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ACESSO

À JUSTIÇA
E DIREITOS
HUMANOS vol.
vol. II

Coordenação
Janaína Soares Noleto Castelo Branco
Carla Maria Barreto Gonçalves
Organização
Breno Silveira Moura Alfeu
Edson Rodrigues da Silva
ACESSO
À JUSTIÇA
E DIREITOS
HUMANOS vol. II

Coordenação
Janaína Noleto Soares Castelo Branco
Carla Maria Barreto Gonçalves
Organização
Breno Silveira Moura Alfeu
Edson Rodrigues da Silva
ACESSO
À JUSTIÇA
E DIREITOS
HUMANOS vol. II

1a Edição

Coordenação
Janaína Soares Noleto Castelo Branco
Carla Maria Barreto Gonçalves
Organização
Breno Silveira Moura Alfeu
Edson Rodrigues da Silva

Editora Mucuripe
Fortaleza
2020
Esta obra está sob os direitos Creative Commons 4.0
https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.pt_BR

Acesso à Justiça e Direitos Humanos - volume II


1a edição

Janaína Soares Noleto Castelo Branco; Carla Maria Barreto Gonçalves (Coord.)
Breno Silveira Moura Alfeu; Edson Rodrigues da Silva (Org.)
Editora Mucuripe

Conselho Editorial
André Parmo Folloni João Ricardo Catarino
Arno Dal Ri Junior Juarez Freitas
Daniela Leutchuk de Cademartori Marcelo Cattoni
Danielle Annoni Marciano Seabra de Godoi
Denise Lucena Cavalcante Marcos Wachowicz
Germana de Oliveira Moraes Maria Vital da Rocha
Gisele Cittadino Martonio Mont’Alverne Barreto Lima
Hugo de Brito Machado Segundo Paulo Caliendo
João Luís Nogueira Matias Roberto Alfonso Viciano Pastor

Capa, Editoração e Revisão


Pablo Pimentel Pessoa

Coordenação Editorial
Álisson José Maia Melo

Dados internacionais de Catalogação na Publicação

A174 Acesso à Justiça e Direitos Humanos - volume II

Janaína Soares Noleto Castelo Branco; Carla Maria Barreto Gonçalves


(Coord.) Breno Silveira Moura Alfeu; Edson Rodrigues da Silva (Org.) — 1. ed.
— Fortaleza : Mucuripe, 2020.

376 p. ;

ISBN 978-65-87966-05-2

1. Direito - Brasil. 2.
I. Título. II. Castelo Branco, Janaína Soares Noleto. III. Gonçalves,
Carla Maria Barreto. IV. Alfeu, Breno Silveira Moura. V. Silva, Edson
Rodrigues da.
CDD
341.481
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

APRESENTAÇÃO

Chegaram-nos às mãos excelentes artigos produzidos pelos discentes da


Disciplina Acesso à Justiça e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Ceará, que se somaram aos de discentes dos cursos de
Mestrado e Doutorado desta casa e convidados. Foi então com grande alegria que
sentimos haver material suficiente e de qualidade para o segundo volume do “Acesso
à Justiça e Direitos Humanos”.

Para a organização da obra, contamos com Edson Rodrigues e Breno Silveira,


respectivamente graduando e mestrando do curso de Direito, que com afinco e
disposição organizaram os textos e revisaram, junto aos autores, de maneira a torná-
los versões ainda mais aprimoradas de seus pensamentos.

Os temas são os mais diversos, parecendo muito variados em alguns aspectos;


mas muito uniformes em outros. Os temas de Acesso à Justiça e Direitos Humanos
permitem essa façanha: diversificar, mas sem se distanciar muito das fontes morais de
onde brotam. Sempre tão necessárias de se revisitar, principalmente na busca por uma
aplicação concreta delas.

Aos mestrandos e doutorandos que colaboraram com nossa obra, nosso


muito obrigado por acreditarem neste projeto e enviarem material tão primoroso,
tão enriquecedor!

Aos graduandos que aqui lançaram sua pesquisa científica, parabéns! Para
muitos, foi a primeira experiência de pesquisa e produção de um texto científico. A
ousadia é uma das virtudes que não se ensinam nos bancos da faculdade.

Vocês ousaram doutrinar, elaboraram suas pesquisas com determinação e agora podem
saborear a glória de dizerem-se co-autores de uma obra coletiva de excelente qualidade.

As coordenadoras.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

AGRADECIMENTOS

A Carla Barreto, por ter viabilizado, com seu talento, esforço e dedicação, que
a presente obra se consolidasse. Sua leitura cuidadosa dos artigos e seu espírito de
liderança foram fundamentais na nossa trajetória até aqui.

A Breno Silveira e Edson Rodrigues, que toparam com um entusiamo ímpar a


nossa empreitada e dispuseram-se a coletar, revisar e organizar todo o material.

Vocês três fizeram acontecer, e nós, que fazemos parte desta obra, somos
muito gratos.

Janaína Noleto.

5
SUMÁRIO

PARTE I

OS MECANISMOS PARA CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO


1 CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL:
ASSESSORIA JURÍDICA GRATUITA E JUSTIÇA GRATUITA
9

Marcos Sousa França

ACESSO À JUSTIÇA E JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA EM SEGUNDA


2
23
INSTÂNCIA: PRÁTICAS DE TRIBUNAIS BRASILEIROS E OS PRINCÍPIOS DA
PRIMAZIA DO MÉRITO E SEGURANÇA JURÍDICA
Edson Rodrigues da Silva

A ADVOCACIA DATIVA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A EFETIVAÇÃO DO


3 ACESSO A JUSTIÇA POR MEIO DA DEFENSORIA PÚBLICA
37

Maria Clara Fernandes Ribeiro Neta

A VIOLAÇÃO AO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL EM RAZÃO DA


4 INSUFICIENTE PRESENÇA DA DEFENSORIA PÚBLICA AGRAVADA
PELA EMENDA DO TETO
53

Aline Memória de Andrade

AS DIFICULDADES DOS HIPOSSUFICIENTES NO ACESSO À JUSTIÇA:


5 UMA REFLEXÃO A PARTIR DA ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DO
ESTADO DO CEARÁ
75

Jady Ferreira de Souza Confessor

6
O INFLUXO DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
JUNTO AO ACESSO À JUSTIÇA: A NATUREZA COMO SUJEITO DE 91
DIREITOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Breno Silveira Moura Alfeu

7 A DEMOCRATIZAÇÃO DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS:


ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL SUL-AFRICANA
121

Matheus Casimiro Gomes Serafim

ACESSO À JUSTIÇA NOS TEMPOS DE PANDEMIA: DA CONTRIBUIÇÃO


8 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA PARA A EFETIVIDADE DA
PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NO BRASIL
137

Danilo Santos Ferraz e Letícia Coelho Cavalcante Moreira

PARTE II

9
DESAFIOS DA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO JUNTO AO CNJ
E A PERCEPÇÃO DE MAGISTRADOS SOBRE CONHECIMENTO 155
ESPECIALIZADO EM TUTELA COLETIVA
Carla Maria Barreto Gonçalves
(RE)PENSANDO OS NÚCLEOS DE PRÁTICAS JURÍDICAS COMO
10 INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA SOB A ÓTICA
DA RESOLUÇÃO No. 5 DO CNE/CES
185

Larissa de Alencar Pinheiro Macedo

11 LITIGANTES HABITUAIS FRENTE À MASSIFICAÇÃO DE DEMANDAS E


CONGESTIONAMENTO DO JUDICIÁRIO NO BRASIL
201

Maria Teresa Barros Taumaturgo

12 ASPECTOS GERAIS E CONTROVERTIDOS DO PROCEDIMENTO ESPECIAL


DE INTERDIÇÃO: POR SOLUÇÕES CRIATIVAS EM PROL DA CELERIDADE 211
E DO ACESSO À JUSTIÇA
Bernardo Raposo Vidal

13 HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS À DEFENSORIA PÚBLICA EM CAUSAS


CONTRA O ESTADO: A QUESTÃO DA CONFUSÃO PATRIMONIAL
235

Ana Laura Beserra Lima Moura

14 JUIZ DAS GARANTIAS E ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL:


DESAFIOS DECORRENTES DOS NOVÉIS INSTITUTOS INCLUÍDOS 251
PELA LEI ANTICRIME
 José Luiz Noleto Castelo Branco

15 OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A LEI 13.260/16:


DEMOCRACIA, RESISTÊNCIA E CRIMINALIZAÇÃO
265

José Valente Neto

AS ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL COMO INSTRUMENTO DE


16 EFETIVAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS EM FORTALEZA
283

João Vito Castro Silva

CASA DA MULHER BRASILEIRA: O ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR 297


17 COMO INSTRUMENTO PARA A CONCRETIZAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA
POR PARTE DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Lais Correia Campos Capistrano

18 ACESSO À JUSTIÇA: ACESSO A MEDICAMENTOS,


SUCESSOS E ENTRAVES
307

Antonio Thales Marques Feitosa

19 A PROMULGAÇÃO DA LEI 13.979/2020 NO CONTEXTO DE COMPRAS E


CONTRATAÇÕES PELO PODER PÚBLICO NA PANDEMIA DE COVID-19 À
319

LUZ DOS DIREITOS HUMANOS


Ívina Soares de Oliveira Arruda

20 UMA ANÁLISE DA LEI Nº 12.318/2010 - LEI DA ALIENAÇÃO PARENTAL, NOS


CASOS ENVOLVENDO DENÚNCIAS
337

DE ABUSOS SEXUAIS POR UM DOS GENITORES


Pedro Henrique M. A. Menezes

21 O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO DE VISITA DOS AVÓS 351

Wallace da Silva Nascimento e Juliana Magda Gabriel Holanda


PARTE I

Capítulo 1
OS MECANISMOS PARA
CONCRETIZAÇÃO DO
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
DO ACESSO À JUSTIÇA NO
BRASIL: ASSESSORIA JURÍDICA
GRATUITA E JUSTIÇA GRATUITA

SUMÁRIO: Introdução. 1. Construção Histórica do Acesso à Justiça. 1.1. Histórico de


legislações. 1.2. Evolução da legislação referente à Defensoria Pública pós Constituição
Federal de 1988. 2. Empecilhos ao Acesso à Justiça no Brasil. 2.1. Estrutura da Defensoria.
2.2. Empecilhos Econômico. 2.3. Empecilhos Socioculturais. 2.4. Empecilhos Psicológicos.
3. Superação das Barreiras Identificadas. 3.1. Assistência Jurídica Gratuita: Defensoria
Pública. 3.2. Os Núcleos de Prática Jurídica. 3.3. Justiça Gratuita. Considerações Finais.
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CAPÍTULO 1

OS MECANISMOS PARA CONCRETIZAÇÃO DO PRINCÍPIO


CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL:
ASSESSORIA JURÍDICA GRATUITA E JUSTIÇA GRATUITA

Marcos Sousa França1

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1998 (CF/88) ficou conhecida como


Constituição Cidadã em virtude do tratamento especial que confere aos mais
necessitados. Nesse sentido, o artigo 5º da Carta Maior estabelece os direitos
fundamentais de toda população, baseado na busca pela igualdade sem distinção
de qualquer natureza. No entanto, o Princípio da Igualdade não deve ser analisado
no sentido de tratamento igual para todos, mas sim no sentido de tratamento
diferenciado, de acordo com as diferenças de cada um, ou seja, de maneira
material, pois visa o reconhecimento das diferenças para permitir a construção de
uma sociedade igualitária em oportunidades para todos.

Desta forma, o inciso XXXV do artigo 5º da CF/88 contempla o Princí-


pio do Acesso à Justiça, visando garantir a igualdade de todos na defesa de seus
direitos, estabelecendo o acesso à tutela jurisdicional do Estado para pleitear a
proteção de um direito ao afirmar que a lei não excluirá da apreciação do Poder
Judiciário lesão ou ameaça a direito, assim, o conceito de Acesso à Justiça utiliza-
do como base desta pesquisa será o de garantir o pleno acesso à tutela jurisdicio-
nal do Estado na pretensão de um direito e a solução dessa controvérsia em um
menor tempo possível. Além da garantia da justiça gratuita aos mais vulneráveis
preceituado no inciso LXXIV do mesmo artigo.

No entanto, é possível observar diversos empecilhos que interferem na ple-


na efetividade do Acesso à Justiça, como, por exemplo, a morosidade nos processos,
além dos empecilhos socioculturais, pautados principalmente na precariedade do
sistema educacional brasileiro e no não conhecimento de direitos ou de procedi-
mentos para requerê-los.

1 Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. Pesquisador da linha de Direito Internacional
e Meio Ambiente e Diretor Geral do GEDAI - Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais. Membro
do Corpo Editorial da Revista Dizer. Voluntário do Instituto Verdeluz, ONG socioambiental de Fortaleza e Inte-
grante do Abrace a Cidade, projeto da Faculdade de Direito da UFC. E-mail: marcosfranca1612@gmail.com.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Tendo em vista o que se propõe no plano normativo, destaca-se que a CF/88


inovou ao trazer a Defensoria Pública como instituição essencial à justiça, servindo
como uma medida de concretização de tais garantias expostas no texto constitucio-
nal por meio da assessoria jurídica gratuita, além de pontuar-se a importância da
justiça gratuita. Desta forma, o objetivo deste trabalho é mostrar a importância da
assessoria jurídica gratuita para a concretização do Princípio do Acesso à Justiça,
bem como analisar a sua efetividade através dos diversos instrumentos e realidades
no país. Para isso, será utilizada a metodologia de pesquisa de investigação indireta,
por meio de análise legislativa, pesquisa bibliográfica e documental na área.

Assim, a pergunta central que move tal é pesquisa é: a Defensoria Pública


garante a efetividade do Princípio Constitucional do Acesso à justiça? Para chegar-
mos à conclusão, primeiramente devemos responder a outros questionários: como
se deu a evolução do Acesso à Justiça e da Defensoria no Brasil? Quais os empe-
cilhos para a efetivação do Acesso à Justiça são enfrentados no Brasil? E quais os
mecanismos para superar essa barreira?

Desse modo, parte-se, primeiramente, para uma análise sobre a realidade


brasileira, pontuando considerações acerca do Acesso à Justiça, perpassando desde
os empecilhos até as soluções para a concretização deste princípio constitucional e
o papel da assessoria jurídica gratuita e da justiça gratuita para a sua efetivação.

1. CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO ACESSO À JUSTIÇA

Destaca-se que o surgimento das assessorias jurídicas gratuitas se deu


paralelamente à garantia da justiça gratuita, como uma forma de concretização
desta, encontrando-se disposta de diversas formas durante a história da
humanidade. Nesse sentido, importante uma análise preliminar da evolução da
legislação sobre o tema, partindo-se do histórico de legislação sobre o acesso à
justiça e da evolução dos normativos legais acerca da Defensoria Pública enquanto
instituição essencial à justiça.

1.1. Histórico de legislações

Inicialmente, importante destacar que a estrutura do Judiciário brasileiro


foi construída, em grande parte, para atender a um modelo português que foi
importado pelo país quando do estabelecimento da Corte Portuguesa no Brasil.
Desta forma, ao longo dos primeiros séculos dessa estrutura, podemos perceber essa
adequação formal aos governantes vigentes. Assim, é possível verificar a existência

12
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

de um país formal, com relação à linguagem de códigos e condutas, e um país


real, situado à margem da lei. Tal situação ainda é presenciada em grande parte
do país, mesmo com a evolução legislativa e instituição de diversos instrumentos2.
Nesse sentido, necessária uma análise histórica da legislação de acesso à justiça e dos
diversos normativos elaborados ao longo desse processo.

Nesse sentido, um dos primeiros registros de ajuda aos necessitados pode


ser encontrado no Código de Hamurabe, um conjunto de leis de 1694 a.c. com
o objetivo de unificar o povo em torno de práticas aceitas ou não. O parágrafo 48
demonstra um tratamento diferenciado para os que não possuem condições de su-
portar impostos ou juros:
Parágrafo 48, XIV Se um awilum tem sobre si uma dívida e (se) Adad3 inun-
dou seu campo ou a torrente (o) carregou, ou (ainda) por falta de água, não
cresceu cevada no campo, nesse ato ele não dará cevada ao seu credor. Ele
umedecerá a sua tábua e não pagará os juros desse ano4. (Grifado)

Mais além, pode-se pontuar que Atenas e Roma possuíam uma forma de
organização mais próxima com o atual modelo de proteção aos vulneráveis, com
nomeação de advogados para defesa. Além disso, a Revolução Francesa, em 1789,
que tinha como lema a “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” também obteve avan-
ços na prestação de assistência jurídica gratuita5.

Com isso, pode-se dizer que o acesso à justiça gratuita foi pautado his-
toricamente em diferentes momentos e com leis esparsas. Além do já pontuado,
importante destacar o marco do Movimento de Acesso à Justiça, na década de
1970, que ultrapassava o formalismo do Direito, utilizando os meios alternativos
para resolver os conflitos6.

Por fim, mas não menos importante, a entrada em vigor da Constituição de


1988 em relação ao amparo dos mais necessitados, garantindo acesso à justiça aos
(população) hipossuficiente, além da caracterização das Defensorias Públicas como
fundamentais ao acesso à justiça.

2 RIBEIRO, Ludmila. A Emenda Constitucional 45 e a questão do acesso à justiça. Revista Direito GV, v. 4, p.
465-492, 2008.
3 Segundo Simone dos Santos Oliveira a expressão “Awilum” representava o cidadão livre em pleno uso de seus
direitos e a expressão “Adad” representa as forças da natureza. OLIVEIRA, S. S. Defensoria Pública brasileira:
sua história. REVISTA DE DIREITO PÚBLICO, LONDRINA, V. 2, N. 2, P. 59-75, MAIO/AGO. 2007.
4 BOUZON, E. O código de Hamurabi: introdução. 3. ed. Vozes, Petrópolis, 116p, 1980.
5 OLIVEIRA, op. cit., p. 65-66.
6 SANTOS, Karla Richelly Carvalho. Defensoria Pública sob a ótica constitucional de instituição essencial à
justiça. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36436/defensoria-publica-sob-a-otica-constitucional-
-deinstituicao-essencial-a-justica. Acesso em: 03 nov. de 2018.

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1.2. Evolução da legislação referente à Defensoria Pública pós Constituição Federal


de 1988

Como já disposto, a Constituição Federal de 1988 passou a prever a


Defensoria Pública como Instituição permanente e essencial à Justiça, incumbindo-
lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente,
a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os
graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral
e gratuita, aos necessitados7.

Já a Lei Complementar nº 80/1994 organizou a Defensoria da União e do


Distrito Federal e dispôs normas gerais para as Defensorias dos Estados. Em seu
artigo 2º, dispôs que compõe a Defensoria Pública a Defensoria Pública da União,
a Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios e as Defensorias Públicas
dos Estados. O artigo 3º, que são princípios institucionais da Defensoria Pública
a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Além disso, o artigo
3º- A traz como objetivos da Defensoria Pública a primazia da dignidade da pessoa
humana e a redução das desigualdades sociais, a afirmação do Estado Democrático
de Direito, a prevalência e a efetividade dos direitos humanos e a garantia dos prin-
cípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório8.

A Emenda Constitucional nº 45/2004, responsável por uma importante


reforma no Judiciário e por criar o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, foi pro-
mulgada com o objetivo de resolver algumas limitações na problemática do acesso à
justiça9. Assim, algumas das alterações buscavam melhoria na razoável duração do
processo; na proporcionalidade entre o número de juízes na unidade jurisdicional
e a efetiva demanda judicial e a respectiva população; no funcionamento ininter-
rupto da atividade jurisdicional; e na distribuição imediata dos processos em todos
os graus de jurisdição10. Além disso, a Emenda Constitucional nº 45/2004 deu
autonomia administrativa às Defensorias Públicas Estaduais, que também passaram
a poder elaborar sua proposta orçamentária, por exemplo11.

