismo jurídico
que possa ser convertido em pecúnia.
Importante destacar que a contraprestação pecuniária efetuada pelo
Poder concedente deve, necessariamente, ser consumada somente quan-

63
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

do o serviço estiver sendo de fato prestado pelo parceiro privado (BRA-


SIL, 2004, art. 7º), estando proibida qualquer orientação em sentido
contrário a essa regra, sob pena de configurar improbidade administra-
tiva. A Lei das PPPs, em seu art. 7º, § 1º, permite que o pagamento seja
efetuado proporcionalmente à prestação do serviço, dessa maneira, “a
contraprestação será parcial e corresponderá à parte do serviço que já
tiver sido executada e disponibilizada para o poder concedente.” (CAR-
VALHO FILHO, 2009, p. 414).
A lei também trouxe um mecanismo de incentivo à eficiência na ges-
tão dos contratos de parceria e consiste na denominada variabilidade re-
muneratória (BRITO; SILVEIRA, 2004, p. 15; CARVALHO FILHO,
2009, p. 414), que consiste na possibilidade de o Poder concedente esta-
belecer cláusula na qual a remuneração do parceiro privado esteja vincu-
lada ao seu desempenho (BRASIL, 2004). Carvalho Filho (2009, p. 414)
ressalta que “[...] para tanto, será imperioso que o contrato estabeleça de
forma clara e precisa as metas e os padrões de qualidade e disponibilidade
do objeto do ajuste”.

6.2. FORMAS DE CONTRAPRESTAÇÃO

A principal forma de contraprestação nos contratos de parceria é a


ordem bancária, além de ser admitida, também, a cessão de créditos tri-
butários (art. 6º, II), “como é [o] caso, por exemplo, de créditos derivados
de indenizações devidas por terceiros” (CARVALHO FILHO, 2009, p.
415). Outras formas de contraprestação são a outorga de direitos em face
da Administração Pública e a outorga de direitos sobre bens públicos do-
minicais. E, por fim, a lei ainda poderá prever outras formas de contra-
prestação nos contratos de parceria (BRASIL, 2004).

6.3. GARANTIAS

As garantias, nas parcerias público-privadas, têm o claro objetivo de


não permitir que o parceiro privado “[...] sofra prejuízos ou corra riscos
diante de eventual inadimplemento do poder concedente ou até mes-
mo em virtude de fatos imprevisíveis” (CARVALHO FILHO, 2009,

64
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

p. 415). A lei das parcerias, em seu art. 8º, enumera cinco garantias que
poderão ser oferecidas pela Administração Pública, além de haver, ain-
da, a possibilidade de adoção de outros mecanismos admitidos em lei
(BRASIL, 2004).
A primeira dessas garantias é a vinculação de receitas, prevista no in-
ciso I do art. 8º. Esse inciso, no entanto, é causa de divergência doutriná-
ria: uma corrente entende que a vinculação de receitas não fere o preceito
constitucional (art. 167, IV, da Constituição Federal); outra entende que
o inciso em questão é indubitavelmente inconstitucional. Nesse ínterim,
Carvalho Filho (2009, p. 415) argumenta:

Como é sabido, a Constituição veda a vinculação de receita de


impostos a órgão, fundo ou despesa (art. 167, IV), mas o próprio
dispositivo consigna algumas hipóteses em que a vinculação é ad-
missível. Uma delas é a prestação de garantias às operações de cré-
dito por antecipação de receita, matéria passível de ser prevista na
lei orçamentária anual, nos termos do art. 165, § 8º, da CF. Por
conseguinte, havendo previsão no contrato, é legítimo que a con-
cedente ofereça como garantia ao parceiro privado recursos vincu-
lados à arrecadação de impostos.

Para Mello (2007, p. 766), “há grosseira inconstitucionalidade na pre-


visão do art. 8º, I, segundo o qual obrigações pecuniárias da Adminis-
tração resultantes da parceria poderiam ser garantidas por vinculação de
receitas.” O autor fundamenta sua afirmação ressaltando o caráter consti-
tucional da questão, pois: “a proibição de vinculação de receitas residente
no art. 167, IV, da Constituição só pode ser excepcionada nos casos que
especifica, consoante ali mesmo previsto e estampado de maneira exube-
rante e clara.” (MELLO, 2007, p. 766).
Outros mecanismos garantidores são: instituição ou utilização de
fundos especiais previstos em lei (art. 8º, II); contratação de seguro-garan-
tia com as companhias seguradoras que não sejam controladas pelo Poder
Público (8º, III); garantia prestada por organismos internacionais ou ins-
tituições financeiras (art. 8º, IV); garantias prestadas por fundo garantidor

65
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ou empresa estatal criada para essa finalidade (art. 8º, V); e outro mecanis-
mos admitidos em lei (art. 8º, VI) (BRASIL, 2004).
Vale destacar a opinião de Mello (2007, p. 767), que ressalta a incons-
titucionalidade das garantias previstas na lei das parcerias. Em relação aos
fundos (previstos no art. 8º, II, da Lei nº 11.079/2004) esse autor funda-
menta que:

É que ditos fundos se constituiriam com bens públicos. Ora, bens


públicos, como é sabido e ressabido, não são suscetíveis de penho-
ra, nem de qualquer modalidade de apoderamento forçado, visto
que a forma pela qual credores públicos se saciam, quando não haja
sido regularmente pagos, é prevista no art. 100 da Constituição,
isto é, com o atendimento dos precatórios, na ordem de sua apre-
sentação, pelas correspondentes verbas consignadas no orçamen-
to ou nos créditos adicionais para tal fim abertos, admitindo-se
apenas, em caso de violação da precedência de algum credor, o
sequestro de importância necessária, determinado pelo Presidente
do Tribunal que proferiu a decisão exequenda.

7. SOCIEDADE DE PROPÓSITO ESPECÍFICO (SPE)

A Lei nº 11.079/2004 prevê em seu art. 9º que, antes da celebração do


contrato de parceria, deverá ser constituída sociedade de propósito especí-
fico (SPE), incumbida de implantar e gerir o objeto da parceria (BRASIL,
2004). Carvalho Filho (2009, p. 417) observa que: “Pretendeu o legisla-
dor colocar em apartado a pessoa jurídica interessada na parceria, de um
lado, e a pessoa jurídica incumbida da execução do objeto do contrato, de
outro.” Dessa forma, a intenção principal do legislador quando da obriga-
toriedade da criação da SPE foi aumentar o poder de controle sobre a ges-
tão do parceiro privado, além de torná-la elemento de validade do próprio
contrato de parceria, não sendo possível a existência de um sem o outro.
Para a criação da SPE ainda devem ser observados: se a transferência
do controle da sociedade de propósito específico estará condicionada
à autorização expressa da Administração Pública, nos termos do edital
e do contrato, observado o disposto no parágrafo único do art. 27 da

66
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Lei nº 8.987/1995 (art. 9º, § 1º); se a sociedade de propósito específico


poderá assumir a forma de companhia aberta, com valores mobiliários
admitidos à negociação no mercado (art. 9º, § 2º); se a sociedade de
propósitos específicos deverá obedecer a padrões de governança corpo-
rativa e adotar contabilidade e demonstrações financeiras padronizadas,
conforme regulamento (art. 9º, § 3º); se fica vedado à Administração
Pública ser titular da maioria do capital votante das sociedades de propó-
sito específico (art. 9º, § 4º); se a vedação prevista no § 4º do art. 9º não
se aplica a eventual aquisição da maioria do capital votante da sociedade
de propósito específico por instituição financeira controlada pelo poder
público em caso de inadimplemento de contratos de financiamento (art.
9º, § 5º) (BRASIL, 2004).

8. FUNDO GARANTIDOR DAS PARCERIAS PÚBLICO-


PRIVADAS (FGP)

Como visto anteriormente, o fundo garantidor das parcerias públi-


co-privadas (FGP) faz parte do rol de garantias que podem ser ofereci-
das pelo Poder Público ao parceiro privado, as quais são elencadas no art.
8º da Lei das Parcerias e têm a precípua função de reduzir os riscos do
empreendimento. No entanto, não se trata de qualquer risco inerente à
própria atividade assumida pelo parceiro privado. Como se pode depreen-
der da leitura do artigo mencionado, a criação das garantias visa mitigar a
possibilidade de inadimplemento da contraprestação.
Dentro dessa perspectiva de mitigação do inadimplemento é que foi
criado o FGP, um “mecanismo pelo qual optou o governo federal, con-
forme consta dos arts. 16 a 22 da lei, e que enseja algumas vantagens para
o parceiro privado.” (CARVALHO FILHO, 2009, p. 416). Deve-se aqui
destacar que parte da doutrina entende ser inconstitucional os referidos
fundos. Para Mello (2007, p. 467), por exemplo, o fundo garantidor é uma
forma de privilegiar credores:

[...] ao privilegiá-los no confronto com os restantes credores do


Poder Público, ficariam agredidos, à força aberta, o princípio da
igualdade, consagrado no art. 5º, caput, bem como os princípios da

67
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

impessoalidade e da moralidade, impostos pelo art. 37 da Cons-


tituição. Com efeito, se o despautério suposto no art. 8º, II, da
Lei 11.079 fosse utilizável, ali estaria consagrada uma escandalosa
e inconstitucional ofensa ao princípio da igualdade. É que todos
os demais credores, inclusive os que se encontram na interminável
fila de aguardo dos pagamentos de precatórios atrasados, seriam
preteridos em favor de megaempresários, os superprotegidos “par-
ceiros” e seus financiadores.

Entendimento diferente do de Carvalho Filho (2009, p. 416), segun-


do o qual:

[...] há interpretação segundo a qual ocorreria contrariedade ao art.


165, § 9º, II, da CF, pelo qual se exige lei complementar para a ins-
tituição e funcionamento de fundos, e ao art. 71, da Lei 4.320/64
(normas gerais de direito financeiro), que proíbe que os fundos
possam ser objeto de garantia de dívidas pecuniárias.

A impugnação, porém, não procede. O dispositivo constitucional


tem cunho genérico e refere-se ao estabelecimento de normas ge-
rais sobre fundos, e não à instituição do fundo específico, sendo,
pois, legítima a instituição deste por lei ordinária. Por outro lado,
o dispositivo da Lei 4.320/64 apenas impõe que as receitas dos
fundos se vinculem a objetivos predeterminados, nada impedindo,
portanto, que entre tais objetivos esteja o de garantir dívidas con-
traídas para a execução de parcerias público-privadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vários países do mundo a Administração Pública passa por uma


revisão de paradigmas no tocante à gestão da coisa pública, e o Brasil
também vem acompanhando essas mudanças na busca de novos meios
de administrar. As alterações nas relações entre os países, no processo de
mundialização da economia, obrigaram o Brasil a encarar novas formas
de relação com a sociedade, dentro das quais está o que atualmente se
conhece como parcerias público-privadas, que, quando bem implemen-

68
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

tadas, “[...] programas de parceria podem representar uma alternativa in-


teressante para viabilizar empreendimentos de maneira eficiente e eficaz.”
(BRITO; SILVEIRA, 2005, p. 17).
A lei brasileira pouco ou nada inovou ao trazer o instituto das parce-
rias público-privadas para o ordenamento jurídico pátrio. É nesse sentido
que a repartição de riscos e, principalmente, as garantias oferecidas nesses
contratos de parceria são alvo de fundada controvérsia na doutrina. No
entanto, mesmo levando em conta a divergência doutrinária, a introdução
das PPPs na Administração Pública brasileira parece ter trazido signifi-
cativos ganhos, os quais não alcançam somente a questão financeira dos
projetos, como mencionado ao longo deste artigo, mas também a capaci-
dade de diálogo dos vários atores envolvidos direta e indiretamente nelas:
poder público, usuários e parceiros privados. A eficiência e eficácia na
prestação desses serviços ou obras através das parcerias é a pedra de toque
da sobrevivência do próprio empreendimento, cabendo ao Poder Público
concedente e aos usuários em geral fiscalizarem a sua devida execução.
Não obstante transcorridos mais de 18 anos da promulgação da Lei das
Parcerias, muita coisa tem que caminhar no sentido do aperfeiçoamento
desse instrumento. Os grandes investimentos já realizados sob amparo da
Lei nº 11.079/2004 são, em sua maioria, de grande porte, o que acarreta
um longo prazo para a verificação dos efetivos resultados. Por outro lado,
as parcerias já realizadas de curto e médio prazo vêm apresentando resul-
tados significativos, em especial nas concessões de rodovias. Dessa forma,
com o estabelecimento de diálogo e, principalmente, a ponderação de in-
teresses dos principais interessados na boa prestação do serviço público é
que vai se desenvolvendo um novo modelo de gerir a coisa pública. Nunca
perdendo o foco de que o fundamento de qualquer ação da Administração
Pública é cuidar do interesse coletivo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 dez. 2022.

69
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Ge-


rais de Direito Financeiro para elaboração e contrôle dos orçamen-
tos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito
Federal. Brasília, DF: Presidência da República, [1964]. Disponível
em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4320compilado.
htm. Acesso em: 4 jan. 2023.

BRASIL. Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções


aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no
exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração
pública direta, indireta ou fundacional e dá outras providências. Bra-
sília, DF: Presidência da República, [1992]. Disponível em: https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8429compilada.htm. Acesso
em: 3 jan. 2023.

BRASIL. Lei nº 8.789, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o


regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos
previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providên-
cias. Brasília, DF: Presidência da República, [1995]. Disponível em:
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm. Acesso
em: 22 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995. Estabelece normas para


outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços pú-
blicos e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da Repú-
blica, [1995]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/L9074compilada.htm. Acesso em: 22 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004. Institui nor-


mas gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no
âmbito da administração pública. Brasília, DF: Presidência da Repú-
blica, 2004. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2004/lei/l11079.htm. Acesso em: 22 dez. 2022.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e


Contratos Administrativos. Brasília, DF: Presidência da Repúbli-

70
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ca, 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_


ato2019-2022/2021/lei/l14133.htm. Acesso em: 4 jan. 2023.

BRITO, Bárbara Moreira Barbosa de; SILVEIRA, Antônio Henrique


Pinheiro. Parceria público-privada: compreendendo o modelo bra-
sileiro. Revista do Serviço Público, Brasília, DF, v. 1, n. 56, p.
7-21, jan./mar. 2005. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.
br/bitstream/1/1442/1/2005%20Vol.56,n.1%20Brito%20e%20Sil-
veira.pdf. Acesso em: 3 jan. 2023.

CARVALHO, Raquel Melo Urbano de. Curso de Direito Adminis-


trativo – parte geral: intervenção do estado e estrutura da adminis-
tração. Salvador: Juspodivm, 2008.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Adminis-


trativo. 21. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrati-


vo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

SANTOS, Regerson Franklin dos; SOUZA, Adauto Oliveira de;


ABREU, Silvana de. O canto da sereia na era global: a parceria pú-
blico-privada no brasil. Formação, [s. l.], v. 25, n. 46, p. 5-26, set./
dez. 2018. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/for-
macao/article/view/5252/4700. Acesso em: 4 jan. 2023.

THAMER, Rogério; LAZZARINI, Sérgio Giovanetti. Projetos de par-


ceria público-privada: fatores que influenciam o avanço dessas inicia-
tivas. Revista de Administração Pública, [s. l.], v. 49, n. 4, p. 819-
846, ago. 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7612119746.
Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/rGxPYhmkdNpxMT-
vD7ZQymcG/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 4 jan. 2023.

71
A INCONSTITUCIONALIDADE DA
PRISÃO ESPECIAL PARA CIDADÃOS
QUE POSSUEM DIPLOMAS
UNIVERSITÁRIOS
Joseph Murta Chalhoub8

INTRODUÇÃO

Desde que foi promulgado o Código de Processo Penal (CPP) de


1941, algumas pessoas, em decorrência da função que desempenhavam ou
por conta de alguma qualidade especial que ostentavam, tinham direito,
enquanto não transitasse em julgado a sentença penal condenatória, à pri-
são provisória em quartéis ou cela especial.
A prisão especial no Brasil sempre foi uma medida controversa, sobre
a qual muitos especialistas argumentam ser inconstitucional, pois viola o
princípio da igualdade previsto na Constituição Federal de 1988. Essa in-
constitucionalidade criticada pela doutrina não se refere somente ao inc.
VII do art. 295 do CPP, mas à grande maioria das hipóteses em que é
cabível o privilégio da prisão especial.
Diante disso, o presente estudo objetiva discutir a inconstituciona-
lidade da prisão especial para cidadãos com diplomas universitários. O
estudo se justifica no fato de a Constituição brasileira estabelecer que to-

8 Graduando em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).

72
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

das as pessoas são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Assim, conceder um tratamento diferenciado a determinadas categorias
profissionais, ao que tudo indica, viola o princípio da igualdade e cria uma
situação oposta perante a lei.
Além disso, a prisão especial pode levar a uma situação de impunida-
de para aqueles que ocupam cargos públicos ou gozam de certa influência
na sociedade, uma vez que a alocação em locais mais dignos submete essa
minoria a condições mais favoráveis de cumprimento de pena, o que de-
veria ser um direito de todos os encarcerados.
Por essas razões, muitos especialistas argumentam que a medida é in-
constitucional e deve ser abolida, garantindo que todas as pessoas sejam
igualmente punidas perante a lei, principalmente diante de um mesmo
crime. Decerto que a decisão do STF é um passo dado rumo à isonomia,
no entanto, importa reconhecer que há ainda um longo caminho a ser
trilhado para que se chegue à tal igualdade.
O método de abordagem empregado foi o dedutivo, cujo desenvolvi-
mento se deu mediante revisão bibliográfica de livros, artigos e legislações
sobre o tema em análise. A revisão bibliográfica foi complementada por
uma pesquisa qualitativa documental realizada na jurisprudência perti-
nente à temática proposta.

1. PRISÃO E LIBERDADE DO INVESTIGADO OU


ACUSADO

O sistema processual penal brasileiro preserva, como regra geral, o


costume e o direito de o acusado poder responder ao processo criminal
em liberdade. Essa máxima está implicitamente incorporada à Constitui-
ção da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988).
Afinal, nos termos do art. 283 do CPP, “ninguém poderá ser preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da auto-
ridade judiciária competente, em decorrência de prisão cautelar ou em
virtude de condenação criminal transitada em julgado” (BRASIL, 1941).
Ainda consoante ao que determina o CPP, atualizado pelo pacote anti-
crime (Lei no 13.964/2019), as medidas cautelares inclusas no Título “Da
Prisão, das Medidas Cautelares e da Liberdade Provisória” (art. 283) não

73
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

se aplicam, nos ternos do § 1º do art. 283 “à infração a que não for isolada,
cumulativa ou alternativamente cominada pena privativa de liberdade”
(BRASIL, 1941).
Passa-se então à análise de como deve ocorrer o cumprimento da
pena de prisão, seja em condições especiais ou não.

2.1. PRISÃO DEFINITIVA

A prisão definitiva do réu é uma consequência natural de sua conde-


nação em razão do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.
Esse critério advém da adoção do princípio da presunção de inocência,
também conhecido como princípio da não culpabilidade, previsto no art.
5º, inc. LVII, da Constituição (BARROS, 2020). Contudo, o direito de
responder ao processo criminal em liberdade não é absoluto, já que pode
ser suplantado pela imperiosa necessidade de se ordenar a sua prisão pro-
visória, desde que atendidos os limites fixados pela própria Carta Repu-
blicana.
De acordo com preceito constitucional processual, ninguém poderá
ser preso excetuando-se os casos de flagrante delito ou por mandamento
escrito e fundamentado da autoridade judiciária competente, como con-
sequência de uma sentença condenatória transitada em julgado ou, no
transcorrer da investigação ou processo, em razão de prisão temporária
ou preventiva (BRASIL, 1941, 1988). Nesse sentido, a legislação brasi-
leira acolhe e regulamenta as seguintes modalidades de prisão provisória:
a) prisão em flagrante delito; b) prisão temporária; e c) prisão preventiva
(BRASIL, 1941).
Sobre as garantias e os direitos imediatamente assegurados ao preso
comum será dedicada a próxima seção.

3. GARANTIAS E DIREITOS IMEDIATOS ASSEGURADOS


AO PRESO COMUM

Antes mesmo de se detalhar as modalidades de prisão provisória exis-


tentes no ordenamento jurídico brasileiro, impõe-se a antecipação de bre-
ve referência aos direitos e garantias conferidos à pessoa presa. Segundo

74
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Coelho (2017), não se duvida que o escudo defensivo máximo do princípio


da igualdade reside no cumprimento de todas as regras que compõem
o devido processo legal. Além do mais, a extensão complementar de tal
quadro se revela no cumprimento das normas estabelecidas pela Lei no
7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP).
Sem embargo da existência do farto conjunto de preceitos de tal nature-
za, o certo é que a própria Constituição brasileira, no capítulo em que descre-
ve os direitos e deveres individuais e coletivos da pessoa humana, impõe aos
órgãos do Estado incumbidos de executar a persecução penal o cumprimento
de determinadas providências em prol do investigado ou acusado preso. Nes-
se sentido, a prisão de qualquer indivíduo e o local onde o encarcerado se en-
contra precisam ser comunicados imediatamente ao magistrado competente
e à família do encarcerado, ou à pessoa que por ele foi indicada, sendo vedada
a imposição de sua incomunicabilidade (BRASIL, 1988).
Acrescenta-se que o preso deve ser informado sobre os direitos que
possui, dentre os quais ganha destaque o de permanecer calado, sendo-lhe
garantida assistência de um advogado e contato com a família (BRASIL,
1988). Caso o condenado não possa arcar com o pagamento de um advo-
gado, será então comunicado à Defensoria Pública a fim de que esta possa
assegurar-lhe uma justa defesa (BRASIL, 1941).
Também se confere ao preso o direito de identificar aqueles que fo-
ram responsáveis por sua prisão ou mesmo por seu interrogatório policial,
além de ser assegurado a ele que sua integridade física e moral seja respei-
tada (BRASIL, 1988). Reitera-se, ainda, que nas intervenções junto ao
preso não é admitido o emprego de força, exceto a que se fizer indispensá-
vel em caso de resistência ou tentativa de fuga (BRASIL, 1941).
Daí o entendimento jurisprudencial, expressado com força de lei, no
sentido de que o uso de algemas só é considerado lícito na hipótese de
resistência e de fundado receio de fuga ou risco à integridade física do
próprio preso ou alheia, por parte dele ou de terceiros, sob pena de ocorrer
a responsabilização disciplinar, civil e penal do agente ou autoridade res-
ponsável e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem
que a responsabilidade do Estado reste comprometida9.

9 Súmula Vinculante 11, STF.

75
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Quanto às presidiárias, devem ser-lhes asseguradas as condições para


que permaneçam junto a seus filhos durante o período em que estiverem
amamentando (BRASIL, 1988). Ressalta-se, por derradeiro, que as pes-
soas submetidas à prisão provisória ficarão separadas das que já tiverem
sido definitivamente condenadas (BRASIL, 1941, 1989).
O direito ao recolhimento em presídio especial também está previsto
no art. 295 do CPP e será mais bem detalhado a seguir.

4. RECOLHIMENTO DE INFRATORES EM PRESÍDIO


ESPECIAL

Em razão de função, cargo ou profissão que estivessem ocupando,


determinados infratores da lei penal, enquanto presos provisoriamente,
desde 1941 (quando entrou em vigor o Código de Processo Penal) podem
ser recolhidos em quartéis ou prisão especial, perdurando essa situação até
que ocorresse a condenação definitiva, o que se encontra descrito no art.
295, caput, do CPP.
É extenso o rol de pessoas que podem usufruir desse direito, conforme
se colhe de disposições previstas no CPP e em outras leis, tais quais: a)
ministros de Estado; governadores ou interventores de Estados ou Ter-
ritórios; o prefeito do Distrito Federal juntamente com seus secretários;
os prefeitos e vereadores dos municípios brasileiros; os chefes de polícia;
pessoas que compõem o parlamento, o Conselho de Economia Nacional
e as assembleias legislativas dos entes federativos; cidadãos agraciados com
a inscrição no Livro de Mérito; oficiais das Forças Armadas; militares dos
Estados, Distrito Federal e dos Territórios; e magistrados (arts. 33, inc.
III e 112, § 2º da LC no 35/1979); integrantes do Ministério Público (art.
20, inc. VII da LC 40 e art. 18, inc. II da LC 75); advogados, que gozam
da prerrogativa de serem recolhidos em sala de Estado Maior, com direito
a instalações e comodidades adequadas, assim reconhecidas pela Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), e, na falta dessas dependências, em pri-
são domiciliar (art. 7º, inc. V da Lei no 8.906/1994); delegados de polícia e
os guardas-civis dos Estados e Territórios; diplomados por qualquer uma
das faculdades superiores da República (direito recentemente considerado
inconstitucional pelo STF); funcionários da Polícia Civil e ocupantes de

76
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

cargos de atividade policial (art. 1º da Lei no 5350/1967); servidores do


Departamento Federal de Segurança Pública que se dediquem ao exercí-
cio de atividade estritamente policial (art. 1º da Lei no 3.313/1957); mi-
nistros de confissão religiosa; ministros do Tribunal de Contas; indivíduos
que já tiverem exercido a função de jurado, exceto quando excluídos da
lista devido à inadequação para o cumprimento do ato; pilotos de aerona-
ves mercantes nacionais que já tiverem exercido as funções de comando
(art. 1º da Lei no 3.988/1961); e professores do ensino fundamental, médio
e superior (art. 1º da Lei no 7.172/1983).
Deflui da lei processual penal o conceito genérico de que a prisão es-
pecial consiste apenas no recolhimento em local diverso da prisão comum.
E caso não exista um estabelecimento específico para que o preso especial
seja encarcerado, este poderá ser recolhido em cela diversa no mesmo esta-
belecimento. Ademais, a cela para cumprimento de prisão especial poderá
ser um alojamento coletivo, desde que atenda aos requisitos ambientais de
salubridade, pela concorrência de fatores de ventilação, insolação e condi-
cionamento térmico adequados à saúde humana (GUIMARÃES, 2021).
Além disso, veda a lei o transporte de preso especial juntamente ao preso
comum, mas os demais direitos e deveres do primeiro são os mesmos do
segundo, conforme se depreende da leitura do art. 295, §§ 1º a 5º do CPP.
Referente ao advogado, cabe ressaltar, conforme decidido pelo STJ
no Habeas Corpus no 412.481, que o direito de o patrono permanecer preso
em sala de Estado Maior só vale para prisões cautelares, já que, no caso de
execução provisória da pena, após a ocorrência de condenação em segun-
do grau, o profissional perde essa prerrogativa. De acordo com entendi-
mento expressado pelo Plenário do STF, firmado por maioria de votos
dos ministros que o compõem, foi negado provimento a duas reclamações
apresentadas por advogados presos provisoriamente, os quais alegaram
descumprimento ao Estatuto da OAB (art. 7º, inc. V), que dispõe sobre o
direito de serem recolhidos em sala de Estado Maior, ou em sua ausência,
à prisão domiciliar.
A relatora ministra Carmen Lúcia votou acolhendo as reclamações.
Porém, o ministro Dias Toffoli inaugurou a divergência, sendo vencedor
o seu voto. Extrai-se do acórdão que sem afrontar a decisão proclamada

77
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

pelo STF na ADI 1.127, a sala de Estado Maior pode ser perfeitamente
substituída: “tal como se dá em relação aos magistrados e membros do
MP, na hipótese de prisão provisória, por sala que assegure ao advogado
instalações condignas com seu grau”10. No entanto, não obstante a pre-
visão legal, a prisão especial sempre foi alvo de críticas no que concerne à
violação do princípio da igualdade.
Nesse sentido, no ano de 2015, o então procurador-geral da Repú-
blica (PGR) Rodrigo Janot propôs a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) n° 334, em oposição ao texto normati-
vo que criou a distinção em benefício dos cidadãos diplomados. Nessa
representação foi atacado diretamente o art. 295 do CPP, alegando ser
este dispositivo uma forma de “valorizar a clivagem sociocultural [...] e
de reafirmar a desigualdade, a falta de solidariedade e a discriminação que
caracterizam parte importante da estrutura social brasileira” (BRASIL,
2023). Essa ADPF foi julgada recentemente pelo STF (em 31 de março de
2023), conforme será visto a seguir.

5. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO


FUNDAMENTAL (ADPF) Nº 334

O STF decidiu, por unanimidade dos votos, em 31 de março de


2023, que a previsão de prisão especial para aqueles que possuem diploma
de curso superior (art. 295, inc. VII do CPP) deveria ser derrubada.
Os ministros Alexandre de Moraes, André Mendonça, Cármen Lúcia,
Dias Toffoli, Edson Fachin, Gilmar Mendes, Luiz Fux, Nunes Marques,
Ricardo Lewandowski, Roberto Barroso e Rosa Weber votaram a favor
do fim do aludido privilégio até então concedido a pessoas diplomadas em
cursos superiores. Não obstante o plenário já contasse com a maioria dos
votos no dia 30 de março, o julgamento só foi finalizado no dia seguinte.
Em seus votos, os ministros da Suprema Corte enfatizaram que to-
dos os presos, incluindo os diplomados, têm o direito de ser encarcerados
separados de outros presos, a fim de garantir que sua integridade física,

10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – STF. Rcl 5.826 e Rcl 8.853 – Rel. Min. Dias Toffoli – j.
em 18.03.2015; no mesmo sentido: Rcl 16.011 e Rcl24.186 – esta última j. em 18.09.2016.

78
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

moral e psicológica seja preservada (desde que estas estejam em risco), não
havendo nenhuma justificativa plausível para beneficiar pessoas graduadas
em algum curso superior.
Em 2015, o então PGR Rodrigo Janot já havia alegado que o bene-
fício, previsto no CPP, “viola a conformação constitucional e os objeti-
vos fundamentais da República, o princípio da dignidade humana e o da
isonomia” (PORTELA; PORTELA, 2013). Para a Procuradoria Geral
da República, a prisão especial foi criada no ano de 1937, mais especifi-
camente no governo provisório de Getúlio Vargas, sendo, portanto, um
privilégio com origem em um contexto antidemocrático no qual era co-
mum a supressão de garantias fundamentais, o que maculava a igualdade
substancial entre os cidadãos.
Nesses termos, a ideia de prisão especial surgiu em uma época em
que poucas pessoas tinham acesso a formação superior no Brasil. Na
época de criação do CPP, a grande maioria das pessoas que tinha diplo-
mas de curso superior pertencia às classes abastadas da sociedade. Assim,
a previsão de um tratamento diferenciado a elas era entendida como uma
forma de preservar seu status e posição privilegiada na sociedade (D’AN-
GELO, 2023).
Com o tempo, a prisão especial ganhou a conotação de uma medida
discriminatória e elitista, tendo em vista que criava uma distinção entre
as pessoas que tinham ou não graduação em um curso superior, como
se elas fossem dignas de maior respeito que as demais. Portanto, pas-
sou a ser frequente o questionamento sobre o fato de se ter um diploma
ser suficiente para assegurar a uma pessoa um tratamento mais favorável
(MUNIZ, 2023).
Ademais, é fato que a aplicação da prisão especial, na prática, tam-
bém causava problemas. Isso porque as condições do sistema prisional
brasileiro são precárias e a previsão de prisão especial agravava ainda mais
essa precariedade, já que as celas especiais normalmente eram mais con-
fortáveis, gerando desigualdade e revolta entre demais presos. A medida
parecia reforçar o pensamento que predominou por muito tempo de que
algumas pessoas estão acima da lei e, portanto, merecem tratamento di-
ferenciado (D’ANGELO, 2023).

79
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A maioria de votos firmou sua justificativa a partir do entendimento


externado pelo ministro Alexandre de Moraes, relator da ADPF em análi-
se. Segundo ele, o dispositivo legal que previa o privilégio à prisão especial
para quem tivesse um diploma universitário não havia sido recepcionado
pela Constituição1988, tendo em vista que o texto era de 1941.
Já segundo inteligência de Lênio Streck (2013), a questão aparenta
ser, em uma primeira análise, pacífica, e o consenso realmente se fez pre-
sente na unanimidade alcançado pelo pleno. Os ministros Dias Toffoli e
Edson Fachin somente fizeram uma ressalva referente ao tema, deixando
claro que declarar que prisão especial para quem possui diploma de curso
universitário é inconstitucional não implica em afirmar que o preso não
tem o direito de, em hipótese alguma, ser encarcerado separadamente,
em local diverso dos demais detentos. Segundo Fachin:

Aplica-se, no caso, a regra geral. Assim, se constatado, pelas auto-


ridades responsáveis pela execução penal, que determinado preso,
possuidor ou não de diploma de curso superior, tem sua integrida-
de física, moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os
demais presos, esse ficará segregado em local próprio separado dos
demais, como prevê a Lei de Execução Penal. (BRASIL, 2023).

Também o ministro relator Alexandre de Moraes se manifestou nesse


sentido, afirmando que:

Trata-se, na realidade, de uma medida discriminatória, que pro-


move a categorização de presos e que, com isso, ainda fortalece de-
sigualdades, especialmente em uma nação em que apenas 11,30%
da população geral tem ensino superior completo e em que somen-
te 5,65% dos pretos ou pardos conseguiram graduar-se em uma
universidade. (BRASIL, 2023).

Para Lênio Streck (2023), a questão que se deixa de analisar, no entan-


to, quando se toma decisões sobre qualquer tema relacionado ao sistema
carcerário brasileiro, é o problema que envolve o próprio sistema carcerário.
Segundo o doutrinador, parece desarrazoado acreditar, nos dias de hoje,

80
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

que, se o sistema prisional é “inconstitucional” por suas mazelas, não faz


sentido retirar a previsão do privilégio da prisão especial para aqueles diplo-
mados em curso superior; por essa razão é que ele diz tratar-se, na verdade,
de uma “isonomia às avessas”, ou melhor dizendo, “nivelada por baixo”
(STRECK, 2023). E o argumento da isonomia soa destituído de lógica,
porque advogados e outras autoridades permanecerão tendo direito à prisão
especial, logo, a decisão do STF só seria eficaz caso se estendesse a todos.
Infelizmente, o sistema prisional brasileiro é marcado pela seletivida-
de e pela desigualdade. Isso significa que certas camadas da sociedade são
mais propensas a serem presas e receberem penas mais severas do que ou-
tras. Dentre os fatores que contribuem para essa seletividade, destacam-se
a pobreza, a cor da pele, o gênero, a orientação sexual, a escolaridade e a
condição socioeconômica. Ou seja, pessoas que vivem em condições de
pobreza ou vulnerabilidade social têm mais chances de serem presas por
crimes como tráfico de drogas, furto e roubo; enquanto pessoas de classe
média ou alta têm mais recursos e, consequentemente, conseguem evitar
a prisão ou receber penas mais brandas (LEMOS; MORAIS, 2019).
Além da condição de pobreza, pessoas negras também são mais pro-
pícias a serem presas do que pessoas brancas, o que evidencia a exis-
tência de um racismo estrutural no sistema prisional brasileiro (PUHL;
CASTRO, 2020). Por outro lado, pessoas com maior escolaridade e me-
lhores condições socioeconômicas geralmente contam com mais meios
para contratar bons advogados e se defenderem juridicamente. Por isso
conseguem penas mais brandas mesmo quando cometem crimes graves
(MINAYO; CONSTANTINO, 2015).
Essa seletividade do sistema prisional brasileiro é um problema grave
e exige a adoção de políticas públicas que promovam a igualdade e a jus-
tiça social, além de uma reforma estrutural do sistema de justiça criminal
como um todo. Somente assim será possível cogitar uma igualdade pe-
rante a lei.

CONCLUSÃO

Este artigo teve como objetivo discutir a inconstitucionalidade da


prisão especial para cidadãos com diplomas universitários. Até o dia 31

81
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

de março de 2023, no Brasil, havia a chamada “prisão especial” para pes-


soas que possuíam curso superior. Isso significava que, se alguém com tal
formação fosse preso, poderia ser encarcerado em um local diferente dos
outros aprisionados.
A prisão especial com base no critério de formação universitária foi
considerada inconstitucional pelo STF em 2023, a partir do julgamen-
to da ADPF no 334, por violar o princípio constitucional da igualdade.
De acordo com a Constituição Federal Brasileira, todos os cidadãos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade.
Nesses termos, ao conceder uma prisão especial com base no critério
de formação universitária, o Estado estaria conferindo um tratamento di-
ferenciado a uma classe específica de pessoas, bem como gerando um sen-
timento de privilégio e exclusão social, o que, além de ferir o princípio da
igualdade, também não é desejável em uma sociedade democrática e justa.
Portanto, é possível concluir que a decisão do STF na ADPF no 334
de considerar a prisão especial apoiada na escolaridade inconstitucional foi
um importante avanço no sentido de promover a igualdade e a justiça no
sistema prisional brasileiro.

REFERÊNCIAS

BARROS, Marco Antonio. Processo Penal. Curitiba: Juruá Editora,


2020.

BRASIL. [Constituição (1988)] Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 15 abr. 2023.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de


Processo Penal. Rio de Janeiro: Presidência da República, [1941].
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/
Del3689.htm. Acesso em: 15 abr. 2023.

82
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n° 334. Arguição de des-


cumprimento de preceito fundamental. Constitucional e processual
penal. Art. 295, inciso VII, do CPP. Prisão especial, de natureza
cautelar, a portadores de diploma de ensino superior. Ausência de
justificativa razoável para o tratamento distinto entre presos por par-
te do poder público. Elemento discriminador que não se encontra
a serviço de uma finalidade acolhida pela constituição. Incompa-
tibilidade material com o princípio da isonomia (arts. 3º, IV, e 5º,
caput, da CF). Não recepção pela ordem constitucional estabelecida
em 1988. Requerente: Procurador-Geral da República. Requerido:
Presidente da República. Relator: Min. Alexandre de Moraes, 31
de março de 2023. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/
detalhe.asp?incidente=4728410. Acesso em: 15 abr. 2023.

COELHO, Fernanda Cristina Zacarias. O direito à prisão especial: ga-


rantia ou privilégio? Revista da Faculdade de Direito da Univer-
sidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, v. 44, n. 1, p. 113-133,
jan./jun. 2016.

D’ANGELO, Rodrigo. A prisão especial no Brasil: um viés elitista que


chegou ao fim. JusBrasil, [s. l.], 04 abr. 2023. Disponível em: ht-
tps://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-prisao-especial-no-brasil-um-
-vies-elitista-que-chegou-ao-fim/1801282474. Acesso em: 15 abr.
2023.

GUIMARÃES, Isaac Sabba. Processo Penal: em conformidade com


as alterações da Lei 13.964 de 2019. 4. ed. Curitiba: Juruá Editora,
2021.

LEMOS, Laís Freire; MORAIS, Márcio Eduardo Senra Nogueira Pedro-


sa. Os efeitos da pena e do cárcere etimologicamente analisada sob a
perspectiva da dor: a real função do cárcere dentro da ideologia da
defesa social. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Cons-
tituição, Belém, v. 5, n. 2, p. 67-82, jul./dez. 2019.

MINAYO, Maria Cecília de Souza; CONSTANTINO, Patrícia. De-


serdados sociais: condições de vida e saúde dos presos do estado do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2015.

83
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. O julgamento da ADPF nº 334 e a


desigualdade na Justiça penal. Conjur, [s. l.], 11 abr. 2023. Disponí-
vel em: https://www.conjur.com.br/2023-abr-11/tribuna-defenso-
ria-adpf-334-descortinamento-desigualdade-justica-penal. Acesso
em: 15 abr. 2023.

PORTELA, Maria Eduarda; PORTELA, Júlia. STF decide pelo fim da


prisão especial para quem tem curso superior. Metrópoles, Brasília,
DF, 31 mar. 2023. Disponível em: https://www.metropoles.com/
brasil/stf-decide-pelo-fim-da-prisao-especial-para-quem-tem-cur-
so-superior. Acesso em: 15 abr. 2023.

PUHL, Eduardo; CASTRO, Matheus Felipe de. Olhos que condenam:


preconceito racial, punitivismo seletivo e relevância do estado de
inocência. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Consti-
tuição, Belém, v. 6, n. 1, p. 42-61, jan./jun. 2020.

STF – PGR questiona prisão especial para portadores de diploma. Bole-


tim Jurídico, [s. l.], 19 mar. 2015. Disponível em: http://boletimju-
ridico.publicacoesonline.com.br/stf-pgr-questiona-prisao-especial-
-para-portadores-de-diploma/. Acesso em: 15 abr. 2023.

STRECK, Lênio. Prisão especial não é privilégio. É a prova do fracas-


so do Sistema? Prerrô – Grupo Prerrogativas, [s. l.], 06 abr. 2023.
Disponível em: https://www.prerro.com.br/prisao-especial-nao-e-
-privilegio-e-a-prova-do-fracasso-do-sistema/. Acesso em: 15 abr.
2023.

84
A CONSTRUÇÃO DA DEMOCRACIA:
UMA BREVE ANÁLISE
Sabrina Durães Veloso Neto11

INTRODUÇÃO

Um dos temas de recorrente discussão na atualidade é a democracia.


Desde sua inicial construção no pensamento, há cerca de 25 séculos, en-
contra-se no decorrer da história uma grande variação no seu sentido e
na mudança da forma com que era praticada antigamente até os embates
atuais sobre o arquétipo democrático no Estado Democrático e Social de
Direito.
São vários os posicionamentos doutrinários acerca do que legitima-
mente há de se compreender por democracia, sendo um termo bastante
indeterminado que sofreu, e ainda sofre, grande relativização. Daí a im-
portância de se estudar, mesmo que de forma breve, sua construção e seu
amadurecimento.

11 Doutoranda em Direito na linha “Desenvolvimento e Políticas Públicas” do Programa de


Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/Minas).
Mestre em Direito Público pela Universidade FUMEC. Graduada em Direito pela Universida-
de Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).

85
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

1. DEMOCRACIA: UM RESGATE HISTÓRICO

Precisar o surgimento da democracia sempre foi uma tarefa árdua


entre os doutrinadores, já que pode ser vista sendo discutida há mais de
2.500 anos. Nos Estados Unidos, por exemplo, a democracia teria surgido
por volta de 300 anos atrás. Tendo em vista as suas raízes clássicas, atribui-
-se seu surgimento à Grécia ou à Roma Antiga. Mas, afinal, onde e como
surgiu a democracia?

O próprio fato de ter uma história tão comprida ironicamente


contribuiu para a confusão e a discordância, pois “democracia”
tem significados diferentes em diferentes tempos e diferentes luga-
res. Por longos períodos na história humana, na prática, a demo-
cracia realmente desapareceu, mal sobrevivendo como valiosa ideia
ou memória entre poucos. Até dois séculos atrás apenas (digamos,
há dez gerações), a história tinha pouquíssimos exemplos de verda-
deira democracia. A democracia era mais assunto para teorização
de filósofos do que um verdadeiro sistema a ser adotado e praticado
pelos povos. Mesmo nos raros casos em que realmente existia uma
“democracia” ou uma “república”, a maioria dos adultos não esta-
vam autorizado a participar da vida política. (DAHL, 2001, p. 13).

O fato de seu desenvolvimento derivar de um longo processo históri-


co, ao longo de 25 séculos, contribuiu para que não se tenha até hoje uma
absoluta concordância sobre o seu exato surgimento. Assim, devido à falta
de linearidade no seu processo de construção, seria mais fácil estudá-la ao
longo desses séculos caso tivesse ocorrido um progresso contínuo até os
dias de hoje.
Há registros históricos de que os primeiros governos que permitiram
a participação popular foram estabelecidos precipuamente na Grécia e em
Roma, em meados de 500 anos a.C, tendo bases sólidas que resistiram por
séculos. A Grécia Clássica era formada por diversas cidades independen-
tes entre si, sem um governo único e central, existindo verdadeiras cida-
des-Estados detentoras de soberania. A cidade que mais ganhou destaque
desde esse período foi Atenas.

86
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

O modelo de democracia participativa tem como berço do seu sur-


gimento a Grécia, mormente Atenas, onde havia uma praça pública em
que o povo se reunia para o exercício direto do poder político na tomada
de decisões públicas em consonância com as necessidades da polis. Para o
antigo grego o sentido de liberdade individual não corresponde ao que
conhecemos hoje, posto que a vida privada sofria ingerência do governo.
A coletividade correspondia à cidade e o indivíduo, tido como filho da
polis, era parte integrante dela, que antes de clamar por suas necessidades
individuais clamava pelas necessidades do mundo da polis.

Para o indivíduo grego, isento de valor autônomo, a polícia refe-


ria-se às necessidades que tinham a coletividade, como um todo
único, sem qualquer desintegração hábil a considerar a figura do
ser individual, com suas necessidades. Nessa direção, a liberdade
dos antigos não se confunde com a liberdade dos modernos, uma
vez que o objetivo dos antigos se restringia à distribuição do po-
der político pelos cidadãos, enquanto o objetivo dos modernos vai
muito além, contemplando, inclusive, a segurança para as fruições
privadas. (BATISTA JUNIOR, 2004, p. 38).

A democracia grega tinha como traços fundamentais: o princípio da


isonomia, segundo o qual todos eram iguais perante a lei; a condenação de
todo poder arbitrário; a ocupação das funções públicas através de sorteio;
a responsabilidade dos detentores das funções públicas; as assembleias po-
pulares para deliberações diretas e imediatas.
Dos referidos princípios, três foram incorporados ao moderno Di-
reito Público, tanto no modelo monárquico quanto no republicano, ao
passo que o sorteio, as reuniões e as deliberações em praça pública não
foram adotadas no moderno sistema democrático e, no caso das assem-
bleias, elas foram substituídas pelas formas representativas de preparo do
poder político.
A crítica que se faz à democracia dos antigos é que o seu desenvolvi-
mento se deu através da presença da escravidão. Como direito de partici-
pação no processo político, era privilégio de poucos. Os opositores desse
modelo afirmam que não houve na Grécia verdadeira democracia, mas

87
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

aristocracia democrática ou democracia minoritária. Contudo, é inegá-


vel a importância do sistema democrático grego para o desenvolvimento/
aperfeiçoamento do modelo dos tempos modernos.
Devido à complexidade do governo de Atenas não será abordada uma
descrição aprofundada de sua democracia. Por ora é mister saber que a
cidade foi, dentre as democracias gregas, a mais importante da sua época,
além de ter tido um papel relevante para a construção da filosofia política,
sendo considerada por muitos um exemplo de democracia participativa.
Como experiência histórica, a democracia dos gregos foi uma lição
moral de civismo que a população clássica testou nas civilizações ociden-
tais. Porém, apesar do papel de destaque da sua época, as instituições po-
líticas gregas não tiveram reconhecimento de suas contribuições para o
desenvolvimento do modelo moderno de democracia representativa.

Embora algumas cidades gregas se reunissem, formando rudimen-


tares governos representativos por suas alianças, ligas e confede-
rações (essencialmente para defesa comum), pouco se sabe sobre
esses sistemas representativos. Praticamente não deixaram nenhu-
ma impressão sobre a ideia e práticas democráticas e, com certe-
za, nenhum sobre a forma tardia da democracia representativa. O
sistema ateniense de seleção dos cidadãos para os deveres públicos
por sorteio também jamais se tornou uma alternativa aceitável para
as eleições como maneira de escolher os representantes. (DAHL,
2001, p. 22).

Praticamente no mesmo período em que foi introduzido na Grécia,


surge em Roma uma espécie de modelo de governo popular. Os romanos
preferiram chamar seu sistema de república: res, que em latim significa
coisa ou negócios, e publicus, ou seja, a república poderia ser interpretada
como “coisa pública” ou “os negócios do povo” (DAHL, 2001, p. 23).
No entanto, inicialmente, quando do surgimento da República, o
direito de participar do governo pertencia apenas aos patrícios e aos aris-
tocratas. Mais adiante, apenas, ao longo de seu desenvolvimento, é que
esse direito foi atribuído ao povo (plebe) – e faz-se mister lembrar isso se
deu depois de muita luta. Além disso, todas as democracias que surgiram

88
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

até o século XX tinham como traço marcante o poder de participação


restringido aos homens.
Sem adentrar uma descrição minuciosa, é importante saber que a
República Romana se expandiu por meio da anexação ou da conquista
muito além dos limites da velha cidade, chegando a dominar toda a Itá-
lia e regiões bem mais distantes. A República, muitas vezes, conferia a
valorizadíssima cidadania romana aos povos conquistados, que assim se
tornavam cidadãos romanos, no pleno gozo dos direitos e dos privilégios
de um cidadão, e não simples súditos (DAHL, 2001, p. 23).
Apesar disso, jamais houve em Roma uma preocupação em adequar
suas instituições de governo popular à nova realidade socioespacial, que
surgiu em virtude do aumento desproporcional de sua população e da
distância geográfica existente entre ela e as cidades conquistadas.

Nesta época era conferido aos cidadãos romanos o direito de par-


ticiparem nas assembleias que ocorriam na cidade de Roma. No
entanto, para a maioria dos cidadãos romanos que viviam no vas-
tíssimo território da república, a cidade era muito distante para que
pudessem assistir às assembleias, pelo menos sem esforço extraor-
dinário e altíssimos custos. Consequentemente, era negada a um
número cada vez maior (e mais tarde esmagador) de cidadãos a
oportunidade de participar das assembleias que se realizavam no
centro do sistema de governo romano. (DAHL, 2001, p. 22).

Mesmo com as grandes conquistas e inovações político-institucionais


dos povos romanos e da sua inegável influência para o desenvolvimento
de um sistema de governo, eles não conseguiram atribuir efetividade a um
modelo de democracia representativa.

Embora a república romana tenha durado consideravelmente mais


tempo do que a democracia ateniense e mais tempo do que qual-
quer democracia moderna durou até hoje, por volta do amo 130
a.C., ela começou a enfraquecer pela inquietude civil, pela mi-
litarização, pela guerra, pela corrupção e por um decréscimo no
espírito cívico que existiria entre os cidadãos. O que restava das

89
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

práticas republicanas autenticas terminou parecendo com a ditadu-


ra de Júlio César. Depois de seu assassinato em 44 a.C., uma repú-
blica outrora governada por seus cidadãos tornou-se um império,
comandado por imperadores. (DAHL, 2001, p. 24).

Com o poder nas mãos dos imperadores, a partir da queda da Repú-


blica, e o desaparecimento por cerca de mil anos do governo popular, o
que sobrou foram apenas seus resquícios espaçados em pequenas tribos.
Mais tarde, por volta do ano 1.100 d.C, o governo popular reapareceu
de forma tímida em algumas cidades do Norte da Itália, e assim como
ocorreu na Grécia e em Roma, seu desenvolvimento teve início em cida-
des-Estados relativamente pequenas.

Num padrão conhecido em Roma e mais tarde repetido durante o


surgimento dos modernos governos representativos, a participação
nos corpos governantes das cidades-estados foi inicialmente res-
trita aos membros das famílias da classe superior: nobres, grandes
proprietários e afins. Com o tempo, os residentes nas cidades, que
estavam abaixo na escala socioeconômica, começaram a exigir o
direito de participar. Membros do que hoje chamamos classes médias
– novos ricos, pequenos mercadores, banqueiros, pequenos arte-
sãos organizados em guildas, soldado das infantarias comandadas
por cavaleiros – não apenas eram mais numerosos do que as classes
superiores dominantes, mas também capazes de se organizar. Eles
ainda podiam ameaçar violentas rebeliões e, se necessário, levá-las
adiante. Consequentemente, em muitas cidades, essas pessoas – o
popolo, como eram chamadas – ganharam direito de participar do
governo local. (DAHL, 2001, p. 25).

Essas cidades-Estados italianas foram palco do florescimento dessas


repúblicas comunais, à medida que foram surgindo, ganharam desta-
que, enfim marcando a transição da Idade Média para o Renascimento.
A maioria dessas repúblicas tornaram-se centros de grande prosperidade
artístico cultural.

90
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Em suma, nas repúblicas comunais do Norte da Itália medieval, as


normas e os sistemas de participação cívica possibilitaram grandes
melhoramentos na vida econômica e também desempenho gover-
namental. Mudanças revolucionárias nas instituições fundamentais
da política e da economia resultaram desse contexto social singu-
lar, com seus vínculos horizontais de colaboração e solidariedade
cívica, e esses progressos políticos e econômicos, por sua vez, for-
taleceram a comunidade cívica. (PUTMAN, 2006, p. 140-141).

No século XIV, a intolerância, a fome, a Peste Negra e a Guerra dos


Cem Anos perverteram o espírito da comunidade cívica e a estabilidade
do governo republicano. A devastação causada pela soma desses aconte-
cimentos dizimou a atividade econômica por mais de um século. Essas
instabilidades político-financeiras que assolaram as cidades-Estados ita-
lianas contribuíram para que elas se tornassem obsoletas, dificultando o
desenvolvimento do modelo democrático, que começou a sucumbir ao
domínio senhorial – apesar da continuidade das tradições republicanas pe-
los governos déspotas.
Vista no vasto panorama das tendências histó-
ricas, a cidade-estado foi condenada como base
para o governo popular pelo surgimento de uma
rival com forças esmagadoramente superiores: o
estado nacional, ou o país. Vilas e cidades esta-
vam destinadas a ser incorporadas a essa entidade
maior e mais poderosa, tornando-se, na melhor
das hipóteses, unidades subordinadas do gover-
no. (DAHL, 2001, p. 26).

O destino das repúblicas comunais fez nascer, mais tarde, entre os


teóricos políticos renascentistas, uma visão de governo cívico como uma
entidade forte e estável que fosse capaz de criar um cidadão modelo, inde-
pendente da direção dos seus negócios, e participante ativo nos negócios
do Estado.
Como foi demonstrado, a Grécia Clássica, a Roma Antiga e as ci-
dades italianas medievais serviram de berço para o florescimento, ainda

91
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

que tímido, dos denominados “governos populares”. Entretanto, para se


alcançar o modelo de democracia na sua acepção atual levou um certo
tempo, uma vez que não possuíam os principais aspectos definidores do
sistema de representação e participação modernos.
É notório que esse modelo de política europeia contribuiu
sobremaneira para o surgimento da democracia, principalmente por ter
proporcionado a formação de um “governo popular”, o qual, no entanto,
só conferia participação a um grupo minoritário. Para chegar ao modelo
de democracia moderno foi preciso traçar um longo caminho, em virtude
dos obstáculos encontrados, como a ascensão da monarquia centralizada,
as rebeliões, as guerras civis, os privilégios existentes e a própria descrença
a um governo democrático.
Apesar do seu sentido geral ser antigo, a forma da democracia atual é
fruto do século XX, pressupondo ser, nos moldes de hoje, um sistema as-
segurador dos mecanismos de participação popular nas políticas públicas.

A democracia, a seu turno, consiste em um projeto moral de au-


togoverno coletivo, que pressupõe cidadãos que sejam não apenas
os destinatários, mas também os autores das normas gerais de con-
duta e das estruturas jurídico-políticas do Estado. Em um certo
sentido, a democracia representa a projeção política da autonomia
pública e privada dos cidadãos, alicerçada em um conjunto básico de
direitos fundamentais. (BINENBOJM, 2006, p. 50).

Dessa forma, desde o século XX o modelo democrático domina o


cenário político mundial, sendo raros os governos, as sociedades ou os
Estados que não se autoproclamem democráticos.

2. DO CONCEITO DIFUSO DE DEMOCRACIA

Em sede etimológica, atualmente, a democracia pode ser conceituada


como a forma de organização do Estado em que o povo é o detentor do po-
der. Dessa forma, para existir democracia as decisões devem corresponder
à vontade do povo, aos direitos das minorias, aos princípios e às garantias
individuais. É a democracia concebida no sentido original, literal, do termo.

92
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A definição etimológica é, portanto, muito simplesmente, que democracia


é o governo ou o poder do povo (SARTORI, 1994, p. 40).
A palavra democracia tem origem grega (demos, povo; Kratos, poder),
significando “poder do povo”. Entretanto, não quer dizer que o povo go-
verne, mas, essencialmente, que ele seja detentor do poder de escolha dos
que governarão e, mais, que exerçam também o controle da forma de
governo.

No século V a.C., demos significava a comunidade ateniense (ou si-


milar) reunidas na ekklesia, a assembleia popular. Entretanto, demos
pode ser assimilado ao organismo inteiro; ou ao polloí, os muitos;
ou aos pleíones, a maioria; ou ao óchlos, o populacho (no sentido
degenerativo). E no momento em que demos é traduzido para o
populus latino, as ambiguidades aumentam. O conceito romano de
povo é muito peculiar e só pode ser entendido no contexto do que
chamamos de constitucionalismo romano. No entanto, não pode
ser descartado como irrelevante, pois a língua da Idade Média era
o latim. (SARTORI, 1994, p. 41).

Descobrir o significado original de uma palavra é o primeiro passo


para o desenvolvimento de uma pesquisa, posto que as palavras surgem e
refletem o contexto histórico de quando foram criadas. Por isso, deve-se
ter muita cautela para não se afastar do seu verdadeiro sentido ao mesmo
tempo em que leve em consideração suas variações subsequentes, para que
seja possível adequá-la às novas realidades.

Na estrutura básica de Aristóteles, democracia é o reflexo e uma


forma degradada da politéia, do que se poderia traduzir como “boa
cidade”. Isso significa que a demos que faz parte da concepção
aristotélica de democracia constitui-se de ingredientes múltiplos.
Consiste não apenas dos muitos, mas também dos pobres; e, além
disso, consiste dos muitos e/ou dos pobres qualificados por defeitos
(egoísmo, desrespeito à lei, ou outros) que sustentam, por sua vez,
a diferença entre uma democracia e uma politéia. Como o signi-
ficado aristotélico de demos serve aos propósitos de uma classifica-

93
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ção geral dos sistemas políticos, é uma complicação desnecessária


introduzi-lo neste estágio. Mas mesmo se ficarmos com os usos
linguístico puros e simples de demos, ainda nos depararmos com
vários significados do termo. (SARTORI, 1994, p. 40).

Quando se estuda o termo democracia na sua gênese é fácil perceber


que seu significado sofreu algumas adaptações para chegar à definição que
damos atualmente. Encontrar o verdadeiro significado de demos é uma ta-
refa árdua, uma vez que até mesmo na Grécia havia ambiguidades quanto
ao termo.

Quando o termo demokratia foi concebido, o povo ao qual se fazia


referência era o demos de uma polis grega, uma comunidade peque-
na e estreitamente unida operando no ato como um organismo
decisório coletivo. Mas, quanto maior a sociedade política, tanto
menos o conceito de povo pode designar uma comunidade con-
creta e tanto mais passa a conotar uma ficção jurídica ou, de qual-
quer forma, um construto extremamente abstrato. (...) O fato nu e
cru é, portanto, que o povo da polis, das comunas medievais, assim
como do terceiro (e quarto) estado do antigo regime, não existe
mais. (SARTORI, 1994, p. 46).

Aristóteles e Platão foram os precursores da descrição de democracia,


e ambos aferiram uma conotação negativa ao termo. Contudo, é atribuído
a Jean Jacques Rousseau o sentido clássico da palavra, já que foi ele quem
desenvolveu a acepção de vontade geral: “Se houvesse um povo de deuses,
esse povo se governaria democraticamente” (ROUSSEAU, 2003, p. 17).
Essas palavras são utilizadas por Rousseau em sua obra O Contrato Social,
e representam a perfeição atribuída à idealização dessa forma de governo,
cuja efetivação, para o autor, torna-se quase impraticável aos homens, da-
das as suas complexas demandas.
Para Rousseau (2003), governo tão perfeito não pertence aos homens.
Nessa linha de raciocínio, ele acrescenta que se tomarmos o termo na sua
acepção literal, pode-se concluir que jamais houve, bem como jamais ha-
verá verdadeira democracia. Seria impossível existir democracia quando

94
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

o poder se encontra restritamente nas mãos de alguns (governantes) en-


quanto a outra parcela é governada.
O posicionamento contrário à democracia, presente na obra de Rou-
sseau, foi embasado com a finalidade de assolar os alicerces do regime e
desprestigiar o princípio do povo soberano.

Tomando a aparência assustadora de antagonista das liberdades de-


mocráticas, o Rousseau daquelas máximas tão mal compreendidas
pelos seus intérpretes nunca poderá fazer sombra ao verdadeiro oti-
mismo rousseauniano. A face amorável do filósofo se evidenciará
sempre na doutrina da soberania popular, objeto de exposição em
que a lógica predomina impecável. (BONAVIDES, 2014, p. 285-
286).

Rousseau defende que o homem nasce livre, possuindo todos os di-


reitos naturais. Partindo dessa premissa, o autor adota a ideia de que o
contrato social exige um abandono recíproco e simultâneo de todos esses
direitos, gerando um total estado de igualdade, sendo este o fundamento
para se conseguir a liberdade civil.
Ou seja, para alcançar a vontade geral, que é o cerne da concepção de
democracia de Rousseau, os direitos intrínsecos dos homens são cedidos
à comunidade sem que haja delegação deles a alguém em específico. Em
outras palavras, não é preciso a instituição formal do contrato social. Para
que se forme uma sociedade não basta a simples reunião de seus cidadãos,
é preciso instituir uma relação mútua, onde cada um cede tudo o que tem
e em contrapartida recebe de todos tudo o que é cedido por eles. A reu-
nião de todos nesse corpo político forma a vontade geral.
Nesse contexto será sempre levada em consideração a vontade dos in-
divíduos para formar uma comunidade, sendo imprescindível que o povo
esteja disposto a comungar valores e princípios a fim de formar um cor-
po político. Com a constituição dessa vontade geral, através da passagem
do homem do estado de natureza para o estado civil, houve privações de
algumas vantagens, mas também se obtiveram inúmeros benefícios, prin-
cipalmente por meio do abandono e da evolução de um animal arcaico e
limitado para um ser inteligente e socializado.

95
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Dentro da perspectiva de Rousseau está reafirmada a concepção clás-


sica de democracia, que tem como característica a participação direta dos
cidadãos na tomada de decisões públicas. Destarte, para o autor, esse mo-
delo de governo não seria apropriado para todo e qualquer tipo de Estado,
sendo mais apropriada para países pequenos.

Primeiramente, um Estado muito pequeno, em que o povo seja


fácil de reunir e em que cada cidadão possa facilmente conhecer
todos os demais; em segundo lugar, uma grande simplicidade de
costumes, que previna a multidão de negócios e de discussões es-
pinhosas; em seguida, muita igualdade nas posições e nas fortunas,
sem o que a igualdade não poderia subsistir por muito tempo nos
direitos e na autoridade; enfim, pouco ou nada de luxo, pois, ou
o luxo é efeito de riquezas ou as torna necessárias; ele corrompe
ao mesmo tempo, o rico e o pobre, um pela posso, o outro pela
cobiça; vende a pátria à moleza e à vaidade; tira do Estado todos os
cidadãos, para sujeitar uns aos outros e todos à opinião. (ROUS-
SEAU, 2003, p. 92).

O problema do contrato social é que não é possível reunir o povo


permanentemente para cuidar dos negócios públicos nem criar mecanis-
mos de comunicação sem que haja alterações na forma de administração.
Com isso, Rousseau busca soluções para a construção de um corpo polí-
tico coletivo assegurador das garantias individuais, evitando o surgimento
de forças novas que poderiam se distanciar da ideia do contrato social.
Assim, as dificuldades para implementação desse corpo político, sem
predomínio de interesses nem divisão entre governante e governado, fez
com que a democracia se tornasse irrealizável. Na medida em que não
existe uma fórmula para alcançar uma sociedade igualitária onde todos
usufruam dos direitos existenciais, tem-se aqui o problema d’O contrato so-
cial. Para conservar a igualdade seria preciso a participação política efetiva
de todos no processo de tomada de decisões públicas, no entanto, o autor
não fornece os elementos necessários para a efetivação dessa participação
popular, o que torna inviável a prática da democracia.

96
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Apesar de o autor entender que a democracia em sua definição


original era algo irrealizável, como explanado anteriormente, ele via-
bilizou alternativas, não como forma de governo em si, mas como um
conjunto de critérios que serviria de base para a formação de um corpo
político, dentre os quais estão o estabelecimento de relações isonômi-
cas entre os indivíduos, a preservação da liberdade e a prevalência do
interesse público.
Só a partir dessas premissas é que se alcançaria uma comunidade po-
lítica igualitária. Sem elas não seria possível a formação de um corpo po-
lítico onde predominaria o bem comum em detrimento dos interesses
particulares, sendo imprescindível aqui uma relação de confiança mútua.
O autor, nesses termos, propõe a implantação de um corpo político hori-
zontal, onde não existisse nenhum vínculo de subordinação e nem hierar-
quia entre os indivíduos. Aqui, as decisões públicas são tomadas de forma
a atender ao interesse recíproco de todos.
Apesar de Rousseau não propor nenhum tipo de governo específico
em sua obra, esta serviu para reafirmar a concepção clássica de democra-
cia, bem como para reconhecer a igualdade e a participação política como
valores a serem incorporados aos regimes políticos democráticos moder-
nos. O problema é achar os mecanismos apropriados para estabelecer uma
relação entre o governo e o cidadão comum no processo de tomada de
decisões públicas.

Se examinado a fundo o desenvolvimento da democracia, partin-


do-se do conceito de que ela deve ser o governo do povo, para o
povo, verificar-se-á que as formas históricas referentes à prática do
sistema democrático tropeçam por vezes em dificuldades. E essas
dificuldades procedem exatamente - assim pensam os seus panegi-
ristas – de não lograrmos alcançar a perfeição, na observância deste
regime, o que, de outra parte, não invalida, em absoluto, segundo
dizem, a diligência que nos incumbiria fazer por praticá-los, vis-
to tratar-se da melhor e mais sábia forma de organização do po-
der, conhecida na história política e social de todas as civilizações.
(BONAVIDES, 2014, p. 286.)

97
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O sentido atual de democracia pode ser atribuído ao poder que ema-


na do povo, que o exercerá diretamente ou através de seus representantes
eleitos, fundamentado na ideia de que a maioria governa em consonância
com os princípios das liberdades humanas, sempre em observância dos
direitos fundamentais.
Certas escolhas podem ser tomadas individualmente ou por um grupo
restrito de pessoas, mas com efeitos ao coletivo, ou seja, uma decisão políti-
ca afetará os interesses de outros que não sejam integrantes de um determi-
nado grupo. O que se quer dizer é que uma determinação política por meio
de seus representantes é considerada uma forma de governo democrático.
A ideia atual de poder popular encontra-se intimamente ligada à de-
finição contemporânea do termo democracia. O conceito de Estado De-
mocrático, indubitavelmente, tem fundamento na noção de governo do
povo, uma vez que são consideradas democráticas as formas de governo
que tenham suas leis elaboradas por aqueles que serão, também, destina-
tários da norma. Nesse sentido, esse modelo de governo popular propõe
também a igualdade política entre os cidadãos, imprescindível à democra-
cia e fator que a distingue de outras formas de governo. Por isso, é con-
siderada como fundamento para os mecanismos de participação popular.
Na democracia moderna, há uma descentralização dos governos,
promovendo acolhimento e amparo aos seus cidadãos, sendo suas princi-
pais funções: promover o resguardo e a implementação dos direitos funda-
mentais; possibilitar a organização política, a participação plena dos cida-
dãos na vida política, econômica, cultural; assegurar eleições limpas onde
todos exerçam o direito de votar e ser votado.

Para que uma sociedade seja considerada democrática, deve haver


previsão legal de que os membros desta sociedade sejam conside-
rados iguais politicamente, devendo se basear, as demais normas
relacionadas ao processo de decisões políticas, neste princípio.
(DAHL, 2001, p. 27).

A democracia tem como suas principais expressões os valores de li-


berdade e igualdade, além de ter a participação popular como fundamen-
tal para que ela se efetive.

98
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A democracia não é apenas um processo de governar. Como os


direitos são elementos necessários nas instituições políticas demo-
cráticas, a democracia também é inerentemente um sistema de di-
reitos. Os direitos estão entre os blocos essenciais da construção
de um processo de governo democrático. Para satisfazer as exigên-
cias da democracia, os direitos nela inerentes devem realmente ser
cumpridos e, na prática, devem estar à disposição dos cidadãos.
Se não estiverem, se não forem compulsórios, o sistema político
não é democrático, apesar do que digam seus governantes, e as
“aparências externas” de democracia serão apenas fachadas para
um governo não-democrático. (DAHL, 2001, p. 61-61).

As decisões políticas de uma democracia devem preservar a liberdade


de participação de todos de forma igualitária no processo de apresentação
e no debate das ações governamentais.
Existirá um governo democrático sempre que houver uma vinculação
entre as ações governamentais e o exercício do direito de participação dos
cidadãos, direta ou indiretamente, nos rumos do Estado, sendo que essa
participação deve ocorrer de forma justa, livre e igualitária para o efetivo
exercício da democracia.
Para os defensores desse sistema democrático de governo, a justifica-
ção da sua existência até os dias atuais reside na questão de não ter sido
possível encontrar outro sistema que lhe seja superior.

Respondendo a quantos fazem objeção ao sistema democrático


de governo, o reformista do liberalismo inglês, Lord Russel, dessa
maneira se exprimia: “Quando ouço falar que um povo não está
bastante preparado para a democracia, pergunto se haverá algum
homem bastante preparado para ser déspota”. (BONAVIDES,
2014, p. 286).

Churchill, com a mesma ironia adotada pelo inglês Russel, exclamava


que “a democracia é a pior de todas as formas imagináveis de governo,
com exceção de todas as demais que já se experimentaram”.

99
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A concepção que melhor define democracia, em poucas palavras,


pode ser atribuída a Abraham Lincoln: “Governo do povo, para o povo,
pelo povo, governo que jamais perecerá sobra a face da Terra”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, conclui-se que, independentemente do sentido que


se atribua ao termo democracia, a verdade é que o significado descritivo
geral do termo não foi alterado, embora seu significado valorativo tenha
sofrido modificações com o decorrer do tempo.
Filiando-se ao entendimento de Bobbio, o que se considera que foi
alterado na passagem da democracia dos antigos à democracia dos moder-
nos, ao menos no julgamento dos que veem como útil tal contraposição,
não é o titular do poder político, que é sempre o povo – entendido como o
conjunto dos cidadãos ao qual cabe em última instância o direito de tomar
as decisões coletivas –, mas o modo (mais ou menos amplo) de exercer
esse direito.
O sentido da democracia moderna desenvolvido neste momento de
transformações sociais é: a democracia que se constrói através do diálogo
livre a partir da liberdade de pensamento no seio da sociedade, o que de-
pende da construção da cidadania como sinônimo de dignidade humana
e do rompimento com a opressão através da libertação da adversidade e do
respeito humano.
Fato é: não é possível alcançar o verdadeiro sentido da democracia
atual sem que haja os meios necessários para exercê-la, os quais se consti-
tuem nos direitos que possibilitam a paridade de participação política, na
reforma do sistema econômico e na transformação das relações de classe
através da libertação do ser humano da miséria e da ignorância. Indiscuti-
velmente, democracia é a força condutora do caminho a ser trilhado pelas
sociedades contemporâneas, independentemente da significação que lhe
seja atribuída.
Como exposto no trabalho, há divergências consideráveis entre os
posicionamentos doutrinários acerca do que exatamente se entende por
democracia. Apesar de grande parte dessa dúvida ter se dissipado, quando
da análise do termo em um sentido meramente formal, existiu na história

100
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

das instituições políticas três formas de exercício da democracia: a de-


mocracia direta, a indireta e a semidireta, ou se preferir uma classificação
mais simples e usual: democracia participativa ou direta e representativa
ou indireta.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. São


Paulo: Editora Escala, 1995.

BATISTA JUNIOR, Onofre Alves. Princípio Constitucional da Efi-


ciência Administrativa. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: di-


reitos fundamentais, democracia e constitucionalização. Rio de Ja-
neiro: Renovar, 2006.

BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco


Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores.


2014.

DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Bra-


sília: Editora Unb, 2001.

PUTMAN, Robert D. Comunidade e Democracia: a experiência da


Itália moderna. Tradução de Luiz Alberto Monjardim. Rio de Janei-
ro: Editora FGV, 2006.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Tradução de J. Crete-


lla Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003.

SARTORI, Giovanni. A teoria da democracia revisitada. Tradução


de Dinah de Abreu. São Paulo: Editora Ática, 1994.

101
ASPECTOS GERAIS DA
CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE
1917: BASE DA CONSTRUÇÃO DO
CONSTITUCIONALISMO SOCIAL
LATINO-AMERICANO (ESTADO
SOCIAL)
Tiago Romano12

INTRODUÇÃO

Na presente investigação pretendeu-se estudar a Constituição Mexi-


cana de 1917 (MÉXICO, 1917) e a criação do constitucionalismo social,
através da evolução das formas de Estado para o Estado Social. Além dis-
so, analisou-se a contribuição da citada Magna Carta para a formação do
constitucionalismo social nos países latino-americanos, a exemplo do que
ocorreu no Brasil e na Argentina.
Para isso, foi realizada uma abordagem histórica das formas de Estado
até o advento do Estado Social, conceituando o constitucionalismo social

12 Doutorando em direito constitucional pela Universidade de Buenos Aires. Pós-gradua-


do pela Unesp. Advogado. Autor de livros e artigos jurídicos. Coordenador dos Cursos de
Pós-Graduação em Direito à distância da Uniara. Professor assistente de prática jurídica
da Uniara.

102
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

e as principais inovações e garantias em prol da proteção social trazidas


pela Constituição Mexicana de 1917 (MÉXICO, 1917).

1. AS FORMAS DE ESTADO ANTES DO ESTADO


CONSTITUCIONAL

A evolução da estrutura do Estado até alcançar o Estado Constitu-


cionalista pode ser resumida em três períodos, conforme indicado por
Carvalho (1999, p. 45). Esses estágios são notavelmente refletidos na
Constituição Mexicana (MÉXICO, 1917), que incorporou as expe-
riências desses três momentos distintos para formular suas disposições,
abordagem que se mostrou crucial para estabelecer os direitos civis.
Por essa razão é importante examinar em detalhes neste estudo o fato
que pretendemos demonstrar: a Constituição Mexicana (MÉXICO,
1917), ora citada, influenciou historicamente o desenvolvimento do
constitucionalismo social latino-americano, abrangendo países como
Brasil e Argentina.
Sob esse prisma, no período ou fase do Estado Mandamental os
direitos não são dirigidos aos cidadãos civis, e sim aos estamentos, re-
presentando, portanto, privilégios a grupos determinados os quais, por
conseguinte, ditam as regras, inclusive em relação à criação e ao con-
trole dos direitos. Já no Estado Absoluto, a pedra angular é a centrali-
zação de poder pela vontade do monarca, ou seja, a lei é ditada segundo
a vontade unilateral de um governante, caracterizando-se pela ausência
de regras e pela falta de legislação, reiterando e prevalecendo a vontade
daquele que toma as decisões sem previsão legal e aplica penas ou me-
didas conforme seu bel prazer.
Por fim, no Estado de Polícia prevalece totalmente o Estado Abso-
luto, correspondendo ao chamado “despotismo esclarecido” do século
XVIII, com ampla ação do monarca, que justifica suas ações e condutas
pela manutenção e preservação do bem-estar comum. É nesse momento
em que há a criação dos exércitos nacionais, a estruturação da função ju-
risdicional do Estado, e a prevalência da lei sobre o costume como fonte
do Direito (CARVALHO, 1999, p. 45).

103
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

2. O CONSTITUCIONALISMO DO SÉCULO XVIII E O


ESTADO CONSTITUCIONAL LIBERAL

A expressão constitucionalismo é designada para marcar a transição


da Monarquia Absoluta para o Estado Liberal de direitos e garantias so-
ciais. Carvalho (1999, p. 132) destaca os seguintes fatos e elementos que
foram determinantes para a formação do constitucionalismo social:

a doutrina do pactum subjectionis, pela qual, no medievo, o povo


confiava no governante, na crença de que o governo seria exercido
com equidade, legitimando-se o direito de rebelião popular, caso
o soberano violasse essas regras; a invocação das leis fundamentais
do reino, especialmente as referentes à sucessão e indisponibilidade
do domínio real; celebração de pactos e escritos, subscritos pelo
monarca e pelos súditos (Carta Magna de 1215, Petition of Rights
de 1628, Instrument of Government de 1654 e Bill of Rights de 1689).

O autor cita também que foram determinantes para a formação do


constitucionalismo nos Estados Unidos da América, os chamados con-
tratos de colonização (Compact, celebrado a bordo do navio Mayflower, em
1620), as Ordens Fundamentais de Connecticut (the Fundamental Orders of
Connecticut), de 1639, e a Declaração dos Direitos (the Declaration of Righ-
ts), do Estado de Virgínia, de 1776 (CARVALHO, 1999, p. 132). Ainda,
contribuíram as constituições das ex-colônias britânicas da América do
Norte, a Constituição da Confederação dos Estados Americanos de 1781,
e a Constituição da Federação de 1787. Por fim, na França foi determi-
nante a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, se-
guida pela Constituição Francesa de 1791.
Esse primeiro período do constitucionalismo e do surgimento da
constituição política como vista hodiernamente foi resultado de movi-
mentos de inconformismo e de questionamentos marcados pela orienta-
ção liberal. Salienta-se que o chamado Estado Constitucional Liberal, do
fim do século XVIII, trouxe importantes inovações tanto na vida social
como no âmbito político, neste último caso cita-se a ideia de poder polí-
tico originário do povo ou da vontade de uma nação, segundo perspecti-

104
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

va tipicamente contratualista; mas, principalmente, trouxe a limitação do


poder político – que até então era absoluto – por um sistema de separação
de poderes.
Ademais, no plano econômico prestigiou-se a liberdade e a ideia
de que o Estado deveria zelar e garantir que o capitalista exercesse suas
atividades de forma livre, sem intervenções, cujo objetivo pautou-se no
aumento do capital. Portanto, o Estado Liberal representa o ápice da bur-
guesia contra o Estado Absolutista anterior, no qual o capitalista passou do
não exercício de poder político para a possibilidade de exercê-lo livremen-
te, com o intuito único de prevalecer os interesses não mais da monarquia,
mas, sim, da burguesia.
Assim, segundo Canotilho (1993, p. 407), o movimento constitucio-
nal liberal orientou a sua luta contra o absolutismo estatal, o arbítrio do
poder, as sobrevivências feudais e o protecionismo mercantilista. O lema
fundamental era: liberdade e propriedade.

3. METAMORFOSE ENTRE ESTADO LIBERAL E ESTADO


SOCIAL

Sabe-se que o Estado Liberal é caracterizado pela ausência de in-


tervenção estatal nas relações pessoais e laborativas dos cidadãos. Dessa
forma, é lógico que a burguesia, controladora do capital, por sua rápida
ascensão passou a dominar as atividades econômicas e políticas do país,
gerando sobrecarga aos trabalhadores que, em contrapartida, sem inter-
venção do Estado, viram-se obrigados a seguirem as imposições do siste-
ma capitalista.
Entretanto, a falta de regulamentação legal sobre as relações laborativas
e a ausência de representação política da classe trabalhadora, por conseguin-
te, gerou uma movimentação por mudanças. De forma análoga, Magalhães
(2002) esclarece que não poderia haver árbitros no jogo do capitalismo li-
beral, por isso a não regulamentação do Estado na economia só poderia
resultar no favorecimento daqueles que partiram na frente da competição,
isto é, da burguesia, classe já consolidada e que mais se beneficiou da rup-
tura com o Estado Absoluto. Logo, os participantes do jogo formariam o
chamado capital conservador que, essencialmente contrário ao liberal, acu-

105
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

mulava poder e desenvolvia estratégias de eliminação da concorrência e da


livre iniciativa a fim de se tornar cada vez maior, evitando o surgimento de
novos rivais e conchavando com os demais grandes competidores.
Importante mencionar que a exploração da mão de obra era a força
motriz da riqueza do capitalismo conservador, que se aproveitava da au-
sência de regulamentação legal para cada vez mais aumentar seus ganhos
às custas da pobreza da classe operária. Essa exploração gerou aumento
das desigualdades sociais e um distanciamento social entre os capitalistas
e a classe trabalhadora. O mote do momento se construiu em proteger a
classe trabalhadora, por essa razão Canotilho (1993, p. 407) escreveu que:

contra a unidimensionalização individualista, egoísta e proprietária


do liberalismo, contra a proletarização crescente das classes traba-
lhadoras, o movimento operário reclama justiça social e igualda-
de: segurança social, fim da exploração do homem pelo homem.
Isto é hoje indiscutivelmente considerado como o primeiro e amis
importante background histórico-social do moderno princípio da
democracia econômica e social.

Nesse dado momento, iniciam-se os movimentos sociais, tendentes a


garantir à classe trabalhadora os direitos fundamentais básicos do cidadão.
Essas manifestações sociais contribuíram para a formação histórica do Es-
tado Social – ou Estado Socialista.
Por essa razão, o Estado Social nasce como resposta às graves questões
sociais da época, visando superar a contradição entre igualdade política e a
desigualdade social. Nesse sentido, ele representaria, em uma perspectiva
constitucional, a inclusão dos direitos sociais e econômicos no arcabouço
dos direitos fundamentais da pessoa humana, que já contava com os cha-
mados direitos individuais e políticos.

4. CONCEITUAÇÃO DE CONSTITUCIONALISMO
SOCIAL

A concepção de não intervenção do Estado na vida do cidadão sem-


pre se fez presente. Essa era uma característica do liberalismo burguês,

106
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

quando esta deveria ser mínima. Menciona-se que a burguesia, após sua
ascensão ao poder, buscou equiparar-se aos direitos e garantias que até
então somente a nobreza possuía e, o caminho a ser percorrido para isso
foi a busca por direitos políticos, através da postulação de normas e leis que
favoreciam sua classe em detrimento de outras camadas sociais.
As teorias contratualistas dos séculos XVII e XVIII deram azo à ideia
de direitos fundamentais garantidos aos cidadãos, como forma de enten-
der que eles necessitavam de maior tutela, defesa de seus direitos básicos
como vida, saúde, segurança etc. Assim, não cabia mais ao Estado tão so-
mente defender os interesses dos nobres e poderoso, pois as novas classes
sociais emergidas também necessitavam de sua atenção e proteção, inclu-
sive contra ele próprio, tampouco cabia disciplinar regras e obrigações ao
povo perante a ele, mas, sim, deveria garantir direitos ao cidadão contra
sua própria atuação como poder regulador. É nesse momento em que sur-
gem os direitos fundamentais de primeira dimensão.
Posteriormente, não se mostrava mais suficiente a mera criação de
direitos e garantias ao cidadão contra o Estado, de modo que a este cabia
movimentar-se, criando mecanismos de atuação prática, a fim de tutelar
os interesses do cidadão. Há, nesse aspecto, o que se chamou de direitos
de segunda dimensão, posto que não bastava uma ação negativa, de não
perseguir o cidadão, mas, sim, positiva, para efetivamente defendê-lo.
Na Inglaterra, no início do século XVIII, iniciou-se a industrializa-
ção. Com isso, houve aglomeração e criação das massas trabalhadoras a
fim de fomentar a expansão das indústrias, o que logo resultou e uma
mudança na relação de produção, que passou a ser industrial. Consequen-
temente, as indústrias começaram a reunir e a aglomerar trabalhadores,
de modo a modificar não apenas a produção de bens e serviços, como
também a forma como o trabalhador deveria ser tutelado.
Nesse momento, o constitucionalismo liberal já exercia certa influên-
cia e, aliado a esse pensamento, a Igreja Católica adotou uma ideia de
justiça social para garantir aos trabalhadores alguns direitos fundamentais
mínimos, que eram defendidos pelo Manifesto Comunista de 1948 e que
ganharam relevância após os efeitos da Primeira Guerra Mundial, impac-
tados pela ideologia defendida pela Revolução Russa de 1917.

107
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Reiterando, a rápida formação de uma nova classe, intitulada “traba-


lhadora”, fez com que os paradigmas fossem contraditados aos padrões da
época, aliados à urbanização social. Em razão do surgimento dessa nova
classe, necessitou-se colocar em pauta a temática da ordem econômica e
social nos debates políticos e legislativos da época. Bonavides (2007, p.
188) lecionou sobre a importância e a necessidade de alteração do modelo
constitucional até então vigente e implantado pelo Estado Liberal:

O velho liberalismo, na estreiteza de sua formulação habitual, não


pôde resolver o problema essencial de ordem econômica das vastas
camadas proletárias da sociedade, e por isso entrou irremediavel-
mente em crise. A liberdade política como liberdade restrita era
inoperante. Não dava nenhuma solução às contradições sociais,
mormente daqueles que se achavam à margem da vida, desapossa-
dos de quase todos os bens. Comunicá-la, pois, a todos, conforme
veio a suceder, significava já um passo em falso na firmeza da teoria
liberal. E isto foi uma das primeiras transformações por que passou
o liberalismo. Mostrava-se, aí, com raro poder de evidência, a face
dialética em que se movia historicamente a sociedade humana.

Observa-se que o quadro vigente necessitava de mudança, que con-


sistia basicamente em afastar o Estado Liberal, disciplinando os direitos
sociais básicos, bem como em criar os mecanismos de atuação estatal, para
que agissem fortemente intervindo na relação social entre o dono do capi-
tal e a classe trabalhadora, a fim de, efetivamente, garantir os direitos dos
cidadãos, notadamente os da classe trabalhadora operária.
Os marcos desse período – intitulado como social – foram a Cons-
tituição Mexicana, de 1917 (MÉXICO, 1917) e a Constituição de Wei-
mar, de 1919 (ALEMANHA, 1919). Em ambas as cartas se defendeu a
necessidade do Estado em tutelar mecanismos e ferramentas para res-
guardar o cidadão por meio de direitos e garantias fundamentais. Esses
instrumentos citados foram a pedra angular para a criação do constitu-
cionalismo social.
Segundo Herera (2008, p. 7):

108
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A história constitucional tem oficialmente a sua certidão de nas-


cimento com a Constituição alemã de 11 de agosto de 1919. Mas,
para dizer a verdade, esta já tem um precedente fundamental na
Constituição mexicana de 5 de fevereiro de 1917, elaborada em
Querétaro. Se este antecedente não pode ser evitado, não se tra-
ta de um simples (e inútil) gesto de erudição: encontramos ali,
estabelecida pela primeira vez em um texto constitucional que
alcançara vigência, a relação específica entre direitos sociais e re-
volução inconclusa.

Silva (1977) sustenta que a Constituição da República de Weimar


(ALEMANHA, 1919) representa o instrumento legislativo que irradiou
os valores e garantias ao cidadão que existem até os dias atuais em países
como Brasil, Argentina, entre outros, intitulando-o constitucionalismo
ocidental contemporâneo – onda de garantias e ferramentas que consoli-
dam ao cidadão a proteção do Estado por meio de direitos fundamentais
e sociais mínimos:

A Constituição Alemã, ao integrar a ordem político-institucional


aos objetivos econômicos da sociedade, buscou definir um projeto
alternativo social-democrático que satisfizesse os diversos segmen-
tos sociais, presos, de um lado, às concepções da clássica democra-
cia burguês-individualista, e, de outro, ao crescente fluir de princí-
pios e proposições socialistas. Tratava-se da primeira tentativa feita
por uma nação de construir uma socialdemocracia, procurando
conciliar princípios liberais e princípios socialistas, e almejando
fugir, ao mesmo tempo, do exemplo, então bem próximo e bem
presente em todos os espíritos, da revolução soviética e dos exces-
sos do capitalismo e do liberalismo. (SILVA, 1977, p. 35).

Oportuna a transcrição dos magistérios de Bercovici (2008, p. 31) ao


concordar que:

A partir de Weimar (e da Constituição do México, de 1917), a


característica essencial das constituições do século XX passa a ser o

109
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

seu caráter diretivo ou programático, que incorpora conteúdos de


política econômica e social. Esta característica é fruto da democra-
cia de massas. A tentativa de incorporação da totalidade do povo
no Estado passa a exigir a presença de uma série de dispositivos
constitucionais que visam a alterar ou transformar a realidade so-
cioeconômica.

O Constitucionalismo Social, segundo Martins (2000, p. 37), é a


inclusão nas constituições de preceitos relativos à defesa social da pessoa,
de normas de interesse social e de garantia de certos direitos fundamentais,
incluindo o direito do trabalho. Denomina-se “constitucionalismo so-
cial”, então, o movimento que, considerando uma das principais funções
do Estado – a realização da Justiça Social –, propõe a inclusão de direitos
trabalhistas e sociais, fundamentais nos textos das constituições dos países
(NASCIMENTO, 1997, p. 25).
Dessa feita, elementar que o marco inicial do constitucionalismo so-
cial são as Constituições de Weimar (ALEMANHA, 1919) e do México
(MÉXICO, 1917), as quais tiveram influência para sua criação em outros
países, como Brasil, Argentina e demais países da América Latina.

5. A CONSTITUIÇÃO MEXICANA DE 1917 E OS


DIREITOS SOCIAIS

Reiterando, o constitucionalismo social caracteriza-se pela inclusão,


na normativa constitucional, da proteção aos direitos sociais. Ainda que
alguns direitos trabalhistas já tivessem sido estabelecidos em alguns países,
somente com a Constituição do México de 1917 (MÉXICO, 1917) é que
tais direitos ganharam o status de direitos fundamentais. A singularidade
desse precedente histórico é relevante, já que a Europa só viria a aceitar a
dimensão social dos direitos humanos no pós-guerra (COMPARATO,
2003, p. 174).
Com a promulgação dessa constituição, a forma de governo seguiu
sendo republicana, representativa, democrática e federalista, mantendo-se
a divisão tripartite entre os poderes executivo, legislativo e judiciário. O
sistema de eleições diretas foi ratificado, dando maior autonomia ao Poder

110
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Judiciário e mais soberania aos estados federados. O trauma político da


Ditadura Porfirista também ensejou a proibição da reeleição presidencial,
com fixação do mandato em seis anos (artigo 83), e a determinação do
Estado laico (artigo 130).
O texto constitucional dividiu-se em duas significativas partes, co-
nhecidas como dogmática e orgânica. Na primeira (Título I, artigos 1º
à 38), cristalizara-se as garantias individuais e os direitos e liberdades so-
ciais. Por sua vez, na segunda parte foram abrangidos os Títulos II a IX
(artigos 39 a 136), sendo dedicada à divisão dos poderes e à organização da
estrutura estatal. No primeiro Título, são dignos de destaque os seguintes
preceitos: a proibição da escravatura (artigo 2º); a igualdade entre os sexos
(artigo 4º); a liberdade de expressão e vedação à censura prévia (artigos 6º
e 7º); a liberdade de associação (artigo 9º); a proibição de juízo de exceção
(artigo 13); a irretroatividade da lei penal (artigo 14); o devido processo
legal (artigo 14); as garantias do acusado (artigo 20); o non bis in idem
(artigo 23); e liberdade religiosa (artigo 24).
Ainda no Título I, devem ser realçadas, também, as seguintes pre-
visões: proteção à família (artigo 4º); direito à saúde pública (artigo 4º, §
2º); direito à moradia digna, a ser assegurado pelo Estado (artigo 4º, § 3º);
proteção pública dos menores (artigo 4º, § 4º); e a vedação à constituição
de monopólios (artigo 28).
Ao lado das garantias e proteções acima referidas, a Constituição
Mexicana (MÉXICO, 1917) previu, também, os direitos de segunda di-
mensão. Estes estão espalhados pela Carta Magna, embora possam ser
encontrados, com maior potência e objetividade, em duas das cláusulas
mais importantes do texto constitucional: o artigo 27 e o artigo 123. O
primeiro é dedicado à maior das reinvindicações revolucionárias: a ques-
tão agrária. Seu texto extenso, com 25 parágrafos e mais de 2 mil palavras,
assegura a soberania da nação relativamente às terras e às águas e prevê,
expressamente, a possibilidade de desapropriação mediante indenização,
como também a proteção da pequena propriedade e a sua função social.
Ainda, ao lado da questão agrária, o artigo 123 (que compunha o Títu-
lo Sexto: Del Trabajo e de Prevision Social) consagra, em sede constitucional,
princípios de proteção ao trabalho. Para Rabasa (2002, p. 100), foram in-

111
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

troduzidas normas trabalhistas bastante avançadas para a época, pois tratava,


de forma inédita, de matérias como: limitação da jornada de trabalho para
8 horas diárias; proibição do trabalho de menores de 12 anos e limitação a
6 horas de trabalho para menores de 16 anos; jornada máxima noturna de 7
horas; descanso semanal; proteção da maternidade; salário mínimo; igual-
dade salarial entre homens e mulheres; adicional de horas extras; direito de
greve e de sindicalização; indenização de dispensa; higiene e segurança do
trabalho; seguro social e proteção contra acidentes do trabalho; conciliação
e arbitragem dos conflitos (MARTINS, 2000, p. 37).
Nesse sentido, Cueva (1960, p. 120) faz importante esclarecimento
sobre o artigo 123 da Constituição Mexicana (MÉXICO, 1917):

é indubitável que o nosso artigo 123 marca um momento decisivo


na história do direito do trabalho. Não queremos afirmar que te-
nha servido de modelo a outras legislações, nem que seja uma obra
original, senão não, apenas, que é o passo mais importante dado
por um país para satisfazer às demandas das classes trabalhadoras.
Seria inútil empenhar-se em encontrar repercussões que não teve:
a Europa não conheceu, em termos gerais, nossa legislação. A pro-
mulgação da Constituição alemã de Weimar, unida à excelente li-
teratura que desde o princípio produziu, fez com que a atenção do
mundo se fixasse principalmente sobre ela. A falta quase total de
estudos sobre o direito mexicano contribuiu também para que fos-
se ignorado; apenas uma ou outra referência se encontra nos auto-
res franceses e, sobretudo nos espanhóis. Tampouco é nosso artigo
123 completamente original. A exposição histórica comprova que
os legisladores mexicanos se inspiraram em leis de diversos países,
França, Bélgica, Itália, Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia,
de tal maneira que a maior parte das disposições que nela foram
consignadas eram conhecidas em outras nações. Mas a ideia de fa-
zer do direito do trabalho um mínimo de garantias em benefício
da classe economicamente fraca e a de incorporar essas garantias
na Constituição, para protegê-las contra qualquer política do le-
gislador ordinário, são próprias do direito mexicano, no qual pela
primeira vez foram consignadas.

112
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Indubitavelmente, na seara dos direitos trabalhistas, a Constituição


Mexicana (MÉXICO, 1917) foi um grande legado para a cidadania e a
defesa dos direitos sociais. É certo ainda que não somente nesse âmbito,
mas em várias outros pontos e aspectos o diploma citado serviu de base
para que outros países adotassem o Estado Constitucional em suas cons-
tituições, tanto os países latino-americanos quanto de outros continen-
tes, tais quais: Chile (1925), Peru (1933), Áustria (1 925), Rússia (1918
e 1935), Brasil (1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988), Espanha (1931),
Uruguai (1934), Bolívia (1938), Nicarágua (1939), Honduras (1936),
Colômbia (1936 e 1945), Romênia (1948), República Federal Alemã
(l949), República Democrática Alemã (1949), Tchecoslováquia (1948),
Venezuela (1947 e 1961), Turquia (1961), Iugoslávia (1921 e 1963) e
Guatemala (1965).
Já na esfera da propriedade, o artigo 27 da Constituição Mexicana
(MÉXICO, 1917) garantiu a propriedade privada, contudo resguardado
o interesse coletivo. Além disso, trouxe a previsão da reforma agrária.
Veja-se:

a propriedade das terras e águas (...) pertence originariamente à


Nação, a qual teve e tem o direito de transmitir o domínio delas
aos particulares, constituindo assim a propriedade privada (...) A
Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à propriedade priva-
da as determinações ditadas pelo interesse público, assim como o
de regular o aproveitamento de todos os recursos naturais suscetí-
veis de apropriação, com o fim de realizar uma distribuição equita-
tiva da riqueza pública e para cuidar de sua conservação. Com esse
objetivo serão ditadas as medidas necessárias para o fracionamento
dos latifúndios; para o desenvolvimento da pequena propriedade
agrícola de exploração; (...) para o fomento da agricultura para evi-
tar a destruição dos recursos naturais e os danos que a propriedade
possa sofrer em prejuízo da sociedade; (...) população (...) que ca-
reçam de terras e águas (...) terão o direito de recebê-las, devendo
essas terras e águas ser tomadas das propriedade próximas, respei-
tada sempre a pequena propriedade (MÉXICO, 1917).

113
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Ao longo do texto constitucional, outras cláusulas valorizam e re-


verenciam expressamente o trabalho, como a determinação de justa re-
tribuição à prestação do serviço e a imposição de limites aos contratos
trabalhistas (artigo 5º); a instituição do trabalho como base do sistema
penal (artigo 18); e a extinção das dívidas contraídas em razão do trabalho
(artigo 13 dos dispositivos transitórios).
Dessa forma, é indiscutível que o diploma objeto do estudo foi uma
das balizas para a criação do Estado Constitucional nos moldes que o co-
nhecemos atualmente.

CONCLUSÕES

Mediante os aspectos abordados, conclui-se, com absoluta certeza,


que o Estado Social encontrado como forma de governo em países la-
tino-americanos como Brasil e Argentina é decorrente de um processo
de evolução iniciado pela Constituição Mexicana de 1917 (MÉXICO,
1917). É inegável ainda que os preceitos trazidos pelo documento serviram
de base para a criação do atual constitucionalismo social nos países citados.
Sabe-se que a garantia dos direitos sociais mínimos é essencial para
qualquer governo que defenda o Estado Democrático de Direito, não ten-
do mais espaços para retrocessos ou criação de formas de governar que não
visem à defesa da dignidade humana e dos direitos sociais.
Por fim, é certo que a Constituição do México de 1917 é um instru-
mento democrático e serve como paradigma para a construção do consti-
tucionalismo social.

REFERÊNCIAS

ALEMANHA. Constituição do Império Alemão de 31 de julho de


1919. Schwarzburg: Presidência do Império, 1919.

ANDRADE, Paes de; BONAVIDES, Paulo. História constitucional


do Brasil. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1991.

BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição da democracia de massas


no Brasil: instabilidade constitucional e direitos sociais na Era Vargas

114
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

(1930-1964). In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMEN-


TO, Daniel (org.). Direitos Sociais: Fundamentos, judicialização e
direitos sociais em espécie. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. São Pau-


lo: Editora Catavento, 2007.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. Coim-


bra: Livraria Almedina, 1993.

CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional didático.


Belo Horizonte: Del Rey, 1999.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos


Humanos. São Paulo, Saraiva, 2003.

CUEVA, Mario de la. Derecho mexicano del trabajo. Ciudad de Mé-


xico: Porrúa, 1960.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Bill of Rights. Nova York:


Congresso dos Estados Unidos, 1791.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição dos Estados


Unidos da América. Filadélfia: Convenção Constitucional, 1787.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Declaração de Direitos de


Virgínia. Williamsburg: Conselho da Colônia de Virgínia, 1776.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Fundamental Orders of Con-


necticut. Hartford: Conselho da Colônia de Connecticut, 1639.

FRANÇA. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.


Paris: Assembleia Nacional Constituinte da França, 1789.

FRANÇA. Constituição Francesa de 1791. Paris: Assembleia Nacio-


nal Constituinte da França, 1791.

HERRERA, Carlos Miguel. Estado, constituição e direitos sociais.


Campinas: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Re-
gião, 2008.

115
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

INGLATERRA. Bill of Rights. Londres: Rei William III da Inglaterra,


1689.

INGLATERRA. Instrument of Government. Londres: Conselho de


Oficiais Militares, 1654.

INGLATERRA. Magna Charta Libertatum. Londres: Rei João da


Inglaterra, 1215.

INGLATERRA. Petition of Right. Londres: Rei Charles I da Inglater-


ra/Parlamento Inglês, 1628.

MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. São Paulo: Atlas, 2000.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. [S. l.: s.


n.], 1848.

MÉXICO. Constituição Mexicana de 5 de fevereiro de 1917. Que-


rétaro: Assembleia Constituinte do México, 1917.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho.


São Paulo: Saraiva, 1997.

RABASA, Emilio. Historia de las constituciones mexicanas. Cida-


de do México: UNAM, Instituto de Investigaciones Jurídicas,
2002.

SILVA, Floriano Corrêa Vaz da. Direito Constitucional do Trabalho.


São Paulo: LTR, 1977.

116
A ECONOMIA COMPORTAMENTAL
NAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
SUPERAR A CRISE DO ESTADO
NA ENTREGA DE SERVIÇOS E
RESULTADOS
Isabella Nunes Borges13

INTRODUÇÃO

O mundo é visto, no decorrer da história, com enfoques diferentes.


Uma vez acreditou-se na teocracia, outra no absolutismo, outra num Es-
tado Liberal, depois social, democrático, constitucional… quantas facetas.
Ao focar o Poder Judiciário, observa-se uma tendência axiológica. O mes-
mo ocorre com a Administração Pública e suas estruturas que, por meio
da aplicação fenomenológica do Direito, passou de mera executora da lei
para uma entidade concretista de direitos fundamentais.
Em teoria, as instituições públicas (que atuam como vigilantes da de-
mocracia) devem ser capazes de levar os escopos do sistema jurídico para
a população, haja vista que a defesa dos direitos civis, políticos e funda-

13 Mestranda em Direito Constitucional pelo CEUB. Editora Adjunta da Revista Brasileira de


Políticas Públicas. Advogada colaboradora da DPDF. Trabalha com temas voltados à Herme-
nêutica Sistemática, Teoria da Decisão Judicial e Administrativa.

117
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

mentais é um requisito para um regime de governo democrático, tema do


primeiro tópico do presente trabalho.
Todavia, o cotidiano da atuação pública presencia ingovernabilidade
e uma crise do agenciamento, que não permite a entrega dos serviços pú-
blicos em nível social e territorial. O primeiro porque o acesso ao Poder
Público pelos grupos marginalizados é defasado; e o segundo porque as
desigualdades regionais geram um desequilíbrio no federalismo que não é
cooperativo, mas, sim, competitivo. A este fenômeno prático é destinado
o segundo capítulo desta pesquisa.
Nesse sentido, as Políticas Públicas podem e devem apostar em uma
abordagem que facilite os procedimentos, simplifique a linguagem e se
apoie em gatilhos comportamentais. Para tanto, os Nugdes Sociais são rele-
vantes. O terceiro tópico deste trabalho é destinado a analisar esse tema,
trazendo exemplos bem-sucedidos ao redor do mundo (como Reino
Unido, Dinamarca, Austrália e Espanha).
Apesar de realizar uma análise em nível internacional, não se trata de
uma metodologia de estudo comparado, mas, sim, bibliográfica qualita-
tiva. Com isso, pode-se responder à pergunta: como a análise comporta-
mental pode ser utilizada nas Políticas Públicas para ajudar na superação
do atual cenário, em que o Estado está sobrecarregado e não consegue
entregar resultados satisfatórios?

1. A ENTREGA DE RESULTADOS PELO PODER PÚBLICO


COMO REQUISITO DEMOCRÁTICO

Um processo histórico e temporal (pois o conhecimento é limitado


ao espaço-tempo) pode ser notado no que diz respeito à atuação do Estado
para a manutenção do regime democrático de governo. Durante muito
tempo, o aparato estatal era pautado pelo princípio da legalidade e força-
do a uma atuação formal, uma vez que a ideia de objetivação da Ciência
Jurídica era preponderante, com uma visão lógico-dedutiva e abstrata (BI-
NENBOJM, 2008).
Os princípios não eram considerados uma entidade normativa pelo
positivismo jurídico, pois não gozavam de coercitividade – um requisi-
to para a manifestação do Direito como Ciência Pura (KELSEN, 1979).

118
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Porém o Estado, em decorrência das suas atividades cotidianas, precisou


concretizar os direitos e garantias fundamentais e, para tanto, teve que
abandonar uma posição de mero executor da lei para se tornar uma Ad-
ministração Pública concretista de direitos fundamentais (CHICOSKI,
2016, p. 274).
Tais princípios passaram a ter força normativa, além de terem surgido
os valores axiomáticos, os quais, assim como as regras, devem ser aplica-
dos num sistema de tudo ou nada. Como exemplo: a dignidade da pessoa
humana não se trata de um mandamento de otimização, pois ou ela é apli-
cada na prática, ou não é - tudo ou nada (DEZAN, 2018). Isso significa
que, para suprir a lacuna deixada pelo positivismo jurídico, o sistema de
direitos fundamentais precisou ser aplicado aos Três Poderes.
A cultura, a moral, a democracia, a cidadania e o respaldo em outras
ciências são, nesse novo modelo, pré-requisitos para se alcançar uma deci-
são (administrativa ou jurídica) justa. A própria semiótica, quando aplica-
da ao contexto das Ciências Jurídicas afirma que os elementos e consensos
previamente estabelecidos pela sociedade são um critério de legitimação
para todo e qualquer discurso do governo (SALGADO, 2000, p. 98).
Cabe ressaltar que, de uma maneira clássica ou tradicional, o regime
de governo democrático é aquele que contém cidadãos cuja participação
política é efetiva. Isso quer dizer que o Estado deve proporcionar ao seu
povo meios de acesso à informação, aos canais de participação, incentivar
a autonomia de vontade e oferecer opções para que se exerça a escolha.
Nesse sistema, há votações livres, justas e periódicas. Votar e ser votado
deve ser uma realidade normal. Em adição, os direitos fundamentais e as
garantias necessitam da devida proteção e do fomento pelo aparato estatal
(MELLO; RUDOLF, 2022).
Para que esses requisitos sejam cumpridos, a existência de instrumen-
tos legítimos que ajudem a alcançá-los é imprescindível, como o processo
e o procedimento. Estes devem ter sido previamente acordados e aceitos
como os meios de entrega dos serviços. Assim, a governança será legítima
quando for composta pelas seguintes premissas: igualdade, máxima liber-
dade possível e autodeterminação (DAHL, 2012) – que quer traduzir um
povo que obedece a si próprio (ROUSSEAU, 1762).

119
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Nesse caminho, as instituições são tão relevantes para a democracia


que a literatura moderna classifica algumas delas como Whatchdogs demo-
cráticos (MELLO; RUDOLF, 2022). O sistema jurídico, da forma como
é formulado e aplicado atualmente, confere-lhes funções de agir como
vigilantes ou fiscalizadoras dos programas, tarefas e políticas governamen-
tais, das quais algumas são descritas a seguir.
O Poder Legislativo é classificado como um Whatchdog interno (por
ser uma instituição de direito público nacional) e horizontal (por compor
o aparelho estatal). Por meio da sua atuação, ele é capaz de frear os abu-
sos, selecionando quais projetos de lei devem prosseguir e quais devem ser
barrados. Ele atua como fiscalizador externo do Poder Executivo, num
sistema de freios e contrapesos em prol da saúde do país, bem como é
capaz de retirar o Chefe de Estado e de Governo por meio do instituto do
Impeachment.
O Poder Judiciário, composto pelos tribunais e supremas cortes, re-
cebe a mesma classificação. Ele tem a função de, igualmente, conter abu-
sos, e o faz ao apontar a inconstitucionalidade de determinadas condutas
(desde uma ação – como um ato normativo – até uma omissão).
Semelhantemente classificado, está o Procurador-Geral da República
(Defensor del Pueblo ou Ombudsman). Ele deve fomentar a proteção e
a efetivação dos direitos e garantias fundamentais. Isso é concretizado no
combate à corrupção, na fiscalização e na denúncia de eventuais excessos
do governo.
Ainda pode-se contar com a burocracia, de tipologia semelhante às
anteriores. Ela busca despolitizar os atos e decisões estatais, afastando do
seu bojo os vieses e ideologias políticas ou particulares. Com isso, acata
um papel de contenção dos atos de governo e garante a entrega do serviço
público. Ela é a exposição mais aparente do processo e do procedimento
na Administração Pública.
Por fim, destaca-se o papel das agências executivas e reguladoras. Elas
atuam em segmentos específicos, com maior grau de tecnicidade (como
a economia, o meio ambiente, a telecomunicação etc.). Por meio de suas
funções, elas disponibilizam uma boa fonte de informação tratada e aces-
sível à população. Ademais, cuidam para que a atuação estatal esteja con-

120
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

vergente com os interesses sociais e têm, ainda, um importante papel de


fiscalizar e deliberar junto ao orçamento público.
No que diz respeito à questão orçamentária, o Plano Plurianual 2000-
2003, denominado Avança Brasil, instituiu o modelo de gestão por resul-
tados. Nele, o orçamento público passou a ser diretamente relacionado à
entrega de resultados substanciais à sociedade. O planejamento estratégico
e os três níveis organizacionais (estratégico, tático e operacional) tiveram
a incumbência de juntos melhorar a qualidade dos serviços fornecidos aos
usuários-cidadãos (GARCIA, 2000).
Nesse mesmo percurso (de entrega de resultados) seguem as agên-
cias executivas que, através de um contrato de gestão, vinculam-se a
certos compromissos e dedicam-se a alcançar metas e resultados a favor
da sociedade. Em troca, conseguem maior autonomia, recursos finan-
ceiros e parcerias junto ao Estado. Nessa senda, tais entidades partici-
pam da implementação e avaliação das Políticas Públicas (CADERNOS
MARE, 1998).
Com esses apontamentos, conclui-se o primeiro tópico deste artigo
que procura demonstrar como a atuação estatal e a entrega de resultados
pelas instituições públicas são essenciais à democracia. Afinal, direitos e
garantias fundamentais podem e devem ser implementados por meio de
suas atividades.

2. AS DIFICULDADES NA ENTREGA DOS RESULTADOS


E O SENSO GENERALIZADO DE DESCONFIANÇA NA
DEMOCRACIA

A verdade é que os resultados esperados não estão sendo atingidos e


a população se vê carente da realização da promessa feita pelo regime de-
mocrático de governo. Consequentemente – e até justificável –, como a
sociedade pode confiar em um modelo que é falho na efetivação dos seus
escopos?
Para compreender esse cenário, é importante partir do pressuposto de
que as crises na entrega dos serviços não estão necessariamente ligadas à
escassez de recursos, mas são consequência da desigualdade severa entre os

121
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

cidadãos e o exercício dos seus direitos, como a liberdade, os direitos civis,


políticos e de acesso à justiça (SEN, 2010).
É importante salientar, contudo, que a identificação dos problemas e
das evidências pode variar de grupo para grupo. Isso porque a percepção
do mundo, assim como a Ciência Jurídica, é um fenômeno restrito ao es-
paço-tempo do pesquisador (GADAMER, 1999). Uma vez que a propos-
ta deste capítulo é elencar alguns dos desafios práticos à consolidação da
democracia como entrega de resultados, ele não tem o condão de esgotar
o tema. Mesmo se o quisesse não seria possível, em decorrência de uma
racionalidade limitada.
Um país democrático é constituído por regras escritas e não escritas.
Sendo que estas dão suporte àquelas e, juntas, podem formar uma rede
de proteção e de manutenção desse regime de governo. Dentre as regras
não escritas destaca-se a reserva institucional, comportando a ideia de que
algumas condutas não devem ser praticadas, mesmo que a lei não as proíba
expressamente (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018, p. 107).
Um exemplo disso é a atuação do Poder Judiciário, que, muitas vezes,
não conseguiu manter a sua posição de imparcialidade e independência.
Por meio de atos que não ferem a lei, mas violam a reserva institucional, os
tribunais são alvos de ataques constantes, como o aparelhamento das cor-
tes pelo Poder Executivo ou Legislativo (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018,
p. 109). Isso lhes retira a aparência de legitimidade tão importante para le-
var a sensação de segurança e confiança aos cidadãos que buscam a justiça.
A Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), por meio dos seus
julgados, indica alguns dos requisitos necessários para que um tribunal
seja acompanhado pela sua prerrogativa jurisdicional. A independência e
a imparcialidade fazem parte desse rol, segundo a European Court of Hu-
man Rights (ECHR, 2022). Sendo assim, suas peculiaridades podem ser
trazidas para este artigo.
Quanto à independência, imperam algumas exigências: (i) nomeação
dos membros do tribunal livres de qualquer barganha que possa atingir a
função jurisdicional; (ii) adequada duração do mandato dos magistrados; (iii)
proteção contra a pressão externa. No que tange à imparcialidade das cortes, a
atuação do Poder Judiciário é avaliada por meio de dois pontos de partida:

122
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

(i) um subjetivo, que, em um cenário ideal, deve indicar a ausência de vieses


subjetivos capazes de influenciar o julgamento e (ii) um objetivo, que é a
ausência de vínculos hierárquicos entre o juiz e os seus pares ou entre o
magistrado e aquele que o nomeou. Todos esses tópicos devem ser identi-
ficados numa corte, de forma que o exercício da jurisdição seja legitimado
e justo (ECHR, 2022, p. 25-26).
Ainda resta um requisito comum à independência e à imparcialidade,
qual seja, a aparência de legitimidade na atuação da corte, o que quer dizer
que o tribunal não apenas deve ser livre de influências, como também
deve aparentar ser. Isso com o intuito de evitar qualquer senso de descon-
fiança dos cidadãos (ECHR, 2022, p. 19).
Em oposição à jurisprudência da CEDH, é possível identificar, ao redor
do mundo, instituições que falharam no preenchimento desses requisitos. A
título de exemplo, o Tribunal Constitucional Polonês, que foi amplamente
afetado pela lei (no ano de 2015) que regia a nomeação dos seus membros. A
referida lei teve uma tramitação extremamente acelerada no Legislativo (bas-
tando dois dias para que fosse aprovada em unanimidade, já que os membros
do partido político opositor não estavam presentes para a votação). Antes que
entrasse em vigor, o presidente e o vice-presidente foram substituídos em seus
cargos, bem como novos cinco juízes passaram a compor o tribunal. 90%
da divergência era levantada pelos mais antigos. Naquele período, o nível de
confiança na corte por parte da população caiu e houve uma redução da pro-
teção aos direitos humanos pelo Judiciário, além de suas decisões constante-
mente serem revisadas (KOBYLINSKY, 2018, p. 104).
Na Argentina, os juízes aliados ao partido opositor foram afastados,
retirando da corte a sua independência. O presidente Juan Perón (ano de
1940) conseguiu afastar três dos cinco magistrados do tribunal, indicando
que este não era livre de pressões externas. Já nos Estados Unidos, Andrew
Johnson (ano de 1866) logrou o afastamento de três juízes em uma corte
de dez membros (LEVITSKY; ZIBLATT, 2018).
Esses ocorridos provam que em diversos momentos a crença na de-
mocracia e na defesa dos direitos foi afetada, e a aparência de legitimidade
e de capacidade do Estado não foi alcançada. No entanto, essa dificuldade
não está apenas no Poder Judiciário.

123
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Quanto ao Poder Executivo, o primeiro conceito que vem à mente é


o de governabilidade. Ele traduz o sentido de que um Estado capaz de con-
cretizar os direitos fundamentais contém habilidades de gestão e de go-
verno (FERREIRA FILHO, 1995). Num cenário ideal, a legitimidade e
a legalidade deste país teriam alcances universais (atingindo igualmente as
pessoas e a extensão do território), e isso apenas se daria quando o Estado
fosse capaz de ter procedimentos bem estabelecidos e eficazes (O’DON-
NELL, 1993). Porém esse é o mito da homogeneidade, haja vista um al-
cance desuniforme da Administração Pública.
Pode-se iniciar pela Previdência Social no Brasil. A seguridade social,
que abarca a Previdência, é um direito básico. Mas a realidade nacional é
a de uma população em envelhecimento ou em transição. Baixas taxas de
fecundidade e uma contribuição escassa que não auxilia no financiamen-
to dos beneficiários da política. Além de, atrás apenas dos Estados Uni-
dos, a folha brasileira de pagamento previdenciário ser a maior do mundo
(MENDES, 2020).
Todavia, o maior problema não é o tamanho, e, sim, a focalização ou
distribuição. O benefício é direcionado, em especial, a dois grupos: (i) o
que trabalha e (ii) o que trabalha com carteira assinada. Não alcança os
pobres, os informais, os desempregados ou os incapacitados. E, quando
se trata de combate à pobreza, ela também não é eficaz, pois não atinge
a população pobre que se concentra nos jovens e crianças – público que
não é alvo da Previdência. O Bolsa Família é destinado à parcela mais
humilde, mas o Benefício de Prestação Continuada e o Regime Geral de
Previdência Social atingem apenas a parcela mais rica da sociedade brasi-
leira (MENDES, 2020).
Noutro aspecto, o Sistema Federalista também pode entrar em
discussão. Ele não é o problema da sociedade brasileira; pelo contrá-
rio, é capaz até de trazer muitos benefícios à gestão do Estado. Toda-
via, quando está associado às desigualdades sociais e regionais, pode
ser um empecilho ao alcance uniforme dos escopos da Administração
Pública. A rápida urbanização e os desequilíbrios geram, no Brasil, a
crise do agenciamento ou a crise da ingovernabilidade (FERREIRA
FILHO, 1995).

1 24
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Uma gestão descentralizada foi adotada pela Administração Pública


com a intenção de que as demandas locais fossem mais bem-atendidas e,
dessa maneira, os gestores estariam próximos da sociedade. Contudo, os
sistemas municipais de políticas públicas não são organizados de maneira
uniforme; longe disso, enquanto alguns têm articulação e interação com
outras regiões, outros não possuem nenhuma, e nas localidades marginais,
ainda, há deficiência na oferta dos canais de participação social (ABRU-
CIO, 2005).
Por causa de uma distribuição inadequada dos recursos, há uma so-
brecarga do Estado. Adiciona-se a isso a constante expansão dos serviços
públicos e uma improdutividade na gestão estatal. A consequência, por
óbvio, é uma crise gerencial acumulada com uma crise política das autori-
dades. Acaba que o federalismo se constitui de uma maneira competitiva e
não cooperativa, restando ao governo federal a incumbência de balancear
as desigualdades entre os municípios (FERREIRA FILHO, 1995).
A bibliografia identifica, então, três crises: (i) legal, já que a lei e seus
escopos de proteção aos direitos fundamentais não alcançam todo o ter-
ritório nem os seguimentos sociais de uma maneira uniforme; (ii) da bu-
rocracia e dos procedimentos administrativos, em decorrência do cum-
primento ineficaz das suas funções públicas; e, por fim, (iii) uma crise
quanto às agências estatais, que não conseguem exarar decisões capazes
de preservar o interesse coletivo ou o individual (O’DONNELL, 1993).
É uma realidade difícil de lidar. Os desafios são globais e inerentes a
diversos setores do Estado. Uma superação desse cenário, para o melhor
atendimento dos cidadãos, deve envolver uma mudança que também é
geral e que seja capaz de reformar diferentes segmentos do aparato estatal.
Entre esses meios está a formulação de políticas públicas. Tema em que se
concentra o próximo tópico.

3. FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A


ALAVANCAR A DEMOCRACIA

Cabe afirmar que as Políticas Públicas (PP) devem ser trabalhadas


em níveis diferentes. Isso significa agir não apenas em nível coletivo, mas,
também, focar o indivíduo, incentivando nele uma maior conscientização.

125
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Deve ser assim porque as falhas singulares não se encerram no universo


de uma única pessoa, podendo afetar a sociedade. E o contrário também
é verdadeiro: as responsabilidades individuais podem impactar positiva-
mente a sociedade. A responsabilidade de um é a garantia da qualidade
de vida do outro. Com isso, o ponto de partida é entender que o todo (a
sociedade) é formado pelas suas partes (os cidadãos) (SEN, 2010).
Em sintonia, na formulação de políticas públicas há a Corrente Intera-
cionista. Segundo ela, os problemas (que devem ser resolvidos por meio das
PP) são construções sociais, o que traduz elementos objetivos e subjetivos.
Desta feita, o labor do gestor público é o de compreender tais construções
localizadas e apontar alternativas de solução (CAPELLA, 2018).
Além disso, os programas e ações estatais devem ser elaborados para
aprimorar a entrega dos serviços públicos. Isso se dá pela heurística da dis-
ponibilidade, que significa que as pessoas reagem segundo as suas experiên-
cias recentes. Se a sociedade tem enfrentado falhas no cumprimento da
promessa da democracia, isso será diretamente proporcional à redução das
taxas de confiança no regime. E o oposto é verdadeiro, melhor dizendo,
se a experiência recente da população é a efetivação dos escopos do regime
de governo, essas taxas crescem (SUSTEIN, 2019).
O Estado será composto por instituições capazes e terá, por fim, apa-
rência de efetividade. A noção compartilhada de confiança gerará um
efeito positivo, pois o indivíduo tende a reagir influenciado por outras
pessoas. Isso ocorre porque o ser humano é movido pela busca da con-
formidade: quer se sentir pertencente e compatível com seus vizinhos.
Se, por meio das políticas públicas, um grupo pode ficar convencido da
melhora na democracia, os particulares tendem a internalizar as decisões
de tal grupo, fenômeno que é conhecido como comportamento de manada
(SUSTEIN, 2019).
Os Nudges Sociais, portanto, podem ser utilizados de maneira estra-
tégica pelas PP. Eles não necessitam ser demasiadamente complexos para
atingir um grau de efetividade. Pelo contrário, as influências sutis podem
facilitar que determinada informação chegue à mente dos destinatários de
certa PP (SUSTEIN, 2019).

126
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Um exemplo de sutileza é como as mensagens são transmitidas à


população. Quanto mais simples e clara for a informação, maior o po-
tencial de alcance. Richard e Sustein (2019) afirmam que imagens, ilus-
trações, músicas, frases curtas teriam a capacidade de alcançar efetiva-
mente o povo, criando uma consciência ecológica sobre a utilização dos
automóveis, por exemplo.
Após este introito, pode-se prosseguir para a observação de algumas
políticas públicas que se utilizaram da análise comportamental para al-
cançar resultados e foram bem-sucedidas. A seguir, seguem alguns casos
contemplados ao redor do mundo. Reforça-se que não se trata de uma
metodologia de estudo comparado, mas, sim, de uma análise geral no sen-
tido de avaliar PP efetivas.
A primeira PP a ser citada foi aplicada no Reino Unido. Com o ob-
jetivo de incentivar o público adulto de baixo nível de conhecimento em
inglês e matemática a permanecer nos programas educacionais. A propos-
ta surgiu porque foi notada uma alta taxa de evasão dos adultos do sistema
educacional. Noutro lado, constatou-se que o conhecimento é capaz de
aumentar a produtividade no trabalho, aumentar a renda salarial, reduzir
os problemas de exclusão social e os problemas de saúde acabam por ser
atenuados (quando eles surgem, eventualmente, podem ser melhor trata-
dos, haja vista que o acesso à saúde é mais bem viabilizado).
O Estado apostou numa proposta pautada em análise comportamen-
tal, com simplicidade na informação verbal e não verbal (como o maior
uso de ilustrações). Nos centros educacionais, palavras de incentivo foram
empregadas. Utilizaram mensagens reforçando a importância do apren-
dizado, transmitindo a esperança de que os alunos podem ser bem-suce-
didos. Por fim, construiu-se uma ideia de inserção ao ambiente, dizendo
que os estudantes poderiam e deveriam se sentir pertencentes à faculdade.
Tempos depois, foi notado que a frequência aumentou em 7% nas insti-
tuições e a taxa de evasão caiu 36% (OECD, 2017, p. 102).
Através dessa PP, focada na educação de pessoas adultas e com bai-
xo nível de conhecimento, houve impacto na sociedade como um todo,
atingindo positivamente o mercado de trabalho, a saúde e a distribuição
de renda.

127
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O segundo caso ocorreu na Austrália. Dessa vez, o foco foram os pro-


fissionais da saúde. Observou-se que, por causa de um comportamento
automático e habitual, as taxas de cegueira não intencional dos profissionais
eram altas. Isso quer dizer que não conseguiam identificar sintomas ou
sinais de que os pacientes estavam em estado crítico de saúde. Com isso,
as taxas de morte por infarto, AVC e outros problemas eram significativas
em decorrência dessa falha dos funcionários em reconhecerem e respon-
derem adequadamente aos pacientes em estágio de deterioração.
Diante desse cenário, os vieses comportamentais e as cargas cogniti-
vas precisariam ser modificados através de PP. Novamente, uma aborda-
gem informativa, ilustrativa e simples foi colocada em prática.
Para isso, disponibilizaram materiais educacionais aos fundiários,
com a intenção de que a lacuna no conhecimento e perícia fosse superada.
Implementaram indicadores de avaliação do desempenho juntamente a
gráficos e outras ferramentas visuais que poderiam servir de gatilho para o
rastreio e identificação dos sintomas. O elemento ilustrativo era reforçado
com uma legenda colorida para cada estágio de saúde.
Após a implementação da PP, foram observados resultados igualmen-
te positivos: 70% dos funcionários melhoraram a sua atuação devido aos
estímulos visuais; 80% dos profissionais responderam ativa e agilmente
aos pacientes em estado crítico; uma queda de 25% das paradas cardíacas
foi constatada. Com essa medida, focalizada nos funcionários, a saúde aus-
traliana foi positivamente impactada (OECD, 2017, p. 224).
Outro grupo que merece atenção são as mulheres. O cuidado com essa
parcela da população alcança efeitos generalizados. Amartya Sen (2010), em
suas pesquisas, identificou que PPs que afirmam educação, alfabetização e
melhores condições de vida à parcela feminina da população influenciam
não apenas esse segmento social, mas a coletividade como um todo. Ob-
servou-se que a atenção ao grupo em questão reduz as taxas de mortalidade
infantil, bem como as taxas de fertilidade – haja vista um melhor planeja-
mento familiar. Como consequência, há o aumento das liberdades substan-
ciais dos cidadãos em geral. O exercício da cidadania é mais fluido e natural.
Novamente, a escolha estratégica de um público-alvo específico para
implementação de políticas é uma medida muito assertiva. Ao reduzir os

128
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

custos e o âmbito de atuação direta do programa de governo uma grande


parcela da sociedade pode ser beneficiada.
Como identificado no capítulo anterior, o alcance territorial é mais
um problema. Para tanto, outra proposta é cuidar para que a sociedade
tenha acesso a esses serviços e ao Estado, levando a ele suas demandas e
suas propostas. Não à toa, a sociedade civil organizada é um Whatchdog
democrático. Ela atua em demandas específicas, como cultura, religião,
finanças, orçamento, entre outros, para efetivar o accountability vertical e
auxilia, ainda, na comunicação entre Estado-sociedade (MELLO; RU-
DOLF, 2022). Para que essas instituições possam ter um funcionamento
mais proveitoso, os canais de participação e de informação devem ser apri-
morados.
Um quarto exemplo de PP ao redor do mundo foi uma consolidada
na Espanha. Ela tinha o objetivo de melhorar a interação dos cidadãos
com a Administração Pública, fosse de maneira online ou presencial. Para
isso, foi gerado um Ponto de Acesso Geral, que permitia maior contato
com as informações e atuações do Poder Público, cujo intuito era que fer-
ramentas e procedimentos administrativos fossem simplificados, atingin-
do qualitativa e quantitativamente a população de uma maneira produtiva.
Novamente, apostou-se numa abordagem simplificada e ilustrativa ao
criar um centro para receber as informações e sugestões lançadas no Ponto
Geral de Acesso. Assim, os dados puderam ser mais bem-analisados pelos
gestores públicos. Foram coletadas mais de mil sugestões, classificadas de
maneira semiautomática (como a tipologia a seguir: administração digital;
alteração da legislação; simplificação ou redução de encargos administra-
tivos; informações dos cidadãos; encargos administrativos...).
Com relação aos impactos, o Poder Público se beneficiou, pois os mi-
nistérios puderam utilizar os dados coletados para melhorar seus serviços.
A sua comunicação com a sociedade, da mesma maneira, foi aprimorada
e a eficiência dos processos administrativos também teve uma melhora
significativa (OECD, 2017, p. 314).
Outro ponto que pode ser positivamente manejado pelo Estado é
a mídia. Identificou-se que os canais de comunicação têm a capacidade
de influenciar os cidadãos, haja vista que eles costumam reproduzir as

129
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

informações trazidas pela imprensa. Os meios de comunicação, quando


reproduzem os bons resultados da atuação do governo, têm o potencial
de incutir na população a sensação generalizada de confiança e de entre-
ga dos resultados.
Nesse sentido, há uma conexão entre a heurística da disponibilidade –
pois as pessoas estarão em um contexto de efetividade democrática – e o
comportamento de manada –, já que a mídia incutirá na população a ideia de
que o Estado está em bom funcionamento.
Não se sugere que as informações sobre o governo sejam divulgadas
como propaganda enganosa. Não significa que o povo não possa (e até
deva) ter acesso aos pontos críticos do governo (como manifestação da
transparência e accountability), mas que, quando a mídia focaliza mais os
problemas de uma gestão do que as conquistas e vitórias, a democracia
terá dificuldades de ser alavancada.
Assim, as PPs podem ser aplicadas efetivamente por meio de ferra-
mentas e instrumentos que tratam e simplificam as informações. Uma vez
instrumentalizadas de maneira a aprimorar a entrega do serviço público,
a preservar os direitos e a permitir acesso à Administração Pública, a pro-
messa da democracia poderá ser mais bem-observada pela população.

CONCLUSÃO

Vivemos em um momento em que a teoria e o desenvolvimento da


ciência incutiram no Estado uma grande responsabilidade social. Esse
novo paradigma é resultado natural da mudança e do desenvolvimento da
sociedade que carece de uma postura ativa do aparato público.
Ocorre que a realidade traz desafios práticos, dificultando que as ins-
tituições consigam atuar em um nível formal e substancial de maneira
satisfatória. Pelo contrário, segmentos sociais não são alcançados pelos
planos de governo, assim como as desigualdades regionais dificultam o
cumprimento das tarefas governamentais em todo o território.
Por esse motivo, as políticas públicas devem atingir esferas específicas.
Ou seja, atentar-se às peculiaridades de cada caso, região e grupo social. A
cultura Estatal de dependência dos recursos federais é um complicador. O
Poder Judiciário também vem afirmando um posicionamento em que os

130
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

interesses locais são fortalecidos, sobrecarregando o governo federal com


demandas que não este pode suportar.
Nessa perspectiva, as reformas de gerência, governança e de gestão das
políticas públicas devem reverter o pensamento centralizado e universa-
lista, apoiando-se numa visão regionalizada e segmentada dos problemas.
A falha na entrega de serviços de qualidade pelo Poder Público reduz
a crença da sociedade na democracia, afetando negativamente o próprio
regime de governo. Uma ferramenta para superar essas complicações é
aplicar a economia comportamental às políticas públicas. O segredo não
está na rigidez, mas, sim, na aposta do desenvolvimento e na garantia dos
direitos fundamentais. Medidas simples que se asseguram de um modelo
informativo, de uma linguagem acessível e de gatilhos comportamentais
poderão ser muito úteis.
Foram avaliadas políticas ao redor do mundo que aplicaram os meca-
nismos comportamentais em segmentos específicos da sociedade. Como
os adultos com baixo conhecimento no Reino Unido; os profissionais de
saúde com cegueira não intencional da Austrália; a relação Estado-popu-
lação na Espanha.
Apesar de as ações governamentais estarem mirando em grupos es-
pecíficos, a escolha do público-alvo foi estratégica, pois a melhora nesses
segmentos impactou positivamente outras áreas da sociedade (in)direta-
mente relacionadas a eles. A título de exemplo, o mercado de trabalho, o
desenvolvimento social, a qualidade do meio ambiente urbano, a convi-
vência em vizinhança, bem como a prevenção de mortes.
Após os bons resultados, cabe à mídia a divulgação de tais informa-
ções, demonstrando à população o cumprimento dos escopos democrá-
ticos que não se resumem à possibilidade de votar e ser votado, mas re-
presentam o exercício da cidadania e o reforço dos direitos e garantias
fundamentais.

REFERÊNCIAS

ABRUCIO, F. L. A Coordenação Federativa no Brasil: a experiência do


período FHC e os desafios do governo Lula. Revista de Sociologia
e Política, Curitiba, n. 24, p. 41-67, jun. 2005.

131
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

APPLEBAUM, Anne. O crepúsculo da democracia. 1. ed. São Paulo:


Record, 2021.

BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo, di-


reitos fundamentais, democracia e constitucionalização. São
Paulo: Renovar, 2008.

BRASIL. Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado.


Organizações Sociais. 5. ed. Brasília, DF: MARE, 1998. Ca-
dernos MARE da Reforma do Estado, caderno 2. Disponível em:
https://docplayer.com.br/32296-Cadernos-mare-da-reforma-do-
-estado-organizacoes-sociais-mare-ministerio-da-administracao-
-federal-e-reforma-do-estado.html. Acesso em: 8 ago. 2022.

CAPELLA, Ana C. Formulação de Políticas Públicas. Brasília, DF:


ENAP, 2018.

CHICOSKI, Davi. A legalidade administrativa e a crise do positivismo


jurídico. Revista Digital de Direito Administrativo, [s. l.], v. 3,
n. 1, p. 254-283, 2016. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2319-
0558.v3i1p254-283. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/
rdda/article/view/98432. Acesso em: 10 ago. 2022.

DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. 1. ed. São Paulo:


Martins Fontes, 2012.

DELGADO, José Augusto. A evolução conceitual dos direitos funda-


mentais e a democracia. Informativo Jurídico da Biblioteca Mi-
nistro Oscar Saraiva, [Brasília, DF], v. 12, n. 2, p. 161-196, jul./
dez. 2000.

DEZAN, Sandro L. Fenomenologia e hermenêutica do Direito


Administrativo: para uma teoria da decisão administrativa. Porto:
Editorial Jaruá, 20018

DEZAN, Sandro L. O que é o Neojusnaturalismo? Um olhar pela ópti-


ca da Administração Pública contemporânea. Revista de Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 1, p. 81-109,

132
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

jan./abr. 2020. DOI: https://doi.org/10.25192/issn.1982-0496.rdfd.


v25i11615. Disponível em: https://revistaeletronicardfd.unibrasil.
com.br/index.php/rdfd/article/view/1615. Acesso em: 20 dez. 2021.

DEZAN, Sandro Lúcio; HERKENHOFF, Henrique Geaquinto; GUI-


MARÃES, Jader Ferreira. A administração pública concretista
de direitos fundamentais. Belo Horizonte: Arraes, 2019.

ECHR. Guide on article 6 of the European Convention on Human


Rights: right to a fair trial (criminal limb). Estrasburgo: ECHR,
2022. Disponível em https://www.echr.coe.int/Pages/home.as-
px?p=caselaw/analysis/guides&c=. Acesso em: 2 jun. 2022.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Constituição e Governabi-


lidade: ensaio sobre a (in)governabilidade brasileira. São Paulo: Sa-
raiva, 1995.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de


uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

GARCIA, R. C. A reorganização do processo de planejamento do


governo federal: o PPA 2000-2003. Brasília, DF: IPEA, 2000.

KELSEN, Hans. Teoria geral do Direito e do Estado. 2. ed. São Pau-


lo: Martins Fontes, 1992.

KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. 5. ed. Coimbra: Arménio


Amado, 1979.

KOBYLINSKY, Konrad. The Polish Constitutional Court from an atti-


tudinal perspective before and after the constitutional crisis of 2015-
2016. Wroclaw Review of Law, Administration and Econom-
ics, [Wroclaw], v. 6, n. 2, p. 94-107, 2018.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias mor-


rem. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

MELLO, Patrícia P. C.; RUDOLF, Renata H. S. B. A. Whatchdogs da


democracia: proteção democrática em rede. In: MELLO, Patrícia P.

133
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

C.; BUSTAMANTE, Thomas R. (org.). Democracia e resiliên-


cia no Brasil: a disputa em torno da Constituição de 1988. 1. ed.
Espanha: Bosch, 2022. p. 101-132.

MENDES, Marcos. Crise Fiscal dos Estados: 40 anos de socorros finan-


ceiros e suas causas. São Paulo: INSPER, 2020. Disponível em: ht-
tps://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2020/08/Crise-fiscal-
-dos-estados_40-anos-de-socorros-financeiros-e-suas-causas.pdf.
Acesso em: 18 set. 2021.

O’DONNELL, Guillermo. On the State, Democratization, and Some


Conceptual Problems: A Latin American View with Some Post-
communist Countries. World Development, [s. l.], v. 21, n. 8, p.
1355-1363, 1993.

OECD. Behavioural Insights and Public Policy: lessons from around


the world. Paris: OECD Publishing, 2017. Disponível em: https://
www.oecd.org/gov/regulatory-policy/behavioural-insights-and-pu-
blic-policy-9789264270480-en.htm. Acesso em: 20 nov. 2021.

OLIVEIRA, Fabiana L. Processo decisório no Supremo Tribunal Fede-


ral: coalizões e “panelinhas”. Revista de Sociologia e Política,
Curitiba, v. 20, n. 44, p. 139-153, nov. 2012. Disponível em: https://
revistas.ufpr.br/rsp/article/view/34426. Acesso em: 31 ago. 2021.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Edição eletrônica,


1762. Disponível em: www.jahr.org. Acesso em: 7 abr. 2022

SALGADO, Joaquim C. Semiótica estrutural e transcendentalidade do


discurso sobre justiça. Revista da Faculdade de Direito, Belo Ho-
rizonte, v. 1, n. 37, p. 79-102, 2000.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Com-


panhia das Letras, 2010.

SUSTEIN, Cass R. THALER, Richard H. Nudge: como tomar me-


lhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. Rio de Janeiro:
Schwarcz, 2019.

134
LICITAÇÕES SUSTENTÁVEIS: O
DESAFIO NO MODELO BRASILEIRO
Yuri Alexander Nogueira Gomes Nascimento14

INTRODUÇÃO

O presente trabalho teve por objetivo responder ao seguinte ques-


tionamento: O Brasil adota um modelo de licitações sustentáveis? A per-
gunta, apesar de singela, tem relevância ímpar, pois sua resposta necessi-
ta correlacionar uma grande diversidade de conhecimentos em busca de
uma solução. O primeiro questionamento proposto foi refletir acerca da
relevância do mercado de compras públicas, essencialmente, se as compras
públicas possuem suficiente relevância no mercado para que seja necessá-
ria a adoção de práticas sustentáveis.
Em suma, no primeiro capítulo demonstra-se que o tamanho das
contratações estatais é capaz de influenciar o comportamento do mercado
e, justamente por isso, a responsabilidade social nas contratações públi-
cas é uma necessidade. Para essa análise, foram utilizados dados quanti-
tativos de bibliografias especializadas sobre o tema; ressalta-se que, apesar
de certa imprecisão natural nesse tipo de medição quantitativa, os dados

14 Procurador do Estado de Goiás. Chefe da Procuradoria da Administração Penitenciária.


Ex-Procurador da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Ex-Procurador do Município de Ouro
Preto. Ex-Analista da Justiça Federal. Especialista em Filosofia do Direito e Teoria Jurídica
pela PUC/MG. Especialista em Direito Constitucional pela UCAM.

135
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

denotam nitidamente que o Estado é o mais relevante comprador de seu


mercado nacional.
O segundo questionamento formulado é sobre o que se pode definir
como “licitação sustentável”. Nesse ponto, analisado no segundo capítu-
lo, propôs-se questionar se o conceito de licitação sustentável se limita ao
cuidado com o impacto ambiental das medidas ou abrange outras esferas.
A conclusão apresentada é de que a sustentabilidade deve observar um pi-
lar tríplice de proteção ambiental, desenvolvimento econômico e redução
das desigualdades sociais.
Nesse ponto, utilizou-se como metodologia o estudo de bibliogra-
fias e diplomas internacionais sobre o tema, uma vez que, em análise das
obras nacionais, percebeu-se que, por muitas vezes, o conceito de lici-
tação sustentável era limitado a um conceito de proteção ambiental. Por
fim, voltou-se às análises de dados quantitativos de pesquisas bibliográficas
pretéritas para compreender se há uma preocupação com a realização de
licitações sustentáveis no Brasil.
Analisou-se, ainda, ferramentas públicas de licitações sustentáveis
como a Agenda Ambiental da Administração Pública (A3P) e a Carta da
Amazônia de 2010, concluindo-se pela insuficiência das iniciativas para
as contratações sustentáveis. Além disso, buscou-se demonstrar que, ape-
sar de possuírem custos mais altos, as licitações sustentáveis não devem
ser consideradas antieconômicas, pois há uma diferença conceitual entre
“preço” e “valor”.
A relevância da pesquisa encontra justificativa na doutrina brasileira
de licitações, que se debruça sobre aspectos formais e de legalidade estrita,
passando ao largo de temas relevantes de cunho econômico-social (NÓ-
BREGA, 2012).

1. DA RELEVÂNCIA DO PODER PÚBLICO NAS


CONTRATAÇÕES

O Poder Público é o maior comprador individual do mercado nacio-


nal. Isso porque em sua tarefa de atender as necessidades básicas e os re-
clamos constitucionais, ele estimula a economia por meio de aquisição de
bens no mercado. Em decorrência de sua grande capacidade econômica,

136
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

além da titularidade da política monetária e da atuação direta como agente


de aquisição de bens e serviços, o Poder Público tem relevante influência
na composição do PIB nacional.
Nesse sentido, o estudo “O Mercado de Compras Governamentais
Brasileiro (2006-2017): Mensuração e Análise” do Instituto de Pesquisas
Econômicas denota que no período de 2006 a2017 as compras governa-
mentais corresponderam, em média, a 12,5% do PIB brasileiro, sendo
que, em seu ponto mais baixo, elas corresponderam a 10,5%. Apesar de
serem números altos por si só, é de se notar que os gastos brasileiros se
encontram abaixo da média da OCDE, que, no mesmo período, mante-
ve-se em 13,2% do PIB.
Nessa esteira, o tamanho dos gastos públicos com licitação surpreen-
de. No ano de 2017, cerca de 13,5% das receitas brasileiras foram destina-
das à aquisição de bens e serviços por meio de licitações (OCDE, 2020).
Em outro estudo similar, o IPEA identificou que entre 2002 e 2019 as
compras governamentais corresponderam, em média, a 12% do PIB bra-
sileiro e destacou que, apesar da constante participação do Brasil em seus
fóruns, a experiência nacional com contratações públicas normalmente é
lembrada pelo aspecto negativo (IPEA, 2020).
Deve-se notar que a participação do Estado no cenário econômico
desborda, em muito, a mera regulação. A partir do momento em que atua
como agente econômico na aquisição de bens e serviços, sua disponibili-
dade financeira influencia o comportamento dos demais agentes de mer-
cado (FINGER, 2014). Se há indicações de que a participação do Estado
brasileiro no mercado consumidor vem sendo paulatinamente reduzida
(IPEA, 2020), a tendência com a proposta de arcabouço fiscal recente-
mente trazida pelo Governo Federal é o retorno do crescimento dos gastos
públicos.
Desse modo, discutir uma economia mais saudável e sustentável per-
passa uma discussão não apenas das regulamentações legais que regem os
mercados, mas também do modelo de consumo estatal. Assim, contrata-
ções sustentáveis possuem uma função regulatória conformadora do mer-
cado, podendo ser empregadas como instrumentos de implementação de
políticas públicas (GARCIA; RIBEIRO, 2014).

137
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Indo além, pode-se dizer que, ante a relevância inegável do Estado


nas contratações de mercado, seu padrão de consumo influenciaria di-
retamente o modelo produtivo nacional, seja através da adoção de con-
tratações sustentáveis, gerando um círculo virtuoso de desenvolvimento
sustentável, seja por meio de uma seleção neutra de melhor preço, criando
um círculo vicioso de contratações insustentáveis.

2. DO CONCEITO HOLÍSTICO DE LICITAÇÃO


SUSTENTÁVEL

Demonstrada a relevância das compras públicas no mercado nacional,


faz-se necessário realizar a desambiguação do conceito de “sustentabili-
dade”.
Comumente tem-se relacionado o conceito de sustentabilidade àque-
le conceito unitário de defesa ambiental, abstraindo-a de sua dimensão
econômica e social (LOZANO, 2022). A relevância da temática ambien-
tal é inegável, todavia, a análise do que seja sustentabilidade não pode li-
mitar-se a apenas um eixo temático de matiz ambiental.
Retomando o conceito inicialmente inaugurado pelo Relatório de
Brundland, o desenvolvimento sustentável possui um tripé composto por
crescimento econômico, preservação social e redução das desigualdades
sociais. Da leitura do referido documento pode-se notar que reduzir a sus-
tentabilidade a um de seus eixos é, em última análise, gerar desequilíbrios
indevidos no modelo de sustentabilidade idealizado.
No presente ponto, Jessé Torres Pereira Junior (2015, p. 110) esclare-
ce que sustentabilidade é:

[...] necessariamente sistêmica, inter e multidisciplinar, exami-


nando aspectos que pareceriam alheios uns dos outros, mas que
se defrontam, reciprocamente influentes, nas confluências, su-
perposições, interseções e tangências da sustentabilidade, a exigir
gestão eficiente e eficaz em todas as etapas de seu ciclo virtuoso
— planejamento, execução, controle e avaliação, desde a gestão da
infraestrutura até a de serviços prestadores dos direitos sociais fun-

138
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

damentais (CR/88, art. 6o) e suas políticas públicas de efetivação


em prol de todos os cidadãos, sem exclusão.

Ao se tratar o aspecto ambiental como independente do aspecto so-


cial, em especial dos direitos humanos, produz-se um procedimento lici-
tatório ineficiente no atingimento de seus objetivos (LOZANO, 2022).
Proteger os direitos humanos envolve considerar modelos de licitação pe-
los quais é possível prevenir abusos das contratadas para realizar as pres-
tações à Administração Pública (LOZANO, 2022). Esse descolamento
do conceito de sustentabilidade pode ser percebido, por exemplo, pelo
próprio conceito da A3P (Agenda Ambiental da Administração Pública),
cujo foco primordial é a diminuição dos custos ambientais das contrata-
ções públicas, mas sem englobar os aspectos sociais em sua análise.
No mesmo sentido, a Portaria nº 326, de 23 de julho de 2023, que
instituiu o Programa Agenda Ambiental na Administração, limitou-se a
prever eixos temáticos de cunho ambiental. E mesmo em âmbito doutri-
nário eventualmente há redução conceitual de sustentabilidade à esfera
ambiental, abdicando-a da relevante função de reduzir as desigualdades
sociais e promover os direitos humanos.
Nesse contexto, o aspecto social do que seja sustentabilidade deixa
de ser adequadamente desenvolvido e aplicado, tornando mais complexo
o desenho de licitações socialmente adequadas (TREVIÑO-LOZANO;
MARTIN-ORTEGA, 2023). Portanto, deve-se incluir o respeito aos di-
reitos humanos como um dos principais eixos das licitações sustentáveis,
eis que elas geram impactos reais naqueles que produzem os bens e os
serviços contratados pelo Estado (TREVIÑO-LOZANO; MARTIN-
-ORTEGA, 2023).
Inclusive, no Guia de Princípios em Negócios e Direitos Humanos da Or-
ganização das Nações Unidas, os princípios 5 e 6 preveem, expressamen-
te, que:

5. Os Estados deverão exercer vigilância adequada de modo a ga-


rantir o cumprimento das obrigações de direitos humanos quando
contratarem com, ou legislarem para, empresas que forneçam ser-
viços que influenciem no gozo dos direitos humanos.

139
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

6. Os Estados devem promover o respeito aos direitos humanos


pelas empresas com as quais eles conduzam transações comerciais
(ONU, 2011, p. 8, tradução nossa)

A partir desses postulados, as licitações podem assumir uma dupla


função de garantia dos direitos humanos, abarcando tanto seu aspecto ne-
gativo (ou seja, a garantia da não violação) quanto o positivo (ou seja, a
garantia de promoção).
A necessidade de fiscalização das condições de trabalho no momen-
to da execução contratual abarca a esfera de proteção negativa, enquanto
ferramentas como a contratação de mulheres vítimas de violência domés-
tica e de egressos do sistema prisional, prevista no art. 25, § 9º, da Lei
14.133/2020, ou a utilização de desenhos universais dos bens e serviços
contratados, prevista no art. 3º da Lei 13.146/2015, são exemplos da pro-
moção positiva dos direitos humanos na seara licitatória.
O certo é que existem meios de lege lata para a realização dos objetivos
de garantia dos direitos fundamentais, todavia, como será demonstrado,
eles não vêm sendo adequadamente empregados.

3. DA BAIXA ADESÃO ÀS LICITAÇÕES SUSTENTÁVEIS

Como demonstrado, com a relevância das compras públicas, a atua-


ção estatal tem capacidade de influenciar o comportamento dos agentes
de mercado, impondo processos produtivos mais sustentáveis (FINGER,
2014). Isso porque a produção de bens de consumo e a prestação de ser-
viços gera externalidades negativas para a sociedade que, geralmente, não
são incorporadas nos custos de produção (AZEVEDO, 2022). Pode-se
dizer que as contratações que não levam em consideração as externalida-
des negativas privatizam os lucros e socializam as perdas.
Tradicionalmente, as licitações são tratadas sob uma perspectiva de
matiz neoliberal, cujo valor mais relevante seria a busca do menor pre-
ço, sem uma análise mínima dos custos sociais subjacentes (TREVIÑO-
-LOZANO; MARTIN-ORTEGA, 2023). No cenário brasileiro, essa
concepção pela baixa adesão dos tribunais de contas à fiscalização dos
procedimentos licitatórios sob a ótica da sustentabilidade (AZEVEDO,

140
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

2014) é reforçada pela jurisprudência dos órgãos de controle que atribuem


ao pregão um caráter de modalidade preferencial para aquisição de bens e
serviços (BRASIL, 2007).
Todavia, essa premissa de busca por preços cada vez mais baixos di-
ficulta o alcance de uma licitação sustentável que, inerentemente, pos-
sui exigências maiores aos fornecedores, aumentando tanto o custo dos
produtos (DE SOUZA, 2022) como os de transação. No Brasil, a Lei
nº 12.349, de 15 de dezembro de 2010, é o marco da obrigatoriedade da
promoção de licitações sustentáveis (VALENTE, 2011), positivando um
conceito que já se mostrava em franco crescimento. Por exemplo, ante-
riormente à publicação da referida lei, na Carta da Amazônia de 2010, os
representantes dos Tribunais de Contas aprovaram a seguinte preposição:

Os Tribunais de Contas do Brasil devem orientar sua atuação no


sentido de agregar valor à gestão ambiental, produzindo conheci-
mento e perspectivas, impulsionando os governos a agir de forma
preventiva e precautória, garantindo efetividade às normas inter-
nacionais, constitucionais e legais de proteção do meio ambiente.
(BRASIL, 2010, p. 2).

Todavia, se a positivação do dever de sustentabilidade nas licitações


realmente denotou uma evolução de um modelo legal que inicialmente
era voltado apenas à seleção da melhor proposta de cunho financeiro, sua
promulgação não levou a uma melhora prática. De Souza (2022) che-
ga à conclusão de que apenas 1% dos municípios brasileiros possui uma
gestão de compras públicas sustentáveis. Cardoso (2016) indica que, no
ano de 2016, na Administração Pública Federal, apenas 0,711% do total
das contratações podia ser considerado sustentável, sendo que, de 2011 a
2015, o total de contratações sustentáveis caiu. O que pode denotar que a
novidade da Lei nº 12.349/2010 foi paulatinamente caindo no ostracismo.
Sobre o tema de compras públicas no Brasil, o IPEA apresentou um
estudo organizado, sob o nome de “Cadernos do Brasil na OCDE”, que
analisa as expectativas da OCDE para o futuro das compras públicas. Do
texto, colhe-se que:

141
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O debate interno brasileiro parece muito mais focado nos proble-


mas do elevado custo, da morosidade e da burocracia dos proces-
sos licitatórios, amiúde salientando o peso excessivo dos órgãos de
controle e o foco supostamente exagerado em menor preço (em
detrimento de qualidades específicas do bem ou serviços adquiri-
dos). (THORSTENSEN; GLESTEIRA, 2021, p. 40).

Ademais, consultando a lista de órgãos participantes da Agenda Am-


biental na Administração Pública (A3P), programa do Ministério do
Meio Ambiente que objetiva estimular os órgãos públicos do país a imple-
mentarem práticas de sustentabilidade, percebe-se um total de apenas 249
participantes (representando apenas dois estados e 75 municípios).
Em análise dos dados, nota-se que a sustentabilidade ainda não é parte
da construção de modelos licitatórios no cenário nacional, que ainda se
pauta exclusivamente na busca pelo menor preço nas contratações públi-
cas. E, quando o conceito de sustentabilidade é minimamente levantado
no curso do processo, é utilizado de modo insuficiente, desconsiderando-
-se a ótica social e econômica.
Seria possível argumentar que a baixa adesão à inclusão de práticas
sustentáveis de licitação se dá em virtude do aumento de custos, especial-
mente se analisarmos as combalidas contas públicas, o argumento parece
ganhar força. O problema desse argumento é que ele confunde o conceito
de “preço” com o de “valor”, quando, na verdade, o primeiro está ligado
ao custo monetário dispendido para a aquisição de um produto ou serviço,
enquanto o segundo está relacionado ao benefício esperado do gozo do
produto (ZICKER, 2002).
Ao limitarmos a análise das licitações ao preço do produtor, igno-
ramos os benefícios subjacentes da contratação. Nesse sentido, Monroe
(1990) define o valor percebido (percepção de custo/benefício do com-
prador) pela seguinte equação: valor percebido = benefícios percebidos/
preço percebido.
Dessa forma, se é verdade que quanto menor o preço maior o valor,
também é fato que os benefícios percebidos devem ser levados em con-
sideração. Ou seja, o contrato de maior valor não necessariamente será
aquele com menor preço, mas aquele com maior benefício em relação

142
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ao preço pago. Em outras palavras, o preço tem uma dimensão limitada


ao aspecto financeiro, desconsiderando o benefício que se espera da con-
tratação. Portanto, a busca por um preço baixo acima de qualquer outro
influxo é nitidamente incompatível com o objetivo do interesse público
primário.
Em suma, as licitações sustentáveis são, naturalmente, mais caras,
mas, por trazerem mais benefícios, têm potencial de ampliar os valores
percebidos nos contratos administrativos, valores estes que podem ter um
caráter endógeno (e.g. redução do consumo de energia em projetos verdes)
ou exógeno (e.g. aumento do acesso ao mercado de trabalho de pessoas
egressas do sistema prisional). Nos termos de Jessé Torres Pereira Júnior
(2015, p. 113): “A pergunta inteligente não é a que indaga qual o custo da
sustentabilidade, mas, sim, qual o custo de ser a sustentabilidade ignorada
pelo planejamento das ações governamentais, nesta geração e nas vindou-
ras”.
A resposta a essa pergunta é clara, ainda que sua implementação possa
não o ser. Isso porque, apesar de ser relativamente simples compreender
que as licitações devem pautar-se em modelos sustentáveis, a adoção prá-
tica de tais modelos esbarra em dificuldades estruturais. Nos “Cadernos
do Brasil na OCDE”, a décima conclusão foi traçada no seguinte sentido:
“O acelerado avanço da reforma completa da Lei no 8.666/1993, por sua
vez, permitirá, em tese, renovar o foco em resultados e estimular maior
inovação e empreendedorismo por parte dos decisores e gestores brasilei-
ros” (THORSTENSEN; GLESTEIRA, 2020, p. 41).
Nesse ponto, nota-se que há esperança de que a modificação legis-
lativa trazida pela Lei nº 14.133/2020 (Lei de Licitações) seja capaz de
permitir a adoção adequada de mecanismos mais proveitosos de licitação.
Todavia, a referida modificação nem mesmo chegou a ser implementada,
pois foi apresentada a MP 1.167, de 31 de março de 2023, que determinou
a prorrogação da vigência da Lei nº 8.666/1993, com seus velhos parâme-
tros rígidos e, por vezes, incapazes de responder aos anseios sociais.
Essa prorrogação se deu por uma pressão político-institucional dos
usuários da Lei de Licitações, em especial daqueles em âmbito municipal,
tendo sido um dos requerimentos formulados na 24ª Marcha a Brasília em

143
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Defesa dos Municípios (BRASIL, 2023). Essa situação denota a falta de


percepção da relevância das licitações, que são tratadas com uma forma-
lidade para aquisição de produtos e serviços e não como instrumento de
política pública. Em última análise, essa prorrogação demonstra a ausência
de uma cultura brasileira de licitações eficientes e sustentáveis.
As ferramentas novas da Lei nº 14.133/2020 propõem um caminho
multidisciplinar, adotando institutos que já apareciam em diversos campos
sobre o aperfeiçoamento das licitações. Todavia, suas novidades foram e
serão adiadas até o limite pelos usuários que dão preferência à utilização
do modelo burocrático e ineficiente atual. Assim, o que se nota é que não
há uma disposição dos destinatários para a modificação das tradicionais
práticas de contratações públicas.
Em suma, a implementação do novo modelo foi adiada legislativa-
mente. Todavia, ao que parece, o maior desafio para vigorá-lo não será a
compreensão e a adaptação aos institutos trazidos pela nova lei, mas sim a
incorporação das novidades culturais no já desgastado modelo formalista
e burocrático brasileiro de licitações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As contratações públicas são relevantes o suficiente para modificar a


própria configuração do mercado. Seu tamanho em relação ao PIB e sua
relevância no orçamento público nacional tornam o Estado corresponsá-
vel pelo desenvolvimento de políticas sustentáveis na livre-iniciativa. No
entanto, pensar em um modelo de contratação pública sustentável é mi-
nimizar os impactos socioambientais de cerca de 12% do PIB brasileiro,
além de todos os possíveis efeitos benéficos que podem se expandir para as
contratações privadas.
Apesar disso, a implementação desse modelo está longe de ser uma
realidade no procedimento licitatório brasileiro, que tende a focar em
conceitos de natureza jurídico-formal (NÓBREGA, 2020). Isso porque
o próprio conceito real de sustentabilidade ainda não foi plenamente in-
corporado à linguagem nacional, com relevantes iniciativas públicas, tais
como o A3P, limitando-o à sua dimensão ambiental.