7 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Fede-
ral: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
8 BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da União, do
Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, e dá outras
providências. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp80.htm. Acesso em: 06 jun. 2020.
9 RIBEIRO, op. cit., p. 466.
10 Ibid., p. 473
11 ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS – ANADEP; ASSOCIA-
ÇÃO PAULISTA DE DEFENSORES PÚBLICOS – APADEP. Defensoria Publica Retrato de Uma Instituição
em Desenvolvimento. Disponível em: https://www.apadep.org.br/wp-content/uploads/2018/11/book-defensoria-
-pu%CC%81blica.pdf. Acesso em: 20 jun. 2020. p. 9.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Por fim, importante pontuar a Emenda Constitucional 80/2014, que teve


sua criação diante da defasagem no número de Defensorias no país, demonstrado,
com o lançamento do Mapa da Defensoria Pública no Brasil, em 2013, que
apontou que apenas 28% das Comarcas do país contavam com defensores
públicos12. Nesse sentido, a Emenda Constitucional 80/2014 passou a prever
que até o ano de 2022 devem contar com a presença da Defensoria Pública todas
as unidades jurisdicionais13.

2. EMPECILHOS AO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL

Após a análise da legislação no tocante à estrutura e proteção das garantias


constitucionais relativas ao Acesso à Justiça e sobre a estrutura da Defensoria Pública,
é notório destacar a existência de inúmeros empecilhos que levam a não concretização
do princípio do acesso à justiça, destacando-se os empecilhos econômicos, empeci-
lhos socioculturais, psicológicos e jurídicos ou judiciários. Além disso, importante
destacar como a estrutura da defensoria pública pode levar à real efetividade do Prin-
cípio constitucional de Acesso à Justiça, por isso, será analisado aprioristicamente os
dados acerca da Defensoria Pública no Brasil.

2.1. Estrutura da Defensoria

Como já alertado acima, o estudo “Mapa da Defensoria Pública no Brasil”, de


2013, apontou que apenas 28% das Comarcas do país contavam com defensores pú-
blicos naquele ano14. Assim, importante destacar que o acesso à justiça está intrinseca-
mente ligado aos dados de defensores por habitante, além da existência de defensorias
em todas as regiões, como apontado na Emenda Constitucional 80/2014.

No segundo semestre de 2018, o Brasil possuía 5.961 defensores públicos esta-


duais em atividade. Nesse sentido, as associações de defensores públicos apontam um
déficit de 6 mil defensores públicos para que se atinge o ideal de um defensor público
para cada grupo de 15 mil pessoas. Em alguns estados o déficit é mais acentuado,
como, por exemplo, no estado do Paraná, em que há um defensor para cada 53 mil

12 MOURA, et al. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. 1ª edição. Brasília – Distrito Federal. 2013.
13 BRASIL. Emenda Constitucional nº 80, de 4 de Junho de 2014. Altera o Capítulo IV - Das Funções Essen-
ciais à Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes, e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias da Constituição Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/consti-
tuicao/Emendas/Emc/emc80.htm. Acesso em: 06 jun. 2020.
14 MOURA, op. cit., p. 32-33.

15
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

pessoas. Assim, o estudo aponta que as defensorias públicas estão presentes em apenas
40% das comarcas brasileiras, o que torno difícil o cumprimento de instalação da
Defensoria em todas as comarcas até o ano de 2022, conforme disposto na Emenda
Constitucional 80/201415.

Assim, uma maior estruturação da Defensoria Pública e sua descentralização


por todo o país é dos desafios a serem enfrentados para garantir o acesso à justiça no
Brasil. Além do fator estrutural, também merecem destaques outros empecilhos que
acabam por distanciar o acesso à justiça da sua efetivação.

2.2. Empecilhos Econômicos

Como demonstrado, não existem defensorias públicas em todo o país, o que


acaba por obrigar a população a contratar advogados particulares.

O empecilho econômico diz respeito ao elevado valor do processo brasileiro e


é um dos empecilhos com maior força para impossibilitar o acesso à justiça, uma vez
que as desigualdades sociais são uma das bases para a impossibilidade de se acessar
o judiciário. Podem-se apontar, nesse sentido, diversos custos da demanda, desde o
custo com a locomoção para o escritório do advogado ou ao fórum, os quais, muitas
vezes, ficam em lugares distantes das habitações mais carentes das cidades, além dos
honorários advocatícios e custas processuais. Assim, até mesmo o temor em ter que
pagar custas processuais com a derrotada da ação são fatores econômicos que afastam
a população da pretensão do seu direito.16

Além disto, a duração dos processos é também um fator que limita o acesso
à justiça, uma vez que essa demora eleva as despesas das partes. Uma das premis-
sas constitucionais é a razoável duração do Processo, no entanto, a realidade é que
tem-se um excesso de prazo despendido pelo Poder Judiciário no processamento e
julgamento das demandas17. Assim, são comuns os processos que demoram anos
para obterem uma solução vinda do judiciário, o que acaba por aumentar todos os
custos já abordados acima.

15 ANADEP; APADEP; op. cit., p. 3-4.


16 DE SÁ, Eduardo Bruno do Lago. Acesso à Justiça e Juizados Especiais Cíveis. Monografia (Graduação).
Universidade de Brasília. Brasília, 2011.
17 RIBEIRO, op. cit., p. 474.

16
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

2.3. Empecilhos Socioculturais

Outro empecilho relacionado às desigualdades sociais do Brasil refere-se aos


empecilhos socioculturais, que dizem respeito às limitações causadas em razão do
estrato social a que pertence o cidadão, apesar da decorrência lógica da desigualda-
de econômica, possuem também aspectos sociais, educacionais e culturais. A grande
parte dos cidadãos não conhece e não têm condições de conhecer os seus direitos:
quanto menor o poder aquisitivo do cidadão, menor o seu conhecimento acerca de
seus direitos e menor a sua capacidade de reparação judicial ou como encontrar um
serviço de assistência judiciária18.

Nesse sentido, um dos aspectos mais marcantes dos empecilhos socioculturais


referem-se a falta de educação, que, logicamente, está ligado a fatores sociais e aos
empecilhos econômicos. A educação pública não é valorizada, assim, a população
brasileira sofre com a baixa escolaridade; além disso, grande parte dos jovens deixam
os estudos precocemente ou têm com (que) conciliar com alguma forma de trabalho,
fatores que levam ao não conhecimento dos seus direitos por parte da população mais
vulnerável, um empecilho determinante para a não concretização do Princípio do
Acesso à Justiça19.

2.4. Empecilhos Psicológicos

Além desses pontos, importante destacar o grande formalismo que circunda


a estrutura judiciária em discrepância com o Brasil real, que fica à margem da lei e
dos procedimentos com linguagem robusta exacerbada20. Essa estrutura somada aos
fatores educacionais citados acima, levam a um distanciamento da população mais
carente deste meio; são os chamados empecilhos psicológicos.

Os empecilhos psicológicos dizem respeito à visão da população em relação


aos integrantes do sistema jurisdicional. As pessoas menos favorecidas economi-
camente temem os advogados, juízes e promotores. Assim, muitas vezes os juízes
são vistos como seres superiores e os advogados como pessoas em que não se deve
confiar inteiramente21.

18 DE SÁ, op. cit., p. 18.


19 DE SÁ, op. cit., p. 18.
20 RIBEIRO, op. cit., p. 467.
21 TORRES, Ana Flavia Melo. Acesso à Justiça. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.
php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4592. Acesso em: 09 out. de 2018.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

3. SUPERAÇÃO DAS BARREIRAS IDENTIFICADAS

Nesse cenário de dificuldades em relação ao acesso à justiça, faz-se mister des-


tacar os instrumentos atuais de superação das barreiras já identificadas, cabendo su-
blinhar o papel da assessoria jurídica gratuita, da Defensoria Pública e dos Núcleos de
Práticas Jurídicas, como oportunizadores da efetividade do Acesso à justiça no Brasil.

3.1. Assistência Jurídica Gratuita: Defensoria Pública

No combate à carência de recursos econômicos, grandes passos já foram dados


no sentido de se reduzir o problema do Acesso à Justiça. Com efeito, um dos mais
significativos diz respeito à carência de recursos econômicos. Trata-se da assistência
jurídica, presente no ordenamento jurídico nacional desde 1950, por meio da Lei
nº 1.060, que instituiu a assistência judiciária gratuita. Nesse mesmo sentido, mas
com enfoque mais abrangente, a Constituição Federal de 1988 consagrou, nos
termos do artigo 5º, LXXIV, a assistência jurídica integral e gratuita aos cidadãos
que dela necessitarem22.

Tendo em vista o que se propõe no plano normativo, é fundamental destacar


que a Constituição de 1988 inovou ao trazer a Defensoria Pública como instituição
essencial à justiça, servindo como uma medida de concretização de tais garantias ex-
postas no texto constitucional. Desta forma, preceitua o artigo 134 da Constituição
que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional
do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos
e a defesa dos direitos individuais e coletivos de forma integral e gratuita, como já
demonstrado acima, devendo para a sua maior concretização a sua distribuição por
todas as comarcas do país. No entanto, não se pode deixar de destacar o grande avan-
ço instaurado pela instituição.

Além disso, a Defensoria Pública também possui uma boa divulgação de in-
formações e garantias, levando maior conhecimento à população de seus direitos,
contribuindo, desta forma, além do fator econômico, para ultrapassar as barreiras
socioculturais relacionados a baixa escolaridade e aos empecilhos psicológicos; assim,
a população não possui tanta desconfiança da instituição e a entende como algo mais
próxima da realidade brasileira, em distanciamento do país formal, com linguagem e
códigos excessivamente formais.

22 SÓRIA, T. M. Assistência jurídica integral e justiça gratuita nos conflitos individuais do trabalho. Dis-
sertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011, p.125

18
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

3.2. Os Núcleos de Prática Jurídica

Uma importante maneira de descentralização dos atendimentos da Defensoria


Pública e de aumentar o seu alcance e qualidade são os Núcleos de Prática Jurídica, NPJ.

Com o advento da Portaria nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, do Ministé-


rio da Educação e do Desporto, que fixou as diretrizes curriculares e o conteúdo mí-
nimo dos cursos jurídicos, o estágio de prática jurídica passou a integrar o currículo e
a ser essencial para a obtenção do grau de bacharel em Direito. Ademais, determina
o parágrafo segundo, do artigo 10, da referida Portaria, que as atividades de prática
jurídica poderão ser complementadas mediante convênios com a Defensoria Pública
e outras entidades públicas judiciárias. Os Núcleos de Prática Jurídica têm a força de
potencializar a assistência jurídica gratuita prestada pela Defensoria Pública, princi-
palmente, no atendimento à população carente23.

Cabe salientar alguns problemas básicos dos núcleos como, por exemplo, o
tempo para elaboração das peças que são elaboradas pelos alunos e precisam passar
pelo professor, podendo retornar para o aluno para correções, antes de envio para o
defensor, o que pode demorar dependendo da organização interna do Núcleo. Além
disso, os núcleos são instituídos nas Faculdades de Direito do país, que normalmente
estão instaladas em centros urbanos, assim, a problemática do número de comarcas a
serem beneficiadas pela Defensoria não está resolvida.

No entanto, podemos destacar que os NPJ’s contribuem com o acesso à justiça


e com a formação mais humanizada do estudante de Direito. Assim, sua essência é
o compromisso com a afirmação e defesa das Garantias Fundamentais previstas na
Constituição Federal e uma maior efetividade da Defensoria Pública, acabando por
ajudar a efetivar o Acesso à Justiça24.

3.3. Justiça Gratuita

Precipuamente é interessante destacar que a Justiça Gratuita é muitas vezes


confundida e usada como sinônimo para Assistência Jurídica Gratuita, tanto em tra-

23 MINISTRO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Portaria nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994. Fixa as


diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo do curso jurídico. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/
arquivo_artigo/art20100108-03.pdf. Acesso em: 07 jun. 2020.
24 OLIVEIRA, André Macedo. A Essência de um Núcleo de Prática Jurídica. Disponível em: https://jus.com.
br/artigos/47/a-essencia-de-um-nucleo-de-pratica-juridica. Acesso em: 09 out. de 2018.

19
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

balhos acadêmicos quanto na própria legislação, como, por exemplo, na Lei 1.060 de
1950, levando a conclusão que as expressões são utilizadas sem rigor metodológico25.

Como já visto, a assessoria jurídica gratuita se propõe a assegurar assistência


integral durante todo o processo, e o principal exemplo instituído no Brasil, é a De-
fensoria Pública. Já a justiça gratuita relaciona-se ao não pagamento de custas proces-
suais ou honorários sucumbenciais.

A importância da justiça gratuita é que ela consegue ir além da Defensoria


Pública para a concretização do Acesso à Justiça, no sentido de que ela possibilita à
população mais carente que vive em regiões sem defensoria, que ingresse com sua
ação com um advogado particular e mesmo assim desfrute da justiça gratuita ou da
chamada assistência judiciária, não necessitando pagar as despesas processuais, inclu-
sive honorários advocatícios26.

Assim, a justiça gratuita demonstra-se um mecanismo realmente efetivo para


concretizar o Acesso à Justiça, principalmente, mas não somente, em regiões em que
não existe a assessoria jurídica gratuita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se alertando que a realidade brasileira ainda é cheia de peculiaridades


que dificultam o acesso à justiça por parte da população mais carente. Diante do ex-
posto, é fundamental destacar a realidade de desigualdade vivenciada. No entanto,
mesmo com a existência de tantas barreiras, é de substancial importância destacar o
papel das Defensorias Públicas como efetivadoras das garantias constitucionais.

As barreiras apresentadas são frutos de uma realidade de desigualdades históri-


cas vivenciadas no país. Nesse sentido, restou demonstrado que a assistência jurídica
gratuita é fundamental para a concretização do princípio constitucional do Acesso à
Justiça. Destacando-se ainda a expansão dessa assessoria gratuita por meio dos Nú-
cleos de Práticas Jurídicas, com as devidas ressalvas apontadas sobre seu alcance.

Nesse sentido, a justiça gratuita possui o condão de avançar mais ainda nessa
concretização, uma vez que possui atuação além das defensorias, em regiões onde a
estrutura da assistência jurídica gratuita ainda não chegou.

25
26 Ibid., p. 29.

20
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A mudança na realidade do acesso à justiça passa pela maior educação da popu-


lação sobre os seus direitos e os meios disponíveis para concretizá-los, além da neces-
sidade de desconstrução do formalismo excessivo que transmite situações e ambientes
distantes do país real.

Por fim, entende-se que o grande avança do Acesso à Justiça no pais é a concre-
tização da assistência jurídica gratuita, aqui aliada à justiça gratuita, com a efetivação
do previsto na Emenda Constitucional 80/2014, ou seja, a Defensoria Pública deve
se expandir para todas as unidades jurisdicionais até o ano de 2022.

Os avanças são nítidos, mas são necessários tais aperfeiçoamentos para ob-
termos o Princípio Constitucional do Acesso à Justiça concretizado, com o perfeito
acesso ao Poder Judiciário por parte do país real, tendo a resolução de seus conflitos
em um período razoável de tempo.

REFERÊNCIAS
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GV, v. 4, p. 465-492, 2008.

OLIVEIRA, S. S. Defensoria Pública brasileira: sua história. REVISTA DE DIREITO PÚBLI-


CO, LONDRINA, V. 2, N. 2, P. 59-75, MAIO/AGO. 2007.

BOUZON, E. O código de Hamurabi: introdução. 3. ed. Vozes, Petrópolis, 116p, 1980.

SANTOS, Karla Richelly Carvalho. Defensoria Pública sob a ótica constitucional de instituição
essencial à justiça. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36436/defensoria-publica-
sob-a-otica-constitucional-deinstituicao-essencial-a-justica. Acesso em: 03 nov. de 2018.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Se-
nado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.

BRASIL. Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994. Organiza a Defensoria Pública da


União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos
Estados, e dá outras providências. Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/
Lcp80.htm. Acesso em: 06 jun. 2020.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS DEFENSORAS E DEFENSORES PÚBLICOS – ANA-


DEP; ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE DEFENSORES PÚBLICOS – APADEP. Defensoria
Publica Retrato de Uma Instituição em Desenvolvimento. Disponível em: https://www.apadep.
org.br/wp-content/uploads/2018/11/book-defensoria-pu%CC%81blica.pdf. Acesso em: 20
jun. 2020. p. 9

MOURA, et al. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. 1ª edição. Brasília – Distrito Federal.2013.

BRASIL. Emenda Constitucional nº 80, de 4 de Junho de 2014. Altera o Capítulo IV - Das


Funções Essenciais à Justiça, do Título IV - Da Organização dos Poderes, e acrescenta artigo

21
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc80.htm. Acesso em: 06
jun. 2020.

DE SÁ, Eduardo Bruno do Lago. Acesso à Justiça e Juizados Especiais Cíveis. Monografia (Gra-
duação). Universidade de Brasília. Brasília, 2011.

TORRES, Ana Flavia Melo. Acesso à Justiça. Disponível em: http://www.ambitojuridico.com.


br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=4592. Acesso em: 09 out. de 2018.

SÓRIA, T. M. Assistência jurídica integral e justiça gratuita nos conflitos individuais do trabalho.
Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011,
p.125

MINISTRO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Portaria nº 1.886, de 30 de dezembro de


1994. Fixa as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo do curso jurídico. Disponível em:
https://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20100108-03.pdf. Acesso em: 07 jun. 2020.

OLIVEIRA, André Macedo. A Essência de um Núcleo de Prática Jurídica. Disponível em: https://
jus.com.br/artigos/47/a-essencia-de-um-nucleo-de-pratica-juridica. Acesso em: 09 out. de 2018.

22
Capítulo 2
ACESSO À JUSTIÇA E
JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA
EM SEGUNDA INSTÂNCIA:
PRÁTICAS DE TRIBUNAIS
BRASILEIROS E OS PRINCÍPIOS
DA PRIMAZIA DO MÉRITO E
SEGURANÇA JURÍDICA

SUMÁRIO: Introdução. 1. Acesso à Justiça e primazia do mérito. 2. Jurisprudência defensiva


e primazia do mérito no Novo Código de Processo Civil. 2.1 O conceito de Jurisprudência
defensiva. 2.2 A jurisprudência defensiva e o Código de Processo Civil de 2015. 3. Acesso
à Justiça, segurança jurídica e jurisprudência defensiva. Considerações finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 2

ACESSO À JUSTIÇA E JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA EM SEGUNDA


INSTÂNCIA: PRÁTICAS DE TRIBUNAIS BRASILEIROS E OS
PRINCÍPIOS DA PRIMAZIA DO MÉRITO E SEGURANÇA JURÍDICA

Edson Rodrigues da Silva1

INTRODUÇÃO

Diversos foram os teóricos que tentaram conceituar o Direito. Para uns, esse
fenômeno seria apenas um conjunto de regras positivadas destinado a regular a vida
em sociedade. Para outros, o Direito é um fenômeno muito mais complexo, trazendo
em seu bojo conceitual carga valorativa para além do que os homens expressam em
atos normativos. Independentemente do ponto de partida para a conceituação do
Direito, inegável é o papel que os órgãos jurisdicionais possuem em sua construção
teórica e prática.
Enquanto conceito abstrato, a justiça sempre esteve, em maior ou menor
grau, atrelada à noção que os cidadãos têm a respeito do Direito. Assim, o ordena-
mento jurídico de diferentes povos e em diferentes épocas sempre trouxe uma relação
entre o fenômeno jurídico e a justiça, entendida como igualdade, retribuição.
Não é diferente no mundo contemporâneo. Diversas constituições co-
locam em sua normatividade o objetivo de alcançar-se a justiça. Assim é, por
exemplo, na própria constituição brasileira de 1988, que dispõe expressamente
como um de seus objetivos a criação de uma sociedade livre, justa e solidária. No
intento de concretizar esse objetivo, a Constituição Federal elevou à categoria de
direito fundamental o acesso à justiça.
O desígnio do artigo que aqui se desenvolve é de analisar, sucinta e
precisamente, como deve ser interpretada a garantia constitucional de inafastabilidade
do Poder Judiciário.

1 Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Formação técnica na área
de segurança e medicina do trabalho. Estagiário no escritório Wagner Barreira Advogados Associados. Monitor da
disciplina de Direito Civil I nos períodos de 2018.1 e 2018.2. Pesquisador do Centro de Estudos em Direito Cons-
titucional da Universidade Federal do Ceará, atuando em 2019 na linha de Constitucionalização das Relações
Privadas. E-mail: tec.edsonrodrigues@gmail.com

25
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Parte-se da indagação sobre ser o acesso à justiça um mero acesso ao Judiciário


ou se esse conceito se estende para além do Judiciário enquanto poder institucional,
alcançando também a ideia de concretização dos direitos, da pacificação social e da
estabilidade jurídica.