144
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Ademais, se a possibilidade de avanço das contratações públicas re-


pousava nos novos instrumentos trazidos pela Lei nº 14.133/2020, a pror-
rogação da vigência da Lei nº 8.666/1993 até dezembro de 2024, que
ocorreu após manifestações de diversas classes de servidores públicos, ten-
de a demonstrar que o problema é mais cultural do que propriamente
legislativo.
O cerne deste estudo foi a análise dos conceitos e da inserção das
licitações sustentáveis em âmbito nacional. A temática, apesar de já estar
há alguns anos em alta no cenário brasileiro, nunca foi plenamente incor-
porada na cultura de compras públicas. O objetivo primordial é que as
conclusões ora apresentadas sirvam como alerta à necessidade de se enca-
rar a licitação não apenas como meio de busca por uma melhor proposta
financeira, mas sim por uma com maior valor para a sociedade.
Para futuros estudos, questões como cláusulas padrão de sustentabi-
lidade e modelos simplificados de licitações sustentáveis podem indicar
um caminho interessante e permitir a operacionalização de um procedi-
mento eficiente e sustentável. A inclusão dessas cláusulas pode auxiliar o
desenvolvimento de parâmetros de comparação de sustentabilidade nas
licitações, pois, a indefinição de tais critérios impede a formulação de ele-
mentos objetivos de aferição de qualidade (PIMENTA, 2022).

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Pedro Henrique Magalhães. Os Tribunais de Contas brasi-


leiros e as licitações sustentáveis. Revista TCEMG, Belo Horizon-
te, v. 32, n. 4, p. 54-74, 2014.

BRASIL. Carta da Amazônia. Manaus: Tribunais de Contas do Estado


do Amazonas, 2010. Disponível em: https://www2.tce.am.gov.br/
portal/wp-content/uploads/carta_da_amazonia.pdf. Acesso em: 19
abr. 2023.

CARDOSO, Luan Lopes et al. Licitações Sustentáveis: uma análise das


características das contratações sustentáveis na administração públi-
ca federal brasileira. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CUS-

145
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

TOS, 23., 2016, Porto de Galinhas, PE. Anais eletrônicos […].


São Leopoldo, RS: Associação Brasileira de Custos, 2016. Disponí-
vel em: https://anaiscbc.emnuvens.com.br/anais/article/view/4090.
Acesso em: 19 abr. 2023.

COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESEN-


VOLVIMENTO. Nosso futuro comum. 2. ed. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 1991. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/plu-
ginfile.php/4245128/mod_resource/content/3/Nosso%20Futu-
ro%20Comum.pdf. Acesso em: 20 abr. 2023.

CYRINO, André Rodrigues; TOLEDO, Renato. Desenhos de mer-


cado, licitações e três apostas da Lei nº 14.133/2021. Revista Ele-
trônica da PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, 2022. DOI: https://
doi.org/10.46818/pge.v5i3.322. Disponível em: https://revistaele-
tronica.pge.rj.gov.br/index.php/pge/article/view/322. Acesso em: 16
abr. 2023.

DE SOUZA, Leonardo da Rocha et al. Licitações sustentáveis: limites,


possibilidades e avanços. Revista Catalana de Dret Ambiental, [s.
l.], v. 13, n. 1, p. 1-34, 2022.

FINGER, Ana Cláudia. Licitações sustentáveis como instrumento de po-


lítica pública na concretização do direito fundamental ao meio am-
biente sadio e ecologicamente equilibrado. Revista Eurolatinoa-
mericana de Derecho Administrativo, [s. l.], v. 1, n. 1, p. 63-92,
2014.

FURTADO, Madeline Rocha; FURTADO, Monique Rafaella Ro-


cha. Licitações sustentáveis: como fazer. Fórum de Contratação
e Gestão Pública, Belo Horizonte, ano 11, n. 128, p. 69-72, 2012.

GARCIA, Flávio Amaral; RIBEIRO, Leonardo Coelho. Licitações pú-


blicas sustentáveis. Revista de Direito Administrativo, Rio de
Janeiro, v. 260, p. 231-254, maio/ago. 2012.

MEDIDA provisória prorroga prazo de adequação à nova Lei de Licita-


ções. Agência Senado, Brasília, DF, 03 abr. 2023. Disponível em:

146
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/04/03/medi-
da-provisoria-prorroga-prazo-de-adequacao-a-nova-lei-de-licita-
coes. Acesso em: 19 abr. 2023.

MONROE, Kent B. Pricing: Making Profitable Decisions. 5th ed.


New York: McGraw-Hill, 1990.

NÓBREGA, Marcos; JURUBEBA, Diego Franco de Araújo. Assime-


trias de informação na nova Lei de Licitação e o problema da seleção
adversa. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte,
ano 18, n. 69, p. 9-32, abr./jun. 2020.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Guiding Principles on


Business and Human Rights. Nova York; Geneva: ONU, 2011.
Disponível em: https://www.ohchr.org/sites/default/files/documen-
ts/publications/guidingprinciplesbusinesshr_en.pdf. Acesso em: 29
abr. 2023.

ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVI-


MENTO ECONÔMICO. Government at a Glance: Latin
America and the Caribbean 2020. Paris: OECD Publishing, 2020.
DOI: https://doi.org/10.1787/13130fbb-en. Disponível em: https://
www.oecd-ilibrary.org/governance/government-at-a-glance-la-
tin-america-and-the-caribbean-2020_13130fbb-en. Acesso em: 19
abr. 2023.

PIMENTA, Fábio Bruno. Indicadores de desempenho em compras


públicas: revisão da literatura e aplicação no Instituto Nacional da
Propriedade Industrial. 2022. Dissertação (Mestrado Profissional em
Administração Pública em Rede) – Instituto de Ciências Humanas
e Sociais, Universidade Federal Fluminense, Volta Redonda, RJ,
2022. Disponível em: https://app.uff.br/riuff/handle/1/25201. Aces-
so em: 20 abr. 2023.

PEREIRA JUNIOR, José Torres. Sustentabilidade e planejamento: va-


lores constitucionais reitores das contratações administrativas, no es-
tado democrático de direito. Revista de Direito Administrativo,

147
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Rio de Janeiro, v. 270, p. 81-115, set./dez. 2015. DOI: 10.12660/


rda.v270.2015.58738. Disponível em: https://bibliotecadigital.fgv.
br/ojs/index.php/rda/article/view/58738. Acesso em: 19 abr. 2023.

THORSTENSEN, Vera; GLESTEIRA, Luís Felipe (coord.). Cader-


nos Brasil na OCDE: compras públicas. Brasília, DF: IPEA, 2021.
Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/10687.
Acesso em: 19 abr. 2023.

TREVIÑO-LOZANO, Laura; MARTIN-ORTEGA, Olga. Sustain-


able public procurement of infrastructure and human rights: linkages
and gaps. In: TREVIÑO-LOZANO, Laura; MARTIN-ORTEGA,
Olga (ed.). Sustainable public procurement of infrastructure
and human rights: beyond building green. London: Edward Elgar
Publishing, 2023. p. 2-27.

VAIRÃO JUNIOR, Newton Sergio; ALVES, Francisco José dos Santos.


A Emenda Constitucional 95 e seus efeitos. Revista de Contabi-
lidade do Mestrado em Ciências Contábeis da UERJ, Rio de
Janeiro, v. 22, n. 2, p. 54-75, 2018.

VALENTE, Manoel Adam Lacayo. Marco legal das licitações e com-


pras sustentáveis na Administração Pública. Brasília, DF: Bi-
blioteca Digital da Câmara dos Deputados, 2011. Disponível em:
https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/5704/mar-
co_legal_valente.pdf?sequence=2. Acesso em: 16 abr. 2023.

ZICKER, Alberto et al. Modelo para formação de preços a partir do


valor percebido pelo mercado. 2002. Dissertação (Mestrado em
Engenharia de Produção) – Universidade Federal de Santa Catari-
na, Florianópolis, 2002. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/
xmlui/handle/123456789/83810. Acesso em: 13 abr. 2023.

148
A ASSIMETRIA DE INFORMAÇÕES
E MECANISMOS ECONÔMICOS DE
APERFEIÇOAMENTO DO PROCESSO
LICITATÓRIO
Yuri Alexander Nogueira Gomes Nascimento15

INTRODUÇÃO

O objetivo do presente artigo foi analisar o procedimento adminis-


trativo de licitação sob a ótica da influência das teorias econômicas. Em
suma, procurou-se compreender como a Administração Pública deve
atuar no mercado a fim de conseguir licitar de modo mais eficiente e com
melhor atendimento ao interesse público. No entanto, não se buscou
abarcar todo o complexo campo de estudo que abrange a interligação en-
tre licitações e economia, mas sim analisar especificamente a questão da
chamada “assimetria de informações” e como ela traz resultados danosos
ao procedimento licitatório.
Diante disso, no primeiro tópico analisa-se o conceito de assimetria
de informações e seu impacto negativo nas contratações públicas, em es-

15 Procurador do Estado de Goiás. Chefe da Procuradoria da Administração Penitenciária.


Ex-Procurador da Câmara Municipal de Juiz de Fora. Ex-Procurador do Município de Ouro
Preto. Ex-Analista da Justiça Federal. Especialista em Filosofia do Direito e Teoria Jurídica
pela PUC/MG. Especialista em Direito Constitucional pela UCAM.

149
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

pecial sob a ótica de dois efeitos bastante gravosos dele decorrentes: a sele-
ção adversa e o risco moral. A partir daí, são analisadas as figuras do “scree-
ning” e do “signaling”, técnicas que consistem na revelação de informações
pelos contratados para fins de diminuição de assimetrias e aperfeiçoamen-
to das transações administrativas. Por fim, apresentam-se as conclusões
finais, pautadas nos conceitos anteriormente apontados, sumarizando as
perspectivas e os temas relevantes para futuros estudos na área.

1. DA ASSIMETRIA DE INFORMAÇÕES NO
PROCEDIMENTO LICITATÓRIO

Podemos definir licitação como o procedimento administrativo por


meio do qual a Administração Pública, sem se despir de sua potestade,
busca adquirir no mercado bens e serviços para atender aos interesses pú-
blicos dos quais é guardião (DI PIETRO, 2023).
Todavia, ainda que atuando com poderes excepcionais não aplicá-
veis aos demais contratantes privados, as regras econômicas aplicáveis ao
mercado também o são à Administração Pública. Portanto, efeitos como
aumento extraordinário de preços de insumos, modificações na curva de
juros e variações do câmbio são sentidos diretamente nas contratações pú-
blicas; ou seja, uma vez inserida no mercado, a Administração se submete
tanto às regras gerais da economia quanto aos princípios constitucionais
econômicos, previstos no art. 170 da Constituição Federal, dos quais se
destaca o princípio da livre concorrência (BRASIL, 1988).
Dessa correlação sutil entre a autorregulação do mercado e a entrada
de um participante com poderes excepcionais, notam-se falhas de merca-
do que influenciam negativamente o procedimento de licitação, ou seja,
ele não consegue atingir seu nível ótimo. Essas falhas, que são inerentes
a qualquer contratação, passam, muitas vezes, despercebidas dentro desse
processo que, por muito tempo, teve um nítido caráter formal de aplica-
ção de regramentos legais rígidos sem uma análise adequada de sua fun-
cionalidade (NOBREGA, 2019).
Assim, evolução da qualidade da licitação perpassa o estudo e o aper-
feiçoamento dos desenhos dos mercados públicos (CYRINO; TOLE-
DO, 2021). É nesse sentido que, ainda durante os últimos anos da Lei

150
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

nº. 8.666/1993, são notadas algumas evoluções legais como a criação de


regimes mais céleres de contratação, como o pregão, e a criação de ferra-
mentas contratuais totalmente novas, a empreitada integrada, o orçamen-
to sigiloso e a incorporação de matrizes de risco, por exemplo.
A percepção de que as regras jurídicas licitatórias não podem dobrar
a realidade do mercado levanta possibilidades novas para os velhos proble-
mas licitatórios, em suma, o custo naturalmente mais alto das aquisições
públicas e a ausência de eficiência nas prestações contratuais. Nesse con-
texto, uma das falhas de mercado que atingem de modo intenso os contra-
tos administrativos é a chamada “assimetria de informações”.
A assimetria de informações é um fenômeno que ocorre quando uma
das partes envolvidas em uma transação tem mais informações relevantes
do que a outra parte, ou seja, há um desnível na capacidade de percepção
do objeto contratado. Amorim (2001, p. 44) as define como “o fenôme-
no em que um agente ou grupo possui um pacote de informações sobre
determinado tema maior ou diferente de um segundo agente ou grupo
interessado nessas mesmas informações.” Essa desigualdade pode levar a
situações em que uma das partes se beneficia em detrimento da outra,
prejudicando a eficiência e a equidade da transação.
Geralmente, dentro do processo licitatório, a Administração Pú-
blica está em posição desfavorável perante o mercado, detendo menos
informações do que seria adequado para a aquisição de determinado
objeto. Assim, apesar da superioridade jurídica da Administração Pú-
blica, ela se encontra em situação de hipossuficiência informacional
sobre o objeto. Isso se dá porque a assimetria não é uma situação ex-
traordinária de incapacidade individual, em verdade, trata-se de situa-
ção natural dentro de um mercado não centralizado. Quer dizer, “não
é o custo que impede que as informações sejam igualmente distribuí-
das, mas, sim, a própria forma de organização da economia” (AMO-
RIM, 2001, p. 44).
Assim, por diversos motivos, tais como a eventual inexistência de um
quadro técnico capacitado, o dinamismo inerente aos livres mercados que
se opõe à burocracia padronizante natural do modelo administrativo, o
número de controles impostos aos gestores que, por muitas vezes, são de-

151
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

sestimulados a buscarem soluções criativas para os problemas, a Adminis-


tração se porta em situação de desvantagem fática.
O desnível na posse de informações relevantes acerca do objeto pres-
tado traz duas grandes consequências negativas às contratações públicas: a
seleção adversa e o risco moral, que passam a ser analisadas.

1.1. DOS EFEITOS DA ASSIMETRIA DE INFORMAÇÕES:


DA SELEÇÃO ADVERSA E DO RISCO MORAL

O termo “seleção adversa” foi cunhado pelo economista George


Akerlof em seu artigo The Market for Lemons (1970), no qual ele descre-
ve a situação em que vendedores de carros usados possuem informações
superiores sobre a qualidade dos corres do que os compradores. Essa assi-
metria leva os compradores a serem avessos a riscos e a ofertarem preços
mais baixos, o que, por sua vez, faz com que os vendedores com produtos
de qualidade superior optem por não os vender. A consequência é que o
mercado acaba sendo dominado por produtos de qualidade inferior, os
chamados “limões”, enquanto os de qualidade superior são expulsos.
Os conceitos apresentados no Lemon Market podem ser aplicados em
diversos mercados, inclusive nas licitações, onde a assimetria de informa-
ções pode levar a problemas de seleção (NÓBREGA, 2020). Esmiuçando
a ideia, a incapacidade da Administração em avaliar efetivamente a quali-
dade dos produtos e serviços faz com que os de má qualidade sejam en-
carados como equivalentes aos de melhor qualidade, o que faz com que a
seleção do produto vencedor de uma licitação não se dê pelo critério do
melhor custo-benefício, mas sim pelo de menor custo puro e simples.
Desse modo, aqueles licitantes que são mais bem qualificados e com
bens e serviços melhores simplesmente não conseguem acompanhar a
precificação dada por aqueles com objetos inferiores. Pouco a pouco, o
mercado licitatório, apesar de gigantesco, deixa de ser uma opção inte-
ressante para as boas empresas que confiam na qualidade do que oferecem
como diferencial. Consequentemente, com a saída das “melhores” lici-
tantes, as “piores” podem, com o passar do tempo, ampliar sua fatia de
participação nas compras públicas a preços cada vez maiores por produtos
cada vez piores. Ao fim, a seleção adversa faz com a que a Administração

152
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Pública tenha uma carteira de fornecedores de produtos ruins com preços


iguais ou maiores àqueles de melhor qualidade obtidos em uma situação
de livre mercado.
Um dos elementos que explica essa dissonância é a adoção quase que
ilimitada do modelo de contratação pelo menor preço, o qual desconsi-
dera quaisquer informações relevantes dos licitantes, satisfazendo-se com
produtos de qualquer nível, desde que os preços se encontrem dentro dos
parâmetros das pesquisas de preço da fase interna. Apesar de financeira-
mente esse modelo gerar economia (VASCONCELLOS, 2005), a quali-
dade dos produtos, por vezes, torna-se insuficiente (NASCIMENTO et.
al., 2011)
A escolha pela licitação de menor preço é a regra da Administração
Pública, em decorrência, parcialmente, do modo de atuação dos contro-
les internos e externos. Isso porque avaliar se os critérios de qualidade
são efetivamente objetivos e permitem concorrência ou se são, de fato, o
direcionamento da licitação é questão de extrema complexidade, o que
dificulta sobremaneira o controle e a fiscalização, gerando a condenação
de muitos gestores de boa-fé.
Com o passar dos anos, o pregão se tornou modalidade quase obri-
gatória, sendo ônus argumentativo do gestor a utilização de métodos que
possam levar critérios de qualidade em consideração. Nesse sentido, em
seu voto vencedor no Acórdão 2079/2007, o ministro Marcos Vinícius
Vilaça chegou a dizer que: “Pelos benefícios do pregão, no que concerne
à efetivação da isonomia e à conquista do menor preço, o administrador
público talvez deva ficar mais apreensivo e vacilante na justificativa de que
um serviço não é comum do que o contrário.” (BRASIL, 2007).
Em suma, o pregão, modalidade criada com o ideal de ser um modelo
excepcional aplicável a “itens comuns” (tais como papel higiênico, resmas
de papel, canetas marca-textos), passou a ser aplicável à quase totalidade
das contratações administrativas (abarcando até mesmo soluções de infor-
mática, entre outros, vide Acórdão 58/2007).
Tentou-se sanar esse modelo ineficiente com a imposição da obriga-
toriedade da realização do Estudo Técnico Preliminar. Todavia, as com-
plexidades inerentes aos mercados somadas à dificuldade de qualificação

153
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

de servidores hábeis a fazerem análises aprofundadas dos objetos licitados


tornam o documento um elemento auxiliar, mas não determinante para a
solução do problema.
Outro problema que surge com a assimetria das informações é o cha-
mado “moral hazar”, o “risco moral”. O risco moral diverge da seleção
adversa em pontos-chave. Por exempl, se a seleção adversa é uma falha de
mercado que surge da impossibilidade ex ante de determinação da quali-
dade das transações efetivadas, pelo desequilíbrio informacional entre as
partes (REIS, 2012), o risco moral é:

[…] um problema pós-contratual, no qual uma das partes passa


a agir de forma oportunista após a assinatura do contrato em vir-
tude da outra parte não observar o seu comportamento. Assim, a
parte que possui mais informações no tocante à negociação pode
enganar, mentir, tirando vantagem do fato da outra parte não ter
condições de acompanhar todo o desenrolar de ações. (KOETZ;
KOETZ; MARCON, 2011, p. 620).

O risco moral na Administração Pública eventualmente culmina na


incapacidade de cumprimento das obrigações contratuais, levando a res-
cisão dos contratos e aplicação de sanções.
Por fim, o risco moral acaba sendo estimulado pelo próprio modelo
sancionador da Administração Pública, pois, apesar de a lei conferir diver-
sas potestades à Administração, na prática, o processo administrativo de
punição transcorre de modo lento e ineficiente. Ademais, as assimetrias
inerentes ao objeto deixam, muitas vezes, os gestores contratuais em dú-
vida sobre a própria existência de eventual falha contratual, especialmente
quando confrontados com conceitos complexos de natureza técnica, jurí-
dica ou econômica.
Talvez no tema de “risco moral”, o melhor modo de solução não seja
a busca por um estímulo negativo, por meio da punição do infrator, mas
de um positivo, por meio de bonificação aos bons contratados, a exemplo
do modelo de remuneração variável do art. 144 da Lei nº 14.133/2020.
Nesse sentido, Posner (2020) sugere dois mecanismos: o estabelecimento
de prêmios por desempenho e o aperfeiçoamento de mecanismos de mo-

154
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

nitoramento, porém ressalta que a aplicação é complexa e deve ser feita


com cautela. O autor conclui que em qualquer “[...] relacionamento ha-
verá potenciais custos, que podem ser reduzidos por meio de monitora-
mento inteligente e contratos que garantam incentivos, em uma mão, e
garantias, em outra” (POSNER, 2020, p. 6, tradução nossa).
A assimetria de informações como falha de mercado é da própria na-
tureza do sistema econômico. Contudo no livre mercado esse problema
é paulatinamente reduzido por meio da autorregulação dos atores dos sis-
temas. Por outro lado, a Administração Pública que se liga a regramentos
mais rígidos pode ter dificuldades de afastar os maus licitantes pelo fato
de possuírem ferramentas mais limitadas de seleção. Todavia, dentro das
premissas das próprias leis de licitação ainda há mecanismos que podem
ser utilizados de auxílio para melhorar essa situação.
Sob esse ponto de vista, passamos a analisar os mecanismos de redu-
ção de assimetria.

1.1.1. MECANISMOS DE REDUÇÃO DE ASSIMETRIA

A redução da assimetria de informações deve ser um dos objetivos


primários da licitação, com o intuito manifesto de aperfeiçoar esse pro-
cedimento e a qualidade das contratações públicas. Nóbrega (2020, p. 5)
chega a definir licitação como “um mecanismo de revelação de informa-
ções”, no entanto, há elementos que reduzem a capacidade de fluxo de
informação entre a Administração e os licitantes.
No ambiente de livre mercado, as informações mais importantes es-
tão no preço, que serve como verdadeiro mecanismo de comunicação aos
agentes econômicos (HAYEK, 2009). Porém essa regra não é plenamente
aplicável no ambiente licitatório. A composição de preços em uma licita-
ção possui, como regra, parâmetros máximos a partir dos quais as propos-
tas são desclassificadas e, por vezes, parâmetros mínimos abaixo dos quais
a proposta pode ser considerada inexequível.
Desse modo, os preços são fixados fora de um ambiente de livre con-
corrência e, ao adentrarmos na análise do processo licitatório, a precifi-
cação traz pouca ou nenhuma informação sobre a qualidade inerente do
contrato. Ainda assim existem alternativas para reduzir a assimetria de in-

155
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

formações no procedimento, tais como a qualificação técnica e econômica


em licitações e o controle da reputação dos vendedores em mercados em
que há baixa qualidade.
Joseph Stiglitz, em seu artigo The Theory of “Screening’”, Education,
and the Distribution of Income (1975), descreveu a estratégia de “screening”
como uma forma de reduzir o problema da seleção adversa. Ela consiste
em oferecer dados sobre si mesmo para diminuir a assimetria de informa-
ções e acredita no fornecimento de informações sobre aquele que detém a
superioridade informacional.
Por exemplo, em entrevistas de seleção de candidatos para uma vaga
de emprego, estes apresentam seus títulos acadêmicos ou mesmo são
questionados acerca de sua experiência pretérita, o que indica suas ca-
pacidades subjacentes. Outro exemplo mais relacionado às licitações é a
apresentação de selos de qualidade e de obediência a determinadas notas
técnicas. Ou seja, ao demonstrar suas qualidades intrínsecas por meio do
“screening”, uma parte permite que a outra consiga aumentar seu banco de
informações e, com isso, compreender melhor os riscos e as possibilidades
do negócio.
Alguns autores têm estudado o problema da assimetria de informa-
ções em licitações e proposto soluções para combatê-lo. Por exemplo, em
seu artigo Bidding for Contract: A Principal-Agent Analysis, de 1985, Patrick
Bajari e Steven Tadelis sugerem que a Administração Pública deve avaliar
a reputação dos licitantes e criar mecanismos de incentivo para que os de
boa reputação participem do processo licitatório.
Nesse sentido, a Lei nº 14.133/2020 prevê o “sistema de registro ca-
dastral” em seu art. 87, do qual um dos objetivos é servir como um grande
cadastro de qualidade dos licitantes, permitindo à Administração Pública
perceber os riscos inerentes a cada negociação e tentar minimizá-los por
meio de uma análise não apenas do objeto contratado, mas também do
sujeito contratado.
Se analisarmos, ainda, o art. 88, § 4º, da referida lei, temos que o re-
gistro cadastral será estruturado de modo a “possibilitar a implementação
de medidas de incentivo aos licitantes que possuírem ótimo desempenho
anotado em seu registro cadastral” (BRASIL, 2020). Na mesma esteira,

156
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

em seu art. 36, §3º, a lei permite que o desempenho pretérito do contrata-
do perante a Administração Pública seja considerado na pontuação técnica
quando do julgamento técnica e preço (BRASIL, 2020).
Essa perspectiva permite analisar os licitantes não apenas sob o critério
de “habilitado/não habilitado”, mas também sob um olhar de “adequado/
inadequado”. Portanto, se um licitante possui diversas advertências ou
outras sanções similares, a Administração pode minimizar o valor intrín-
seco de sua proposta e, ainda que eventualmente ela não possa inabilitá-lo
a participar da licitação, poderá assumir posturas mais ativas na fiscalização
e na prevenção de riscos dos contratos.
Outro mecanismo de combate à assimetria de informações tradicio-
nalmente utilizado pela Administração Pública é a qualificação técnica e
econômica dos licitantes. Por meio desse processo, os licitantes devem
comprovar sua capacidade técnica e financeira para executar o objeto do
contrato (CARNEIRO JÚRNIOR et al., 2015).
Esse critério serve como uma abertura das informações do licitante,
que deverá demonstrar suas qualidades intrínsecas, reduzindo a assime-
tria de informações e garantindo que apenas os licitantes que atendam aos
requisitos técnicos e financeiros sejam selecionados. Portanto, é um pro-
cesso fundamental para garantir que a administração pública selecione os
melhores licitantes e evite a seleção adversa e o risco moral (NÓBREGA,
2019), além de incentivar a concorrência saudável e garantir a transparên-
cia e a eficiência do processo licitatório. Todavia não é um procedimen-
to que passa ao largo de críticas, ante sua insuficiência de previsão legal
de instrumentos capazes de garantir sua função essencial de selecionar os
melhores licitantes (CARNEIRO JÚNIOR, 2020; NÓBREGA, 2019).
Apesar de relegada à última fase do procedimento licitatório atual, a
habilitação é um de seus momentos mais importantes, por ser nele que
a Administração Pública determina, efetivamente, quem será seu futuro
contratado, com todos os problemas daí inerentes.
Nesse ponto, poder-se-ia levantar o argumento de que o art. 37, inci-
so XXI, da Constituição Federal impõe à Administração Pública o dever
de exigir tão somente as qualificações necessárias à prestação ao contrato.
Porém o dispositivo constitucional deve ser analisado sob a ótica teleológi-

157
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ca. A norma não visa impedir a seleção dos melhores licitantes, mas evitar
um direcionamento do procedimento licitatório.
Em outras palavras, a exigência de requisitos de qualificação técnica
e econômica devem ser maiores quanto mais relevante e complexo for
o contrato. Concomitantemente, deve o gestor assegurar-se de que não
sejam exigidas qualificações tão restritivas que impeçam a livre concor-
rência. Ainda assim, uma vez respeitada a livre concorrência, bem como
observado os princípios administrativos constitucionais, a imposição de
limitações à participação de determinados licitantes é elemento necessário
ao sucesso da licitação.
O principal ponto a se analisar é a relevância do contrato para a Admi-
nistração, pois um mesmo bem pode ser essencial em certo serviço públi-
co e acessório em outro, gerando condições de qualificação mais rigorosas
no primeiro e mais flexíveis no segundo. Por exemplo, a aquisição de ál-
cool em gel para os ambientes dos órgãos públicos em geral não pode ser
tão restritiva quanto aquela para ambientes hospitalares.
Assim, a análise mais aprofundada das condições de habilitação é item
tão ou mais necessário do que o tratamento do próprio preço do objeto
contratado. E, talvez, por esse motivo seja necessária a ampliação legal dos
documentos e características passíveis de exigência no processo licitatório
(CARNEIRO JÚNIOR, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo licitatório que se fundamenta em uma legalidade formal,


ou seja, na aplicação de preceitos legais desconectados da realidade de
mercado, não é mais suficiente para o atendimento das necessidades pú-
blicas. A incorporação e o crescimento da complexidade dos mecanis-
mos de aquisição em ambientes de livre mercado geram a necessidade de
adaptação a novos e melhores métodos de contratação pela Administração
Pública.
A pouca eficiência das contratações públicas está ligada à incompreen-
são das regras de mercado que regem as relações transacionais (NÓBRE-
GA, 2020). Nesse sentido, as regras e roteiros licitatórios, que se localizam
em um ambiente de intersecção entre o Direito e a Economia, devem ser

158
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

lidos sob a ótica das constantes evoluções da Ciência Econômica, ainda


que não prescindam do formalismo inerente ao Direito.
A colisão de sistemas tão diversos como o Direito, que se pauta em
um modelo mais estável e tradicional de normas prescritivas, e a Econo-
mia, fundamentada em um modelo fluido e contemporâneo de autor-
regulação e de normas descritivas, pode gerar estranhamento à primeira
vista, mas faz parte de uma evolução ontológica necessária aos conceitos
do Direito Administrativo. Não seria demais localizar esse movimento no
que Gustavo Binembojm chamou de “Giro Hermenêutico Pragmático”
(BINEBOJM, 2016)
Como demonstrado acima, quando a Administração Pública visa ad-
quirir bens e serviços por meio do processo licitatório, ela se submete
às regras do mercado, ainda que não se dispa de sua potestade. Assim,
ignorar os modelos econômicos e pautar-se em um sistema de normatiza-
ção jurídica restrita, com fundamento na supremacia do interesse público,
tende a gerar uma incompatibilidade com a busca desse interesse.
Dessa forma, a compreensão e a incorporação das teorias e conheci-
mentos do mercado são necessárias para o desenho dos modelos moder-
nos de aquisição de bens públicos. Isso perpassa, necessariamente, por
conhecer as falhas de mercado, dentre as quais talvez a mais relevante
hoje seja justamente a assimetria de informações, pois, a partir dela, a
disparidade de conhecimentos acerca da transação pretendida gera uma
superioridade relacional.
Em um ambiente licitatório, essa superioridade informacional en-
contra-se com o licitante, de modo que há uma dissonância entre a Admi-
nistração Pública, com sua superioridade jurídica, representada pelo prin-
cípio da indisponibilidade do interesse público, e a superioridade fática do
particular, detentor das informações do objeto.
Dois grandes efeitos são sentidos nesse ambiente de assimetria infor-
macional: a “seleção adversa” e o “risco moral.” A seleção adversa, de
caráter ex ante, refere-se à impossibilidade de conhecer a qualidade do ob-
jeto contratado e do próprio contrato, ante a incompreensão devida do
primeiro. Essa situação se agrava na busca exclusiva pelo menor preço, que
gera uma deformação nas licitações, com uma seleção dos piores objetos e

159
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

um afastamento gradual dos melhores, culminando na progressiva aquisi-


ção de objetos cada vez piores por preços cada vez maiores.
A própria elevação do pregão a modelo licitatório preferencial é uma
evidência desse movimento, pois essa modalidade, pensada com fun-
damento em bens e serviços simples e no conceito de “estoque zero”,
tornou-se a regra quase inafastável da Administração, gerando um ônus
argumentativo muito grande a qualquer licitação que leve a técnica e a
qualidade em consideração no julgamento da proposta.
Por sua vez, o risco moral, de caráter ex post, refere-se à impossibili-
dade de prever o comportamento do contratado após a celebração do con-
trato. Esse risco, que se consolida bastante nas licitações brasileiras, deriva
de uma impossibilidade fática de prever o comportamento futuro de um
particular. Além disso, seu controle é complexo mesmo em sistemas de
livre mercado, o que se torna ainda mais difícil no modelo administrativo
atual, em que as sanções administrativas, quase sempre de caráter negati-
vo, muitas vezes se tornam de difícil aplicação prática, seja pela burocracia
inerente aos processos administrativos, seja pela assimetria de informações
entre o contratado e o gestor.
Nesse ponto, uma das soluções plausíveis é a utilização de um mo-
delo de estímulos positivos, como aqueles garantidos pelo contrato com
remuneração variável. Além da ampliação natural dos mecanismos de mo-
nitoramento.
Para combater as assimetrias de informações, o setor privado se vale
da análise de preços, sendo que preços maiores indicam, geralmente,
maior qualidade e menor disponibilidade do produto (ZICKER, 2002).
Todavia, para a Administração Pública, a análise de preços é praticamente
inócua, pois os preços licitados são dados artificialmente dentre dos limi-
tes máximos, postos pela Administração, e mínimos, dados pelo conceito,
por vezes complexo, de inexequibilidade.
Assim, sobreleva de importância a ferramenta do “screening”, técnica
por meio da qual a parte revela suas informações para reduzir a diferença
informacional da transação. Na Lei nº 14.133/2020, dentre outras, as fer-
ramentas do “registro cadastral” e da “qualificação técnica e econômica”
desempenham esse papel, ainda que não de modo plenamente satisfatório.

160
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Se as assimetrias de informações são realmente uma consequência


natural de um mercado imperfeito, sua eliminação é inviável, cabendo
aos participantes do mercado lidarem com ela do melhor modo o possí-
vel. Nesse ponto, a Administração Pública, como maior compradora do
mercado brasileiro, deve se preparar para os desafios cada vez maiores que
as inovações técnicas e tecnológicas tendem a trazer, de modo a buscar
atender satisfatoriamente ao interesse público.
Este trabalho tem um viés descritivo, com pesquisa, em suma, bi-
bliográfica, de modo que em futuros estudos a análise de casos e compa-
ração dos resultados de diversos modelos licitatórios seriam necessários.
Ao lado disso, há diversos mecanismos de revelação de informações, tais
como a Ata de Registro de Preços e o Diálogo Competitivo, na Lei nº
14.133/2020, que podem pautar futuros estudos sobre o tema.

REFERÊNCIAS

AKERLOF, George A. The market for “lemons”: quality uncertainty


and the market mechanism. The Quarterly Journal of Econom-
ics, [s. l.], v. 84, n. 3, p. 488-500, aug. 1970.

AMORIM, Ricardo. Assimetria de informações e racionamento de cré-


dito: novo-keynesianos versus pós-keynesianos. Teoria e Evidên-
cia Econômica, Passo Fundo, RS, v. 9, n. 17, p. 43-56, 2001.

BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação:


transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do
direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2016.

CARNEIRO JUNIOR, Moacir et al. Licitações na administração pú-


blica: Nova perspectiva para a qualificação econômico-financeira de
empresas na contratação de serviços de engenharia e obras civis. Re-
vista Capital Científico, [s. l.], v. 13, n. 2, p. 24-41, 2015. DOI:
10.5935/2177-4153.20150011. Disponível em: https://revistas.uni-
centro.br/index.php/capitalcientifico/article/view/2886. Acesso em:
20 abr. 2023.

161
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

CYRINO, André Rodrigues; TOLEDO, Renato. Desenhos de merca-


do, licitações e três apostas da Lei nº 14.133/2021. Revista Ele-
trônica da PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, 2022. DOI: 10.46818/
pge.v5i3.322. Disponível em: https://revistaeletronica.pge.rj.gov.br/
index.php/pge/article/view/322/257. Acesso em: 16 abr. 2023.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 36. ed.


Rio de Janeiro: Editora Forense, 2023.

HAYEK, Frederick A. The use of knowledge in society. In: MYERS,


Paul S. (ed.) Knowledge management and organizational de-
sign. Abingdon, UK: Routledge, 2009. p. 7-15.

KOETZ, Carin Maribel; KOETZ, Clara Isabel; MARCON, Rosilene.


A influência do incentivo no comportamento oportunista de risco
moral: uma análise experimental. Gestão.Org – Revista Eletrôni-
ca de Gestão Organizacional, [s. l.], v. 9, n. 3, p. 615-639, set./
dez. 2011. Disponível em: http://www.spell.org.br/documentos/
ver/955/a-influencia-do-incentivo-no-comportamento-oportu-
nista-de-risco-moral--uma-analise-experimental. Acesso em: 19
abr. 2023.

MCAFEE, R. Preston; MCMILLAN, John. Bidding for contracts: a


principal-agent analysis. The Rand Journal of Economics, [s. l.],
v. 17, n. 3, p. 326-338, 1986. DOI: https://doi.org/10.2307/2555714.
Disponível em: https://www.jstor.org/stable/2555714?read-now=-
1&oauth_data=eyJlbWFpbCI6Inl1cmlnb21lc2FkdkBnbWFpbC5j-
b20iLCJpbnN0aXR1dGlvbklkcyI6W119#page_scan_tab_conten-
ts. Acesso em: 20 abr. 2023.

NASCIMENTO, Guilherme Fossi et al. A qualidade dos produtos ad-


quiridos por pregão eletrônico e a sua relação com a sala de aula no
Ccaufes. In: SIMPÓSIO DE EXCELÊNCIA EM GESTÃO E
TECNOLOGIA, 8., 2011, Resende, RJ. Anais eletrônicos […].
Resende, RJ: AEDB, 2011.

NÓBREGA, Marcos. Direito e economia da infraestrutura. Belo


Horizonte: Editora Fórum, 2019.

162
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

NÓBREGA, Marcos; JURUBEBA, D. F. de A. Assimetrias de infor-


mação na nova Lei de Licitação e o problema da seleção adversa.
Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, v. 18, n.
69, p. 9-32, 2020.

NORONHA, F. O Direito dos Contratos e seus Princípios Funda-


mentais. São Paulo: Saraiva, 1994.

STIGLITZ, Joseph E. The theory of “screening”, education, and the dis-


tribution of income. The American economic review, [Nashvil-
le], v. 65, n. 3, p. 283-300, 1975.

VASCONCELOS, Fernanda. Licitação pública: análise dos aspectos rele-


vantes do Pregão. Prim Facie, [João Pessoa], v. 4, n. 7, p. 151-163,
2005.

ZICKER, Alberto. Modelo para formação de preços a partir do


valor percebido pelo mercado. 2002. Dissertação (Mestrado
em Engenharia) – Universidade Federal de Santa Catarina, Flo-
rianópolis, 2002. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/hand-
le/123456789/83810. Acesso em: 19 abr. 2023.

163
A CONSTITUCIONALIDADE DO
ENSINO DOMICILIAR NO BRASIL
DIANTE DOS PRINCÍPIOS DA
AUTONOMIA FAMILIAR E LIBERDADE
DE ENSINO
João Paulo Ferreira Silva16

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa teve como intuito, através de uma análise de con-


teúdo, verificar a compatibilidade de uma modalidade alternativa de en-
sino – denominada ensino domiciliar – com os princípios constitucionais
do direito à educação. Nesse contexto, o ensino domiciliar é aquele no
qual os pais ou responsáveis assumem de forma direta a educação de crian-
ças e adolescentes, sendo o modelo defendido nesta pesquisa aquele em
que o Estado exerce um papel de fiscalizador de tal modalidade.
Por conseguinte, a Constituição Federal de 1988 consagra uma série
de princípios no âmbito do direito social à educação com o intuito de tra-
çar os vetores dos direitos educacionais no Brasil, cujos principais atores

16 Graduado em Direito pela Faculdade Escritor Osman da Costa Lins (2022). Advogado na
área de Direito Privado, com ênfase em Direito de Família. Estagiou no Tribunal de Justiça de
Pernambuco. Aprovado em intercâmbio, estudou 6 meses no Canadá.

164
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

da promoção são a família e o Estado. Ademais, o texto constitucional


previu um sistema firmado na concepção de pluralidade de concepções
pedagógicas, não existindo proibição expressa à modalidade de ensino do-
miciliar no sistema educacional brasileiro.
Dessa forma, buscou-se fazer uma análise da relevância fundamental
dos princípios previstos pela Carta Magna no novo paradigma constitu-
cional; tratar da essencialidade de efetivação desses princípios no âmbito
educacional e da consonância da modalidade de ensino domiciliar com o
princípio da liberdade de ensino e autonomia familiar.

1. A MODALIDADE DE ENSINO DOMICILIAR E OS


PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO À
EDUCAÇÃO

1.1. A RELEVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS


CONSTITUCIONAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO

O constitucionalismo pós-Segunda Guerra Mundial é marcado


por um processo de superação do positivismo jurídico clássico, pois
surge nas constituições promulgadas nesse período um sistema aber-
to de normas, no qual se vê essencial relevância dada ao papel dos
princípios constitucionais na efetivação de direitos fundamentais,
inaugurando a época do pós-positivismo, conforme leciona Barroso
(2018, p. 58):

A superação dessa perspectiva ganhou impulso no segundo pós-


-guerra, com a perda de prestígio do positivismo jurídico e da pró-
pria lei e com a ascensão dos princípios constitucionais concebidos
como uma reserva de justiça na relação entre o poder político e os
indivíduos, especialmente as minorias. Essa mudança, uma verda-
deira revolução silenciosa, tornou-se possível graças à disseminação
da jurisdição constitucional, com a criação de inúmeros tribunais
constitucionais pelo mundo afora.

165
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Assim, a Constituição na contemporaneidade passa a ter um papel


central dentro do ordenamento jurídico, pois todas as demais normas não
presentes no texto constitucional devem ter como norte os princípios e
regras nela presentes, logo, os textos constitucionais passam a ter força
normativa para efetivar direitos e garantias fundamentais na criação de
um sistema aberto de normas, consagrando os princípios constitucionais
(BARROSO, 2018).
Dessa forma, esses princípios e normas são os parâmetros elementares
de interpretação para as demais leis presentes no ordenamento jurídico
brasileiro, portanto, verifica-se neles a presença de uma carga valorati-
va, por trazerem postulados abertos e tratarem de valores éticos que, ao
fazerem parte do ordenamento, possuem força jurídica, razão pela qual
têm um papel essencial na aplicação e interpretação das leis (BARROSO,
2018).
Nessa linha de pensamento, o pós-positivismo trata de criar um sis-
tema aberto de normas, no qual existe espaço para valoração e princípios
trazendo postulados éticos que ao adentrarem o sistema jurídico têm força
para efetivar os direitos fundamentais e garantir a proteção de minorias.
Assim, o texto constitucional tem um papel central na construção de um
Estado Democrático de Direito no sentido de consolidar direitos e ga-
rantias dos indivíduos e da coletividade, conforme leciona Sarmento em
relação aos princípios constitucionais diante da noção de força normativa
da Constituição:

Só a superação desta visão, com o reconhecimento da “força nor-


mativa” de toda a Constituição, em especial dos seus princípios, é
que vai permitir conceber o ordenamento como uma unidade, na
qual a lei maior representa não apenas o limite para o legislador,
mas também o norte da sua atuação e o centro unificador de todo
o direito constitucional. (SARMENTO, 2010, p. 74-75).

A noção de que as regras e princípios previstos em carta constitucio-


nal podem efetivar direitos e garantias fundamentais sem a necessidade de
uma legislação específica sobre determinada matéria é recente na história
jurídica, logo, sabe-se que no constitucionalismo clássico a efetividade das

166
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

normas constitucionais estava diretamente vinculada à existência de outra


legislação sobre o tema em questão, não sendo suficiente a disposição do
texto constitucional (SARMENTO, 2010).
Não obstante, a força normativa da constituição, teoria criada por
Konrad Hesse, encontra fundamento na linha de pensamento de que para
a efetivação de regras e princípios constitucionais é necessário um ímpeto
da sociedade para ver a concretização dos valores constitucionais; contudo,
existe limitação até mesmo para a força normativa, pois é ilógico consagrar
normas cuja realidade prática não torna possível sua aplicação, situação
capaz de comprometer a efetividade do texto constitucional (SARMEN-
TO, 2010).
Nessa ordem de ideias, os textos constitucionais contemporâneos
rompem um paradigma do constitucionalismo clássico ao trazerem as
constituições para o centro do ordenamento jurídico enquanto buscam
efetivar direitos e garantias fundamentais, estabelecendo delimitações do
papel do Estado e consagrando os direitos dos indivíduos e da coletividade
cuja eficácia pode ser plena, isto é, o exercício dessas normas constitu-
cionais é efetivado de plano, sem necessidade de outras leis regulando a
matéria. Por conseguinte, ao tratar de interpretação das normas, Tavares
(2020, p. 261) explana em relação às normas constitucionais em sentido
amplo como vetores interpretativos:

Não obstante todas as normas constitucionais sejam dotadas da


mesma natureza e do mesmo grau hierárquico, algumas, em virtu-
de de sua generalidade e abstratividade intensas, acabam por servir
como vetores, princípios que guiam a compreensão e a aplicação
das demais normas, devendo-se buscar sua compatibilização.

Dessa forma, no âmbito da interpretação de regras e princípios


constitucionais, considera-se a existência do princípio da unidade da
Constituição, isto é, uma norma constitucional não pode ser entendida
de forma isolada, sem levar em conta toda a dinâmica do texto consti-
tucional, logo, entende-se que mesmo normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais não são absolutas, pois qualquer direito pode so-
frer limitações no caso concreto, motivo pelo qual existe a possibilidade

167
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

de interpretação constitucional, inclusive para utilizar-se da ponderação


em situações envolvendo conflito de princípios e regras constitucionais
(TAVARES, 2020).
Assim, a interpretação de normas constitucionais tem a finalidade
de garantir máxima efetivação de direitos fundamentais ao ampliar o
significado do que foi escrito, situação decorrente da existência de um
sistema aberto de regramento que traz conceitos éticos, com espaço para
que o órgão julgador exerça papel de intérprete da constituição (TAVA-
RES, 2020).
Nessa ordem de ideias, os princípios constitucionais funcionam como
vetor interpretativo das demais normas do ordenamento jurídico, pois o
sistema aberto criado pela constituição permite o papel de interpretar pelo
órgão julgador, visando à efetividade máxima de direitos e garantias fun-
damentais em caso concreto ao entender que a Constituição Federal de
1988 deve ser analisada como um todo e não de forma isolada, situação
consagrada, como já exposto, pelo princípio da unidade da Constituição.
Dessa forma, dentro da nova dinâmica constitucional o foco se en-
contra em trazer efetividade às normas, para que o texto constitucional
possa irradiar efeitos na vida dos indivíduos e da coletividade por meio
da garantia dos direitos fundamentais, conforme assinala Santos (2018,
p. 21):

É patente, então, a centralidade da promoção dos direitos funda-


mentais deste novo paradigma do constitucionalismo contempo-
râneo. A constituição deixa de significar um conjunto de regras
abstratas assinaladas em um documento e passa a atuar na vida das
pessoas, guiar a sociedade, engajada na efetividade do que nela está
escrito.

Ademais, a essencialidade da efetivação dos direitos fundamentais na


sociedade pode ser exemplificada pela importância dada à educação no
texto constitucional, na condição de primeiro direito social elencado, em
um capítulo próprio, no qual é consagrada a responsabilidade direta do
Estado e da família na efetivação do direito à educação visando ao seu
aperfeiçoamento no âmbito social (SANTOS, 2018).

168
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Dessa maneira, os princípios e regras constitucionais têm um papel


central dentro do ordenamento jurídico brasileiro, situação decorrente da
Constituição de 1988 devido à sua vertente neoconstitucionalista de criar
um sistema aberto de regramento, no qual a existência de normas com
conteúdo ético permite o papel de intérprete do órgão julgador a fim de
trazer máxima efetividade aos direitos fundamentais, dentre os quais cabe
ressaltar o direito social à educação e o papel atribuído ao Estado e à famí-
lia para sua promoção.

1.2. CONCEITOS DE ENSINO DOMICILIAR NA


ATUALIDADE

No decorrer da história, o termo educação teve diversas concepções


por diferentes acadêmicos, contudo, existe um núcleo essencial daquilo
que pode ser definido como educação, sendo essa a linha de pensamento
de Moreira: “Apesar da diversidade de definições é possível identificar a
essência comum a todas: a educação diz respeito ao desenvolvimento, à
maturação, ao florescimento do potencial individual” (MOREIRA, 2017,
p. 20).
Dessa forma, a educação é instrumento fundamental no desenvol-
vimento das capacidades psíquicas de crianças e adolescentes, logo, não
pode ser reduzida somente ao seu aspecto formal de ensino em escolas,
pois as crianças estão desenvolvendo suas capacidades intelectuais e físicas
a todo momento (ROTHBARD, 2013). Nesse sentido, o ordenamen-
to jurídico estabelece na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
o escopo de abrangência da educação nos seguintes termos: “Art. 1º A
educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida fa-
miliar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais” (BRASIL, 1996).
Ademais, o referido artigo trata de explicitar a ampla gama de pro-
cessos formativos pelos quais o papel educacional se desenvolve, assim,
cabe destacar o desenvolvimento pedagógico que ocorre na vida familiar,
isto é, aquele decorrente da convivência entre pais e filhos. Além disso,
o prognóstico educacional esposado no artigo 1º da LDB também men-

169
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ciona, em seu § 1º, ser essa legislação responsável unicamente por dispor
sobre educação escolar.
Não obstante, faz-se necessário diferenciar o termo escolarização da
noção de educação, pois o primeiro se trata de questões educacionais ad-
ministradas de forma centralizada, isto é, do ensino desenvolvido por ins-
tituições formais como a escola, nas quais os alunos são submetidos a um
currículo previamente estabelecido por agentes estatais de forma homo-
gênea e com aplicação para todo o país (MOREIRA, 2017).
Por outro lado, na modalidade de ensino domiciliar os genitores, tu-
tores ou responsáveis têm mais liberdade para definir aquilo que acha-
rem ser essencial no aprendizado das crianças e adolescentes, os horários
de ensino mais adequados de acordo com a necessidade da criança, bem
como para ampliar os espaços de ensino para fora da sala de uma escola,
através da participação em cursos, contato com a Igreja, visitas a museus
(CARDOSO, 2016).
Assim, para os fins deste trabalho o ensino domiciliar pode ser defini-
do na ordem de ideias de Moreira (2017, p. 66):

A denominada educação domiciliar consiste na assunção pelos pais


ou responsáveis do efetivo controle sobre os processos instrucionais
de crianças ou adolescentes. Para alcançar este objetivo, o ensino
é, em regra, deslocado do ambiente escolar para a privacidade da
residência familiar.

Dessa forma, o deslocamento do ensino para o lar busca promover


uma educação voltada ao desenvolvimento do indivíduo de forma es-
pecífica, analisando suas potencialidades e as dificuldades apresentadas
no decorrer do processo pedagógico. Além de não existir óbice dentro
da autonomia familiar para os pais ou responsáveis complementarem a
educação no lar com cursos de inglês ou música, professores particula-
res ou até matriculando a criança ou adolescente em aulas de natação
ou artes marciais, entre outros exemplos de atividades para garantir
a socialização e o pleno desenvolvimento educacional das crianças e
adolescentes.

170
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

1.3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E SEU PAPEL DE


PROTEÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO

A Constituição Cidadã consagrou uma diversidade de princípios que


irradiam efeitos no âmbito do direito à educação. Nesse sentido, destaca-
-se o princípio da pluralidade de ideias e concepções pedagógicas previsto
no artigo 206, inciso III, do texto constitucional (BRASIL, 1988). Trata-
-se de um princípio que prevê um sistema educacional aberto a diferentes
formas de ensino, como a modalidade de ensino domiciliar, conforme
leciona Waddington (2019, p. 29):

Tais princípios de liberdade e pluralidade pedagógicas corroboram


a ideia de que a educação domiciliar não somente é possível, mas
é desejável ao ampliar as possibilidades de ensino respeitando as
liberdades de crença religiosa, convicção filosófica, pedagógica e
política. Ainda sobre o mesmo artigo 206, temos o inciso I que fala
em igualdade de condições para o acesso e permanência na escola,
mas não traz nenhum mandamento de obrigatoriedade.

Dessa forma, os princípios relacionados ao direito à educação têm


como instituições responsáveis por sua concretização o Estado e a família,
com o auxílio da sociedade, sendo que o sistema educacional brasileiro
permite a coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. Não
obstante, o texto constitucional estabeleceu parâmetros a serem observa-
dos de forma obrigatória pelo Estado a fim de garantir a observância do
que fora consagrado no capítulo reservado a esse direito (WADDING-
TON, 2019).
Diante disso, o Estado tem obrigações constitucionais a cumprir para
com a educação, ao mesmo tempo, o próprio texto constitucional enten-
de que a área educacional não é monopólio estatal, sendo facultado ao ci-
dadão optar pela instituição formal de ensino pública ou privada, enquan-
to não existe no documento limitação ao papel da família que impeça a
possibilidade de existir uma modalidade de ensino domiciliar regulamen-
tada por lei diante do princípio que consagra a diversidade das concepções
pedagógicas (WADDINGTON, 2019).

171
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Nessa linha de pensamento, sabe-se da previsão em texto constitucio-


nal de princípios educacionais voltados a um sistema aberto que permi-
ta o desenvolvimento de diferentes vertentes de ensino, desde que sejam
capazes de atender aos parâmetros do direito estabelecidos, logo, inexiste
proibição ao ensino domiciliar dentro da constituição, desde que o Estado
possa exercer um papel de fiscalizador dessa modalidade de ensino.
Por conseguinte, ao tratar sobre a responsabilidade do Estado e da
família, cabe destacar que o texto não prevê uma hierarquia dessas insti-
tuições sociais nesse sentido, conforme assinala Bernardes (2017, p. 58):

Numa leitura ampliada do art. 205 e do art. 227, percebe-se que a


educação é um direito e é também um dever de todos, não exis-
tindo uma hierarquia que possa reduzir a participação de um ou
de outro ente. A preocupação do legislador deu-se no âmbito da
qualidade, para que se possam efetivar os objetivos constitucionais
previstos nos referidos artigos. O pleno desenvolvimento da pes-
soa, do preparo para o exercício da cidadania e da qualificação para
o trabalho não podem ser concebidos fora da convivência saudável
e pacífica.

Assim, verifica-se no texto constitucional a consagração da família


como base da sociedade, tendo pais ou responsáveis liberdade quanto à
escolha da forma de educação dos seus filhos, pois não foi estabelecido
no referido texto hierarquia em relação à promoção desse direito. À vista
disso, tem a família o dever de educar, garantir a convivência comunitá-
ria dos seus filhos e cumprir as funções do direito educacional visando
ao pleno desenvolvimento das potencialidades das crianças e adolescentes
(BERNARDES, 2017).
Dessa forma, a Constituição Federal instituiu liberdades fundamen-
tais na construção de um Estado democrático com especial proteção do
direito à educação, já que não existe no seu conteúdo nem proibição nem
permissão expressa para garantir a modalidade do ensino domiciliar, exis-
tindo apenas a importância essencial do papel da família em seus direitos
e deveres na área educacional e uma série de princípios e regras voltadas
para um vetor de liberdade do direito de educar (BERNARDES, 2017).

172
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Nessa linha de pensamento, é natural na construção de uma socie-


dade democrática que o texto constitucional tenha parâmetros mínimos
para consolidação e promoção do direito educacional, tendo a família um
papel central de direitos e deveres consagrados para garantir a educação de
crianças e adolescentes, pois os princípios e regras constitucionais volta-
dos à dinâmica do direito à educação estabelecem graus de liberdade para
seu exercício devido à sua importância e às funções que deve cumprir em
plano constitucional.
De outra forma, a Carta Magna jamais previu um monopólio estatal
na seara educacional, pois o controle do Estado na educação de crianças e
adolescentes é próprio de Estados autoritários, nos quais a educação tem
finalidade de consolidar as ideias de quem está no poder, portanto, a ques-
tão envolvendo o zelar pela frequência dos alunos prevista no artigo 208
da Constituição não representa um monopólio estatal, pois devem ser le-
vados em consideração os direitos e princípios constitucionais na proteção
do direito educacional, conforme leciona Machado (2008, p. 22):

Por conseguinte, deve o Poder Público manter à disposição meios


educacionais para o cidadão deles usufruir se quiser. Então, estan-
do a criança regularmente matriculada, aí sim, deve o professor
zelar por sua freqüência. Isso porque se o infante foi inscrito pelos
pais numa instituição de ensino significa que foi esse o meio de
instrução por eles escolhido e, por delegação, cabe ao Estado pro-
movê-lo com o máximo de eficiência.

Desse modo, não existe no ordenamento jurídico previsão de que o


Estado seja o único ente responsável por promover a educação, compreen-
dendo-se apenas a existência de um dever estatal de garantir a educação
pública a todos os cidadãos. Contudo, é do indivíduo a escolha de utilizar
ou não dessa modalidade educacional, pois existe também o ensino pri-
vado e a não proibição de outras modalidades de ensino, previstos com o
princípio da pluralidade de concepções pedagógicas e liberdade de ensi-
no, no qual a modalidade de ensino domiciliar pode ser promovida (MA-
CHADO, 2008).

173
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Não obstante, destaca-se que as sociedades com monopólio estatal da


educação foram os autoritarismos europeus do século XX, como a Ale-
manha nazista, a União Soviética e os países influenciados pelas ideologias
professadas por esses países, os quais tinham como objetivo da educação a
perpetuação da ideologia das autoridades no poder para as próximas gera-
ções, consolidando regimes cujo legado para a humanidade foi de violên-
cia e morte (MACHADO, 2008).
Assim, a proteção à educação no texto constitucional prevê um sis-
tema educacional aberto, em que a liberdade de ensino e a pluralidade de
concepções pedagógicas são princípios constitucionais vetores do modelo
de educação previstos no Brasil, verificando-se que a demasiada ingerên-
cia estatal na construção da educação em âmbito social serviu como con-
solidação de sociedades autoritárias, nas quais o direito à educação tinha
como único patamar garantir a perpetuidade do poder político, isto é,
uma educação voltada para a ideologia e não para o pleno desenvolvimen-
to da criança ou adolescente, situação que viola os princípios constitucio-
nais do direito à educação.

1.4. O ENSINO DOMICILIAR É EXERCÍCIO DA


AUTONOMIA FAMILIAR E DA LIBERDADE DE ENSINO

O princípio da liberdade de ensino tem arcabouço constitucional na


promoção do direito à educação, portanto, constitui verdadeiro vetor in-
terpretativo de normas infraconstitucionais cujo conteúdo deve estar em
consonância com as regras e princípios previstos no texto constitucio-
nal, conforme exposto no artigo 206, inciso II, do referido documento:
“Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - li-
berdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento,
a arte e o saber;” (BRASIL, 1988, grifo nosso).
Dessa forma, entende-se que a falta de regulamentação da modalida-
de de ensino domiciliar no Brasil, responsável por um estado de ilegali-
dade da situação das famílias que optam por retirar a criança do ambien-
te escolar e promover a educação no lar, configura verdadeira violação

1 74
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

às garantias constitucionais, como à do princípio da liberdade de ensino


(COSTA, 2019).
Assim, compreende-se que o direito à educação é essencial na cons-
trução e aprimoramento de uma sociedade democrática, pois visa ao ple-
no desenvolvimento de potencialidades da pessoa humana, sendo a mo-
dalidade de ensino domiciliar uma forma capaz de efetivar os ditames do
direito educacional e plenamente compatível com o princípio da liberdade
de ensino. Portanto, o ensino em casa é um meio capaz de promover o
direito educacional dentro dos parâmetros estabelecidos no Brasil para sua
efetivação (SILVESTRE; SAMPAIO, 2020).
Desse modo, dentro do sistema educacional brasileiro, tendo como
parâmetro os ditames da Constituição Federal, é plenamente possível a
existência da forma de educação domiciliar como uma modalidade al-
ternativa de ensino, desde que regulamentada em lei e fiscalizada pelo
Estado, pois está em consonância com o princípio da liberdade de ensino
que consagra o conceito de que o essencial é a promoção da educação in-
dependentemente do caminho utilizado para isso. Logo, pais ou responsá-
veis devem poder optar pela modalidade de ensino dos seus filhos, visando
o desenvolvimento das faculdades da criança ou adolescente no decorrer
do aprendizado. Nesses termos explana Gurgel (2019, p. 27):

Reforçando essa determinação, a CF ainda enumera como princí-


pio do ensino a “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divul-
gar o pensamento, a arte e o saber” (art. 206, inc. II). Essa liber-
dade possibilita a existência não apenas da educação tradicional,
centralizada na instituição escolar, mas também de modalidades
alternativas de educação, o que sem dúvida inclui a chamada edu-
cação domiciliar.

Assim, o direito à educação no Brasil é fundamentado em princípios


como o da liberdade de ensino, que estabelecem um sistema educacional
aberto, aceitando que formas alternativas de ensino possam coexistir, ra-
zão pela qual os princípios constitucionais da seara educacional admitem
a existência de uma modalidade de ensino domiciliar, situação na qual a

175
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

família é o principal agente responsável pela educação da criança ou ado-


lescente (GURGEL, 2019).
Também, a educação em escolas públicas lida necessariamente com
os interesses das autoridades constituídas no poder, cuja educação pode ser
utilizada como forma de legitimação da ideologia expressada pelas autori-
dades constituídas, mais um motivo pelo qual em sociedades democráticas
é consagrada a liberdade de ensino, permitindo uma abertura do âmbito
educacional para diversas formas de aprendizado (GURGEL, 2019).
Dessa forma, sabe-se do inegável papel do princípio da liberdade de
ensino na promoção do direito à educação no Brasil numa dinâmica de
efetivação dos ditames previstos na Constituição Federal, portanto, trata-
-se de um princípio que admite a existência de outras formas de aprender
dentro do sistema educacional, o que torna a modalidade de ensino domi-
ciliar compatível com os valores constitucionais.
De outra forma, o princípio da autonomia familiar decorre do papel
atribuído à família como base da sociedade na Constituição e seu papel
elementar na construção do direito à educação, de forma que admite que
pais ou responsáveis optem pela modalidade de ensino mais adequada à
visão da família para a educação de crianças e adolescentes, conforme le-
ciona Santos (2018, p. 110):

O ensino domiciliar não se presta a desmerecer o potencial da es-


cola e todos os seus méritos, tampouco a obscurecer a atenção que
a sociedade e o poder público devem dispensar a ela. Afirma-se,
diferentemente disso, como mais uma possibilidade, e requerem a
legitimidade de ter reconhecido um verdadeiro exercício da auto-
nomia da família em prol de seus interesses.

Dessa forma, o ensino domiciliar é uma demanda de famílias cujo


interesse é fornecer a mais integral educação aos seus filhos, tratando-se
de uma modalidade alternativa de ensino capaz de produzir resultados
satisfatórios no âmbito educacional, isto é, de desenvolver as potenciali-
dades das crianças e adolescentes. Além disso, encontra sua legitimidade
na promoção do direito à educação, situação na qual é respeitada a auto-

176
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

nomia familiar para escolher a melhor modalidade de ensino para os filhos


(SANTOS, 2018).
Trata-se, então, de abrir o sistema educacional para formas alternati-
vas de ensino como uma opção de reduzir o papel e a importância da esco-
la, situação em que a família tem prioridade na educação em detrimento
da ingerência estatal, buscando a difusão do conhecimento seja na moda-
lidade de ensino no lar ou no ambiente escolar. À vista disso, o princípio
da autonomia familiar é inerente ao papel de centralidade consagrado na
Constituição Federal em relação à família como instituição social (SAN-
TOS, 2018).
Nessa linha de pensamento, a modalidade de ensino domiciliar está
em consonância com o papel de base da sociedade atribuído à família em
âmbito constitucional e de acordo com as responsabilidades na seara do
direito educacional, motivo pelo qual pais ou responsáveis, ao optarem
por essa modalidade, estão exercendo o princípio da autonomia familiar
e, dentro dos parâmetros constitucionais, visam cumprir as funções da
educação de pleno desenvolvimento das potencialidades do indivíduo e
sua preparação para a vida em sociedade.
Em suma, os princípios constitucionais da liberdade de ensino e da
autonomia familiar viabilizam a existência de um sistema educacional
voltado para a diversidade de métodos de ensino, com reconhecimento
da importância do papel da família no âmbito educacional, valores estes
consagrados pelo legislador constituinte na Constituição Cidadã. Logo,
a dinâmica do direito à educação dentro do ordenamento jurídico, em
observância às regras e princípios constitucionais, admite a existência do
ensino domiciliar como modalidade alternativa de ensino e constitucio-
nal, cuja função não é diminuir ou reduzir o papel da escola, mas oferecer
outras formas de ensino capazes de efetivar as funções da educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os textos constitucionais de vertente neoconstitucionalista consa-


gram princípios trazendo postulados éticos e com força normativa para
irradiar efeitos práticos na ordem jurídica, isto é, capazes de garantir os
direitos fundamentais de todo e qualquer indivíduo. Logo, a Constituição

177
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Cidadã elencou uma série de princípios para fundamentar o direito social


à educação no Brasil.
Assim, o ensino domiciliar é uma modalidade alternativa de ensino
na qual os pais ou responsáveis assumem papel central e o Estado o de
agente fiscalizador, a fim de garantir que os direitos e garantias de crianças
e adolescentes, na condição de pessoas em desenvolvimento de suas capa-
cidades físicas e psicológicas, sejam assegurados.
Dessa forma, o texto constitucional criou um sistema educacional
aberto, no qual a escola segue exercendo um papel importante, mas, ao
mesmo tempo, abre caminho para modalidades alternativas de ensino ca-
pazes de cumprir os princípios e regras constitucionais do direito à educa-
ção, consagrando a liberdade de ensino e autonomia familiar.
Em suma, não existe proibição na Constituição de 1988 e em outras
legislações para a existência de modalidades alternativas de ensino, desde
que privilegiado o papel da família no âmbito educacional e, diante de
princípios voltados a um parâmetro de liberdade na área da educação, é
plenamente possível adotar uma modalidade como o ensino domiciliar
no sistema educacional brasileiro, sendo garantido ao Estado o exercício
do seu papel fiscalizador com vistas à assegurar direitos e garantias funda-
mentais.

REFERÊNCIAS

BARROSO, L. R. Curso de Direito Constitucional Contemporâ-


neo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9.
Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

BERNARDES, C. M. Ensino domiciliar como direito-dever fun-


damental à educação: conformação deôntico-axiológica dos seus
aspectos normativos e principiológicos. 2017. Dissertação (Mestrado
em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Itaúna, Itaúna,
2017. Disponível em: https://www.aned.org.br/index.php/conhe-
ca-educacao-domiciliar/trabalhos-academicos. Acesso em: 20 abr.
2023.

178
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Cons-
tituicao/ Constituiçao.htm. Acesso em: 1 mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Di-


retrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da
República, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 1 mar. 2023.

COSTA, J. L. S. Violação de garantias constitucionais com a proi-


bição do homeschooling no Brasil. 2019. Trabalho de Conclusão
de Curso (Bacharelado em Direito) – Faculdades Doctum de Cara-
tinga, Caratinga, 2019. Disponível em: https://dspace.doctum.edu.
br/handle/123456789/1964. Acesso em: 10 abr. 2023.

GURGEL, G. P. O direito a optar pela educação domiciliar. 2019.


Monografia (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Uni-
versidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2019. Disponível em: https://
repositorio.ufc.br/handle/riufc/49296. Acesso em: 3 mar. 2023.

MACHADO, C. M. O direito ao ensino em casa no Brasil. 2008.


Monografia (Bacharelado em Direito) – Centro de Ciências Jurídi-
cas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2008.
Disponível em: https://www.aned.org.br/index.php/conheca-e-
ducacao-domiciliar/trabalhos-academicos. Acesso em: 20 de abril
2023.

MOREIRA, A. M. F. O direito à educação domiciliar. Brasília: Edi-


tora Monergismo, 2017.

ROTHBARD, M. N. Educação: livre e obrigatória. São Paulo: Institu-


to Ludwig Von Mises Brasil, 2013.

SANTOS, A. K. M. O reconhecimento do ensino domiciliar no


Brasil como efetivação do direito à educação. 2018. Trabalho
de Conclusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Faculdade de

179
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Direito de Vitória, Vitória, 2018. Disponível em: http://repositorio.


fdv.br:8080/handle/fdv/325?locale=es. Acesso em: 10 abr. 2023.

SARMENTO, D. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed.


Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2010.

SILVESTRE, A. C. F.; SAMPAIO, Y. A. Educação domiciliar: Uma al-


ternativa para efetivação do direito à educação na sociedade brasilei-
ra. Ratio Juris, [Pouso Alegre], v. 3, n. 2, p. 87-109, jul./dez. 2020.
Disponível em: https://www.fdsm.edu.br/revistagraduacao/index.
php/revistagraduacao/article/view/107. Acesso em: 1 mar. 2023.

TAVARES, A. R. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo:


Saraiva Educação, 2020.

WADDINGTON, A. C. F. Constitucionalidade da educação domi-


ciliar – (homeschooling) – no Brasil. 2019. Trabalho de Con-
clusão de Curso (Bacharelado em Direito) – Escola de Direito FGV,
Fundação Getúlio Vargas, Rio de janeiro, 2019.

180
A ALOCAÇÃO DE RISCOS NAS
CONTRATAÇÕES PÚBLICAS: ANÁLISE
DA MATRIZ DE RISCO À LUZ DA LEI
Nº 14.133/2021
Érika Capella Fernandes Sfeir17
Jurema Maciel Saldanha18
Monique Previero de Souza19
Kelvin Nunes Pavaneli20

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 determina em seu art. 37, XXI que to-
dos os contratos administrativos devem ser precedidos de licitação pública.
Em nível infraconstitucional, a Lei nº 8.666/1993 tratou do procedimento
da licitação, seguida por outras leis específicas, como a Lei do Pregão e Lei
do Regime Diferenciado da Contratação. Contudo, em 2021, veio a Nova
Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021), a qual

17 Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Mestre em Direito pela UNESP. Professora de Direito Administrativo da UNISO. Procuradora
do Município de Sorocaba.
18 Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Sorocaba – UNISO.
19 Graduanda do Curso de Direito da Universidade de Sorocaba – UNISO.
20 Graduando do Curso de Direito da Universidade de Sorocaba – UNISO.

181
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

absorveu as antigas Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e nº 12.462/2011,


trazendo uma nova regulamentação sobre o procedimento de licitar, uni-
ficando e modernizando os antigos diplomas.
Dentre as novidades trazidas pela nova lei, destaca-se o novo trata-
mento dado à alocação de riscos em matéria de contratações públicas.
Embora já existisse um modelo de alocação de riscos na antiga legislação,
era menos flexível que na atual.
Em linhas gerais, a matriz de risco consiste em uma cláusula especí-
fica constante do edital e do contrato, que contemplará a distribuição dos
riscos entre as partes. Assim, essa cláusula define possíveis eventos super-
venientes à assinatura do contrato que possam impactar em seu equilíbrio
econômico-financeiro, além de quem irá arcar com o risco.
Nesse contexto, o presente trabalho buscou analisar a importância da
matriz de risco nas contratações públicas, em especial quanto ao novo tra-
tamento conferido a esta matéria pela Nova Lei de Licitações e Contratos
Administrativos.
Primeiramente, o artigo aborda, em linhas gerais, o advento da Nova
Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Após, passa-se à análise das
chamadas áleas contratuais e da importância em distribuir bem os riscos
nas contratações públicas. Em seguida, é analisado o significado da cláu-
sula contratual de matriz de risco na Lei nº 14.133/2021. Finalmente, pas-
sa-se à reflexão de algumas dificuldades e desafios para a utilização deste
instituto em nosso ordenamento jurídico.

1. ASPECTOS GERAIS DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E


CONTRATOS ADMINISTRATIVOS

A Lei nº 14.133/2021, também conhecida como Nova Lei de Licita-


ções, surgiu com a proposta de inovar e modernizar o ato de licitar da Ad-
ministração Pública. Essa lei foi sancionada e publicada em 1 de abril de
2021, tendo como seu projeto de origem o PL nº 4.253/2020, que foi apro-
vado em dezembro de 2020 pelo Senado Federal, mas que, pela dificuldade
intrincada da matéria, foi sancionado em março do ano subsequente.
O principal objetivo do novo diploma consiste em trazer maior trans-
parência e lisura aos processos licitatórios, além de trazer um olhar mais

182
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

empático ao agente privado, para atraí-lo nas contratações com a Admi-


nistração. Foram unificadas as seguintes leis: Lei de Licitações (Lei nº
8.666, de 21 de junho de 1993), Lei do Pregão (Lei nº 10.520, de 17 de
julho de 2002) e Lei do Regime Diferenciado de Contratações Públicas –
RDC (Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011).
A Lei nº 14.133/2021 entrou em vigor na data da sua publicação (1
de abril de 2021), mas permitiu a aplicação das antigas leis concomitante-
mente pelo prazo de dois anos. Dispõe o artigo 191 da nova lei:

Art. 191. Até o decurso do prazo de que trata o inciso II do caput do


art. 193, a Administração poderá optar por licitar ou contratar dire-
tamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no
referido inciso, e a opção escolhida deverá ser indicada expressa-
mente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta,
vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido
inciso. (BRASIL, 2021)

Entretanto, com o advento da Medida Provisória nº 1167/2023, foi


prorrogada a vigência da antiga legislação até 30 de dezembro de 2023.
Nesse período, a autoridade pode optar por qual regime utilizar, podendo
preferir ora a nova lei, ora as antigas, mas nunca a mescla de duas, sendo
vedada a aplicação combinada das normas.
O novo marco legal das licitações e contratos acaba incorporando al-
guns institutos com ótima aceitação, como por exemplo a inversão entre
as fases de classificação e habilitação, e a hipótese da fase recursal única
entre as fases da licitação, o que traz mais celeridade ao certame. No que
diz respeito às modalidades de licitação, a nova lei extingue a tomada de
preços e o convite e cria a do diálogo competitivo.
A Nova Lei de Licitações faz referência à LINDB (Lei nº 13.655/2018)
e, em seu art. 5º, demonstra a preocupação com os princípios da segurança
e eficiência, dentre outros:

Art. 5º. Na aplicação desta Lei, serão observados os princípios


da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade,
da eficiência, do interesse público, da probidade administrativa,

183
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

da igualdade, do planejamento, da transparência, da eficácia, da


segregação de funções, da motivação, da vinculação ao edital, do
julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da
competitividade, da proporcionalidade, da celeridade, da econo-
micidade e do desenvolvimento nacional sustentável, assim como
as disposições do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942
(Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). (BRASIL,
2021).

Assim, a nova lei traz não apenas uma reforma do processo licitatório,
mas um novo sistema a ser assentado, segundo Rocha, Vanin e Figueiredo
(2021, p. 25):

É preciso reiterar que: a) a Lei no 14.133, de 2021, não é uma re-


forma do sistema licitatório, mas sim um novo sistema a ser insti-
tuído; b) a finalidade declarada da nova Lei é dar mais flexibilidade
para os gestores, a fim de encontrar critérios para a seleção da me-
lhor proposta (algo em que a Lei no 8.666, de 1993, flagrantemen-
te falhou, conforme dito), e isso deve ser levado em conta pelos
órgãos de controle ao evitarem substituir o seu critério de melhor
proposta por aquele adotado pelo gestor “na ponta”.

Com a inclusão no texto dos princípios da eficiência, da eficácia, da


economicidade e da celeridade (art. 5° da Lei 14.133/2021), podemos
notar uma tentativa de diminuir a burocracia e a busca por uma menor
complexidade e morosidade dos atos licitatórios, saindo assim de uma fis-
calização voltada apenas para o procedimento e caminhando rumo a lici-
tações que busquem mais o resultado.
Será então essencial e forçoso que a Administração Pública se des-
prenda da antiga maneira de realizar licitações e rume ao novo, para que
assim a nova lei possa ser efetivamente aplicada, alcançando todos os obje-
tivos do novo diploma. Nesse sentido:

De toda forma, na presença ou na ausência dessas práticas, é


imprescindível, antes de tudo, que a Administração Pública

184
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

se desgarre dos vícios que marcaram a aplicação da velha sis-


temática, e entenda estar diante de um novo e diverso regime
jurídico das licitações e contratações públicas, que, cedo ou
tarde, procederá à completa substituição ao antigo – por mais
que este teime em resistir. (ROCHA; VANIN; FIGUEIRE-
DO, 2021, p. 31).

2. ÁLEAS CONTRATUAIS E A DISTRIBUIÇÃO DE RISCOS


NAS CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

Toda atividade privada envolve seus riscos, de modo que, ao contra-


tar com a Administração, o empresário já está ciente dessa possibilidade.
Porém, há alguns riscos previsíveis (álea ordinária) e riscos de eventos im-
previsíveis (álea extraordinária), que oneram demasiado o contrato. A esse
respeito, leciona Irene Nohara (2022, p. 404):

Álea é “acontecimento futuro que influi na economia do contra-


to”. O termo álea advém do latim alea, que significa sorte ou risco.
Daí também se origina a expressão alea jacta est, que significa a sorte
está lançada (ou os dados estão lançados). O radical dá origem à pa-
lavra aleatorius (aleatório). Trata-se do risco que o empresário corre
ao contratar com a Administração.

A álea ordinária se refere aos eventos desfavoráveis ou previsíveis na


celebração do contrato, enquanto a extraordinária diz respeito aos even-
tos imprevisíveis ou inevitáveis que repercutem no contrato, com gran-
de onerosidade ao contratado, como ocorre em crises econômicas, por
exemplo, conturbando a economia do contrato.
Em contratações no âmbito da Administração Pública, é muito im-
portante antecipar e prever os possíveis riscos que comprometam a execu-
ção do objeto proposto, de modo a realizar ajustes, adotar procedimentos
e controles que os impeçam ou minimizem.
Devem ser observados os eventos futuros e incertos capazes de im-
pactar, de forma negativa, a execução do contrato administrativo, mensu-
rando os riscos de cada evento, como seus respectivos graus de incidência,

185
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

equalizando as responsabilidades e o ônus financeiro entre as partes, de


acordo com as respectivas capacidades.
Com efeito, a análise de riscos em uma contratação pública é de sig-
nificativa importância, pois permite a identificação, a avaliação e o geren-
ciamentos dos riscos relacionados à contratação. Tal previsão encontra-se
em diversos diplomas legislativos.
Por exemplo, a Lei nº 11.079/2004, Lei das Parcerias Público-Priva-
das (PPPs), no artigo 5º, III dispõe sobre a “repartição de riscos entre as
partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do príncipe
e álea econômica extraordinária.” O Regime Diferenciado de Contrata-
ções Públicas (RDC) – Lei nº 12.462/2011 – também prevê expressamen-
te a possibilidade de contemplar matriz de alocação de riscos, porém, é
obrigatória somente em casos de contratação integrada, em que a empresa
contratada fica responsável pelos projetos básico e executivo e por toda a
execução do objeto até sua entrega final (art. 9º, §5º).
No que diz respeito à Lei nº 13.303/2016 (Lei das Estatais), ela traz
a matriz de riscos como cláusula necessária em todo os contratos por ela
disciplinados (artigo 69, X). Ou seja, é inerente à toda contratação pública
ter uma alocação de responsabilidades. A Nova Lei de Licitações trouxe
essa exigência expressa em seu artigo 11, parágrafo único:

Artigo 11

Parágrafo único. A alta administração do órgão ou entidade é res-


ponsável pela governança das contratações e deve implementar
processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles in-
ternos, para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios
e os respectivos contratos, com o intuito de alcançar os objetivos
estabelecidos no caput deste artigo, promover um ambiente ínte-
gro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao plane-
jamento estratégico e às leis orçamentárias e promover eficiência,
efetividade e eficácia em suas contratações.

Portanto, a ideia de “alocação de responsabilidades” é obrigatória


em todo contrato administrativo. Quanto maior for o risco para os
agentes privados, maior será o custo para a Administração, o que, con-

186
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

sequentemente, será repassado aos cidadãos. Além disso, um contrato


que envolve demasiados riscos para o particular pode afastar licitantes
sérios da licitação. Daí a importância de alocar bem os riscos no pro-
cesso licitatório.
Nas palavras de Edcarlos Alves Lima: “a distribuição dos riscos even-
tuais entre as partes é de suma relevância para que a Administração Pública
não se torne a garantidora universal das consequências advindas de even-
tos supervenientes e imprevisíveis” (LIMA, 2022).
Além da exigência de que todo contrato traga uma “alocação de res-
ponsabilidades” (gestão de riscos), que lhe é inerente, a nova lei trouxe
expressamente a possibilidade de uma “matriz de risco” nos contratos ad-
ministrativos.
A matriz de riscos é uma cláusula contratual definidora dos riscos e
responsabilidades entre as partes, configurando-se como uma opção mui-
to importante para a segurança jurídica dos contratos administrativos, de
modo a trazer maior eficiência na prevenção de litígios, propiciando, in-
clusive, uma maior qualidade nas contratações públicas. Além disso, tem
um duplo benefício:

A previsão da matriz de riscos como cláusula contratual propor-


ciona efeitos benéficos internos e externos ao contrato. Isso porque
a matriz contorna situações de insegurança, gerando um cenário
favorável para ambas as partes: 1) ao ente particular, que terá maior
garantia do retorno dos seus investimentos em um ambiente eco-
nomicamente equilibrado; e, ao mesmo tempo, 2) à Administra-
ção Pública, que assegurará a continuidade da prestação de serviços
públicos, de abastecimento e de desenvolvimento de projetos rele-
vantes para o desenvolvimento nacional. (CAMPOS; COELHO;
FOLLADOR, 2021).

Assim, esse instituto resguarda os interesses da Administração, iden-


tificando riscos que poderiam prejudicar a execução do objeto contratual,
bem como resguarda os interesses do agente privado, na tentativa de atraí-
-lo para as contratações públicas.

187
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

3. ANÁLISE DA MATRIZ DE RISCOS NAS


CONTRATAÇÕES PÚBLICAS

A Lei nº 14.133/ 2021 trouxe várias inovações na seara de licitações e


contratos administrativos, mas uma, em particular, vem chamando aten-
ção, pois se trata de uma ferramenta capaz de mitigar ou eliminar os riscos
que envolvem as partes presentes em contratos realizados com a Adminis-
tração Pública, a chamada matriz de riscos.
Segundo o artigo 6º, inciso XXVII, da Lei nº 14.133/2021, matriz de
riscos é uma “cláusula contratual definidora de riscos e de responsabilidades
entre as partes e caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial
do contrato, em termos de ônus financeiro decorrente de eventos superve-
nientes à contratação.” Essa cláusula define possíveis eventos supervenientes
à assinatura do contrato que possam impactar em seu equilíbrio econômi-
co-financeiro, e define quem será a parte responsável por arcar com o risco.
Na modelagem contratual, portanto, a matriz de riscos deve contemplar a
definição das partes responsáveis por cada risco previsto.
Essa metodologia foi desenvolvida com base principalmente no sis-
tema jurídico da Common Law, que reconhece maior liberdade de nego-
ciações de cláusulas contratuais. Em países de tradição anglo-americana,
os contratos são negociados de forma mais minuciosa e tendem a respei-
tar a autonomia na criação de cláusulas, inclusive aquelas relacionadas
à divisão de riscos, contrário ao sistema inspirado na tradição romano-
-germânica, em que é atribuída ao Judiciário a faculdade de equiparar
os acordos contratuais, em um sistema de maior controle contratual e
revisão da equidade.
Assim, a matriz de riscos é atualmente uma ferramenta importante e
que vem ganhando notoriedade na gestão de contratos públicos, contri-
buindo para a transparência, a eficiência e a efetividade das contratações
realizadas pela Administração Pública. De forma gradual, o ordenamento
jurídico tem aderido à mecanismos de previsão de riscos, o que é muito
positivo, já que assim é possível evitar as revisões contratuais ou diminuí-
-las e, consequentemente, contribuir para que o processo seja mais seguro.
Segundo leciona a professora Irene Nohara (2022, p. 412):

188
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A matriz de riscos deve conter, no mínimo, as seguintes informa-


ções: (a) listagem dos possíveis eventos supervenientes à assinatura
do contrato que possam causar impacto em seu equilíbrio econô-
mico-financeiro e previsão de eventual necessidade de prolação de
termo aditivo por ocasião de sua ocorrência; (b) no caso de obri-
gação de resultado, estabelecimento das frações do objeto com re-
lação às quais haverá liberdade para os contratados inovarem; e (c)
no caso de obrigações de meio, estabelecimento preciso das frações
do objeto com relação às quais não haverá liberdade para os con-
tratados inovarem.

Logo, a matriz de risco determina parâmetros de responsabilização,


isto é, quem irá assumir o ônus caso ocorra o “sinistro”.
Uma vez que estipularam essa cláusula, as partes concordam em não
solicitar um reequilíbrio contratual se o risco em questão tiver sido previs-
to e devidamente alocado na matriz de riscos. As partes renunciam a pedi-
dos de restabelecimento de equilíbrio contratual, salvo nos casos do artigo
103, §5º; situações em que a Administração fizer alterações unilaterais no
contrato; ou situações em que ocorram eventos imprevisíveis e externos,
como mudanças na legislação tributária que resultem em aumento ou re-
dução de tributos (NOHARA, 2021, p. 422).
Importante salientar que o art. 22 da Lei nº 14.133/2021 dispõe que a
matriz de risco é “facultativa”, é desejável, mas nem sempre obrigatória,
pois talvez não seja preciso fazê-la em todas as situações, sobretudo se
pensarmos em pequenos municípios. Mas talvez seja interessante para os
maiores, ou para contratações mais complexas, em outras palavras, depen-
de do objeto da contratação, dos valores e do local.
Entretanto, ainda é um grande desafio prever na matriz de riscos
quais são os ditos fatos imprevisíveis que podem vir a ocorrer. Não é pos-
sível prever todos os riscos aos quais um contrato pode estar sujeito, uma
vez que existem inúmeras possibilidades de eventos indesejados. A este
respeito, ensina Celso Antônio Bandeira de Mello (2021, p. 634):

Distribuídos os riscos entre as partes por meio da denominada ma-


triz de risco, ela servirá de parâmetro para aferição do equilíbrio

189
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

econômico-financeiro. Entretanto, como a capacidade de prever


os riscos é finita e limitada, a mesma incompletude estará presente
na matriz de risco. Assim, a matriz de risco poderá prever muitas
circunstâncias que desequilibrarão a relação econômico-financei-
ra originalmente estabelecida, mas, induvidosamente, não poderá
prever todas.

Segundo entrevista com Rodrigo Pironti Aguirre de Castro, primei-


ramente, é importante considerar que a elaboração de uma matriz de ris-
cos significa priorizar certos riscos em detrimento de outros. Por isso, a
responsabilidade de realizar essa atividade deve estar nas mãos de um Co-
mitê de Governança, Riscos e Controles ou da alta administração do ente,
sempre observando o dever de justificação. Em segundo plano, ao criar a
matriz, é essencial que os responsáveis identifiquem os riscos com maior
probabilidade de ocorrência e impacto, estabelecendo ações necessárias
para mitigá-los ou tratá-los e definindo os responsáveis por essas ações.
Também é válido destacar que uma matriz de riscos nunca será exausti-
va e, se essa for a pretensão, ela perderá sua função, já que seu objetivo é
racionalizar a atuação dos membros da organização (NOHARA, 2017).
Dessa forma, a matriz de riscos contribui para o sucesso do contrato
e para a construção de uma relação mais transparente e efetiva entre as
partes envolvidas. Portanto, tem uma origem gerencial, pois sua finali-
dade é fornecer informações e ferramentas para que os gestores possam
tomar decisões informadas e mitigar os riscos associados às contratações
públicas. A sua utilização permite uma gestão mais eficiente e segura dos
recursos públicos, reduzindo a possibilidade de ocorrência de irregulari-
dades e prejuízos à Administração Pública.

4. DESAFIOS A SEREM ENFRENTADOS PARA


IMPLEMENTAÇÃO DA MATRIZ DE RISCOS

Conforme visto, não devemos deixar os contratos administrativos ao


acaso, ainda mais depois do cenário da pandemia, que refletiu fortemente
nas contratações públicas. Contudo, a implementação da matriz de ris-
cos no processo pode representar um grande desafio para as instituições

190
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

governamentais, uma vez que exige uma mudança cultural na forma de


conduzir os processos de contratação e uma maior profissionalização da
gestão pública.
Dentre os principais desafios enfrentados na implementação da ma-
triz de riscos na contratação pública, pode-se mencionar a importância da
capacitação dos servidores públicos envolvidos, que é fundamental para
que possam compreender os conceitos, metodologias e técnicas envolvi-
das na análise e gestão de riscos.
Também é importante o envolvimento dos gestores, isto é, que eles
estejam envolvidos no processo de elaboração da matriz de risco para que
possam compreender a importância da gestão de riscos e da transparência
na contratação pública. Além disso, a elaboração da matriz requer a dis-
ponibilidade de recursos financeiros, humanos e tecnológicos adequados,
o que pode ser um desafio em um contexto de restrição orçamentária dos
entes públicos.
Somado a isso, é essencial o monitoramento e avaliação. A elaboração
da matriz de riscos não é um fim em si mesmo, mas uma ferramenta para
gestão de riscos na contratação pública. Por isso, é importante que seja
feito um monitoramento e avaliação constantes dos riscos identificados,
das medidas de mitigação adotadas e dos resultados alcançados.
Outra questão tormentosa consiste em encontrar critérios adequados
para a Administração alocar bem os riscos. É preciso que isso não seja feito
de modo arbitrário, mas que, no momento de alocar os riscos, a Adminis-
tração demonstre a racionalidade por trás da sua escolha.
Diante disso, indaga-se: quem deverá arcar com o risco contratual?
É preciso verificar qual é a parte com mais condições financeiras de fazer
frente a ele. Deve ser dada a solução economicamente mais eficiente. A
Administração não deve alocar de modo arbitrário, mas sim dar a solução
mais adequada e economicamente eficiente, sempre primando pela supre-
macia do interesse público.

CONCLUSÕES

A alocação eficiente de riscos em uma contratação pública é de suma


importância, pois permite a identificação, a avaliação e o gerenciamento

191
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

dos riscos relacionados à contratação. Assim, evita transtornos para a Ad-


ministração Pública e não compromete a execução do objeto contratual,
ao mesmo tempo em que se torna mais atraente aos agentes privados que
desejam contratar com o Poder Público.
A antiga lei de licitações e contratos tinha um modelo mais congelado,
pois distribuía os riscos ordinários (áleas ordinárias) para o particular e os
riscos extraordinários (áleas extraordinárias) para a Administração Pública.
Contudo, com o advento da nova lei, existe a possibilidade de que o ente
público estabeleça uma cláusula contratual prevendo possíveis eventos su-
pervenientes à assinatura do contrato e definindo quem arcará com o risco.
A implementação da matriz de riscos na contratação pública representa
um desafio, mas também uma oportunidade para que as instituições go-
vernamentais possam aprimorar a gestão pública e garantir a eficiência, a
eficácia e a transparência, princípios que regem as contratações realizadas.
Entre os possíveis desafios da matriz de riscos, pode-se citar: dificul-
dade de definir quais os fatos imprevisíveis que podem vir a ocorrer; desa-
fios de encontrar critérios mais eficientes e racionais para a Administração
distribuir os riscos; importância da capacitação dos servidores; envolvi-
mento dos gestores; disponibilidade de recursos financeiros, humanos e
tecnológicos adequados; e monitoramento e avaliação.
Embora a matriz de riscos seja uma novidade que, aos poucos, tem ga-
nhado seu espaço, é importante a manutenção do ensino contínuo para que
com mais rapidez e efetividade ela se estabeleça nas contratações públicas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1 de abril de 2021. Lei de licitações e con-


tratos administrativos. Brasília, DF: Presidência da República, 2021.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso: 16 abr. 2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 16 abr. 2023.

192
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

CAMPOS, Mariana; COELHO, Fernanda; FOLLADOR, Gabriel.


Matriz de riscos na nova Lei de Licitações pode dar previsibilidade às
contratações. Consultor Jurídico, São Paulo, 23 mar. 2021. Dispo-
nível em: https://www.conjur.com.br/2021-mar-23/opiniao-matri-
z-riscos-lei-licitacoes. Acesso em: 18 abr. 2023.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo:


Editora Forense, 2019.

LIMA, Edcarlos Alves. O risco mais importante a ser mitigado no pla-


nejamento das contratações públicas. Consultor Jurídico, São
Paulo, 19 jul. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2022-jul-19/edcarlos-alves-lima-matriz-riscos-lei-14133. Acesso
em: 16 abr. 2023.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrati-


vo. 35. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2021.

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Direito Administrativo. 11ª ed. Ba-


rueri: Atlas, 2022.

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Nova Lei de Licitações e Contratos


comparada. São Paulo: Thomsom Reuters Brasil, 2021.

NOHARA, Irene Patrícia Diom. Direito Administrativo. Matriz de ris-


co e JoGov: entrevista com Rodrigo Pironti Aguirre de Cas-
tro, 10.11.2017. Disponível em: < https://direitoadm.com.br/matri-
z-de-riscos-e-jogogov/ >. Acesso em 16/04/2023.

PEREIRA, Gabriel Senra da Cunha. A matriz de riscos na nova Lei de


Licitações e Contratos Administrativos. Consultor Jurídico, São
Paulo, 16 jul. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/
2021-jul-16/gabriel-pereira-matriz-riscos-lei-licitacoes. Acesso em:
17 abr. 2023.

ROCHA, Wesley; VANIN, Fábio S.; FIGUEIREDO, Pedro Henrique


Poli de. A Nova Lei de Licitações. Portugal: Grupo Almedina,
2021. E-book.

193
O FENÔMENO DA MUTAÇÃO
CONSTITUCIONAL E SUAS
REPERCUSSÕES NO DIREITO21
Ricardo Ribeiro de Souza22

INTRODUÇÃO

O artigo aborda o fenômeno da mutação constitucional e suas re-


percussões no ordenamento jurídico brasileiro. Inicialmente, realizou-se
uma breve análise histórica, sua evolução, eficácia e os seus reflexos na in-
terpretação do texto constitucional. Na sequência, analisou-se casos con-
cretos que passaram pela mutação constitucional, tendo como foco central
a discrepância na aplicação do fenômeno somente em casos judicializados.
Posteriormente, passou-se à análise de casos em que houve mutação cons-
titucional sem que tenha ocorrido a judicialização.
A mutação constitucional advém da evolução não só dos direitos, mas
da sociedade em geral. De forma conjunta nasce a necessidade de ade-
quação da interpretação da norma jurídica com os desígnios populares.
O estudo mostrou que a interpretação do texto constitucional está sob o

21 Orientador: Alderico Kleber de Borba – Mestre em Direiro-FUMEC. Pós-graduado em Di-


reito e Processo Constitucional na ABDCONST. Pós-graduado em Direito Processual na PUC/
MG. Professor do CESG. Advogado.
22 Graduado em Direito no CESG.

194
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

domínio popular, ou seja, de todos aqueles que vivem sob o pálio da égide
da Constituição Federal. É por isso que na maioria das vezes, relevantes
os casos do Direito brasileiro que são julgados na corte superior, ocorre
incontinenti um grande clamor popular pelo qual as pessoas sofrem o fenô-
meno da mutação constitucional.
Indubitavelmente, diante de tal reverberação, tais casos podem eclo-
dir eventos entre outros fenômenos de grande alçada de natureza consti-
tucional ou social, como por exemplo o “Blacklash Constitucional” ou o
“Hiato Constitucional”.
Movimentos sociais, mídias e personalidades das mais diversas deba-
teram sobre a situação de julgados decorrentes em voga. Na grande maio-
ria, não se tem cognição jurídica sobre o fenômeno constitucional da her-
menêutica jurídica, da mutação constitucional, da mudança interpretativa
da norma, que na maioria das vezes são casos concretos que chegam ao
Supremo Tribunal Federal através de um “writ” constitucional, ou seja,
do próprio direito que está inerente ao homem. Logo após a mudança
interpretativa, aplica-se o efeito erga omnes no controle de constitucionali-
dade do poder difuso. O tema então passa a ser discutido por meses entre
as mídias e sociedade em geral.
O Direito está em constante evolução, a mutação constitucional se
apresenta como um dos instrumentos jurídicos capazes de assim contri-
buir com essa evolução jurídico-social, ocorrendo, assim, esse fenômeno
visa a ampliar e receber os desígnios da sociedade no todo. Em geral, a
mutação constitucional gera um grande reflexo não só no ordenamento
jurídico brasileiro, mas na sociedade brasileira em geral. É um fenômeno
complexo e inevitável no Direito Constitucional contemporâneo e ocorre
quando as normas constitucionais são alteradas de forma não formal (sem
alteração de texto), mas por meio da prática de mudanças na interpretação
que advém dos tribunais.
A mutação pode ser uma ferramenta para adaptar a Constituição às
mudanças sociais, bem como pode ser utilizada para contornar o processo
legislativo formal. Entretanto, é importante frisar a necessidade de ela ser
carreada por princípios sólidos e democráticos, para garantir que as mu-
danças constitucionais sejam legítimas e respeitem os valores fundamen-
tais da ordem constitucional.

195
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Com o propósito de estudar melhor o assunto, a pesquisa se deu por


intermédio de exploração da doutrina e da legislação vigente que versam
a respeito dessa temática, além de trabalhos e artigos científicos que ex-
ploraram o tema dos fenômenos da mutação constitucional ocorridos no
Direito brasileiro.
A metodologia utilizada na elaboração dessa pesquisa foi método de-
dutivo, o qual aborda o tema a partir de seus aspectos gerais até compreen-
der os aspectos específicos, buscando responder o problema exposto, isto
é, a partir do procedimento legal vigente, dos aspectos dos julgados, chega-
-se a conclusões a respeito da temática.
Buscou-se, ainda, explorar até que ponto o fenômeno da mutação
constitucional é constitucional, mostrar as antinomias jurídicas através de
julgados e se realmente há efeitos tanto na legislação quanto na sociedade
de forma geral.
Houve estudo de alguns pontos do Direito Constitucional, assim, o
segundo item é reservado a uma iniciação ao aspecto histórico do fenôme-
no da mutação constitucional. Na sequência, analisou-se casos concretos
de mutação constitucional, casos que foram ajuizados e chegaram até o
Supremo Tribunal Federal (STF), bem como casos em que houve muta-
ção constitucional sem que tenha ocorrido a judicialização; além de suas
características, aspectos próprios e aplicabilidade correta, segundo a lei e a
natureza do fenômeno, e os procedimentos.
No terceiro item passa-se a compreender os aspectos de colisão entre
a Constituição e a mutação constitucional, tal como aduz, por exemplo, o
cidadão como o verdadeiro detentor da interpretação da norma jurídica, e
não somente os tribunais. Também mostra que através de uma Constitui-
ção rígida e sob a regência de um controle de constitucionalidade, o meio
ideal de alteração de uma lei – o que de fato não seria necessário a mudança
de interpretação, ainda mais em casos complexos ou de alta complexidade –
seria pelo legislativo. Aduz que o fenômeno surgiu em decorrência de desi-
quilíbrios constitucionais, ausência do controle de constitucionalidade e fal-
ta dos mecanismos naturais que regem a mudança da norma constitucional.
Há, portanto, uma complexidade sobre o tema e uma divisão entre a
doutrina, por essa razão, este trabalho se mostra necessário e valioso, pois

196
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

norteia e discute que em um Estado Democrático de Direito, tal como o


Brasil, indubitavelmente é de grande relevância abordar um tema que é
corriqueiro não só no judiciário, mas na sociedade como um todo.

1. ASPECTO HISTÓRICO

Os primeiros estudos sobre o fenômeno da mudança da norma cons-


titucional foram analisados inicialmente pela Escola de Direito Público
Alemã, fundada no final do século XIX, para a qual todo o conteúdo da
norma constitucional deve ser conservado no seu próprio texto, manten-
do a sua rigidez original. As mudanças que seriam feitas o deveriam ser de
acordo com a própria formalidade normativa.
Os juristas alemães Georg Jellinek e Paul Laband, ambos interessa-
dos em estudar o fenômeno que ocorria no Direito Público ao tempo da
Constituição do Império Alemão de 1871, iniciaram as pesquisas a res-
peito do tema e foram os precursores do estudo do fenômeno da mutação
constitucional na história do direito, até aqui ainda chamada “mudança
constitucional”.
O termo “mutação constitucional”, verfassungswandlung, foi exposto
pela primeira vez em 1895, por Paul Laband, quando publicou o seu livro
Wandlungen der Deutschen Reichsverffasung. Georg Jellinek, outrossim, pu-
blicou seu livro sobre o tema jurídico Reforma y Mutación da la Constitución,
em 1906.
Segundo Georg Jellinek, a mutação constitucional ocorre quando a
interpretação da Constituição muda com o tempo para refletir as mudan-
ças na sociedade e nas atitudes políticas. O jurista argumentou que a mu-
dança é uma forma de garantir que a Constituição seja relevante e efetiva
ao longo do tempo. Enfatizou, ainda, que ela deve ser baseada em princí-
pios democráticos e no respeito aos direitos fundamentais, a fim de evitar
que o texto constitucional seja alterado de maneira arbitrária ou antide-
mocrática. Ao seu encontro, Paul Laband expõe que a Constituição é um
documento vivo que deve ser interpretado de acordo com as necessidades
e circunstâncias atuais, e que a mutação constitucional é uma parte natural
do processo de desenvolvimento constitucional (VILELLA, 2016).

197
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A hermenêutica constitucional está diretamente ligada aos intérpretes


da Constituição. No passado, a interpretação esteve somente sob domínio
de um grupo restrito de intérpretes da norma. A mutação é um fenômeno
jurídico, no qual altera-se semanticamente o texto de lei, no entanto não
tem previsão expressa no texto constitucional, ficando somente sob os do-
mínios dos intérpretes, os quais detêm de alvedrio para a sua interpretação.
Nesse sentido, Peter Häberle (2002) aborda que: “A teoria da interpreta-
ção constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação
de uma “sociedade fechada”.
Com a evolução do Direito, a interpretação constitucional é carreada
pela sociedade em geral, de modo aberto, participativo, sendo uma ques-
tão de justiça do processo social evolutivo. Portanto, todo aquele que vive
sob égide do manto da Constituição é indiretamente intérprete da norma
jurídica, fazendo parte do processo hermenêutico e social. Consolidan-
do uma democracia justa constitucional. Nesse sentido, preconiza Peter
Häberle (2002) que: “Os critérios de interpretação constitucional, hão de
ser tanto mais abertos, quanto mais pluralista for a sociedade.”
As Constituições rígidas, por exemplo, a Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil, quando promulgada, trouxe em seu texto o
mecanismo de alteração da norma jurídica, tratando-se do poder deri-
vado, o qual é amparado para tal ato constitucional. Os mecanismos são
previstos através da reforma constitucional, só se alterando por processo
próprio, formal de alteração, com requisitos específicos, como as emen-
das constitucionais.
Para José Afonso da Silva (1996): “Rígida é a Constituição somente
alterável mediante processos, solenidades e exigências formais especiais
diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou com-
plementares”. Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2011) aborda que:

A mutação constitucional consiste em uma alteração do signifi-


cado de determinada norma da Constituição, sem observância
do mecanismo constitucionalmente previsto para as emendas e,
além disso, sem que tenha havido qualquer modificação de seu
texto. Esse novo sentido ou alcance do mandamento constitu-
cional pode decorrer de uma mudança na realidade fática ou de

198
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

uma nova percepção do Direito, uma releitura do que deve ser


considerado ético ou justo.

Nessa esteira de análise jurídica, Uadi Lammego Bulos define o ter-


mo mutação constitucional como sendo um processo informal de mu-
dança da Constituição, por meio do qual são atribuídos novos sentidos,
conteúdos até então não ressaltados à letra da Lex Legum, quer através da
interpretação em suas diversas modalidades e métodos, quer por intermé-
dio da construção (construction), bem como dos usos e costumes constitu-
cionais (BULOS, 1997).
Dessa forma, a mutação constitucional ocorre pela evolução da socie-
dade, e a própria Constituição segue os desígnios dogmáticos da socieda-
de, pois, “uma Constituição jamais se exaure no momento de sua criação,
porquanto sofre o influxo de fatores sociológicos, políticos, econômicos,
culturais” (BULOS, 1997).

2. CASOS CONCRETOS DE APLICAÇÃO DA MUTAÇÃO


CONSTITUCIONAL

2.1. O CONCEITO DE CASA

Um caso clássico do fenômeno de mutação constitucional no Direito


brasileiro é o conceito de casa, que está previsto em nossa Constituição
Federal e é um direito fundamental, de primeira geração. De acordo com
o artigo 5º, inciso X, a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela
podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de fla-
grante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial.
O conceito de casa não é mais interpretado somente como “residên-
cia”, “domicílio”. Quando a Constituição foi promulgada, ele, de fato,
limitava-se a isso. Hoje, no entanto, a interpretação foi estendida, ligada
à plasticidade do direito, sendo possível interpretar “casa” como qualquer
local habitável de um cidadão, como, por exemplo, um quarto de hotel, o
local de trabalho, um motorhome, um trailer.

199
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

No julgamento do Habeas Corpus-RHC 90376, em 3 de abril de


2007, a segunda turma do Rio de Janeiro pacificou que o quarto de hotel
também deve ser entendido como domicílio e está amparado pela garantia
constitucional do Direito brasileiro. Nesse julgamento, o ministro relator
Celso de Mello destacou que a “proteção constitucional dispensada ao domicílio,
entende-se, dentre outros espaços privados o aposento ocupado de habitação coletiva
(como um simples quarto de hotel).”

2.2. ACESSO A MENSAGENS DE WHATSAPP SEM


AUTORIZAÇÃO JUDICIAL

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus-HC


168.052, decidiu que é ilícito o acesso a mensagens de WhatsApp sem au-
torização judicial, bem como posterior ingresso à residência após apreen-
são ilegal do celular. Acontece que a Constituição Federal, em seu artigo
5º, XII, aduz que é inviolável o sigilo das comunicações e dados das co-
municações telefônicas.
No julgamento em questão, a defesa de um paciente por tráfico pediu
a nulidade da ação penal com fundamento na ilicitude das provas obtidas,
mediante acesso a conversas registradas no aplicativo WhatsApp, a partir
da apreensão do celular e posterior ingresso em domicílio sem autorização
judicial. O ministro relator Gilmar Mendes defendeu a necessidade de
superação da jurisprudência firmada no HC 91.867/PA, no qual ela esta-
beleceu a impossibilidade da interpretação do art. 5º, XII, da Constituição
(SOARES, 2022).
Em seu voto no HC 168.052, Gilmar Mendes ponderou que não se
confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem,
inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do
artigo 5º, XII, da CF no sentido de proteção aos dados enquanto registro,
depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados
e não dos dados.

Quanto à prova obtida a partir dos dados dos aparelhos telefônicos


apreendidos, o eg. Tribunal de origem ressaltou que não há ile-
galidade, uma vez que não há necessidade de autorização judicial

200
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

está restrita à interpretação de comunicação em andamento que


não se confunde com o acesso aos dados armazenados ao apare-
lho telefônico. [...] Conforme o art 5º, Xll da CF, é inviolável o
sigilo das comunicações telefônicas e de dados, salvo por ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal. Por sua vez,
a inviolabilidade da vida privada e da intimidade é afirmada pelo
art. 5º, X, da Constituição Federal [...] O STF já declarou, em
inúmeros precedentes, a ilicitude de provas obtidas com a viola-
ção a esse direito fundamental. No MS-MC, o Ministro Celso de
Mello ressaltou que a garantia do art. 5º Xl, da CF/88 abrange: a)
qualquer compartimento habitado; b) qualquer aposento ocupado
de habitação coletiva; c) qualquer compartimento privado onde
alguém exerce profissão ou atividade (HC 168052, Relator(a):
GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 20/10/2020,
PROCESSO ELETRÔNICO DJe-284 DIVULG 01-12-2020
PUBLIC 02-12-2020).

2.3. MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL E LIBERDADE DE


EXPRESSÃO NO DIREITO ELEITORAL

O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em justificativa de combater a


desinformação durante as eleições federais de 2022, editou a Resolução nº
23.714, de 20 de outubro de 2022. O art. 4º desta dispõe que a produção
sistemática de desinformação, caracterizada pela publicação contumaz de
informações falsas ou descontextualizadas sobre o processo eleitoral, au-
toriza a determinação de suspensão temporária de perfis, contas ou canais
mantidos em mídias sociais, observados, quanto aos requisitos, prazos e
consequências, o disposto no art. 2º.
O conceito de desinformação é dúbio e indeterminado. Segundo o
dicionário Michaelis, desinformação é a ação de desinformar. Dados fal-
sos que induzem ao erro. Privação de conhecimento sobre determinado
assunto; ignorância.
O Procurador-Geral da República propôs Ação Direita de Incons-
titucionalidade com pedido de medida cautelar em face da Resolução nº

201
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

23.714 do TSE, aos fundamentos que a censura prévia, vedada constitu-


cionalmente, é o mais severo meio de restrição à liberdade de expressão.
Ocorre que a CRFB/88 aduz em seu art. 5º, IV e IX, a liberdade de
expressão independente de censura ou licença, manifestação do pensa-
mento e informação da imprensa e comunicação em geral, sendo tais dis-
positivos cláusulas pétreas. Já o art. 220, §§ 1º e 2º, aduz que a manifestação
do pensamento, a expressão de qualquer forma, processo ou veículo de
informação não sofreram restrição, que nenhuma lei possa constituir
embaraço à plena liberdade de informação jornalística nos diversos meios
de comunicação, sendo vedado qualquer meio de censura de natureza po-
lítica, ideológica e artística.
Por disposição constitucional, a regra é a liberdade de expressão em
nosso país. O jurista José Afonso da Silva define liberdade de informação
jornalística e defende a tese de que na liberdade de informação está tam-
bém a liberdade de ser informado, pois num país continental, a exemplo
do Brasil, em que rege o Estado Democrático de Direito, deve ser livre a
escolha de informar e ser informado, pois tais direitos já estão consolida-
dos em nossa Constituição.

É nesta que se centra a liberdade de informação, que assume carac-


terísticas modernas, superadoras da velha liberdade de imprensa.
Nela se concentra a liberdade de informar e é nela ou através dela
que se realiza o direito coletivo à informação, isto é, a liberdade de
ser informado. (SILVA, 1996).

Durante a sessão plenária do TSE do dia 20 de outubro de 2022,


analisando a legalidade e a constitucionalidade da Resolução nº 23.714,
a ministra Carmen Lúcia asseverou que, ainda em sede de liminar é um
caso extremamente grave, porque de fato nós temos uma jurisprudência
no STF, na esteira da Constituição, no sentido do impedimento de qual-
quer forma de censura, e medidas como essa, mesmo em face de liminar,
precisam ser tomadas como algo que pode ser um veneno ou um remédio.
No caso exposto, observa-se que os artigos da resolução do TSE foram
diretamente atingidos pela inconstitucionalidade de uma interpretação.

202
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Trata-se de um caso de mutação constitucional que envolveu censura pré-


via no âmbito infraconstitucional.
Ainda à baila, sobre o caso de censura promovida pelo TSE, destaca-
-se que em 30 de abril de 2009 o próprio STF, em face do julgamento da
ADPF 130, julgou inconstitucional a Lei de Imprensa por ser incompatí-
vel com o regime constitucional da “liberdade de informação jornalísti-
ca”, expressão sinônima de liberdade de imprensa. A “plena” liberdade de
imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura
prévia (BRASIL, 2009).
Importante ressaltar que alguns dos ministros que aprovaram a Re-
solução nº 23.714, de 20 de outubro de 2022, do TSE, também julgaram
e votaram perante a ADPF 130 no STF. Eis que os entendimentos se di-
vergem em tribunais de esferas diferentes, no âmbito do mesmo assunto
jurídico, que é a censura prévia de informação jornalística em nosso país.
Destaco o voto do ministro Ricardo Lewandowski, cujo fragmento está
disposto abaixo:

Constituição, nos arts. 5º, incisos IV e IX, e 220 garante o direito


coletivo à manifestação do pensamento, à expressão e à informa-
ção, sob qualquer forma, processo ou veículo, independentemen-
te de licença e a salvo de toda restrição ou censura. De outro, nos
art. 5º, incs. V e X, a Carta Magna garante o direito individual
de resposta, declarando, ainda, inviolável a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização por dano moral ou material decorrente de sua viola-
ção. São direitos de eficácia plena e aplicabilidade imediata - para
usar a consagrada terminologia do Professor José Afonso da Silva.
(BRASIL, 2009).

A ministra Cármem Lúcia, em seu voto, destacou a liberdade de im-


prensa, o direito e garantia aos cidadãos que exercem cargos políticos, para
se ter uma verdadeira democracia: “Portanto, não apenas para o cidadão,
mas para a garantia da cidadania em relação a quem eventualmente exerce
os cargos, inclusive os cargos políticos, a liberdade de imprensa é mais que
imprescindível para se ter uma verdadeira democracia” (BRASIL, 2009).

203
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O ministro Gilmar Mendes enfatizou, ainda, que os mais variados


textos constitucionais sempre trouxeram à lume a liberdade de imprensa
desde as primeiras declarações (BRASIL, 2009).

3. O FENÔMENO DA MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL


SOB O PRISMA DE RISCO À ORDEM CONSTITUCIONAL

Analisando o tema, observa-se que a teoria do fenômeno da mutação


constitucional no Brasil advém do período da redemocratização, de todo
o processo que deu origem à Constituição de 1988. Só a partir de então
que a teoria da mutação constitucional foi introduzida nas doutrinas jurí-
dicas no Brasil (PANSIERI, 2018).
A teoria da mutação constitucional nasceu entre uma crise jurídica
alemã. Assim, analisando retrospectivamente a história, percebe-se que no
Brasil não foi diferente. Nesse sentido, preconiza Flávio Pansieri (2018):

Essa crítica está embasada na observação de que a tese da mutação


constitucional se originou no período de crise do paradigma do
positivismo legalista da Escola Alemã de Direito Público, o qual
se mostrou incapaz de empreender uma análise normativa – e não
meramente empírico-descritiva – do fenômeno e da influência da
realidade sobre o Direito.

Conforme exposto, o fenômeno da mutação constitucional indubi-


tavelmente ocorre da evolução não só dos direitos, mas da sociedade em
geral; de forma conjunta nasce a necessidade de adequação da interpre-
tação da norma com os desígnios populares. O que ocorre é que se todo
indivíduo que está abaixo da Constituição é o seu intérprete, a interpre-
tação da norma seria de titularidade da sociedade em geral e não ficaria
restrita somente a um poder constituinte, no caso o difuso, sob espeque
da Constituição.

A vinculação da mutação constitucional a um suposto poder cons-


tituinte difuso também suscita questionamentos acerca da forma
e extensão de seu exercício. Afinal, embora sua titularidade seja

204
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

atribuída à nação ou ao povo, o reconhecimento institucional de


novas interpretações de normas constitucionais ficaria sempre a
cargo de autoridades às quais a Constituição não reservou a com-
petência par alterá-la e, por conseguinte, a cuja atuação ela não
impôs parâmetros expressos a serem observados. Essa circunstân-
cia, aliada à quantidade e à variedade de demandas sociais capazes
de serem “canalizadas” pelos operadores desse poder constituinte
difuso, pode gerar ou reforçar a crença na inexistência de fronteiras
para a interpretação das normas constitucionais e para a alteração
informal de seu conteúdo. (PANSIERI, 2018).

Sob essa ótica, a alteração da norma constitucional deve ocorrer atra-


vés somente das demandas sociais, que dependem da mudança e adequa-
ção da norma jurídica, não sendo apenas atribuído ao poder constituinte
a sua vontade, a sua convicção, deve-se partir também da sociedade que é
a detentora da interpretação:

a ocorrência das mutações constitucionais deve ser atribuída não


a uma manifestação do poder constituinte, mas à compreensão de
que a incorporação da Constituição às condutas sociais depende,
em grande medida, de uma interpretação atenta às condições fá-
ticas e que seja capaz de refletir as mudanças destas.[...] Isso não
quer dizer que as transformações sociais podem levar a interpre-
tação das normas constitucionais a desenvolver-se sem vinculação
a quaisquer parâmetros prévios, estar-se-ia, com isso, conferindo
à realidade uma força determinante sobre o elemento normativo.
A pretensão de eficácia da Constituição e a necessidade de que
se concretize sua função “racionalizadora, estabilizadora, e limita-
dora do poder impedem-no, exigindo a observância de sua força
normativa e a preservação de sua identidade. (PANSIERI, 2018).

Observa-se que a participação cidadã é de fundamental importância


para o fortalecimento da democracia, para a consolidação dos desígnios,
direitos e garantias que estão previstos na Constituição Federal e que são
objetos de anseio da sociedade.

205
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

É sempre importante frisar que a ocorrência do fenômeno da muta-


ção constitucional acontece através do advento do anseio do cidadão, que
também é intérprete e que está sob égide da Constituição Federal, e que
no decorrer do fenômeno é possível alterar a interpretação, mas não perder
a sua originalidade, sempre mantendo o seu poder consolidado.
Haja vista que o fenômeno ocorre por via interpretativa do poder di-
fuso, na qual o intérprete deve seguir a baliza constitucional, alterando-a
de forma segura, a própria Constituição já confere o direito almejado ao
cidadão, bastando somente a adequação da norma a um caso concreto, e
não a mutação com um objetivo vago. Nesses casos o direito já existe, só
não está interpretado na condição em que o cidadão anseia.
Por isso, como já exposto anteriormente, muda-se a interpretação e
não a lei e, por vezes, o fenômeno da mutação constitucional também
servirá como baliza das demandas sociais, através do seu complexo anseio
evolutivo.

São essas exigências que devem conduzir a definição dos limi-


tes da mutação constitucional. A norma constitucional pode ter
seu conteúdo alterado em razão de modificações das circunstân-
cias sociais, mas tal operação não deve resultar na deterioração
da identidade da Constituição, nem tampouco na anulação de
sua capacidade de influenciar a realidade, sucumbindo à pressão
das demais forças em ação na sociedade. Diante dessa tensão, o
texto constitucional desponta como ponto de partida para qual-
quer interpretação possível das normas constitucionais e, por ex-
tensão, como parâmetro de controle das modificações de sentido
admissíveis[...] Os limites da mutação constitucional não servem
apenas como baliza para a autocontenção dos destinatários das
normas constitucionais, mas devem atuar como marcos para
identificação de interpretações que, com fundamento nas trans-
formações sociais, vão além dos valecerem, minam a confiança da
sociedade nele e nos instrumentos que ela disciplina para a solu-
ção dos conflitos sociais e para sua própria adaptação à evolução
das condições fáticas. (PANSIERI, 2018)

206
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Observa-se que para uma maior eficácia e equilíbrio do controle de


constitucionalidade – e se tratando da estabilidade do processo constitu-
cional –, a rigidez da Constituição Federal permite sofrer o processo de
alteração apenas por meio das Emendas Constitucionais, por exemplo,
cabendo somente ao Legislativo a função de elaborar e modificar as leis,
inclusive o próprio texto constitucional.
Flávio Pansieri (2018) afirma que a mutação constitucional poderia
ser considerada um apoderamento das funções legislativas pelo poder ju-
diciário:

esse conflito está na raiz dos conceitos de supremacia e rigidez


constitucional, tendo motivado a adoção ampla de mecanismos de
reforma constitucional, ou seja, de técnicas jurídicas que permi-
tem a alteração da Constituição sem trazer risco à sua permanência
como um todo e que estão, por isso, sujeitas limitações regradas
pelo texto constitucional ou derivadas de sua natureza subordi-
nada.

Destarte, sob um prisma de harmonia entre poderes, o Judiciário tal-


vez passe a ter um caráter legislador, ou, de forma inconstitucional, até
mesmo de ativismo judicial em determinados temas, através dos diversos
casos que chegam a ele. Sob natureza muito específica, não apenas surgem
conflitos de interpretação, mas como observado em vários julgamentos,
uma lei sofre um fenômeno “mutacional” em um caso particular. No en-
tanto, mais tarde, diante de outra circunstância específica, aquele enten-
dimento anterior já não faz mais sentido e perde a validade em favor de
uma perspectiva diferente. Esses embates de interpretação se manifestam
em relação à mesma temática e matéria jurídica, o que se pode entender
como uma antinomia jurídica.
Ocorre, contudo, que o estudo da mutação constitucional se e desen-
volveu-se iniciou em contextos históricos bastante peculiares. Desequilí-
brios institucionais, inexistência (ou limitação) de sistemas jurisdicionais
de controle de constitucionalidade e atuação desimpedida dos poderes
Legislativo e Executivo em matéria constitucional levaram à admissão de
que a Constituição viesse a ser modificada, profunda e ilimitadamente,

207
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

mesmo sem o acionamento dos mecanismos de reforma constitucional


(PANSIERI, 2018).

CONCLUSÃO

Todos os dias inúmeros processos judiciais são ajuizados e julgados


em todas as instâncias da justiça brasileira. Em se tratando de mutação
constitucional, a Suprema Corte julga determinados processos usando o
mecanismo da interpretação da norma jurídica, por meio da hermenêu-
tica jurídica.
A mutação constitucional sempre foi motivo de estudos e pesquisas,
sendo renomeada por diversos doutrinadores. No início, era conhecida
somente por “mudança constitucional”. O termo “mutação constitu-
cional” (verfassungswandlung) foi exposto pela primeira vez em 1895, pelo
jurista Paul Laband, e com a evolução do Direito também foi possível
perceber outros nomes, como, por exemplo, “transições constitucio-
nais”, “vicissitudes constitucionais”, “plasticidade da norma” e “pro-
cesso de fato”.
Em resumo, a mutação constitucional é um tema complexo, que
exigiu muito estudo e pesquisa por parte dos doutrinadores e operadores
do Direito. Embora ela possa ser vista como uma resposta necessária às
mudanças sociais que ocorrem ao longo do tempo, sua criação e alcance
ainda são objeto de debates, pois, como exposto, o fenômeno surgiu em
um período de desequilíbrios institucionais dos sistemas jurisdicionais e
de inexistência de um efetivo controle de constitucionalidade.
Enquanto algumas mutações constitucionais que ocorrem podem ser
vistas como resposta para aplicação do Direito, outras podem ser vistas
como prejudiciais à estabilidade, à aprovação da sociedade e a instituições
constitucionais. Destarte, é importante avaliar cuidadosamente cada caso
de mutação constitucional, uma vez que sua aplicação terá reflexos ao lon-
go do tempo.
Através do fenômeno da mutação constitucional pode-se permitir que
a Constituição se adeque às mudanças sociais de determinado momento,
garantindo a aplicação do Direito e promovendo a temperança entre ele e
a evolução social. Por outro lado, a mutação constitucional também pode

208
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ser vista como uma ameaça à segurança jurídica e à estabilidade do con-


trole de constitucionalidade.
Em últimas análises, a questão do fenômeno da mutação constitucio-
nal é um debate, um estudo, uma pesquisa em curso na teoria do Direito
Constitucional, e no que tange à sua aplicação no ordenamento jurídico,
observa-se que naturalmente o fenômeno ocorre de maneira natural e es-
tendido, ao longo da linha do tempo do Direito Constitucional.
Sob determinada óptica a mutação constitucional é um dos instru-
mentos capazes de entender que o Direito e a norma já existentes podem
constar expressamente em um julgado, que tenha ocorrido por meio de
uma nova interpretação do texto constitucional ou de outra norma, até
mesmo infraconstitucional, como já exposto durante esta pesquisa.
A mutação constitucional resulta de uma evolução gradual da Consti-
tuição e da sociedade em geral, que, de fato, é a detentora dos direitos. Por
esse ângulo, ela pode ser vista, como uma forma de atualização do texto
constitucional à realidade jurídica, social, econômica e política do país que
se rege. E essas mudanças devem ser realizadas sempre com respeito aos
princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, em casos in-
dubitavelmente extremos, especiais, urgentes, onde não há tempo de usar
a via natural que advém do poder constituinte derivado reformador.
Por outro lado, observa-se que o fenômeno da mutação constitucio-
nal não é previsto, em sua inteireza, na Constituição Federal, não estando
insculpido no texto constitucional nem sendo um meio lógico, um dever-
-ser, uma linha do tempo processual garantida pelo procedimento previsto
na própria Constituição. Consolida-se através da ordem e da coerência do
sistema normativo, que está inserido no controle de constitucionalidade,
sendo o processo natural de mudança através do poder formal, de sua ri-
gidez, respeitando a estabilidade e a supremacia da Constituição. Por essa
perspectiva é então entendido que o processo de mutação constitucional
bem como seu resultado são inconstitucionais.
Se a própria Constituição estabelece um procedimento específico para
a modificação de determinadas normas, qualquer outro meio de violação
que não respeite esse procedimento pode ser considerado inconstitucional
e, com o passar do tempo, o texto constitucional em si vai perdendo sua

209
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

própria identidade significativa e dogmática, pelos motivos dos diferentes


processos de mudança da norma.
Ademais, demonstrou-se que a maioria dos casos que sofreram mu-
tação constitucional foram casos ajuizados que chegaram até a Corte Su-
perior, pois esse é o processo natural do ordenamento jurídico. Por essa
razão, é essencial que juristas e doutrinadores do Direito Constitucional
continuem a pesquisar, debater, deblaterar a natureza e os limites desse
fenômeno, a fim de garantir a integridade e a legislação das normas cons-
titucionais e do próprio sistema jurídico através do equilíbrio natural do
controle de constitucionalidade.
Dada a complexidade do tema, que envolve um fenômeno jurídico
corriqueiro na seara do Direito Constitucional, indubitavelmente, através
de uma abordagem crítica e reflexiva para o fenômeno da mutação cons-
titucional, pode-se garantir que mesmo sua aplicabilidade não sendo pre-
vista na Constituição, o poder difuso pela sua intervenção interpretativa
continue cumprindo e promovendo a função existencial da Constituição
na proteção dos direitos, garantias e liberdades fundamentais, individuais,
coletivas e na promoção de uma sociedade justa e democrática de direito.
Sendo sempre, todos aqueles que vivem sob o pálio da égide da Constitui-
ção, os seus legítimos intérpretes, e sendo a interpretação da hermenêutica
constitucional aberta.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Con-


temporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo
modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 mar. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.451. Liberdade de expressão


e pluralismo de ideias. Valores estruturantes do sistema democrático.

210
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Inconstitucionalidade de dispositivos normativos que estabelecem


previa ingerência estatal no direito de criticar durante o processo elei-
toral. Proteção constitucional as manifestações de opiniões dos meios
de comunicação e a liberdade de criação humorística. Requerente:
Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão – ABERT.
Requerido: Presidente da República/Congresso Nacional. Relator:
Min. Alexandre de Moraes, 21 de junho de 2018. Disponível em:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&do-
cID=749287337. Acesso em: 20 fev. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 7.261. Constitucionalidade


da Resolução TSE nº. 23.714/2022. Enfrentamento da desinfor-
mação capaz de atingir a integridade do processo eleitoral. 1. Não
se reveste de fumus boni iuris a alegação de que o Tribunal Superior
Eleitoral (TSE), ao exercer a sua atribuição de elaboração normati-
va e o poder de polícia em relação à propaganda eleitoral, usurpa a
competência legislativa da União, porquanto a justiça especializada
vem tratando da temática do combate à desinformação por meio de
reiterados precedentes jurisprudenciais e atos normativos, editados
ao longo dos últimos anos. 2. A Resolução TSE nº. 23.714/2022
não consiste em exercício de censura prévia. 3. A disseminação de
notícias falsas, no curto prazo do processo eleitoral, pode ter a força
de ocupar todo espaço público, restringindo a circulação de ideias e
o livre exercício do direito à informação. 4. O fenômeno da desin-
formação veiculada por meio da internet, caso não fiscalizado pela
autoridade eleitoral, tem o condão de restringir a formação livre e
consciente da vontade do eleitor. 5. Ausentes elementos que, nesta
fase processual, conduzam à decretação de inconstitucionalidade da
norma impugnada, há que se adotar atitude de deferência em re-
lação à competência do tribunal superior eleitoral de organização
e condução das eleições gerais. 6. Medida cautelar indeferida. Re-
querente: Procurador-Geral da República. Requerido: Tribunal
Superior Eleitoral. Relator: Min. Edson Fachin, 26 de outubro de
2022. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?-
classeNumeroIncidente=%22ADI%207261%22&base=acordaos&-

211
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&-
sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 21 fev. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 130. Lei de Imprensa. Ade-


quação da ação. Regime constitucional da “liberdade de informação
jornalística”, expressão sinônima de liberdade de imprensa. A “plena”
liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer
tipo de censura prévia. A plenitude da liberdade de imprensa como
reforço ou sobre tutela das liberdades de manifestação do pensamento,
de informação e de expressão artística, científica, intelectual e comu-
nicacional. Liberdades que dão conteúdo às relações de imprensa e que
se põem como superiores bens de personalidade e mais direta emana-
ção do princípio da dignidade da pessoa humana [...]. Agravante: Par-
tido Democrático Trabalhista (PDT). Agravado: Presidente da Repú-
blica/Congresso Nacional. Relator: Min. Carlos Britto, 30 de abril de
2009. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=605411. Acesso em: 18 fev. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). RHC nº 90376 RJ.


Recorrente: Sérgio Augusto Coimbra Vial. Recorrido: Ministério
Público Federal. Relator: Min. Celso de Mello, 3 de abril de 2007.
Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?-
docTP=AC&docID=456098. Acesso em: 20 mar. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). RHC nº 91867 PA.


Impetrante: José Luis Mendes de Oliveira Lima. Coator: Superior
Tribunal de Justiça. Relator: Min. Gilmar Mendes, 20 de abril de
2012. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/pagina-
dor.jsp?docTP=TP&docID=2792328. Acesso em: 21 mar. 2023.

BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução nº 23.714, de 20 de


outubro de 2022. Dispõe sobre o enfrentamento à desinformação
que atinja a integridade do processo eleitoral. Brasília, DF: TSE,
2023. Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/
res/2022/resolucao-no-23-714-de-20-de-outubro-de-2022. Acesso
em: 19 fev. 2023.

212
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BULOS, Uadi Lammego. Mutação Constitucional. São Paulo: Editora


Saraiva, 1997.

HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aber-


ta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação
pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar
Ferreira Mendes. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2002.

NÓBREGA, J. Flóscolo da. Introdução ao Direito. 3. ed. Rio de Ja-


neiro: J. Konfino, 1965.

PANSIERI, Flávio Henrique Soares de Souza. Mutação constitucional


à luz da teoria constitucional contemporânea. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2018.

SESSÃO Plenária – 20 de outubro de 2022. Brasília, DF: Justiça Eleitoral,


2022. 1 vídeo (110 min). Publicado pelo canal Justiça Eleitoral. Dis-
ponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FZ6wX4Edzko.
Acesso em: 20 fev. 2023.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.


12. ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1996.

SOARES, Júlia Cristina de Souza. Mutação constitucional: dos con-


tornos doutrinários e jurisprudenciais pátrios. 2022. 89 f. Disserta-
ção (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2022.

VILELLA, Igor de Araújo. Dos primeiros estudos alemães sobre a mu-


tação constitucional. Jus.com.br, [s. l.], 16 mar. 2015. Disponível
em: https://jus.com.br/artigos/37258/dos-primeiros-estudos-ale-
maes-sobre-a-mutacao-constitucional. Acesso em: 18 mar. 2023.

213
LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO
E LEGITIMIDADE DO PROCESSO
ELEITORAL EM SISTEMAS DE VOTO
OBRIGATÓRIO
Lucas de Souza Gimenes23
Alvaro Luiz Carvalho da Cunha Junior24

INTRODUÇÃO

O voto se demonstra como uma das mais importantes manifestações


do direito do sufrágio e da interferência que os eleitores podem realizar
na vida política de um país, seja na escolha por uma ou outra proposta de
governo, seja no seu apoio por determinados partidos e legendas durante
os processos de eleição.
O voto nas democracias costuma traduzir-se de duas formas: ele pode
ser obrigatório, quando os cidadãos encontram-se compelidos a partici-
parem dos procedimentos eleitorais; ou facultativo, quando a real partici-
pação dos eleitores fica a cargo de sua vontade e interesse com os rumos
políticos de seu país.

23 Mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP/SP. Pós-graduado em Direito


Digital pela UERJ. Advogado.
24 Mestrando em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo IDP/SP. Pós-graduado em Direito
Público: Constitucional, Administrativo e Tributário pela UNESA. Advogado.

214
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

O presente artigo analisou ambas as sistemáticas de voto, dando es-


pecial ênfase à figura do voto obrigatório, e foi guiado pelo seguinte pro-
blema de pesquisa: Nos sistemas que adotam o voto obrigatório existe real
legitimidade das manifestações dos eleitores, podendo estes serem consi-
deradas livres e conscientes?
A fim de responder à pergunta, a metodologia utilizada foi a de base
qualitativa, fundada em uma revisão de literatura de textos nacionais e
estrangeiros produzidos por autores pertencentes às ciências jurídica e po-
lítica, os quais se encontram presentes em artigos de cunho científico e em
livros doutrinários.
Inicialmente, são apresentadas algumas noções basilares e a concei-
tuação sobre o direito de sufrágio e sobre a figura do voto, tendo como
base textos de cunho jurídico. Em seguida, são expostos alguns dos funda-
mentos proferidos em favor da adoção da sistemática do voto obrigatório
bem como os argumentos utilizados por aqueles que defendem o regime
de voto facultativo. O ultimo tópico do artigo busca sistematizar algumas
das premissas, tanto contrárias quanto favoráveis, a respeito da legitimida-
de da obrigatoriedade do voto.

1. CONSTITUIÇÃO DIRIGENTE E O DIREITO DE VOTO

Na teoria do Direito Constitucional há inúmeras formas de com-


preensão do conceito de Constituição, seja pelo viés de estrutura formal,
como instrumento que institui e delimita atribuições, competências e
procedimentos, seja pelo entendimento da Constituição a partir de uma
visão mais ampla, que não apenas organiza e estrutura o Estado, mas tam-
bém a sociedade, por meio da instituição de programas e finalidades a
serem concretizados.
Para Peter Lerche (apud SCHOLZE, 2014), a Constituição dirigente
tem como objetivo acrescentar uma nova ordem, diferente das comuns
já elaboradas, com fulcro em imposições permanentes ao legislador.
Justamente no contexto da promulgação da Constituição Alemã de 1949
(Lei Fundamental de Bonn), após os horrores praticados pelo nacional-
-socialismo na Alemanha, Lerche investigou os limites de vinculação do
legislador a imposições constitucionais que estabeleciam deveres legis-

215
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

lativos e, por conseguinte, analisou o caráter normativo desses preceitos


constitucionais.
Já Canotilho (2001), a partir da construção do pensamento de Lerche,
advoga o conceito de uma Constituição dirigente mais extensiva – ana-
lítica e aprofundada –, inserida no âmbito de reconstrução da Teoria da
Constituição, mediante uma teoria material da Constituição desenvolvida
como teoria social.
Na obra do doutrinador lusitano, publicada em 1982, intitulada
Constituição dirigente e vinculação do legislador25, foi desenvolvida uma teoria
da constituição, cuja tese culminava no sentido de que as normas cons-
titucionais programáticas, diferentemente do que assinalava a doutrina
tradicional, não consistem em promessas, programas ou meros preceitos
políticos desprovidos de vinculação. Segundo o professor português, tais
normas apresentam o mesmo valor jurídico que as outras dispostas no tex-
to constitucional.
O núcleo de Constituição dirigente é a legitimação material da nor-
ma constitucional por meio dos objetivos e finalidades definidas nela.
Consoante o pensamento de Canotilho (2001), a compreensão de Cons-
tituição dirigente está relacionada a um programa de ação para a mudança
social, visa a alteração do status quo com uma obrigação positiva – uma
fazer ao Estado, no sentido de assegurar força jurídica para a alteração da
sociedade.
Logo, as normas constitucionais estão vinculando verdadeiros co-
mandos/regras a serem seguidas por todos os poderes, em especial o le-
gislador infraconstitucional, bem como por todos aqueles que operem o
Direito, seja na aplicação ou na interpretação das normas jurídicas.
Nesse aspecto, as constituições dirigentes se unem consideravelmente
à ideia de normas programáticas, isto é, àquelas onde o texto constitucio-
nal dá orientações expressas ao legislador ordinário e ao administrador

25 A expressão “constituição dirigente e vinculação do legislador” denota preliminarmente


o objeto referencial, no sentido de se examinar o que é possibilitado a uma Constituição
dispor sobre a atuação dos órgãos cuja função é legislar, assim como quais as atribuições do
legislador para o cumprimento efetivo das imposições constitucionais.

216
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

público a respeito de programas sociais e políticas que precisam ser im-


plementadas.
Consoante José Afonso da Silva (1998, p. 138), as normas constitu-
cionais programáticas são:

[...] Normas constitucionais, através das quais o constituinte, em


vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses,
limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos
seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrati-
vos), como programas das respectivas atividades, visando à realiza-
ção dos fins sociais do Estado.

Ao encontro do exposto, Maria Helena Diniz (1998, p. 371) coloca


que:

[Normas Programáticas são] aquelas em que o constituinte não


regula diretamente os interesses ou direitos nela consagrados, li-
mitando-se a traçar princípios a serem cumpridos pelos Poderes
Públicos (Legislativo, Executivo e Judiciário) como programas das
respectivas atividades, pretendendo unicamente à consecução dos
fins sociais pelo Estado.

A Constituição Federal de 1988 é um exemplo de Constituição di-


rigente, pois consagra inúmeras normas programáticas, por exemplo, ao
tratar dos objetivos da República Federativa do Brasil, o constituinte ori-
ginário institui uma verdadeira obrigação ao Legislativo e ao Executivo,
a política foi constitucionalizada, trata-se de verdadeira cláusula compro-
missória, ou seja, metas, objetivos constitucionalmente assentados que de-
vem ser perseguidas pelo Estado e reclamados pelo povo. O Estado deve
adotar políticas públicas tendentes à consecução desses fins, e ao povo cabe
cobrar e fiscalizar.
Ademais, é imperioso destacar que se dá, por intermédio do exercí-
cio do sufrágio universal e do voto, a possibilidade de os cidadãos plei-
tearem, através do processo eleitoral e de outros institutos de participa-
ção política, os direitos consagrados na Constituição, e que, sem esse,

217
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

a possiblidade de efetivar as normas programáticas constitucionais seria


mitigada, afetando, inclusive, a eficácia do texto constitucional enquan-
to norma mandamental.

3. NOÇÕES ELEMENTARES A RESPEITO DO DIREITO


DE VOTO

Através dos chamados direitos políticos, cria-se toda uma sistemática


a qual permite a participação dos cidadãos dentro do processo eleitoral,
bem como sua atuação diante de certas estruturas governamentais. Dessa
maneira, tais direitos são os catalisadores da participação popular dentro
do aspecto político do país.
O exercício dos direitos políticos é dado, conforme se observa no
texto constitucional, através da figura do sufrágio, que entre suas diversas
formas se expressa também por intermédio do voto. Em que pese sejam
empregados em diversos casos como sinônimos, tanto o sufrágio quanto
o voto representam institutos diferentes, como empregado, inclusive, pela
própria Constituição da República.
Para Fernandes (2017), tem-se que o instituto de sufrágio deva ser
entendido como um direito público de natureza subjetiva e caráter polí-
tico, o qual se expressa das mais variadas formas, tais como: o direito de
votar, o direito de ser votado e também o de participar na política estatal
por intermédio de instrumentos como o plebiscito e o referendo. Por sua
vez, pela doutrina de José Afonso da Silva (2016) observa-se que a baliza
pela qual o direito de sufrágio se sustenta é o ideal democrático de que o
todo poder emana do povo, sendo este, dessa maneira, um legitimador do
poder estatal, outorgando o seu exercício aos governantes eleitos.
Enquanto o sufrágio é o direito político por excelência, a sua instru-
mentalização na vida pública é viabilizada por intermédio do exercício
do voto, isto é, da capacidade de se pleitear uma escolha por uma opção
ou outra dentro de um dos procedimentos decisórios do Estado. Dessa
maneira, o voto acaba por possuir, além de uma natureza jurídica pública,
uma função que se mostra de natureza social e política (MORAES, 2017),
onde se exercita a soberania popular através da escolha dos representantes
que exercerão o poder (FERNANDES, 2017).

218
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

No que concerne tais características, Silva (2016) observa que o voto,


enquanto um ato fundamental que viabiliza o exercício do sufrágio, tem
uma função de permitir a atuação da soberania popular, a qual orienta os
Estados democráticos e, dessa maneira, transfigura-se como um dever,
que terá uma natureza social enquanto for o principal mecanismo para a
designação dos governantes e demais representantes eleitos.
Entretanto, também poderá ser um dever jurídico, na medida em que
se estatui a obrigatoriedade do voto e, nos casos de descumprimento, re-
puta-se aplicáveis certas sanções legais ao eleitor (SILVA, 2016).

4. DEFESAS ELENCADAS EM FAVOR DO VOTO


OBRIGATÓRIO E DO VOTO FACULTATIVO

A sistemática de voto adotada pelas democracias tem duas formas: o


voto pode ser estabelecido de maneira obrigatória, quando os Estados na-
cionais obrigam a participação dos seus cidadãos no processo eleitoral; ou
facultativa, hipótese em que a decisão de participar das eleições incumbe
aos eleitores.
Estudiosos das ciências jurídicas e políticas têm buscado legitimar a
utilização de um ou outro sistema de voto pelos estados nacionais através
de diversos argumentos. Sendo que alguns deles são analisados nos sub-
-tópicos a seguir.

4.1. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À ADOÇÃO DO VOTO


OBRIGATÓRIO

Dentre os principias argumentos elencados para defender a sua obri-


gatoriedade, encontra-se a ideia, muito defendida pelos doutrinadores ju-
rídicos para explicitar a natureza do voto e já explicitada acima, de que
este seria um poder-dever pertencente aos cidadãos políticos.
Enquanto um dever político do cidadão, Sampaio (apud SOARES
2004) observa que o voto se traduz como o exercício de uma função pú-
blica, de maneira que o seu caráter de dever jurídico só estará manifesto
quando se mostrar como sendo obrigatório, haja vista que diversos países
balizaram-se pela instituição de sua obrigatoriedade motivados tanto pelo

219
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

argumento de sua natureza jurídica quanto pelos números de abstenções


quando é facultativo.
Tal fato, inclusive, leva a análise de um segundo argumento: o de que
o voto obrigatório garante a participação da maior parte da população nas
eleições. Nesse aspecto, Lijphart (1997) examina que sem a instituição de
obrigatoriedade, parte dos eleitores não conheceria qualquer motivação
para participar dos processos eleitorais, sendo que essa condicionante aca-
ba por garantir uma parcela, ainda que mínima, de participação deles na
vida política do Estado.
Há quem indique que a necessidade de estabelecimento do voto obri-
gatório guarda relação com o nível de educação dos eleitores, de forma
que a obrigatoriedade do voto pode significar a garantia de educação polí-
tica aos cidadãos, onde a participação frequente pode levar à compreensão
da importância da discussão política e contribuir para a diminuição do
atraso econômico e social (SOARES, 2004).
Inclusive, como o voto também pode ser compreendido como fruto
de uma série de questões culturais e econômicas, estas podem influenciar,
ainda que indiretamente, a instituição de sua obrigatoriedade, a fim de
mostrar-se com um importante mecanismo para garantir a igualdade em
certos governos democráticos (OLIVEIRA, 1999), em especial quando
eles possuem uma estrutura precária de acesso à educação e à informação.
Portanto, sem haver uma consciência dos eleitores a respeito da im-
portância de sua participação na vida política, não estariam preparados
para escolher seus representantes em uma sistema de voto facultativo, de
forma que seria preciso educá-los politicamente primeiro para que pudes-
sem participar de um sistema de voto livre (MENDONÇA, 2004).

4.2. ARGUMENTOS FAVORÁVEIS À ADOÇÃO DO VOTO


FACULTATIVO

Diferentemente daqueles que aduzem que a obrigatoriedade se ma-


nifesta em virtude do voto ser um dever do eleitor, esta corrente se firma
em um sentido contrário, em que, na verdade, votar se consubstanciaria
como sendo um direito.

220
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Nessa linha, por não se tratar de um dever, o voto não poderia tor-
nar-se uma exigência de ninguém, seja do Estado ou de grupos políticos e
sociais, e uma vez que alguém pudesse exigi-lo do eleitor, perderia, então,
todos os seus atributos essenciais, não podendo mais configurar-se como
uma manifestação livre de vontade, e sim como uma obrigação (SAN-
TOS, 2009).
Gomes (2015) entende que o voto, enquanto um direito, precisa ser
exercido de forma autônoma pelo eleitor, e que o seu exercício compulsó-
rio o tornaria incompatível com os preceitos democráticos. Dessa manei-
ra, para o autor, o seu livre exercício seria a única forma de uma atuação
política plenamente consciente.
Mendonça (2004), a seu turno, analisa que o voto obrigatório cons-
titui-se na forma de uma obrigação forçada e, assim, ao ser imposto pelo
Estado, traduz-se como uma ofensa aos regimes democráticos por anular
totalmente a liberdade do eleitor.
Além disso, os defensores do voto facultativo comungam do argu-
mento de que tal modelo viabilizaria a participação de eleitores que se
mostrem conscientes e mobilizados com as questões políticas, ao invés de
movimentar uma massa que o faria apenas por obrigação. Inclusive, um
sistema de participação facultativo poderia originar uma realidade onde
o voto é entendido como uma conquista, e não como uma imposição do
Estado, o que poderia criar nos eleitores uma maior consciência sobre a
importância de sua participação (KAHN, 1992).
Soares (2004) observa que, nos casos em que há uma obrigatoriedade
do exercício de voto, é comum que o maior interesse de alguns eleitores
seja o de livrar-se da obrigação e das consequentes punições que possam
acontecer, levando-os a recorrer ao primeiro candidato ou partido político
dos quais tomarem conhecimento ou até mesmo optarem por votar em
branco ou nulo.
Nesse aspecto, Dantas (2007), ao analisar as disposições do texto
constitucional brasileiro, verifica que, no final, o que realmente influi no
resultado de uma eleição são os votos depositados diretamente em legen-
das e em seus candidatos, e não o número de eleitores que participam do
processo, visto que são ignorados os brancos e os nulos. Logo, ainda que

221
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

indiretamente, excluem-se aqueles que não desejam participar do proces-


so eleitoral, o que muito se assemelha ao voto facultativo.
Outra argumentação utilizada advém do fato de que países mais de-
senvolvidos tendem para a adoção de sistemas de votação facultativos, e tal
característica não os torna menos estáveis do que outros que preferem o
modelo obrigatório (SANTOS, 2009).

5. ANÁLISE DA LEGITIMIDADE DO VOTO


OBRIGATÓRIO

Para muitos, os sistemas de voto facultativo não parecem apresentar


qualquer incongruência com os regimes democráticos, de forma que a sua
expressão parece estar de acordo com as liberdades civis e políticas. Entre-
tanto, críticas mais sérias são tecidas em relação àqueles governos que ado-
tam a ideia de voto obrigatório, argumentando que a sua instituição fere
gravemente os direitos de primeira geração, isto é, os direitos de liberdade
e o dever de abstenção por parte do ente estatal.
Kahn (1992) observa que o voto obrigatório desenvolveu-se ape-
nas com o objetivo de manter o poder das classes dominantes, as quais
temiam que, com a ampliação do direito de sufrágio, as classes popula-
res se tornassem politicamente ativas, enquanto as elites estariam mais
propensas a absterem-se da participação política; logo, a obrigatorie-
dade impunha a participação de todos e garantia certo equilíbrio entre
as classes.
O voto obrigatório, conforme os críticos, também destoaria dos
ideais do sistema democrático por forçar a participação política mediante
uma obrigação estatal, em vez de buscar que os eleitores estivessem verda-
deiramente comprometidos com as pautas eleitorais. Esse constrangimen-
to, a seu turno, não viabilizaria uma participação autônoma, consciente e
voluntária dos eleitores por de fato entenderem a importância do seu papel
(DANTAS, 2007).
Nesse aspecto, há uma importante observação de Canotilho (2003, p.
303-304), na qual o autor compreende que um sistema de voto obrigató-
rio destoa completamente da liberdade existente nas democracias:

222
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

[...] o princípio da liberdade de voto significa garantir ao eleitor o


exercício do direito de voto sem qualquer coacção física ou psicológi-
ca de entidades públicas ou de entidades privadas. Deste princípio da
liberdade de voto deriva a ilegitimidade da imposição legal do voto obri-
gatório. A liberdade de voto abrange, assim, o se e o como: a liberdade de
votar ou não votar e a liberdade no votar. Desta forma, independentemente
da sua caracterização jurídica – direito de liberdade, direito subjectivo
–, o direito de voto livre é mais extenso que a protecção do voto livre.
Na falta de preceito constitucional a admitir o voto como um dever
fundamental obrigatório, tem de considerar-se a imposição legal do
voto obrigatório como viciada de inconstitucionalidade.

Entretanto, José Afonso da Silva (2016) aduz que é perfeitamente pos-


sível conciliar os direitos de liberdade com os sistemas de voto obrigatório,
isso porque não existe uma obrigatoriedade jurídica de que o eleitor emita
seu voto (no sentido de pleitear uma escolha), mas sim de que deva compa-
recer à sua respectiva seção eleitoral e realizar os procedimentos do escrutí-
nio. Dessa maneira, tem-se que a obrigatoriedade de comparecimento do
eleitor se traduz como mera formalidade (FERNANDES, 2017).
Ainda conforme Silva (2016), o fato de ir à urna de votação não confi-
gura o exercício do voto, pois este consiste em realizar uma escolha. Ade-
mais, o fato de optar por votar em branco ou nulo também não o faz, visto
que no primeiro o eleitor exerce seu direito sem escolher ninguém, enquan-
to no segundo abre mão deste; entretanto, por meio de qualquer um deles
os deveres jurídicos de comparecimento são cumpridos (SILVA, 2016).
Nesse sentido, Moraes (2017) entende que a liberdade do eleitor está
presente não só na sua possibilidade de pleitear entre um ou outro can-
didato, mas também se manifesta na possibilidade de anular seu voto ou
votar em branco, e que toda a obrigatoriedade é limitada ao seu compare-
cimento e ao depósito da cédula na urna de votação, simplesmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tem-se que dentro dos regimes democráticos impera a garantia de


liberdade de seus cidadãos, seja ela civil ou política, e que, dessa maneira,

223
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

em muito se espera que exista uma limitação aos poderes estatais para que
possam restringir tais liberdades e até mesmo para que este imponha a
obrigatoriedade de realização de certas condutas, além de uma punição
para aqueles que, ainda assim, não agirem conforme se era esperado.
Parece uma tarefa árdua determinar se os governos que buscam es-
tabelecer a obrigatoriedade do exercício de voto estão ofendendo pres-
supostos constitucionais ou apenas estabelecendo uma espécie de “mal
necessário” para garantir a participação dos eleitores na vida política de seu
país, em nada se mostrando destoantes dos ideais democráticos.
Isso se dá em virtude de que, para alguns, o voto obrigatório é um
retrocesso constitucional nas nações que o adotam e não pode garantir
realmente que os participantes do processo eleitoral o fazem com plena
consciência de seus deveres e da importância da participação política.
Entretanto, como demonstrado, há aqueles que defendem que obri-
gatório seria apenas o dever de comparecimento à seção eleitoral, restando
resguardada a liberdade do eleitores de decidirem votar em algum candi-
dato ou até de não fazê-lo, através das opções de voto nulo e branco.
Soma-se a isso o fato de que o voto, enquanto obrigatório, parece
exercer uma função pedagógica, ao passo que educa os eleitores e os ins-
trui a participarem das eleições e demais votações até se criar a consciência
política necessária para que a participação ocorra de maneira autônoma e
genuína.
Logo, balizando-se pelos últimos argumentos, parece crível estabe-
lecer que a instituição de um sistema de voto obrigatório não diminui a
legitimidade das representações e tampouco a da participação dos eleitores
nos processos eleitorais, visto que ainda se encontrarão livres diante de
suas manifestações.

REFERÊNCIAS

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vin-


culação do legislador: contributo para a compreensão das normas
constitucionais programáticas. 2. ed. Coimbra: Livraria Almedina,
2001.

2 24
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e teoria


da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

DANTAS, Ana Florinda. Voto facultativo e cidadania. Revista do


TRE-AL, [s. I.], n. 1, p. 13-25, 2007.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucio-


nal. 9. ed. rev. atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2017.

GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

KAHN, Tulio. O voto obrigatório. 1992. 86 f. Dissertação (Mestrado


em Ciência Política) – Departamento de Ciência Política, Faculda-
de de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1992.

LIJPHART, Arend. Unequal participation: Democracy’s unresolved di-


lemma presidential address, American Political Science Association,
1996. American Political Science Review, [s. I.], v. 91, n. 1, p.
1-14, 1997. Disponível em: https://bit.ly/3wIbQpe. Acesso: 20 mai.
2022.

DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 1. ed. São Paulo: Saraiva,


1998. Volume 3.

MENDONÇA, Valda de Souza. Voto livre e espontâneo: exercício de


cidadania política consciente. Florianópolis: OAB/SC, 2004.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. rev. e atual.


São Paulo: Atlas, 2017.

OLIVEIRA, Luzia Helena Herrmann de. Voto obrigatório e eqüidade


um estudo de caso. São Paulo em Perspectiva, [São Paulo], v. 13,
n. 4, p. 144-152, 1999. Disponível: https://bit.ly/3lDdAtg. Acesso
em: 20 jan. 2023.

SANTOS, Antônio Augusto Mayer dos. Reforma política: inércia e


controvérsias. 1. ed. Porto Alegre: Age, 2009

225
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

SCHOLZE, Victor. Emprego da teoria da constituição dirigente adequa-


da à realidade brasileira. Jus.com.br, Teresina, 21 out. 2014. Dispo-
nível em: https://bit.ly/3An935U. Acesso em: 13 fev. 2023.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais.


3. ed. São Paulo: Malheiros, 1998.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.


25. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

SOARES, Paulo Henrique. Vantagens e desvantagens do voto obrigató-


rio e do voto facultativo. Revista de Informação Legislativa, [s.
l.], v. 41, n. 161, p. 107-116, jan./mar. 2004. Disponível em: https://
bit.ly/3lEx8O5. Acesso em: 20 mai. 2022.

226
O MOVIMENTO PENDULAR DO
FEDERALISMO BRASILEIRO:
CENTRALIZAÇÃO VERSUS
DESCENTRALIZAÇÃO
Lucienne M. T. Cwikler Szajnbok26

INTRODUÇÃO

Em 1889, com a transição do Período Imperial para a fase republica-


na, o Brasil optou por adotar o sistema federativo, que perdura até os dias
atuais. Não obstante o federalismo seja caracterizado, por sua natureza,
como um modelo propriamente mais tendente à descentralização, o que
se observou, em terras brasileiras, foi um intercalar entre momentos de
maior centralização e outros de maior descentralização do poder, sem,
contudo, prejuízo à opção federativa, insculpida nos textos constitucionais
a partir de 1891.
Nessa linha, o presente artigo visa refletir sobre o movimento pendu-
lar característico do modelo de federalismo pátrio, demonstrando a cone-
xão entre a opção, ora por maior centralização, ora por maior descentrali-

26 Doutora e Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Ma-


ckenzie. Bacharel em Administração de Empresas e Direito. Especialista em Direito Empre-
sarial. Advogada, Docente e Pesquisadora.

227
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

zação, e os momentos e acontecimentos políticos que marcaram a história


brasileira.
Para tal finalidade, inicialmente são apresentadas a evolução e a con-
textualização do sistema federativo, elencando suas características e os ele-
mentos que o diferenciam da Confederação e do Estado Unitário. Em
seguida, o artigo aborda o federalismo brasileiro, apontando os seus ele-
mentos formadores. Por último, com o fito de demonstrar o movimento
pendular que qualifica o sistema federativo brasileiro, é apresentada a vin-
culação entre a organização de poder – centralizado ou descentralizado – e
o momento histórico-político vivenciado.
Diante da finalidade proposta, o presente estudo adotou o método
dedutivo, partindo, portanto, de premissas gerais para alcançar premissas
particulares no processo de compreensão do comportamento do federa-
lismo brasileiro e sua vinculação ao momento histórico-político vigente.
Além disso, o trabalho foi desenvolvido mediante pesquisa legislativa
e bibliográfica, com consulta à doutrina nacional e estrangeira e igual-
mente a periódicos.

1. EVOLUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DO MODELO


FEDERATIVO

Inicialmente, importa assinalar que o federalismo tem sua origem nos


Estados Unidos, implementado em 1787 mediante a aprovação da Cons-
tituição norte-americana. Antes da adoção desse modelo, houve um breve
período, logo após a guerra da independência, em que os 13 estados nor-
te-americanos, correspondentes às antigas 13 colônias, estavam reunidos
em Confederação.
Mas no que consiste, afinal, o Estado Federal? Antes de responder à
essa questão, convém mencionar e analisar outros dois tipos de Estado – a
Confederação e o Estado Unitário.
A Confederação surge da união de Estados independentes e sobera-
nos que, em decorrência de alguma circunstância histórico-política, deci-
dem formar um único Estado. O que os une é um tratado, sendo, porém,
resguardado à cada um deles o direito de secessão. Ademais, em que pese
se tratar de uma pessoa jurídica de direito público, inclusive com repre-

228
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

sentação internacional, a Confederação não é soberana. Soberanos são os


estados ou unidades que a compõem. Aliás, os cidadãos remanescem com
a nacionalidade de seus respectivos estados. Exemplo de Confederação são
os Emirados Árabes Unidos (OLIVEIRA, 2019, p. 87).
A Confederação, como mencionado, foi adotada pelas antigas 13
colônias norte-americanas, antes do advento da Carta Constitucional de
1787, ocasião em que se optou pelo modelo federativo.
De outro giro, no Estado Unitário incumbe ao governo nacional a
direção de todas as atividades. É do poder central que emanam todas as or-
dens, o que não impede o Estado, porém, de estar dividido em províncias
ou circunscrições (OLIVEIRA, 2019, p. 87). E, de forma complementar,
em havendo descentralização política, tem-se o denominado Estado Uni-
tário Descentralizado (FERREIRA FILHO, 2020, p. 45).
Vistos, objetivamente, os principais elementos que informam a Con-
federação e o Estado Unitário, parte-se para o estudo do Estado Federal,
cerne principal deste trabalho.
De início, vale mencionar que o Estado Federal é soberano, ainda
que formado por estados-membros, estes meramente autônomos. Quan-
to à sua formação, pode ser formado por agregação ou força centrípeta,
quando Estados preexistentes decidem se reunir, tal como sucedeu com os
Estados Unidos, ou por segregação ou força centrífuga, situação em que
se dá a descentralização do Estado Unitário, sendo o Brasil exemplo de tal
hipótese (OLIVEIRA, 2019, p. 87).
O Estado Federal pode ser classificado em três tipos: (i) dualista,
quando há duas soberanias, uma do Estado Federal e outra dos estados-
-membros; (ii) por cooperação, quando compete ao Estado Federal dirigir
a coordenação de todas as competências, atribuindo aos estados-membros
competências residuais; e (iii) por integração, quando os estados-mem-
bros se sujeitam à esfera federal, assemelhando-se a um Estado Unitário
descentralizado (OLIVEIRA, 2019, p. 88).
Sobre o papel da soberania para a conceituação do Estado Federal,
tenha-se presente que:

Os membros do Estado federal não são soberanos. Isso decorre in-


diretamente, [...], do fato de a soberania ser do Estado federal, e

229
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

diretamente desse fato decorre que todas as constituições federais


conferem ao Estado federal e não aos seus membros o direito de
determinar sua própria competência, que é a marca da soberania.

Os membros do Estado federal, não sendo soberanos, não têm ca-


ráter de Estado, pois a soberania é o elemento essencial da noção de
Estado. (LE FUR, 2000, p. 680-681, tradução nossa).27

Dessarte, o papel que a soberania exerce em um Estado Federal é, sem


dúvida, fulcral e se traduz como um relevante supedâneo jurídico.
Sublinhe-se que, a despeito das características gerais apresentadas
permitirem, de certa forma, enquadrar os Estados nos modelos unitário,
de confederação ou de federação, é possível encontrar, dentro desse espec-
tro classificatório, inúmeras variâncias, até porque a configuração adotada
seguirá, via de regra, os ditames constitucional ou normativamente esta-
belecidos por cada país, o que demonstra que, até mesmo no federalismo,
há diferenças entre os modelos adotados pelos diversos países.
Não obstante, é factível elencar características que são comuns a todas
as federações. São elas:

a) o Estado Federal pressupõe, no mínimo, duas ordens jurídicas,


uma central e outra parcial;

b) as ordens jurídicas parciais são dotadas de autonomia, que se re-


vela por competências próprias, possibilidade de auto-organização
e de escolha de seus governantes e dos membros do Poder Legis-
lativo, que terão competência para legislar sobre as matérias fixada
na Constituição Federal;

c) a Constituição Federal, que trará a repartição constitucional de


competências, deve ser rígida e escrita, trazendo cláusula que pro-

27 Les membres de l’Etat fédéral ne sont pas souverains. Cela résulte indirectement, [...],
de ce que la souveraineté et appartient à l’État fédéral, et directement de ce fait que les
constitutions fédérales accordent toutes à l’Etat fédéral et non pas à ses membres le droit de
déterminer sa propre compétence, ce qui est le trait caractéristique de la souveraineté. Les
membres de l’Etat fédéral, n’étant pas souverains n’ont pas le caractère d’Etat, puisque la
souveraineté est l’élément essentiel de la notion d’Etat.

230
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

teja a forma federativa de pretensões de alteração desse sistema;

d) o Estado Federal tem como instrumento jurídico uma constitui-


ção e tem na indissolubilidade do pacto federativo traço essencial;

e) as vontades parciais se fazem representar na elaboração da von-


tade geral através do Senado Federal, que deve guardar a isonomia
dentre as vontades parciais;

f) deve haver guardião da Constituição, zelando pelo cumprimento


da repartição de competências;

g) em casos extremos, a União Federal decretará a intervenção fe-


deral, agindo em nome de todas as vontades parciais onde inexis-
tir motivo ensejador da medida, situação que esse fundamenta na
necessidade de se evitar a desagregação da Federação. (ARAÚJO,
1995, p. 50).

Como aponta Ferreira Filho (2020, p. 46), o modelo federativo se


molda a partir de uma Constituição federal, que reconhece a divisão de
poder entre a Federação (o todo) e os estados-membros (seus compo-
nentes). Dessa divisão, aos estados-membros se atribui: (i) autonomia,
mediante Constituição própria; (ii) autogoverno, eleito pelo povo e que
detém poderes não subordinados ao poder central; e (iii) competências
próprias, ou seja, rendas próprias em uma esfera territorial própria.
Nessa senda, em que pesem as atribuições que lhe são conferidas,
os estados-membros não possuem soberania ou independência, mas tão
somente autonomia, que corresponde ao poder de autodeterminação nos
limites do seu espaço territorial, em relação às suas competências e rendas,
tudo na forma do quanto é definido no texto constitucional (FERREIRA
FILHO, 2020, p. 46).
Importante frisar que o federalismo não pode ser encarado apenas
como um meio de repartição espacial das unidades federadas dotadas de
autonomia, mas como mecanismo que traz consigo a missão de separar e
limitar poderes com vistas à preservação da unidade nacional do Estado
(TORRES, 2019, p. 300).
Nesse sentido, sublinha-se que:

231
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O federalismo, como forma de organização dos Estados que prevê


divisão territorial do poder, em que se permite a coexistência de
mais de uma esfera de poder em um mesmo território, sob coman-
do único, é uma solução para muitos países em que, dadas as suas
peculiaridades, encontram nele uma fórmula capaz de harmoni-
zar culturas e regiões diferentes, além de usar a descentralização
para tornar mais eficiente o atendimento das necessidades públicas.
(CONTI, 2020, p. 243).

Por assim dizer, o federalismo tem como meta alcançar o equilíbrio


entre os entes federativos, objetivo este que nem sempre se revela como de
fácil alcance e realização. E é nesse ponto que cabe abordar o papel tanto
do federalismo simétrico quanto do assimétrico.
A simetria corresponde à uniformidade entre os estados-membros
dentro do sistema federal. Isso implica dizer que, em havendo simetria,
cada estado-membro mantém igual relacionamento com a autoridade
central, havendo ainda a mesma base no tocante à divisão de poderes entre
os entes federados, com igual distribuição das atividades de suporte ao
governo central (RAMOS, 2013, p. 126).
De outra banda, a assimetria pressupõe a diversidade nos graus de
autonomia e poder entre os governos componentes, havendo, portanto,
diferenciação no relacionamento entre um ente com os demais (RAMOS,
2013, p. 126).
O federalismo, a depender do caso, costuma assumir formato assi-
métrico, tratando-se desigualmente os entes de federação, de forma a se
buscar a igualdade ou simetria e atingir o propalado equilíbrio.
Feitas as devidas considerações sobre os elementos conformadores do
modelo federativo, passa-se, no item seguinte, a examinar as característi-
cas que o federalismo assumiu em solo brasileiro.

2. O FEDERALISMO NO BRASIL

O federalismo no Brasil surge contemporaneamente à Proclamação


da República, com a edição do Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889,
que assim dispôs em seu artigo 1º: “Fica proclamada provisoriamente e

232
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

decretada como a forma de governo da Nação brasileira – a República


Federativa.” (BRASIL, 1889).
Substituindo o modelo unitário que vigorou durante o Império, o
modelo federativo foi confirmado pela primeira Constituição republicana
de 1891, que trazia a seguinte disposição:

Art. 1º - A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob


o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15
de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indis-
solúvel das suas antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil.
(BRASIL, 1891).

Observa-se que, muito embora o Brasil tenha se inspirado no modelo


federativo dos Estados Unidos, por aqui a federação surgiu a partir de um
movimento centrífugo, com a descentralização do até então Estado Uni-
tário, diferenciando-se, portanto, do movimento centrípeto, ocorrido em
terras norte-americanas.
Isso não quer dizer, porém, que o federalismo brasileiro não tenha
fincado suas bases no modelo norte-americano. Ao contrário, o modelo
de federalismo implantado pelo Brasil foi amplamente inspirado no mo-
delo dos Estados Unidos, apesar das grandes diferenças culturais, históri-
cas, sociais e econômicas entre as duas nações.
De qualquer modo, desde a sua implantação, o modelo federativo se
manteve no sistema brasileiro, tanto que o atual texto constitucional des-
taca aludida opção em seu artigo 1º, in verbis: “Art. 1º A República Fede-
rativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito
[...]” (BRASIL, 1988).
A propósito, dada a sua relevância, o modelo federativo, consagrado
pelo artigo 1º supracitado, foi erigido à posição de cláusula pétrea pelo
texto constitucional que, na forma do § 4º do inciso I do artigo 60 veda a
deliberação de proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de
Estado. Tratando-se essencialmente do federalismo pátrio, alguns pontos
merecem destaque.

233
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Em primeiro lugar, o federalismo brasileiro, ao ser implantado, va-


leu-se das autonomias regionais como fato histórico. Em outras pala-
vras, a dimensão territorial brasileira somada à diversidade de costumes
e condições naturais foram determinantes para a adoção da Federação
que, inclusive, foi considerada a forma mais adequada para unir as au-
tonomias regionais, mediante descentralização do exercício do poder e
preservação das peculiaridades locais, pela via da repartição constitu-
cional de competências, pacificando-se, dessa forma, os regionalismos
(TEMER, 2008, p. 73).
Partindo do modelo tradicional de federalismo, a descentralização
usualmente ocorre em dois níveis – federal e estadual. No entanto, a or-
ganização federativa brasileira, desde seus primórdios, trilhou o caminho
da descentralização em três níveis – federal, estadual e municipal, todos
com a devida autonomia.
Mais adiante, com o advento da Constituição de 1988, os municípios
foram elevados à posição de entes da Federação, em situação de igualdade
quanto à União e aos estados-membros, na medida em que passaram à
condição de entes dotados de competências e rendas.
Trazendo os municípios para a Federação e atribuindo-lhes com-
petências, buscou a Constituição Federal de 1988 criar um modelo de
descentralização fiscal, administrativa e legislativa que, acompanhada pela
atribuição de autonomia aos entes federados, propiciasse um novo pacto
federativo que, por sua vez, favoreceria a aproximação entre governos e ci-
dadãos tanto no plano regional quanto no plano local (RANIERI, 1994,
p. 96).
Cumpre igualmente trazer à baila o posicionamento de Bonavides
(2004) que, indo além da divisão federativa entre União, Estados e Muni-
cípios, inova ao advogar uma revisão federativa de forma a incluir os entes
regionais, atribuindo-lhes presença e participação ativa no quadro geral de
competências autônomas com feição política.
Bonavides (2004) disserta ainda que, apesar de a Constituição de
1988 haver inserido uma seção específica para as regiões, tal medida não
foi além do caráter meramente administrativo, não assumindo, portanto,
a vocação de transformar as regiões em instâncias federativas.

234
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Com efeito, considerada a atual feição federativa, União, estados e


municípios detêm autonomia e não possuem qualquer grau de hierarquia
entre si, salvo em alguns casos excepcionais como, por exemplo, nos casos
de intervenção da União nos estados ou quando da necessidade de inter-
venção de estados-membros nos municípios.
Nessa trilha, é possível afirmar que

o Estado Federal é, por característica, um Estado descentralizado,


no qual se reserva uma esfera de ação autônoma a cada unidade
federada. A regra nesse tipo de Estado é a distribuição de compe-
tência, sem hierarquia. Cada unidade federada tem competência
para tratar de determinados assuntos, sem que a União possa se
imiscuir neles, nem vice-versa. (GUTIERREZ, 2004, p. 36-37).

Outro aspecto que merece ser citado diz respeito à repartição de com-
petências e de atribuições, na forma estabelecida pela Constituição, entre
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, fornecendo os alicerces ao
pacto federativo.
O pacto federativo corresponde justamente à “forma pela qual se for-
ma e se organiza o Estado Federal. Diz respeito à distribuição de compe-
tências entre a União, os Estados-membros e os Municípios” (OLIVEI-
RA, 2019, p. 87). Dito de outra forma, “o Estado Federal tem autonomia,
que é revelada através de uma repartição constitucional de competências,
como forma de manter o equilíbrio e o pacto federativo” (ARAÚJO,
1995. p. 42).
Relacionando competência e autonomia, sustenta-se que “a compe-
tência se reflete na autonomia política (eleição dos governantes) e admi-
nistrativa (cuidar de seus próprios interesses sem interferência de outra
esfera)” (OLIVEIRA, 2019, p. 90).
É dizer que, no sistema federativo, os entes subnacionais – Estados,
Distrito Federal e Municípios – possuem autonomia política, administra-
tiva, jurídica e financeira, sem que tais atributos impliquem em quebra ou
mácula ao princípio da unidade nacional. E, assim, a despeito da autono-
mia que lhes compete, as unidades subnacionais, imbuídas do caráter soli-
dário, atuam de forma cooperativa, mantendo intacta a unidade nacional.

235
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

3. FEDERALISMO BRASILEIRO: CENTRALIZAÇÃO


VERSUS DESCENTRALIZAÇÃO

Ponto que suscita debate diz respeito à descentralização como ele-


mento basilar do federalismo. Contudo, há que se advertir que, no bojo
do federalismo, o grau de descentralização pode variar tanto de país a país
quanto ao longo do tempo dentro de um mesmo país.
Decerto que a opção por um federalismo mais centrífugo (descentra-
lizado) ou centrípeto (centralizado) decorre diretamente da opção política
de um Estado e é, usualmente, refletida em sua Constituição, não cabendo
interpretar a opção por um ou outro modelo como mais escorreito.
Muito embora o federalismo tenha como corolário a descentraliza-
ção, e não raras vezes seja a ela vinculado, é de se apontar que, no Brasil, o
modelo federativo, ao longo de sua trajetória, desde o estabelecimento do
sistema republicano até os dias atuais, vive numa espécie de vaivém entre
a centralização e a descentralização.
O citado conflito não é atinente, obviamente, à questão territorial ou
geográfica, visto que essa modalidade de descentralização existe até os dias
atuais. Outra, porém, é a conclusão no tocante às competências e rendas,
estas, sim, oscilando, a depender do período histórico vivenciado e reflexo
direto das circunstâncias políticas vigentes.
Como ensina Carvalho (1996, p. 34, tradução nossa), “o Brasil apre-
senta um caso nítido de alternância entre fases de grande poder dos esta-
dos seguidas por etapas de forte centralismo político, para retornar pos-
teriormente ao modelo federal. Se trata de um movimento pendular.”28
Bonavides (1980, p. 119-120) vai além ao afirmar que o Brasil deixou
de ser República Federativa, convertendo-se em Estado Unitário nas fases
mais agudas da história. Na sua opinião, o processo centralizador que pa-
rece ter atingido o seu ápice durante o Estado Novo teve a sua reincidên-
cia mais violenta durante os dez anos do AI-5.

28 El Brasil presenta um caso nítido de alternancia entre fases de gran poder de los estados
seguidas por etapas de fuerte centralismo político, para retornar posteriormente al modelo
federal. Se trata de um movimento pendular.

236
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

De qualquer modo, o que se verificou ao longo da história política e


fiscal brasileira e que caracterizou o sistema federativo brasileiro foi um
movimento pendular. Como já dito anteriormente, o federalismo implan-
tado no Brasil foi praticamente copiado do modelo adotado pelos Estados
Unidos, sobressaindo-se a descentralização, inclusive fiscal e administrati-
va (CARVALHO, 1996, p. 40-41).
Ressalta-se que esse modelo de federalismo descentralizado perdurou
durante um período em que a política era controlada por oligarquias locais
(coronéis) e estatais, com os estados mais ricos (São Paulo e Minas Gerais)
dominando a política nacional (CARVALHO, 1996).
Com a Revolução de 1930, o federalismo se desloca para um mode-
lo mais centralizado. Inspirada no modelo de Weimar, a Constituição de
1934, liberal e federalista, ampliou os poderes da União, inclusive quanto
à intervenção nos estados (CARVALHO, 1996). Mais adiante, a partir
do estabelecimento do Estado Novo, em 1937, e da promulgação de uma
nova Constituição, a tendência centralizadora atingiu novos patamares,
sendo aprofundada pelo advento da Segunda Guerra Mundial (CARVA-
LHO, 1996).
O Estado Novo, que perdurou até 1945, foi um período marcada-
mente ditatorial, com o governo central invadindo todas as áreas de po-
líticas públicas e eliminando a descentralização política (CARVALHO,
1996). Em 1945, o pêndulo oscila novamente em direção oposta. Tem
início um período representado pela democracia de massas e marcado
pelo populismo e pelo nacionalismo. A União manteve boa parte dos po-
deres conquistados anteriormente, mas o federalismo foi restaurado, com
os governadores voltando a ser eleitos (CARVALHO, 1996).
Nova reviravolta ocorre em 1964, com o início do Regime Mili-
tar, ocasião em que há o retorno do modelo centralizado, levando a in-
tervenção estatal a todas as esferas, apesar da retórica econômica liberal
(CARVALHO, 1996). Aliás, a centralização observada durante os anos do
regime Militar superou, e muito, aquela verificada no decorrer do Estado
Novo (CARVALHO, 1996).
Por fim, com a redemocratização do país e a instalação da Assem-
bleia Constituinte, que culminou com a promulgação, em 1988, da atual

237
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Constituição, assistiu-se a um claro favorecimento dos estados e municí-


pios em detrimento da União (CARVALHO, 1996).
Com base no exposto, observa-se que, muito embora o federalismo
carregue consigo características e elementos que lhe são peculiares, aludi-
do modelo é capaz de conviver com uma organização de poder centrali-
zado ou descentralizado.
É bem verdade que, ao se fazer referência ao federalismo, o mais
usual é considerar a descentralização como peça elementar, mas, como
visto, o Brasil vivenciou períodos, ora mais tendentes à centralização, ora
com maior descentralização do poder, sem abandonar, contudo, a forma
federativa.
Aliás, o movimento pendular, oscilatório entre centralização e des-
centralização não é fato estranho ao federalismo. Como ensina Ranieri
(1994), apesar de a descentralização ser um dos caracteres do federalismo,
o movimento tendente à centralização, em maior ou menor grau, tem
correspondência direta ao próprio de nível de intervencionismo estatal
adotado pelo modelo de Estado Social.
Nessa esteira, destaca Meira (2011, p. 260) que “toda a história po-
lítica brasileira, em suas fases sucessivas, desde a independência em 1822,
apresenta esse fenômeno de centrifugismo e centripetismo como se fos-
sem a sístole e a diástole da nação, impulsionada para o futuro.”
Em suma, é possível afirmar que o federalismo brasileiro, de origem
centrífuga e inicialmente de vocação dualista, assume, atualmente, feição
clara e patentemente descentralizada, até mesmo como opção política
adotada pelo constituinte de 1988.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Adotando o modelo federativo, o Brasil republicano, ao longo de sua


história, deparou-se com momentos e acontecimentos que incontestavel-
mente marcaram a repartição de poder entre União, Estados, Distrito Fe-
deral e Municípios.
Porquanto os entes subnacionais – Estados, Distrito Federal e Muni-
cípios – detenham inegável autonomia política, administrativa, jurídica e
financeira, o que se verifica no Brasil é uma dinâmica de poder que oscila

238
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

entre momentos de maior centralização e em momentos quando a des-


centralização se sobressai. Desse modo, pode-se dizer que a migração do
poder centralizado para o poder descentralizado, e vice-versa, é observada
em momentos marcados por rupturas históricas.
A título de exemplo, basta verificar que períodos marcados por re-
gimes políticos repressivos e de caráter ditatorial, tal como sucedeu com
o advento do Estado Novo, na década de 1930, e do Regime Militar, na
década de 1960, trouxeram consigo a centralização de poder. Em sentido
inverso, nos momentos de democratização do país, a descentralização foi
o modelo que se destacou.
Diante do exposto, é possível concluir que, a despeito de o federalis-
mo se destacar como modelo essencialmente descentralizado, é possível
que esse mesmo sistema sobreviva e conviva com maior ou menor des-
centralização do poder, a exemplo do que tem sido observado ao longo da
história brasileira.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, Luiz Alberto David. Características comuns do federalismo.


In: BASTOS, Celso (coord.). Por uma nova federação. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995. p. 39-52.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São


Paulo: Malheiros, 2004.

BONAVIDES, Paulo. O caminho para um federalismo das regiões. Re-


vista de Informação Legislativa, Brasília, DF, v. 17, n. 65, p. 115-
126, jan./mar. 1980. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/
bdsf/handle/id/181197. Acesso em: 20 abr. 2023.

BRASIL. [Constituição (1891)]. Constituição da República dos Es-


tados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Presidência da República,
[1891]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao91.htm. Acesso em: 15 abr. 2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,

239
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

[1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-


tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 abr. 2023.

BRASIL. Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889. Proclama pro-


visoriamente e decreta como forma de governo da Nação Brasilei-
ra a República Federativa, e estabelece as normas pelas quais se de-
vem reger os Estados Federais. Rio de Janeiro: Governo Provisório,
[1889]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/de-
creto/1851-1899/d0001.htm. Acesso em: 15 abr. 2023.

CARVALHO, José Murilo de. El federalismo brasileño: perspectiva his-


tórica. In: CHÁVEZ, Alicia Hernández. ¿Hacia um nuevo fede-
ralismo? México: El Colégio de México, 1996. p. 34-64.

CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da Adminis-


tração Pública no Brasil. São Paulo: Blucher Open Access, 2020.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitu-


cional. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

GUTIERREZ, Miguel Delgado. Repartição de receitas tributárias: a


repartição das fontes de receita, receitas originárias e derivadas, a
distribuição da competência tributária. In: CONTI, José Maurício
(org.). Federalismo Fiscal. Barueri: Manole, 2004. p. 33-66.

LE FUR, Louis. État Fédéral et Confédération D’États. Paris: Edi-


tions Panthéon-Assas, 2000.

MEIRA, Sílvio. Federalismo e centralização. Doutrinas Essenciais de


Direito Constitucional, São Paulo, v. 3, p. 257-275, maio 2011.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 8. ed.


São Paulo: Malheiros, 2019.

RAMOS, Dircêo Torrecillas. O federalismo assimétrico: unidade na di-


versidade. In: RAMOS, Dircêo Torrecillas (coord.). O federalista
atual: teoria do federalismo. Belo Horizonte: Arraes, 2013. p. 121-
140.

24 0
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

RANIERI, Nina Beatriz Stocco. Sobre o federalismo e o estado federal.


Revista de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo,
v. 9, p. 87-98, out./dez. 1994.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 22. ed. São


Paulo: Malheiros, 2008.

TORRES, Heleno Taveira. Constituição financeira e o federalismo coo-


perativo brasileiro. In: SCAFF, Fernando Facury et al. (coord.). Fe-
deralismo (s)em juízo. São Paulo: Noeses, 2019. p. 287-332.

24 1
CONSENSUALIDADE NA
IMPROBIDADE: REFLEXÕES SOBRE
O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO
CIVIL
Marcela Rodrigues Pavesi Lopes29

INTRODUÇÃO

Quando foi editada a Lei nº 8.429/1992, mais conhecida como Lei


de Improbidade Administrativa (LIA), o legislador fez questão de deixar
expresso no texto a proibição de realizar “transação, acordo ou concilia-
ção” nas ações regulamentadas pelo diploma legal. Todavia, esse quadro
parece ter sido revertido pela edição da Lei nº 13.9614/2019, que instituiu
o Acordo de Não Persecução Civil (ANPC), e pela recente publicação da
Lei nº 14.230/2021, que introduziu, no artigo 17-B, critérios para a sua
celebração.
Da leitura dos dispositivos incluídos na LIA, em um primeiro mo-
mento, surge a indagação se a modalidade de ajuste inserida representa,
de fato, a resolução do conflito por composição entre as partes, na me-
dida em que a utilização do ANPC só é admitida em situações nas quais

29 Mestranda em Direito Processual pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Uni-


versidade Federal do Espírito Santo (PPGDIR/UFES). Assessora Nível IV da Procuradoria da
República no Espírito Santo (MPF/PRES).

24 2
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

estão presentes elementos para a propositura ou manutenção da ação de


improbidade.
O presente artigo pretende refletir sobre o novo instituto, e demons-
trar que é possível associar o ANPC ao conceito de transação. Para tanto,
inicialmente será traçado o caminho que levou à aceitação da utilização de
métodos adequados de resolução de conflitos da Administração Pública,
bem como a demandas de improbidade administrativa.
Em seguida, é feita uma digressão sobre os dispositivos que regula-
mentam o ANPC e, ato contínuo, são tecidos breves comentários sobre
os métodos consensuais utilizados em nosso sistema jurídico, com ênfase
naqueles indicados pelo Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15).
Para abordar as formas de celebrar acordo na improbidade, é utilizado
o modelo proposto por Cláudio Madureira na obra Advocacia Pública, que
possibilita a entabulação de ajustes pelo Poder Público. O modus operandi
ali indicado pode ser de grande valia para resolver os problemas de duração
razoável e efetividade que atualmente assolam as ações de improbidade
administrativa.

1. CONSENSUALIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


E NA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Durante muito tempo prevaleceu a ideia de que a Administração


Pública não poderia fazer acordos para solucionar os conflitos nos quais
estivesse envolvida, sob a ótica de que a defesa do interesse público de-
mandava recusar-se a fazer qualquer tipo de concessão. Na lição de Celso
Antônio Bandeira de Mello (2013, p. 76), os interesses públicos, por se-
rem próprios da coletividade, não são disponíveis para que o órgão admi-
nistrativo aja como deseja, sendo este apenas um “curador”, a quem cabe
cuidá-los – “na estrita conformidade do que predispuser a intendo legis”.
Adotou-se o mesmo entendimento na edição da Lei nº 8.429/1992,
que regulamenta o mandamento do artigo 37, § 4º da Constituição da
República Federativa do Brasil (CRFB), estabelecendo as condutas que
configuram atos de improbidade administrativa, os sujeitos, as sanções
aplicáveis e o procedimento.

24 3
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Assim, o art. 17, § 1º da referida lei, na redação original, vedava ex-


plicitamente a realização de “transação, acordo ou conciliação” nas ações
de improbidade.
Tal proibição gerava situações dicotômicas em relação às consequên-
cias jurídicas relacionadas a um mesmo ato. Explica-se: caso o agente pra-
ticasse conduta que se enquadrava, ao mesmo tempo, em tipo penal e
em ato de improbidade administrativa, poderia beneficiar-se de institu-
tos despenalizadores quanto ao crime (como transação penal e suspensão
condicional do processo, previstas na Lei nº 9.099/1995), mas nada lhe
socorria em relação à ação de improbidade, mesmo naqueles casos em que
as circunstâncias concretas indicassem a solução consensual.
Além disso, há que se examinar os reflexos práticos da não realização
de ajustes em relação à razoável duração do processo (CRFB/88, art. 5º,
LXXVIII) e à efetividade das decisões judiciais (CPC/15, art. 4º). O Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ) realizou pesquisa intitulada “Lei de im-
probidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos
atos de improbidade” (GOMES JUNIOR, 2015), a qual compilou dados
importantes sobre a persecução da improbidade.
Extrai-se do referido estudo que a duração média de uma ação desse
tipo é de mais de 4 (quatro) anos (GOMES JUNIOR, 2015, p. 37-38),
e que somente em cerca de 10% (dez por cento) dos casos observou-se a
ocorrência de ressarcimento ao erário, seja total ou parcial (GOMES JU-
NIOR, 2015, p. 70).
Abordando os aspectos apontados nos dois parágrafos anteriores,
Christiano Jorge Santos e Silvio Antonio Marques (2020, p. 292) desta-
cam que a impossibilidade de acordos na improbidade tinha potencial de
acarretar prejuízos “para o particular e para o Estado brasileiro”. Nessas
situações, ficava inviabilizada a solução negociada em outras searas, como
a colaboração premiada, compelindo o ajuizamento de mais demandas
judiciais. Ademais, o tempo dispendido para obtenção de provas e recu-
peração de valores acabava por aumentar.
Portanto, o apego exagerado ao entendimento de que a supremacia
do interesse público constituiria um impedimento de se fazer qualquer
concessão, por via reflexa, trazia obstáculos para os resultados concretos

24 4
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

pretendidos nas ações de improbidade. Além disso, a demora na con-


clusão dos processos e na recuperação de ativos aumenta a sensação de
impunidade em relação a atos ímprobos – em um país que já se encontra
em situação pior do que a média mundial na percepção de corrupção
(LANÇA, 2021).
Com o avanço da utilização de métodos adequados de resolução
de conflitos no sistema jurídico nacional, impulsionado pela edição do
CPC/15, a tendência de consensualidade foi, aos poucos, angariando acei-
tação para aplicação em questões envolvendo a Administração Pública.
Tanto é que a Lei nº 13.140/2015 traz um capítulo específico para estabe-
lecer e regular a autocomposição envolvendo pessoas jurídicas de direito
público (capítulo II, artigos 32 a 40). A denominada Lei de Mediação
contém, em seu art. 36, § 4º, previsão específica sobre conciliações em
improbidade, ainda que condicionando-as à “anuência expressa do juiz da
causa ou do Ministro Relator”.
A partir de todas as previsões legais supramencionadas, evidencia-se
que não existe incompatibilidade entre a indisponibilidade do interesse
público e a utilização de negócios consensuais por parte do Poder Públi-
co. A ideia de conflito entre aquele princípio e a solução ajustada entre as
partes surge de uma análise incorreta sobre o que seria interesse público e
a melhor forma de alcançá-lo.
Cláudio Madureira, ao analisar o conceito de interesse público, de
acordo com diversas vertentes doutrinárias, observou ser acertada a defi-
nição dada por Bandeira de Mello (2013, p. 62, grifo nosso), que aponta
o interesse público como a soma “dos interesses que os indivíduos pessoal-
mente têm quando considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e
pelo simples fato de o serem”.
O autor capixaba alerta para a necessidade de haver apenas uma atua-
lização, relacionada à ponderação que deve ser feita pelo intérprete diante
de cada caso concreto, entre os princípios jurídicos que aparentam estar
em colisão, para encontrar o “efetivo conteúdo do interesse do Estado e
da sociedade na observância da obra jurídica estabelecida [...]” (MADU-
REIRA, 2016, p. 95-96). Logo, com base em tais argumentos, faz sentido
que o Poder Público possa ponderar e concluir que, em determinadas si-

24 5
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

tuações, uma solução acordada com o particular possa oferecer resultados


melhores do que uma decisão imposta unilateralmente.
Apesar de existirem interesses intransponíveis, que não devem ser
objeto de qualquer negociação, não se poderia negar que a solução não
adversarial gera efeitos muito positivos para determinadas situações admi-
nistrativas, como enumeram Neves e Fereira Filho (2017, p. 60):

A consensualidade, ao invés de traduzir incompatibilidade com o


interesse público, vai, na verdade, ao encontro do seu intento, con-
cretizando-o em sua integralidade. Isso porque a resolução através
de meios consensuais, quando analisada como vantajosa diante do
custo-benefício, permite externalidades extremamente positivas,
como: atendimento às exigências de legitimidade da decisão ad-
ministrativa; pretensa desburocratização dos procedimentos deci-
sórios; sua efetividade, diante de resultados qualificados, especial-
mente em face da aceitação dos agentes envolvidos; além de ajudar
no enfrentamento vivenciado pela crise do judiciário brasileiro.

A Lei nº 13.655/2018 seguiu por esse caminho, alterando a redação de


dispositivos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB)
e, com isso, abrindo as portas para que o Poder Público celebrasse acordos,
seguindo certas diretrizes, descritas no artigo 26 do diploma legal.
Atento ao movimento de consensualidade, o Conselho Nacional do
Ministério Público (CNMP) permitiu a utilização do compromisso de
ajustamento de conduta em casos de improbidade, estabelecendo como
conteúdo mínimo o ressarcimento ao erário e a aplicação de pelo menos
uma das penalidades previstas na LIA na Resolução 179, de 26 de julho
de 201730.
A edição da referida norma reflete o fomento do órgão de controle ao
“perfil resolutivo” do Ministério Público (MP), para que os membros “se

30 Previsto no art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública), confira-se:
Art. 5º - Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I. o Ministério
Público; [...] § 6° Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compro-
misso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante combinações, que terá
eficácia de título executivo extrajudicial.

24 6
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

concentrem na atividade extrajudicial, privilegiando-se o papel de media-


dor dos conflitos, evitando-se, assim, a judicialização dos problemas da
coletividade” (ANDRADE, 2020, p. 197).
Contudo, a aplicação do instituto não resolvia todos os problemas,
pois remanescia o limite legal trazido pela Lei nº 8.429/1992, impossibi-
litando a celebração de acordos no curso da ação de improbidade. Des-
se modo, os compromissos de ajustamento de conduta somente eram
cabíveis nos casos em que ainda não tinha ocorrido o ajuizamento da
demanda.
O texto do art. 17, § 1º, da LIA ia cada vez mais de encontro às de-
mais previsões do ordenamento jurídico e ao modelo de processo pro-
posto pelo CPC/15, mostrando-se desencontrado do que era o desejado
pelo sistema jurídico nacional. Assim, dentro do conjunto de mudanças
legislativas denominado Pacote Anti-Crime (Lei nº 13.964/2019), foi al-
terada a redação anterior da LIA, criando o instituto do Acordo de Não
Persecução Civil (ANPC).
Porém, ainda não haviam sido satisfatoriamente atendidas todas as
questões a respeito da consensualidade, pois o tipo legal faz referência ape-
nas à utilização do acordo em ações, ou seja, sem mencionar o uso pré-
-processual do instituto.
Além disso, salvo pela previsão de interrupção do prazo de contes-
tação por até 90 (noventa) dias para que as partes buscassem a solução
consensual (§ 10-A), não havia nenhuma regra procedimental para imple-
mentação do ANPC.
Posteriormente, a Lei nº 14.230/2021 inseriu o artigo 17-B na LIA,
mantendo a autorização para negociação de ANPC, bem como apontan-
do os critérios e o procedimento para realização, que serão expostos no
capítulo a seguir.

2. PROCEDIMENTO PREVISTO PARA O ANPC (ART.


17-B DA LIA)

A leitura inicial dos dispositivos do art. 17-B da LIA demonstra o cui-


dado do legislador de não colocar muitas amarras para o ajuste das cláu-
sulas, deixando as negociações transcorrerem de forma mais livre entre

24 7
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

os interessados. Como observa Leydomar Nunes Pereira (2020, p. 42),


ao colocar as luzes sobre as partes para a obtenção da solução negociada,
demanda-se uma alteração na forma de pensar do MP, “de uma postura
repressiva e demandista para uma postura negocial”.
Logo no caput o tipo legal parece indicar que a celebração de acordo
não é direito subjetivo do requerido, em razão do emprego do verbo
“poderá”, além da expressão “conforme as circunstâncias do caso con-
creto”. Portanto, na mesma linha da suspensão condicional do processo
do Direito Penal (Lei nº 9.099/1995)31, o ANPC deve ser compreendido
como um “poder-dever” do MP, titular exclusivo da ação de improbi-
dade32, a quem cabe avaliar, motivadamente, a conveniência e a oportu-
nidade de oferecimento ou não de acordo conforme as circunstâncias do
caso concreto.
É nítida a preocupação de que a parte requerida tenha a devida orien-
tação técnica a fim de auxiliar na tomada de decisão sobre a celebração
do ANPC, pois a lei exigiu, no momento da negociação dos termos, a
presença do defensor do investigado ou demandando (§ 5º).
O legislador também se ocupou de apontar o conteúdo mínimo do
acordo, que deve comportar o integral ressarcimento do dano (caput, in-
ciso I) e a reversão da vantagem indevida à pessoa jurídica lesada (caput,
inciso II). Além disso, o § 6º abre opção para que os termos ajustados con-
templem outras medidas além das sanções previstas na LIA, com fins mais
preventivos, como incentivo às denúncias, aplicação efetiva de códigos de
ética, bem como quaisquer outras “em favor do interesse público e de boas
práticas administrativas”.

31 Nesse sentido, julgados do STJ: AgRg no HC 654.617/SP. Relator: Min. Rogerio Schietti
Cruz, Sexta Turma, julgado em 05 de outubro de 2021, DJe 11 de outubro de 2021; AgRg
no HC 504.074/SP. Relator: Min. Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, julgado em 13
de agosto de 2019, DJe 23 de agosto de 2019; AgRg no AREsp n. 607.902/SP. Relator: Min.
Gurgel De Faria, Quinta Turma, julgado em 10 de dezembro de 2015, DJe 17 de fevereiro
de 2016.
32 Cf. redação do art. 17, caput, da LIA, com redação dada pela Lei nº 14.230/2021.

24 8
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A previsão da aplicação de providências que possuem natureza pre-


ventiva, e não somente sancionatória, mostra-se afinada com o princípio
constitucional da eficiência, e pode se mostrar uma importante ferra-
menta de inibição da ocorrência de novas práticas lesivas à probidade
administrativa. Não se vê impedimento, inclusive, para que em deter-
minadas situações o ANPC contenha somente cláusulas que atendam
ao que define o § 6º, como em casos que violam os princípios da Admi-
nistração Pública, mas não geram danos ao erário e nem importam em
enriquecimento do agente.
Para negociar as cláusulas e definir as sanções e medidas que o caso
demanda, a lei recomenda que sejam considerados aspectos como a perso-
nalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercus-
são social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse
público, da rápida solução do caso (§ 2º).
Previu-se ainda a necessidade de oitiva do ente federativo prejudicado
pelo ato de improbidade, em momento anterior ou posterior à propositura
da ação (§ 1º, I), que faz sentido para que o órgão ofendido possa avaliar
se as cláusulas estipuladas atendem ao exigido para recompor os prejuízos
causados pela conduta lesiva. Por sua vez, adotou-se um critério objetivo
para apuração de valores do dano, com a oitiva do Tribunal de Contas
respectivo, que terá o prazo de 90 (noventa) dias para se manifestar, indi-
cando os parâmetros utilizados no cálculo (§ 3º).
Foi dada ampla liberdade quanto ao momento da celebração do
ANPC, que pode ocorrer desde a investigação, no curso da ação ou até
mesmo no momento da execução da sentença condenatória (§ 4º). Ficou
estabelecida, contudo, uma ligeira distinção no procedimento de controle
dos termos do acordo, disposta no § 1º, incisos II e III. Caso seja celebrado
em momento pré-processual, ou seja, no curso do Inquérito Civil ou de
outro procedimento de investigação do MP, depende de aprovação do
respectivo órgão revisor e de homologação judicial. Já o acordo firmado
durante a tramitação do processo, em qualquer fase, demanda apenas ho-
mologação do juízo.
Por fim, previu-se que o descumprimento do acordo gera impedi-
mento de celebrar novo ajuste pelo prazo de 5 (cinco) anos, contados do
conhecimento acerca do inadimplemento pelo MP (§ 7º).

24 9
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

3. CLASSIFICAÇÃO METODOLÓGICA DO ANPC

Feito o escorço do caminho percorrido para a utilização de consen-


sualidade na improbidade administrativa e o delineamento do procedi-
mento e dos requisitos mínimos estabelecidos pelo ordenamento jurídico,
passa-se a refletir sobre em que ponto o ANPC se enquadra dentro dos
meios adequados de solução dos litígios.
Para tanto, é necessário fazer uma breve incursão na classificação dos
métodos de solução de conflitos que não envolvem a jurisdição e que são
reconhecidos por nosso ordenamento jurídico33.

3.1. CPC/15 E OS MEIOS ADEQUADOS DE SOLUÇÃO


DE LITÍGIOS

É importante observar que o CPC/15, ao encampar um novo modelo


para o sistema processual baseado na Constituição e buscar um processo
mais democrático, optou por privilegiar soluções a fim de reduzir a liti-
giosidade e trazer maior celeridade para a solução dos conflitos, dentre os
quais o emprego dos meios adequados de resolução de controvérsias.
Tal preferência fica evidente já na Exposição de Motivos da Comis-
são de Juristas, apresentada em 2010, especialmente pelo seguinte trecho:
“Entendeu-se que a satisfação efetiva das partes pode dar-se de modo mais
intenso se a solução é por elas criada e não imposta pelo juiz.” (BRASIL,
2010, p. 245).
As colocações do novo código representam uma mudança de para-
digma em relação ao que estava posto no sistema anterior e à visão do
processo, que passa a assumir novos moldes e deve ser observada pelos
intérpretes e operadores do Direito de forma diferente. O CPC/15 deixa
claro que a prolação de decisão de mérito por membro do Poder Judiciá-
rio investido de jurisdição não é a única forma de garantir o amplo acesso

33 A autotutela, modelo mais primitivo, que compreende a utilização da força para alcançar
as próprias pretensões, somente pode ser utilizada se houver previsão expressa que abar-
que a conduta, como no caso da legítima defesa prevista no artigo 25 do Código Penal. Por
tal motivo, não será analisada no texto.

250
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

à justiça, consagrando a arbitragem e a solução consensual de conflitos


como outros meios de atingir tal objetivo.
Assim, como define Cláudio Madureira (2017, p. 86), o novo regula-
mento processual configurou inúmeros caminhos para obtenção de acesso
à justiça, ou melhor, “para que os contendores obtenham, mediante pro-
cedimento institucionalizado, a realização dos direitos e da justiça, ins-
taurando, assim, o que em doutrina se convencionou chamar Tribunal
Multiportas.”
O CPC/15 deu especial atenção aos métodos de heterocomposição,
ou seja, aqueles que contam com a presença de um terceiro para interme-
diar o diálogo entre as partes na busca da solução. No rito processual esta-
beleceu-se a realização de uma audiência prévia34, anterior à apresentação
de resposta do réu, com vistas a incentivar a composição entre as partes
por meio das técnicas de mediação ou conciliação. A diferença entre as
duas reside no grau de participação que se admite ao terceiro, baseado no
tipo de direito envolvido.
Desse modo, a conciliação tem lugar em conflitos nos quais as partes
não possuem vínculo anterior, o que dá maior liberdade de atuação ao con-
ciliador, sendo-lhe permitido, como ensinam Cândido Dinamarco e Bruno
Lopes (2018, p. 32), sugerir soluções e induzir a composição amigável.
Por sua vez, nos casos em que existe vínculo entre as partes anterior ao
conflito que se pretende resolver, utiliza-se a mediação. Buscando dar fim
à celeuma e ainda preservar a relação anterior das partes, o mediador não
sugere soluções diretamente, competindo-lhe atuar “resgatando a comu-
nicação entre as partes, permitindo que estas verifiquem, por si, a solução
mais conveniente para a contenda, identificando interesses e promovendo
a flexibilização de ambos os lados” (MOURÃO et al., 2014, p. 48).
O novo estatuto processual ainda menciona “outros métodos de solu-
ção consensual de conflitos”, dos quais destacamos o que não tem a parti-
cipação de terceiros intervenientes, denominado autocomposição, que se
caracteriza pelo empenho das partes envolvidas no litígio em resolvê-lo,
por meio de quatro caminhos, a depender de quem disporá de parcela dos

34 V. CPC/15, art. 3º, §3º; arts. 165 a 175; art. 334.

251
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

próprios direitos. Na lição de Rosemiro Pereira Leal (2018, p. 46) são as


quatro soluções clássicas provenientes da autocomposição,

A renúncia consistia em se tornar silente o prejudicado ante o fato


agressor a si mesmo ou a seu patrimônio. Submissão era a acei-
tação resignada das condições impostas nos conflitos ou pugnas
individuais ou sociais. A desistência era o abandono da oposição já
oferecida à lesão de um direito ou o não exercício de um direito já
iniciado. A transação distinguia-se pela troca equilibrada de inte-
resses na solução dos conflitos.

Pontua-se que nada impede que tais resultados sejam obtidos me-
diante intervenção de terceiro, ou seja, por mediação ou conciliação. Em
outras palavras, se por si só ou com a presença de outra pessoa para pro-
mover a dialeticidade pode ocorrer renúncia, submissão, desistência ou
transação.
Fixados tais conceitos, parte-se para a análise do local em que se inse-
re o ANPC no conjunto de métodos adequados de resolução de conflitos.
À primeira vista, surge a indagação: a nova modalidade de ajuste re-
presenta, de fato, resolução de conflito por meio de concordância entre as
partes? É que, a priori, não parece encerrar via de mão dupla, na medida
em que apenas admite a celebração de acordos quando existem elementos
para propositura de ação de improbidade, ou quando esta já está em curso.
Por outro lado, observa-se que no ANPC, tanto o MP quanto o in-
vestigado ou demandado renunciam à sua parcela de interesse a fim de ter
em retorno algum benefício. Para o Parquet também se afigura favorável a
efetividade. Mesmo que as sanções negociadas sejam em patamar inferior
ao que seria alcançado em eventual condenação, existe uma maior garan-
tia de cumprimento/pagamento e um controle superior sobre a forma de
satisfazer as cláusulas ajustadas.
Já para a parte, celebrar o acordo garante mais segurança e maior con-
trole sobre o resultado, ou seja, sobre os montantes de sanções a que se
sujeitará bem como à forma de cumprimento das cláusulas.
Além disso, a celeridade na resolução da demanda favorece ambos
os envolvidos. Conforme já destacado anteriormente, o prazo médio de

252
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

duração de uma ação de improbidade é de 4 (quatro) anos. Assim, o ins-


tituto previsto no art. 17-B da LIA pode ser enquadrado como acordo, já
que comporta concessões e benefícios mútuos dos envolvidos, bastando,
agora, identificar por qual método este será celebrado.

3.2. MÉTODOS PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA


CELEBRAR ACORDOS

Na obra Advocacia Pública, Cláudio Madureira (2016, p. 346-351)


aponta como modus operandi para a implementação de acordos pelo Poder
Público duas espécies distintas, dependendo do motivo que leva à busca
de solução negociada, que pode ser por equívoco da Administração Pú-
blica ou pela conclusão de que mover a máquina pública para ajuizar uma
ação (ou continuar movimentando-a, caso o processo já esteja em curso)
não é o que melhor atende ao interesse público, ou seja, “não vale a pena”
(MADUREIRA, 2016, p. 350).
No primeiro caso, o de erro por parte do administrador público, a so-
lução consensual é atingida por meio de composição de litígios, que não se
fundamenta em lei autorizativa, mas na própria Constituição, e presta-se
para as situações nas quais o ente público se convence, no caso concreto,
de que a outra parte tem razão (ainda que parcialmente), ou seja, não há
mutualidade de concessões.
Trata-se, em última análise, do exercício de autotutela35, ou seja, nos
casos em que os agentes públicos “incorreram em equívoco quando da
aplicação originária do direito”, cabe ao ente garantir ao administrado o
gozo do direito prejudicado “tal como ela o teria fruído se a Administra-
ção não tivesse se equivocado por ocasião da realização do ato impugna-
do.” (MADUREIRA, 2016, p. 350).
Os atos jurídicos são dotados de presunção de legalidade (“compatí-
veis com a lei”), legitimidade (“coadunam com regras da moral”) e vera-

35 STF, Súmula 473: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de
vícios que os tornam ilegais, porque dêles não se originam direitos; ou revogá-los, por mo-
tivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em
todos os casos, a apreciação judicial.”

253
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

cidade (“os fatos nele alegados são condizentes com a realidade posta”),
contudo, a presunção não é de natureza absoluta, pois comporta prova em
contrário (MARINELA, 2015, p. 330). Assim, caso a própria Adminis-
tração Pública verifique que não procede a presunção atribuída a deter-
minado ato, não pode continuar advogando em favor dele e insistindo na
sua execução.
Transportando a técnica para a persecução da improbidade adminis-
trativa, esta caberá quando, após reanálise ou esclarecimento de dúvida
sobre matéria fática ou sobre aplicação do direito, conclua-se pela desca-
racterização do ato praticado como ímprobo. Verificado o “erro”, é dever
do MP corrigi-lo, sem que isso implique em qualquer tipo de exigência
que faça a outra parte renunciar a alguma parcela do próprio direito. Caso
tal ponto não fosse observado, configuraria afronta ao interesse público,
que “impõe aos agentes públicos uma correta aplicação do direito.” (MA-
DUREIRA, 2016, p. 351).
A outra modalidade apontada pelo autor é a transação, que possui
definição no artigo 840 do Código Civil: “É lícito aos interessados pre-
venirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.” Carlos
Roberto Gonçalves (2021, p. 1221) destaca que a principal característica
da transação, seu “elemento essencial”, é a “dupla concessão”, ou seja, a
imposição de que cada uma das partes desista de parte de seu direito.
Alerta-se, contudo, que por estar o Poder Público lidando com direi-
tos e interesses que não são próprios de si, mas sim da coletividade, não
pode dispor deles livremente. Para que seja possível transacionar, impõe-
-se a existência de lei expressa autorizativa, não sendo possível apoiar-se
na permissão genérica advinda da Constituição.
Seguindo o raciocínio de Vanice Regina Lírio do Vale (2011, p. 107),
tendo em vista que o gestor público é administrador dos bens e interesses
públicos, cujo titular é a sociedade, ele somente pode dispor deles nas
situações em que for autorizado pelo verdadeiro detentor, ou seja, se for
promulgada lei editada pelos representantes legislativos que expressam a
vontade daquela.
A exigência se justifica também para que possam ser estabelecidos
parâmetros mínimos e máximos, além de exercido controle sobre os acor-

254
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

dos a fim de evitar distorções e desvios de finalidade. Ou seja, devem ser


assentados critérios para a forma como a Administração Pública pode fa-
zer concessões sem comprometer o interesse público.
Portanto, no caso da improbidade administrativa, existe previsão es-
pecífica para a celebração de ANPC, trazida pela Lei nº 13.9614/2019 e
complementada pela Lei nº 14.230/2021, que apontou o conteúdo mí-
nimo e o procedimento. Logo, está suprida a necessidade de autorização
legal específica. Além disso, as cláusulas do ANPC são decorrentes de
tratativas em que o MP e o investigado ou demandado fazem concessões
e obtêm vantagens mutualmente, ou seja, configura-se a dupla concessão,
elemento fundamental da transação.
Portanto, não restam dúvidas de que o ANPC se configura como
método adequado de solução de litígios, preenchendo os requisitos para
ser classificado como transação.

CONCLUSÃO

Diante da implantação de um modelo processual permeado por ins-


trumentos que visam a solução consensual, não havia como o Direito Ad-
ministrativo permanecer inerte ao movimento e continuar negando a pos-
sibilidade de celebração de acordos sob o argumento de indisponibilidade
absoluta e abstrata do interesse público.
Até porque no exame de determinadas situações concretas, fica evi-
dente que o emprego de métodos adequados de resolução de conflitos
pode trazer maior celeridade e efetividade ao atingimento do interesse pú-
blico.
A mesma linha de pensamento aplica-se à persecução da improbidade
administrativa. Da análise dos dados colhidos pelo CNJ, apontados no
capítulo 1, infere-se que a prática adversarial, ou seja, a utilização de ações
em busca da condenação, traz resultados demorados e pouco efetivos, es-
pecialmente na recomposição do patrimônio público. Ainda que se obte-
nham condenações, o montante que se consegue recuperar é parte ínfima
de todo o desviado ou perdido por práticas ímprobas.
Assim, a mudança de paradigma quanto à possibilidade de celebrar
acordos em conflitos de improbidade veio em boa hora, e caso o instituto

255
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

seja bem aplicado pelos operadores, pode trazer proveitosos frutos, não
somente no quesito patrimonial, mas também para aprimorar a visão da
sociedade sobre a relação entre corrupção e improbidade.
Da análise do texto inserido na LIA, percebe-se que houve o cuidado
em se dar considerável liberdade na negociação de cláusulas de penalida-
des, não tendo sido exigido patamar mínimo. Além disso, abriu-se a op-
ção de implementação de medidas de caráter eminentemente preventivo.
Demonstrou-se, no decorrer do presente estudo, que o ANPC
comporta concessões mútuas, eis que o MP desiste de obter condena-
ções em patamares mais elevados, enquanto a outra parte se submete
desde logo a cláusulas que podem atingir seu patrimônio, em troca de
uma resolução mais célere do conflito de improbidade e com maior efe-
tividade no resultado.
Apresentados os meios adequados de solução de conflitos aceitos
em nosso ordenamento jurídico, e especialmente os privilegiados pelo
CPC/15, foi possível enquadrar o ANPC, caso celebrado na forma pre-
vista pelo art. 17-B da LIA, como modalidade de autocomposição, da es-
pécie transação, justamente pela mutualidade de concessões e vantagens
decorrentes das negociações para cada uma das partes.
Seguindo o modelo de operacionalização de acordos por parte da Ad-
ministração Pública proposto por Cláudio Madureira, que aponta duas
formas de ajustes possíveis ao Poder Público (composição de litígios e
transação), evidenciou-se que o MP está autorizado a transacionar, por
meio do ANPC, quando entender que compor entendimento com o de-
mandado for mais vantajoso para o atingimento do interesse público do
que o ingresso ou a manutenção de ação de improbidade.
Por todo o exposto, o ANPC pode representar valoroso instrumen-
to para auxiliar na contenção da litigiosidade, reduzindo custos, tempo
de tramitação e aumentando a efetividade do combate à corrupção. Para
tanto, é imperioso que seja feito um esforço por parte dos operadores do
Direito, notadamente do MP, legitimados para atuar nos casos de impro-
bidade, a fim de ultrapassar a mentalidade adversarial e conseguir vislum-
brar as vantagens em vários aspectos que derivam da opção por solução
consensual de conflitos.

256
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mariana Dionísio de. É possível o uso de mecanismos ne-


gociais pelo Ministério Público no curso da ação civil pública de im-
probidade administrativa? In: MORAES FILHO, Marco Antônio
Praxedes de; SOUZA, Verônica Nunes Carvalho Sobral de (org.).
Questões atuais em Direito Administrativo e governança pú-
blica: estudos em homenagem à Profª Maria Lírida Calou de Araújo
e Mendonça. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. p. 187-217. E-book.

BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução nº


179, de 26 de julho de 2017. Regulamenta o § 6º do art. 5º da Lei
nº 7.347/1985, disciplinando, no âmbito do Ministério Público, a
tomada do compromisso de ajustamento de conduta. Brasília, DF:
CNMP, 2017. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/
images/Resolucoes/Resolu%C3%A7%C3%A3o-179.pdf. Acesso
em: 28 out. 2021.

BRASIL. Projeto de Lei nº 166, de 2010. Dispõe sobre a reforma do


Código de Processo Civil. Brasília, DF: Senado Federal, 2010. Dis-
ponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?d-
m=4550297&ts=1630412442152&disposition=inline. Acesso em: 1
nov. 2021.

DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carri-


lho. Teoria geral do novo processo civil. 3. ed. rev. ampl. São
Paulo: Malheiros, 2018. 263 p.

GOMES JÚNIOR, Luiz Manoel et al. (coord.). Lei de Improbida-


de Administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos
atos de improbidade. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça,
2015. Disponível em: https://bibliotecadigital.cnj.jus.br/jspui/hand-
le/123456789/320. Acesso em: 27 out. 2021.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos.


14. ed. ampl. atual. Belo Horizonte: Fórum, 2018. 492 p. E-book.

257
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

MADUREIRA, Cláudio Penedo. Advocacia pública. 2. ed. Belo Ho-


rizonte: Fórum, 2016. 414 p.

MADUREIRA, Cláudio Penedo. Fundamentos do novo Processo


Civil brasileiro: o processo civil do formalismo valorativo. Belo
Horizonte: Fórum, 2017. 293 p.

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 9. ed. São Paulo: Sa-


raiva, 2015. 1111 p.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrati-


vo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. 1136 p.

MOURÃO, Alessandra Nascimento S. F.; CAMPOS, Anita Pissolito;


AZEVEDO, Monique Haddad Knöchelmann; SIMIONATO,
Monica. Resolução de Conflitos: fundamentos da negociação para
o ambiente jurídico. São Paulo: Saraiva, 2014. 354 p. Série GVLAW.
E-book. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/
books/9788502220300/. Acesso em: 5 nov. 2021.

NEVES, Cleuler Barbosa das; FERREIRA FILHO, Marcílio da Silva.


Contrapesos de uma administração pública consensual: legalidade
versus eficiência. Interesse Público, Belo Horizonte, ano 19, n.
103, p. 49-77, maio/jun. 2017.

SANTOS, Christiano Jorge; MARQUES, Silvio Antonio. “Pacote An-


ticrime” (Lei 13.964/2019) e Acordo de Não Persecução Cível na
fase pré-processual: entre o dogmatismo e o pragmatismo. Revista
de Processo, São Paulo, n. 303, p. 291-314, maio 2020.

PEREIRA, Leydomar Nunes. Solução consensual na improbidade


administrativa. São Paulo: Dialética, 2020. 81 p. E-book.

VALLE, Vanice Regina Lírio do. Transigibilidade na Administração Públi-


ca: uma faceta da consensualidade no Direito Administrativo do sécu-
lo XXI. Fórum Administrativo, Belo Horizonte, ano 11, n. 123,
p. 97-111, maio 2011. Disponível em: http://www.bidforum.com.br/
bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=73048. Acesso em: 7 nov. 2021.

258
A POSSIBILIDADE DE
OFERECIMENTO DO ACORDO
DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL
AOS PROCESSOS INSTAURADOS
ANTES DA VIGÊNCIA DO PACOTE
ANTICRIME
Felipe Argentino Ambrosio Alves36

INTRODUÇÃO

O trabalho teve o intuito de abordar a possibilidade de oferecimen-


to do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) aos processos em curso
quando da entrada em vigor da Lei nº 13.964/2019, popularmente co-
nhecida como Pacote Anticrime.
O objetivo principal foi analisar o artigo 28-A do Código de Proces-
so Penal (CPP), que regulamenta o instituto, e, em particular, abordar a
temática das normas no tempo, salutar para a investigação dos aspectos
jurídicos da retroatividade desse ajuste, além de, consequentemente, ter
subsídios para firmar posicionamento se ele alcança ou não os processos
em trâmite.

36 Graduando em Direito pela Doctum – Caratinga-MG.

259
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O Acordo de Não Persecução Penal é consideravelmente novo e, no


que tange ao estudo proposto, tem sido alvo de diversas decisões diver-
gentes, especialmente no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF).
Apresenta uma nova opção de extinção de punibilidade, que favorece o
réu e leva a uma solução da ação penal em via conciliatória, surgindo, a
partir daí, inúmeras dúvidas e a necessidade de busca de soluções para os
pontos controversos, o que justifica, sob a ótica jurídica e acadêmica, o
tratamento da temática.
De acordo com a primeira corrente jurídica, não é possível que o
ANPP seja oferecido aos processos já instaurados quando da entrada em
vigor do Pacote Anticrime. O argumento central é que ele é disciplinado
por normas processuais puras; outro motivo seria a natureza pré-proces-
sual da norma que o rege. Noutro giro, a segunda corrente entende que é,
sim, possível o oferecimento do ajuste em tais ações, notadamente porque
as normas que regulam o ANPP são mistas e, portanto, retroativas.
Tendo em vista os argumentados levantados pelas correntes jurídi-
cas acima, a pesquisa teve por escopo o posicionamento do processualista
Aury Lopes Júnior, filiado à segunda, para quem é cabível o oferecimento
do acordo de não persecução aos processos em curso quando da vigência
do Pacote Anticrime, na medida em que é norma processual penal mista
e, assim, retroativa (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 318).
A metodologia empregada foi a teórico-dogmática, também de viés
interdisciplinar, pois a abordagem do problema de estudo foi feita a partir
de análise da legislação, levantamento de jurisprudência e doutrina, bem
como investigação de institutos de Direito Penal, Direito Processual Penal
e Direito Constitucional.
Ato contínuo, o desenvolvimento do trabalho foi realizado em três
tópicos. O primeiro volta-se às noções gerais do ANPP, como conceito,
características e natureza jurídica. O segundo trata da questão de direito
intertemporal (normas no tempo), o que é imprescindível para a com-
preensão do tema. Já o terceiro foca os argumentos a favor e contra a apli-
cabilidade desse instituto aos processos em curso quando da vigência da
Lei nº 13.964/2019.

260
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

1. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL NO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO: NOÇÕES
GERAIS

Neste tópico, apresentam-se o conceito e as características do acordo


de não persecução penal (ANPP).
O ANPP foi, inicialmente, criado pela Resolução nº 181/2017 do
Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), porém só foi intro-
duzido no sistema legislativo nacional pela Lei nº 13.964/2019, popular-
mente conhecida como Pacote Anticrime, mediante inserção do artigo
28-A ao Código de Processo Penal (CPP).
Na definição do processualista Renato Brasileiro de Lima (2020, p.
274):

Cuida-se de negócio jurídico de natureza extrajudicial, necessaria-


mente homologado pelo juízo competente – pelo menos em regra,
pelo juiz das garantias (CPP, art. 3º-B, inciso XVII, incluído pela
Lei n. 13.964/19) –, celebrado entre o Ministério Público e o autor
do fato delituoso – devidamente assistido por seu defensor –, que
confessa formal e circunstanciadamente a prática do delito, sujei-
tando-se ao cumprimento de certas condições não privativas de
liberdade, em troca do compromisso do Parquet de não perseguir
judicialmente o caso penal extraído da investigação penal, leia-se,
não oferecer denúncia, declarando-se a extinção da punibilidade
caso a avença seja integralmente cumprida.

Baseado na Justiça Negocial, a figura do referido negócio no ordena-


mento jurídico brasileiro foi extremamente elogiada pela doutrina espe-
cializada. Nas precisas palavras de Bernd Schunemann:

O ideário do século XIX, de submeter cada caso concreto a um


juízo oral completo [audiência de instrução e julgamento], re-
conhecendo o princípio da publicidade, oralidade e imediação
somente é realizável em uma sociedade sumamente integrada,
burguesa, na qual o comportamento desviado cumpre quantitati-

261
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

vamente somente um papel secundário. Nas sociedades pós-mo-


dernas desintegradas, fragmentadas, multiculturais, com sua pro-
pagação quantitativamente enorme de comportamentos desviados,
não resta outra alternativa que a de chegar-se a uma condenação
sem um juízo oral detalhado, nos casos em que o suposto fato se
apresente como tão profundamente esclarecido já na etapa de in-
vestigação, que nem sequer ao imputado interessa uma repetição
da produção da prova em audiência de instrução e julgamento
(SCHUNEMANN apud CABRAL, 2020, p. 14).

Para Rogério Sanches Cunha (2020, p. 488), o ANPP garante eco-


nomia de tempo e recursos, bem como assegura maior efetividade à tutela
penal para os crimes em que é cabível.
Já Rodrigo Leite Ferreira Cabral acrescenta que a possibilidade de
celebração de acordo a delitos não tidos como graves permite o melhor
funcionamento do sistema penal brasileiro e a desburocratização, e que o
ANPP se afigura como uma das alternativas com maior viabilidade para
tornar o sistema penal mais adequado, eficiente e eficaz (CABRAL, 2020,
p. 13).
Outro efeito positivo é trazido por Lima (2020, p. 275): a minoração
dos efeitos anteriores de uma sentença penal condenatória aos acusados
em geral, “que teriam mais uma chance de evitar uma condenação ju-
dicial, reduzindo os efeitos sociais prejudiciais da pena e desafogando os
estabelecimentos prisionais”.
É importante consignar que o acordo de não persecução penal não
se confunde com o plea bargain norte-americano, que consiste, sumaria-
mente, em um mecanismo procedimental por meio do qual o Ministério
Público e o acusado celebram um acordo no qual este renuncia ao julga-
mento em troca de algum benefício.
Consoante observa Cunha, essa negociação pode versar sobre a im-
putação de determinado fato típico (charge bargain), sobre a pena e as con-
sequências do crime (sentence bargain) ou sobre ambos (CUNHA, 2020,
p. 486), além de abarcar até mesmo as acusações mais graves (CABRAL,
2020, p. 68).

262
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

As principais diferenças entre os citados institutos é que o plea bargain,


em regra, consiste em condenação definitiva, já que o réu não é submetido
a julgamento, enquanto no acordo de não persecução não há aplicação de
pena ou condenação. Ademais, o primeiro é aplicável a qualquer delito e
o segundo se restringe às infrações de pequena e média gravidade (CA-
BRAL, 2020, p. 70), como será demonstrado.
Com efeito, dispõe o artigo 28-A, caput, do CPP que, não sendo caso
de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstan-
cialmente o cometimento de uma infração penal sem violência ou gra-
ve ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério
Público poderá propor o ANPP desde que necessário e suficiente para a
reprovação do crime (BRASIL, 1941).
Da redação do caput é possível perceber que o acordo poderá ser for-
mulado quando o Parquet estiver diante de um inquérito policial ou ele-
mento informativo da mesma natureza (tais como o Procedimento Inves-
tigatório Criminal, Inquérito Civil Público, Procedimento Preparatório
ou Notícia de Fato) instaurados no âmbito do órgão de execução, e a
instrução criminal for viável.
Em outros termos, deverá haver, além da aparência da prática crimi-
nosa (fumus comissi delicti), “punibilidade concreta (v.g., não estar prescri-
ta a pretensão punitiva), legitimidade da parte (v.g., ser o crime de ação
penal pública, praticado por pessoa maior de idade) e justa causa (supor-
te probatório mínimo a fundamentar uma possível acusação)” (LIMA,
2020, p. 280).
A propósito, a doutrina e a jurisprudência entendem que não se trata
de um direito subjetivo do investigado, mas, sim, de uma discricionarie-
dade regrada do Ministério Público. Logo, caso haja recusa do órgão em
oferecê-lo, não cabe ao Judiciário sua imposição (BRASIL, 2021)37. O
que o acusado tem direito é a uma manifestação fundamentada do Parquet,
o que não se confunde com o direito à celebração do ajuste em si.
Em continuidade, o legislador estabelece nos incisos I a V do mencio-
nado artigo as condições para o cumprimento do referido negócio jurídi-

37 Habeas Corpus nº 194.677. Relator: Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, 13 de agosto de


2021.

263
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

co, as quais podem ser ajustadas de forma cumulativa ou alternativa pelo


órgão de acusação:

I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossi-


bilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo


Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do
crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por pe-


ríodo correspondente à pena mínima cominada ao delito dimi-
nuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da
execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de
dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art.


45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código
Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo
juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função
proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente
lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo


Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a
infração penal imputada. (BRASIL, 1941).

Com efeito, não há imperatividade no cumprimento das condições


diversas da pena privativa de liberdade – mas sim voluntariedade –, tam-
pouco processo penal, razão pela qual as condições acima elencadas não
são pena.
A propósito, eis o teor do Enunciado nº 25 do Conselho Nacional
de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União
(CNPG) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio
Criminal (GNCCRIM): “O acordo de não persecução penal não impõe
penas, mas somente estabelece direitos e obrigações de natureza nego-
cial e as medidas acordadas voluntariamente pelas partes não produzi-

264
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

rão quaisquer efeitos daí decorrentes, incluindo a reincidência” (GNC-


CRIM, enunciado 25).
Por outro lado, o § 2º do artigo 28-A do CPP veicula as hipóteses em
que são inaplicáveis o ANPP. São, portanto, causas impeditivas do ajuste,
também de natureza alternativa, já que a presença de apenas uma já im-
pede a celebração do acordo (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 316). São elas:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Es-


peciais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos proba-


tórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou pro-
fissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores


ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal,
transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou


familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de
sexo feminino, em favor do agressor (BRASIL, 1941).

Quanto ao procedimento, proposto o Acordo de Não Persecução Pe-


nal pelo Ministério Público, será formalizado por escrito e firmado pelo
Parquet, pelo imputado e por seu defensor (BRASIL, 1941, artigo 28-A, §
3º). Firmado o ajuste, será submetido à homologação judicial, na mesma
audiência em que foi celebrado ou em audiência específica para essa fina-
lidade, caso o negócio jurídico tenha ocorrido apenas por escrito entre as
partes. Na ocasião, cabe ao magistrado ouvir o investigado na presença
de seu causídico com o fito de avaliar a legalidade e a voluntariedade do
acordo (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 318-319).
Homologado o acordo, a vítima será intimada. Ainda, caberá à acusa-
ção promover a execução perante o juízo da execução penal, cujo cumpri-
mento integral ensejará a extinção da punibilidade (BRASIL, 1941, artigo
28-A, § 6º, §9° e § 13). Em caso de descumprimento do acordo já homo-
logado, o órgão de execução comunicará ao juízo, que, com base na pro-
porcionalidade do descumprimento em face das consequências, decidirá

265
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

pela sua rescisão ou não, com o consequente oferecimento da denúncia


pelo Ministério Público na primeira hipótese.
Por outro lado, se o magistrado considerar inadequadas, insuficientes
ou abusivas as condições estabelecidas no acordo, devolverá os autos ao
Parquet para reformulação das propostas, com a concordância do investi-
gado e seu defensor. Ao mesmo tempo, caso a adequação não seja feita ou
não sejam atendidos os requisitos legais, o magistrado poderá recusar a sua
homologação (BRASIL, 1941, artigo 28-A, §§ 5° e 7º).
Com a não homologação do acordo pelo juiz, os autos serão devol-
vidos ao Ministério Público para oferecimento da denúncia ou análise da
necessidade de complementação das investigações (BRASIL, 1941, artigo
28-A, §8º). À vista disso, percebe-se que, quanto ao momento de sua
celebração, o ANPP, em regra, é realizado durante a fase pré-processual
(ou fase investigatória), isto é, antes do oferecimento da denúncia e, con-
sequentemente, antes da instauração do processo criminal.
Não há, contudo, previsão acerca da retroatividade dessas disposições,
ou seja, se o acordo de não persecução penal também é aplicável aos pro-
cessos já em curso quando da entrada em vigor do artigo 28-A do CPP. A
questão é objeto de divergência na doutrina, surgindo, a partir de então, o
questionamento: o ANPP é aplicável aos processos em que já foi recebida
a denúncia quando da entrada em vigor do artigo 28-A do CPP?
Porém, antes de se aprofundar na temática é necessário dissertar sobre
as normas penais no tempo, o que será feito no próximo tópico.

2. NORMAS PENAIS NO TEMPO E O PRINCÍPIO DA


RETROATIVIDADE

Quanto à questão da norma no tempo, é cediço que, no âmbito do


Direito Penal, não há maiores controvérsias, já que por força do artigo 5º,
XL, da Constituição Federal a lei penal não retroagirá, salvo para benefí-
cio do réu (BRASIL, 1988).
Dessa forma, tratando-se de norma penal mais gravosa, impera o
princípio da irretroatividade; sendo a lei revogada mais benéfica, será
dotada de ultratividade, regulando os fatos ocorridos em sua vigência; a
retroatividade, por sua vez, é a possibilidade de a lei penal retroagir no

266
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

tempo, com o fito de regular fatos praticados em momento anterior à sua


vigência (LIMA, 2020, p. 92).
Lado outro, no Direito Processual Penal, a princípio, o raciocínio é
distinto, pois o artigo 2º do CPP consagra o princípio tempus regit actum
(princípio da aplicabilidade imediata) ao prever que: “a lei processual pe-
nal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados
sob a vigência da lei anterior” (BRASIL, 1941).
Nesse sentido, Eugênio Pacelli (2020, p. 53) ensina que, por atos pra-
ticados:

Deve-se entender também os respectivos efeitos e/ou consequên-


cias jurídicas. Por exemplo: sentenciado o processo e em curso o
prazo recursal, a nova lei processual que alterar o aludido prazo não
será aplicada, respeitando-se os efeitos preclusivos da sentença tal
como previstos na época de sua prolação.