Analisar-se-á também a prática da jurisprudência defensiva e sua implicação em


princípios como o da primazia do mérito, da segurança jurídica e o da isonomia, dentre
outros, que direta ou indiretamente se relacionam a esses explicitados no presente artigo.
Inicialmente, será abordada a relação entre a primazia do mérito no Novo
Código de Processo Civil (Lei 13.105 de 16 de março de 2015, CPC ou NCPC),
a jurisprudência defensiva e o acesso à Justiça. Após, será apresentada uma breve
conceituação de jurisprudência defensiva e exemplos dela. Por fim, será abordado o
vínculo entre o acesso à Justiça, jurisprudência defensiva e segurança jurídica.
A metodologia utilizada na elaboração do presente artigo é de natureza qua-
litativa básica, pautada no método indutivo de fonte bibliográfica e documental,
notadamente de artigos científicos e livros que tratam especificamente de temas re-
lacionados ao objeto da pesquisa, como precedentes judiciais, segurança jurídica, ina-
fastabilidade da jurisdição e primazia do mérito.

1. ACESSO À JUSTIÇA E PRIMAZIA DO MÉRITO

Mauro Cappelletti e Bryan Garth apontam, em sua obra sobre acesso à jus-
tiça, duas finalidades básicas dos sistemas jurídicos: mecanismo pelo qual se pode
reivindicar direitos e mecanismo pelo qual os litígios podem ser resolvidos2.
A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXV, consagra
a primeira finalidade apontada por Cappelletti e Garth, ao prever expressamente que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. De
fato, conforme José Afonso da Silva, a expressividade daquele inciso institucionaliza o
direito à jurisdição como um direito fundamental assegurado constitucionalmente3.
A literalidade do inciso é categórica em tornar inafastável a atividade jurisdicional,
fruto da história brasileira4.

2 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988, p. 8.
3 SILVA, José Afonso da. Acesso à Justiça e Cidadania. Revista de Direito Administrativo, v. 216, abr./jun,
1999, p. 09-23.
4 SILVA, José Afonso da. Acesso à Justiça e Cidadania. Revista de Direito Administrativo, v. 216, abr./jun,
1999, p. 09-23.

26
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Contudo, o conceito de acesso à justiça não se esgota apenas com a análise de


sua finalidade enquanto mecanismo para a reivindicação de direitos. É imprescindí-
vel que os direitos reivindicados sejam apreciados pelo Poder Judiciário e os litígios
advindos dos conflitos de interesses juridicamente protegidos sejam resolvidos em de-
finitivo, concretizando um dos escopos mais importantes da atividade jurisdicional,
a pacificação da sociedade.
Nesse sentido, afirma Alexandre Freitas Câmara que o acesso à justiça é uma
realidade dinâmica e que também comporta em seu conceito a faceta de análise me-
ritória dos litígios levados ao Judiciário, posta pelo referido autor como um princípio
norteador da atividade jurisdicional5, inclusive expressamente disposto no Novo Có-
digo de Processo Civil6.
A exposição de motivos da lei nº 13.105 de 16 de março de 2015 aponta, em
diversos momentos, para a necessidade de se colocar o mérito acima das excessivas e
desnecessárias formalidades. E isso desde que estas sejam efetivamente desprovidas da
capacidade de mudar a decisão judicial, causar dano ao processo ou ferir princípios
outros, como a ampla defesa e o contraditório. Assim, de fato, a exposição enumera
cinco finalidades às quais a nova ritualística processual almeja:
Com evidente redução da complexidade inerente ao processo de cria-
ção de um novo Código de Processo Civil, poder-se-ia dizer que os
trabalhos da Comissão se orientaram precipuamente por cinco ob-
jetivos: 1) estabelecer expressa e implicitamente verdadeira sintonia
fina com a Constituição Federal; 2) criar condições para que o juiz
possa proferir decisão de forma mais rente à realidade fática sub-
jacente à causa; 3) simplificar, resolvendo problemas e reduzindo a
complexidade de subsistemas, como, por exemplo, o recursal; 4)dar
todo o rendimento possível a cada processo em si mesmo consi-
derado; e, 5) finalmente, sendo talvez este último objetivo parcial-
mente alcançado pela realização daqueles mencionados antes, impri-
mir maior grau de organicidade ao sistema, dando-lhe, assim, mais
coesão.7 - grifos nossos.

O próprio legislador, ciente da complexidade do antigo Código de Processo


Civil, dispôs em suas justificativas para a feitura da nova ordem processual, que

5
Civil. Revista EMERJ, v.18, n.70, set/out.2015, p. 42-50.
6 Art. 4º do CPC de 2015. As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluí-
da a atividade satisfativa.
7 SENADO FEDERAL. Subsecretaria de Edições Técnicas. Disponível em: < http://www2.senado.leg.br/bdsf/
handle/id/496296>, Acesso em: 01 Dez. 2019.

27
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

o código se destina a simplificar a legislação, de forma a permitir ao intérprete e


aplicador que centre sua atenção no mérito.

O princípio da primazia do mérito é tão presente no CPC atual, que gerou


várias regras que repelem o apego desproporcional às formas. A título meramente
ilustrativo cita-se o parágrafo segundo do seu artigo 282, o qual autoriza ao juiz subs-
tituir a decretação de uma nulidade por uma decisão de mérito quando a nulidade
aproveitaria à parte que se beneficia da decisão meritória8. No mesmo sentido dispõe
o seu artigo 4889.

2. JURISPRUDÊNCIA DEFENSIVA E PRIMAZIA DO MÉRITO NO NOVO


CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A par de que o acesso à justiça mencionado no artigo 5º, inciso XXXV da


Constituição de 1988 não se esgota na mera inafastabilidade do Poder Judiciário, mas
também na efetivação dos direitos, faz-se necessária a análise do comportamento do
sistema judicial brasileiro na praxe em relação à busca de concretizar o mandamento
constitucional em sua dimensão meritória e não apenas institucional. Nesse sentido,
uma abordagem, mesmo que sucinta, sobre o conceito e o histórico da jurisprudência
defensiva e de suas implicações, inclusive no Novo Código de Processo Civil é de re-
levância para a correta compreensão do que se deseja concluir com o presente estudo.
Assim, abordar-se-á nos próximos pontos uma breve conceituação do fenômeno da
jurisprudência defensiva e de como o NCPC a combate.

2.1. O Conceito de Jurisprudência Defensiva

O duplo grau de jurisdição, princípio norteador da ciência processual, in-


forma que aos jurisdicionados é garantida a reanálise de seus litígios, em regra, por
um órgão hierarquicamente superior ao juízo monocrático que prolatou a decisão
impugnada. A manifestação concreta desse princípio se dá, geralmente, por meio dos
recursos judiciais. Estes constituem mecanismo utilizável juridicamente para levar a

8 Art. 282. Ao pronunciar a nulidade, o juiz declarará que atos são atingidos e ordenará as providências necessárias a
fim de que sejam repetidos ou retificados. § 1º O ato não será repetido nem sua falta será suprida quando não prejudi-
car a parte. § 2º Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a decretação da nulidade, o juiz não
a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta.
9 Art. 488. Desde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem
aproveitaria eventual pronunciamento nos termos do art. 485.

28
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

reexame questões decididas pelo juiz singular, com o fim de invalidar, esclarecer, re-
formar ou integrar a decisão proferida10.

O recurso é um ato complexo, composto não apenas pelo desejo da parte


vencida de ver sua situação jurídica melhorada com uma possível alteração prove-
niente da reanálise do litígio. Na verdade, o recurso comporta uma série de requisitos,
estabelecidos por lei, para que a questão seja novamente debatida. Nesse sentido, é de
suma importância o entendimento dos juízos realizados em âmbito recursal.
O primeiro juízo realizado na análise do cabimento de um recurso é o de ad-
missibilidade. A admissibilidade do recurso é aferida sob a ótica de ser ou não cabível
o recurso interposto, isto é, analisa-se a possibilidade de o recurso ser ou não averi-
guado em seu mérito, em sua postulação. Sendo positivo o juízo de admissibilidade,
o mérito recursal será debatido. Caso contrário, as postulações feitas no recurso não
serão reapreciadas.
O segundo juízo realizado é, por consequência lógica, o de mérito, entendido
como aquele em que se examina a procedência ou improcedência do que é arguido
no recurso. O juízo de mérito, que deve apresentar causa de pedir e pedidos próprios,
leva à reapreciação daquilo que a parte recorrente entende como errônea, seja por um
error in procedendo, que pode levar à invalidação da decisão prolatada, seja por um
error in iudicando, podendo gerar uma reforma da decisão11.
Entendidas as generalidades, brevemente, acima mencionadas sobre recursos,
é possível adentrar em um conceito, até mesmo intuitivo, do que seja jurisprudência
defensiva. Esse conceito se trata da criação de obstáculos não previstos em legislação
ou que, quando previstos, são reforçados de maneira exacerbada pelos tribunais - em
especial, as instâncias superiores - com o fito de impossibilitar a admissibilidade e, por
consequência, a análise de mérito dos recursos.12
A jurisprudência defensiva manifesta-se, portanto, pela hipervalorização de
procedimentos que, quando realizados erroneamente, servem de justificativa para a
inadmissibilidade do recurso. E isso mesmo que o vício gerado pela prática equivoca-
da seja facilmente corrigida e não cause, a rigor, qualquer dano ao processo. A título

10 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. 13 ed. v.3.
reform. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 87.
11 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: o processo
nos tribunais, recursos, ações de competência originária de tribunal e querela nullitatis, incidentes de com-
petência originária de tribunal. 13 ed. v 3. reform. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 105.
12 VAUGHN, Gustavo Fávero. A Jurisprudência defensiva no STJ à luz dos princípios do acesso à justiça e da
celeridade processual: Revista de Processo, v.254, abril.2016.

29
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

exemplificativo, pode-se citar a inadmissibilidade de recurso por deserção devido ao


preenchimento incorreto da guia de pagamento das custas recursais.

2.2. A Jurisprudência Defensiva e o Novo Código de Processo Civil de 2015

A jurisprudência defensiva é justificada pelos Tribunais Superiores como um


mecanismo pragmático necessário à celeridade processual. Ela tornou-se algo tão cor-
riqueiro e facilmente identificável na praxe forense que os próprios Ministros das
Cortes de Justiça nacionais expressam a sua existência.
Inclusive, proferem-na de maneira taxativa, como se pode perceber do dis-
curso de posse do então Ministro presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ),
Humberto Gomes de Barros, em 2008:
Às vésperas de completar vinte anos, o Tribunal, adolescente,
enfrenta crise de identidade. Preso ao Infernal dilema vê-se na
iminência de fazer uma de duas opções: a) Consolidar-se como
líder e fiador da segurança jurídica, ou b) Transformar-se em
reles terceira instância, com a única serventia de alongar o curso
dos processos e dificultar ainda mais a prestação jurisdicional.
Intoxicado pelos vícios do processualismo e fragilizado pela ine-
ficácia de suas decisões, o Tribunal mergulha em direção a essa
última hipótese. Para fugir a tão aviltante destino, o STJ adotou
a denominada “jurisprudência defensiva” consistente na criação
de entraves e pretextos para impedir a chegada e o conhecimen-
to dos recursos que lhes são dirigidos.13
A simples leitura desse trecho do discurso já deixa transparecer o utilitarismo
da jurisprudência defensiva, vista como forma de diminuir a quantidade de recursos
que chegam ao STJ, mesmo que para isso opere-se um claro desrespeito ao acesso
material à justiça.
O pensamento é singelo. Quanto mais recursos inadmitidos pelo excesso bu-
rocrático e desarrazoado do juízo de admissibilidade, haverá menos análise de mérito
e maior celeridade no julgamento dos recursos já existentes no Tribunal e daqueles
que conseguem ultrapassar a barreira da jurisprudência defensiva.
Para alcançar o objetivo de barrar recursos, a fim de que o STJ não se
sujeite “a tão aviltante destino”, criaram-se inúmeros entendimentos, muitos,
inclusive, sumulados.

13 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Biblioteca Digital Jurídica. Disponível em: <https://bdjur.stj.jus.br/


jspui/bitstream/2011/16933/Discurso_Posse_Gomes%20de%20Barros.pdf>, Acesso em: 01 Dez. 2019.

30
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Diversos são os exemplos que podem ser citados para a elucidação da jurisprudên-
cia defensiva e de sua relação com o atual Código de Processo Civil. Assim, a súmula 418
do aludido tribunal superior aduz ao entendimento de que o recurso especial interposto
antes do julgamento dos embargos de declaração seria considerado intempestivo, caso o
recorrente não ratificasse as razões recursais depois de prolatada a decisão aclaratória.
Essa exigência beira ao absurdo, por óbvio, já que considera intempestivo o
recurso interposto antes de publicada a decisão dos embargos de declaração. O Novo
Código de Processo Civil, seguindo uma linha de combate à jurisprudência defensiva
e de flexibilização das formalidades desnecessárias, tornou sem efeito a referida súmula.
E isso fez ao prever que o recurso interposto antes do termo inicial de con-
tagem do prazo recursal é considerado tempestivo14 e que não havendo alteração do
acórdão impugnado por meio da decisão que julga os embargos de declaração, não se
pode condicionar a análise do recurso à ratificação das razões recursais15.
A prática corriqueira da jurisprudência defensiva afligiu não apenas o princí-
pio da Primazia do Mérito e do Acesso à Justiça, alcançou também o da Fungibilidade
dos Recursos. É que o STJ considerava inadmissível o recurso especial interposto con-
tra acórdão que tratava de matéria constitucional. Isso era também seguido pelo STF,
que entendia como inadmissível o recurso extraordinário interposto contra acórdão
que trabalhara matéria infraconstitucional.
O NCPC traz disposição diversa desse entendimento dos tribunais superio-
res, determinando que, se o recurso especial interposto for inadequado, na visão do
relator por tratar o acórdão de matéria constitucional, deve ele conceder prazo para
que o recorrente demonstre repercussão geral e, então, encaminhará o recurso ao STF,
o qual analisará o seu cabimento16.
Da mesma forma, uma vez interposto recurso extraordinário contra acórdão
que, na visão do relator trata de matéria infraconstitucional, deve ele remeter o caso
ao STJ, que avaliará o cabimento do recurso em juízo de admissibilidade17.

14 § 4º do art. 218 do CPC de 2015 Será considerado tempestivo o ato praticado antes do termo inicial do prazo.
15 § 5º do art. 1.024 do CPC de 2015. O juiz julgará os embargos em 5 (cinco) dias§ 5º Se os embargos de decla-
ração forem rejeitados ou não alterarem a conclusão do julgamento anterior, o recurso interposto pela outra parte
antes da publicação do julgamento dos embargos de declaração será processado e julgado independentemente de
ratificação.
16 Art. 1.032 do CPC de 2015Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa
sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de 15 (quinze) dias para que o recorrente demonstre a existên-
cia de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional.
17 Art. 1033 do CPC de 2015. Se o Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição
afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, remetê-
lo-á ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial.

31
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Assim fica clara a posição do legislador ordinário de ver o mérito do recurso


enfrentado e resolvido, sem a imputação de responsabilidade mútua ente os tribu-
nais superiores, que, evidentemente, utilizam-se dessa recíproca responsabilidade para
inadmitir o recurso.
Ainda a título exemplificativo, este de cunho quase teratológico, vale infor-
mar o entendimento do STJ de que o recurso interposto sem a assinatura do advo-
gado é vício sanável na via ordinária, mas insanável na via extraordinária. Ou seja, é
um exemplo claro de que o posicionamento dessa Corte e o seu intento é no sentido
único de inadmitir recursos.

3. ACESSO À JUSTIÇA, SEGURANÇA JURÍDICA E JURISPRUDÊNCIA


DEFENSIVA

Há um aspecto relevante a ser observado quando da análise da jurisprudência


defensiva. Ele é o seu impacto na produção dos precedentes judiciais, os quais tiveram
a sua importância acrescida no CPC atual.
É que há plasmada no aludido código uma clara preocupação em tratar esta-
bilização – ou uniformização - da jurisprudência brasileira, em especial aquela pro-
duzida pelas Cortes superiores. Assim, existem diversos dispositivos que determinam
a obrigatoriedade de juízes e tribunais observarem a coesão de suas decisões com
aquelas tomadas pelos órgãos de cúpula do Judiciário. Por exemplo, o NCPC dispõe
sobre a obrigatoriedade de serem observadas decisões fixadas em regime de decisões
de demandas repetitivas18.
Essa preocupação do legislador infraconstitucional em gerar mecanismos de
homogeneidade da jurisprudência é fruto da marcante complexidade social brasileira,
que reverbera no Direito19. O intento na nova processualística é evitar ao máximo que o
mesmo caso tenha desfecho diferente ao ser analisado por juízes ou Tribunais diversos.
Caso permitida, essa pluralidade de desfechos viola flagrantemente princípios caros a
um Estado Democrático de Direito, como o da isonomia e o da segurança jurídica.

18 Art. 927 do atual CPC. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle
concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção
de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial
repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior
Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem
vinculados.
19 PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 2 ed. rev. ampl. e atual. Salvador: JusPo-
divm, 2016, p. 29.

32
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O precedente judicial - que não deve ser confundido com jurisprudência ou


súmula - é o ponto de partida que serve de modelo, seja vinculante seja meramente
persuasivo, utilizado pelos órgãos jurisdicionais para decidir um caso semelhante àquele
que serviu de base para a construção do precedente firmado. Trata-se, portanto, de um
pronunciamento judicial anterior que parametriza outras futuras decisões judiciais20.

O intento dos precedentes é, portanto, tornar mais coeso o processo de de-


cisão judicial, fazendo com que o pronunciamento jurisdicional seja minimamente
previsível. Essa nova dinâmica arraigada no novo CPC traz diversos benefícios para
o Direito brasileiro, permitindo, inclusive, uma diminuição da litigiosidade e um
maior estímulo à busca de soluções consensuais nos conflitos de interesse21.
Já se firmou o conceito de jurisprudência defensiva como aquela prática de
extremo formalismo que leva os tribunais, em especial os superiores, a rejeitarem a
análise de mérito. Porém, ao além disso, deve-se verificar as consequências da recusa
da análise de mérito na formação dos precedentes judiciais, na uniformização da ju-
risprudência e na segurança jurídica necessária para a estabilidade social.
Ou seja, é necessário que se observe a compatibilidade entre a prática da juris-
prudência defensiva e o dever legal que os tribunais possuem de, além de firmar enten-
dimentos, torná-los estáveis e previsíveis. Uma vez persistindo a prática da jurisprudên-
cia defensiva, não se pode considerar que as questões jurídicas discutidas nos processos
sejam efetivamente resolvidas dessa forma, tampouco tal forma de agir é razoável.
Basta vislumbrar, a exemplo, a hipótese de determinado recurso ser barrado
pela jurisprudência defensiva e de ele ser, potencialmente, o caso em que determinada
questão jurídica seria resolvida. Assim, perdeu-se a oportunidade de se construir um
precedente que poderia servir de base de decisões supervenientes que se assemelha-
riam ao caso que deveria ter sido analisado, não fosse pela jurisprudência defensiva.
A segurança jurídica, entendida na sua dimensão de valor, também se im-
põe como regra de observância, uma vez que se trata não apenas de um princípio
norteador do ordenamento jurídico pátrio. Ela é, em verdade, um direito ao qual os
cidadãos têm, pois todos devemos ter conhecimento dos padrões de consequências

20 ROMÃO, Pablo Freire; PINTO, Eduardo Régis Girão de Castro. Precedente judicial no novo Código de
Processo Civil: tensão entre segurança e dinâmica do direito. Curitiba: Juruá, 2015, p. 36.
21 “[...] a incerteza quanto ao resultado da atividade jurisdicional é causa de aumento da litigiosidade. Sabedor o
advogado da ausência de chances do cliente diante da pacificação da matéria, desestimula-o à propositura de ação
judicial. De igual modo, o advogado de cliente réu que pretende resistir a pretensão já pacificamente reconhecida
como legítima, em virtude de estar respaldado em precedentes obrigatório, diante da derrota certa, orientará o re-
conhecimento do pedido ou a busca de uma solução consensual”. (cfe. BRANCO, Janaína Soares Noleto. Advo-
cacia pública e solução consensual dos conflitos. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 183)

33
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

jurídicas dos atos que exercemos na vida civil, sendo esse mínimo de previsibilidade
indispensável para a vida em sociedade.22

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Novo Código de Processo Civil é pautado na sistemática de tornar a práti-


ca processual mais simples e cooperativa ao contrário do que era posto no Código de
Processo Civil anterior. Essa nova legislação trouxe diversos institutos aptos a tornar
a prestação jurisdicional mais coerente, coesa e prática.
Nesse contexto, o CPC de 2015 incorporou práticas jurisprudenciais sumu-
ladas, mas também reprimiu diversos entendimentos que consubstanciavam verda-
deiras manobras processuais para impedir a análise de mérito dos litígios levados
ao Poder Judiciário. Trata-se, portanto, de uma nova sistemática processual que se
preocupa com a efetividade dos direitos e que se propõe a tornar o ambiente jurídico
brasileiro mais harmônico e estável.
Como se pode ver do exposto no presente trabalho, constatou-se uma in-
compatibilidade teleológica entre a nova norma processual e a antiga prática dos
Tribunais brasileiros de supervalorizar o aspecto formal em detrimento do de mérito.
Observou-se a preocupação do legislador em combater a jurisprudência defensiva e o
movimento dos tribunais em se adaptarem a esse novo modelo de processo. Assim, o
Judiciário internalizou o objetivo de excluir entendimentos desarrazoados, mas tam-
bém impulsiona iniciativa de tentar manter, em certa medida, suas defesas – remode-
lando as antigas e constituindo novas -, utilizando como principal motivo o excesso
de processos a serem analisados.
Porém, parece de todo claro que não há mais espaço para a jurisprudência
defensiva no Brasil, uma vez que ela viola princípios processuais e constitucionais
extremamente importantes para o Estado Democrático brasileiro após 1988. Não
há como se admitir que, em favor de uma fundamentação utilitarista e pragmática,
o Poder Judiciário se abstenha de dar efetivo acesso à justiça aos seus jurisdicionados,
resolvendo em definitivo suas demandas.

22 “A segurança jurídica, ao ser inserida nesse aspecto [valor], estaria relacionada com a ideia de que é bom que
se tenha um ordenamento jurídico seguro, que permita às pessoas um exercício de previsibilidade de seus próprios
atos e omissões”. (cf. PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 2 ed. rev. ampl. e atual.
Salvador: JusPodivm, 2016, p. 44)

34
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

REFERÊNCIAS
BRANCO, Janaína Soares Noleto. Advocacia pública e solução consensual dos conflitos. Sal-
vador: Editora JusPodivm, 2018, 240p.

BRASIL. Lei 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acessado em 03 de No-
vembro de 2019.

CÂMARA, Alexandre Freitas. O Princípio da Primazia da Resolução do Mérito e o Novo Código


de Processo Civil: Revista EMERJ, v.18, n.70, p. 42-50, set/out.2015.

CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie North-
fleet. Porto Alegre: Fabris, 1988;

DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. 13. ed.
reform. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. V.3. 720 p.

PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 2. ed. rev. ampl. e atual. – Sal-
vador: JusPODIVM,2016. p.29;

ROMÃO, Pablo Freire. Precedente judicial no novo Código de Processo Civil: tensão entre
segurança e dinâmica do direito. Curitiba: Juruá, 2015, 240p. pag. 36;

SENADO FEDERAL. Subsecretaria de Edições Técnicas. Disponível em: http://www2.senado.


 
leg.br/bdsf/handle/id/496296, Acesso em: 01 Dez. 2019.

SILVA, José Afonso da. Acesso à Justiça e Cidadania. Revista de Direito Administrativo, v. 216,
p. 09-23, abr./jun. 1999;

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Biblioteca Digital Jurídica. Disponível em: https://


bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/16933/Discurso_Posse_Gomes%20de%20Barros.pdf,
Acesso em: 01 Dez. 2019.

VAUGHN, Gustavo Fávero. A Jurisprudência defensiva no STJ à luz dos princípios do acesso à
justiça e da celeridade processual. Revista de Processo, v.254, abril. 2016.

35
Capítulo 3
A ADVOCACIA DATIVA E
SUAS IMPLICAÇÕES PARA
A EFETIVAÇÃO DO ACESSO
A JUSTIÇA POR MEIO DA
DEFENSORIA PÚBLICA

SUMÁRIO: Introdução; 1. O Surgimento da Assistência Judiciária e Jurídica; 2. A


Consolidação Da Advocacia Dativa No Brasil; 3. O Papel da Defensoria Pública No Brasil;
4. Os Custos Da Manutenção Da Advocacia Dativa; Conclusão. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 3

A ADVOCACIA DATIVA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A EFETIVAÇÃO


DO ACESSO A JUSTIÇA POR MEIO DA DEFENSORIA PÚBLICA

Maria Clara Fernandes Ribeiro Neta1

INTRODUÇÃO

A democratização do acesso à justiça teve como escopo garantir que as pessoas


consideradas pobres e sem condições de financiar as despesas processuais para defesa
de seus interesses tivessem a possibilidade de, com ajuda da assistência judiciária,
reivindicar seus direitos. Desde então formas de manutenção de um sistema de apoio
àqueles mais vulneráveis foram sendo aperfeiçoadas e testadas ao redor do mundo.
Atualmente, no Brasil, vigora dois modelos de assistência, aquele feito pelo dativo, que
se restringe ao curso do processo judicial, e a assistência em decorrente da instituição
da Defensoria Pública, a qual permite um apoio mais amplo ao assistido, tratando-se
de uma assistência jurídica que garante consultoria antes da litigância, bem como o
patrocínio da causa frente ao judiciário. Todavia, os custos com a manutenção desses
dois sistemas têm impactado negativamente os cofres públicos, e assim, limitado o
acesso à assistência judiciária ampla por meio da Defensoria Pública.

2. O SURGIMENTO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA E JURÍDICA

A acepção do acesso à jurisdição como um direito natural somente foi


visualizada como responsabilidade do Estado com a adoção do welfare state. A partir
do reconhecimento da importância dos direitos sociais, instituiu-se a preocupação
com as classes menos favorecidas e hipossuficientes. Para Mauro Cappelletti2, a
assistência jurídica encontrou terreno fértil nesse período em que a organização social
passava por diversas transformações:
O recente despertar de interesse em torno do acesso efetivo à Justiça
levou a três posições básicas, pelo menos nos países do mundo

1 Aluna do 9º semestre de Direito, estagiária do TJCE, Diretora do corpo editorial da Revista Dizer da Faculdade
de Direito da UFC.

2 CAPPELLETTI, Mário; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1988. p. 17 e 18. (Reimpresso/2002). Tradução e Revisão por Ellen Gracie
Northfleet.

39
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Ocidental. Tendo início em 1965, estes posicionamentos emergiram


mais ou menos em sequência cronológica. Podemos Afirmar que a
primeira solução para o acesso - a primeira “onda” desse movimento
novo - foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas
tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses
“difusos”, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do
consumidor; e o terceiro - e mais recente é o que nos propomos a
chamar simplesmente “enfoque de acesso à justiça” porque inclui os
posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando,
dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo
mais articulado e compreensivo.

Dessa forma, o cenário internacional passou a considerar o acesso à justiça


como um direito fundamental, primeiramente através da Declaração Universal de
Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Organização das Nações Unidas em
1948, na qual em seu art. 8º preleciona que toda pessoa “tem direito a receber dos
tributos nacionais competentes, remédio efetivo para os atos que violem os direitos
fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.
Ainda, a Convenção Europeia de Direitos Humanos, aprovada pelo Conselho
da Europa, em 1950, demonstra expressamente a necessidade de se garantir a
viabilização de um processo equitativo e que qualquer pessoa possa ter suas demandas
devidamente analisadas.
Nesse diapasão, foi proclamada pelo Parlamento Europeu, em dezembro de
2000, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que em seu art. 47
faz menção expressa ao direito à assistência judiciária àqueles que não disponham de
recursos suficientes, “na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a
efetividade do acesso à justiça”.
Nessa toada, os países passaram a desenvolver técnicas de assistência judiciária
para auxiliar aqueles considerados pobres na forma da lei em seus respectivos processos
judiciais. No caso, deve-se atentar que consistia na defesa única dos interesses pessoais
de cada assistido e não na defesa coletiva dos direitos de uma classe social.
Anteriormente à atitude positiva do Estado na concreta efetivação dos
direitos sociais, os advogados voluntariamente selecionavam casos e os patrocinavam
gratuitamente. Com a tomada da responsabilidade, o Estado passou a remunerar tais
atividades, o que ficou conhecido por Sistema Judicare.

40
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Contudo, tal modelo era ineficiente, uma vez que a assistência judiciária era
muito limitada àquelas causas já judicializadas, encontrando óbice, ainda, na crescen-
te demanda de litígios frente a uma maior proteção dos direitos, na disponibilidade
dos advogados que se prestassem gratuitamente a ceder tempo e esforço, na expe-
riência profissional daqueles que tinham interesse em oferecer seus serviços. Havia o
problema das pequenas causas e o risco de perder que muitos assistidos não poderiam
suportar, e também o esquecimento dos interesses coletivos e difusos. Tudo isso de-
mandou a criação de novos modelos de assistência jurídica.

A primeira noção de assistência jurídica surgiu com o sistema de advogados


remunerados pelos cofres públicos, por meio do qual “os serviços jurídicos deveriam
ser prestados por “escritórios de vizinhança”, atendidos por advogados pagos pelo
governo e encarregados de promover os interesses dos pobres, enquanto classe3.”
No Brasil, a preocupação com o acesso à justiça iniciou-se, timidamente,
ainda no Brasil Imperial. As primeiras leis que regulamentavam as custas em processos
penais4 e cíveis5 trouxeram certas isenções aos pobres, o que não era o suficiente para
garantir a defesa de seus direitos, mas pode ser considerado um marco inicial.
Atualmente, o acesso à justiça é considerado direito fundamental, consagrado
na Constituição Federal. O art. 5º da Carta Magna prevê a responsabilidade do
Estado em possibilitar o alcance do judiciário e o direito à ação, de forma que haja a
disponibilização de assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados. Para isso,
o Estado mantém dois modelos de assistência que serão explorados a seguir.

3. A CONSOLIDAÇÃO DA ADVOCACIA DATIVA NO BRASIL

Nabuco de Araújo, Ministro de Justiça do Império do Brasil, inspirado


pelo Código de Assistência Judiciária Francês de 1851, apontou a necessidade de
criação de um conselho, pelo Instituto dos Advogados do Rio de Janeiro, capital
do país à época, com o intuito de prestar “assistência judiciária aos indigentes nas

3 CAPPELLETTI, Mário; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 1988. p. 15. (Reimpresso/2002). Tradução e Revisão por Ellen Gracie Northfleet
4 Lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841, que no art. 99 dispõe: “Sendo o réo tão pobre, que
não possa pagar as custas, perceberá o Escrivão a metade dellas do Cofre da Câmara Municipal
da Cabeça do Termo, guardando o seu direito contra o réo quanto à outra metade.” Ou seja, o
pagamento da outra metade dependia de que o réu melhorasse de fortuna, como expressamente
veio a ser previsto no Regulamento nº 120, de 31/01/1842.
5 BRASIL, lei nº150, de 9 de Abril de 1842, publicada em 9 de Abril de 1842 (art. 10).

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

causas cíveis e crimes, dando consultas e encarregando a defesa dos seus direitos a
algum membro do Conselho ou do Instituto6”.
Com a proclamação da República, o Governo Provisório baixou o Decreto
de nº 1.030, em dezembro de 1890, o qual tinha como principal objetivo regular
o funcionamento da justiça no Distrito Federal. Em seu art. 175 previa a criação,
na capital, de um serviço de assistência judiciária aos pobres, determinando que
o Ministério da Justiça estaria autorizado a organizar uma comissão de patrocínio
gratuito aos pobres no crime e cível, ouvindo o Instituto da Ordem dos Advogados.
Nada foi feito para concretização da comissão até o ano de 1897, no qual a Presidência
da República criou o serviço oficial de Assistência Judiciária para o Distrito Federal,
por meio do Decreto nº 2.457, sendo este totalmente custeado com recursos públicos.
Com o aumento da demanda processual envolvendo a população mais
vulnerável, de diversas localidades, percebeu-se a dificuldade de efetivação da jurisdição
apenas com uma forma de assistência. O patrocínio gratuito pelo advogado privado,
muitas vezes, era prejudicado por não haver voluntários suficientes, bem como, o
acesso à justiça era limitado em razão da capacidade técnica dos advogados livres para
prestar a assistência. Enquanto isso, a figura do advogado custeado pela administração
pública começava a se estabelecer em alguns Estados.
Cleber Francisco Alves7 ressalva que à época coexistiam as práticas de
patrocínio gratuito pelos próprios advogados e o custeamento pelo Poder Público:
Nos trinta anos que se seguiram à fundação desse primeiro serviço
de assistência judiciária no Rio de Janeiro, a ideia se propagou para
outros Estados brasileiros. Embora persistisse a praxe de os advogados
prestarem patrocínio gratuito aos pobres, como dever moral inerente
à profissão, a experiência do serviço público implantado no então
Distrito Federal mostrava que essa forma de assistência judiciária era
muito mais eficiente e apropriada. Por volta do ano de 1910 “elevou-
se sobremaneira o número de causas patrocinadas pelo serviço do Rio
de Janeiro, com o benefício da assistência judiciária sendo fornecido
até nos foros federais”

6 SILVEIRA, Alfredo Balthazar da. O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros:


Memória Histórica da sua Fundação e da sua Vida 1843-1943. Rio de Janeiro, 1944, p 54-56.
7 ALVES, Cleber Francisco. A estruturação dos serviços de Assistência Jurídica nos Estados
Unidos, na França e no Brasil e sua contribuição para garantir a igualdade de todos no Acesso
à Justiça. 2005. 606 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

42
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

As respectivas legislações estaduais abrangiam as questões relacionadas com a


gratuidade da justiça juntamente com a garantia do patrocínio judiciário. Mas, por se
tratar de legislações especificamente locais, havia uma diferenciação nas isenções que
nem sempre abrangiam todas as custas e taxas, bem como nas questões relacionadas
com patrocínio das causas; portanto, existia uma não uniformidade conquanto ao
acesso à justiça no Brasil.
A criação da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil, em 1930, e sua
regulamentação, em 1931, pelo Decreto nº 20.784 colocou a assistência jurídica sob
a jurisdição exclusiva da OAB, de forma que o dever dos advogados de assumir o
patrocínio gratuito das pessoas pobres em juízo adquire natureza jurídica e deixa de
ser apenas um dever moral. Ainda, prelecionava o art. 27, inciso XII do supracitado
decreto, ser falta de ética do advogado “aceitar honorários, ou qualquer recompensa,
quando funcionar pela Assistência Judiciária ou nos casos de nomeação pelo juiz, de ofício,
salvo se a parte contrária tiver sido condenada a satisfazê-los, por decisão judicial”.
A atribuição de responsabilidade sobre a assistência jurídica somente foi
efetivamente imposta ao Estado com a promulgação da Constituição de 1934, a
qual teve bastante influência da Constituição de Weimar, da Alemanha, e por isso,
buscou efetivar os direitos sociais que emergiam no novo cenário de Estado Social na
Europa. Acontece que em 1937, no contexto histórico do Estado Novo, implantado
por Getúlio Vargas, foi outorgada uma nova Constituição, a qual se portou omissa
em relação à garantia do acesso à justiça.
Restou à legislação infraconstitucional o dever de regulamentação. O Código
de Processo Civil de 1939 garantia, em seu art. 68, a nomeação de advogado para
assistir àqueles beneficiários da justiça gratuita e estabelecia que a remuneração a
este só seria devida quando o assistido fosse vencedor da causa, integrando as custas
processuais imputadas ao sucumbente (art. 76). Também previa o assunto, de forma
semelhante, o Primeiro Estatuto da Advocacia, Lei nº4.215/1963, ao tratar da
gratuidade do serviço prestado (art. 87, XI, 92, 94 e 103, XII e XVIII), excetuando a
atuação na esfera criminal (art. 30).
Nessa toada, o Código de Processo Penal, editado em 1941, estipula a
nomeação de advogado dativo quando o réu não constituir advogado particular (art.
261 e 263), tratando como obrigação do advogado aceitar o patrocínio, e, não sendo
o réu pobre, a este caberia pagar os honorários dativos (art. 263, parágrafo único).
Nesse contexto, em 1950 foi aprovada a Lei nº 1.060, específica sobre a assistência
judiciária às pessoas pobres, de forma que esta seria dever dos poderes públicos, federal

43
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

e estadual, sendo a nomeação do advogado particular para prestar tal serviço somente
no caso de ausência do serviço público respectivo. Essa lei permitiu que os governos
estaduais instituíssem suas assistências judiciárias, o que ocorreu, em sua maioria, sob
a coordenação das Procuradorias-Gerais dos respectivos estados8:
Em Minas Gerais isto ocorreu com o Decreto-lei 2131/47 e Decreto
2841/47; em São Paulo, com o Decreto-lei 17.330/47; na Cidade
do Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, com a Lei 216/48; no
antigo Estado do Rio de Janeiro, em 1954, com a Lei 2188/54; em
Pernambuco, também em 1954, com a lei 2028/54, dentre outros.
A Lei 2188/54, do antigo Estado do Rio de Janeiro tem especial
importância pois foi pioneira no contexto da legislação brasileira
no sentido de lançar as bases do que futuramente viria a ser a atual
instituição da Defensoria Pública.

Por meio do provimento nº 210, de 28 de maio de 1981, emanado do Conselho


da Justiça Federal, uma vez que não foi criado nenhum serviço público adequado para
prover a assistência judiciária das pessoas necessitadas na seara federal, a parte que
não pudesse arcar com despesas de advogado seria auxiliada por advogados “dativos”
designados pelos Juízes. Contudo, a remuneração dos advogados dativos seria paga
pela parte contrária, caso obtivesse êxito na demanda. Se a parte patrocinada fosse
sucumbente, caberia à própria Justiça Federal o pagamento dos honorários.
Diante do conflito teleológico entre as normas referentes à assistência judiciária,
o Supremo Tribunal Federal9, decidiu que caberia à Fazenda Pública Estadual arcar
com as custas processuais nos casos de assistência gratuita a réus pobres, no âmbito
penal. Tal garantia de remuneração ao advogado dativo somente se consolidou cerca
de 10 anos depois, com o advento do atual Estatuto da Advocacia, Lei 8.906/1994,
já sob o regime Constitucional de 1988, o qual prevê que:

8 ALVES, Cleber Francisco. A estruturação dos serviços de Assistência Jurídica nos Estados
Unidos, na França e no Brasil e sua contribuição para garantir a igualdade de todos no Acesso
à Justiça. 2005. 606 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p.284/285.
9 HONORARIOS DE ADVOGADO. DEFENSOR DATIVO DE REUS POBRES EM PROCESSOS
CRIMINAIS. INEXISTINDO, JUNTO AO ÓRGÃO JUDICIARIO, SERVIÇO OFICIAL DE ASSISTENCIA
GRATUITA A REUS POBRES, EM PROCESSO CRIME, E CABIVEL O PAGAMENTO, NESSES CASOS,
PELA FAZENDA ESTADUAL, DE VERBA HONORARIA AOS ADVOGADOS NOMEADOS PELO JUIZ,
PARA TAL FIM. FIXAÇÃO QUE, NO CASO, E RELEGADA, POREM, PARA A LIQUIDAÇÃO POR
ARBITRAMENTO. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 153, PARAGRAFO 32, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
E 30 DA LEI N. 4215/63. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARCIALMENTE CONHECIDO. STF, RE nº
103950, Relator Min. OSCAR CORRÊA, Relator p/ Acórdão Min. SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado
em 14/08/1985, DJ 11-10-1985 PP-17477 EMENT VOL-01395-04 PP-00636 RTJ VOL00115-02 PP-00878.

44
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na


OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbi-
tramento judicial e aos de sucumbência.
§ 1º O advogado, quando indicado para patrocinar causa de juri-
dicamente necessitado, no caso de impossibilidade da Defensoria
Pública no local da prestação de serviço, tem direito aos honorários
fixados pelo juiz, segundo tabela organizada pelo Conselho Seccional
da OAB, e pagos pelo Estado.