De imediato, é possível visualizar dois efeitos provenientes da aplica-


ção imediata da Lei Processual Penal: (i) os atos processuais realizados na
vigência da lei anterior são tidos como válidos; e (ii) a aplicabilidade das
normas processuais é imediata, regulando, assim, os demais atos processuais
dos processos já em curso quando da sua vigência (LIMA, 2020, p. 92).
Lima também explica o fundamento dessa aplicação imediata da Lei
Processual Penal:

O fundamento da aplicação imediata da lei processual é que se pre-


sume seja ela mais perfeita do que a anterior, por atentar mais aos
interesses da Justiça, salvaguardar melhor o direito das partes, ga-
rantir defesa mais ampla ao acusado etc. Portanto, ao contrário da
lei penal, que leva em conta o momento da prática delituosa (tem-
pus delicti), a aplicação imediata da lei processual leva em conside-
ração o momento da prática do ato processual (tempus regit actum).
(LIMA, 2020, p. 92).

Ocorre que, apesar de o artigo 2º do CPP não distinguir as normas


processuais, argumenta-se, em sede doutrinária e jurisprudencial, que as

267
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

normas processuais penais podem ser divididas em duas espécies, quais se-
jam, (i) normas penais genuinamente processuais e (ii) normas processuais
materiais (mistas ou híbridas). Antes de defini-las, porém, é importante
conceituar as normas de Direito Penal.
O processualista Aury Lopes Júnior preleciona que norma de Direi-
to Penal (ou lei penal pura) é aquela que regula o poder punitivo estatal,
dispondo acerca do conteúdo material do processo (Direito Penal), isto é,
tipificação de delitos, pena máxima e mínima, regime de cumprimento
de pena etc. Dessarte, se mais benigna, retroagirá; se mais gravosa, será
irretroativa (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 164-165).
No que tange às normas genuinamente processuais, são aquelas
“que cuidam dos procedimentos, atos processuais, técnicas do processo”
(LIMA, 2020, p. 92). Os ritos, a forma com que os atos processuais são
realizados, as perícias bem como o rol de testemunhas são exemplos dessas
normas (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 165). Aqui, aplica-se a regra prevista
no artigo 2º do CPP.
Noutro giro, as normas processuais materiais (mistas ou híbridas) são
aquelas que possuem, simultaneamente, natureza de normas de Direito
Penal e Direito Processual Penal, ou seja, tratam, ao mesmo tempo, do ius
puniendi do Estado, do crime, da medida de segurança, da pena e dos efei-
tos da condenação (caráter penal); e do processo em si (caráter processual
penal) (LIMA, 2020, p. 92).
Nesse caso, “deve-se seguir o conteúdo normativo das primeiras. É
que a regra da irretroatividade da norma penal desfavorável ao acusado
deve prevalecer sobre os comandos de natureza processual. Se, porém, for
mais favorável, pode-se aplicar a lei desde logo” (PACELLI, 2020, p. 57).
Em outras palavras, quando um dispositivo legal, embora esteja inserido
em lei processual, dispõe sobre regra penal (de direito material), ser-lhe-
-ão aplicáveis os princípios da lei penal que veiculam a ultratividade e a
retroatividade da lei mais benigna (LIMA, 2020, p. 92).
Argumenta-se que, quando da análise da retroatividade da lei proces-
sual penal material mais benéfica ou a sua ultratividade, deve-se levar em
consideração os atos processuais ou aqueles que dizem respeito à tramita-
ção do processo, pois, procedendo desse modo, “fornece-se ao processo

268
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

penal o seu nítido e indispensável caráter garantista das liberdades indivi-


duais” (NUCCI, 2020, p. 301).
A distinção ora realizada é importante, pois, como já adiantado no
tópico 2, a questão da retroatividade da aplicação do ANPP aos procedi-
mentos em curso quando da entrada em vigor do Pacote Anticrime de-
pende, em parte, do enquadramento das normas que disciplinam o insti-
tuto (penal, processual propriamente dita ou mista).

3. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO E OS


PROCESSOS EM CURSO

Já fixadas as premissas acima, resta expor os argumentos jurídicos uti-


lizados pelas distintas correntes jurídicas que abordam o tema, o que se
faz adiante.
A primeira corrente entende ser impossível a celebração do ANPP
aos processos em trâmite quando da vigência do Pacote Anticrime, isto é,
quando já recebida a denúncia.
Um primeiro argumento: o CPP, ao tratar do ANPP, utiliza a ex-
pressão “investigado”, demonstrando o intuito pré-processual do institu-
to, que é reforçado quando se faz uma análise conjunta com o inciso XVII
do artigo 3º-B do CPP (eficácia suspensa), que prevê ser competência do
juiz das garantias a homologação do ajuste (GOMES; TEIXEIRA, 2020).
Outro fundamento: as normas que o regulam são processuais e, as-
sim, submetem-se ao princípio tempus regit actum do artigo 2º do CPP, não
havendo falar em retroatividade se já houver sido instaurado o processo
(recebida a denúncia).
Nesse sentido, o GNCCRIM, órgão de apoio do CNMP, editou o
Enunciado 20: “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocor-
ridos antes da vigência da Lei nº 13.964/2019, desde que não recebida a
denúncia”. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) segue essa corrente.
Dentre os argumentos utilizados pelo STJ estão os seguintes: a apli-
cação do ANPP após o oferecimento da denúncia não é compatível com
seu propósito; o fato de não ser uma norma penal, e sim processual com
reflexos penais, impede a aplicação irrestrita do princípio da retroatividade

269
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

benéfica, aplicando-se o princípio tempus regit actum; razões de segurança


jurídica recomendam tal posicionamento (BRASIL, 2022)38.
Lado outro, a segunda corrente defende a aplicação retroativa para
atingir os processos em curso quando da vigência do Pacote Anticrime.
O primeiro argumento é o de que o ANPP é norma processual mista,
já que tratou da extinção da punibilidade do agente pelo cumprimento do
acordo no § 13º do artigo 28-A do CPP. Portanto, retroage para benefi-
ciar os acusados que estavam sendo processados quando de sua entrada em
vigor (LOPES JÚNIOR, 2020, p. 318).
Outra justificativa decorre da possibilidade de admissão da celebração
do ANPP no curso do processo penal. É que o artigo 3º-B, XVII, do
CPP (vigência suspensa), interpretado a contrario sensu, ao prever que cabe
ao Juiz das Garantias decidir sobre a homologação do ANPP quando for
formalizado durante a investigação, permite compreender que esse acordo
poderá ser realizado em momento distinto da investigação, isto é, no cur-
so do processo penal (CABRAL, 2020, p. 211).
Essa corrente invoca, ainda, o princípio da isonomia entre os inves-
tigados, bem ilustrado pelo Ministério Público de Minas Gerais na Nota
Técnica nº 6/2020:

Imaginemos um inquérito policial instaurado para apurar delito


de furto simples, fato ocorrido no dia 10/10/2019, com denúncia
recebida no dia 19/12/2019. Suponhamos outro inquérito policial
instaurado para apurar delito de furto simples, fato ocorrido no dia
10/09/2019, mas com denúncia ainda não oferecida.

Adotada a primeira corrente [inaplicabilidade], uma das hipóte-


ses não permitiria a propositura do ANPP, exclusivamente pelo
fato de a tramitação do inquérito policial ter sido mais célere. No
exemplo, ademais, o investigado que praticou fato mais antigo se-
ria alijado do ANPP.

A quebra de isonomia é patente e deve ser ajustada (MINAS GE-


RAIS, 2020).

38 AgRg no HC nº 722.434. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, 13 de


setembro de 2022.

270
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Aliás, no âmbito do Supremo, a questão ainda não foi decidida. Isso


porque o ministro Gilmar Mendes (relator) afetou o HC nº 185.913/DF
ao julgamento pelo Plenário, oportunidade em que o órgão examinará as
seguintes questões:

a) O ANPP pode ser oferecido em processos já em curso quando


do surgimento da Lei 13.964/19? Qual é a natureza da norma in-
serida no art. 28-A do CPP? É possível a sua aplicação retroativa
em benefício do imputado? b) É potencialmente cabível o ofereci-
mento do ANPP mesmo em casos nos quais o imputado não tenha
confessado anteriormente, durante a investigação ou o processo?
(BRASIL, pendente de julgamento).

De todo modo, o tribunal – ou, ao menos, a 2ª Turma – tem se in-


clinado para o entendimento de que é possível a retroação do ANPP aos
processos em andamento no dia da promulgação do Pacote Anticrime
(BRASIL, 2023)39. Além disso, a Corte vem determinando a suspensão
da execução da pena até que decida se o ANPP retroagirá ou não (BRA-
SIL, 2022)40.
Cumpre consignar, por fim, que, dentro da segunda corrente, há di-
vergências quanto ao termo final de celebração do ANPP: há quem sus-
tente que só pode ser aplicado até que tenha sido proferida sentença penal
condenatória; outros defendem que as partes devem se manifestar sobre a
questão na primeira oportunidade que tiver para falar nos autos, sob pena
de preclusão; enquanto uma última linha advoga que o termo final seria o
cumprimento total da pena (CALABRICH, 2020, p. 359).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Acordo de Não Persecução Penal, ao possibilitar ao investigado,


nas infrações de baixa e média gravidade, o cumprimento de determina-
das condições não privativas de liberdade, em troca do compromisso do

39 AgRg no HC nº 217.275. Relator: Min. Edson Fachin, julgado em 27 de março de 2023.


40 HC nº 211.360. Relator: Min. Ricardo Lewandovski, julgado em 20 de janeiro de 2022.

271
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Ministério Público de não perseguir judicialmente com o caso objeto de


investigação penal nas hipóteses previstas em lei, trouxe diversos benefí-
cios para o sistema penal brasileiro, como a economia de tempo, recurso e
a garantia de uma tutela mais adequada a determinadas infrações.
Constata-se, ainda, que não é um direito subjetivo do investigado,
mas, sim, discricionariedade regrada do órgão de acusação, que irá celeb-
rá-lo quando verificar restarem preenchidos todos os pressupostos elenca-
dos no art. 28-A, caput, e parágrafos do CPP. O que o acusado tem direito
é a uma manifestação fundamentada do Parquet, o que não se confunde
com o direito à celebração do ajuste em si.
Conclui-se, por fim, que é possível a aplicação do ANPP aos proces-
sos em trâmite quando da vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez que
as disposições que regulam o instituto possuem natureza mista, isto é, de
Direito Penal e Direito Processual Penal, sendo, dessarte, retroativas. O
marco temporal, nesse caso, é até a sentença penal condenatória, mas a
manifestação sobre o assunto deve ocorrer na primeira oportunidade em
que a parte tiver vista dos autos, sob pena de preclusão.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 abr. 2023.

BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução nº 181,


de 7 de agosto de 2017. Dispõe sobre instauração e tramitação do
procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Públi-
co. Brasília, DF: CNMP, 2017. Disponível em: https://www.cnmp.
mp.br/portal/images/Resolucoes/Resoluo-181-1.pdf. Acesso em: 10
abr. 2023.

BRASIL. Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais. Enunciados in-


terpretativos da Lei nº 13.964/2019: Lei Anticrime. Brasília, DF:
CNPG/GNCCRIM, 2020. Disponível em: https://criminal.mppr.

272
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

mp.br/arquivos/File/GNCCRIM_-_ANALISE_LEI_ANTICRI-
ME_JANEIRO_2020.pdf. Acesso em: 10 abr. 2023.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de


Processo Penal. Rio de Janeiro: Presidência da República, [1941].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
del3689.htm. Acesso em: 20 abr. 2023.

BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a le-


gislação penal e processual penal. Brasília, DF: Presidência da Repú-
blica, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em: 20 abr. 2023.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AgRg no Habeas Corpus nº


217.275. Relator: Min. Edson Fachin, 27 de março de 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). AgRg no Habeas


Corpus nº 722.434. Relator: Min. Reynaldo Soares da Fonseca, 13
de setembro de 2022.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 185.913. Re-


lator: Min. Gilmar Mendes, pendente de julgamento.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Habeas Corpus nº


194.677. Relator: Min. Gilmar Mendes, 13 de agosto de 2021.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 211.360. Re-


lator: Min. Ricardo Lewandovski, 20 de janeiro de 2022.

CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual de Acordo de Não Perse-


cução Penal: à luz da Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime). Salva-
dor: Juspodivm, 2020.

CALABRICH, Bruno. Acordos de não persecução penal: oportunida-


de, retroatividade e preclusão. In: WALMSLEY, Andréa; CIRENO,
Lígia; BARBOZA, Márcia Noll (coord.) (org.). Inovações da Lei
nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Brasília: MPF, 2020. p.
348-364. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/

273
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

copy_of_2CCR_Coletanea_Artigos_FINAL.pdf. Acesso em: 10


abr. 2023.

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte geral. 8.


ed. Salvador: Juspodivm, 2020.

GOMES, José Jairo; TEIXEIRA, Danielle Torres. Acordo de Não Per-


secução Penal e sua aplicação a processos em curso. Migalhas, [s.
l.], 27 abr. 2020. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/de-
peso/325403/acordo-de-nao-persecucao-penal-e-sua-aplicacao-a-
-processos-em-curso. Acesso em: 20 abr. 2023.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 8. ed. Salva-


dor: Juspodivm, 2020.

LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 17. ed. São Paulo:
Saraiva, 2020.

MINAS GERAIS. Ministério Público de Minas Gerais. Nota Técnica


nº 06/2020. Belo Horizonte: MPMG, 2020. Disponível em: https://
mpnormas.mpmg.mp.br/atosNormativos.php?pid=1&sid=1. Acesso
em: 20 abr. 2023.

NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de Direito Processual Penal.


19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 24. ed. São Paulo: Atlas,
2020.

2 74
MARCOS REGULATÓRIOS PARA
FORTALECIMENTO DA INDÚSTRIA
DE DEFESA BRASILEIRA
João Claudio Faria Machado41

INTRODUÇÃO

Conforme os documentos de defesa, a Base Industrial de Defesa


(BID) é o conjunto de empresas estabelecidas no Brasil, estatais ou pri-
vadas, que participam ao menos de uma etapa de pesquisa, desenvolvi-
mento, produção, distribuição e manutenção de produtos estratégicos de
defesa, ou seja, de bens e serviços. Com uma BID estabelecida e robusta,
o país diminui sua dependência externa para atendimento dos Objetivos
Nacionais de Defesa.
Se por um lado a BID importa para a menor dependência externa
e suas vulnerabilidades consequentes, por outro importa na geração de
empregos, diretos e indiretos, de alta tecnologia e de maior remuneração,
que são aplicados na produção de bens ou execução de serviços de alto
valor agregado. Uma variável relevante nessa equação é a complexidade
tecnológica dos produtos de defesa e o relevante apoio governamental

41 Doutorando em Ciências Aeroespaciais pela Universidade da Força Aérea – UNIFA. Mes-


tre em Ciências Aeroespaciais pela Universidade da Força Aérea – UNIFA. Mestre em Direito.
Especialista em Direito Ambiental. Presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB
São José dos Campos. Advogado.

275
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

(visto a restrição de usuários/“clientes”), que podem ser percebidos no


estabelecido na Política Nacional de Defesa do ano de 2016 (BRASIL,
2016, p. 6-7):

2.2.5 A falta de regularidade nas aquisições de Produtos de Defesa


– PRODE e da alocação de recursos orçamentários tem desesti-
mulado os investimentos por parte da Base Industrial de Defesa –
BID. As demandas das Forças Armadas e a defasagem tecnológica
provavelmente manterão inalterados os níveis de produção da BID
dos últimos anos. Nesse sentido, o ritmo do desenvolvimento tec-
nológico brasileiro, considerando os atuais níveis de investimento,
não permite vislumbrar a eliminação da dependência externa em
áreas de fundamental importância para a indústria, nos próximos
vinte anos.

Pela importância do setor e suas particularidades, a incidência de re-


gimes legais, regulatórios e tributários especiais visa conceber melhores
condições para o estabelecimento dessas empresas de interesse nacional.
Nesse contexto, foi definido o seguinte problema de pesquisa: Quais
são os marcos regulatórios da indústria de defesa estabelecidos nos Do-
cumentos de Defesa? Como objetivo geral, buscou-se identificar os mar-
cos regulatórios da base industrial de defesa, como objetivo específico,
(a) identificar as disposições regulatórias descritas na Política Nacional de
Defesa, na Estratégia Nacional de Defesa e no Livro Branco de Defesa; (b)
analisar o arcabouço legal relacionado aos marcos regulatórios.
O método de pesquisa empregado foi o hipotético-dedutivo,
com a seguinte assertiva: os Livros de Defesa norteiam o estabelecimento
do marco regulatório de fortalecimento da indústria de defesa. No mais,
a pesquisa é definida como documental, de natureza básica e objetivo ex-
ploratório.
Esta pesquisa está dividida em duas partes. A primeira trata dos do-
cumentos de defesa – Política Nacional de Defesa, Estratégia Nacional de
Defesa e Livro Branco de Defesa Nacional – e identifica as referências a
legislações de incentivo à indústria de defesa, enquanto a segunda analisa
as legislações identificadas na primeira parte.

276
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

1. DOS DOCUMENTOS DE DEFESA

Nos termos do artigo 9º, § 2, da Lei Complementar (LC) nº 97, de 9 de


junho de 1999, o ministro de Estado da Defesa é competente para implantar
o Livro Branco de Defesa Nacional (LBDN). Este documento terá caráter
público e será o meio pelo qual se permitirá acesso ao amplo contexto da
Estratégia de Defesa Nacional, em perspectiva de médio e longo prazos.
Conforme o Decreto nº 7.438, de 11 de fevereiro de 2011, que esta-
belece princípios e diretrizes para criação e elaboração do Livro Branco de
Defesa Nacional, institui-se o Grupo de Trabalho Interministerial com
o objetivo de elaborar estudos sobre temas pertinentes àquele livro e dá
outras providências. O LBDN deverá conter dados estratégicos, orçamen-
tários, institucionais e materiais detalhados sobre as Forças Armadas.
A LC estabelece, ainda, no § 3º do comentado artigo, que o Poder
Executivo encaminhará à apreciação do Congresso Nacional, de quatro
em quatro anos, a partir do ano de 2012, a Política de Defesa Nacional
(PDN), a Estratégia Nacional de Defesa (END) e o Livro Branco de De-
fesa Nacional (LBDN).
A primeira PDN, estabelecida no ano de 1996, prescreve que o docu-
mento tem por finalidade fixar os objetivos para defesa da Nação e orientar
o preparo e o emprego da capacitação nacional com o envolvimento dos
setores civil e militar. Nesse documento, é estabelecido como essencial o
fortalecimento da capacidade em defesa com o envolvimento dos setores
industrial, universitário e técnico-científico. Como diretriz, estabelece
possuir um nível de pesquisa científica, de desenvolvimento tecnológico e
de capacidade de produção que minimize a dependência externa do país
em relação a recursos estratégicos de interesse para a defesa.
Em semelhante sentido, no Decreto nº 5.484, de 30 de junho de
2005, que prevê a PND de 2005, é estabelecida a diretriz estratégica de
estimular a pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico e a capaci-
dade de produção de materiais e serviços de interesse da Defesa.
No Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008, que aprova a
Estratégia Nacional de Defesa e dá outras providências, estabelece-se o
seguinte (BRASIL, 2008, p. 25):

277
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

1.O Ministério da Defesa, ouvidos os Ministérios da Fazenda, do


Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Planejamen-
to, Orçamento e Gestão e da Ciência e Tecnologia e a Secretaria
de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, deverá pro-
por modificações na legislação referente ao regime jurídico e eco-
nômico especial para compras de produtos de defesa junto às em-
presas nacionais, com propostas de modificação da Lei nº 8.666,
de junho de 1993.

2.O Ministério da Defesa, em articulação com os Ministérios da


Fazenda, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, dos
Transportes, do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Ciência
e Tecnologia e com a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Pre-
sidência da República, deverá propor modificações na legislação
referente à tributação incidente sobre a indústria nacional de mate-
rial de defesa, por meio da criação de regime jurídico especial que
viabilize incentivos e desoneração tributária à iniciativa privada na
fabricação de produto de defesa prioritário para as Forças Armadas
e para a exportação.

3.O Ministério da Defesa, em articulação com os Ministérios da


Fazenda, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, dos
Transportes, do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Ciência e
Tecnologia, e a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência
da República, deverá propor modificações na legislação referente
à linha de crédito especial, por intermédio do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), para os produtos
de defesa, similar às já concedidas para outras atividades.

4.O Ministério da Defesa, em articulação com os Ministérios da


Fazenda, do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, dos
Transportes, do Planejamento, Orçamento e Gestão e da Ciência
e Tecnologia e com a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Pre-
sidência da República, deverá propor modificações na legislação
referente à viabilização, por parte do Ministério da Fazenda, de
procedimentos de garantias para contratos de exportação de pro-
duto de defesa de grande vulto, em consonância com o Decreto

278
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Lei nº 1.418, de 03 de setembro de 1975, e com a Lei de Respon-


sabilidade Fiscal.

Como determinado, são planejados quatro projetos de estímulo e


fortalecimento da indústria de defesa: (1) modificação da Lei nº 8.666,
de junho de 1993; (2) regime tributário diferenciado para a indústria de
defesa; (3) modificação da legislação referente a linha de crédito especial;
e (4) procedimentos de garantias para contratos de exportação de produto
de defesa.
Na END do ano de 2012 consta a elaboração da Lei nº 12.598, de
22 de março de 2012, que estabelece normas especiais para as compras,
as contratações e o desenvolvimento de produtos e sistemas de defesa; e
dispõe sobre regras de incentivo à área estratégica de defesa. Fora isso, uma
das diretrizes da END é capacitar a Base Industrial de Defesa (BID) para
que conquiste autonomia em tecnologias indispensáveis à defesa, sendo
que regime jurídico, regulatório e tributário especiais protegerão as em-
presas privadas nacionais.
Essas questões da END do ano de 2012 refletiram no Livro Branco de
Defesa Nacional do mesmo ano, que dispôs sobre os marcos regulatórios
para o fortalecimento da indústria de defesa (BRASIL, 2012a, p. 190):

A diretriz no 22 da Estratégia Nacional de Defesa define a neces-


sidade de estabelecimento de regimes jurídico, regulatório e tri-
butário especiais para proteger as empresas privadas nacionais de
produtos de defesa contra os riscos de imediatismo mercantil e para
assegurar a continuidade nas compras públicas.

Para alcançar esta meta, o Ministério da Defesa está elaborando


marcos regulatórios consonantes com o interesse público e as de-
mandas de fomento da BID nacional. Como exemplo, destacam-
-se a Política Nacional da Indústria de Defesa (PNID), documento
que norteará todos os caminhos da SEPROD, a Lei no 12.598,
de 22 de março de 2012, e a Política Nacional de Exportações de
Produtos de Defesa (PNEPRODE), que inova quanto à iniciativa
de inclusão de um Programa de Apoio às Exportações.

279
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

No LBDN do ano de 2016 (BRASIL, 2016, p. 157), assim como no


de 2020, é mencionado o seguinte sobre as leis que tratam das empresas e
produtos de defesa: “A Base Industrial de Defesa brasileira vem se fortale-
cendo com as iniciativas resultantes da legislação que trata das Empresas e
Produtos de Defesa, com destaque para a Lei nº 12.598/2012, Decreto nº
7.970/2013 e Decreto nº 8.122/2013”.

2. MARCOS REGULATÓRIOS PARA O


FORTALECIMENTO DA INDÚSTRIA DE DEFESA

Não obstante a Lei nº 12.598/2012, o Decreto nº 7.970/2013 e o


Decreto nº 8.122/2013 terem sido mencionados expressamente nos Li-
vros de Defesa, cumpre notar que antes deles, e no sentido do prescrito na
PND do ano de 2005 – a diretriz de estimular a capacidade de produção
de materiais e serviços de interesse da Defesa –, houve alteração na Lei de
Licitações para incluir questões de defesa nacional.
Prescrito nas disposições finais da Lei nº 11.484, de 31 de maio de
2007, houve o acréscimo do seguinte inciso na Lei nº 8.666, de 21 de
junho de 1993: “XXVIII – para o fornecimento de bens e serviços, pro-
duzidos ou prestados no País, que envolvam, cumulativamente, alta com-
plexidade tecnológica e defesa nacional, mediante parecer de comissão
especialmente designada pela autoridade máxima do órgão”.
Com o acréscimo feito na Lei de Licitações, portanto, é possível
dispensar a licitação para o fornecimento de bens e serviços nacionais
que envolvam, cumulativamente, alta complexidade tecnológica e defesa
nacional.
A Lei nº 12.598, de 21 de março de 2012, por sua vez, estabelece
normas especiais paras as compras, as contratações e o desenvolvimen-
to de produtos e de sistemas de defesa e dispõe, também, sobre regras
de incentivo à área estratégica de defesa. Nessa lei foram estabelecidos os
conceitos de Produto de Defesa, Produto Estratégico de Defesa e Empresa
Estratégica de Defesa.
Conforme prescrito no artigo 2º da referida lei, Produto de Defesa
(PRODE) é o bem, serviço, obras ou informação utilizados nas atividades
finalísticas de defesa, com exceção daqueles de uso administrativo; e Pro-

280
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

duto Estratégico de Defesa (PED) é o Produto de Defesa que, pelo con-


teúdo tecnológico, dificuldade de obtenção ou imprescindibilidade, seja
de interesse estratégico para a defesa nacional. A Empresa Estratégica de
Defesa (EED), por sua vez, é a pessoa jurídica credenciada no Ministério
da Defesa (MD) mediante o atendimento das seguintes condições:

1. A realização ou condução de pesquisa, projeto, desenvolvi-


mento, industrialização, produção, reparo, conservação, revisão,
conversão, modernização ou manutenção de PED; e venda ou
importação de serviços de tecnologia industrial básica, projetos,
pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica, assistência téc-
nica e transferência de tecnologia;

2. Ter no Brasil a sua sede, a sua administração e o estabelecimen-


to industrial ou prestador de serviço;

3. Dispor, no Brasil, de comprovado conhecimento científico ou


tecnológico próprio ou complementado por acordos com institui-
ção científica e tecnológica;

4. Assegurar que o conjunto de sócios ou acionistas e grupos de


sócios ou acionistas estrangeiros não possam exercer, em cada as-
sembleia geral, número de votos superior a dois terços do total de
votos que exercidos pelos acionistas brasileiros presentes;

5. Assegurar a continuidade produtiva no Brasil.

O benefício de a organização possuir um PRODE ou um PED, ou


ser classificada como EED, é que o Poder Público poderá realizar pro-
cedimento licitatório: (a) destinado exclusivamente à EED para forneci-
mento de PED; (b) destinado exclusivamente à compra ou contratação
de PRODE; (c) que assegure à empresa nacional fabricante de PRODE a
transferência do conhecimento tecnológico empregado ou a participação
na cadeia produtiva.
Além disso, as EED terão acesso a regimes especiais tributários e fi-
nanciamentos. No caso, a lei em comento institui o Regime Especial Tri-
butário – RETID – e beneficia: (a) a EED que produza ou desenvolva
bens de defesa nacional, ou preste serviços de venda ou importação de

281
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

serviços de tecnologia industrial básica, projetos, pesquisa, desenvolvi-


mento e inovação tecnológica, assistência técnica e transferência de tec-
nologia empregados na manutenção, conservação, modernização, reparo,
revisão, conversão e industrialização; (b) ou a pessoa jurídica que produza
ou desenvolva partes, peças, ferramentais, componentes, equipamentos,
sistemas, subsistemas, insumos e matérias-primas a serem empregadas na
produção ou desenvolvimento dos bens referidos anteriormente; e (c) a
pessoa jurídica que venda ou importe serviços de tecnologia industrial
básica, projetos, pesquisa, desenvolvimento e inovação tecnológica, as-
sistência técnica e transferência de tecnologia a serem empregados como
insumos na produção ou desenvolvimento dos bens referidos no item “a”
e “b”.
Esse regime especial tributário possibilita que a organização aufira
benefícios com o Programa de Integração Social (PIS), o Programa de
Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP), a Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins) e o Imposto sobre
Produtos Industrializados (IPI).
O Decreto nº 7.970, de 28 de março de 2013, regulamenta disposi-
tivos da Lei nº 12.598, de 22 de março de 2012, que estabelece normas
especiais para as compras, as contratações e o desenvolvimento de produ-
tos e sistemas de defesa e dá outras providências. Esse Decreto trata, em
normas gerais, de quatro questões: da Comissão Mista da Indústria de
Defesa (CMID), da catalogação dos produtos de defesa no Sistema Militar
de Catalogação das Forças Armadas (SISMICAT), do Termo de Licitação
Especial e do Financiamento às empresas estratégicas de defesa.
Com relação à Comissão Mista da Indústria de Defesa (CMID), o
decreto a cria com a finalidade de assessorar o ministro da Defesa em pro-
cessos decisórios e em proposições de atos relacionados à indústria nacio-
nal de defesa. Define a competência, a composição, a forma de atuação e
a participação dos membros.
Dessa Comissão, cumpre destacar a composição:

Art. 2º-B A CMID é composta por representantes dos seguintes


órgãos: (Incluído pelo Decreto nº 9.857, de 2019)

282
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

I - quatro representantes da administração central do Ministério


da Defesa, dentre os quais o Presidente; (Incluído pelo Decreto nº
9.857, de 2019)

II - um representante do Comando da Marinha; (Incluído pelo


Decreto nº 9.857, de 2019)

III - um representante do Comando do Exército; (Incluído pelo


Decreto nº 9.857, de 2019)

IV - um representante do Comando da Aeronáutica; (Incluído


pelo Decreto nº 9.857, de 2019)

V - um representante do Ministério da Economia; e (Incluído pelo


Decreto nº 9.857, de 2019)

VI - um representante do Ministério de Ciência, Tecnologia, Ino-


vações e Comunicações. (Incluído pelo Decreto nº 9.857, de 2019)

Embora seja uma Comissão relacionada à indústria de defesa nacio-


nal, não há participação de associações representativas de empresas do se-
tor. O presidente do Conselho poderá convidar representantes de outros
órgãos e entidades, públicas ou privadas, para participarem das reuniões,
sem, contudo, terem direito a voto. O convite será feito em razão da ma-
téria da discussão do Conselho. Portanto, eventualmente a BID poderá
ser representada por meio de empresas ou associações do setor, se perti-
nente o convite à matéria discutida no Conselho.
Quanto à catalogação dos produtos de defesa, estabelece como as em-
presas interessadas em serem reconhecidas como Empresa de Defesa deve-
rão proceder para obter o credenciamento dos seus Produtos de Defesa no
SISMICAT. No que tange à contratação e ao desenvolvimento de produ-
tos e sistemas de defesa, estabelece que as licitações deverão ser precedidas
de um Termo de Licitação Especial (TLE), o qual apresentará a análise de
benefício, o custo e as razões de escolha desse procedimento licitatório.
Com relação ao financiamento das EED, dispõe que terão acesso a
linhas de financiamentos para programas, projetos e ações relativos a bens
e serviços de defesa nacional e ao PED. Prescreve, ainda, que serão prio-
rizados os financiamentos destinados a atender às diretrizes da END e os

283
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

projetos que envolvam capacitação tecnológica, produção e desenvolvi-


mento de conteúdo local.
Por fim, o Decreto nº 8.122, de 16 de outubro de 2013, regulamenta
o Regime Especial Tributário para a Indústria de Defesa (RETID), insti-
tuído pela Lei nº 12.598/2012.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo pretendeu responder à seguinte questão problema: Quais


são os marcos regulatórios da indústria de defesa estabelecidos nos do-
cumentos de defesa? Para tanto, estabeleceu-se como objetivo geral
identificar os marcos regulatórios da base industrial de defesa; e como
objetivos específicos (a) identificar as disposições regulatórias descritas
na Política Nacional de Defesa, na Estratégia Nacional de Defesa e no
Livro Branco de Defesa, e (b) analisar o arcabouço legal relacionado aos
marcos regulatórios.
O primeiro objetivo específico foi satisfeito com a identificação de três
normas legais mencionadas expressamente: Lei nº 12.598/2012, Decreto
nº 7.970/2013 e Decreto nº 8.122/2013. Essas legislações compõem o que
foi definido na END/2012 e no LBDN/2012 como marcos regulatórios
para o fortalecimento da indústria de defesa. Em realidade, são concreti-
zações do estabelecido pela END/2012 como necessário para estimular e
fortalecer a indústria de defesa: (1) modificar a Lei nº 8.666/1993; (2) criar
um regime tributário diferenciado para a indústria de defesa; (3) modificar
a legislação referente à linha de crédito especial; e (4) estabelecer proce-
dimentos de garantias para contratos de exportação de produto de defesa.
A análise do mencionado arcabouço legal permite concluir por essa
concretização. A Lei nº 12.598/2012 estabelece normas especiais paras as
compras, contratações e desenvolvimento de produtos e sistemas de de-
fesa, além de dispor sobre regras de incentivo à área estratégica de defesa,
como regime tributário, financiamentos e garantias, questões estas regu-
ladas por meio dos mencionados decretos.
Desse modo, é possível concluir que foram identificados os marcos
regulatórios da Base Industrial de Defesa, conforme estabelecido nos do-
cumentos de defesa (PND, END e LBDN) e, respondendo à questão pro-

284
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

blema, a Lei nº 12.598/2012, o Decreto nº 7.970/2013 e o Decreto nº


8.122/2013 são os marcos regulatórios da indústria de defesa estabelecidos
em tais documentos.
Por fim, a hipótese definida se mostra verdadeira pois, de fato, os
Livros de Defesa norteiam o estabelecimento do marco regulatório de for-
talecimento da indústria de defesa

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto nº 12.598, de 21 de março de 2012. Estabelece


normas especiais para as compras, as contratações e o desenvolvi-
mento de produtos e de sistemas de defesa; dispõe sobre regras de
incentivo à área estratégica de defesa; altera a Lei nº 12.249, de 11 de
junho de 2010; e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/cci-
vil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12598.htm. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Decreto nº 5.484, de 30 de junho de 2005. Aprova a Política


de Defesa Nacional, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidên-
cia da República, 2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5484.htm#:~:text=DE-
CRETO%20N%C2%BA%205.484%2C%20DE%2030,que%20
lhe%20confere%20o%20art. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Decreto nº 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Aprova


a Estratégia Nacional de Defesa, e dá outras providências. Brasília,
DF: Presidência da República, 2008. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/decreto/d6703.htm.
Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Decreto nº 7.438, de 11 de fevereiro de 2011. Estabele-


ce princípios e diretrizes para criação e elaboração do Livro Bran-
co de Defesa Nacional, institui Grupo de Trabalho Interministerial
com o objetivo de elaborar estudos sobre temas pertinentes àquele
Livro, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da Repú-
blica, 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_

285
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

ato2011-2014/2011/decreto/d7438.htm#:~:text=DECRETO%20
N%C2%BA%207.438%2C%20DE%2011,Livro%2C%20e%20
d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 8
abr. 2023.

BRASIL. Decreto nº 7.970, de 28 de março de 2013. Regulamenta


dispositivos da Lei nº 12.598, de 22 de março de 2012, que estabe-
lece normas especiais para as compras, as contratações e o desen-
volvimento de produtos e sistemas de defesa, e dá outras providên-
cias. Brasília, DF: Presidência da República, 2013. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/
d7970.htm. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Decreto nº 8.122, de 16 de outubro de 2013. Regulamen-


ta o Regime Especial Tributário para a Indústria de Defesa - Re-
tid, instituído pela Lei nº 12.598, de 22 de março de 2012. Brasília,
DF: Presidência da República, 2013. Disponível em: https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d8122.htm.
Acesso em 08 abril 2023.

BRASIL. Estratégia Nacional de Defesa. Brasília, DF: Presidência da


República, 2012a. Disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/
arquivos/2012/mes07/end.pdf. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 97, de 9 de junho de 1999. Dis-


põe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o em-
prego das Forças Armadas. Brasília, DF: Presidência da República,
[1999]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
lcp/lcp97.htm#:~:text=LEI%20COMPLEMENTAR%20N%-
C2%BA%2097%2C%20DE%209%20DE%20JUNHO%20
DE%201999&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20nor-
mas%20gerais,o%20emprego%20das%20For%C3%A7as%20Ar-
madas. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Lei nº 11.484, de 31 de maio de 2007. Dispõe sobre os in-


centivos às indústrias de equipamentos para TV Digital e de compo-
nentes eletrônicos semicondutores e sobre a proteção à proprieda-

286
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

de intelectual das topografias de circuitos integrados, instituindo o


Programa de Apoio ao Desenvolvimento Tecnológico da Indústria
de Semicondutores – PADIS e o Programa de Apoio ao Desenvol-
vimento Tecnológico da Indústria de Equipamentos para a TV Di-
gital – PATVD; altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993; e
revoga o art. 26 da Lei no 11.196, de 21 de novembro de 2005. Bra-
sília, DF: Presidência da República, 2007. Disponível em: https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11484.
htm#art62. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37,


inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações
e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Bra-
sília, DF: Presidência da República, [1993]. Disponível em: https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8666cons.htm. Acesso em: 8
abr. 2023.

BRASIL. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília, DF: Ministério


da Defesa, 2012b. Disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/
arquivos/2012/mes07/lbdn.pdf. Acesso em: 8 abr. 2023.

BRASIL. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília, DF: Ministério


da Defesa, 2016.

BRASIL. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília, DF: Ministério


da Defesa, 2020. Disponível em: https://www.gov.br/defesa/pt-br/
assuntos/copy_of_estado-e-defesa/livro_branco_congresso_nacio-
nal.pdf. Acesso em 08 abril 2023.

BRASIL. Política de Defesa Nacional. Brasília, DF: Presidência da


República, 1996. Disponível em: http://www.biblioteca.presiden-
cia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/politica-de-defesa-na-
cional-1996.pdf. Acesso em: 8 abr. 2023.

287
CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE, SISTEMA
DE FREIOS E CONTRAPESOS E A
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
Luiz Gustavo Santos Silva42

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 2º, aduz que os pode-


res da União, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são independentes
e harmônicos entre si, ou seja, cada um com sua autonomia e sem precisa-
rem dos outros para funcionar, desde que operando sempre em harmonia.
O princípio da harmonia entre os poderes é um princípio fundamen-
tal da democracia, que estabelece que os três poderes do Estado (Execu-
tivo, Legislativo e Judiciário) devem colaborar para o bem-estar da so-
ciedade. Esse princípio é fundamentado na noção de que cada órgão tem
suas próprias funções e obrigações, e que eles precisam trabalhar juntos
para assegurar a aplicação das leis e a proteção dos direitos dos cidadãos
(MONTESQUIEU, 1748).
O princípio da harmonia entre os poderes também é conhecido
como o princípio da separação de poderes, pois estabelece que cada poder

42 Graduando em Direito pela faculdade Funorte – Janaúba.

288
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

deve ter autonomia para desempenhar suas funções, porém eles precisam
colaborar para assegurar a aplicação das leis.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) é a entidade respon-
sável por garantir a harmonia entre os poderes. É o órgão máximo do
Poder Judiciário brasileiro e é responsável por julgar casos que envolvem
questões constitucionais, como direitos fundamentais, direitos humanos,
direitos políticos, direitos sociais, direitos econômicos e direitos culturais.
Ele também é responsável por casos relacionados a questões de competên-
cia entre os três poderes, bem como casos que envolvem a interpretação
da Constituição Federal, exemplo disso são as ADIs (ADI: Ação Direta de
Inconstitucionalidade), ADOs (Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão), ADCs (Ação Declaratória de Constitucionalidade) e ADPFs
(Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental).
A Constituição Federal de 1988 estabelece que os poderes da Repú-
blica Federativa do Brasil são independentes e harmônicos entre si. No
entanto, como é possível ver nas mídias 43, na prática, em alguns casos, há
uma interferência entre os eles, gerando conflitos.
Segundo informações veiculadas em diversos jornais44, algumas ações
julgadas pelo Supremo contra atos normativos do Executivo e Legislativo
causaram instabilidade entre os poderes, criando uma espécie de guerra
institucional, quem pode mais, quem manda mais, culminando no efei-
to backlash. O efeito backlash vem de um termo traduzido do inglês que
significa retaliação, uma espécie de reação contrária do poder Legislativo
contra uma decisão do poder Judiciário, por exemplo: a corte proíbe a
realização do evento da vaquejada, então o legislativo cria uma norma
autorizando esse mesmo evento, indo totalmente de encontro à decisão
proferida pela corte. Isso, além de causar uma insegurança jurídica, causa
também instabilidade entre os poderes.
Para assegurar a conformidade dos poderes com a Constituição e a
colaboração entre eles, existe o controle de constitucionalidade. Segun-
do Lenza (2021), “o controle de constitucionalidade é um mecanismo

43 Notícias que mostram o perigo da intervenção da corte nos poderes: https://www.miga-


lhas.com.br/depeso/344313/as-constantes-interferencias-entre-os-poderes.
44 Disponível em: https://revistaoeste.com/brasil/interferencia-politica-do-stf-gera- inse-
guranca-juridica-no-brasil-alerta-ives-gandra/.

289
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

que visa proteger a Constituição e garantir a harmonia entre os poderes,


impedindo que as leis e atos normativos violarem as normas e princípios
fundamentais da Carta Magna”. Se o Judiciário entender que uma lei ou
ato é contrário à Constituição, ele pode anulá-lo.
Portanto, o controle de constitucionalidade é um importante meca-
nismo para garantir que os poderes trabalhem em conjunto e respeitem a
Constituição. Assim, ele contribui para o bom funcionamento da demo-
cracia e para a harmonia entre os poderes.
Segundo Lenza (2022), “como sabemos, o sistema de controle de
constitucionalidade no Brasil é jurisdicional misto, tanto difuso como
concentrado”. O controle de constitucionalidade pode ser realizado de
duas formas: difusa e concentrada. O controle difuso é realizado pelos
juízes, os quais devem verificar a constitucionalidade de todas as leis e atos
normativos que estão sendo aplicados em seus processos. Já o controle
concentrado é realizado pelo Supremo Tribunal Federal, que tem a res-
ponsabilidade de julgar as ações diretas de inconstitucionalidade e as ações
declaratórias de constitucionalidade.
O controle de constitucionalidade faz parte do sistema de freios e
contrapesos, um mecanismo de controle de governança com vistas a equi-
librar os interesses de diferentes grupos dentro de uma organização. O
objetivo é garantir que nenhum grupo tenha muito poder ou influência
sobre as decisões da organização (MONTESQUIEU, 1748).
O sistema de freios e contrapesos é composto por vários mecanismos, um
deles é a separação de poderes. Segundo Barroso, ele é essencial para a manu-
tenção do equilíbrio de poderes em um Estado Democrático de Direito, assim,
cada um pode atuar como contrapeso aos demais, evitando que haja abusos e
garantindo a proteção dos direitos fundamentais (BARROSO, 2021).

2. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE

2.1. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE


CONCENTRADO

Segundo Barroso (2010), o controle de constitucionalidade é uma


técnica por meio da qual se busca assegurar a supremacia da Constitui-

290
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ção Federal e a proteção dos direitos fundamentais, mediante a verifica-


ção da conformidade vertical de todas as normas infraconstitucionais.
E o sistema de controle de constitucionalidade brasileiro adotado é a
modalidade de controle concentrado, que se caracteriza pela concentra-
ção das ações de controle perante um órgão especializado – o Supremo
Tribunal Federal – e pela eficácia erga omnes (para todos) de suas decisões
(BARROSO, 2010).
Nesse mesmo sentido, Bonavides (2014) versa que o controle de
constitucionalidade é o processo de verificação da compatibilidade verti-
cal entre a lei e a Constituição, e que a finalidade é a proteção desta e dos
direitos fundamentais, mediante o afastamento de leis ou atos normativos
que vão de encontro à norma constitucional.
Barroso (2019) discorre ainda que considera a Constituição de 1988
um forte mecanismo que, além de ter criado uma série de direitos e garan-
tias fundamentais, também fortaleceu o controle de constitucionalidade,
estabelecendo assim formas diversas para sua realização, em sede concen-
trada e difusa.
O autor ainda expõe que o controle difuso passou a ser exercido por
qualquer juiz ou tribunal, a qualquer caso concreto, enquanto o con-
centrado foi atribuído aos tribunais superiores e ao Supremo Tribunal
Federal. Além disso, ele salienta que a Constituição prevê uma série de
instrumentos para a realização do controle, como a Ação Direta de In-
constitucionalidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade, o Man-
dado de Injunção, entre outros já citados (Barroso 2019).
Autores como José Afonso da Silva e Luís Roberto Barroso ressaltam
que o controle concentrado de constitucionalidade foi considerado mais
eficaz que o difuso, pois permite que o STF decida sobre questões consti-
tucionais de forma mais rápida e eficiente. Além disso, o controle concen-
trado também permite que o STF estabeleça precedentes para questões
constitucionais, o que ajuda a garantir a uniformidade na aplicação da lei,
pois também têm efeito vinculando as decisões do Supremo.
Bonavides (2014) aduz que o controle de constitucionalidade con-
centrado é um sistema efetuado por via de ações constitucionais concen-
tradas, ou abstratas, tendo como base competência originária perante um

291
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

órgão constitucional especializado, como o Supremo Tribunal Federal,


em que as decisões proferidas têm eficácia vinculante e geral, atingindo
todos os órgãos do Poder Público e os particulares.
Gilmar Mendes explica sobre a importância do controle de consti-
tucionalidade: “O controle de constitucionalidade é um dos meios mais
importantes de proteção dos direitos fundamentais, permitindo que se-
jam preservados os princípios e valores fundamentais da Constituição,
independentemente das maiorias políticas do momento.” (MENDES;
BRANCO, 2014, p. 138).
É muito importante ter esse controle estabelecido na nossa Consti-
tuição para evitar abusos legislativos e leis que vão contra a nossa Carta
Magna. Nesse sentido, esse controle foi um importante instrumento de-
senvolvido no ramo do Direito para assegura o texto constitucional.

4. SISTEMA DE FREIOS E CONTRAPESOS

O sistema de freios e contrapesos foi desenvolvido pelo filósofo fran-


cês Charles de Montesquieu no século XVIII. Ele acreditava que a melhor
maneira de evitar o abuso de poder era dividi-lo em três ramos separados
do governo: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.
Para o filósofo, cada braço teria suas próprias atribuições e respon-
sabilidades, e o equilíbrio de poderes entre eles impediria que qualquer
um se tornasse muito poderoso. De acordo com Montesquieu (1748),
essa divisão seria uma proteção contra a tirania e garantiria a proteção
dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos. O sistema de freios
e contrapesos é uma parte importante da teoria política liberal e tem sido
influente em muitas constituições ao longo da história.
Em suma, o sistema de freios e contrapesos de Montesquieu foi ado-
tado por muitos governos ao redor do mundo, incluindo os Estados Uni-
dos. O sistema foi projetado para garantir que nenhum ramo do governo
se torne muito poderoso e que os direitos dos cidadãos sejam protegidos.
Esse sistema é um princípio que foi desenvolvido na Idade Média
para assegurar que nenhum único indivíduo ou grupo de pessoas tivesse
o poder de governar sozinho, que o governo fosse responsável perante o
povo e que nenhum grupo ou indivíduo pudesse abusar do poder. En-

292
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

quanto o sistema de freios e contrapesos foi criado como uma forma de


equilibrar o poder entre os três principais ramos do governo: o Executivo,
o Legislativo e o Judiciário. O Executivo é responsável por executar as leis,
o Legislativo é responsável por criar as leis e o Judiciário é responsável por
interpretar as leis (MONTESQUIEU, 1748).
Cada um dos três ramos do governo tem seus próprios poderes e
incumbências, mas também tem seus próprios freios e contrapesos. Por
exemplo, o Executivo tem o poder de executar as leis, mas o Legislativo
tem o poder de criar leis que limitem ou anulem as ações do Executivo. O
Legislativo pode propor leis, mas o Executivo pode vetá-las. O Judiciário
tem o poder de interpretar as leis, mas o Executivo ou o Legislativo po-
dem burlar essas decisões, causando assim o efeito backlash (SILVA, 2017).
O sistema de freios e contrapesos foi concebido para promover a equi-
dade de poder e a responsabilidade. O objetivo era assegurar que nenhum
ramo do governo detivesse o poder exclusivo e absoluto, evitando, assim,
o abuso de autoridade. Além disso, o sistema foi projetado para garantir
que o governo fosse responsável perante a sociedade, impedindo que qual-
quer grupo ou indivíduo governasse de forma autoritária.

5. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA

A judicialização da política é um tema bastante em alta e que gera


muitas discussões e debates, o próprio ministro do Supremo e ex-presi-
dente da Corte, o ministro Luiz Fux, argumentou que os tribunais não
estão equipados para lidar com questões políticas complexas e que suas
decisões podem ter consequências imprevisíveis e indesejáveis. Segue
também a mesma lógica o jurista Lênio Streck, que escreveu um artigo
intitulado O ativismo judicial existe ou é imaginação de alguns?
Barroso, em sua obra Judicialização, ativismo judicial e legitimidade de-
mocrática defende que o sistema judicial não deve substituir o papel das
instituições políticas democráticas na tomada de decisões e que a judicia-
lização deve ser limitada a casos específicos em que há violações claras da
Constituição ou de direitos fundamentais. Ele acredita que a judicializa-
ção excessiva da política pode enfraquecer a legitimidade das instituições
democráticas e, portanto, deve ser evitada.

293
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Já em uma recente entrevista do ministro Luiz Fux, ele diz que “Polí-
tica se resolve no parlamento, não no Judiciário” e complementa dizendo
que “contra ações movidas no STF por pequenos partidos políticos que
‘perderam no parlamento’. No máximo, deveriam provocar o procura-
dor-geral da República”. Ou seja, buscando sempre ao máximo resolver
tudo dentro do poder legislativo, evitando ao máximo a judicialização.
Em suma, a judicialização da política é um fenômeno complexo e
embora possa trazer alguns benefícios, ela também pode levar a proble-
mas, como a burocratização e a interferência dos tribunais na política,
como bem veiculado nos jornais45.
O STF tem sido chamado a julgar questões políticas que deveriam ser
decididas pelo Congresso Nacional ou pelo Executivo. Essa judicialização
tem sido criticada por muitos congressistas e cidadãos, pois ela pode levar
a decisões que não refletem a vontade da maioria da população, citando
novamente a fala do ministro Luiz Fux46 em palestra dada: “Cada um no
seu quadrado”.
No entanto, a judicialização da política também tem seus aspectos
positivos. Ela pode ser utilizada para assegurar que as normas sejam apli-
cadas de maneira equitativa e que os direitos dos indivíduos sejam prote-
gidos. Além disso, ela pode ser empregada para garantir que as leis sejam
cumpridas de acordo com a Carta Magna (MENDES; BRANCO, 2013).
Barroso (2010) defende que o exercício da função judicial não pode
ser ilimitado, já que tal atividade não se exerce em vácuo normativo, mas
sim em uma sociedade democrática e em um Estado de Direito. ela tam-
bém pode resultar em julgamentos que não correspondam ao desejo da
maior parte da sociedade. Logo, é vital que o Supremo Tribunal Federal
seja utilizado de maneira responsável e que as decisões sejam proferidas
com base em princípios de justiça e equidade. (BARROSO, 2010).
Ademais, ocorre o fato de que os partidos políticos e os líderes polí-
ticos têm recorrido ao Poder Judiciário para solucionar questões políticas,

45 Link do ESTADÃO sobre o problema da judicialização da política: https://www.estadao.


com.br/opiniao/os-danos-da-judicializacao-da-politica/.
46 Palestra do ministro Luiz Fux: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/politica-se-resolve-
-no-parlamento-nao-no-judiciario-diz-fux/.

294
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

em vez de procurarem soluções através do diálogo e do debate político, o


que também desvia o centro das atenções da discussão política para ques-
tões jurídicas.
Esse fenômeno tem se tornado cada vez mais alarmante, pois pode
acarretar consequências graves para a democracia. Ao recorrerem ao Po-
der Judiciário para solucionar questões políticas, os partidos e os líderes
estão submetendo a decisão a uma instituição que não foi eleita para esse
propósito, o que pode levar a resultados indesejáveis, novamente citando a
fala do ministro Luiz Fux em sua palestra dada recentemente.
Além disso, a judicialização da política também pode acarretar um
aumento da burocracia e paralisação de processos importantes, como re-
formas e leis. Isso pode ter um efeito negativo na governança e na efi-
ciência do Estado. Segundo o Correio Braziliense47, há mais de 20 mil
processos aguardando julgamentos na corte.
Portanto, é importante que partidos e líderes busquem soluções por
meio do diálogo e da negociação, a fim de evitar o perigo da judicialização
da política.
Até mesmo Gilmar Mendes e Branco (2012, p. 1298) enfatiza a im-
portância de um Judiciário e ministros independentes:

Ao Poder Judiciário incumbe exercer o último controle da ativida-


de estatal, manifeste-se ela por ato da Administração ou do próprio
Poder Legislativo (controle de constitucionalidade). Daí a necessi-
dade de que, na sua organização, materialize-se a clara relação de
independência do Poder Judiciário e do próprio juiz em relação aos
demais Poderes ou influências externas.

O trecho citado apresenta uma importante consideração sobre o pa-


pel do Poder Judiciário no sistema de governo, responsável por exercer o
controle final sobre a atividade estatal, o que significa que é o último re-

47 Processos aguardando julgamento no STF: https://www.correiobraziliense.com.br/poli-


tica/2022/06/5016300-mais-de-20-mil-processosaguardam-julgamento-no-supremo-tribu-
nal-federal.html.

295
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

curso disponível para garantir a legalidade e a constitucionalidade dos atos


praticados pelos outros poderes do Estado.
Isso inclui o controle de constitucionalidade, que é o poder de ve-
rificar se as leis e atos normativos estão em conformidade com a Cons-
tituição, bem como o controle de legalidade dos atos administrativos. É
importante que a organização do Judiciário garanta a independência do
poder e dos juízes, de forma a evitar influências externas ou pressões que
possam afetar a sua capacidade de julgar com imparcialidade e autonomia.
Portanto, a clara relação de independência do Poder Judiciário em re-
lação aos demais poderes e influências externas é fundamental para o pleno
funcionamento da democracia e do Estado de Direito, garantindo a prote-
ção dos direitos individuais e coletivos e a efetividade do sistema de Justiça.

7. EFEITO BACKLASH

O termo backlash, por ser um instituto novo no Direito Constitucio-


nal, gera alguns entendimentos que seguem a mesma linha de raciocínio,
porém com algumas alterações. Para José Afonso da Silva (2017), “o efeito
backlash, em geral, pode ser entendido como uma reação contrária e re-
sistente a movimentos progressistas, no âmbito social, cultural, político ou
jurídico”. Já Gilmar Mendes e Branco (2018) conceitua que “muitas vezes,
essas mudanças [em direção a uma sociedade mais igualitária e democrática]
provocam reações conservadoras, manifestadas em tentativas de se reverter
as conquistas já alcançadas – o que se convencionou chamar de backlash”.
No contexto jurídico, o efeito backlash é uma resposta negativa à mu-
dança ou ao aumento de algum direito ou liberdade individual ou cole-
tiva. Isso pode ocorrer quando uma decisão ou ação é vista como amea-
çadora para a estabilidade social ou para as normas e valores tradicionais
da sociedade, como ocorreu com a ADI 4983, que proibiu a prática da
vaquejada e logo depois o poder legislativo criou uma emenda constitu-
cional legalizando o ato.
Piovesan (2007) expôs que o efeito backlash no Direito brasileiro
pode ser visto em diversos momentos históricos em que avanços na pro-
teção de direitos foram seguidos de retrocessos. E, para tanto, cita de
exemplo a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu direi-

296
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

tos fundamentais para grupos historicamente marginalizados, mas que


foi seguida por tentativas de limitar esses direitos em anos posteriores
(PIOVESAN, 2007)

7.1. O EFEITO BACKLASH E A PRÁTICA DA VAQUEJADA

A ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) da vaquejada foi uma


ação movida pelo Partido Animalista contra a Lei Estadual do Ceará que
regulamentava a prática dessa atividade. O Supremo Tribunal Federal jul-
gou a ADI em outubro de 2016, decidindo por seis votos a cinco pela
inconstitucionalidade da lei. A decisão causou grande controvérsia e mo-
bilização de grupos defensores da prática da vaquejada, que pressionaram
o Congresso Nacional a aprovar uma emenda constitucional que reco-
nhecesse a atividade como manifestação cultural. A emenda foi aprova-
da em novembro de 2017, alterando a Constituição Federal e tornando a
vaquejada legal em todo o país.
Como a vaquejada é um esporte que gera muita emoção social, pois
é muito popular entre os moradores da região Nordeste, é comum ver
famílias inteiras comparecendo aos eventos, torcendo pelos seus vaqueiros
favoritos. Além disso, a vaquejada também é um importante meio de en-
tretenimento para a população local, que pode aproveitar para se divertir e
passar um tempo com a família.
Por conta disso, houve um enorme clamor social para que essa deci-
são fosse revogada, pois não se tratava apenas de uma festa, mas de toda
uma cultura e história existentes por trás. Assim, foi aprovada a Emenda
Constitucional nº 96, que acrescentou o § 7º ao art. 225 da Constituição
Federal determinando que práticas desportivas que utilizarem animais não
serão consideradas cruéis. Esse foi um exemplo claro do efeito backlash que
aconteceu no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo teve como objetivo apresentar aos leitores como funciona
o controle de constitucionalidade no Brasil, a história desse mecanismo, o
sistema de freios e contrapesos bem como o ativismo judicial.

297
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Além disso, o artigo destaca a necessidade de uma intervenção equi-


librada do STF na política, sempre baseada nas normas constitucionais e
com o objetivo de proteger os direitos e liberdades individuais e coletivas,
sem prejudicar o funcionamento e a efetividade da democracia. A judicia-
lização excessiva da política pode levar a uma polarização social e política,
além de aumentar a desconfiança da população nas instituições democrá-
ticas. É importante que haja um diálogo aberto e uma discussão construti-
va sobre o papel do STF e da justiça na democracia, a fim de garantir uma
democracia forte e representativa para todos.
Em conclusão, é importante destacar que a democracia depende de
um debate político saudável e não da intervenção excessiva do Judiciário
em questões políticas. Tanto o Legislativo quanto o Executivo possuem
mecanismos próprios de verificação da constitucionalidade, como a susta-
ção de decretos executivos pela legislatura e a análise de projetos de lei pela
Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), dessa forma, não há necessida-
de de recorrer ao Judiciário para esse tipo de controle.
Alguns grupos usam sua influência na corte para garantir que suas
ações sejam julgadas procedentes – viu-se muito isso de 2019 a 2022, pe-
ríodo em que o Supremo mais julgou ADIs. Cabe, portanto, uma reflexão
cuidadosa sobre a atuação do Poder Judiciário na esfera política, de modo
a assegurar a harmonia e a independência entre os poderes e a preservação
da democracia e dos direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no


Direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise críti-
ca da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2010.

BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no


Direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Con-


temporâneo. 9. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Con-


temporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

298
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimida-


de democrática. Suffragium, Fortaleza, v. 5, n. 8, p. 11-22, 2019.
Disponível em: https://bibliotecadigital.tse.jus.br/xmlui/handle/bdt-
se/5498. Acesso em: 27 abr. 2023.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:


Malheiros, 2014.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso em: 2 jan. 2023.

BRASIL. Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999. Dispõe sobre


o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e
da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tri-
bunal Federal. Brasília, DF: Presidência da República, [1999]. Dis-
ponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9868.htm.
Acesso em: 2 jan. 2023.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: SaraivaJur,


2022.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 25. ed. São


Paulo: Saraiva Educação, 2021.

MATOS, Fábio. Interferência política do STF gera ‘insegurança jurídica’


no Brasil, alerta Ives Gandra. Revista OESTE, [s. l.], 15 mar. 2021.
Disponível em: https://revistaoeste.com/brasil/interferencia-politi-
ca-do-stf-gera-inseguranca-juridica-no-brasil-alerta-ives-gandra/.
Acesso em: 24 abr. 2023.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional. 7. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva,
2012.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2013.
299
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva Educação,
2018.

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso


de Direito Constitucional Positivo. 40. ed. São Paulo: Malheiros,
2017.

MONTESQUIEU, Charles de. O Espírito das Leis. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1993 [1748].

NASCIMENTO, Jairo. “Política se resolve no parlamento, não no Judi-


ciário”, diz Fux. CNN Brasil, [s. l.], 10 fev. 2023. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/politica-se-resolve-no-par-
lamento-nao-no-judiciario-diz-fux/. Acesso em: 14 mar. 2023.

PATRIOLINO, Luana. Mais de 20 mil processos aguardam julgamen-


to no Supremo Tribunal Federal. Correio Braziliense, [s. l.], 19
jun. 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/
politica/2022/06/5016300-mais-de-20-mil-processos-aguardam-
-julgamento-no-supremo-tribunal-federal.html. Acesso em: 24 abr.
2023.

PIOVESAN, F. Direitos humanos e o efeito backlash. Revista do Ins-


tituto de Hermenêutica Jurídica, [Belo Horizonte], v. 4, n. 2, p.
77-93, 2007

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 39. ed. São
Paulo: Malheiros, 2016.

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São


Paulo: Malheiros, 2017.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, São Pau-


lo, v. 4, n. 2, p. 441-464, 2008. Disponível em: https://bibliotecadi-
gital.fgv.br/dspace/handle/10438/9674. Acesso em: 6 fev. 2023.

300
RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO POR OMISSÃO NO
EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA
Grasiela Grosselli48

INTRODUÇÃO

O surgimento do Estado Democrático de Direito fez nascer a ideia


de que a Administração Pública se submete ao direito estabelecido, assim
como os demais sujeitos de direito da sociedade.
Assim, quando o particular sofrer algum tipo de dano, em razão de
conduta praticada por agente estatal, agindo nesta qualidade, o ente públi-
co será responsabilizado. Mesmo sabendo que o Estado goza de determi-
nadas prerrogativas para o exercício da atividade administrativa, em virtu-
de da supremacia do interesse público sobre o particular, isso não o exime
de arcar com as consequências que seus agentes causarem aos particulares.
Com efeito, sabendo que o Estado possui uma série de prerrogativas
em sua atuação, o que acaba colocando-o em situação de superioridade
comparado ao cidadão, essa atuação também deve observar os limites es-
tabelecidos pela legislação e, havendo a prática de alguma conduta irregu-
lar, haverá maior rigor no tratamento dos danos causados.

48 Mestre em Direito do Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina.


Professora na Unisociesc – Joinville.

301
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Dessa forma, quando o Estado, através de condutas comissivas ou


omissivas, lícitas ou ilícitas de seus agentes, causar algum tipo de dano ao
particular, deverá ser responsabilizado, independentemente do vínculo ou
da relação anterior com o sujeito prejudicado, conforme estipulado pela
Constituição Federal.
Assim, o ordenamento jurídico do país, seguindo a evolução das teo-
rias de responsabilização do Estado, resolveu adotar a teoria do risco ad-
ministrativo, ou seja, uma responsabilização objetiva, aquela em que será
auferida apenas a conduta, o dano e o nexo causal entre eles.
No entanto, tal responsabilidade objetiva é pacífica quando se trata de
condutas comissivas do Estado, que realiza a restrição de direitos e garan-
tias individuais com base no princípio da supremacia do interesse público
sobre o particular, entendendo-se, nesses casos, o exercício do poder de
polícia. Porém, tais restrições devem ser realizadas de acordo com o esti-
pulado pela lei e seu abuso deve ser coibido.
Em razão disso, o objetivo central do presente artigo foi verificar de
que forma o Estado pode ser responsabilizado quando houver algum tipo
de omissão, ou seja, em razão do não exercício do poder de polícia quando
do dever de agir.

1. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NA CF/88

A responsabilidade civil é a necessidade de recomposição de danos


que consiste no dever de indenizar, ou seja, reparar o dano provocado a
outrem. Surge em face do descumprimento obrigacional ou por deixar de
observar um preceito normativo.
O Administrato não tem como escapar ou sequer minimizar os
perigos de danos provenientes da ação estatal já que é o Estado quem
define os parâmetros de sua presença na sociedade e estabelece o seu rela-
cionamento com os indivíduos. A partir dessas bases constrói-se a respon-
sabilidade do Estado, com mais proteção para o administrado e mais rigor
para o ente estatal.
Mas nem sempre foi assim. A forma como o Estado é responsabi-
lizado hoje é fruto de uma evolução histórica que partiu de uma irres-
ponsabilidade estatal, quando se entendia que sob nenhum aspecto este

302
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

poderia ser responsabilizado, já que era representado pelos monarcas que


detinham poder absoluto; assim, passou por uma responsabilidade subje-
tiva com os mesmos parâmetros da responsabilização civil geral até chegar
na responsabilidade objetiva aplicada atualmente.
A previsão de responsabilidade do Estado está disciplinada na Consti-
tuição Federal de 1988, que, em seu art. 37, § 6º, dispõe:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos


Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-
pios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, mora-
lidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

§6º: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado


prestadora de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito
de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa (BRA-
SIL, 1988).

Pela leitura do artigo mencionado, percebe-se que a Carta Magna


optou pela consideração da responsabilidade objetiva do Estado, com base
na teoria do risco administrativo, ou seja, com a necessidade apenas de
se comprovar a conduta, o dano e o nexo causal, independentemente da
culpa do agente, já que a Administração será responsabilizada por danos
que decorram do risco da atividade que ela exerce.
Dessa forma, para a configuração da responsabilidade objetiva do Es-
tado, com base na teoria predominante, são necessários, obrigatoriamen-
te, três elementos: dano, fato administrativo e o nexo de causalidade entre
o dano causado e a ação do Estado.

1.1. AGENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL ESTATAL

Conforme se percebe pela leitura do artigo art. 37, § 6º, da CF/88, as


pessoas jurídicas de direito público e as pessoas jurídicas de direito privado
prestadoras de serviços públicos respondem pelos atos que seus agentes,
nessa qualidade, causarem a terceiros.

303
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

De acordo com Marinela (2017), três figuras são passíveis de identi-


ficação no texto: o Estado ou quem exerça suas vezes, o agente do Estado
e a vítima. Assim, para a responsabilidade do Estado, é importante definir
a abrangência do dispositivo quando aponta as pessoas jurídicas de direito
público e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços
públicos, especialmente quanto às pessoas do regime privado.
Assim, serão responsabilizadas objetivamente a Administração Públi-
ca Direta, ou seja, os entes políticos (União, Estado, Distrito Federal e
Municípios) e as pessoas jurídicas de direito público da administração in-
direta (autarquias e fundações públicas de direito público). Também serão
responsabilizadas pela mesma teoria as pessoas jurídicas da administração
indireta com regime jurídico de direito privado (empresas públicas e so-
ciedades de economia mista), desde que prestadoras de serviço público,
ficando excluídas as exploradoras de atividade econômica.
Marinela (2017) fala que serão incluídos entre aquelas que respondem
objetivamente os particulares prestadores de serviços públicos, em razão
de descentralização, como é o caso das concessionárias e permissionárias.
No mesmo sentido, Mello (2016, p. 1041) expõe sobre as pessoas jurídicas
que possuem responsabilidade objetiva,

Incluem-se, também, as demais pessoas jurídicas de Direito Pú-


blico auxiliares do Estado, bem como quaisquer outras, inclusive
de Direito Privado, que, inobstante alheias à sua estrutura orgâni-
ca central, desempenham cometimentos estatais sob concessão ou
delegação explícitas (concessionárias de serviço público e delega-
das de função pública) ou implícitas (sociedades mistas e empresas
do Estado em geral, quando no desempenho de serviço público
propriamente dito).

De acordo com Bezerra (2016), para fins de responsabilização ob-


jetiva, as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços pú-
blicos foram equiparadas às pessoas jurídicas de direito público, pois tais
entidades, apesar de serem dotadas de personalidade privada, representam
verdadeiros prolongamentos da Administração Pública quando atuam no
âmbito de suas delegações.

304
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A responsabilidade é atribuída à pessoa jurídica em razão do prin-


cípio da impessoalidade, em que o ato praticado pelo agente público
não é dele, mas sim da pessoa jurídica a que ele pertence49. Importante
é que o dano tenha ocorrido por ato do agente, nesta qualidade, não
interessando se agiu com dolo ou culpa, apenas que tenha agido na
qualidade de agente, independentemente do nível de governo ou esca-
lão (MARINELA, 2017).
Assim, quando a pessoa jurídica (Administração Direta) responde por
ato de um agente a ela vinculado, denomina-se responsabilidade primária.
Já nos danos causados por outra pessoa jurídica em segundo lugar, pri-
meiro paga a pessoa jurídica que presta os serviços e, caso essa não tenha
condições financeiras, o Estado é chamado à responsabilidade.
De qualquer forma, a responsabilidade cabe ao Estado ou a quem lhe
faça as vezes, cabendo ação de regresso em face do causador do prejuízo, o
qual só será responsabilizado se agir com dolo ou culpa.

1.2 A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO

No objetivo de responsabilizar os agentes públicos por suas condutas,


é importante mencionar que existem vários tipos de responsabilidade, que
variam de acordo com fato gerador, a natureza do ilícito praticado e a
natureza da norma jurídica que os contempla, podendo ser uma responsa-
bilidade civil, administrativa ou penal.
No presente artigo, optou-se por estudar a responsabilidade civil do
Estado. Essa responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual. A
primeira decorre de vínculo com a Administração Pública e não é objeto
do presente estudo. Optou-se por fazer estudo apenas em relação a res-
ponsabilidade civil extracontratual.

49 É a chamada Teoria da Imputação, criada para suprir o fato de que a pessoa jurídica,
como criação jurídica, não tem vontade própria, o que leva a lei a determinar que a vontade
do agente é imputada ao Estado (chamada imputação direta), as quais se confundem e for-
mam uma unidade. Assim o agente, nesta qualidade, é o próprio Estado manifestando sua
vontade (MARINELA, 2017).

305
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Quanto à opção Constitucional, percebe-se que se aplica a teoria do


risco adminsitrativo com uma responsabilidade objetiva dos entes, ou seja,
não há que se discutir se houve culpa ou dolo na conduta estatal.
Marinela (2017) afirma que, na responsabilidade objetiva, a obrigação
de indenizar incumbe ao Estado em razão de um procedimento lícito ou
ilícito que produziu lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. O
Estado como sujeito político, jurídico e economicamente mais poderoso
que o administrado, gozando de determinadas prerrogativas não esten-
didas aos demais sujeitos de direito, deve arcar com um risco maior, de-
corrente de suas atividades. Assim surgiu a teoria do risco administrativo.
De acordo com Carvalho (2019), a teoria do risco administrativo res-
ponsabiliza o ente público, objetivamente, pelos danos que seus agentes
causarem a terceiros, contudo, admite a exclusão da responsabilidade em
determinadas situações em que haja retirada de algum dos elementos dessa
responsabilidade.
Dessa forma, como a atividade administrativa tem por finalidade atin-
gir o bem comum e, em decorrência dela é possível ocorrer danos aos
particulares, surge ao Estado a obrigação de reparar o dano simplesmente
pelo fato de assumir o risco de exercer tal ação, independentemente da má
prestação do serviço ou da culpa do agente público.
Para Meirelles (2003), a teoria do risco administrativo faz surgir a
obrigação de indenizar o dano só do ato lesivo e injusto causado à víti-
ma pela Administração. Não se exige qualquer falta do serviço público
nem culpa de seus agentes. Basta a lesão, sem o concurso do lesado. Dessa
forma, a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do
risco integral. Nesta, a Administração ficaria obrigada a indenizar todo e
qualquer dano suportado por terceiros, ainda que resulte de culpa ou dolo
da vítima (MEIRELLES, 2003).
De acordo com Meirelles (2003), a teoria do risco integral obriga
o Estado a indenizar todo e qualquer dano, desde que envolvido no res-
pectivo evento. Não se indaga, portanto, a respeito da culpa da vítima
na produção do evento danoso nem mesmo se permite qualquer prova
visando a elidir essa responsabilidade. Basta, para caracterizar a obrigação
de indenizar, o simples envolvimento do Estado no evento danoso.

306
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Como se percebe, a teoria do risco administrativo, embora dispense


a vítima da comprovação da culpa, permite ao Estado afastar a sua res-
ponsabilidade nos casos de exclusão do nexo causal. Já na teoria do risco
integral haveria a responsabilização do Estado em qualquer situação, sem
a possibilidade de utilização das excludentes de ilicitude que serão abor-
dadas adiante.
O ordenamento jurídico brasileiro adota a responsabilidade objetiva
do Estado com base na teoria do risco administrativo, ou seja, embora a
vítima não precise comprovar dolo ou culpa, o Estado poderá eximir-se
da sua responsabilidade se comprovar a ruptura do nexo causal, sendo uti-
lizadas as excludentes de ilicitude, culpa exclusiva da vítima, caso fortuito
e força maior.

2. RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR OMISSÃO

Conforme já mencionado, o art. 37, § 6º, da Constituição atribui


responsabilidade objetiva ao Estado na hipótese de danos que decorram de
alguma conduta comissiva dos seus agentes. Contudo, no caso de omissão
estatal, o texto constitucional não é claro a respeito da solução jurídica
para danos oriundos dela.
Segundo a lição de Carvalho (2019, p. 331):

Existem situações fáticas em que o dano é causado a um particular


em virtude de uma não atuação do agente público. Nesses casos,
analisamos o regramento aplicado à responsabilização do Estado
decorrente da omissão dos seus agentes, ou seja, da ausência de
conduta do agente, em situações nas quais teria o dever de atuar
previsto em lei. A maioria da doutrina entende que a conduta
omissiva não está abarcada pelo art. 37, §6° da CRFB. O não fazer
do Estado, a falta de atuação do Estado não geraria responsabilida-
de objetiva nos moldes do texto constitucional, que traz implícita,
em seus termos, a existência de uma conduta como elemento da
responsabilidade pública. A doutrina e a jurisprudência dominan-
tes reconhecem que, em casos de omissão, aplica-se a teoria da
responsabilidade subjetiva, onde o elemento subjetivo está condi-

307
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

cionando o dever de indenizar. Então, nas omissões a regra é a


aplicação da teoria subjetiva.

Marinela (2017) deixa bem exemplificado a relação de subjetividade


da responsabilidade estatal, afirmando ser possível compatibilizar a res-
ponsabilidade subjetiva nos casos de danos decorrentes de atos omissivos,
seguindo, nesse caso, a teoria da culpa do serviço.
Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o
autor do dano. E se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja
obrigado a impedir o dolo. Ou seja, a responsabilização só faz sentido
se ele descumpriu dever legal que lhe impunha impedir o evento lesivo
(MELLO, 2016, p. 1029).
Dessa forma, nos casos em que o dano não é causado pela atividade
estatal nem pelos seus agentes, mas por omissão, concorre-se para não
evitar o resultado quando tinha o dever legal de impedi-lo, portanto, res-
ponderá de forma subjetiva, com base na teoria da culpa administrativa.
De acordo com o entendimento de Alexandrino e Paulo (2011, p.
762),

São exemplos das situações ora em foco uma manifestação pública,


em que uma multidão de terceiros (particulares, não agentes públi-
cos) venha a causar danos às pessoas, depredando propriedades; ou
a ocorrência de eventos da natureza, como vendavais e enchentes,
quem venham a causar prejuízos à população. Nessas hipóteses, a
indenização estatal só será devida se restar comprovada que deter-
minada omissão culposa da Administração concorreu para o surgi-
mento do resultado danoso, ou seja, que o dano não teria ocorrido
se a Administração tivesse prestado adequadamente os serviços pú-
blicos de que o ordenamento jurídico lhe incube (responsabilidade
subjetiva, na modalidade culpa administrativa ou culpa anônima).

Desse modo, ao se tratar de omissão do agente estatal quando tinha o


dever de agir, há de se falar na responsabilidade subjetiva, na qual a vítima
deverá demonstrar a ausência ou a má prestação do serviço.

308
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A aplicabilidade da responsabilidade subjetiva (omissão genérica50)


é entendimento reiterado no Superior Tribunal de Justiça, consoante é
possível ver pelo julgado em caso envolvendo acidente de trânsito em ra-
zão de buraco na pista.

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RESPONSA-


BILIDADE CIVIL DO ESTADO. ACIDENTE DE TRÂNSI-
TO EM RODOVIA FEDERAL. BURACO NA PISTA. MOR-
TE DO MOTORISTA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC.
INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA.
OMISSÃO. OCORRÊNCIA DE CULPA. DANOS MORAIS.
IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO. PROPORCIONALIDA-
DE. TERMO INICIAL DOS JUROS DE MORA. SÚMU-
LA 54⁄STJ. PENSÃO PREVIDENCIÁRIA. HONORÁRIOS
ADVOCATÍCIOS. SÚMULA 284⁄STF. 1. Não há violação do
art. 535 do CPC quando o Tribunal de origem analisa adequada
e suficientemente a controvérsia objeto do recurso especial. 2. Na
hipótese dos autos, restaram assentados no acórdão os pressupos-
tos da responsabilidade subjetivam, inclusive a conduta culposa,
traduzida na negligência do Poder Público na conservação das ro-
dovias federais. O acolhimento da tese do recorrente, de existir
culpa exclusiva da vítima, demandaria a incursão no conjunto fá-
tico-probatório dos autos, providência obstada pela Súmula 7⁄STJ.
3. Manutenção do valor fixado nas instâncias ordinárias por dano
moral (R$ 100.000,00 - cem mil reais), por não se revelar nem
irrisório, nem exorbitante. (...) 7. Recurso especial conhecido em
parte e não provido’ (BRASIL, 2013).