Conclui-se que advocacia dativa, com o surgimento da imputação de assistência


jurídica ao Estado, passou a ser considerada uma atividade subsidiária. Assim, tentando
zelar pela manutenção de um advogado exclusivamente público, iniciou-se a onda de
criação das Defensorias Públicas Estaduais, de forma que a atividade exercida pelo
advogado privado pudesse se dar excepcionalmente, principalmente em razão de seu
caráter individual e pessoal.

4. O PAPEL DA DEFENSORIA PÚBLICA NO BRASIL

No âmbito do contexto social de redemocratização que consagrava a década de


80, ocorreu a reunião de diversas figuras emblemáticas para o Direito e para a política
em uma Assembleia Constituinte para estabelecerem as novas bases constitucionais
do país. Diante da existência de advogados públicos instituídos através das respectivas
legislações estaduais, conta Francisco Cleber Alves10 que tais defensores realizaram um
verdadeiro lobby para garantir a consagração da Defensoria Pública como órgão do
Estado indispensável ao exercício da função jurisdicional previsto constitucionalmente.
Nesse sentido, o Desembargador José Carlos Barbosa Moreira, em uma palestra
no dia 30 de outubro de 1990, em evento voltado para os Defensores Públicos do Rio
de Janeiro assim defendeu a nova visão de assistência jurídica garantida na Carta Magna:
“A Constituição abandona aquela orientação restritiva de cuidar do
assunto unicamente com referência à defesa em juízo; abandona a
concepção de uma assistência puramente judiciária, e passa a falar
em ‘assistência jurídica integral’. Obviamente alarga de maneira
notável o âmbito da assistência que passa a compreender, além da
representação em juízo, além da defesa judicial, o aconselhamento, a
consultoria, a informação jurídica e também a assistência aos carentes
em matéria de atos jurídicos extra-judiciais, como por exemplo, os

10 ALVES, Cleber Francisco. A estruturação dos serviços de Assistência Jurídica nos Estados Unidos, na França
e no Brasil e sua contribuição para garantir a igualdade de todos no Acesso à Justiça. 2005. 606 f. Tese (Doutorado)
- Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005, p. 290 a 293.

45
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

atos notariais e outros que conhecemos. Ora, essa inovação tem uma
importância que não pode ser subestimada, porque justamente um
dos fatores que mais contribuem para perpetuar as desigualdades
nesse campo é, repito, a falta de informação. Acredito que haja uma
enorme demanda reprimida de prestação jurisdicional, resultante
da circunstância de que grande parcela, larga faixa da população
do nosso país, pura e simplesmente, não tem qualquer informação
sobre os seus direitos. Haverá também, do lado oposto, a vantagem
consistente em, por meio da assessoria, do aconselhamento,
prevenir certo número de litígios que só acabam por ser levados ao
Judiciário exatamente em razão da pouca informação, em razão do
desconhecimento, em razão da apreciação errônea que as pessoas
fazem das suas próprias situações jurídicas.11”

Esta previsão só viria a se efetivar em 1994, com a publicação da Lei


Complementar nº 80 - Lei Orgânica da Defensoria Pública, atualizada pela Lei
Complementar nº132/2009. Sendo tal lei responsável por regular e organizar a
atividade da defensoria pública no Brasil, uniformizando a atuação dos defensores e
atrelando as funções institucionais do órgão a uma concreta assistência jurídica:
Art.  4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre
outras:
I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em
todos os graus;
III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos,
da cidadania e do ordenamento jurídico; 
VI – representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos, postulando perante seus órgãos;
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes
de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou
individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder
beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes;
VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos,
coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na
forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal;    

11 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “O direito à assistência jurídica”. In: Revista de Direito da Defensoria
Pública do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ano 4, n º 5, 1991. p. 130

46
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos


necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais,
econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as
espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela;
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança
e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades
especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de
outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do
Estado:
XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de
internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob
quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias
fundamentais;
XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas
vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra
forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o
atendimento interdisciplinar das vítimas.

O próprio texto da lei nos permite vislumbrar o alcance da Defensoria Pública,


que não apenas se detém ao acompanhamento processual, como se perfaz o advogado
dativo, mas que adquire um papel de democratizar a informação e, assim, conscientizar
as classes de seus direitos, concretizando verdadeiramente o acesso à justiça.

5. OS CUSTOS DA MANUTENÇÃO DA ADVOCACIA DATIVA

Com a previsão constitucional da Defensoria Pública, incluindo-a dentre


as “funções essenciais à justiça”, ao lado do Ministério Público e da advocacia, a
remuneração de seu quadro de servidores deve observar os limites estabelecidos pelo
art. 37, inciso XI da CF/88:
XI - a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e
empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional,
dos membros de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, dos detentores de mandato eletivo
e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie
remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as
vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão
exceder o subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo
Tribunal Federal, aplicando-se como limite, nos Municípios, o

47
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

subsídio do Prefeito, e nos Estados e no Distrito Federal, o subsídio


mensal do Governador no âmbito do Poder Executivo, o subsídio
dos Deputados Estaduais e Distritais no âmbito do Poder Legislativo
e o subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado
a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio
mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no
âmbito do Poder Judiciário, aplicável este limite aos membros do
Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos; 

Dessa forma, garante-se um maior controle sobre os gastos da Administração


Pública com a manutenção das defensorias. Tal controle não pode ser garantido com
o pagamento dos honorários dos advogados dativos.
Superada a questão acerca da responsabilidade pelo pagamento dos honorários,
vez que o §1º do art. 22 da Lei 8.906/1994 atribui ao Estado, resta estabelecer os
parâmetros para fixação dos valores devidos, visto que caberá ao juiz nomear o
advogado dativo e, na sentença, arbitrar a quantia respectiva observando a tabela
estabelecida pela respectiva Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.
A tabela preestabelecida organiza-se a partir das ações desempenhadas pelo
advogado no processo, variando, por exemplo, no Estado do Ceará12, de acordo
com o valor da UAD – Unidade Advocatícia. Entre as ações previstas, incluem-
se as atividades extrajudiciais, como o acompanhamento de depoimento pessoal
ou inquirição de testemunhas, performances no âmbito do direito administrativo,
dos juizados especiais, da matéria cível, da recuperação de empresas, dos auxílios
previdenciários, das causas trabalhistas, do direito tributário e em relação às dívidas
fiscais, do direito eleitoral, do direito penal, da justiça militar e atividades envolvendo
a atuação perante os tribunais.
A variação de valores se dá de acordo com a tarefa exercida pelo defensor
nomeado, que pode variar, de 5 UAD’s até 1.000 UAD’s. De forma que 8 UAD’s
equivalem a uma mera consulta jurídica e 1.000 UAD’s à Representação em
dissídio, acordo ou convenção coletiva de sindicato com mais de 30 empresas.
Obviamente esses são os extremos da tabela, porém atividades rotineiras, como a
defesa em procedimento do júri (desde a denúncia até a sentença de pronúncia)
consiste em 360 UAD’s.

12 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seccional Ceará. Tabela de Honorários. 2015. Disponível em:
<http://oabce.org.br/servicos/tabela-honorarios/>. Acesso em: 05 nov. 2019.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Já o Estado do Paraná13 estabelece valores mínimos, que variam de R$ 250,00


e R$ 850,00, e máximos, que flutuam entre R$ 400,00 e R$ 1.200,00, para as diversas
formas de atuação do advogado dativo.
Os valores previstos na Tabela de Honorários do Mato Grosso14, assim como
no Ceará, são bem mais expressivos do que no Paraná. Por exemplo, a atuação em todo
o curso do procedimento do Tribunal do Júri até a sustentação da tribuna equivale,
no mínimo, a R$ 27.855,46, bem como aquela no âmbito das ações de interesse
Coletivo que garante a remuneração de R$ 18.570,31.
Dessa forma, conclui-se que não há uma uniformização nas tabelas, uma vez
que cada Estado e sua respectiva seccional da OAB estipulam conforme os critérios
de discricionariedade que atendem à região.
O Superior Tribunal de Justiça15, porém, em julgado recente, decidiu
em regime de recursos repetitivos (TEMA 984) e firmou a tese de que os valores
estabelecidos na tabela organizada pelo respectivo Conselho Seccional da Ordem
dos Advogados a título de verba advocatícia devida a advogados dativos nem sempre
serão obrigatórios. Portanto, não vinculam o magistrado no momento de arbitrar
o valor da remuneração a que faz jus o defensor dativo que atua no processo penal,
servindo apenas de referência para definição de limites justos, de forma que, se o juiz
da causa considerar desproporcional a quantia indicada na tabela da OAB em relação
aos esforços despendidos pelo defensor dativo para os atos processuais praticados,
poderá, motivadamente, arbitrar outro valor. O tribunal superior faz a ressalva para
às tabelas produzidas mediante acordo entre o Poder Público, a Defensoria Pública
e a seccional da OAB, as quais serão vinculativas, quanto aos valores estabelecidos
para os atos praticados por defensor dativo. Dessa forma, por exemplo, respeitando o
disposto no art. 105, parágrafo único, II, da Constituição da República, terá caráter
vinculante a Tabela de Honorários da Justiça Federal.
Diante da inconstância dos valores devidos, o Estado não tem como
prever os gastos anuais nem compilar o efetivamente pago, sendo que, por vezes,
essas quantias poderiam ampliar o trabalho da Defensoria Pública. É o que relata
reportagem do Século Diário:

13 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seccional Paraná. Tabela de Honorários Dativos. 2019.
Disponível em: <http://advocaciadativa.oabpr.org.br/tabela-de-honorarios-dativos>. Acesso em: 05 nov. 2019.
14 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seccional Mato Grosso. Tabela de Honorários 2019. 2019.
Disponível em: <https://www.oabmt.org.br/tabela-honorarios>. Acesso em: 05 nov. 2019.
15 STJ, REsp nº1656322/SC, Terceira Seção, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, julgado em 23/10/2019,
DJe 04/11/2019.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Enquanto a Defensoria Pública do Espírito Santo (DPES) tem,


atualmente, 52 das 78 comarcas sem a atuação de defensores públicos
por falta de recursos públicos devido ao encolhimento do orçamento,
o Governo do Estado gastou no mínimo – apenas no ano de 2018 -
cerca de R$ 18 milhões com advogados dativos, que atuam onde não
existe defensor concursado e são nomeados aleatoriamente por um
juiz quando algum cidadão que não tem recursos precisa de defesa.16

Nesse mesmo sentido, reportagem do Diário do Nordeste17 expõe as incongruências


do sistema pautado na nomeação de advogado dativo. Registrou-se que dentro de um mês,
determinado advogado recebeu dos cofres públicos do Ceará a quantia de R$ 94.232,20,
demonstrando a desproporcionalidade desses pagamentos. Ademais, somente em 2018
o Estado desembolsou cerca de R$ 2,3 milhões para esses profissionais. 
Enquanto isso, no Ceará, há 148 postos vagos de defensores públicos, ao passo
que 100 aprovados no último concurso, de 2015, ainda esperam pela sua nomeação.
Além desse déficit, registra-se que apenas 45 dos 184 municípios cearenses possuem
defensores públicos, o que somente contribui para a extensão dos gastos com os dativos.
A questão, também foi alvo de críticas no Mato Grosso do Sul diante dos
altos valores repassados a título de honorários de defensor dativo.
O defensor público-geral do Estado de Mato Grosso, Clodoaldo
Aparecido Gonçalves de Queiroz, afirmou que os gastos com advocacia
dativa em municípios onde não há Defensoria Pública poderiam ser
80% menores, caso houvesse defensores nestes locais. Ele ainda afirmou
que seria necessária apenas a nomeação de 32 defensores para atender
as 35 comarcas que estão desassistidas. Ele calculou que, enquanto o
custo com advogados por comarca é de cerca de R$ 1,2 milhão por
ano, com a Defensoria seria de R$ 250 mil.18

16 GASTOS DE R$ 18 MILHÕES COM DATIVOS PODERIAM AMPLIAR TRABALHO DA DEFENSORIA:


O montante pago a advogados em 2018 para suprir ausência de defensores deveria garantir novas nomeações.
Século Diário, Espírito Santo, 06 abr. 2019. Disponível em: <https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/
gastos-de-r-18-milhoes-com-dativos-poderiam-ampliar-trabalho-da-defensoria>. Acesso em: 05 nov. 2019.
17 GASTO MILIONÁRIO COM SUBSTITUTOS DE DEFENSORES É INCÓGNITA NO CEARÁ: Segundo dados
do Diário da Justiça, o Estado desembolsou pelo menos R$ 2,3 milhões com os chamados advogados dativos no ano
passado. O valor, porém, pode ser ainda maior, já que falta mais transparência em relação aos custos. Diário do Nordeste,
Fortaleza, 26 abr. 2019. Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/politica/gasto-
milionario-com-substitutos-de-defensores-e-incognita-no-ceara-1.2092555>. Acesso em: 05 nov. 2019.
18 DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DIZ QUE CUSTO COM ADVOGADOS É 80% MAIOR DO QUE SERIA
COM DEFENSORIA. Olhar Jurídico, Mato Grosso, 24 ago. 2019. Disponível em: <https://www.olharjuridico.
com.br/noticias/exibir.asp?id=41067¬icia=defensor-publico-geral-diz-que-custo-com-advogados-e-80-maior-do-
que-seria-com-defensoria>. Acesso em: 05 nov. 2019.

50
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CONCLUSÃO

É possível concluir que os custos com a manutenção do sistema de assistência


judiciária através do advogado nomeado não resolvem o problema do acesso à Justiça
no Brasil, mormente porque a atuação desses profissionais está limitada às questões
judicializadas, não abarcando o problema da democratização do conhecimento acerca
dos interesses coletivos e difusos, bem como dos interesses individuais, já que nas
comarcas que não possuem defensoria, a população costuma ser leiga, em decorrência
da situação de vulnerabilidade que normalmente se encontram.
Constata-se, também, que a falta de uniformidade na remuneração do advogado
dativo reflete em situações desproporcionais e inusitadas, e com a nova orientação do
Superior Tribunal de Justiça, há uma margem maior para a discricionariedade do
judiciário para arbitrar os honorários do dativo.
Ademais, os defensores públicos possuem remuneração fixa para realizar as
diversas atividades inerentes à assistência jurídica, não recebendo por ato praticado,
mas pelo conjunto de serviços prestados durante o mês. Isso torna o pagamento do
salário de um defensor público muito mais lucrativo para o Estado do que remunerar
cada ação praticada ao longo do processo.
É bem verdade que o dinheiro gasto pelas administrações públicas estaduais
poderia ser revertido para o aumento do quadro funcional de suas respectivas
defensorias, já que é evidente a possibilidade de contenção de gastos com as comarcas
desamparadas, frente a nomeação de pelo menos um defensor público na região, suprindo
as nomeações discricionárias do judiciário evitando o dispêndio de dinheiro com o
arbitramento de honorários para cada ato praticado isoladamente pelo advogado dativo.

REFERÊNCIAS
CAPPELLETTI, Mário; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris
Editor, 1988. (Reimpresso/2002). Tradução e Revisão por Ellen Gracie Northfleet.

BRASIL, lei nº261, de 3 de Dezembro de 1841, publicada em 11 de Dezembro de 1841.

BRASIL, lei nº150, de 9 de Abril de 1842, publicada em 9 de Abril de 1842.

DA SILVEIRA, Alfredo Balthazar. O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros: Memória


Histórica da sua Fundação e da sua Vida 1843-1943. Rio de Janeiro, 1944.

ALVES, Cleber Francisco. A estruturação dos serviços de Assistência Jurídica nos Estados Unidos,
na França e no Brasil e sua contribuição para garantir a igualdade de todos no Acesso à Justiça.
2005. 606 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

51
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (Paraná).  Tabela de Honorários Dativos.  2019.


Disponível em: <http://advocaciadativa.oabpr.org.br/tabela-de-honorarios-dativos>. Acesso em:
05 nov. 2019.

ALVES, Cleber Francisco. A estruturação dos serviços de Assistência Jurídica nos Estados Unidos,
na França e no Brasil e sua contribuição para garantir a igualdade de todos no Acesso à Justiça.
2005. 606 f. Tese (Doutorado) - Curso de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

STF, RE nº 103950, Relator Min. OSCAR CORRÊA, Relator p/ Acórdão Min. SYDNEY SAN-
CHES, Tribunal Pleno, julgado em 14/08/1985, DJ 11-10-1985 PP-17477 EMENT VOL-
01395-04 PP-00636 RTJ VOL00115-02 PP-00878.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. “O direito à assistência jurídica”. In: Revista de Direito da
Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Ano 4, n º 5, 1991.

BECUE, Sabrina Maria Fadel. Advocacia dativa: natureza jurídica dos honorários dativos e suas
repercussões jurídicas. Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia da OAB-PR, Paraná, v.
9, n. 1, p.1-20, maio 2019.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seccional Ceará. Tabela de Honorários. 2015.


Disponível em: <http://oabce.org.br/servicos/tabela-honorarios/>. Acesso em: 05 nov. 2019.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seccional Paraná. Tabela de Honorários Dati-


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Acesso em: 05 nov. 2019.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Seccional Mato Grosso. Tabela de Honorários


2019. 2019. Disponível em: <https://www.oabmt.org.br/tabela-honorarios>. Acesso em: 05
nov. 2019.

STJ, REsp nº1656322/SC, Terceira Seção, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, julgado
em 23/10/2019, DJe 04/11/2019;

GASTOS DE R$ 18 MILHÕES COM DATIVOS PODERIAM AMPLIAR TRABALHO DA


DEFENSORIA: O montante pago a advogados em 2018 para suprir ausência de defensores
deveria garantir novas nomeações. Século Diário, Espírito Santo, 06 abr. 2019. Disponível em:
<https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/gastos-de-r-18-milhoes-com-dativos-pode-
riam-ampliar-trabalho-da-defensoria>. Acesso em: 05 nov. 2019.

GASTO MILIONÁRIO COM SUBSTITUTOS DE DEFENSORES É INCÓGNITA NO


CEARÁ: Segundo dados do Diário da Justiça, o Estado desembolsou pelo menos R$ 2,3 milhões
com os chamados advogados dativos no ano passado. O valor, porém, pode ser ainda maior, já
que falta mais transparência em relação aos custos. Diário do Nordeste, Fortaleza, 26 abr. 2019.
Disponível em: <https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/politica/gasto-miliona-
rio-com-substitutos-de-defensores-e-incognita-no-ceara-1.2092555>. Acesso em: 05 nov. 2019.

DEFENSOR PÚBLICO-GERAL DIZ QUE CUSTO COM ADVOGADOS É 80% MAIOR


DO QUE SERIA COM DEFENSORIA. Olhar Jurídico, Mato Grosso, 24 ago. 2019. Dispo-
nível em: <https://www.olharjuridico.com.br/noticias/exibir.asp?id=41067¬icia=defensor-pu-
blico-geral-diz-que-custo-com-advogados-e-80-maior-do-que-seria-com-defensoria>. Acesso
em: 05 nov. 2019.

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Capítulo 4
A VIOLAÇÃO AO ACESSO À
JUSTIÇA NO BRASIL EM RAZÃO
DA INSUFICIENTE PRESENÇA
DA DEFENSORIA PÚBLICA
AGRAVADA PELA
EMENDA DO TETO
SUMÁRIO: Introdução. 1 Breve Histórico da Previsão da Defensoria Pública no
Ordenamento Jurídico Brasileiro. 1.1. A Emenda Constitucional nº 80/2014. 2.
Reconhecimento do Déficit da Defensoria Pública em Julgados do Supremo Tribunal
Federal. 3. A Emenda do Teto e suas Implicações na Defensoria Pública e no Acesso à Justiça.
Considerações Finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 4

A VIOLAÇÃO AO ACESSO À JUSTIÇA NO BRASIL EM RAZÃO DA


INSUFICIENTE PRESENÇA DA DEFENSORIA PÚBLICA AGRAVADA
PELA EMENDA DO TETO

Aline Memória de Andrade1

INTRODUÇÃO

O direito de acesso à justiça é previsto na Constituição Federal como um


dos direitos fundamentais assegurados a todos. A Defensoria Pública é a instituição
que visa, precipuamente, ao cumprimento de tal direito, fornecendo assistência
jurídica gratuita à população que dela precise, carente de recursos para custear
um advogado, denominada de população hipossuficiente (conceito que hoje se
vislumbra não mais sob o viés estritamente econômico, mas também organizacional,
jurídico, entre outros). Porém, a estrutura da Defensoria Pública infelizmente não
alcança toda a população que dela necessita, em razão de limitações de pessoal e de
orçamento. Verificar-se-á que, em relação ao número de membros na atividade-fim
e orçamento destinados à Defensoria Pública – análise que se restringirá à esfera
federal, por recorte metodológico -, existe patente desproporcionalidade em relação
às demais funções essenciais à justiça que, pelo texto constitucional, deveriam dispor
da mesma importância.
A violação ao acesso à justiça de grande parte da população brasileira em
razão da ausência da Defensoria Pública tem sido agravada desde a promulgação
da Emenda Constitucional nº 95/2016 (Emenda do Teto) que, por exemplo,
inviabilizou o plano de expansão da Defensoria Pública da União, que visava levar
defensor público a toda cidade que contasse com unidade da Justiça Federal, e
também acarretou a diminuição do critério de hipossuficiência estabelecido para
atendimento da DPU, restringindo o número de potenciais assistidos. Desta forma,
o objetivo do presente trabalho é analisar mais a fundo a violação ao acesso à justiça
no Brasil em consequência da falta de estrutura da Defensoria Pública, mostrando
as consequências práticas e possíveis soluções.