50 Haverá omissão específica quando o Estado estiver na condição de garante (ou de guar-
dião) e por omissão sua cria situação propícia para a ocorrência do evento em situação em
que tinha o dever de agir para impedi-lo; a omissão estatal se erige em causa adequada de
não se evitar o dano. Em contrapartida, a omissão genérica tem lugar nas hipóteses em que
não se pode exigir do Estado uma atuação específica; quando a Administração tem apenas
o dever legal de agir em razão, por exemplo, do seu poder de polícia (ou de fiscalização),
e por sua omissão concorre para o resultado, caso em que deve prevalecer o princípio da
responsabilidade subjetiva (CAVALIERI FILHO, 2005).

309
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Conforme é verificado, a responsabilidade subjetiva devido à omissão


do Estado se configura em razão da ocorrência do dano justamente por-
que este não agiu quando tinha o dever de fazê-lo.
Assim, a responsabilidade subjetiva aplicável ao Estado nos casos de
sua omissão não é aquela da teoria civilista, em que se exige a demons-
tração de dolo ou culpa do agente, mas, sim, a da culpa anônima, ou seja,
quando se deve comprovar a má prestação do serviço, a prestação inefi-
ciente ou, ainda, a prestação atrasada como ensejadora do dano.
Sendo assim, Pires (2017) diz que são elementos configuradores da
responsabilidade do Estado em casos de omissão de seus agentes: o com-
portamento omissivo do Estado, o dano, o nexo de causalidade e a culpa
do serviço público. Com efeito, a responsabilização, nesse contexto, de-
pende da ocorrência de ato omissivo ilícito, ou seja, a omissão do agente
deve configurar a ausência de cumprimento de seus deveres legalmente
estabelecidos.
Sobre a responsabilidade por omissão do Estado e a responsabilidade
subjetiva, Marinella (2017, p. 1028) dispõe que

[...] apresenta-se mais uma exigência da responsabilidade por


omissão a questão do dano evitável, quando era possível para o ente
público impedir o prejuízo, mas ele não o fez. Aqui também cabe
a discussão sobre assaltos em vias públicas, nos quais normalmente
não há o dever de indenizar, por ser ato de terceiro, mas, se os
guardas assistiam à ação do bandido e tinham como impedi-lo,
mas não o fizeram, há descumprimento do dever legal e, por ser
um dano evitável, reconhece-se a responsabilidade.

No mesmo sentido, Carvalho (2019) afirma que, atualmente, a pres-


tação do serviço público tem um padrão considerado normal, ou seja, tem
que haver compatibilidade com o orçamento público e sua estruturação
na prestação dos serviços. Se este está sendo realizado dentro do padrão
normal esperado, não há que se falar em responsabilizar o Estado. Este,
por sua vez não pode eximir-se de suas obrigações em oferecer o mínimo
existencial de sobrevivência para os administrados. Nesse contexto, para
que haja responsabilização do ente estatal, deve-se analisar se seria possível

310
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

a ele impedir a ocorrência do dano, dentro de suas possibilidades orça-


mentárias.
Portanto, pode-se entender que a responsabilidade do Estado por
omissão será subjetiva, com base na teoria da culpa administrativa,
isto é, deverá haver demonstração da ausência na prestação do serviço
ou sua ineficiência, mas, além disso, se a atuação pública atendeu aos
padrões normais. Em outras palavras, se o dano ocorrido ao particu-
lar foi causado por situação alheia à conduta do Estado, consideran-
do-se a impossibilidade dele de evitar o fato danoso, não haverá sua
responsabilização.
O nexo de causalidade entre essas omissões e os danos sofridos pelos
particulares só restará caracterizado quando o Poder Público tiver o de-
ver legal específico de agir para impedir o evento danoso e mesmo assim
não cumprir essa obrigação legal (LOPES CAVALCANTE, 2017). Nesse
sentido, Cavalieri Filho (2005, p. 628-629) aduz que,

A Administração Pública só poderá vir a ser responsabilizada por


esses danos se ficar provado que, por sua omissão ou atuação defi-
ciente, concorreu decisivamente para o evento, deixando de reali-
zar obras que razoavelmente lhe seriam exigíveis. Nesse caso, toda-
via, a responsabilidade estatal será determinada pela teoria da culpa
anônima ou falta do serviço, e não pela objetiva, como correta-
mente assentado pela maioria da doutrina e da jurisprudência. Essa
é a precisa lição de Hely Lopes Meirelles: “Daí por que a jurispru-
dência, mui acertadamente tem exigido a prova da culpa da Admi-
nistração nos casos de depredação por multidões e de enchentes e
vendavais que, superando os serviços existentes, causam danos aos
particulares. Nessas hipóteses, a indenização pela Fazenda Pública
só é devida se comprovar a culpa da Administração.

Assim, para a responsabilização do ente público quando de condutas


omissivas, não é preciso comprovar a culpa do agente, bastando a má pres-
tação do serviço ou a prestação ineficiente do serviço, ou, ainda, a presta-
ção atrasada do serviço como ensejadora do dano (CARVALHO, 2019).

311
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Sendo assim, são elementos que configuram a responsabilidade por


omissão de seus agentes: o comportamento omissivo do Estado, o dano, o
nexo de causalidade e a culpa do serviço público.

3. O PODER DE POLÍCIA

O Poder de Polícia é uma prerrogativa conferida ao Estado para que,


em nome do princípio da supremacia do interesse público sobre o parti-
cular, possa restringir ou condicionar o exercício das liberdades e direitos
individuais. Marinela (2017) conceitua o Poder de Polícia como um ins-
trumento conferido ao administrador que lhe permite condicionar, res-
tringir, frenar o exercício de atividade, o uso e o gozo de bens e direitos
pelos particulares, em nome do interesse da coletividade.
Para Carvalho Filho (2014, p.70), o Poder de Polícia é “a prerrogativa
de direito público que, calcada na lei, autoriza a Administração Pública
a restringir o uso e o gozo da liberdade e da propriedade em favor do
interesse da coletividade.” Nesse mesmo sentido, Meirelles (2003, p. 115)
traz seu conceito, considerando que,

Poder de Polícia é a faculdade de que dispõe a Administração Pú-


blica para condicionar e restringir o uso, o gozo de bens, atividades
e direitos individuais, em benefício da coletividade ou do próprio
Estado. O Poder de polícia é o mecanismo de frenagem de que
dispõe a Administração Pública para conter os abusos do direito
individual.

Percebe-se que o conceito de Poder de Polícia gira em torno da ideia


de que o Estado possui determinadas prerrogativas para condicionar a li-
berdade e a propriedade em favor do interesse público. Ele também pode
ser encontrado na legislação infraconstitucional, mais precisamente no ar-
tigo 78 do Código Tributário Nacional,

Art. 78 Considera-se poder de polícia a Atividade da Administra-


ção Pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou
liberdade, regula a pratica de ato ou abstenção de fato, em razão de

312
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

interesse público concernente à segurança, à higiene, á ordem, aos


costumes, a disciplina da produção e do mercado, ao exercício de
atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização
do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à proprie-
dade e os direitos individuais ou coletivos (BRASIL, 1966).

De acordo com Carvalho (2019), a conceituação do Poder de Polícia


está situada nas disposições do Código Tributário Nacional pelo fato de
que o exercício deste poder, assim como a prestação de serviços de caráter
singular, pode ensejar a cobrança de taxas, que tem previsão no próprio
texto da Constituição Federal, em seu art. 145, II51.
Para Mello (2016), o poder expressável através da atividade da Polí-
cia Administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis
administrativas, é a contraface de seu dever de dar execução a estas leis.
Ou seja, é o poder que a Administração tem de restringir o exercício de
liberdades individuais e de restringir o uso, o gozo e a disposição da pro-
priedade privada, sempre em busca do interesse público.
Dessa forma, através do Poder de Polícia a Administração Pública tem
por compromisso zelar pela boa conduta em face da legislação posta, re-
gulamentando o exercício do direito de propriedade e de liberdade ao
interesse da coletividade. Ou seja, a Administração estipula restrições e
condicionamentos ao exercício de liberdades individuais e ao uso e gozo
da propriedade a fim de realizar atividades concretas que observem o in-
teresse geral.
Marinela (2017) afirma que o fundamento para o exercício do poder
de polícia é o princípio da predominância do interesse público sobre o
particular, que dá à Administração posição de hegemonia sobre os admi-
nistrados, caracterizando-se como exercício da supremacia geral, o que
autoriza a sua atuação indistintamente sobre todos os cidadãos que estejam
sob o império das leis administrativas.

51 “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os se-
guintes tributos: [...] II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização,
efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte
ou postos a sua disposição;”

313
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

De acordo com Carvalho Filho (2014), no que concerne ao benefício


resultante do poder de polícia, constitui fundamento dessa prerrogativa do
Poder Público o interesse público. A intervenção do Estado no conteú-
do dos direitos individuais somente se justifica ante a finalidade que deve
sempre nortear a ação dos administradores públicos, qual seja, o interesse
da coletividade.
Seguindo na mesma linha de pensamento, Di Pietro (2014) afirma
que, de um lado, o cidadão quer exercer plenamente os seus direitos; de
outro, a Administração tem por incumbência condicionar o exercício da-
queles direitos ao bem-estar coletivo, e ela o faz usando de seu Poder de
Polícia.
Portanto, o Poder de Polícia se caracteriza ante o princípio da su-
premacia do interesse público sobre o particular como uma forma de
condicionar direitos e garantias individuais, conforme estabelecido pela
legislação. Considera-se, assim, que é um instrumento à disposição da
Administração para que o Estado cumpra sua missão de defensor dos in-
teresses coletivos.

4. RESPONSABILIDADE DO ESTADO POR OMISSÃO NO


EXERCÍCIO DO PODER DE POLÍCIA

A responsabilidade civil do Estado, como bem já relacionado ante-


riormente, vem de uma conduta comissiva ou omissiva realizada contra
terceiro, que pode ser material, jurídica, lícita ou ilícita, e imputada aos
agentes públicos de forma subjetiva ou objetiva.
A regra sobre a responsabilidade do Estado está contida no art. 37, §
6º, da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade das pessoas
jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços
públicos pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a tercei-
ros, assegurando o direito de regresso contra o responsável nos casos de
dolo e culpa.
Quanto à responsabilidade por omissão, percebe-se a aplicação da
teoria da culpa anônima ou culpa administrativa, em que há uma res-
ponsabilidade subjetiva, devendo-se comprovar a culpa, mas apenas em
relação à prestação do serviço. A responsabilidade do Estado por omissão

314
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

no exercício do poder de polícia surge quando deveria agir de forma a


restringir, coibir ou fiscalizar determinada conduta e se mantém inerte
diante dela, gerando evento danoso e prejuízos ao particular.
Veja-se que o Estado, em razão de sua posição de superioridade, que
envolve a necessidade de proteção ao cidadão, deverá manter verdadei-
ra e efetiva vigilância em matérias que envolverem o exercício do Poder
de Polícia. Ou seja, os gestores públicos devem munir seus servidores de
condições para que possam cumprir seu papel de prevenção, proteção,
fiscalização e repressão.
Nesse sentido, além de possuir uma estrutura organizada e com equi-
pamentos adequados, também deve funcionar de forma a atender o inte-
resse público, em atenção ao princípio da eficiência estabelecido no artigo
37 da Constituição Federal.
Além do dever de exigir o que está estritamente previsto no ordena-
mento jurídico, sob pena da sua não concessão, deve o Poder Público fis-
calizar ativamente o cumprimento das obrigações impostas, seja quando
provocado, seja de ofício. É o dever de vigilância, já exposto.
Dessa forma, cabe a atual responsabilização do Estado quando os seus
serviços não funcionam, funcionam mal ou funcionam atrasados, obvia-
mente, desde que existente o dano e inexistente alguma das excludentes
da responsabilidade estatal. Sobre a falta do serviço, Lima (2007, p. 201)
afirma que “a responsabilidade da pessoa administrativa se funda, neste
caso, em uma falta – não atribuível a um agente determinado, – mas à
organização e funcionamento do serviço”.
Lima (2007) expõe, ainda, que a responsabilidade do Estado é
oriunda dos riscos inerentes à própria atuação ou omissão do Poder Pú-
blico, impotente para prever todos os fatores e circunstâncias suscetíveis
de determinar os efeitos e resultados da atividade, criando-se, a partir
da prática, um risco, quer dizer, a possibilidade de efeitos ou resultados
imprevistos.
Ao agir a fim de garantir o cumprimento das prescrições legais limi-
tadoras da liberdade e da propriedade das pessoas, deve a Administração
Pública não somente obter uma abstenção comportamental dos cidadãos,
mas também impor aos sujeitos o dever de promover condutas ativas que

315
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

satisfaçam, de modo mais adequado, os direitos fundamentais alheios e os


interesses coletivos (JUSTEN FILHO, 2016).
Conforme pode-se perceber, são diversas as situações que exigem
uma atuação do ente público. Nesse sentido, diante da necessidade de
uma ação positiva no quesito fiscalização, sua omissão poderá ensejar da-
nos e, nesse caso, por certo que será originado o dever de responsabiliza-
ção do Estado.
Portanto, percebe-se que, quando a omissão estatal acabar gerando
danos aos particulares, havendo a necessidade de sua manifestação, na
emissão ou fiscalização de licenças, por exemplo, surgirá a sua responsabi-
lidade, diante da sua inércia e do prejuízo ocasionado.

CONCLUSÕES

De acordo com o que foi visto no presente artigo, a responsabilidade


Civil do Estado está prevista no artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, o
qual estipula uma responsabilidade objetiva no caso de danos a terceiros.
A responsabilidade objetiva pressupõe apenas a comprovação da conduta,
do dano e do nexo de causalidade entre eles, não havendo que se falar
em comprovação de dolo ou culpa, exceto na ação regressiva em face do
agente público.
Essa responsabilidade objetiva é reconhecida nos atos comissivos pra-
ticados pela Administração Pública, por meio dos seus agentes, quando
agirem nesta qualidade, podendo ser lícitos ou ilícitos. Por sua vez, em
casos que envolvem a omissão do Estado, embora certa divergência quan-
to à responsabilização, entende-se que ela é auferida com base na falta
do serviço, ou seja, o Estado será responsabilizado quando não prestar o
serviço ou prestar de forma ineficiente ou atrasada.
Assim, quando houver uma omissão a responsabilidade será subjeti-
va, mas com base na teoria da culpa administrativa, isto é, na falta ou má
prestação do serviço público, diferentemente da responsabilidade prevista
no Código Civil em que deve ser demonstrada a culpa ou dolo.
Quanto ao exercício do Poder de Polícia, entende-se este como a
possibilidade de restrição ou limitação aos direitos e garantias individuais
em observância ao princípio da supremacia do interesse público sobre o

316
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

particular. Todavia, o exercício de tal prerrogativa deve ser realizado den-


tro dos limites legais, considerando-se os atos abusivos, que extrapolam a
legalidade, podendo ensejar a nulidade do ato.
No caso de danos ocorridos em razão do exercício do Poder de Po-
lícia, ou melhor, da falta ou omissão no exercício deste, o Estado deverá
ser responsabilizado. Nesse caso, a responsabilidade será considerada com
base na teoria da culpa administrativa, ou seja, não prestou ou prestou de
forma ineficiente a atividade que deveria desempenhar.
Dessa forma, percebe-se que a Administração Pública deve realizar
suas ações dentro das regras estabelecidas pela legislação, inclusive pos-
sui o dever de fiscalizar as ações praticadas pelos particulares, devendo
punir aqueles que desrespeitarem a legislação, de modo que sua omissão
em fiscalizar, provando-se a não ocorrência do dano em caso de conduta
positiva, poderá ensejar a sua responsabilização.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administra-


tivo Descomplicado. 19. ed. São Paulo: Método, 2011.

BEZERRA, Thiago Cardoso. A evolução da responsabilidade civil do


Estado no ordenamento jurídico brasileiro. Conteúdo Jurídico,
[Brasília, DF], 10 maio 2016. Disponível em: http://www.conteu-
dojuridico.com.br/?artigos&ver=2.55869&seo=1. Acesso em: 20
abr. 2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/cons-
tituicao/constituicao.htm. Acesso: 20 mar. 2023.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2. Turma). REsp 1356978⁄SC.


Processual Civil e Administrativo. Responsabilidade civil do Estado.
Acidente de trânsito em rodovia federal. Buraco na pista. Morte do
motorista. Violação do artigo 535 do CPC. Inocorrência. Responsa-
bilidade subjetiva. Omissão. Ocorrência de culpa. Danos morais. Im-

317
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

possibilidade de revisão. Proporcionalidade. Termo inicial dos juros


de mora. Súmula 54/STJ. Pensão previdenciária. Honorários advo-
catícios. Súmula 284/STF. Recorrente: Departamento Nacional de
Infra-Estrutura de Transportes. Recorrido: Adriana Goulart de Sou-
za da Silva. Relatora: Min. Eliana Calmom, 17 de setembro de 2013.
Disponível em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/24199711/
recurso-especial-resp-1356978-sc-2012-0256419-9-stj/intei-
ro-teor-24199712?ref=juris-tabs. Acesso em: 21 abr. 2023.

CAMPANELLA, Luciano Magno Campos. Responsabilidade


civil do Estado por omissão. 2013. Jurídico Certo, [Brasília,
DF], 5 dez. 2013. Disponível em: https://juridicocerto.com/p/
lucianocampanella/artigos/responsabilidade-civil-do-estado-por-o-
missao-211. Acesso em: 22 abr. 2019.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Adminis-


trativo. 27. ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2014.

CARVALHO, Matheus. Manual de Direito Administrativo. 6. ed.


rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodvim, 2019.

CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Ci-


vil. São Paulo: Malheiros, 2005.

CORRALO, Giovani da Silva; CARDOSO, Bruna de Lacerda. A res-


ponsabilidade do município por omissão no exercício da polícia
administrativa. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPE-
DI, 22., 2014, São Paulo. Anais eletrônicos [...]. Florianópolis:
CONPEDI, 2015. p. 176-192. Disponível em: http://www.publica-
direito.com.br/artigos/?cod=902daf6855267276. Acesso em: 20 abr.
2023.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed.


São Paulo: Atlas, 2014.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 12. ed.


rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.

318
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7. ed. São


Paulo: Malheiros, 2007.

LOPES CAVALCANTE, Márcio André. 2017. Qual a responsabilidade ci-


vil do Estado em caso de suicídio do preso? Dizer o Direito, Manaus,
[2017]. Disponível em: https://www.buscadordizerodireito.com.
br/jurisprudencia/detalhes/950a4152c2b4aa3ad78bdd6b366cc179.
Acesso em: 20 fev. 2023.

MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 11. ed. São Paulo:


Saraiva, 2017.

MEIRELLES, Helly Lopes. Direito Administrativo brasileiro. 28.


ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrati-


vo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

PIRES, Paula Fabrine Andrade. Responsabilidade civil do Estado


por omissão. 2017. In: Conteúdo Jurídico, [Brasília, DF], 27 out.
2017. Disponível em: https://www.conteudojuridico.com.br/con-
sulta/Artigos/50875/responsabilidade-civil-do-estado-por-omissao.
Acesso em: 20 abr. 2023.

319
A OBRIGATORIEDADE DO
ESTADO NO FORNECIMENTO DE
MEDICAMENTOS SEM REGISTRO
DA ANVISA (ANÁLISE DE TESES
FIRMADAS PELO STJ E STF)
Elaine Cristina Bezerra da Silva52

INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico brasileiro garante aos seus tutelados o aces-


so a diversas garantias ditas fundamentais, liberdades, direitos e deveres.
Analisando a Carta Magna de 1988, é possível averiguar no artigo 5º, que
se encontra no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”,
entre tantas outras garantias, a da vida e da saúde.
Ocorre que tais previsões exigem do Estado condutas que busquem
efetivar, ou seja, concretizar tais determinações. Além disso, impõe-se

52 Advogada inscrita na OAB-PE sob nº 47.942. Graduada em Direito pela Universidade


Salgado de Oliveira (2018). Estagiou perante a Secretaria Executiva de Ressocialização de
Pernambuco – SERES. Estagiou perante a Defensoria Pública da União – DPU por dois anos,
passando por todos os núcleos, inclusive o recursal. Atuou como advogada voluntária na
Defensoria Pública da União (2018-2019). Pós-Graduada em Direito Público e Direito Em-
presarial pela Faculdade Legale de São Paulo. Advogada autônoma nas áreas de Direito Civil
(englobando Família, Sucessões, Contratos e Consumidor) e Direito do Trabalho.

320
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

também ao Estado que o referido possua eficiência na administração, tal


como aduz o caput do artigo 37 do mesmo diploma legal.
Diante disso, é irrefutável que o Estado tem o dever de garantir esse
acesso de forma eficiente à sociedade, e tal responsabilidade estatal é ob-
jetiva e solidária. Portanto, o cidadão, em caso de necessitar acionar o Ju-
diciário, tem a faculdade de optar por incluir no polo passivo da demanda
o Estado, Município ou a União, pois devido a tal solidariedade, qualquer
um dos entes pode ser acionado e compelido a cumprir com a demanda
necessária a garantir a efetividade do pedido.
Importante frisar que as ações judiciais que versam sobre saúde são
comuns, devido a ineficiência na prestação desses serviços no âmbito pú-
blico. Dentre as demandas mais comuns acerca deste tema, é possível en-
contrar diversos pedidos, como, por exemplo, a necessidade de leito de
UTI e fornecimento de medicamentos que não estão sendo entregues.
No que concerne ao fornecimento de remédios, existem debates ju-
diciais referentes à obrigatoriedade de o Estado fornecer medicações que
não apresentem registro da ANVISA, e/ou que possuam métodos alter-
nativos sem comprovação científica de sua eficácia, ou, ainda, quando
existem outros medicamentos disponíveis ao requerente, que são devida-
mente registrados e que possuem indicação para o tratamento da mesma
enfermidade.
Tanto o Supremo Tribunal Federal como o Superior Tribunal de Jus-
tiça fixaram teses acerca do tema, visando dirimir e aplicar aos casos con-
cretos judicializados. Tais teses apresentam qual o entendimento atual que
deve ser aplicado, trazendo a regra geral e suas exceções.

2. DOS DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS:


ASPECTOS GERAIS

Quando falamos de direitos e garantias fundamentais, é necessário fa-


zer uma viagem no contexto histórico para assim explicar seu surgimento,
tendo em vista que, o Direito, através das legislações, rege as relações e
os negócios jurídicos, assegurando a efetividade dos direitos da sociedade
submetida a um determinado ordenamento jurídico.

321
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Muitos são os exemplos de mudança de pensamento, cultura e en-


tendimento da população, o que faz com que a legislação necessite de
mudanças sob pena de ficar obsoleta, como leciona a teoria tridimensional
de Miguel Reale, que traz o fato, valor e norma.
No âmbito histórico das constituições federais da República Fede-
rativa do Brasil, podemos citar a existência de seis anteriores à atual, de
1988, tais quais: de 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967. Frisa-se que al-
guns consideram ainda na contagem a Emenda nº 1, outorgada pela jun-
ta militar. Vejamos breve resumo com informações relevantes sobre cada
uma delas:

• 1824: outorgada na época do Brasil Império, carta com 179 arti-


gos, de autoria de D. Pedro I, datada de 25 de março de 1824, tem
em seu texto previsão de direitos de 1ª geração.
• 1891: constituição de depois da Proclamação da República,
datada de 15 de novembro de 1889, promulgou-se na data de
24 de fevereiro de 1891, trazendo a instituição de forma fede-
rativa de Estado e da forma de governo republicana, bem como
a divisão dos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário),
trouxe também a separação entre a Igreja e Estado, declarando
o Estado como laico, dentre muitas outras disposições; assim
como a anterior de 1824, previu em seu texto direitos de 1ª
geração.
• 1934: na época intitulada de Segunda República, a referida cons-
tituição é datada de 16 de julho de 1934, dentre as principais mu-
danças estão os direitos trabalhistas e a criação da Justiça do Tra-
balho e Eleitoral, prevendo em seu texto direitos de 2ª geração.
• 1937: outorgada em 10 de novembro de 1937, chamada Carta
Constitucional do Estado Novo, constituição de inspiração fas-
cista, concedendo poder concentrado no chefe do Executivo.
• 1946: datada de 18 de setembro de 1946, parecida com a ideia
democrática da constituição de 1934, devolveu poder autônomo
ao Legislativo, Executivo e Judicial; a partir desta foi inserida a
previsão de direitos de 3ª geração.

322
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

• 1967: promulgada em 24 de janeiro de 1967, na época do Regime


Militar adotou-se, entre outras mudanças, eleição indireta para
presidente da República. Foi emendada por Atos Institucionais
(AIS) que ocorreram de 1964 a 1969, com um total de 17 AIs.
• 1988: por fim, a chamada Constituição Cidadã, em vigor atual-
mente, foi promulgada em 5 de outubro de 1988, trazendo li-
berdades, direitos e garantias fundamentais para a população.
Ampliou-se os direitos trabalhistas, instituiu-se eleições em dois
turnos, criou-se o Superior Tribunal de Justiça – STJ, pôs-se fim
à censura à imprensa em geral, dentre muitas outras.

A dita Constituição Cidadã traz em seu texto os direitos e garantias


fundamentais dos cidadãos brasileiros no art. 5º, mas define que o dispo-
sitivo não é o único com previsão destes. Com a observância do resumo,
averígua-se pela quantidade de constituições e pelo tempo de vigor delas,
que longa foi a caminhada até chegar na constituição atual.
É de conhecimento amplo que a sociedade está sempre em constante
movimento e muitos dos conceitos e valores são relativizados ou mudados
totalmente de sentido, a população passa a condenar ou a valorizar
determinadas condutas e conceitos, e o mundo jurídico deve sempre
acompanhar tais mudanças. Por essa razão, no âmbito constitucional exis-
te a previsão de emendas constitucionais, com a intenção de garantir a
reforma do texto da lei maior através do poder constituinte derivado re-
formador.
Aliás, seria inviável não haver possibilidade de mudanças no texto,
tendo em vista que a sociedade está em constante evolução. Todavia, no
tocante às garantias e direitos fundamentais é importante sua previsão de
forma que não possam ser posteriormente retirados do texto legal, ga-
rantindo que, apesar das transformações ideológicas sociais, estes sejam
sempre mantidos ativos.
No que tange à adesão dos direitos humanos, o Brasil participou da
Convenção Americana de Direitos Humanos, assinando o compromis-
so de adesão em 22 de novembro de 1969. O mencionado tratado, que
também é conhecido como Pacto de San José da Costa Rica, somente
foi ratificado pelo Brasil em 1992. Ele possui 81 artigos que trazem, na-

323
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

turalmente, os direitos fundamentais da pessoa humana: direito à vida, à


dignidade, à liberdade, dentre muitos outros.
Além disso, a Carta Magna tem previsão da prevalência dos direitos
humanos como um de seus princípios orientadores: “Art. 4º A República
Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: [...] II – prevalência dos direitos humanos;” (BRASIL, 1988).
Importante frisar que, apesar de já ter previsão na Constituição Fe-
deral vigente, após a Emenda nº 45 de 2004, conhecido como Emenda
da Reforma do Poder Judiciário, os tratados internacionais relativos aos
direitos humanos possuem vigor imediato e passam a ser equiparados às
normas constitucionais, após devidamente aprovados em dois turnos, por
pelo menos três quintos dos votos na Câmara dos Deputados e no Senado
Federal, conforme preleciona o art. 5º, § 3º, da Constituição de 1988,
vejamos: “Art.5º [...] § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Na-
cional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos mem-
bros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” (BRASIL, 1988).
Sobre a relevância da existência dos direitos fundamentais, estes es-
tão ligados à própria dignidade do ser humano, assim afirmando Padilha
(2018, p. 237):

[...] direitos fundamentais bens e benefícios previstos na Constitui-


ção e garantias fundamentais ferramentas insculpidas para resguar-
dar e possibilitar o exercício dos direitos. Os direitos fundamentais
existem para que a dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da
CR) possa ser exercida em sua plenitude.2 Caso não haja normas
que assegurem e tutelem esses direitos, a ofensa atingirá a própria
dignidade.

Acerca do efeito, para Moraes (2016, p. 93-94), as normas que pre-


veem os direitos e garantias fundamentais, em regra, possuem eficácia
imediata:

São direitos constitucionais na medida em que se inserem no tex-


to de uma Constituição cuja eficácia e aplicabilidade dependem

3 24
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

muito de seu próprio enunciado, uma vez que a Constituição faz


depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas
definidoras de direitos sociais, enquadrados entre os fundamen-
tais. Em regra, as normas que consubstanciam os direitos funda-
mentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade
imediata. A própria Constituição Federal, em uma norma-síntese,
determina tal fato dizendo que as normas definidoras dos direitos
e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Essa declaração
pura e simplesmente não bastaria se outros mecanismos não fossem
previstos para torná-la eficiente (exemplo: mandado de injunção e
iniciativa popular).

Passemos então a abordar o conceito de direitos e garantias funda-


mentais e, posteriormente, como surgiram. A conceituação é feita por
diversos autores.
Para Silva (2014, p. 177), no que se refere aos direitos fundamentais
dos homens, considera-se difícil sintetizar seu conceito devido à amplia-
ção sofrida no decorrer da história e as diversas expressões sinônimas uti-
lizadas:

A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem


no envolver histórico dificulta definir-lhes um conceito sintético e
preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se emprega-
rem várias expressões para designá-los, tais como: direitos naturais,
direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos
públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades públicas e
direitos fundamentais do homem.

Mais à frente, o autor faz a definição dos direitos fundamentais do


homem:

Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais ade-


quada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que
resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política
de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no ní-

325
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

vel do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele


concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de
todas as pessoas. No qualitativo fundamentais acha-se a indicação
de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa huma-
na não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive;
fundamentais do homem, no sentido de que a todos, por igual,
devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta
e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da
espécie, mas no sentido de pessoa humana. Direitos fundamentais
do homem significa direitos fundamentais da pessoa humana ou
direitos fundamentais. E com esse conteúdo que a expressão de
direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se
completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expres-
samente, no art. 17. (SILVA, 2014 p.180).

Ainda, para ele, os direitos fundamentais do homem não podem ser


considerados como conjunto de limitações impostas ao Estado, mas sim
como limitações impostas pela sociedade que detém o poder, através da
soberania popular, concedida ao Estado para que se obtenha, através da
Administração Pública, a efetividade das garantias e a obtenção do inte-
resse público, vejamos:

A expressão de direitos fundamentais do homem, como também,


já deixamos delineado com base em Pérez Luño, não significa es-
fera privada contraposta à atividade pública, como simples limita-
ção ao Estado ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela
soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela
dependem. Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos
implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o
que lhes enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com
as relações econômicas e sociais de cada momento histórico. A
constituição, ao adotá-los na abrangência com que o fez, traduziu
um desdobramento necessário da concepção de Estado acolhida
no art. 1: Estado Democrático de Direito. O fato de o direito po-
sitivo não lhes reconhecer toda a dimensão e amplitude popular

326
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

em dado ordenamento (restou dar, na Constituição, consequên-


cias coerentes na ordem econômica) não lhes retira aquela pers-
pectiva, porquanto, como dissemos acima, na expressão também
se contêm princípios que resumem uma concepção do mundo que
orienta e informa a luta popular para a conquista definitiva da efe-
tividade desses direitos. (SILVA, 2014 p.180).

Acerca da previsão legal no âmbito do Direito Constitucional Brasi-


leiro, o autor defende a existência de três fontes dos direitos fundamentais
e garantias, e assim as define:

A classificação que decorre do nosso Direito Constitucional é


aquela que os agrupa com base no critério de seu conteúdo, que ao
mesmo tempo, se refere à natureza do bem protegido e do objeto
de tutela. O critério da fonte leva em conta a circunstância de a
Constituição mesma admitir outros direitos e garantias fundamen-
tais não enumerados, quando, no§2º do art.5º, declara que os di-
reitos e garantias previstos neste artigo não excluem outros decor-
rentes dos princípios e do regime adotado pela Constituição e dos
tratados internacionais em que a República Federativa seja parte.
Daí, as três fontes dos direitos e garantias: a) os expressos (art. 5º, I a
LXXVIII); b) os decorrentes dos princípios e regime adotados pela
Constituição; c) os decorrentes de tratados e convenções interna-
cionais adotados pelo Brasil. (SILVA, 2014, p. 184).

Acerca da classificação dos direitos fundamentais de acordo com o


conteúdo, assim estabelece Silva (2014, p. 185):

De acordo com o critério do conteúdo, teremos: a)direitos funda-


mentais do homem-indivíduo, que são aqueles que reconhecem
autonomia aos particulares, garantindo iniciativa e independência
aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade política
do próprio Estado, por isso são reconhecidos como direitos indi-
viduais, como é de tradição do Direito Constitucional brasileiro
(art.5º), e ainda por liberdades civis e liberdades-autonomia (liber-

327
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

dade, igualdade, segurança, propriedade); b) direitos fundamentais


do homem-nacional, que são os direitos políticas ( art. 14, direito
de eleger e ser eleito), chamados também direitos democráticos ou
direitos de participação política e, ainda, inadequadamente, liber-
dades políticas (ou liberdades-participação), pois estas constituem
apenas aspectos dos direitos políticos; d)direitos fundamentais do
homem-social, que constituem os direitos assegurados ao homem
em suas relações sociais e culturais (art. 6º: saúde, educação, se-
guridade social etc.); e) direitos fundamentais do homem-mem-
bro de uma coletividade, que a CF adotou como direitos-coletivos
(art.5º); f) uma nova classe que se forma é a dos direitos fundamen-
tais ditos de terceira geração, direitos fundamentais do homem-so-
lidário, ou direitos fundamentas do gênero humano (direito à paz,
ao desenvolvimento, comunicação, meio ambiente, patrimônio
como da humanidade).

Ou seja, para Silva (2014, p. 186), de forma resumida, a classificação


da Constituição deve ser feita em cinco grupos, quais sejam:

• Direitos Individuais constante no (art. 5º);


• Direitos a Nacionalidade (art. 12);
• Direitos Políticos (arts 14 a 17);
• Direitos Sociais (art. 6 e 193 e SS) e
• Direitos Coletivos (art.5º).

Já para os autores Alexandrino e Vicente (2015, p. 35), a origem dos


direitos fundamentais ocorreu pela necessidade de se impor limites ao po-
der estatal, visando a liberdade dos indivíduos. Os direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal de 1988 estão distribuídas nos Capítu-
los de I à V. No Capítulo I prevê-se os direitos individuais e coletivos; o
Capítulo II estabelece os direitos sociais; o Capítulo III traz os direitos de
nacionalidade; o IV, os direitos políticos; e o Capítulo V prevê os direitos
relacionados a partidos políticos e organização e existência deles.
Ainda segundo os autores, é importante destacar a visão doutrinária
do jurista alemão Georg Jellinek, que desenvolveu, no fim do século XIX,

328
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

o que seria os quatro status em que o cidadão pode se encontrar perante


a atuação do Estado, tais quais: passivo, negativo, ativo e positivo (ALE-
XANDRINO; VICENTE, 2015, p. 36).
O status passivo é quando o cidadão está vulnerável e totalmente su-
bordinado ao poder público, tendo sua vida controlada pelas vedações
impostas, possuindo muito mais deveres que direitos. Após, surge o status
negativo, em que lhe é reconhecido o direito de gozar de sua liberdade
apesar das diretrizes do Estado. Com relação ao status positivo, trata-se da
possibilidade de o cidadão poder exigir atitudes do Estado em seu favor,
no intuito de possibilitar a efetividade de seus direitos. Por fim, tem-se o
status ativo, no qual o cidadão pode influenciar as atitudes do estado, que
claramente podemos exemplificar com os direitos políticos.
Os referidos doutrinadores trazem uma diferenciação para os direi-
tos e para as garantias fundamentais. No caso dos direitos fundamentais,
estes são considerados como bens em si, já quando se trata das garantias
fundamentais, podem ser definidas como mecanismos de proteção dos
chamados direitos fundamentais.
Ou seja, em resumo, pode-se dizer que as garantias trazem as proibi-
ções aos poderes que consequentemente permitem o exercício das ativi-
dades pela sociedade. Por exemplo, a proibição da censura, proibição da
pena de morte etc. Já no que se refere aos direitos ditos fundamentais, es-
tes são expressamente trazidos na legislação, ou seja, são trazidos de forma
direta, diferentemente das garantias, que impõem a conduta que deve ser
proibida para possibilitar o exercício das atividades pelos cidadãos.
Tratando agora acerca de suas características, Alexandrino e Vi-
cente (2015, p. 37) afirmam que os direitos fundamentais possuem as
seguintes: imprescritibilidade (não se perde por decurso de tempo),
irrenunciabilidade (em regra, não pode ser renunciado), inviolabilida-
de (é imposto que seja observado por todos os atos estatais e leis infra-
constitucionais), inalienabilidade (não pode ser transferido a outrem),
efetividade (o poder estatal deve atuar em prol de efetivar tais direitos),
universalidade (é pertencente a todos indivíduos indiscriminadamen-
te), interdependências (várias previsões, apesar de independentes, con-
versam entre si, cruzando-se), complementariedade (não devem ser

329
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

interpretados de forma individual), relatividade (pode-se dizer que não


tem natureza absoluta).
Já sobre as óticas sob as quais se pode enxergar os direitos fundamen-
tais, estão a subjetiva e objetiva. Na ótica subjetiva averígua-se acerca da
possibilidade de o cidadão exigir atitudes ao Estado, além das disposições
de proteção (chamado negativo). Na objetiva, grupos de imposições bus-
cam garantir direitos básicos que o Estado deve prover, trazendo diretrizes
para as ações dos poderes estatais e nas atuações entre os indivíduos em
plano particular (ALEXANDRINO; VICENTE, 2015, p. 38).
Por fim, quando falamos sobre as gerações dos direitos fundamentais,
há três, com alguns doutrinadores já falando sobre a existência de uma
quarta geração. Vejamos sob a ótica de Alexandrino e Vicente (2015, p.
38-39):

Na primeira geração surgido pelo fim do século XVIII, podemos


citas as liberdades negativas, como civis e políticos. Têm se como
exemplo o direito à vida, à liberdade, à participação política, à li-
berdade religiosa, à propriedade, dentre outros. Na segunda gera-
ção temos as liberdades positivas, surgidas a partir do século XX,
através dos movimentos sociais, buscando acentuar a igualdade
entre os indivíduos. Podemos definir como direitos econômicos,
sociais e culturais, se exige do Estado prestação positiva deles, pode
se exemplificar dentre outros: saúde, educação, trabalho, habita-
ção, assistência social, e assim segue. Já quando falamos dos direitos
de terceira geração nele se falam acerca de solidariedade e fraterni-
dade. Nesses direitos a titularidade, ou seja, os destinatários podem
se dizer difusa.

3.1. DO DIREITO E GARANTIA FUNDAMENTAL À VIDA

A vida é considerada como “bem maior”, por ser a maior garantia


fundamental trazida no texto da constituição; é abordada pelos doutrina-
dores tratando não só da relevância desse bem jurídico, mas também de
quando se inicia essa proteção.

330
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A Constituição Federal de 1988, atualmente em vigor, traz a proteção


do bem jurídico da vida inicialmente expressa no caput de seu artigo 5º:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-
reza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: [...]” (BRASIL, 1988).
Não só o referido caput tem prevista tal garantia, uma vez que outros
dispositivos abordam o tema, como o inciso do referido dispositivo, veja-
mos: “Art. 5º, inciso: XLVII - não haverá penas: de morte, salvo em caso
de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;” (BRASIL, 1988).
Apesar de não ser absoluto, pois prevê a pena de morte em caso de
guerra, é verificado que a regra é a preservação da vida.
Além da Constituição Federal tratar desse bem jurídico previsto, é
importante destacar que na legislação brasileira infraconstitucional tam-
bém se aborda o tema. O Código Civil afirma que se adquire a perso-
nalidade jurídica apenas após o nascimento, todavia, a proteção dos seus
direitos existe desde a concepção, vejamos: “Art. 2º A personalidade civil
da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a
concepção, os direitos do nascituro.” (BRASIL, 2002).
Verifica-se agora a disposição do Código Penal Brasileiro, que tipifica
como conduta criminosa o ato de tirar vida de outrem: “Art. 121. Matar
alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.” (BRASIL, 1940).
Constata-se que, além do Código Civil e do Código Penal, as outras
legislações que protegem à vida, como a proteção e a garantia do direito
aos alimentos gravídicos e a proibição da eutanásia, também trazem ampa-
ro ao direito fundamental através da legislação infraconstitucional.
Por isso, diante do contexto legal pátrio, seja as disposições constitu-
cionais ou infralegais, não restam dúvidas de que o Estado deve se valer de
todos os meios práticos possíveis para garantir e assegurar a vida, mesmo
que seja preciso mitigar algum outro direito, se necessário.
O doutrinador Moraes (2016, p. 97) alega ser a vida o mais funda-
mental de todos os direitos, pois é pré-requisito para a existência de todos
os demais:

331
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A Constituição Federal garante que todos são iguais perante a lei,


sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. O
direito à vida, é o mais fundamental de todos os direitos, já que
se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os
demais direitos.

Ainda sobre a relevância do direito à vida, traz Padilha (2017, p 244):

A vida é um verdadeiro pressuposto dos demais direitos funda-


mentais, uma vez que praticamente todos os direitos fundamentais
dependem de vida para poderem ser exercidos. Por isso, apesar de
não existir hierarquia normativa (pois todos os direitos estão no
mesmo diploma – Constituição), axiologicamente é comum pes-
soas colocarem a vida como o principal direito fundamental.

Segundo Silva (2014, p.199), a vida não será considerada apenas no


sentido biológico de incessante autoatividade funcional, peculiar à matéria
orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva.
Acerca do início desse bem jurídico, Moraes (2016, p. 98) aborda que
deve ser considerada a definição biológica:

O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo


biólogo, cabendo ao jurista, tão-somente, dar-lhe o enquadra-
mento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com
a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando um ovo
ou zigoto. Assim a vida viável, portanto, começa com a nidação,
quando se inicia a gravidez. Conforme adverte o biólogo Bottela
Luziá, o embrião ou feto representa um ser individualizado, com
uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do
pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do em-
brião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A constituição,
é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive ute-
rina.

332
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Existe muita polêmica no que se refere aos debates sobre em que mo-
mento de fato se inicia a vida, existem divergência até pelos especialistas da
área médica, em especial, quando é averiguada a possibilidade de se per-
mitir, por exemplo, o aborto de forma livre e injustificada, ou até experi-
mentos com células-tronco. Todavia, como a própria constituição prevê,
a regra é, realmente, a proteção desse bem jurídico, até porque o diploma
civil resguarda a proteção dos direitos dos indivíduos desde a concepção.
Um grande exemplo para afirmar que há proteção da vida na legis-
lação pátria desde a concepção do ser humano é a possibilidade de pedir
os alimentos gravídicos, garantida na Lei nº 5478/1968, onde se privilegia
a integridade do feto, podendo, posteriormente, ao se averiguar o exame
de paternidade negativo, haver a desvinculação dessa pensão alimentícia.
Tal permissão legal vem justamente garantir a integridade e a dignida-
de do desenvolvimento daquele indivíduo que ainda se encontra em for-
ma de embrião ou feto. Ou seja, acontece a mitigação do direito daquele
suposto pai, para que se garanta o direito da parte mais vulnerável.
Saindo da esfera da legislação, podemos citar outras condutas estatais
que garantem a proteção desse direito. Como, por exemplo, as políticas
públicas, tanto objetivando garantir coisas que indiretamente estão liga-
das, até por uma questão de dignidade humana, como moradia, alimen-
tação, quanto com ações mais diretas com o bem protegido, como opções
que facilitam e garantem acessibilidade aos serviços de saúde e medicação.
É incontestável que a proteção do direito à vida do indivíduo é
essencial, pois, através dele é que surgem os demais. Tal proteção se
integra ao princípio da dignidade da pessoa humana, que protege to-
dos dos direitos básicos, ou seja, todos os direitos que são essenciais à
existência honrada e digna, sem interferências abusivas do Estado, com
condutas necessárias ao bom funcionamento dessas medidas garantido-
ras da sociedade.

3.2. DO DIREITO E GARANTIA FUNDAMENTAL À SAÚDE

O direito à vida abrange tudo o que seja necessário para garantir sua
existência e permanência e, dentre as necessidades, está a de promover a

333
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

saúde, tanto no aspecto da prevenção quanto no de fornecimento de exa-


mes e tratamentos de patologias.
O direito à saúde é incontestavelmente ligado ao direito à vida. Acer-
ca dessa garantia, a Constituição Federal faz sua menção no dispositivo
indicado a seguir: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a ali-
mentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a pre-
vidência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988).
Não somente o referido dispositivo citado acima, mas também outros
da Constituição, citam o tema da saúde. Ainda no âmbito constitucional,
o dispositivo que talvez tenha mais relevância em citar direito à saúde seja
o localizado no Capítulo II, Seção II, da Constituição Federal, exposto a
seguir: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (BRASIL, 1988).
No contexto infraconstitucional, ainda no que se refere ao direito à
saúde, a Lei nº 8.080/1990, principal legislação que trata do tema, assim
dispõe:

“Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, de-


vendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação


e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução
de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de
condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e
aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.” (BRA-
SIL, 1990)

Ocorre que as possibilidades de acesso, garantia e manutenção da saú-


de podem ser garantidas pelas ações do Poder Público de diversas formas.
De início, pode-se citar algumas condutas como: os cadastros nacio-
nais com numeração do SUS, o incentivo à vacinação desde o nascimen-
to, o incentivo ao acompanhamento da gestação com consultas pré-natal,

334
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

além de realização de consultas em residências de pacientes que possuem


dificuldade de locomoção ou idosos. Ademais, condutas como atendi-
mento para acesso de cirurgias através de hospitais-escolas, fornecimento
de próteses, órteses, cirurgias reconstrutivas e reparadoras, dentre outras.
Não se pode esquecer do âmbito da saúde bucal, onde devem ocorrer
campanhas periódicas de incentivo à escovação e visita regular ao dentista.
Por fim, talvez o mais importante e mais utilizado no país, têm-se os ser-
viços de urgência e emergência, através do SAMU.
O Serviço de Atendimento Médico Urgente – SAMU é uma rede de
atendimentos de urgência fornecida pelo SUS. Apesar de ocorrer muitos
atrasos nos atendimentos, possui uma alta demanda e, talvez, com recur-
sos que possui, não consegue atender da forma mais eficiente e satisfatória.
Todavia, apesar da dificuldade, é um serviço prestado pelo Poder Públi-
co com grande relevância, demonstrando-se imprescindível à sociedade e
atendendo tanto acidentes de trânsito como diversos outros casos, inclu-
sive em domicílio.
Conforme já explanado, o acesso à saúde fornecido pelo ente esta-
tal não só abrange prestação de serviços médicos, como também outras
medidas, dentre elas o fornecimento de medicamentos e a fiscalização
sanitária.
Ainda acerca da saúde, assim aduz Mendes (2012, p. 568):

A Constituição de 1988 é a primeira Carta brasileira a consagrar o


direito fundamental de proteção à saúde. Textos Constitucionais
anteriores possuíam apenas disposições esparsas sobre a questão,
como a Constituição de 1824, que fazia referência à proteção de
“socorros públicos” (art. 179, XXXI). Atualmente, a Constituição
brasileira não apenas prevê expressamente a existência de direitos
fundamentais sociais (art. 6º)58, especificando seu conteúdo e for-
ma de prestação (arts. 196, 201, 203, 205, 215, 217, entre outros),
como também não faz distinção entre os direitos e deveres indi-
viduais e coletivos (Capítulo I do Título II) e os direitos sociais
(Capítulo II do Título II), ao estabelecer que os direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata (CF/88, art. 5º, § 1º).

335
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A seguir, é possível ver com mais detalhes um pouco acerca do Siste-


ma Único de Saúde, que regulamenta não só o acesso a este serviço, como
prevê, dentre suas condutas, a regulamentação dos medicamentos vendi-
dos no Brasil, serviço fiscalizatório realizado através da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (ANVISA).

3.2.1. SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

O Sistema Único de Saúde foi criado em 1988 com o advento da


Constituição Federal vigente promulgada no mesmo ano, completando,
em 2023, 35 anos de existência.
Sua criação está relacionada aos movimentos das décadas anteriores,
que pediam por um sistema de prestação de saúde amplo e universal. O
sistema garante acesso à saúde de forma gratuita a toda a população brasi-
leira, sendo um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo.
O SUS é regulamentado pela Lei nº 8.088, de 19 de setembro de
1990, e tem por objetivo executar políticas públicas, bem como prestar
os mais diversos serviços públicos ligados à saúde, englobando, além da
prestação de serviços específicos, como atendimento emergencial e am-
bulatorial, serviços também no âmbito de fiscalização, como a vigilância
sanitária, que inclui a averiguação dos medicamentos, autorizando sua co-
mercialização no território nacional.
Fica claro que o Sistema Único de Saúde é responsável por materia-
lizar, ou seja, concretizar o acesso à saúde para a população em geral. Os
objetivos do chamado SUS estão previstos no art. 5º da Lei nº 8.088 de
1990, vejamos:

Art. 5º São objetivos do Sistema Único de Saúde, SUS:

I - a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e deter-


minantes da saúde;

II - a formulação de política de saúde destinada a promover, nos


campos econômico e social, a observância do disposto no § 1º do
art. 2º desta lei;

III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção,

336
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das


ações assistenciais e das atividades preventivas.” (BRASIL, 1990).

Todavia, diferente do que muitos podem pensar, o SUS possui uma


atuação bem abrangente, não se limitando apenas à prestação de serviços
médicos, hospitalares e fornecimento de medicamentos. O art. 6º dispõe
que estão inclusos nas atribuições do SUS ações referentes às vigilâncias
sanitária, epidemiológica, nutricional e de orientação alimentar; à saúde
do trabalhador; à proteção do meio ambiente, inclusive o do trabalho;
dentre tantas outras.
Acerca dos princípios do SUS, estes estão previstos no art. 7º da re-
ferida lei:

Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços priva-


dos contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de
Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes pre-
vistas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos
seguintes princípios:

I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os ní-


veis de assistência;

II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articu-


lado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, indi-
viduais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema;

III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua inte-


gridade física e moral;

IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilé-


gios de qualquer espécie;

V - direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde;

VI - divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços


de saúde e a sua utilização pelo usuário;

VII - utilização da epidemiologia para o estabelecimento de priori-


dades, a alocação de recursos e a orientação programática;

337
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

VIII - participação da comunidade;

IX - descentralização político-administrativa, com direção única


em cada esfera de governo:

a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios;

b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde;

X - integração em nível executivo das ações de saúde, meio am-


biente e saneamento básico;

XI - conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e


humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Muni-
cípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população;

XII - capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de


assistência; e

XIII - organização dos serviços públicos de modo a evitar duplici-


dade de meios para fins idênticos.

XIV – organização de atendimento público específico e especiali-


zado para mulheres e vítimas de violência doméstica em geral, que
garanta, entre outros, atendimento, acompanhamento psicológico
e cirurgias plásticas reparadoras, em conformidade com a Lei nº
12.845, de 1º de agosto de 2013.” (BRASIL, 1990).

O referido sistema ainda garante campanhas importantes ao longo do


ano, oferecendo acompanhamento à saúde do idoso, gestantes, crianças
e demais atendimentos, cuidando da prevenção e manutenção da saúde
populacional.
Todavia, não é novidade para o Judiciário brasileiro a existência de
grande demanda de processos referentes à prestação de serviços de saúde
ou relacionados ao fornecimento de medicamentos, em que figure o Es-
tado no pólo passivo. Até para a sociedade não há novidade quanto a isso,
devido ao acesso a reportagens televisivas que tratam do assunto, e não só
referente à judicialização, como também sendo demonstrado o dia a dia
dos hospitais públicos, seja nas grandes capitais ou interior.

338
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Após a Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, o


SUS passou a ser de responsabilidade de todos os entes – União Federal,
Estados, Distrito Federal e Municípios –, ou seja, passou então a ser admi-
nistrado de forma tripartite.
Essa imputação de responsabilidade ao Estado se dá devido a todos
os seus entes (União Federal, Estados, Distrito Federal e Municípios), no
que se refere aos direitos fundamentais, dentre eles a saúde e a vida, terem
a imposição de solidariedade da responsabilidade entre eles.
Portanto, todos ou qualquer um deles podem figurar no pólo passivo
de uma demanda judicial, na qual verse sobre os supracitados direitos fun-
damentais. É possível, inclusive, posteriormente, o ente que arcou com
a determinação judicial requerer em ação regressa à devolução do valor
pago, pleiteando em face do ente que entende ser o que deveria ter arcado
com o “ofício”.

3.2.2. DA FUNÇÃO DA ANVISA NO REGISTRO DOS


MEDICAMENTOS

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) é uma espé-


cie de agência reguladora sob a forma de autarquia; é um órgão federal
fundado em 26 de janeiro de 1999, que atualmente se encontra vinculado
ao Ministério da Saúde.
Sobre a Vigilância Sanitária, a Lei nº 8080/1990 a define, em seu ar-
tigo 6º, da seguinte forma:

Art. 6º: [..]§ 1º Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de


ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de
intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente,
da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de
interesse da saúde, abrangendo: I - o controle de bens de consumo
que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, com-
preendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e

II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou


indiretamente com a saúde.” (BRASIL, 1990).

339
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Essa agência reguladora federal foi criada pela Lei nº 9782/1999, ve-
jamos:

Art. 3º Fica criada a Agência Nacional de Vigilância Sanitária -


ANVISA, autarquia sob regime especial, vinculada ao Ministério
da Saúde, com sede e foro no Distrito Federal, prazo de duração
indeterminado e atuação em todo território nacional. (Redação
dada pela Medida Provisória nº 2.039-24, de 2000) (Redação dada
pela Medida Provisória nº 2.190-34, de 2001)” (BRASIL, 1999).

Pode-se resumir que o objetivo da ANVISA, principalmente, é o de


diminuir ou até eliminar a existência de riscos à saúde da população. Den-
tre suas funções, destaca-se a avaliação de produtos, tais como: farmaco-
peia, laboratórios analíticos, portos, aeroportos, fronteiras, saneantes, ta-
baco, cosméticos, agrotóxicos, alimentos, serviços de saúde, entre outros.
Com relação aos medicamentos, tanto ele quanto a bula e o rótulo são
regulados pela Agência.
Além disso, a ANVISA é responsável por regular as diretrizes da far-
macopeia brasileira, elaborando todas as normas que regulam não só os
remédios, mas também os insumos farmacêuticos (que são as matérias-
-primas) utilizados para fabricar os medicamentos. Ainda na esfera sanitá-
ria, os serviços de saúde também são regulados pela ANVISA, que fiscali-
za e recebe denúncias envolvendo estabelecimentos desse ramo.
Portanto, diante do apresentado é perceptível que a ANVISA fiscaliza
os medicamentos que são disponibilizados no país. Ocorre que, no âmbito
do SUS, todos os medicamentos fornecidos já foram avaliados e autoriza-
dos pela Anvisa previamente.
Na judicialização, não raramente, um cidadão necessita de medicação
que não é fornecida pelo SUS e, muitas vezes, não possui registro da AN-
VISA. Os debates judiciais se voltam à possibilidade ou não de obrigar o
Estado a fornecer medicamentos em tais circunstâncias, além de trazerem
à baila a teoria da reserva do possível alegada pelo ente indicado no polo
passivo da demanda.
Todavia, e principalmente em pacientes acometidos com moléstias
graves e/ou raras, faz-se necessária a busca por medicamentos alternativos,

340
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

que geralmente é receitado pelo próprio médico do atendimento do SUS


e, demonstrada a ineficiência da medicação prévia, oferece outra possibili-
dade que possa solucionar a doença ou ao menos permitir maior qualidade
de vida ao indivíduo.
Casos como esse se tornaram comuns, em que o tratamento alterna-
tivo não possui ainda o registo da ANVISA para confirmar sua eficácia e
segurança na utilização. Diante desse cenário, o grande volume de debates
judiciais trouxe a necessidade da fixação de teses dos tribunais superiores.

4. TESES DO STJ E STF ACERCA DA


OBRIGATORIEDADE DO ESTADO NO FORNECIMENTO
DE MEDICAMENTOS QUE NÃO POSSUEM REGISTRO
DA ANVISA

A judicialização da saúde é um tema que possui inúmeras demandas


contra os entes federativos, importante frisar que existiram diversos de-
bates acerca da obrigatoriedade de o Estado fornecer medicações que não
constam na lista do SUS ou, conforme será explanado, sem registro na
ANVISA.
Inicialmente, cumpre destacar que o direito à saúde se trata de com-
petência comum dos entes federativos, ou seja, cabe o ônus do forneci-
mento tanto à União quanto aos Estados, Municípios e Distrito Federal.
Por isso, é pacífico o entendimento do Judiciário acerca dessa responsabi-
lidade solidária.
Importante trazer ainda que, conforme já exposto acerca do SUS, o
art. 200 da Carta Magna trouxe-lhe a competência de fiscalização e con-
trole dos procedimentos, substâncias de interesses da área da saúde e exe-
cução de atos relacionados à vigilância sanitária.
Portanto, no que se refere ao registro e avaliação de fármacos, faz-se
necessário a prática de atos administrativos inerentes ao Poder Executivo,
sendo esta pela autarquia, no caso da ANVISA, que é a referida autarquia
de regime especial integrada ao SUS e vinculada ao Ministério da Saúde.
Para o Superior Tribunal de Justiça, a tese fixada trata da obrigatorie-
dade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em

341
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

atos normativos do SUS. O Tribunal afirma que só poderá ser exigida se


preenchidos os requisitos elencados, vejamos:

A concessão dos medicamentos não incorporados em atos norma-


tivos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisi-
tos: I) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado
e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da
imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como
da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos forne-
cidos pelo SUS; II) incapacidade financeira de arcar com o custo
do medicamento prescrito; III) existência de registro do medica-
mento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.”
(BRASIL, 2018)53

É possível extrair do Tema 106 do STJ, intitulado como


“Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não
incorporados em atos normativos do SUS”, que em caso de pleitear judi-
cialmente fornecimento de medicação, é necessário preencher os requisi-
tos elencados conforme supracitado, devendo, inclusive, o medicamento
possuir registro na ANVISA. Ou seja, é obrigatório a existência de regis-
tro na ANVISA para compelir o Estado a fornecê-lo.
Já para o STF, em regra não se poderia exigir do Estado o forne-
cimento de medicamentos sem registro na Agência, porém, em caráter
excepcional e preenchidos alguns requisitos, poderá ser possível impor ao
Estado fornecer um fármaco que esteja sem registro, é o que será abordado
a seguir.
Inicialmente, é importante salientar que, no que se refere a ações que
tenham como objeto medicamentos ainda sem registro da ANVISA, ne-
cessariamente a União deve integrar o polo passivo da demanda, con-
forme entendimento do Supremo Tribunal Federal no RE 657.718/MG,
vejamos trecho do voto do ministro Luís Roberto Barroso:

53 REsp 1.657.156-RJ. Relator: Min. Benedito Gonçalves, Primeira Seção, por unanimidade,
julgado em 25 de abril de 2018, DJe 4 de maio de 2018 (Tema 106).

342
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

De outro lado, como visto, a Lei nº 9782/99 instituiu o sistema


nacional de vigilância sanitária e atribuiu a Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), autarquia federal sob regime especial
vinculada ao Ministério da Saúde, a competência para exercer a vi-
gilância sanitária de medicamentos (art. 8º, §1º, I). Portanto, como
a Agência integra a estrutura da administração pública federal, não
se pode permitir que Estados e Municípios (entes federativos que
não são responsáveis pelo registro de medicamentos) sejam con-
denados a custear tais prestações de saúde quando eles não têm
responsabilidade pela mora da Agência, nem tem a possiblidade
de saná-la.

Ou seja, se no caso concreto averígua-se a existência de mora irrazoá-


vel por parte da autarquia no que se refere à concessão de registro de me-
dicamento, a União deverá ser demandada judicialmente, apesar de existir
a responsabilidade solidária, esse é o entendimento atual do STF.
Ainda abordando a leitura do STF, o RE 657718/MG, tema 500,
reconhecido sua repercussão geral, foi definido nesse julgado, conforme
exposto previamente, que, em regra, o Estado não deve ser obrigado a
fornecer medicamento que não possua registro na ANVISA.
Em caráter excepcional, poderá ser deferido o pedido pelo Judiciário.
Porém, quando caso concreto preencher os requisitos de: existir pedido de
registro pendente na autarquia federal ainda não apreciado; existir registro
desse fármaco em outras renomadas agências reguladoras no exterior; inexis-
tir substituto terapêutico com registro no país. Vejamos a tese por completo:

O Plenário, por maioria de votos, fixou a seguinte tese para efeito


de aplicação da repercussão geral:

1) O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos ex-


perimentais.

2) A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o


fornecimento de medicamento por decisão judicial.

3) É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medi-


camento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da

343
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na Lei


13.411/2016), quando preenchidos três requisitos:

I – a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil,


salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrar-
raras;

II – a existência de registro do medicamento em renomadas agên-


cias de regulação no exterior;

III – a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil.

4) As ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem


registro na Anvisa deverão ser necessariamente propostas em face
da União.” (BRASIL, 2019)54

Ou seja, para o STF, em regra não poderá o cidadão requerer ao Esta-


do o fornecimento de medicamento que não possua registro na ANVISA.
Todavia, em casos excepcionais que preencham os requisitos trazidos na
tese fixada – mora irrazoável da ANVISA para apreciar o pedido de regis-
tro da medicação, existência de pedido de registro, a existência de registro
em renomadas agências do Exterior, inexistência de fármaco substituto
registrado no Brasil –, poderá o Estado ser impelido a fornecer.
Ainda sobre o tema, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em sua
Recomendação nº 31 de 30 de março de 2010, aconselha a evitar autori-
zação do fornecimento de medicamentos ainda não registrados na ANVI-
SA, salvo em caso das exceções legais.
Todavia, como foi exposto, o STF já decidiu que o fornecimento de
medicamentos com eficácia e segurança já comprovadas, mas ainda sem o
devido registro, poderá acontecer por via judicial, de modo excepcional.
A justificativa de conceder quando presente a mora administrativa
demonstra que os pacientes ficam impossibilitados de possuir concessão
da medicação devido à inércia da referida agência reguladora. No mais,
para que o cidadão possa usufruir do direito fundamental à saúde precisa,
nesses casos, de intervenção judicial.

54 RE 657718/MG. Relator: Marco Aurélio, 22 de maio de 2019, Tribunal Pleno, DJe 25 de


outubro de 2019.

344
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

É importante destacar que o requisito do pedido de registro prévio


é afastado em caso dos chamados medicamentos “órfãos”, que sejam
direcionados para doenças raras.
O termo medicamentos “órfãos” trata acerca de fármacos que se des-
tinam à prevenção, diagnóstico ou tratamento de doenças muito graves
que sejam doenças raras, estes referidos remédios são chamados “órfãos”
em comparação a condições normais de mercado, pelo fato de a indústria
farmacêutica ter pouco interesse no desenvolvimento e comércio de pro-
dutos direcionados a um pequeno público.
É importante, ainda, comparar a diferença entre a medicação sem re-
gistro na ANVISA e a experimental. O entendimento é de que o Estado
não poderá ser compelido a fornecer medicamento experimental devido à
falta de comprovação científica de sua eficácia, nesse sentido, vejamos voto
do ministro Roberto Barroso no RE 657.718/MG:

Nesse caso, a administração da substância representa riscos graves,


diretos e imediatos à saúde dos pacientes. Não apenas porque, ao
final dos testes, pode-se concluir que a substância é tóxica e produz
graves efeitos colaterais, mas também porque se pode verificar que
o tratamento com fármaco é ineficaz, que pode representar a piora
do quadro do paciente e possivelmente a diminuição das possibili-
dades de cura e melhoria da doença. (BRASIL, 2019).

Ou seja, para o Supremo, não se pode obrigar o Estado a fornecer


os medicamentos experimentais, diferentemente dos medicamentos sem
registro, pois, nos casos de exceção previstos, estes poderão ser fornecidos
se tiverem os demais requisitos preenchidos.
Dessa forma, a relevância enfatizada nas tesses estabelecidas proporciona
uma compreensão mais clara das opções jurídicas de requisição. Isso ocorre
ao demonstrar os critérios nos quais se enquadra a viabilidade de aprovar a
solicitação de um medicamento que ainda não foi registrado pela ANVISA.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A existência das previsões constitucionais no que se refere a di-


reitos e garantias fundamentais são essenciais para a proteção do indi-

345
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

víduo. A Carta Magna, na sua essência, busca garantir que o mínimo


necessário seja respeitado para que haja a preservação da dignidade da
pessoa humana.
Quando falamos da dignidade, podemos constatar que no conhecido
Pacto San Jose da Costa Rica o Brasil deu importante passo para refor-
çar sua adesão a essa linha de raciocínio jurídico. Tendo em vista que o
referido tratado internacional foi assinado antes da promulgação da atual
Constituição em vigor.
Por consequência da previsão dessas proteções na Carta Magna, ve-
rificamos que existe a atribuição de uma responsabilidade imposta ao Es-
tado. Diante disso, o Brasil, no advento da promulgação da atual Consti-
tuição Federal, criou o Sistema Único de Saúde, conhecido como SUS,
regulamentado posteriormente através da Lei nº 8.088/1990.
Ademais, por meio do referido sistema, foi trazida também a pre-
visão de atividades voltadas a fiscalização e vigilância sanitária, com o
propósito de garantir segurança e eficiência na prestação de serviços
públicos de saúde.
Conforme explanado, apesar das previsões legais, o serviço prestado
à população tem suas falhas e, entre as dificuldades encontradas, está a de
fornecimento de medicação. Ocorre que as demandas judiciais de saú-
de, já em elevado número, trouxeram a necessidade de que os tribunais
superiores buscassem entendimento acerca de situações envolvendo, por
exemplo, medicamentos pendentes de registro.
Foi verificado que apesar do STJ exigir o registro da ANVISA para
compelir o Estado a fornecer medicamento, o STF trouxe em regra o
mesmo entendimento, porém definiu as possibilidades que permitem a
concessão do remédio sem registro quando preenchidas.
A importância de tais parâmetros são necessários para trazer segu-
rança jurídica e dar fim a inúmeros e longos debates acerca dos temas
já definidos. Assim, com o entendimento formado, é permitido averi-
guar com clareza as possibilidades jurídicas de solicitar, tendo em vista
que demonstram em quais moldes se encaixam a possibilidade de ter
pedido de medicamento ainda não registrado pela ANVISA concedido
pelo judiciário.

346
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Por outro lado, as limitações impostas para a concessão do acesso aos


medicamentos trazem empecilho descabido no tocante ao acesso à saúde,
de modo que o cidadão envolvido na lide pode ter sua única esperança de
tratamento negada por parâmetros que em nada se referem ao seu estado
de saúde, mas apenas e tão somente a exigências burocráticas que não pos-
sibilitam a concretização do direito fundamental à saúde.

REFERÊNCIAS

ALEXANDRINO, Marcelo; VICENTE, Paulo. Resumo de Direi-


to Constitucional Descomplicado. São Paulo: Editora Método,
2015.

BRASIL. [Constituição Federal (1988)]. Constituição da República


Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da Repú-
blica, [1988]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 jun. 2020.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código


Penal. Rio de Janeiro: Presidência da República, [1940]. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848com-
pilado.htm. Acesso em: 20 dez. 2020.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as


condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a orga-
nização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras
providências. Brasília, DF: Presidência da República, [1990]. Dis-
ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.
Acesso em: 20 dez. 2020.

BRASIL. Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema


Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigi-
lância Sanitária, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência
da República, [1999]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/l9782.htm. Acesso em: 20 dez. 2020.

347
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Códi-


go Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 25 maio 2020.

CONSTITUIÇÕES Brasileiras. Senado Notícias, Brasília, DF, [201-


?]. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-
-legislativo/constituicoes-brasileiras. Acesso em: 20 jun. 2020.

MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de


constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. São
Paulo: Saraiva, 2012. Série EDB.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas,


2016.

PACTO de San José da Costa Rica sobre direitos humanos completa 40


anos. ANOREG/BR, Brasília, DF, 26 nov. 2009. Disponível em:
https://www.anoreg.org.br/site/imported_13960/. Acesso em: 21
jun. 2020.

PADILHA, Rodrigo. Direito Constitucional. São Paulo: Método,


2018.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.


São Paulo: Malheiros, 2014.

348
O INTERESSE PÚBLICO NOS
PEQUENOS NEGÓCIOS
Josué Edson Leite55
Sabrina Durães Veloso Neto56
Graciete Afonso Prioto de Castro57
Dalton Max Fernandes de Oliveira 58

INTRODUÇÃO

O povo brasileiro é apontado como o de maior capacidade empreen-


dedora dentre os países do grupo dos 20 mais desenvolvidos do mundo
(G-20) e dos chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul). Essa é uma vocação empreendedora, levando-se em conta o fato de
ser o Brasil um país em desenvolvimento com uma economia que ainda
sofre com a escassez de recursos e/ou incentivos e não dispõe de políticas
públicas eficientes de forma a atender às principais demandas sociais.

55 Doutor em Direito pela PUC-MG. Mestre em Direito Público pela Universidade FUMEC.
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros.
56 Doutorando em Direito pela PUC-MG. Mestra em Direito Público pela Universidade FU-
MEC. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros.
57 Especialista em Direito pela Universidade de Franca. Graduado em Direito pela Univer-
sidade Paulista.
58 Mestre em Direito pela UniFG. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Mon-
tes Claros.

349
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

O brasileiro é capaz de, com U$5.000,00 (cinco mil dólares), iniciar


um empreendimento, consolidá-lo e fazer dele um meio de gerar empre-
go e renda. Essa visão de implantação de negócios, cujas razões são objeto
de estudo por parte dos economistas, está vinculada à criatividade na ad-
ministração de seus recursos financeiros, advinda do esforço para sanar os
desafios impostos por dificuldades econômicas que exigiram, ao longo do
tempo, habilidade para administrar bem o próprio orçamento
Em razão dessa instabilidade econômica enfrentada pelo país, muitos
trabalhadores ao serem demitidos viram a possibilidade (talvez como úni-
ca opção) de empregarem os recursos decorrentes dos acertos rescisórios,
para uma vez capitalizados iniciarem um pequeno negócio e garantirem a
subsistência própria e de sua família. Foram cenários que levaram pessoas
ao empreendedorismo.
Nas últimas duas décadas, algumas grandes empresas, em meio às
suas políticas de dinamização de custos e redução de quadro de emprega-
dos, abriram programas de desligamento voluntário, o que importou em
oportunidades para diversos empreendedores se colocarem em condições
econômicas para investirem em pequenos negócios.
O Brasil colhe hoje os resultados dessa escalada empreendedora das
duas últimas décadas. São milhares de micro e pequenas empresas e mi-
lhões de vagas de trabalho. A realidade atual vê os pequenos negócios com
uma importância não conhecida em outros tempos. Da mesma forma que
se valoriza hoje a instalação de uma grande empresa também se dá o devi-
do valor à instalação dos pequenos negócios.
A visão quanto à importância dos pequenos negócios despertou a so-
ciedade para o interesse público que eles representam. Isso fez com que
o Poder Público buscasse dar uma especial atenção a eles quando da ela-
boração de suas políticas públicas. Atualmente a proteção aos pequenos
negócios é uma preocupação permanente do Poder Público, que a trata
como o interesse da própria sociedade.

1. CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

O conceito de interesse público parte do objetivo que certos em-


preendimentos despertam em prol da sociedade. Está, na visão de Deut-

350
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

csch (1980, p. 3 apud SEBRAE 2005, p. 10), “vinculado ao objetivo fun-


damental das políticas públicas. Em sua visão, esse objetivo fundamental
costuma-se referir como o bem comum ou o interesse público”.
As políticas públicas ao serem formuladas observarão a necessidade de
oferecer os desejados bens públicos e promoverão o bem comum da socie-
dade por meio de leis e regulamentações, planos de governo e decisões por
parte dos atores políticos. Essa ideia leva à compreensão de que por polí-
ticas públicas pode ser entendido o conjunto das decisões e ações de um
governo para solucionar problemas que em um determinado momento a
sociedade e o próprio governo de uma comunidade política consideram
prioritários ou de interesse público.
Hayek (1994, p. 74 apud SEBRAE, 2005, p.10) observa que “não
é necessário muito esforço para se perceber que esses termos (bem co-
mum, interesse público) não estão suficientemente definidos para deter-
minar uma linha específica de ação”. Essa ideia está vinculada ao que seja
possível proporcionar um bem-estar que leve à satisfação de milhões de
pessoas, o qual não pode ser aferido numa escala única de valores. O bem-
-estar de um povo, assim como a satisfação de um homem, depende de
inúmeras coisas que lhe podem ser proporcionadas a partir de uma varie-
dade de combinações.
Essas observações suscitam diversas questões fundamentais para o es-
tudo da formulação de políticas públicas. Como se pode dizer o que é ou
não de real interesse público? O que o diferencia dos assim chamados, por
oposição, interesses privados? Quem o define? Quem é o responsável por
sua promoção e defesa? E como o faz?
Ao buscar resposta a esses questionamentos é possível verificar que o
interesse público é um conceito que remete a uma compreensão de algo
que transcende os interesses particulares e representa o interesse dos mem-
bros da comunidade. Ainda assim, o simples fato de atender isoladamente
ao particular em uma determinada questão que seja de interesse público
indica que a sociedade será atendida naquele momento.

2. PEQUENOS NEGÓCIOS E INTERESSE PÚBLICO

O interesse público nos pequenos negócios se faz visível a partir da


repercussão do empreendedorismo junto à sociedade e da dependência

351
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

que esta passa a ter em face da eficiência e do alcance de seus resultados no


desenvolvimento social.
A importância dos pequenos negócios se torna mais convincente
quando se verifica que o Brasil tem dois terços de seus municípios com
população inferior a 20 mil habitantes, sendo que essas pequenas localida-
des dependem de uma economia diversificada e com uma prevalência de
pequenos negócios.
O interesse público pelos pequenos negócios fica mais evidente diante
dos números que fazem a realidade do empreendedorismo no país. Esti-
ma-se que exista hoje mais de cinco milhões de empresas registradas no
país das quais 99% são micro e pequenas empresas. De cada dois empre-
gos gerados no país, um é oferecido por uma micro ou pequena empresa
formalizada. Com tudo isso, ainda há pelo menos 40 milhões de pessoas
trabalhando informalmente no Brasil.
Diante desses dados o desafio é como intervir nessa realidade e pro-
porcionar meios de estimular a formalização das empresas e dos autôno-
mos. Para isso, deve-se pensar em quais as ações públicas que serão mais
adequadas para propiciar um ambiente mais conveniente ao fortalecimen-
to desses pequenos negócios a ponto de garantir a formalização e a susten-
tabilidade deles.
O Poder Público, por meio dos órgãos de apoio aos empreendedores,
especialmente o Sebrae, buscou identificar essas demandas e se esforçaram
para dar a elas uma resposta breve e satisfatória. Os principais obstáculos
encontrados59 e que desafiavam os pequenos negociantes foram: exces-
so de burocracia; falta de capacitação de funcionários e de ocupantes dos
cargos públicos; diferenciadas taxas e impostos municipais; deficiência de
incentivos fiscais para a implantação e a expansão de negócios; dificulda-
des de acesso ao crédito; empresários e empregados pouco qualificados
devido à falta de programas de aperfeiçoamento profissional; ausência ou
deficiência de infraestrutura e de serviços públicos; e desorganização das
atividades informais.

59 Esses obstáculos não estão relacionados por ordem de importância na afetação aos pe-
quenos negócios por época dos levantamentos.

352
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Esses obstáculos, além de serem significativos na instalação de um


pequeno negócio, também eram causadores de significativo número de
encerramento precoce de atividades dos empreendimentos recém-inau-
gurados cuja fase de maior risco ocorre nos três primeiros anos de início
de funcionamento.

3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E OS PEQUENOS


NEGÓCIOS

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz em


seu artigo 170 diversos princípios que são norteadores das atividades eco-
nômicas e financeiras. Figura como princípio da atividade econômica o
“tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas
sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”60.
É, portanto, um princípio que, por sua vez, indica um interesse público
primário nas questões relacionadas aos pequenos negócios.
Ainda dentro desse capítulo da CRFB/88, que norteia a atividade
econômica, o Legislador Constituinte ocupou-se em detalhar a atenção
aos pequenos negócios. Isso veio expresso no artigo 179 que determina
à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a responsa-
bilidade de dispensar às micro e pequenas empresas, assim definidas em
lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simpli-
ficação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e
creditícias, pela eliminação ou redução destas por meio de lei.
Sem perder de vista a importância dos pequenos negócios, o legis-
lador se manteve insistente em garantir a este segmento um tratamento
privilegiado. Na edição do novo Código Civil Brasileiro ficou assegurado
tratamento favorecido, diferenciado e simplificado ao empresário rural e
ao pequeno empresário, quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes.
O passo mais acelerado para cumprir a vontade do legislador constitu-
cional e também contemplar a previsão contida no novo Código Civil so-

60 O inciso IX do artigo 170 da CF/88 foi introduzido através da Emenda Constitucional nº


06/95.

353
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

breveio com a edição das Leis Complementares nº 123/2006, nº 128/2008


e nº 139/2011, que serão objeto de análise na sequência.
Contemplados pela Constituição e diplomas infraconstitucionais, os
pequenos negócios se inserem no contexto das atividades tidas como de
interesse público, posto que direcionadas para o bem de toda a coletivida-
de e não apenas do empreendedor.