1 Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Pós-graduada em Direito Processual
Civil pela Faculdade Damásio. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada inscrita na
OAB/CE.

55
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Inicialmente, será apresentado um breve histórico da previsão da Defensoria


Pública no ordenamento jurídico brasileiro, através de sua tímida presença ao
longo dos anos, culminando com a Constituição Federal de 1988 que a previu
expressamente, analisando-se também as emendas constitucionais posteriores
que a fortaleceram. Após, serão estudadas decisões do Supremo Tribunal
Federal que reconheceram o déficit da Defensoria Pública no Brasil, como na
construção do conceito de “inconstitucionalidade progressiva”, ou “declaração
de constitucionalidade de norma em trânsito para a inconstitucionalidade”. Em
seguida, são analisadas as consequências da Emenda Constitucional nº 95/2016 na
estrutura da Defensoria Pública (mais especificamente na DPU), e como isso viola
o direito ao acesso à justiça de milhões de brasileiros, impondo-se como uma única
alternativa possível a compatibilização da EC nº 95/2016 com a EC nº 40/2014, a
qual prevê a expansão da Defensoria Pública a fim de alcançar toda a população do
interior do Brasil, que se encontra atualmente desassistida. Por último, são tecidas
as considerações finais, as quais concluem que o direito constitucional do acesso à
justiça, no momento, encontra-se desprovido de eficácia plena.
A metodologia utilizada será pautada, preliminarmente, em pesquisa
bibliográfica com análise qualitativa, objetivando a interpretação dos fenômenos.
Quando da análise de pessoal e orçamento das funções essenciais à justiça na esfera
federal, será feita pesquisa quantitativa, através de dados obtidos em portais da
transparência, com análise comparativa entre elas.
A relevância temática fundamenta-se na intrínseca relação entre o acesso à
justiça e a Defensoria Pública, sendo essencial que, para o referido direito fundamental
efetivar-se plenamente, a instituição com o objetivo constitucional precípuo de
oferecê-la se fortaleça. Em sentido contrário, a ausência da Defensoria Pública viola
o acesso à justiça de milhões de brasileiros que dela dependem, o que se objetiva
analisar mais profundamente.

2. BREVE HISTÓRICO DA PREVISÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NO


ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

A Defensoria Pública foi criada somente na Constituição Federal de 1988,


embora tenham existido normas, ao longo da evolução histórica do ordenamen-
to jurídico brasileiro, que trataram da justiça gratuita e da assistência jurídica a
pessoas necessitadas, buscando implementar a garantia da igualdade ao acesso à

56
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Justiça. Por não se tratar do objetivo do presente estudo, traçaremos apenas uma
breve análise histórica.

Remotamente, as Ordenações Filipinas - que vigoraram no Brasil até o fim


do ano de 1916 por força da Lei de 2º de outubro de 1823 - fizeram referência,
pela primeira vez, à assistência jurídica2, em termos que se assemelham à atual
declaração de pobreza.
Porém, ao longo dos anos, o Estado não tomou nenhuma iniciativa para pres-
tar aludida assistência jurídica, o que levou o Instituto dos Advogados Brasileiros, em
1870, a criar um Conselho com a finalidade de prestar assistência judiciária aos ne-
cessitados em causas civis e criminais. Apesar dos esforços, era insuficiente a iniciativa
de advogados que atuavam na defesa de direitos de pessoas necessitadas, pois estas
superavam em número os primeiros. Urgia que o Estado tomasse iniciativas sobre o
tema, o que só veio a ocorrer, em âmbito do Estado do Rio de Janeiro (então capital
do Brasil) em 1897, através de decreto que instituiu a Assistência Judiciária.
A Constituição Federal de 1934 inovou ao tratar da assistência judiciária em
seu art. 113, n. 32, prevendo a competência da União e dos Estados para prestá-la,
além de dispor sobre a obrigação de que fossem criados órgãos essenciais para este
fim, o que foi realizado em 1935 pelo Estado de São Paulo3, instituidor do primeiro
serviço estatal de assistência judiciária do Brasil. Os Estados do Rio Grande do Sul e
Minas Gerais repetiram a iniciativa logo após.
A Constituição de 1937, do Estado Novo, não trouxe previsão acerca da as-
sistência judiciária, porém o Código de Processo Civil de 1939 previu regras sobre a
Justiça Gratuita em seu Capítulo II do Título VII4.
A Lei nº 1060/50, que dispõe sobre a concessão da assistência judiciária aos
necessitados, foi um importante marco na normatização da justiça gratuita – tendo a
própria lei se equivocado na nomenclatura dos institutos. Citada legislação ainda está

2 Livro III, Título 84, parágrafo 10: “Em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de rais,
nem por onde pague o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma Del Rey Don Diniz,
ser-lhe-á havido, como se pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que
havia de pagar o agravo”.
3 Destaca Simone dos Santos Oliveira que, “Em contraste à iniciativa tomada pelo Estado em 1935, na atuali-
dade, o Estado de São Paulo era, até o ano de 2006, quando entrou em vigor Lei Complementar 18/05, um dos
Estados brasileiros onde a Defensoria Pública ainda não era instituída de acordo com a Constituição Federal e a
Lei Complementar n. 80/94” (cf. OLIVEIRA, Simone dos Santos. Defensoria pública brasileira: sua história. In:
Revista de Direito Público, Londrina, v. 2, n. 2, p. 59-74, maio/ago. 2007, p. 69).
4 Segundo Borge: “Já o Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939)
cuidou do tema entre os arts. 68 e 79, inserindo no capítulo II (DO BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA) do
Título VII - que tratava das despesas judiciais-, rol de serviços isentos de pagamento em prol daquele que se de-
clarasse sem condições de suportar as custas do processo. (cf. BORGE, Felipe Dezorzi. Defensoria Pública: uma
breve história. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2480, 16 abr. 2010)”

57
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

em vigor, havendo sido recepcionada pela Constituição de 1988 e, até a edição do


CPC/15, tutelava integralmente o benefício da justiça gratuita. Contudo, o Código
de Processo Civil de 2015, ao tratar expressamente da Gratuidade da Justiça em seção
própria (arts. 98 a 102), revogou grande parte dos artigos da Lei nº 1060/505.
Somente com a Constituição Federal de 1946, a assistência judiciária voltou a
ser prevista constitucionalmente6, o que só foi repetido muitos anos depois, com a
Constituição Federal de 1988, que estabeleceu, na redação originária do art. 134, o
seguinte: “Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional
do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos
necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV7”. A respeito:
Os anseios da população carente só vieram a ser solucionados com
a Constituição de 1988, esta que é uma constituição extremamente
cidadã, institui a Defensoria Pública, essencial à função jurisdicional
do Estado e incubida da orientação jurídica e defesa em todos os graus
da comunidade carente. Até então, o que existia era a “assistência
judiciária” como sendo o direito do cidadão sem recursos de obter
do Estado a tutela jurisdicional gratuita. O sistema adotado no Brasil
para a prestação da assistência judiciária gratuita é considerado misto,
prevê além da Defensoria Pública, serviços prestados pelos escritórios
experimentais das universidades e pela Ordem dos Advogados do
Brasil. (SOUSA, 2010)

Desta forma, a Constituição Federal de 1988 inovou ao tutelar a Defensoria


Pública que, através de seus parágrafos primeiro e segundo8, organiza-se em Defen-
soria Pública da União, Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios e
Defensoria Pública dos Estados, o que não fere os princípios constitucionais da Insti-

5 CPC/15: Art. 1.072. Revogam-se: [...]


III - os arts. 2º, 3º, 4º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 da Lei no 1.060, de 5 de fevereiro de 1950.
6 Art. 141, parágrafo 35: O poder público, na forma que a Lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos
necessitados.
7 Art. 5º, LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
8 Art. 134 [...]
§ 1º Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescre-
verá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante
concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exer-
cício da advocacia fora das atribuições institucionais.
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua
proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao dispos-
to no art. 99, § 2º

58
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tuição – da unidade e da indivisibilidade -, acrescidos ao texto constitucional no §4º9


da Emenda Constitucional nº 80 de 2014.

O parágrafo único da redação original do art. 134 da CF/88 – posteriormente


renumerado para §1º, após a Emenda Constitucional nº 45, de 2004 – determina
que Lei complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Fede-
ral e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados. A
Lei Complementar nº 80/94, conhecida como Lei Orgânica Nacional da Defensoria
Pública, cumpriu tal mandamento constitucional.
Apesar de a Defensoria Pública ter finalmente sido alçada a nível constitucio-
nal em 198810, a sua realidade fática apresentava, e continua apresentando, inúme-
ros problemas, como estrutura precária, pouco número de defensores públicos para
abranger a grande demanda de assistidos (principalmente em comparação com as
outras funções essenciais à justiça) e a não implementação da Instituição em todas as
comarcas do país e outros.

2.1. A Emenda Constitucional nº 80/2014

Tendo como objetivo ampliar a estrutura da Defensoria Pública no Brasil, foi


aprovada a Emenda Constitucional nº 80 de 2014 (conhecida como “Defensoria
para todos”), a qual alterou a redação do art. 134 da CF/88, que passou a contar com
a seguinte redação, ampliando as funções da Defensoria Pública, conforme previsões
já existentes na Lei Complementar nº 80/94 (Lei Orgânica):
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial
à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão
e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a
orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa,
em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais
e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma
do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.

9 -
cia funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição
Federal.
10 “A doutrina admite até mesmo que, em razão do grau de importância, a Defensoria não pode ter suas atribui-
ções restringidas nem mesmo por meio de emenda constitucional, sob pena de indefensável retrocesso no cumpri-
mento do objetivo fundamental de construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (cf. ARRUDA, Thomas
Ubirajara Caldas de. Defensoria Pública como instrumento da democracia no novo CPC. Revista Jus Navigandi,
Teresina, ano 21, n. 4613, 17 fev. 2016).

59
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

As mudanças trazidas pela EC nº 80/2014 na redação do art. 134 da Consti-


tuição Federal foram: a) além de a Defensoria Pública ser essencial à função jurisdi-
cional do Estado – o que já era previsto anteriormente -, a Emenda Constitucional
acrescentou que é também “permanente”11, expressando no texto constitucional
o que a doutrina majoritária12 já afirmava, que a Defensoria Pública não pode ser
objeto de qualquer tentativa tendente a extirpá-la do ordenamento jurídico; b)
acrescentou: “como expressão e instrumento do regime democrático, fundamen-
talmente”, após o artigo começar a delimitar as incumbências da Instituição, a fim
de deixar claro sua importância à democracia, efetivando-a em todas as esferas, nas
camadas mais necessitadas da população; c) adicionou, entre suas funções, a pro-
moção dos direitos humanos13; d) aumentando o espectro de incidência da defesa
promovida pela Defensoria Pública dos necessitados, estendeu a defesa “judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos14, de forma integral e gratuita”,
com o objetivo de promover a mais ampla defesa de seus assistidos, em todos os
graus e de todas as formas; e) por último, uma mudança meramente formal e que
em nada o modifica o conteúdo do artigo 134, apenas acrescentando “inciso” e
“desta Constituição Federal” à parte final.

Em suma, a EC nº 80/2014 conferiu ao artigo 134 da Constituição Federal a


mesma redação existente no art. 1º da Lei Complementar nº 80/94, após a alteração
promovida pela Lei Complementar nº 132/09, igualando seus textos, além de rees-
truturar a nomenclatura das Seções do Capítulo IV do Título IV da Constituição

11 Assim como dispõe o art. 127, da CF/88 em relação ao Ministério Público.


12 “É verdade que a doutrina sempre sustentou que a Defensoria Pública faria parte da proteção das cláusulas
pétreas (art. 60, §4º da CF), em razão de sua incumbência de prestação de assistência jurídica integral e gratuita
dos necessitados, refletindo um direito individual materializado no art. 5º, LXXIV” (cf. SILVA, Franklyn Roger
Alves; ESTEVES, Diogo. A Defensoria Pública e a sistemática de intimações do artigo 269 do novo CPC. 2014).
13 “A promoção dos direitos humanos independe da condição econômica ou social de seus titulares, em razão do
caráter universal que estes exprimem. Por esta razão, a Defensoria Pública no desempenho desta função institucional
de natureza atípica, buscará conceder a mais ampla assistência, não apenas jurídica, mas de qualquer outra vertente
que se afigure necessária para a salvaguarda destes direitos. A última década revelou um profundo ativismo da De-
fensoria Pública no sistema interamericano de defesa dos direitos humanos, a partir da participação incisiva das De-
fensorias Públicas junto a Comissão Interamericana e na própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, por
meio da indicação de Defensores Públicos para atuação em sua estrutura”. (cf. SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTE-
VES, Diogo. A Defensoria Pública e a sistemática de intimações do artigo 269 do novo CPC. 2014).
14 Frankyn Roger Alves Silva traça a evolução história da atuação da Defensoria Pública no âmbito da tutela
coletiva: “O primeiro passo da Defensoria Pública no plano das ações coletivas se deu através do desempenho da
representação processual das associações legitimadas que não poderiam arcar com os custos de um advogado e
procuravam a instituição para o ajuizamento de ação coletiva. Posteriormente, com o advento do Código de Defe-
sa do Consumidor, reconheceu-se que os órgãos da Defensoria Pública voltados para a assistência jurídica de
consumidores poderiam exercer a legitimidade da ação coletiva com suporte no art. 82, III do CDC. O sucesso da
atuação da Defensoria Pública no plano consumerista levou o legislador a conceder a ampla legitimação, através
da inclusão da instituição no rol do art. 5° da Lei n. 7.347/85, por meio de alteração operada pela Lei n. 11.448/07”
(cf. SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTEVES, Diogo. A Defensoria Pública e a sistemática de intimações do arti-
go 269 do novo CPC. 2014).

60
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Federal (Funções Essenciais à Justiça) de forma que, atualmente, há uma Seção IV,
especificamente destinada à Defensoria Pública.
Outra alteração promovida pela referida Emenda Constitucional – provavel-
mente a que trouxe mais implicações práticas – foi a inclusão do §4º ao artigo 134,
que previu: “São princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivi-
sibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o dis-
posto no art. 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal”. A saber, o artigo
93 dispõe sobre as regras de organização da Magistratura (como ingresso na carreira,
promoção, distribuição imediata de processos), e o artigo 96, II atribui iniciativa le-
gislativa privativa aos Tribunais para projetos de lei que tratem sobre a definição de
sua organização, número de membros, cargos e remunerações.
De suma importância, portanto, foi a inclusão do parágrafo quarto ao arti-
go 134 da Constituição Federal, pois, apesar de a Defensoria Pública já possuir au-
tonomia financeira e orçamentária antes de tal alteração – em razão das Emendas
Constitucionais nº 45/0415, em relação às Defensorias Estaduais, e a de nº 74/13,
quanto à Defensoria Pública da União e à do Distrito Federal -, não detinha ainda a
iniciativa de projetos de lei. Antes da inclusão do §4º do artigo 134 da CF/88, todas
as leis acerca da Defensoria Pública eram de prerrogativa do Executivo. Atualmente,
contudo, pertence à própria Instituição a iniciativa de projetos de lei relativos à sua
estruturação, através da mencionada remissão do §4º do art. 134 ao art. 96, II.
Não obstante, o art. 61, § 1º, II, d (que atribui ao Presidente da República a
iniciativa privativa de leis sobre organização do Ministério Público e da Defensoria
Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público
e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios) continua
vigente. A solução adotada para conciliar tal dispositivo com o artigo 134, §4º de-
verá ser a mesma interpretação que prevalece no âmbito do Ministério Público da
União: o projeto de Lei Complementar sobre organização da DPU será de iniciativa
concorrente entre o Presidente da República e o Defensor-Público Geral Federal - o
que deverá ser aplicado aos Estados e ao Distrito Federal em razão do princípio da
simetria16-, enquanto o projeto de lei ordinária sobre cargos e remunerações da De-
15 “Efetivamente, é inegável o reforço que a EC 45 propiciou na consolidação dos direitos humanos e, mais es-
pecificamente, na efetivação judicial desses direitos, circunstância que prestigia a dignidade da pessoa humana –
elevada pela Constituição Federal de 1988 a pilar ético-político-juridico do Estado Brasileiro -, e amplia o grau de
Democracia do nosso Estado” (CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de direito constitucional. 6ª ed. Salvador:
JusPodivm. 2012, p. 1195).
16 O princípio da simetria, em breves linhas, prediz que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem
reproduzir, em suas respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas, os princípios fundamentais e as re-
gras de organização existentes na Constituição Federal, a qual estipula as normas gerais concernentes a seus
elementos básicos.

61
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

fensoria Pública da União torna-se de iniciativa exclusiva do Defensor Público-Geral


Federal (por causa da remissão ao art. 96, II da CF/88). Quanto à “iniciativa de lei
que veicule normas gerais aplicáveis a todas as Defensorias Públicas, entendemos que
a legitimidade permanece nas mãos do Presidente da República”17, posição compar-
tilhada pelo presente trabalho.
Importante observar que o parágrafo quarto do artigo 134 ressalvou que a apli-
cação dos arts. 93 e 96, II da CF/88 à Defensoria Pública deverá ser feita apenas “no
que couber”, impondo limites à aplicação das regras do Judiciário a esta Instituição,
compatibilizando-as “à realidade da Defensoria Pública, sem que a instituição perca
sua própria identidade e desconsidere suas próprias normas”.
Uma das mudanças práticas projetadas à Defensoria Pública, trazida pela EC
nº 80/14, é que, a partir desta, exigem-se três anos de atividade jurídica para o ingres-
so na carreira, através da aplicação do art. 93, I da Constituição Federal. Contudo, a
Lei Complementar nº 80/94 exige apenas 02 (dois) anos em seu artigo 26, de forma
que há conflito de normas. Qual critério deveria prevalecer: o da especialidade, atra-
vés da prevalência do disposto na Lei Orgânica da carreira, ou o cronológico e hie-
rárquico, em razão da existência superveniente de norma com status constitucional?
A fim de não fugir ao objetivo do artigo, que foca no acesso à justiça proporcionado
pela Defensoria Pública, indica-se que o segundo critério vem sendo adotado, tendo
inclusive o Conselho Superior da Defensoria Pública da União editado a Resolução
nº 88/14, estatuindo que o termo inicial da atividade jurídica será o momento do
bacharelado em direito, a despeito do texto expresso da Lei Complementar 80/9418,
que admite a contagem do tempo de estágio.
Ademais, com a inclusão do § 4º ao art. 134, foram expressos constitucional-
mente os princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional para a
Defensoria Pública, o que já era previsto pela sua Lei Orgânica (LC nº 80/94). No
entanto, que não foram previstos para os defensores públicos as garantias da vitali-
ciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídios, exclusivas dos membros do
Judiciário (art. 95, I, II e III) e do Ministério Público (art. 128, §5º, I, a, b, c), de
forma que os defensores públicos gozam somente das garantias da inamovibilidade
(art. 134, § 1º) e irredutibilidade de subsídios (art. 37, XV, da CF, c/c art. 135).

17 SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTEVES, Diogo. A Defensoria Pública e a sistemática de intimações do arti-
go 269 do novo CPC. 2014.
18 Art. 26. § 1º Considera-se como atividade jurídica o exercício da advocacia, o cumprimento de estágio de
Direito reconhecido por lei e o desempenho de cargo, emprego ou função, de nível superior, de atividades eminen-
temente jurídicas.

62
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Por último, e uma das inovações mais importantes, a EC nº 80/14 incluiu o


artigo 98 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional


será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria
Pública e à respectiva população.
§ 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito
Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades
jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.
§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a
lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo
as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento
populacional.

A rigor, nem seria necessária a inclusão deste dispositivo no ADCT, tendo


em vista que, ao determinar a aplicação do artigo 93 à Defensoria Pública, o poder
constituinte derivado reformador havia imposto este dever, uma vez que o inciso XIII
do mencionado artigo prevê que “o número de juízes na unidade jurisdicional será
proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população”. Idêntico raciocínio
seria aplicável à Defensoria Pública, “que se organizará de modo que nas localidades
onde haja maior demanda institucional, haja uma maior distribuição de órgãos de
atuação e, por consequência, de Defensores Públicos”19.
Todavia, o legislador fez questão de instituir o dever em dois pontos distintos
da Constituição Federal, fato que, ainda segundo Silva20, “apenas reforça a tese de
melhor aparelhamento do quadro de membros da Defensoria Pública” e, consequen-
temente, gerando um maior acesso à justiça pela população carente.

3. RECONHECIMENTO DO DÉFICIT DA DEFENSORIA PÚBLICA EM


JULGADOS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Diante dos problemas estruturais e do déficit de pessoal enfrentados pela De-


fensoria Pública, o Supremo Tribunal Federal traçou as linhas da “inconstitucionali-
dade progressiva”, ou “declaração de constitucionalidade de norma em trânsito para
a inconstitucionalidade”, que consiste em uma técnica de decisão judicial aplicada às

19 SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTEVES, Diogo. A Defensoria Pública e a sistemática de intimações do arti-
go 269 do novo CPC. 2014.
20 SILVA, Franklyn Roger Alves; ESTEVES, Diogo. A Defensoria Pública e a sistemática de intimações do arti-
go 269 do novo CPC. 2014.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

situações constitucionais imperfeitas, nas quais a norma situa-se em um estágio entre


a constitucionalidade plena e a inconstitucionalidade absoluta, e as circunstâncias de
fato vigentes no momento ainda justificam a sua permanência dentro do ordenamento
jurídico. Utilizando-se desta técnica, o STF reconhece que uma norma ainda não se tor-
nou inconstitucional, mas é gradativo o seu caminho a esse destino. Os dois primeiros
julgados nos quais essa técnica foi reconhecida tratavam da Defensoria Pública.
No primeiro caso, HC nº 70514, julgado em 23 de março de 1994, de relato-
ria do Ministro Sydney Sanches, discutia-se a constitucionalidade do artigo 5º, §5º
da Lei nº 1060/50, acrescentado pela Lei nº 7871/89, que concedia o prazo em dobro
às Defensorias Públicas para a prática de todos os atos processuais. A decisão do STF
foi no sentido que a inconstitucionalidade de tal norma não deveria ser declarada até
que a organização das Defensorias Públicas alcançasse, nos Estados, o nível de orga-
nização do respectivo Ministério Público.
Cumpre ressaltar, todavia, que atualmente a previsão do prazo em dobro para
todas as manifestações da Defensoria Pública encontra-se positivada pelo Código de
Processo Civil de 2015, no caput do art. 186, o que leva, em nosso entendimento, à
superação da decisão do STF da inconstitucionalidade progressiva da constituciona-
lidade do artigo 5º, §5º da Lei 1060/50, o qual prevê a mesma regra.
O segundo caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal que aplicou esta técni-
ca de decisão foi o Recurso Extraordinário nº 147.776/SP, julgado em 19 de maio de
1998, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, no qual foi decidido que o artigo
68 do CPP21 permaneceria válido enquanto não fossem criadas Defensorias Públicas
em todos os Estados do Brasil.
As decisões do Supremo Tribunal Federal permitem comprovar que, apesar
de já decorridos quase 30 anos da promulgação da Constituição de 1988 – tempo
considerado plausível para que a Defensoria Pública estivesse com sua organização
consolidada onde tivesse unidade do Ministério Público -, é notável “a fragilidade da
instituição, porque ela ainda não possui condições de cumprir sua missão: viabilizar o
acesso universal à Justiça, uma vez que a necessária estruturação nas diversas unidades
da Federação ainda não se concretizou”22.

21 Art. 68. Quando o titular do direito à reparação do dano for pobre (art. 32, §§ 1o e 2o), a execução da
sentença condenatória (art. 63) ou a ação civil (art. 64) será promovida, a seu requerimento, pelo Ministério Público.
22 OLIVEIRA, Simone dos Santos. Defensoria pública brasileira: sua história. In: Revista de Direito Público,
Londrina, v. 2, n. 2, p. 59-74, maio/ago., 2007, p. 73.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

4. A EMENDA DO TETO E SUAS IMPLICAÇÕES NA DEFENSORIA PÚBLICA


E NO ACESSO À JUSTIÇA

Em 2016 foi promulgada a Emenda Constitucional nº 95/2016, chamada de


“Emenda do Teto”, que instituiu o Novo Regime Fiscal e criou o teto de gastos, limi-
tante de valores que podem ser orçados para cada órgão e Poder, conforme os gastos
realizados em anos anteriores, e congelou o orçamento público por 20 anos.
Por motivo de recorte metodológico, a análise dos efeitos da Emenda do Teto
será restrita à Defensoria Pública da União (DPU), analisando-a comparativamente
com a esfera federal, ante a impossibilidade fática de, no momento, analisar as De-
fensorias Públicas de todos os Estados. Devido à denominada Emenda do Teto, o
orçamento da DPU ficou com o crescimento limitado à inflação do ano anterior, di-
minuindo a possibilidade de expansão da instituição, que já é a menor (em orçamen-
to e número de pessoal, como se demonstrará adiante) das funções essenciais à justiça
federais. A referida emenda permitiu, ainda, compensação financeira do Executivo
para certos órgãos (como a Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Ministério Público e
Defensoria Pública) nos três primeiros anos da vigência, o que a partir de 2020 já se
encerrará, dificultando ainda mais o crescimento da instituição.
Visando conferir cumprimento à determinação constitucional do artigo 98
do ADCT, em 2015 foi lançando o Plano de Interiorização da DPU, com a previsão
de instalação de 205 novas unidades da DPU pelo Brasil, em cinco fases. Contudo,
a promulgação da Emenda Constitucional nº 95/2016 acarretou a suspensão do
plano de interiorização da DPU em 2017, violando o acesso à justiça de milhões
de brasileiros que moram em Municípios atendidos pela Justiça Federal, mas sem
unidade da Defensoria Pública da União, configurando-se em desassistência na
postulação de seus direitos mais básicos, como previdência e saúde. Na Justiça
Federal existem 279 seções e subseções judiciárias, mas apenas 81 contam com
cobertura da DPU, acarretando um déficit de 71%, número alto e alarmante.
Portanto, a população hipossuficiente de 198 seções e subseções da Justiça Federal
não contam com assistência da DPU, tendo que, mesmo preenchendo os critérios
para assistência jurídica gratuita constitucionalmente assegurada, contratar
advogados ou não pleitear seus direitos.
Outro reflexo provocado pela Emenda do Teto foi a diminuição do critério de
hipossuficiência para assistência jurídica da DPU. Anteriormente, o valor da  faixa
de renda, que é um dos principais critérios definidores de condição de necessidade
de assistência jurídica, era de 03 (três) salários mínimos (resultando em 150 milhões

65
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

de potenciais assistidos), mas Resolução do Conselho Superior da DPU de 2016 (nº


134) estipulou que o novo critério de hipossuficiência seria de pessoas que recebessem
até 02 mil reais (resultando em 75 milhões de pessoas como potenciais assistidas).
Devido ao reduzido número de defensores públicos federais, as unidades
existentes passam por constantes restrições ao atendimento, por não conseguirem
atender toda a demanda de assistidos, seja restringindo o atendimento apenas para
casos urgentes23 ou agendando assistidos para comparecerem com tempo de espera de
meses, o que, mais uma vez, viola o direito constitucional de acesso à justiça.
A atuação da Defensoria Pública da União resta, atualmente, bastante compro-
metida24, exemplificando-se com a atuação na Justiça do Trabalho que, apesar de ser
prevista legalmente (art. 14 da Lei Complementar nº 80/201425) para defender o em-
pregado hipossuficiente (que constitui grande parte dos empregados), é comprometi-
da. Há atualmente apenas 05 defensores públicos federais exclusivamente dedicados
à área trabalhista, todos lotados em Brasília/DF (ou seja, em apenas 1 das 624 cidades
com varas trabalhistas), frente aos 763 procuradores do trabalho.
Portanto, o número de membros do Ministério Público do Trabalho com atua-
ção restrita a causas trabalhistas, já é, por si só, maior do que o número de defensores
públicos federais, que possuem competência para causas federais (como previdenciá-
rias, criminais e cíveis), eleitorais, militares e trabalhistas. Por causa das impossibilida-
des fáticas, a Portaria da DPU nº 154 de 2005 restringiu sua em causas trabalhistas26,
devendo o defensor público federal informar ao assistido a “impossibilidade do defe-
rimento da assistência jurídica em razão da falta de estrutura” da instituição.
Vislumbra-se, assim, mais uma violação ao acesso à justiça de tantos em-
pregados carentes de assistência jurídica gratuita, o que fortalece os sindicatos na

23 Como as unidades de Porto Velho/RO, Belém/PA, Niterói/RJ e João Pessoa/PB, que passaram por restrições
de atendimento recentes (cf. MORAIS, Hosana. Para atender 25 mil processos dpu de porto velho atua com apenas
4 defensores públicos .G1 – portal de notícias. Disponível em: <https:// https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/
para-atender-25-mil-processos-dpu-de-porto-velho-atua-com-apenas-4-defensores-publicos.ghtml>. Acesso em:
10 set. 2019).
24 Mesmo assim, a Defensoria Pública já foi reconhecida como a instituição mais importante para a população
brasileira, segundo pesquisa elaborada em 2017 pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A pesqui-
sa buscou saber como a sociedade vê as instituições, especialmente em relação ao conhecimento, confiança, im-
portância e avaliação. A Defensoria Pública é a instituição mais conhecida das pessoas logo após a Polícia, Prefei-
tura, Partidos Políticos e as Forças Armadas. Além disso, a Defensoria Pública foi considerada a segunda instituição
mais confiável, ficando atrás apenas das Forças Armadas.
25 Art. 14. A Defensoria Pública da União atuará nos Estados, no Distrito Federal e nos Territórios, junto às Jus-
tiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores e instâncias administrativas da União.
26 Art. 2º Nas causas cíveis, administrativas, tributárias e previdenciárias que não se enquadram na competência
do Juizado Especial Federal Cível ou não puderem ser objeto de mandado de segurança e nas causas trabalhistas o
requerente da assistência deverá ser orientado a constituir advogado ou, sendo o caso, procurar o auxílio do sindi-
cato a que é filiado.

66
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

prestação dessa assistência, quando a instituição incumbida pela Constituição Fe-


deral de tal fim não consegue, por ausência de pessoal, atender à grande demanda
trabalhista, como causas que dizem respeito à proteção ao trabalho da mulher (esta-
bilidade gravídica), do menor e do empregado doméstico, em casos de acidente de
trabalho. Ressalta-se que existe Grupo de Trabalho da DPU com a específica fina-
lidade de combater o trabalho escravos, sendo uma das poucas frentes trabalhistas
com uma atuação mais presente.
A atuação na Justiça Militar também é demonstrativa do déficit de defensores
públicos (no caso, federais): apenas 10 defensores públicos federais atuam exclusi-
vamente na Justiça Militar, número irrisório frente aos 74 procuradores do Minis-
tério Público Militar. Continuando a análise comparativa do número de membros
na atividade-fim das funções essenciais à justiça na esfera federal (Advocacia-Geral
da União e Ministério Público da União, já que a análise restringe-se ao âmbito pú-
blico, excluindo-se a advocacia privada, que é classificada como uma das funções
essenciais à justiça pelo texto constitucional), existem 8.605 advogados públicos fede-
rais27 - compostos por 2.147 advogados da União, 4.131 procuradores federais, 2.159
procuradores da Fazenda Nacional e 168 procuradores do Banco Central – e 1.994
procuradores do Ministério Público da União28, divididos em 1.157 procuradores da
república (membros do MPF), 763 procuradores do trabalho (membros do MPT) e
74 procuradores de Justiça Militar (membros do MPM)29.
O número de defensores públicos federais em atuação no momento é des-
proporcionalmente menor do que o das outras funções essenciais à justiça da esfera
federal: apenas 625 defensores públicos federais30, representando quase metade do
número de membros do MPU (sem contar com o MPDF) e apenas 29% do quanti-
tativo de pessoal ativo da AGU.
No orçamento, a disparidade de recursos entre as funções essenciais à justiça
da esfera federal também fica evidente: o orçamento da Advocacia-Geral da União
em 2019 foi de R$3.807.195.551,00 (três bilhões, oitocentos e sete milhões, cento
e noventa e cinco mil, quinhentos e cinquenta e um reais)31, o orçamento de 2019
destinado ao Ministério Público da União foi de R$1.296.613.641,00 - um bilhão,

27 Conforme pedido de acesso à informação à AGU, realizado em 2018.


28 Com dados de março de 2019 do Portal da Transparência.
29 Por recorte metodológico, a conta de procuradores do Ministério Público da União não incluirá os do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios, apenas os membros do MPF, MPT e MPM, uma vez que esses três desem-
penham funções análogas às competências da Defensoria Pública da União, colimando facilitar a comparação.
30 Conforme Portal da Transparência da DPU, dados de maio de 2019.
31 Conforme Lei Orçamentária Anual de 2019 (Lei nº 13.808 de 2019), Volume III.

67
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

duzentos e noventa e seis milhões, seiscentos e treze mil, seiscentos e quarenta e um


reais – (Brasil, 2019)32 e o orçamento de 2019 destinado à Defensoria Pública da
União foi de R$623.143.689,00 (seiscentos e vinte e três milhões, cento e quarenta
e três mil, seiscentos e oitenta e nove reais)33, correspondendo, portanto, a apenas
16,3% do valor reservado para a Advocacia-Geral da União e a 8,8% do orçamento
do Ministério Público da União.
Diante da desproporcionalidade de recursos investidos na Defensoria Pública
da União em relação às demais funções essenciais à justiça da esfera federal, a situação
só mudaria quando o Governo Federal priorizasse recursos financeiros à prestação de
assistência jurídica gratuita pela DPU, de forma a efetivar o direito constitucional do
acesso à justiça plenamente, direito este que, por enquanto, encontra-se apenas nas
palavras da Constituição.
Contudo, não se vislumbra como a situação poderia melhorar, a fim de tornar
menos díspares as diferenças entre as instituições, em razão da Emenda do Teto, que
sufoca o já exíguo orçamento da DPU, impedindo a sua expansão e, por conseguinte,
violando o direito de milhões de brasileiros hipossuficientes ao acesso à justiça.

Com esse cenário, o mandamento constitucional do artigo 98 do Ato das


Disposições Constitucionais Transitórias, introduzido pela Emenda Constitucional
nº 80/1994, que determina a existência de, no mínimo, um defensor público em
cada cidade em que haja unidade da Justiça até o ano de 2022, torna-se cada vez
mais distante. Percebe-se que há patente violação à Constituição Federal, ocorren-
do duplamente: ao direito ao acesso à justiça e ao mandamento constitucional do
artigo 98 do ADCT, inclusive ao prazo estabelecido constitucionalmente. Faltando
03 anos para o término do prazo, não resta outra alternativa que não a compatibi-
lização entre a EC nº 95/2016 (“Emenda do Teto”) e a EC nº 80/14 (“Defensoria
para todos”), tendo em vista que a primeira está obstaculizando a segunda, acar-

32 Salienta-se que citado numerário abrange todo o orçamento destinado ao MPF, MPM, MPT e MPDF (como
este último está contabilizado no orçamento, sem discriminação, será considerado o valor total, ainda que no nú-
mero de membros o quantitativo do MPDF tenha sido desconsiderado).
33 Conforme Lei Orçamentária Anual de 2019 (Lei nº 13.808 de 2019), Volume IV.

68
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

retando com que milhões de brasileiros vivam em cidades que não contam com a
presença de um defensor público.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o passar dos anos, o caminho percorrido pela Defensoria Pública até a
sua efetiva consolidação constitucional foi pontilhado de obstáculos, os quais ainda
não cessaram. Sua expressa previsão na Constituição Federal de 1988, a concessão
de autonomia financeira e orçamentária pelas Emendas Constitucionais nº 45/2004,
69/2012 e 74/2013 e a ampliação de suas funções e princípios institucionais, a ini-
ciativa própria para editar suas leis e a determinação de prazo para a sua efetiva im-
plementação em todos os níveis, promovidos pela Emenda Constitucional nº 80/14,
demonstram as vitórias conquistadas até o momento.
Concebida na Constituição de 1988, a Defensoria Pública tem diante de si
desafios colossais e nesse íngreme caminho, cada passo é uma vitória a ser celebrada
não somente pelas camadas mais humildes da população, diretamente assistidas pela
instituição, mas também por toda a sociedade, que se beneficia com a estabilidade
que somente a justiça social permite vislumbrar34.
Uma recente vitória foi a aprovação no Senado Federal em dois turnos, por
unanimidade, a Proposta de Emenda à Constituição nº 31 de 2017, a qual que pro-
põe alteração nos artigos 103 e 109 da Constituição Federal para dispor sobre a legi-
timidade do Defensor Público-Geral Federal para a ação direta de inconstitucionali-
dade, a ação declaratória de inconstitucionalidade e o incidente de deslocamento de
competência para a Justiça Federal. Aguarda-se, no momento, o seguimento da PEC
para a Câmara dos Deputados.
Contudo, a efetivação do direito ao acesso à justiça resta fortemente violado
em razão das desproporções de número de pessoal e orçamento dedicados às funções
essenciais à justiça (analisadas aqui no âmbito federal), as quais deveriam gozar de
estrutura condizente com a importância que lhes foi conferida, de forma equânime,
pela Constituição Federal de 1988, que previu “sujeitos que, conquanto estranhos à
estrutura do Judiciário, são imprescindíveis para que este Poder se desincumba da sua
missão constitucional”35, todos com a mesma relevância em relação às funções que

34 SILVA, Péricles Batista da. A Defensoria Pública no novo CPC. Revista Jus Navigandi. Disponível em: <ht-
tps://jus.com.br/artigos/28587/a-defensoria-publica-no-novo-cpc>. Acesso em: 21 de junho de 2020.
35 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São
Paulo: Saraiva. 2011, p. 1039.