4. DA IDENTIFICAÇÃO DE PEQUENOS NEGÓCIOS

Os pequenos negócios, devidamente regulados pela legislação brasi-


leira, são identificados a partir do reconhecimento das figuras do pequeno
empresário (apontado como microempreendedor individual, segundo a Lei
Complementar nº 128/08), as microempresas e empresas de pequeno porte.
O microempreendedor individual, por definição do artigo 68 da LC
123/2006 é aquele que aufira até R$60.000,00 em receita bruta anual.
A microempresa é atualmente aquela definida como tal pelo artigo
2º. da Lei Complementar n. 139, de 1º de novembro de 2011, que alterou
o art. 30 da LC 123/2006, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta
igual ou inferior a R$360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais).
O mesmo dispositivo legal identifica a empresa de pequeno porte
como sendo aquela que no ano calendário aufira uma receita bruta supe-
rior a R$360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a
R$3.600,00 (três milhões e seiscentos mil reais).
Com o advento da Lei 12.441/11, o empreendedorismo passou a
contar com mais um instrumento para formalização e segurança dos pe-
quenos negócios, a empresa individual de responsabilidade limitada (EI-
RELI). Trata-se da empresa constituída por uma única pessoa titular da
totalidade do capital social, devidamente integralizado que não poderá ser
inferior a 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no país. O titular não
responde com seus bens pessoais pelas dívidas da empresa.

5. DO TRATAMENTO DIFERENCIADO E FAVORECIDO


DISPENSADO AOS PEQUENOS NEGÓCIOS

O Estado brasileiro, ao se adequar às necessidades recentes, conside-


rou a importância dos pequenos negócios e seu alcance social. Ao mesmo

354
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

tempo, reconheceu que não poderia fazê-lo, considerando que os mesmos


não poderiam ser tratados como as empresas de médio e grande porte, daí
a necessidade de protegê-las.
A Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 que insti-
tuiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Por-
te declara expressamente em seu artigo 1º o objetivo da norma que é trazer
um tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado a estes padrões
de empreendimento. De maneira mais abrangente a norma estabelece no
mesmo artigo que esta diferença ocorre: a) no âmbito tributário, com um
tratamento fiscal mais ameno e simplificado; b) no cumprimento de obri-
gações trabalhistas e previdenciárias; c) quanto ao acesso ao crédito; d)
acesso ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens e
serviços pelos poderes públicos; e) acesso à tecnologia; f) ao associativismo
e g) às regras de inclusão.

5.1. DISTINÇÃO TRIBUTÁRIA

Um dos grandes desafios para as empresas no Brasil é sem dúvida a


questão tributária que às vezes dificulta o prosseguimento da atividade
empreendedora. Exatamente por esse motivo veio a Lei Complementar
nº 123/2006, para trazer uma significativa modificação na relação entre
o Fisco e as empresas categorizadas como micro e pequenas empresas,
sendo essa relação fiscal modificada posteriormente, atendendo às neces-
sidades de adaptação tanto aos empreendedores quanto ao Poder Público,
o que resultou na edição da Lei Complementar nº 128/2008 e na Lei
Complementar nº 139/2011.
Essa mudança, estampada no inciso I do artigo 1º da LC 123/2006,
destaca sua vinculação às esferas federal, estadual e municipal, estabele-
cendo um regime único de arrecadação, inclusive quanto às obrigações
acessórias.
A operacionalização dessa prerrogativa concedida aos pequenos ne-
gócios foi instituída a partir da criação de um Regime Especial Unificado
de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas microempresas
e empresas de pequeno porte, denominado Simples Nacional.

355
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Trata-se de uma forma simplificada, realizada em um único docu-


mento de arrecadação, que permite o recolhimento de todos os impostos
em valor único e fixo, retirando da empresa o fardo pesado da burocracia
e da exação que poderia comprometer sua saúde financeira.
A LC 123/2006 protege os cofres públicos contra empreendedores
oportunistas ao estabelecer diversas limitações de acesso a estas prerro-
gativas fiscais, ainda que se trate de microempresa ou empresa de pe-
queno porte. O artigo 17 veda terminantemente que microempresa ou
empresa de pequeno porte, cujas atividades que elenca61 não procederão
ao recolhimento dos impostos na forma estabelecida no artigo 12. Esta
vedação foi uma antecipação à possibilidade de que empreendedores pou-
co afeitos ao cumprimento das obrigações tributárias pudessem pulveri-
zar seus negócios com empresas no enquadramento previsto na sobredita
norma e assim driblar o recolhimento de impostos.
Outra providência que demonstra a prévia preocupação do legislador
com o contribuinte empreendedor oportunista foi a vedação de pequenos
negócios que tenham em seus quadros societários pessoas que também
sejam sócias de outra empresa onde detenham mais de 10 % de cotas pos-
sam ser contempladas pelas benesses tributárias estabelecidas no estatuto
da micro e pequena empresa.

5.2. PRERROGATIVAS PREVIDENCIÁRIAS E


TRABALHISTAS

As micro e pequenas empresas gozam de alíquota previdenciária pa-


tronal diferenciada para menor, constituindo assim um tratamento dife-
renciado.
As prerrogativas trabalhistas, entretanto, não demonstram a possi-
bilidade de qualquer tipo de impacto financeiro positivo aos pequenos
negócios. A flexibilização contida no artigo 50 da LC 123/2006 em nada
poderá ser tida como diferencial a ponto de influenciar como incentivo a
esta categoria de empreendimento. Além da possibilidade de formarem

61 O artigo 17 da Lei Complementar 123/2006 indica 23 atividades impedidas de se benefi-


ciarem das prerrogativas fiscais contempladas pela referida norma.

356
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

consórcios para garantir aos empregados o acesso às atividades de medi-


cina do trabalho, o máximo previsto na norma é a dispensa das seguintes
exigências impostas às demais empresas, quais sejam: afixação de quadro
de trabalho em suas dependências: anotação das férias dos empregados
nos respectivos livros ou fichas de registro; empregar e matricular seus
aprendizes nos cursos dos serviços nacionais de aprendizagem; posse do
livro denominado “Inspeção do Trabalho”; e de comunicação ao Minis-
tério do Trabalho e Emprego a concessão de férias coletivas.
Além disso, possibilidade de que as micro e pequenas empresas pos-
sam estabelecer formas de remuneração de horas-extras de seus emprega-
dos que necessitem utilizar meio de transporte para deslocamento até o
trabalho fornecido diretamente pelo empregador. São as chamadas “horas
extras “in itineres”. Poderá, através de acordo coletivo, estabelecer a possi-
bilidade de remuneração proporcional ou fracionada62, e poderão as micro
e pequenas empresas, por força do artigo 54 da LC 123/2006, compare-
cerem perante a Justiça do Trabalho se fazendo representar ou substituir
por terceiros (prepostos), que conheçam dos fatos, ainda que não possuam
vínculo trabalhista ou societário63. Para as demais empresas essa represen-
tação deve recair sobre o sócio ou um empregado da empresa, não se ad-
mitindo quem não tenha com ela relação societária ou de emprego, ainda
que tenha conhecimento quanto aos fatos objeto da demanda.

5.3. ACESSO A CRÉDITO E AO MERCADO

O acesso ao crédito e ao mercado por parte da micro e pequena em-


presa não é hoje apenas um favor a esses empreendimentos. É um direito.

62 O artigo 58 da CLT foi alterado com o acréscimo de parágrafo estabelecendo que “po-
derão ser fixados, para as micro e pequenas empresas, por meio de acordo ou convenção
coletiva, em caso de transporte fornecido pelo empregador, em local de difícil acesso ou não
servido por transporte público, o tempo médio despendido pelo empregado, bem como a
forma e a natureza da remuneração”. A jurisprudência do TST é majoritária quanto ao não
reconhecimento de acordo e/ou convenção coletiva que busca este benefício para empre-
sas que não estejam configuradas como micro e pequenas empresas.
63 Tem sido frequente o comparecimento de profissionais da contabilidade como prepostos
de micro e pequenas empresas demandadas junto à Justiça do Trabalho.

357
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A Constituição Federal ao inserir a proteção e o tratamento favorecido e


diferenciado aos pequenos negócios no mesmo momento que também
tratou dos interesses de empresas de médio e grande porte o fez na inten-
ção de salvaguardar as micro e pequenas empresas dentro do pleno exer-
cício de outro princípio basilar da economia, a livre concorrência (artigo
170, inciso IV da Constituição Federal de 1988).
O crédito disponibilizado aos pequenos negócios é uma estratégia de
crescimento econômico e o cumprimento de uma determinação legal64.
O artigo 62 da LC 123/2006 estabelece que o Banco Central do Brasil
poderá disponibilizar dados e informações para as instituições financeiras
integrantes do Sistema Financeiro Nacional, inclusive por meio do Siste-
ma de Informações de Crédito, visando a ampliar o acesso ao crédito para
microempresas e empresas de pequeno porte e fomentar a competição
bancária.
Comporta comentários a forma ampla e confusa com que o legisla-
dor tratou a questão relacionada a este papel do Banco Central do Brasil
na operacionalização do que dispõe o artigo 62 do Estatuto da micro e
pequena empresa. Especialmente o parágrafo primeiro deixa evidente a
possibilidade de que uma instituição financeira tenha acesso ao que o em-
preendedor ou sua empresa tenha estabelecido em termos de negociação
com outros bancos ao tratar da questão do acesso à informação quanto ao
fornecimento de histórico de relacionamento entre cliente e instituição
financeira. É, um, uma possibilidade permanente para a vulnerabilidade
do sigilo bancário tão caro ao direito à privacidade65.
O índice de adimplência das micro e pequenas empresas é alto, isso
significa que os empreendedores envolvidos nesta categoria de empresas
possuem uma preocupação intensa com o adimplemento de suas obri-
gações, mas mostrou também que o Sistema Financeiro através de seu
serviço de suporte para concessão de crédito (SERASA), dispõe de dados

64 Uma das formas de incentivo aos pequenos negócios se faz com as atividades de micro-
crédito, bastante difundido em todo o país e que facilita empréstimos de pequenos valores
a pessoas que não possuem acesso ao sistema financeiro.
65 O artigo 1º da Lei Complementar nº 105/2001 determina que “as instituições financeiras
conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

358
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

positivos, ou seja, não registrou apenas os casos de inadimplência, mas


sim os de adimplência, o que significa um acesso direto e permanente a
informações referentes a contratos de concessão de crédito.
Deve ser destacado que projetos de financiamento às micro e peque-
nas empresas poderão ser arregimentados com recursos oriundos do Fun-
do de Amparo ao Trabalhador que poderão ser destinados à ampliação dos
negócios e/ou à inovação, possibilidade o previsto nos artigos 62 e 63 do
Estatuto da Micro e Pequena Empresa.
O interesse público despertado pelos pequenos negócios é reafirma-
do pela preocupação quanto ao acesso ao mercado por parte das micro e
pequenas empresas. A Lei Complementar nº 123/2006 se desincumbiu
da exigência prevista nos artigos 170 e 179 da Constituição da República
Federativa do Brasil ao prever a possibilidade de privilégio aos pequenos
negócios quando da participação em licitações e para a inserção destas na
atividade exportadora.
A grande inovação foi a preferência destes pequenos negócios nas
aquisições de bens e serviços por parte da Administração Pública. o Esta-
tuto da Micro e Pequena Empresa que em seus artigos 42 usque 48 flexibi-
liza exigências para habilitação no certame (art. 43) e garante preferência
em caso de empate com médias e grandes empresas bem como permite
que sua proposta seja considerada mais vantajosa ainda que tenha uma
diferença de até 10 % a maior, sendo este percentual reduzido para 5 %
em caso de pregão.
O privilégio para contratação com a Administração Pública é estabe-
lecido ainda quando fica permitida a abertura de certame para participa-
ção exclusiva de micro e pequenas empresas para firmarem contratos. Esta
previsão de atenção aos pequenos negócios estabelece que o edital convo-
catório permita que empresas vencedoras de licitação possam subcontratar
até 30 % da obrigação assumida para com o Poder Público e que em se
tratando de bens e serviços quando possuam natureza divisível se reserve
25 % para ser destinado às micro e pequenas empresas.
Dentro da proposta inovadora de simplificação do acesso ao mercado é
assegurado à micro e pequena empresa, quando da habilitação em Processo
Licitatório, a apresentação da documentação exigida no estado em que es-

359
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

tiver. Isto implica que eventualmente uma certidão negativa de débito fiscal
vencida poderá ser apresentada nesta situação ficando o interessado, caso
saia vencedor no certame, na obrigação de entregar a comprovação da regu-
laridade fiscal no prazo de 2 dias úteis. Este prazo tem como marco inicial a
declaração, por parte da Comissão de Licitação de que foi o vencedor.
Esses privilégios identificam o interesse público dos pequenos negó-
cios e faz com que o Poder Público, um adquirente em potencial de bens e
serviços, possa dar o maior e melhor exemplo de prestígio a esta categoria
empreendedora.
O acesso ao mercado é reforçado ainda pela tributação diferencia-
da à empresa que adquira, junto às micro e pequenas empresas, produtos
destinados ao comércio internacional. É uma forma de fazer com que o
mercado, voltado para a exportação, descubra, valorize e seja incentivado
a dedicar maior atenção aos empreendedores envolvidos na exploração dos
pequenos negócios.

5.4. FISCALIZAÇÃO ORIENTADORA

A atuação fiscal deve ser comedida em termos de abordagem ao em-


preendedor vinculado à micro e à pequena empresa. A fiscalização toma
um caráter orientador, distanciando de uma tradição punitiva e severa que
ao longo do tempo marcou essas ações.
O artigo 55 do Estatuto da Micro e Pequena Empresa é esclarecedor
ao informar que a fiscalização que tenha aspectos trabalhista, metrológico,
sanitário, ambiental e de segurança deverão ter caráter prioritariamente
orientador, excetuando aquelas atividades de risco.
Para a efetivação desta nova característica dos procedimentos fiscali-
zatórios deverá ser observado o critério de dupla visita para lavratura de
autos de infração, salvo quando for constatada infração por falta de re-
gistro de empregado ou em caso de reincidência, fraude, resistência ou
embaraço à fiscalização.

5.5. ACESSO À PRESTAÇÃO JURISDICIONAL

Nas mesmas condições que a pessoa física, as micro e pequenas em-


presas podem demandar no polo ativo junto aos Juizados Especiais. É a

360
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

previsão estampada no artigo 74 da LC 123/2006. Isto significa que terão,


ainda que em primeira instância, acesso à gratuidade judiciária e poderão
postular sem o acompanhamento de advogado se o valor da causa for de
até vinte salários-mínimos.
Além desta possibilidade de demandar de maneira mais informal,
econômica e célere, deverão incentivar as micro e pequenas empresas
quanto à utilização dos trabalhos de arbitragem. Trata-se de prudente e
sábia previsão legal, haja vista que muitos estabelecimentos estão situados
a uma significativa distância da sede das respectivas comarcas, o que sem
dúvida facilita o acesso a uma segura solução de conflitos.
A Lei nº 11.101/2005 permitiu que as micro e pequenas empresas
recebam tratamento diferenciado nos processos de recuperação judicial,
autorizando parcelamento em até 36 meses e com juros de 12 % ao ano,
quando a relação for com credores quirografários.
Não há necessidade de realização de assembleia para o deferimento
deste tratamento diferenciado, garantido o veto por parte de 50 % dos
credores.66

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse público fica evidenciado nos pequenos negócios. O po-


tencial para geração de emprego e renda é significativo e tendente a um
regular crescimento, pelo menos ao tempo em que a economia demons-
trar estabilidade.
Esse interesse público pode ser observado também nas políticas públi-
cas implantadas, objetivando auxiliar com esclarecimentos, capacitação,
financiamento e inserção no mercado os empreendedores que se dispõem
a correr riscos e apostar nos lucros.
O direito que dá suporte aos pequenos negócios foi aperfeiçoado e
vem demonstrando resultados favoráveis e incentivando as apostas na ati-
vidade empreendedora. As prerrogativas concedidas às micro e pequenas
empresas, mesmo que não suficientes para garantir um fortalecimento da

66 Existindo veto por parte de 50 % dos credores quirografários o Juiz não poderá deferir
esse privilégio.

361
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

saúde econômica dos pequenos negócios (por depender isso de um con-


texto que nem sempre está sob o controle do Estado e/ou da sociedade
onde se encontram inseridos) são suficientes para demonstrar o interesse
público como uma das principais características dos pequenos negócios.
O interesse público bem evidenciado a partir de uma construção nor-
mativa com visão de futuro traz a expectativa de uma sociedade realizada
e certa de que a atividade cotidiana que lhe garante a subsistência e satis-
fação será também tida como algo de alcance cada vez maior e de perma-
nente interesse coletivo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Regula a recupera-


ção judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade
empresária. Brasília, DF: Presidência da República, 2002.Disponível
em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/
l11101.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. Regula a recupera-


ção judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade
empresária. Brasília, DF: Presidência da República, 2005. Disponí-
vel em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/
lei/l11101.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.

BRASIL. Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011. Altera a Lei nº 10.406,


de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para permitir a constitui-
ção de empresa individual de responsabilidade limitada. Brasília, DF:
Presidência da República, 2011. Disponível em https://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12441.htm. Acesso em:
10 mar. 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001.


Dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras e dá
outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2001.
Disponível em http:// planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp105.htm.
Acesso em: 10 mar. 2023.

362
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006.


Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pe-
queno Porte; altera dispositivos das Leis no 8.212 e 8.213, ambas de
24 de julho de 1991, da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT,
aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, da Lei
no 10.189, de 14 de fevereiro de 2001, da Lei Complementar no 63,
de 11 de janeiro de 1990; e revoga as Leis no 9.317, de 5 de dezembro
de 1996, e 9.841, de 5 de outubro de 1999. Brasília, DF: Presidên-
cia da República, 2006. Disponível em https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 128, de 19 de dezembro de 2008.


Altera a Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006, al-
tera as Leis nos 8.212, de 24 de julho de 1991, 8.213, de 24 de julho
de 1991, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, 8.029, de
12 de abril de 1990, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidên-
cia da República, 2008. Disponível em https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/lcp/lcp128.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.

BRASIL. Lei Complementar nº 139, de 10 de novembro de 2011.


Altera dispositivos da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro
de 2006, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da Re-
pública, 2011. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/lcp/lcp139.htm. Acesso em: 10 mar. 2023.

MARTINELLI, D.; JOYAL, A. Desenvolvimento Local e o Papel


das Pequenas e Médias Empresas. Barueri: Manole, 2004.

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2010.

OLIVEIRA, Juarez de (org.). Constituição Federal do Brasil de


(1988): Organização dos textos, notas remissivas e índices. São Pau-
lo: Saraiva, 2007.

SEBRAE. Boletim Estatístico das Micro e Pequenas Empresas.


Brasília, DF: Observatório Sebrae. Disponível em: https://sebrae.
com.br/sites/PortalSebrae/estudos_pesquisas/boletim-observatorio-

363
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

-mpedetalhe59,a7de8d63b1152710VgnVCM1000004c00210aR-
CRD. Acesso em: 3 mar. 2023.

SEBRAE. Portal do SEBRAE – SP. Disponível em www.sebraesp.


com.br. Acesso em: 3 mar. 2023.

364
O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE
PODERES E O REGIME JURÍDICO
EXTRAORDINÁRIO DA CRISE:
A ADOÇÃO DE MEDIDAS E
OBRIGAÇÕES VIA DECRETOS
E ATOS REGULAMENTARES EM
INOBSERVÂNCIA AO DEVIDO
PROCESSO LEGISLATIVO E SUA
EXTENSÃO NO CENÁRIO PÓS-
PANDEMIA
Larissa de Moura Guerra Almeida67

INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 estabeleceu a separação de poderes como um


dos elementos essenciais para a implementação e manutenção do Estado

67 Doutoranda e Mestre em Direito Público pela PUC-MG. Bolsista CAPES PROEX/Taxa, Bra-
sil (Financing Code 001). Pesquisadora em Grupos de Pesquisa, linha “Constitucionalismo
Democrático”, PPGD PUC-MG. Advogada e Professora.

365
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

Democrático de Direito no Brasil. No entanto, esse princípio tem sido


abalado pela constante produção normativa infralegal, principalmente
pelo Poder Executivo, e pela crescente judicialização das demandas so-
ciais. Embora a separação de poderes tenha sido modificada com o passar
do tempo, é ainda um preceito fundamental para o constitucionalismo
democrático, estabelecendo limites e equilíbrio às funções estatais. Em
situações excepcionais, como em tempos de crise, é preciso buscar instru-
mentos adequados à proteção das necessidades sociais e ao bem coletivo.
Diante dessa excepcionalidade, tem-se instaurado um “estado de ne-
cessidade administrativo” que se baseia em um perfil de “exceção consti-
tucional”, permitindo a ampliação de prerrogativas de governo que deve-
riam ser objeto de lei, mas acabam sendo inseridas em atos regulamentares
do Poder Executivo. Portanto, é fundamental que se preserve a separação
de poderes e se respeite o devido processo legislativo para que as decisões
do Estado sejam tomadas de forma democrática e responsável.
No contexto da pandemia de covid-19, a Administração Pública bra-
sileira tem assumido uma postura ativa na primordialização de políticas
públicas e ações, o que tem permitido uma intensa atividade legislativa re-
gulamentar pelos governantes. Mas, essa tendência pode configurar uma
mitigação do princípio da separação de poderes e um desequilíbrio entre
as funções estatais no sistema constitucional de atribuições. Isso ocorre
pelo alargamento da prerrogativa discricionária do poder público, que tem
utilizado o argumento da eficiência administrativa para legislar por exces-
so de decretos e portarias. Portanto, é necessário considerar a importância
da separação de poderes para os Estados que adotam o modelo democráti-
co e refletir sobre os possíveis impactos dessa tendência no regime jurídico
administrativo.
Por meio de pesquisa bibliográfica e estudo da legislação brasileira,
buscar-se-á demonstrar a relevante necessidade de manutenção do equilí-
brio decorrente da separação das três funções estatais clássicas, principal-
mente, para fins de efetivação da democracia, não podendo se sobrepor
um regime jurídico extraordinário das crises que promova uma “exce-
ção” normativa – à luz da teoria de Giorgio Agamben (2004) – sob o pre-
texto da excepcionalidade de situações de crise e emergências (pandemia,

366
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

crises econômicas, instabilidades políticas, entre outras “anormalidades”),


sobrestando o equilíbrio entre os poderes do Estado, bem como atraindo
atos normativos tipicamente autoritários.

1. O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E SEU


TRATAMENTO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE
1988

Com o advento da figura estatal, face à conscientização humana pela


busca da promoção do bem comum, o poder soberano passou a se organi-
zar em funções especializadas, devido à complexidade das relações sociais.
A concepção de uma separação dos poderes está intimamente relacionada
à necessidade e evolução dos mecanismos jurídicos de limitação do poder
político – presente, desde a Antiguidade, em que Platão e Aristóteles já
preconizavam o reconhecimento do poder do Estado, independentemen-
te do regime, delimitando seu exercício a três funções essenciais: a legisla-
tiva, a judiciária e a executiva.
A teoria apenas foi sistematizada por John Locke e Montesquieu, na
Modernidade, nas obras Segundo Tratado sobre Governo Civil (2014) e Do
Espírito das Leis (1996). Locke desenvolveu a primeira e a considerada a
mais completa formulação do Estado Liberal, expondo sua teoria do libe-
ralismo e a propriedade privada e restabelecendo a conexão entre a dou-
trina da separação dos poderes e a rule of law, em que concebe aquela como
pré-requisito para esta. O poder supremo repousa no Legislativo, com os
demais poderes dele derivando e a ele subordinados, cabendo ao Executi-
vo a aplicação das leis. Ele concebeu um terceiro poder, que não pode ser
separado do Executivo, denominado de Poder Federativo, ao qual incum-
be o relacionamento com os estrangeiros, a administração da comunidade
com outras comunidades.
“O poder legislativo e o poder executivo, em todas as monarquias
moderadas e em todos os governos bem ordenados, devem achar-se em
diferentes mãos”, já que estes poderes são distintos e o Estado é fundado e
se organiza pela lei positiva, visando a conservação da sociedade. Embora
não defendesse a possibilidade da existência da “liberdade absoluta” do
indivíduo, já que tal espécie de liberdade impossibilitaria a própria exis-

367
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

tência do pacto social constituinte do Estado, compreendia a liberdade


“possível” somente quando houvesse liberdade política e de consciência,
alicerçada num sistema legal consensualmente aceito pela maioria dos ci-
dadãos (LOCKE, 1978, p. 27).
Locke (1978, p. 28) formulou explicitamente o princípio do primado
político da lei, decorrente da vontade da maioria que compõe o Estado,
por meio do qual o governo se obriga, pela decisão consensual da maioria
dos cidadãos, a obedecê-la, corporificada nas leis que regem o Estado e a
sociedade – do qual deriva o devido processo legislativo. A lei imposta de
maneira arbitrária pelo soberano não poderia nem ao menos prosperar,
porquanto compromete direitos básicos do homem.
Charles-Louis de Secondat (1996), Barão de La Brède e de Montes-
quieu, o principal responsável pela inclusão expressa da tripartição dos
poderes e do Judiciário dentre as funções preponderantes do Estado, ela-
borando os contornos da acepção mais difundida da separação dos poderes
(MONTESQUIEU, 1996, p. 167-168).
O ideário democrático não compôs integralmente a proposta de Mon-
tesquieu, que formatou suas ideias, concluindo face a sua concepção bur-
guesa que o “povo” não deveria ser o titular da soberania, em razão da falta
de discernimento deste, traçando o objetivo último da política o de assegu-
rar a moderação do poder mediante cooperação harmoniosa entre pode-
res constituídos do Estado, para garantir governabilidade racional e efeti-
va. O princípio da independência dos poderes, com cada um apresentando
suas respectivas funções e exercendo seus papéis em verdadeira harmonia,
demanda interdependência entre eles, havendo liberdade e autonomia de
ação, a fim de haja garantia contra a ação de um governo tirânico.
Quanto ao sistema de controle recíproco, Montesquieu alerta para as
consequências do desequilíbrio entre os três poderes. Quando na mesma
pessoa ou no mesmo corpo político o poder legislativo está reunido ao
poder executivo, não há liberdade, já que se pode esperar que o soberano
ou tal grupo oligárquico elabore leis tirânicas para executá-las autoritaria-
mente (MONTESQUIEU, 1996, p. 168).
As bases primordiais da separação de poderes se fundam na proteção
da liberdade individual e no aumento da eficiência do Estado, haja vis-

368
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ta que a melhor divisão de atribuições e competências torna cada órgão


especializado em determinada função, aprimorando a finalidade última
estatal. As Constituições passam a desempenhar importante papel, so-
bretudo para a manutenção do Estado Democrático de Direito, pois ao
distinguirem os poderes do Estado, independentes e harmônicos entre si,
conforme preceitua o artigo 2º da Constituição brasileira de 1988, esta-
belecem instrumentos de controle e proteção à arbitrariedade estatal, bem
como à inobservância aos direitos e garantias fundamentais.
Na condição de estado de direito, o poder estatal exerce a função
legislativa ou Poder Legislativo ao expedir normas abstratas, gerais e obri-
gatórias; função executiva ou Poder Executivo, concretizado quando o
Estado administra e gerencia seus recursos e exerce suas atribuições para a
execução de serviços públicos; e a função judiciária ou o exercício do Po-
der Judiciário pelo Estado, ao dirimir controvérsias, litígios surgidos nas
relações intersubjetivas, aplicando a lei ao caso concreto. O mecanismo da
separação dos poderes, desde seu nascedouro, vislumbrou a identificação
das três funções especializadas do Estado e a necessidade de se instituir um
mecanismo legal para sua manutenção.
Quanto à separação das funções estatais, a obra de Montesquieu é um
valioso mecanismo garantidor das liberdades individuais, pois os que apli-
cam as leis não são os mesmos que as editam, além de o Estado apresentar
maior eficiência, ao serem delegadas funções a órgãos especializados, in-
terditando as investidas autoritárias. No Brasil, a tripartição dos poderes,
como princípio constitucional, consta desde o início do constitucionalis-
mo – mesmo na Constituição de 1824, acompanhados os Poderes Execu-
tivo, Legislativo e Judiciário do denominado Poder Moderador. Contudo,
é o texto constitucional de 1988 que elege a separação de poderes como
fundamento do Estado brasileiro e componente do seu núcleo inalterável.
O princípio da separação de poderes manteve lugar de relevo no or-
denamento jurídico brasileiro. Na Constituição do Império de 1824, a
qual adotou a separação quadripartite de poderes, conforme a formulação
de Benjamim Constant (Moderador, Legislativo, Executivo e Judiciário).
Inobstante a presença de um quarto poder, a compreensão da doutrina da
separação de poderes já formatava as ideias de interpenetração, equilíbrio

369
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

e harmonia dos poderes e sua importância como limitação do poder em


benefício da liberdade individual. Os textos constitucionais posteriores
firmaram a doutrina da divisão tripartite das atribuições primordiais do
Estado, estas independentes e harmônicas entre si, enquanto um traço do
estado democrático de direito, presente nos Estados que se apresentam
como tal e consagrado em suas Constituições, “promovendo uma enge-
nhosa construção doutrinária, conhecida como sistema de freios e contrape-
sos” (DALLARI, 2005, p. 220-221).
A teoria preceitua que os atos estatais conformam um mecanismo
de controles recíprocos, em que os atos gerais, praticados exclusivamente
pelo Legislativo, constituem-se da emissão de regras gerais e abstratas, não
sendo possível, no momento de sua elaboração, identificar os atingidos
por elas (DALLARI, 2005, p. 220-221). Somente após emitida a norma
geral é que se abre a possibilidade de atuação dos demais poderes.
O princípio da separação dos poderes foi transposto às constituições
com o intuito de criar um Estado respeitoso de liberdades, no qual o exer-
cício de suas elevadas funções fosse devidamente contido, estabelecendo-
-se um sistema de freios e contrapesos, capaz de impedir que um poder
se sobreponha ao outro. A aplicação moderna da divisão dos poderes se
fundamenta na especialização funcional e na independência orgânica:
cada órgão é especializado no exercício de uma função, que lhe é peculiar;
e, atende-se ao princípio da não subordinação, sendo que para a atuação
de cada órgão institucional não é necessária a chancela ou a aprovação
dos demais. Apesar de tratarem de funções estatais distintas, difunde-se
a doutrina que o poder do Estado é uno e indivisível – sendo adequada a
denominação “tripartição de funções estatais” (SILVA, 2014).
A concentração de competências em sede de um só corpo coletivo
ou de uma pessoa não seria compatível com a concepção de Estado de
Direito Contemporâneo. A imprescindibilidade do preceito é cristalizada
na Constituição Brasileira de 1988: além de reconhecer a relevância do
princípio da separação dos poderes, foi-lhe concedida a intangibilidade,
tornando-o uma das cláusulas pétreas do constitucionalismo no Brasil.
Adotou-se o entendimento de que o Estado, enquanto instância de
poder e de organização da sociedade, divide-se em três funções distintas,

370
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

visando reconhecer o papel estratégico a ser desempenhado por uma es-


trutura governamental na sociedade, sem desconsiderar a essencialidade
de se limitar e controlar o exercício desse poder. É o texto do artigo 60
da Constituição de 1988, ao afastar até mesmo da deliberação de proposta
de emenda tendente a abolir: (i) a forma federativa de Estado; (ii) o voto
direto, secreto, universal e periódico; (iii) a separação dos Poderes; e (iv)
os direitos e garantias individuais (BRASIL, 1988).
Tal dispositivo, preceituando as cláusulas pétreas, trata da forma
como são elaboradas as propostas de modificação à Constituição, sendo
que as quatro hipóteses elencadas são parâmetros eleitos para manuten-
ção do constitucionalismo democrático brasileiro, podendo ser objeto de
discussão, desde que seja para aumentar os direitos e as garantias do cida-
dão tutelados constitucionalmente. Isso se deve ao fato dos conceitos nelas
contidos serem fundamentais na tradução das bases em que se estabelece
o Estado brasileiro, visto que, caso sejam objeto de supressão, todo o siste-
ma de governo e de direitos instituídos pela Constituição de 1988 restará
prejudicado e até mesmo fadado à inexistência.
Considerando que a separação de poderes é um princípio jurídico-
-constitucional, qualquer violação que o atinja de forma reflexa, deve ser
vista como inconstitucional por violar todo um sistema de valores. A inde-
pendência e harmonia entre as funções estatais – embora não despreze ou
ignore que os chamados Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário pos-
sam desempenhar atribuições tais que não as suas preponderantes, tratadas
como atípicas, diante da possibilidade reconhecida constitucionalmente
da delegação de competências e da acumulação de funções em diferentes
Poderes – o texto constitucional atribuiu ao Executivo e ao Judiciário a
prerrogativa de editar normas regulamentadoras, desde que cumpridos os
pressupostos legais, autorizando-se o Congresso Nacional a “sustar os atos
normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou
dos limites de delegação legislativa” (art. 49, inciso V).
Diante de tal quadro institucional, no contexto de excepcionalidade
instaurado pela pandemia de covid-19, a excessiva edição de decretos e
portarias, até mesmo para restrição de direitos e imposição de obrigações,
em resposta à necessidade de eficiência e agilidade na atuação do poder

371
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

público, tem estabelecido um regime jurídico administrativo extraordiná-


rio, que acaba por driblar a formalidade do processo legislativo e promove
o alargamento da discricionaridade do gestor público.
Ao editar decretos regulamentares, com força de lei, o Executivo aca-
ba por trepidar a linha tênue de usurpação das prerrogativas constitucio-
nais do legislador, desequilibrando a autonomia e a independência entre
as funções estatais e suas instituições, vindo a comprometer a separação de
poderes – norma constitucional que se vê em suspensão, diante de uma
anormalidade de crise, caracterizada por uma calamidade pública, caso
fortuito ou de força maior.

2. A EXCEPCIONALIDADE DO CENÁRIO PANDÊMICO


E A CONFIGURAÇÃO DE UM REGIME JURÍDICO
EXTRAORDINÁRIO DAS CRISES: IMPLICAÇÕES À
SEPARAÇÃO DOS PODERES E “EXCEÇÃO NORMATIVA”
POR ATOS REGULAMENTARES

O poder regulamentar é a prerrogativa conferida à Administração


Pública de editar atos gerais para complementar as leis e possibilitar sua
efetiva aplicação. Seu alcance é apenas de norma suplementar à lei, não
sendo possível à Administração alterá-la a pretexto de estar regulamen-
tando-a. Se o fizer, cometerá abuso de poder regulamentar, invadindo a
competência do Legislativo. Tal poder é de natureza derivada: somente é
exercido à luz de lei existente. Já as leis constituem atos de natureza origi-
nária, emanando diretamente da Constituição. Assim, a formalização do
poder regulamentar se processa, notadamente, por meio de decretos. Nes-
se sentido, o artigo 84, IV, da Constituição brasileira vigente (BRASIL,
1988) dispõe que ao presidente da República compete expedir decretos e
regulamentos para a fiel execução das leis. Pelo princípio da simetria cons-
titucional, o mesmo poder é conferido a outros chefes do Poder Executivo
para os mesmos objetivos.
Há também atos normativos que, editados por outras autoridades ad-
ministrativas, estão inseridos no poder regulamentar. É o caso das instru-
ções normativas, resoluções, portarias, entre outros, que têm, frequente-
mente, um âmbito de aplicação mais restrito; porém, veiculando normas

372
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

gerais e abstratas para a explicitação das leis, também são meios de for-
malização do poder regulamentar. Os decretos são considerados atos de
regulamentação de primeiro grau; os outros atos que a ele se subordinem
e que os regulamentem, evidentemente com maior detalhamento, podem
ser qualificados como atos de regulamentação de segundo grau.
Embora, o poder regulamentar, expresso por atos de regulamentação
de primeiro grau, seja formalizado por meio de decretos, existem situa-
ções especiais em que a lei indicará, para sua regulamentação, ato de for-
malização diversa, embora idêntico seja seu conteúdo normativo e com-
plementar. Ocorre que, conforme a concepção instituída pela separação
de poderes, o legislador não pode, fora dos casos expressos na Constitui-
ção, delegar aos órgãos administrativos a competência legífona. Por con-
seguinte, o poder regulamentar legítimo não pode simular o exercício da
função de legislar decorrente de indevida delegação do Poder Legislativo,
delegação essa que seria, na verdade, inaceitável renúncia à função que a
Constituição lhe outorgou.
É vedado ao Poder Executivo exorbitar suas atribuições no exercício
da competência regulamentar, vindo a legislar normas primárias – que
pressupõem um devido processo legislativo, cuja competência nomotética
pertence ao Parlamento. Contudo, em virtude da crescente complexidade
das atividades técnicas da Administração, passou a aceitar-se nos sistemas
normativos, originariamente na França, o fenômeno da deslegalização,
pelo qual a competência para regular certas matérias se transfere da lei
para outras fontes normativas por autorização do próprio legislador: a pro-
dução da norma primária sai do domínio da lei para o domínio do ato
regulamentar.
A separação dos poderes vem se reformatando, na medida em que o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário cada vez mais exercem atribuições
que destoam da sua postura clássica. Mas, ainda que admitida a existência
de uma interpenetração das funções estatais, em que uma exerce indiscri-
minadamente atributos das outras, é temerário permitir o desequilíbrio
na harmonia e interdependência entre os poderes. E, o recente cenário vi-
venciado de uma pandemia, exacerbou uma realidade já antes enfrentada
pelos governos quanto à imediaticidade de respostas às demandas constan-

373
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

tes da população frente à tradicional máquina administrativa que, em vir-


tude da própria legalidade, vê-se vinculada a formalidades e burocracias.
Pela necessidade de medidas ágeis a problemas que urgem solu-
ções, a discricionariedade administrativa é remodelada, num contexto
em que a legislação encontra seus limites muito bem estabelecidos,
face às circunstâncias fáticas excepcionais – o que pode se estender
não apenas a um contexto de crise sanitária, mas a todo cenário que se
adeque à álea pública extraordinária, em uma margem de análise sub-
jetiva do gestor. Obviamente que em situações de crise, resta evidente
a ineficiência dos modelos jurídicos clássicos, impondo-se a busca por
fundamentos constitucionais sólidos, em uma interpretação respeitosa
às especificidades da realidade, a fim de se evitar violação à principio-
logia constitucional e observância mínima ao regime jurídico adminis-
trativo nela imprimido.
Mas, o que se tem observado é a configuração de um regime jurídico
administrativo extraordinário (ALMEIDA; DIAS, 2021), instituído em
momentos excepcionais, de crises – como o foi (e ainda o é) o da crise
sanitária de covid-19 –, sendo profícuas as reflexões de Giorgio Agamben,
na teoria do “Estado de Exceção” (2004). É indiscutível que, no âmbito
do direito público, a sistemática jurídica se dedica a excluir o arbítrio dos
comportamentos estatais, tal como se vê nos preceitos constitucionais da
moralidade administrativa e da impessoalidade a nortear o agir da Admi-
nistração Pública, buscando-se afastar a subjetividade dos agentes públicos
e, assim, evitar o autoritarismo e garantir segurança jurídica. Logo, as nor-
mas que integram o regime jurídico administrativo são concebidas, em
regra, a partir de uma situação de normalidade pública e social. Todavia,
mesmo nesta pretensão linear, sabe-se que os Estados vivenciam emergên-
cias de naturezas diversas: políticas, econômicas, religiosas, de saúde, ou
conflitos que podem eclodir guerras.
A excepcionalidade decorrente do contexto fez com que a Adminis-
tração Pública estivesse diante de demandas impossíveis de serem satisfei-
tas pelas regras específicas editadas para o cotidiano de normalidade social
e administrativa, e que ultrapassavam os limites da previsão normativa
(ALMEIDA; DIAS, 2021, p. 269).

3 74
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

A problemática denunciada aponta para o fato de que ao se discutir si-


tuações excepcionais, a legalidade então concebida para períodos normais
tende a ser flexibilizada face à gravidade das circunstâncias, sobretudo em
meio ao comprometimento e danos à manutenção da própria ordem jurí-
dica e da segurança da coletividade. Tais realidades excepcionais, ao argu-
mento de preponderância à proteção de algo maior, subverte a normativi-
dade instituída para o cotidiano habitual das relações jurídicas, sugerindo
a adoção de uma postura extraordinária, a fim de se combater o tumultus e
assegurar o retorno ao status quo de normalidade.
Face à urgência na tomada de decisões e adoção de medidas pelo po-
der público, verifica-se uma tendência em se valer do exercício do poder
regulamentar com excessiva edição de decretos, permitindo-se, até mes-
mo pela própria legalidade, que os agentes públicos suspendam exigências
legais, ampliando a margem da discricionariedade administrativa ao limite
tênue e temerário da arbitrariedade, bem como autorizando a restrição de
liberdades e garantias individuais, imposição de deveres e, ainda, ofensa a
obrigações fiscais e administrativas imperiosas, que em períodos de “nor-
malidade” seriam inconcebíveis.
As reflexões de Giorgio Agamben (2004) em sua teoria do estado de
exceção têm proveitosa aderência, diante da denúncia à caracterização
do permanente excepcional que promove medidas arbitrárias, típicas de
estados totalitários, incompatíveis com o modelo de estado democrático
de direito. Agamben explica que o estado de exceção é um decreto do
soberano ao conceber a sociedade em conflito; o corpo social se encontra
em guerra, insurreição ou resistência. Tratava-se de um dispositivo provi-
sório para situações de perigo (crise, extraordinárias), em que o estado de
exceção seria a resposta do poder estatal aos conflitos internos mais extre-
mos, incitando o estado a intervir, ainda que contra a população, podendo
acarretar medidas de extrema violência.
Diante de uma crise, o estado assume legalmente um modo de “vio-
lência”, suspendendo-se o estado de direito (excepcionalmente) até que
seja resolvida a situação de crise. Entretanto, a questão não é que tal medi-
da seja assumida pelo governo em tempos de crise, mas que em qualquer
crise o governo possa assumir para si o conflito. O estado de exceção não

375
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

é apenas uma medida provisória, mas um paradigma de governo: torna-se


um instrumento normal de governo (AGAMBEN, 2004, p. 13).
Em Estado de Exceção (2004), Agamben examina desde os governos
ditatoriais até os denominados estados democráticos, examinando o es-
tado de exceção no Senado Romano, na Revolução Francesa, na Pri-
meira e na Segunda Guerra Mundial e, por fim, nos eventos do “11 de
setembro de 2001” nos Estados Unidos da América, definindo o estado
de exceção como um paradigma de governo na política contemporânea,
“como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”
(AGAMBEN, 2004, p. 13). No limite entre direito e política, o estado de
exceção é um uso que o soberano faz do direito para suspender os direi-
tos de indivíduos. Qualquer emergência no território pode conceder ao
governante o impulso ao decreto e (tratando-se de excepcionalidades), o
estado de calamidade pública, o de emergência, casos fortuitos ou de força
maior, entre outros ambientes de anormalidade e urgência, também se
enquadram em uma situação de crise passível de configurar um estado de
exceção normativo.
O estado de exceção se transformou em uma técnica de governo.
Desde o século XX, ao invés da guerra, os problemas econômicos, so-
ciais, políticos e, agora, sanitários, de um país levam o seu “soberano” a
decretar o estado de exceção. Além dos regimes totalitários que marcaram
a história, “a criação voluntária de um estado de emergência permanente
(ainda que, eventualmente, não declarado no sentido técnico) tornou-se
uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos [...]
democráticos” (AGAMBEN, 2004, p. 13). Em ilustração, no pico epidê-
mico de 2020, sob a justificativa de controle da disseminação e contágio
da doença causada pelo coronavírus, apesar da necessidade de restrições
quanto ao contato físico e circulação de pessoas, houve limitação a direi-
tos como a liberdade de locomoção e até mesmo a realização compulsória
de exames, em determinados casos (SAMPAIO; ALMEIDA; SOUTO,
2020). Quanto à Administração Pública, constatou-se a imposição de um
estado de calamidade pública a entes federativos que sequer tiveram o im-
pacto da pandemia (Decreto Legislativo nº 6, de 2020), e a obrigatorie-
dade de cumprimento de restrições legais por extensão de efeitos de um

376
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

ato executivo de outro ente federativo, em uma república em que os en-


tes possuem autonomia e competências independentes e compartilhadas,
além da separação de poderes.
Enquanto um decreto do soberano que age com força de lei, sem ser
lei propriamente dita, o estado de exceção permite que o Poder Executivo
se sobreponha ao Legislativo, suspendendo ou modificando a aplicação das
leis em vigor, via exercício do poder regulamentar – ao passo que o modelo
democrático contemporâneo estabeleça hierarquia entre lei e decreto.
Reconhece-se a importância de formatar vínculos não habituais que
ensejem as providências necessárias diante da situação de emergência,
com normatização administrativa adequada à realidade, mas sem autorizar
que o exercício de competências públicas fique à margem da juridicidade
(ALMEIDA; DIAS, 2021, p. 277). O modo constitucional definidor de
regras para períodos de crise grave enfrentados não se baseia na flexibi-
lização de princípios esculpidos pela Constituição (como a separação de
poderes) ou na usurpação de competência privativa do legislador. A emer-
gência grave não pode levar, por si só, à gênese de um novo poder estatal,
com funções reconhecidas sem quaisquer limites prévios dispostos no or-
denamento, permitindo-se zonas de ilegalidade com respaldo legal – um
“estado de exceção permanente” (AGAMBEN, 2004).
Os atos administrativos que regulamentam as leis não podem criar
direitos e obrigações, porque isso é vedado em postulados fundamentais
do sistema jurídico democrático, mormente o da legalidade inscrito no
artigo 5º, inciso II, da Constituição Brasileira (BRASIL, 1988). É legítima
a fixação de obrigações derivadas ou subsidiárias diversas das obrigações
primárias ou originárias contidas na lei nas quais também se encontra a
imposição de certa conduta dirigida ao administrado. Constitui requisito
de validade de tais obrigações sua necessária adequação às matrizes legais.
Espera-se que a ordem jurídica consagre os poderes extraordinários que
serão reconhecidos aos agentes públicos, na exata medida em que se mos-
trar necessário para enfrentar momentos extraordinários de crise. Quanto
aos atos administrativos contrários às regras legais comuns, a exclusão da
sua ilicitude depende de previsão normativa nesse sentido, inserida em
específica figura jurídica com base constitucional.

377
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A ausência de normas de menor densidade normativa, essenciais na


operacionalização de um sistema jurídico aberto, necessário na constru-
ção do estado de direito em realidades extraordinárias, requer observância
dos princípios constitucionais e a elaboração de vínculos dentro dos li-
mites das competências previstas no ordenamento, de modo a equilibrar
o atendimento das demandas urgentes com um mínimo de juridicidade,
sob pena de criação de uma práxis administrativa temerária sempre que se
estiver diante de excepcionalidades, ensejando um alargamento da discri-
cionariedade administrativa, que pode ser conduzia à arbitrariedade do
gestor público.
Ainda que a discricionariedade seja uma prerrogativa atribuída à
Administração Pública para alcançar, da melhor maneira, situações não
previstas pelo legislador, agindo com idoneidade, respeitando os princí-
pios constitucionais e de forma limitada, o ato administrativo discricio-
nário não deve se assemelhar ao ato arbitrário em situações de excep-
cionalidade. Logo, a possibilidade de o Executivo editar regulamentos
autônomos, destinados a prover sobre situações não previstas na lei, não
é compatível com o constitucionalismo democrático, já que as Consti-
tuições – não apenas a brasileira, mas em grande parte dos estados sob a
mesma tradição jurídico-democrática – não os admitem, atribuindo-se
aos governantes o poder de editar atos para a fiel execução das leis, isto
é, o poder regulamentar.
Para que os regulamentos sejam caracterizados como autônomos, é
necessário que os atos possam criar e extinguir primariamente direitos
e obrigações, sem prévia lei disciplinadora da matéria, suprimindo,
assim, lacunas legislativas. Excepcionalmente, como estabelecido no
inciso VI do artigo 84 da Constituição Brasileira de 1988, é que é
possível ao Executivo dispor, mediante decreto, sobre (i) organização
e funcionamento da administração pública, quando não implicar au-
mento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; e (ii)
quanto à extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. Ainda
assim, por vezes, é possível identificar que tal exceção é convertida na
“exceção normativa” fora das hipóteses constitucionais, sob o argu-
mento da excepcionalidade.

378
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

CONCLUSÕES

O princípio da separação dos poderes é crucial para a existência do


Estado Democrático De Direito, uma vez que a sobrecarga de qualquer
um dos poderes pode prejudicar a harmonia e a interdependência entre
eles. Embora haja situações excepcionais que exijam medidas imediatas
e políticas públicas ágeis, a Administração Pública deve agir com base na
legalidade, sem instituir regimes jurídicos extraordinários que permitam
o desrespeito aos limites legais e aos princípios estabelecidos. Durante a
pandemia de covid-19, decretos foram utilizados para impor restrições aos
direitos de liberdade e locomoção, além de obrigações aos cidadãos que
não foram estabelecidas por lei, o que feriu a autonomia e as liberdades
individuais.
Entretanto, não é admitida aos decretos a criação de normas primárias
ou de regras não inicialmente prescritas em lei, limitando-se a regulamen-
tar especificidades sobre temas já legalmente regulados. A ampliação desse
campo representa indevida ingerência do Executivo na esfera do Legisla-
tivo. A exemplo das medidas provisórias, os decretos vigoram de imediato
sem discussão prévia no Legislativo, sendo certo que eventual abuso expõe
a risco o sistema democrático, sendo inconcebível que se naturalize essa
prática política, com lastro no próprio sistema jurídico e político.
Não se pretendeu aqui dizer que a separação de poderes deve ser em-
pregada como absoluta, sem interlocução entre eles, pois tal postura não
seria democrática. A questão é o reconhecimento da mitigação da sepa-
ração de poderes à luz da Constituição da República de 1988, em que é
possível a interpenetração entre os Poderes, desde que não haja o esvazia-
mento de uma das funções estatais, sob a justificativa de uma excepciona-
lidade, a qual deve se restringir à previsão e delimitação normativo-cons-
titucional de instituições e medidas necessárias à sua defesa.
A criação de regimes jurídicos extraordinários em situações críticas
pode levar à suspensão de normas e ao aumento da discricionariedade
administrativa, o que é preocupante. É necessário submeter as situações
de crise e emergência ao texto constitucional para garantir a normali-
dade nesse sentido e evitar a suspensão do estado de direito. Para evitar

379
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

que a excepcionalidade se torne a regra, é importante que as situações


excepcionais estejam inseridas na ordem jurídica vigente e que sejam
respeitados os pressupostos constitucionais e os princípios vinculantes
da Administração Pública.
Não se confunde a suspensão da norma constitucional – separação de
poderes – com o enquadramento nas ressalvas constitucionais. Situações
excepcionais – como a pandemia de covid-19 e outras que sobrevierem
– não consistem em hipóteses de exceção ou exclusão ao sistema consti-
tucional democrático, mas em um “regime especial” já incorporado cons-
titucionalmente e válido para situações de anormalidade.
Enquanto perdurar a emergência inerente ao momento de crise (si-
tuação extraordinária a ser enfrentada pelo poder público), cabe-lhe valer
dos institutos e medidas excepcionais previstos no próprio ordenamento
vigente, bem como elaborar (dentro das exigências constitucionais e dis-
tribuição de competências do ordenamento) as ações e as medidas capazes
de atender às peculiaridades do cenário excepcional – não argumentar
retoricamente em urgências e emergências que, em alguma medida, são
contingências a serem consideradas. Pois, o direito deve compreender a
“gestão do risco”, já incorporada em teorias jurídicas, mas ainda tímida
na pesquisa jurídico-científica. Há que se avaliar o conjunto de ativida-
des coordenadas que têm o objetivo de gerenciar e controlar, no caso, o
Estado em relação a potenciais ameaças, seja qual for a sua manifestação.
Isso implica no planejamento e uso dos recursos humanos e materiais para
minimizar os riscos ou, então, tratá-los. Nesse aspecto, a própria lei é uma
modalidade gestão de risco, a fim de que justifique o direito regulatório,
mas não a usurpação de competência via poder regulamentar.
A observância ao preceito da separação dos poderes deve ser impera-
tiva, já que constitui um dos pilares da democracia e do próprio consti-
tucionalismo. Não há dúvidas de que a separação dos poderes se tornou
um dos mais valiosos instrumentos para conservar na sociedade moderna
seu esquema de organização do poder e na salvaguarda de interesses in-
dividuais privilegiados pela ordem social, evitando a tirania do poder em
virtude da concentração de funções típicas nas mãos de uma pessoa ou de
apenas um corpo político.

380
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Porquanto, a forma como se deu o regime jurídico extraordinário


da pandemia de covid-19, com a excessiva edição de decretos e porta-
rias, bem como hipertrofia dos governos em detrimento da ativida-
de parlamentar, não pode ensejar a excepcionalidade normativa de um
“estado de exceção”, ao argumento de situações extraordinárias cabíveis e
compatíveis em um estado de direito.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção [Homo sacer II]. Tradução


de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.

ALMEIDA, Larissa de Moura Guerra; DIAS, Wladimir Leal Rodrigues.


O regime jurídico da emergência sanitária de covid-19: a institui-
ção de normas intertemporais em contexto de excepcionalidade da
pandemia e as implicações à legalidade da Administração Pública.
In: MOREIRA, Bernardo Motta; BERNARDES JUNIOR, José
Alcione (coord.). A pandemia de covid-19: múltiplas perspectivas.
Belo Horizonte: Nepel/ALMG, 2021. p. 249-286.

BRASIL. Congresso Nacional. Decreto Legislativo nº 6, de 2020.


Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de
4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública,
nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada
por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Brasília,
DF: Congresso Nacional, 2020. Disponível em: http://www.planal-
to.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm. Acesso em: 23 abr.
2023.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Fede-


rativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República,
[1988]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 23 abr. 2023.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado.


25. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2005.

381
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

LOCKE, John. Carta acerca da tolerância e outras obras. 2. ed. São


Paulo: Abril, 1978. Coleção Os Pensadores.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre Governo Civil. São Paulo:


Martin Claret, 2002.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. Do Espírito das


Leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martin Claret,
1996.

SAMPAIO, José Adércio Leite; ALMEIDA, Larissa de Moura Guerra;


SOUTO, Luana Mathias. Crise Sanitária e Estado de Exceção: uma
reflexão quanto aos subprodutos insurgentes da pandemia do novo
coronavírus. Direito Público, Brasília, DF, v. 17, n. 96, assunto es-
pecial, p. 171-197, nov./dez. 2020. Disponível em https://www.por-
taldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/4397. Acesso
em: 1 abr. 2023.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37.


ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014.

382
RESUMOS

383
COMPLIANCE NA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E SUA APLICABILIDADE
COMO FERRAMENTA DE COMBATE
ÀS FRALDES E À CORRUPÇÃO
Dejanair Alves Amorim68
Maria Alyne dos Santos Silva69
Rosy Anny Camilo Da Silva Araújo70
Samila Sousa e Silva71

INTRODUÇÃO

A partir da identificação da decadência ocasionada pela corrupção


no âmbito das licitações públicas no Brasil, o estudo em tela tem como
objetivo analisar diferentes estratégias da aplicação do compliance envol-
vendo o processo licitatório da Administração Pública direta no cenário
nacional.
Assim, foi levantado o seguinte questionamento: Quais são as pos-
sibilidades que o compliance apresenta para atuar como mecanismo de

68 Estudante do curso de Direito do Centro de Ensino Unificado Do Piauí – CEUPI.


69 Estudante do curso de Direito do Centro de Ensino Unificado Do Piauí – CEUPI.
70 Estudante do curso de Direito do Centro de Ensino Unificado Do Piauí – CEUPI.
71 Estudante do curso de Direito do Centro de Ensino Unificado Do Piauí – CEUPI.

385
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

prevenção e mitigação de fraudes e corrupção na administração pública


direta no Brasil?
Para responder à questão, será utilizado o método dedutivo, baseado
em pesquisas bibliográficas e fundamentação teórica de legislações, dados
de sites e documentos governamentais, doutrinas, artigos, produções aca-
dêmicas e diálogo teórico com autores como Di Pietro (2022).
O estudo é de grande importância tendo em vista o debate que pode
promover no que diz respeito à crise enfrentada pelo país atualmente, com
inúmeros problemas relacionados a insegurança política, jurídica, social e
econômica que surgem em decorrência de escândalos associados a frau-
des, suborno, má-gestão e até mesmo corrupção na trama da Administra-
ção Pública direta.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

De maneira preliminar, é importante compreender que a adminis-


tração, no geral, pode ser definida como qualquer ação a partir da qual se
determina o destino de recursos ou execução de objetivos, como aponta
Di Pietro (2022).
Por sua vez, ao adentrar esse campo é possível encontrar suas áreas
específicas, como é o caso da Administração Pública, o qual a autora Di
Pietro (2022) conceitua como a gestão de bens e interesses qualificados da
comunidade no âmbito federal, estadual ou municipal, segundo os precei-
tos do direito e da moral, visando ao bem comum.
Nesse sentido, para fortalecer a democracia e ter um controle social,
surge a transparência pública, a fim de combater os índices de corrupção
e fraudes nas licitações – o ato de comprar e vender – da Administração
Pública direta.
Ao se estabelecer um diálogo teórico com os autores Meirelles (2022)
e Di Pietro (2022), percebe-se que ambos compreendem a licitação como
procedimento administrativo mediante o qual a Administração Pública
seleciona a proposta mais vantajosa para o contrato de seu interesse, pelo
qual um ente público, no exercício da função administrativa, abre a to-
dos os interessados que se sujeitem às condições fixadas no instrumento

386
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

convocatório a possibilidade de formular propostas, dentre as quais será


selecionada e aceita a mais conveniente para a celebração do contrato.
À vista dessa realidade, crimes como preterição da licitação,
fracionamento ilícito do objeto, superfaturamento, quartéis e ilicitude na
execução dos contratos ocorrem de forma recorrente. Em contrapartida,
como forma de acautelar, lenificar e combater a corrupção, surge a
necessidade de implementar o compliance público. Este, por sua vez, é
percebido como um aparato de grande pertinência, que visa adequar o
comportamento e as atitudes de todos os envolvidos na administração,
baseado na lei, nos códigos de conduta e nos códigos de ética.
É importante explanar que, conforme sugere Gamba (2021), o Ter-
mo “compliance”, da língua inglesa, é traduzido como “cumprir”, “estar
de acordo”. Os programas de compliance, portanto, estão relacionados a
um conjunto de mecanismos a serem implementados com o objetivo de
mitigar o risco de descumprimento das regras, promovendo uma atuação
em conformidade.
Nessa perspectiva, de acordo com Giovanini (2014), o profissional de
compliance deve agir com vistas a orientar os indivíduos, convencendo-os
sobre a forma correta de agir e obtendo-lhes o apoio, sempre intervindo
em situações possíveis de risco a empresa ou às pessoas.
Portanto, conforme Giovanini (2014), o compliance, designadamen-
te para os participantes de negócios comprometidos com a Administração
Pública, pode ser apontado como um diferencial para aplacar os riscos de
práticas indevidas, atribuindo maior seguridade a todos os colaboradores
e terceiros que atuam em favor da licitante ou contratada, bem como da
própria empresa, que reduz a probabilidade de que um representante atue
indevidamente e a prejudique.

METODOLOGIA

O procedimento metodológico utilizado para a realização do estudo


foi o dedutivo, explicativo e exploratório, uma vez que parte da apresen-
tação do que é Administração Pública para contextualizar o campo das
licitações e, consequentemente, das fraudes, bem como a implementação
do compliance no respectivo cenário, ressaltando a conjuntura nacional

387
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

e legislações que regulamentam a licitação, de modo a analisar diferentes


concepções teóricas sobre a importância da atuação do compliance envol-
vendo a Administração Pública direta no Brasil.
Dessa forma, foram realizadas pesquisas bibliográficas, com a cura-
doria de produções acadêmicas que explorassem o tema, como artigos
científicos, além de consultas em legislações, documentos e dados de sites
governamentais. Ressaltamos que a principal vantagem da pesquisa bi-
bliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma
gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que se poderia pes-
quisar diretamente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diante do exposto até aqui, é possível inferir que a Administração


Pública é bastante ampla e abarca os diversos setores da sociedade pelos
quais o Estado se responsabiliza e conduz ações em prol da sociedade.
Trata-se, portanto, de um instrumento de extrema importância para o
desenvolvimento e o equilíbrio social.
Todavia, este estudo almejou discutir e demonstrar a relevância da
implementação do compliance como mecanismo de prevenção, combate
e mitigação de fraudes e corrupções no âmbito das licitações públicas,
tendo em vista que, com a aplicação dos mecanismos de integridade pre-
vistos na nova Lei de Licitações, em especial no art. 53, a Administração
Pública direta poderá criar programas de integridade, como códigos de
conduta e programas estratégicos de compliance público, voltados princi-
palmente para o âmbito das licitações, a serem implementados desde a fase
preparatória do certame até a fase de execução.
Além disso, contará também com o apoio de uma equipe de asses-
soria jurídica e controle interno, para auxiliar a comissão permanente de
licitação durante todo o processo, por meio da emissão de pareceres que
alertarão os agentes responsáveis sobre os riscos da eventual contratação.
Ademais, é esperado que, com a implementação do compliance, os
controles interno e externo passem a atuar com habitualidade para pre-
caver, detectar, corrigir e punir quando não ocorrer o cumprimento da

388
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

integridade, englobando também a identificação e a análise de prévia


dos riscos.
Por conseguinte, o compliance servirá como mecanismo de preven-
ção e combate a atos ilícitos no procedimento licitatório, além de fortale-
cer os mecanismos de controle interno e externo.

CONCLUSÕES

Depreendemos que as políticas de compliance estão se consolidando


nos últimos anos, especialmente na Administração Pública direta. Dessa
forma, esperamos que haja, cada vez mais, um tratamento rigoroso para
com o Poder Público – pois este deve ser o primeiro a dar o exemplo – e,
ainda, que ocorra uma sólida mudança comportamental, sobretudo nesse
contexto reprovável que o Brasil vem vivenciando de forma histórica.
Em conclusão, arriscamos afirmar que a implementação do complian-
ce na área pública é uma questão de necessidade, pois se mostra inaceitável
que agentes públicos continuem a abusar de práticas nocivas ao Estado
brasileiro. Logo, a corrupção contamina todas as relações que compõem
a cadeia de desenvolvimento econômico e, por isso, deve ser duramente
combatida em busca de uma economia autossustentável.

REFERÊNCIAS

DI PIETRO, Maria S. Z. Direito administrativo. São Paulo: Gen,


2022.

GAMBA, Giovanna. O compliance na nova lei de licitações. São


Paulo: Schiefler Advocacia, 2022. Disponível em: https://schiefler.
adv.br/compliance/. Acesso em: 10 abr. 2023.

GIOVANINI, Wagner. Compliance: a excelência da prática. 1. ed. São


Paulo: Editora Independente, 2014.

MEIRELLES, H. L. Direito Administrativo. São Paulo: Eurico de


Andrade Azevedo, 2022.

389
IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS DAS
CAIXAS DE ASSISTÊNCIA DOS
ADVOGADOS
Matheus Chebli de Abreu72
Pedro Treviso Rubio73
Gustavo Rodrigues Sousa74

INTRODUÇÃO

Este resumo analisa as imunidades tributárias das Caixas de Assistên-


cia dos Advogados (CAA), entidades associadas à Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), a partir da doutrina especializada e do entendimento
fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário
(RE) nº 405.267/MG (BRASIL, 2018).

72 Acadêmico na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assistente Jurídico


do Sacha Calmon Misabel Derzi – Consultores e Advogados. Estagiário plantonista do De-
partamento Jurídico XI de Agosto. Coordenador assistente de edição da Revista de Direito
Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Possui publicações e apresentações em con-
gressos de Direito Tributário Internacional, Direito Comercial e Processo Civil.
73 Acadêmico na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assistente Jurídico do
Sacha Calmon Misabel Derzi – Consultores e Advogados.
74 Acadêmico na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Assistente Jurídico no
Lefosse Advogados.

390
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No âmbito do RE nº 405.267/MG, o STF reconheceu a imunidade


tributária recíproca da CAA (BRASIL, 2018, p.20). Essa decisão destoou
dos precedentes da Corte e, por isso, inaugurou uma nova corrente juris-
prudencial no STF (BRASIL, 2018, p. 4). Contudo, alterações jurispru-
denciais dessa sorte abalam a segurança jurídica, fato pelo qual merecem
atenção científica.
Diante disso, este resumo realiza uma análise científica das imunida-
des tributárias aplicáveis às CAA, tomando-se como referência a doutrina
especializada e o RE nº 405.267/MG. Com isso, espera-se o trabalho: (i)
esclareça a disciplina das imunidades tributárias das CAA; (ii) ofereça um
panorama do atual “estado da arte” das discussões que envolvam o tema;
(iii) contribua para a segurança jurídica e para a estabilização do sistema
de precedentes; e (iv) colabore em favor de uma maior densidade cien-
tífico-normativa das normas tributárias afetas às imunidades tributárias.

METODOLOGIA

Para cumprir seus objetivos, este resumo adota o método referencial-


-bibliográfico e é dividido da seguinte forma: nos resultados, discorre-se
sobre a disciplina geral das imunidades tributárias e, subsequentemente,
analisam-se as imunidades tributárias recíproca e das entidades assisten-
ciais; na discussão, testa-se a abrangência das CAA por essas imunidades;
enquanto na conclusão encerra-se o resumo com a apresentação de uma
tese sintetizadora do estudo.
Este trabalho é limitado ao estudo das imunidades tributárias recí-
procas e das entidades assistenciais em razão de, no RE nº 405.267/MG,
somente essas duas espécies de desoneração serem mencionadas.

RESULTADOS

O princípio que informa as imunidades somente pode ser alcançado


mediante interpretação teleológica de sua disciplina (DERZI; COELHO,
2009, p. 147-148), sendo as imunidades tributárias legitimadas pelos di-

391
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

reitos morais, pela liberdade e pelos direitos humanos (TORRES, 2015,


p. 310-312). Nesse contexto, esse instituto é preexistente ao Estado Fiscal
como qualidade essencial da pessoa humana e corresponde “ao direito
público subjetivo que erige a pretensão à incolumidade diante da ordem
jurídica tributária objetiva” (TORRES, 2015, p. 313).
Consequentemente, o fundamento imediato das imunidades é a li-
berdade individual, sendo-lhes estranhos os princípios da justiça e da se-
gurança jurídica (TORRES, 2005, p. 314-315, 318, 332), os quais podem
funcionar somente como um fundamento complementar das imunidades
(TORRES, 2005, p. 314-315, 318). Também serão fundamentos com-
plementares a esse instituto a dimensão essencial e inalienável dos direitos
sociais e econômicos, pois ela justifica a imunidade tributária do mínimo
existencial (TORRES, 2005, p. 318-319).
Quanto ao conceito jurídico, há três compreensões conceituais acerca
das imunidades tributárias: (i) uma relação jurídica que instrumentaliza
os direitos fundamentais; (ii) uma qualidade da pessoa que lhe embasa o
direito público subjetivo à não-incidência tributária; ou (iii) uma exterio-
rização dos direitos da liberdade que provoca a incompetência tributária
do ente público (TORRES, 2005, p. 319). Nessa perspectiva, conside-
rando-se as dificuldades de buscar a titulação dos direitos fundamentais
no próprio ordenamento jurídico, a imunidade tributária é categorizada
como “correlativa à incompetência do poder tributário para impor de-
veres (não-poder tributário) e oposta à sujeição que não encontre funda-
mento nos direitos humanos” (TORRES, 2005, p. 333).
Quanto à natureza das imunidades, configuram-se como uma limi-
tação do poder de tributar pelas liberdades preexistentes, estabelecen-
do uma espécie de “reserva dos direitos humanos diante da fiscalidade”
(TORRES, 2005, p. 325). Dessa forma, a imunidade tributária significa
intributabilidade, ou seja, impossibilidade de o Estado criar tributos so-
bre o exercício dos direitos da liberdade e incompetência absoluta para
decretar impostos sobre bens ou coisas indispensáveis à manifestação da
liberdade (TORRES, 2005, p. 333).
Essas breves considerações delineiam a disciplina geral das imunida-
des tributárias, pelo que se parte para a análise das imunidades tributárias
recíproca e das entidades assistenciais.

392
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

No que se refere à imunidade recíproca, suas bases são os princípios


federativo e da capacidade contributiva (BRASIL, 2018, p. 8-9). Deve-
ras, essa imunidade se fundamenta na ausência dessa capacidade no do-
mínio público, já que os recursos são destinados a uma finalidade pública
(BRASIL, 2018, p. 2; DERZI; COELHO, 2009, p. 148; NOGUEIRA,
1992, p.7); além de buscar garantir a igualdade entre os entes federativos
(JORGE, 2014, p. 73-74; DERZI; COELHO, 2009, p. 148). Ademais,
a relação com o princípio federativo foi primeiramente fundamentada
no caso “McCulloch v. Maryland”, da jurisprudência norte-americana
(BRASIL, 2018, p. 8-9; JORGE, 2014, p. 68-69).
Parte da doutrina aduz que as regras da imunidade recíproca devem
ser interpretadas amplamente para estendê-las a todos os impostos, mas
esse posicionamento não é unânime, principalmente em relação à tribu-
tação indireta (JORGE, 2014, p. 75-77). Ademais, é fundamental que
o reconhecimento da imunidade recíproca preserve a proteção da livre
concorrência, a neutralidade tributária e a previsão de igualdade de re-
gime tributário entre empresas públicas, sociedades de economia mista e
empresas privadas (JORGE, 2014, p. 85).
Para mais, a imunidade recíproca possui três pressupostos de aplicabi-
lidade: (i) a prestação de um serviço público delegado; (ii) o exercício do
serviço por uma entidade que, pela lei, é um poder público; e (iii) a não
perseguição de uma finalidade econômica pelo ente prestador do referido
serviço (BRASIL, 2018, p. 10).
Feita a brevíssima síntese das imunidades recíprocas, passa-se ao estu-
do das imunidades das entidades assistenciais.
Esse instituto é motivado: (i) pelo interesse puramente humanitário
e não lucrativo dessas entidades não econômicas; (ii) pela prestação não
onerosa, pelas entidades assistenciais, de serviços “quase públicos”, o que
as qualifica como contribuintes “in natura” e “in labore” e impede a exi-
gência de tributos “in pecunia”, sob pena de bitributação; e (iii) pelo efeito
confiscatório produzido pelo desfalque dos bens ou da oneração dos ser-
viços dessas instituições (NOGUEIRA, 1992, p. 19-20). Ademais, em
razão da natureza e objetivos dessas entidades e da destinação integral de
seus bens e serviços às suas finalidades essenciais, são elas reconhecidas

393
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

como desprovidas de capacidade econômica ou contributiva (NOGUEI-


RA, 1992, p. 7).
Nessa imunidade, há discussões sobre a tributação de imóveis per-
tencentes às entidades assistenciais. No ponto, Derzi e Coelho (2009, p.
159-160) aduzem que a vinculação exigida pelo artigo 150, §§ 2º e 4º, da
CRFB pode ser direta ou indireta, bastando que a destinação dos imó-
veis contribua para a consecução das finalidades da instituição. Nogueira
(1992) expõe que o § 4º deve ser interpretado como “acessório” ao artigo
150, uma vez que (i) a imunidade tributária é absoluta e limita o nasci-
mento da competência tributária, (ii) a consecução dos objetivos insti-
tucionais das entidades assistenciais foi colocada em posição de primazia
em relação aos impostos, pelo que esse tributo não pode incidir sobre seus
recursos, e (iii) o § 4º jamais conflitaria com as disposições do “caput”,
do inciso e das alíneas do artigo 150 da CRFB, sob pena de ser fulminado
ou natimorto.

DISCUSSÃO

Ante o exposto, é possível melhor compreender as imunidades tribu-


tárias das CAA.
Resta nítido que a CAA está sujeita à imunidade tributária recíproca.
Primeiramente porque os precedentes do STF em sentido contrário foram
superados pelo RE nº 405.267/MG, uma vez que não é possível conferir
tratamento tributário distinto aos órgãos da OAB a partir de suas finalida-
des legalmente estabelecidas (BRASIL, 2018, p. 2; DERZI; COELHO,
2009, p. 150). Afinal, a tributação de um impacta o outro: como há uma
relação de continente/conteúdo entre a CAA e a OAB, os excessos tribu-
tários em relação à primeira também prejudicam a autonomia e a indepen-
dência do segundo (BRASIL, 2018, p. 17-18).
Portanto, considerando-se que a jurisprudência do STF possui pre-
cedentes que reconhecem (i) a imunidade tributária recíproca da OAB;
(ii) a autonomia e o papel de prestígio e não corporativo da OAB; e (iii)
o caráter de serviço público independente das atividades da OAB (BRA-
SIL, 2018, p. 10-13), então o mesmo tratamento publicizante reconheci-
do deve ser estendido às CAA.

394
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

Além disso, as CAA atendem aos pressupostos da imunidade recí-


proca, já que prestam serviço público delegado, possuem status jurídico de
ente público, atendem a finalidades essenciais alheias ao Domínio Eco-
nômico e, portanto, não manifestam capacidade contributiva (BRASIL,
2018, p. 14). Deveras, as CAA não possuem fins lucrativos e são destina-
tárias de 50% da arrecadação de sua seccional, o que levaria a reconhecer
não só sua imunidade tributária recíproca, como também a imunidade
conferida às entidades assistenciais (BRASIL, 2018, p. 15).
Mas não só por isso, as CAA gozam da imunidade conferida às en-
tidades assistenciais também porque são verdadeiras instituições de assis-
tência social autossustentada (DERZI; COELHO, 2009, p. 159-160).
Deveras, a CAA (i) é uma instituição, pois foi criada por lei para desem-
penhar atividade de interesse público; e (ii) presta assistência social, pois
seus benefícios (ii.1) não são remunerados por contraprestações, mas por
anuidades obrigatórias, (ii.2) não são previdenciários e não se confundem
com o seguro facultativo oferecido aos advogados mediante convênio com
instituição independente, (ii.3) não possuem fins lucrativos e observam
os requisitos do artigo 14 do Código Tributário Nacional (CTN), e (ii.4)
referem-se ao reforço dos direitos a saúde, educação, alimentação, soli-
dariedade aos necessitados etc. (DERZI; COELHO, 2009, p. 155-159).

CONCLUSÕES

A primeira conclusão é que as CAA são abrangidas pela imunida-


de tributária recíproca como consequência de sua relação de continente/
conteúdo para com a OAB, o que as torna dignas do mesmo tratamento
publicizante. Afinal, (i) os órgãos da OAB não podem receber tratamento
tributário distinto de acordo com sua finalidade legalmente estabelecida,
pelo que fazem jus à imunidade tributária recíproca reconhecida ela, e
(ii) as CAA atendem aos três pressupostos de aplicabilidade da imunidade
tributária recíproca, pois presta um serviço público delegado, possui sta-
tus jurídico de ente público e não persegue finalidades econômicas. Esse
entendimento é respaldado pelo RE nº 405.267/MG, no qual, inclusive,
foram superados os precedentes do STF que afastavam a imunidade recí-
proca das CAA.

395
H O R I Z O N T E S D O D I R E I TO P Ú B L I C O

A segunda conclusão é que as CAA são abrangidas pela imunidade


tributária das entidades assistenciais, por serem instituições de assistência
social sem fins lucrativos cujas atividades atendem ao interesse público,
reforçam direitos sociais, não são remuneradas por contraprestações e não
possuem natureza previdenciária. Isso lhes confere status jurídico de ente
público e denota sua ausência de capacidade contributiva.
Portanto, as CAA são abrangidas pelas imunidades tributárias recí-
procas e de entidades assistenciais.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Recurso Extraordi-


nário nº 405.267/MG. Recurso extraordinário. Matéria afetada
para julgamento no tribunal pleno pela segunda turma. Artigos 11,
I, parágrafo único c/c 22, parágrafo único, “b”, ambos do RISTF.
Direito tributário. Imunidade recíproca. Art. 150, VI, “a”, da Cons-
tituição Federal. Ordem dos Advogados do Brasil. Caixa de Assis-
tência dos Advogados. Requerente: Município de Belo Horizonte.
Requerido: CAA de Minas Gerais. Relator: Min. Edson Fachin, 6
de setembro de 2018. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/pagina-
dorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=748459645. Acesso em:
15 abr. 2023.

DERZI, Misabel Abreu Machado; COÊLHO, Sacha Calmon Navarro.


A imunidade tributária da Caixa de Assistência da Ordem dos Advo-
gados-MG. Revista Dialética de Direito Tributário, [Macapá],
v. 172, p. 145-160, 2009.

JORGE, Carolina Schäffer Ferreira. Interpretação das imunidades


do art. 150, VI, da Constituição Federal. 2014. Tese (Mestrado
em Direito Tributário) – Faculdade de Direito, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2014.

NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Imunidades contra impostos na Cons-


tituição anterior e sua disciplina mais completa na Constitui-
ção de 1988. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.

396
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, FERNANDA CLÁUDIA ARAÚJO DA SILVA,
GABRIEL VINÍCIUS CARMONA GONÇALVES (ORGS.)

TORRES, Ricardo Lobo. As imunidades tributárias e os direitos hu-


manos: problemas de legitimação. In: TÔRRES, Heleno Taveira
(coord.). Tratado de Direito Constitucional Tributário: estu-
dos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Saraiva,
2005. p.305-338.

397

Você também pode gostar