69
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

desempenham, porém com recursos distribuídos de forma desigual. Isso resultando


em que o direito fundamental de acesso à justiça torne-se, na prática, inexistente para
grande parte da população hipossuficiente do país.
Tal fato é ainda mais grave quando se vislumbra o Judiciário como a última via
para dar proteção a direitos de grupos e pessoas marginalizadas, que não encontram
acesso fácil ao processo político. Nas palavras de Martin Shapiro36: “os grupos margi-
nais podem aguardar por parte da Corte o apoio político que não estão em condições
de encontrar em outro lugar”, assim, tais grupos “podem esperar audiência muito
mais favorável de parte da Corte do que de organismos que, não sem boa razão,
olham além do indivíduo, considerando em primeiro lugar a força política que pode
trazer à arena”. Cappelletti37 pondera que aludido argumento, como formulado, “não
parece ter em devida consideração que também o acesso ao processo judiciário é cheio
de obstáculos e dificuldades de toda natureza, de modo a tornar, frequentemente,
pouco iguais as chances das partes”, como ocorre no Brasil.
Através da análise quantitativa trazida no presente trabalho, verifica-se que
o Brasil não coloca como prioridade expandir a prestação de assistência jurídica
gratuita à população, o que só ocorreria efetivamente através da disposição de
maiores recursos financeiros à Defensoria Pública. Na esfera federal, observa-se que
o País prefere conferir quase o dobro de recursos ao Ministério Público da União e
orçamento superior em mais de seis vezes à Advocacia-Geral da União, resultando em
a Defensoria Pública da União ser o lado mais fraco das funções essenciais à justiça
na esfera federal. É, no mínimo, preocupante que o orçamento mais avantajado seja
destinado àquela instituição que representa os interesses da União, e não àquela
que defende os interesses da população mais carente que, segundo dados recentes
divulgados pelo Banco Mundial38, aumentou para 43,5 milhões de brasileiros, que
vivem com até US$5,00 (cinco dólares) por dia. 
O dever de priorizar o crescimento da Defensoria Pública decorre não só de
imperativos constitucionais, mas também de compromissos internacionais assumidos
pelo país. A título de exemplo, no final do ano de 2018 a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) realizou a segunda visita in loco ao Brasil (tendo

36 CAPPELLETI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Fabris: 1999, p. 99.


37 CAPPELLETI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Fabris: 1999, p. 100.
38 Segundo dados divulgados pelo Banco Mundial, o aumento da pobreza entre 2014 e 2017 foi de 3%: o núme-
ro de pessoas que vivem na pobreza subiu de 36,2 milhões, que representavam 17,9% da população, para 43,5
milhões de brasileiros. Ou seja, um aumento de 7,3 milhões, atingindo 21% da população. Fonte: <http://agencia-
brasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2019-04/banco-mundial-alerta-para-aumento-da-pobreza-no-brasil>, acesso
em: 16 de maio de 2019.

70
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

a primeira sido realizada em 1995), a fim de observar a situação dos direitos


humanos no país. No final emitiu recomendações39, cujo item 21 “d” aconselha o
fortalecimento da Defensoria Pública e o item 71 sugere que se expanda “o quadro
de defensores públicos estaduais e federais, de modo a aumentar sua capacidade de
oferecer assistência jurídica gratuita aos segmentos mais vulneráveis da população”.
Especificamente em relação à DPU: “insta o Estado a fornecer os recursos humanos
necessários à Defensoria Pública da União”.
A pergunta realizada pelo Ministro Celso de Melo no voto da ADI 3.943 (“A
quem interessa enfraquecer a Defensoria Pública”?) ainda se mostra, infelizmente,
atual. Na mesma ação, a Ministra Carmem Lúcia proferiu voto respondendo que “a
ninguém comprometido com a construção e densificação das normas que compõem
o sistema constitucional do estado democrático de direito interessa alijar aqueles
que, às vezes, têm no Judiciário sua última esperança”, mostrando a importância da
Defensoria Pública, que é:
“[...] hoje o ‘braço’ do povo na busca por uma vida digna. Nasceu
para fazer reforço à lei que atua apenas no plano deontológico.
Nasceu das ideias daqueles que sabem que o mero papel escrito não
tem o condão de transformar de forma significativa um quadro social
de desigualdade”40.

Certo é que “não se pode falar em autonomia e efetiva participação na vida da


população carente se não forem investidos recursos suficientes para a ampla atuação
da Defensoria Pública”41. Ressalta o autor citado42 que a relevância da Defensoria
Pública para a cidadania não é apenas uma nota técnica: “Sua imprescindibilidade
extrapola os limites da discussão nas academias de Direito, demandando medidas
práticas e concretas que propiciem a realização da referida essencialidade no cotidiano
da realidade brasileira”, medidas tendentes ao fortalecimento da instituição, com
fim de reparar as desproporcionalidades existentes em relação às demais funções
essenciais à justiça. Até então, o acesso à justiça torna-se um imperativo apenas no
texto constitucional, carecendo de efetividade e sendo um sonho distante de grande
parte da população carente brasileira, com valor apenas simbólico.

39 Recomendações da CIDH na íntegra: <https://www.conectas.org/wp/wp-content/uploads/2018/11/


CIDH-Observa%C3%A7%C3%B5es-preliminares.pdf>, acesso em: 15 de maio de 2018.
40 MONTINEGRO, Monaliza. A quem interessa enfraquecer a defensoria pública? Justificando. 2015.
41 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1096.
42 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1096, p. 1097.

71
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

REFERÊNCIAS
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a estrutura emergencial e provisória da Defensoria Pública da União. Brasília, DF, out. 2005.

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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

73
Capítulo 5
AS DIFICULDADES DOS
HIPOSSUFICIENTES NO ACESSO
À JUSTIÇA: UMA REFLEXÃO
A PARTIR DA ATUAÇÃO DA
DEFENSORIA PÚBLICA DO
ESTADO DO CEARÁ
SUMÁRIO: Introdução. 1. O Acesso à Justiça. 1.1. Aspectos legais do acesso à Justiça. 1.2.
Conceituando o Acesso à Justiça além das normas. 2. A Defensoria Pública como instrumento
de acesso à Justiça e direitos. 2.1. O papel da Defensoria e assistência judiciária. 2.2. As
dificuldades dos hipossuficientes em obter efetivo acesso à Justiça. 3. Uma reflexão para pensar
políticas públicas e a Defensoria Pública do amanhã. Considerações Finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 5

AS DIFICULDADES DOS HIPOSSUFICIENTES NO ACESSO


À JUSTIÇA: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA ATUAÇÃO DA
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO CEARÁ

Jady Ferreira de Souza Confessor1

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo explorar as dificuldades atuais do acesso à


justiça pela população financeiramente vulnerável, tomando como ponto de reflexão
os assistidos da Defensoria Pública do Estado do Ceará.

O foco é observar falhas e obstáculos no acesso à justiça, em aspectos que vão


além da assistência judiciária já fornecida pela instituição, buscando traçar novos
caminhos e estratégias de aperfeiçoamento na efetivação do direito fundamental de
acesso à justiça e aos direitos.

1. O ACESSO À JUSTIÇA

A tarefa de conceituar o Acesso à Justiça não é uma das mais simples, pois vários
autores atribuem significados diferentes. Buscaremos neste tópico inicial entender o processo
histórico-legal do acesso à justiça no Brasil para, a partir de então, buscarmos conceitualizá-lo.

1.1. Aspectos legais do acesso à Justiça

No contexto internacional, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres


do Homem2 (1948) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos3 (1948)
reconhecem o direito de poder recorrer junto aos Tribunais competentes para fazer

1 Bacharela em Direito pelo Centro Universitário Farias Brito. Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Ceará.
2 “Artigo 18 – Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos. Deve poder contar, outros-
sim, com processo simples e breve, mediante o qual a justiça a proteja contra atos de autoridade que violem, em seu
prejuízo, qualquer dos direitos fundamentais consagrados constitucionalmente.” DECLARAÇÃO AMERICANA
DOS DIREITOS E DEVERES DO HOMEM, 1948.
3 “Artigo VIII – Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os
atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.” DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948.

77
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

valer seus direitos e buscar remédio contra possíveis violações ao direito legalmente
reconhecido.
A fundamentação usualmente utilizada para expressar o acesso à justiça no
ordenamento jurídico brasileiro, encontra-se na Constituição Federal de 1988. Tal
fundamentação está inclusa no rol de direitos fundamentais contidos no art. 5º,
conforme cópia abaixo:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou


ameaça a direito;

O acesso à justiça pode ainda ser visto nos incisos XXXIV4, LV5, LXXIV6
do referido artigo da Carta Constitucional. Importante destacar que as discussões em
torno da temática do acesso à justiça, como veremos a seguir, tiveram maior ascensão
com o período pré-constituição de 1988, por esse motivo, há forte presença sua na
Carta Magna.
A partir dessa leitura, a noção de acesso à justiça que se retira da Constituição
Federal é a de que todos podem levar suas lides à apreciação do Poder Judiciário.
Nas palavras de Zanini7 é a garantia a todos da resolução dos seus litígios de forma
satisfatória. Diz-se que esta é a acepção institucional8 do acesso à justiça.

1.2. Conceituando o Acesso à Justiça além das normas

De acordo com Garth e Cappelletti9 definir o significado de acesso à justiça é


uma tarefa difícil. A expressão é necessária para definir as duas finalidades básicas do
sistema jurídico – sistema no qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e resolver

4 “XXXIV – são a todos assegurados, independente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públi-
cos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. (CF/88)
5 “LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório
e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (CF/88)
6 “LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
(CF/88)
7 ZANINI, Ana Carolina. O acesso à justiça e as formas alternativas de resolução de conflitos à luz do novo código
de processo civil. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, v. 12, p. 9-26, 2017, p. 17.
8 José Afonso da Silva (1999) crítica que se resuma o acesso à justiça à essa acepção institucional pois seria de enorme
pobreza valorativa.
9 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1988, p. 8.

78
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

os conflitos – que deve proceder acessibilidade igualitária para todos e produzir


resultados que sejam individualmente e socialmente justos.
Zanini10 afirma que o acesso à justiça é a garantia do processo e da jurisdição,
materializando a garantia constitucional ao cidadão de que obterá dos poderes o
respeito aos seus direitos e a restauração daqueles que, porventura, forem violados.
Numa acepção que denota apenas ao sentido institucional, José Afonso da
Silva11 define o acesso à justiça como o direito de buscar proteção judiciária, ou seja,
o direito de buscar junto ao poder judiciário a solução para um conflito de interesses.
A mera acepção institucional não é suficiente para explicar o acesso à justiça,
visto que o “fenômeno” não se esgota na esfera institucional do poder judiciário.
É importante expandir as discussões acerca do acesso à justiça, levando em conta
aspectos históricos, sociais, culturais, jurídicos e antropológicos.
Embora existam diversos estudos e análises acerca da construção do acesso à
justiça mundialmente, a leitura isolada sem conciliar com a história do Brasil e sua
estrutura social soa deslocada da realidade, o que acaba sendo arriscado.
De acordo com Junqueira12, nos anos 80, em diversos países do mundo, a
produção intelectual acerca do acesso à justiça dizia respeito à expansão do welfare
state13, sua crise e à efetivação dos direitos conquistados na década de 60 pelas
“minorias”. Já no Brasil as primeiras produções eram sobre a necessidade de expansão
dos direitos básicos à população, tendo em vista que a maioria não tinha acesso. O
início das pesquisas na área no País não estariam, portanto, ligados ao movimento
internacional de ampliação do acesso à justiça, mas sim ao próprio processo político
e social da época.
Isso posto, é imprescindível que analisemos o acesso à justiça a partir da nossa
própria vivência enquanto nação. Como visto, a evolução do acesso à justiça se deu
de maneira diferenciada no Brasil, uma vez que estava limitado à estrutura social da

10 MARQUES, Alberto Carneiro. Perspectivas do processo coletivo no movimento de universalização do acesso à


justiça. Curitiba: Juruá, 2007. p. 26-27, apud ZANINI, Ana Carolina. O acesso à justiça e as formas alternativas de
resolução de conflitos à luz do novo código de processo civil. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, v.
12, p. 9-26, 2017, p. 14.
11 SILVA, José Afonso da. Acesso à justiça e cidadania, Revista de direito administrativo (RDA), vol. 216, abr/jun
1999. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 9.
12 JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à justiça: um olhar retrospectivo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, p. 389-
402, 1997, p. 390.
13 É o conjunto de serviços e benefícios sociais de alcance universal promovidos pelo Estado com a finalidade de ga-
rantir uma certa “harmonia” entre o avanço das forças de mercado e uma relativa estabilidade social” (cf. GOMES,
Fabio Guedes. Conflito social e Walfare State: Estado e desenvolvimento social no Brasil. RAP. Revista Brasileira de
Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 1, mar./abr., p. 201-236, 2006).

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

época. Atualmente, não é diferente. Portanto, qualquer análise deve ser baseada nas
dificuldades e no panorama social de hoje.
Para Pedroso14, a expressão “acesso ao direito e à justiça” é mais completa, pois
abrange o “conhecimento e a consciência do(s) direito(s), a facilitação do seu uso, à
representação jurídica e judiciária por profissionais, designadamente advogados, bem
como a resolução judicial e não judicial de conflitos, ou seja, o acesso à pluralidade de
ordenamentos jurídicos e de meios de resolução de litígios existentes na sociedade”.
Esse autor justifica a escolha da expressão que, por razões de comunicação
e compreensão, abrange melhor seu objeto de estudo, por abarcar todas as ações
supracitadas. A partir desta provocação, entendemos cabível a utilização do termo
proposto, em razão de, por vezes, o direito buscado não se encontre necessariamente
em vias judiciais.
Antes de adentrarmos na atual situação e nos mecanismos existentes, ressaltamos,
ainda, a definição de Ribeiro e Machado15 de que o acesso à justiça é considerado um
valor inerente ao Estado Democrático de Direito, pois se configura como um direito
humano fundamental, funcionando como garantia de efetividade às normas e como
política pública para emancipação do homem.
Cappelletti e Garth16 afirmam que a efetividade perfeita do acesso à justiça
pode ser expressa como a completa “igualdade de armas”, reconhecendo que essa
igualdade é utópica. No entanto, é possível avançar na direção desse objetivo utópico.
Os autores levantam o seguinte questionamento: “quantos dos obstáculos ao acesso
à justiça efetivo à justiça podem e devem ser atacados?”, colocando como primeiro
passo identificar esses obstáculos.
Em resumo, o acesso à justiça é muito mais que a possibilidade de se
buscar direitos pela via judicial ou institucional e seu significado, assim como
sua aplicabilidade, flutua de acordo com a organização político-social da época.
A partir do desafio de identificar os obstáculos que ainda persistem no contexto
brasileiro, apesar dos enormes esforços realizados pela Defensoria Pública, é que
se faz este trabalho.

14 PEDROSO, João António Fernandes. Acesso ao direito e à justiça: um direito fundamental em (des)construção.
2011. Dissertação (Doutorado em Sociologia do Estado, do Direito e da Administração) – Universidade de Coimbra,
Coimbra, 2011, p. 5.
15 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; MACHADO, José Alberto Oliveira de Paula. Acesso à Justiça e a Defensoria Pú-
blica na América Latina: Democratização de direitos como desenvolvimento. Revista Direito e Desenvolvimento, v. 8,
p. 89-106, 2017, p. 90.
16 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1988.

80
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

3. A DEFENSORIA PÚBLICA COMO INSTRUMENTO DE ACESSO À


JUSTIÇA E DIREITOS

A Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) inovou trazendo a


constitucionalização da Defensoria Pública. A Constituição Federal de 1988
criou uma instituição pública especificamente destinada a patrocinar a defesa nos
processos judiciais e fornecer orientação jurídica aos hipossuficientes17 na forma da
lei, composta por servidores públicos concursados. Tornando obrigação do Estado
o fornecimento destes serviços. A Constituição diz ainda que os Estados e a própria
União são responsáveis pela organização de suas próprias Defensorias, adotando o
modelo estatal de assistência jurídica18.
O art. 134 da Constituição Federal define a Defensoria Pública como:
...instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime
democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção
dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e
gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta
Constituição Federal.

A Defensoria Pública é, portanto, a mais nova das instituições públicas, com


pequenas exceções (ex. Rio de Janeiro e Minas Gerais). Mais de 70% das Defensorias
Públicas só foram criadas a partir de 198819. Daí então, ressalta-se a importância da
constitucionalização da Defensoria Pública.
A Defensoria Pública do Estado do Ceará, à título de exemplo, fora criada
somente no ano de 1997, por meio da Lei Complementar nº 06/97. E por ser uma
instituição nova enfrenta ainda grandes dificuldades, sobretudo para se estabelecer
nos pequenos municípios dos Estados. Muitas comarcas do Ceará, por exemplo,
ainda não possuem Defensores Públicos. Consequentemente, as populações mais
carentes, isoladas da capital, distante de grandes cidades, tem seu direito ao acesso
à justiça ainda obstruído. Até julho de 2019, 75,5% dos municípios do Ceará não

17 Importante destacar que a noção de hipossuficiência aqui utilizada diz respeito à noção econômica do indivíduo.
Por hipossuficiente, nos referimos às pessoas em situação de vulnerabilidade econômica.
18 MOREIRA, Thiago de Miranda Queiroz. A constitucionalização da Defensoria Pública: disputas por espaço no
sistema de justiça. OPINIÃO PÚBLICA, v. 23, p. 647-681, 2017, p. 647.
19 OLIVEIRA, Simone dos Santos. Defensoria pública brasileira: sua história. Revista de Direito Público, Londrina,
v. 2, n. 2, p 59-74, 2007, p. 71.

81
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

possuíam Defensor Público, contando com o número de 314 membros em seu


quadro e 148 cargos vagos20.

De acordo com informações da Defensoria Pública do Estado do Ceará, em


outubro de 2019, o número de Defensores Públicos aumentou para 34921, em razão
da convocação de aprovados no último concurso público ocorrido em 2015.
A expansão da Defensoria Pública decorre da Emenda Constitucional 80/201422,
que estabeleceu universalmente o acesso à justiça até o ano de 2022, segundo à qual
todas as unidades jurisdicionais da União, Estados e Distrito Federal, deverão contar
com defensores públicos.

3.1. O papel da Defensoria e assistência judiciária

A Lei Complementar nº 80/94 organiza e prescreve normas gerais à


Defensoria Pública da União, dos Estados e do Distrito Federal. Dentre as diversas
funções institucionais estabelecidas no art. 4º (20 incisos descritivos) da referida lei,
destacamos: “I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em
todos os graus; II – promover a conscientização dos direitos humanos, da cidadania
e do ordenamento jurídico; IV – prestar atendimento interdisciplinar, por meio de
órgãos ou servidores de suas carreiras de apoio para o exercício de suas atribuições”.
Nota-se que apenas o inciso I já esgota o que se entende tradicionalmente sobre
o que é o acesso à justiça. A Defensoria Pública veio para lembrar que só a prestação
de orientação jurídica e a defesa em todos os graus de jurisdição não são suficientes
para a promoção dos direitos e efetivo acesso à justiça.
A Defensoria Pública oferece a assistência jurídica, que compreende a assistência
judiciária, através da representação jurisdicional, e também a assistência extrajudicial,
por meio da realização e homologação de acordos, orientação, consultoria, realização
de audiências públicas, etc.

20 FEITOSA, Angélica. 75,5% dos municípios do Ceará não têm Defensor Público. O Povo. 2019. Disponível em:
<https://www.opovo.com.br/jornal/cidades/2019/07/08/75-5--dos-municipios-do-ceara-nao-tem-defensor-publico.
html?fbclid=IwAR2rNTZYWhTFj04tdU5SCiRTSEoZak6nCj8ViqHCr3Uao1_8fZ6N70FMuzc>. Acesso em: 04 de
novembro de 2019.
21 BRASIL. Defensoria Pública Do Estado Do Ceará. Quatro novos defensores públicos tomaram posse na tarde
desta terça-feira (22). 2019. Disponível em: http://www.defensoria.ce.def.br/noticia/quatro-novos-defensores-publi-
cos-tomaram-posse-na-tarde-desta-terca-feira-22/. Acesso em: 04 de novembro de 2019.
22 "Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo ser-
viço da Defensoria Pública e à respectiva população. § 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito
Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput
deste artigo. § 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá,
prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional."

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Sem dúvidas, a instituição possui papel fundamental na expansão do acesso


à justiça no Brasil. Apesar de ainda sofrer com a falta de estrutura e orçamento
insuficiente para sua ampliação, milhares de pessoas conseguem ter suas demandas
atendidas graças ao trabalho das Defensorias Públicas. Contudo, os problemas
relativos à estrutura não são os únicos impasses para a efetiva realização do acesso
à justiça. Abordaremos alguns exemplos a seguir, a partir da Defensoria Pública do
Estado do Ceará.
Sadek23 afirma que a “legalização” do acesso à justiça provoca, sim, impactos
na sociedade, no entanto, a extensão e profundidade do acesso dependem de variáveis
referentes a situações objetivas e do grau de empenho das instituições que são
responsáveis pela promoção do acesso.
A partir desta reflexão, ressalta-se que a Defensoria Pública possui sua
responsabilidade em se “empenhar” e repensar, a todo momento, mecanismos e
estratégias de maior efetivação e ampliação do acesso à justiça. Diante disso, é
preciso elencar algumas dificuldades subjacentes para traçar novos caminhos de
pluralização do acesso.

3.2. As dificuldades dos hipossuficientes em obter efetivo acesso à Justiça

Grande parte das produções acadêmicas que analisam o acesso à justiça o faz
sob a perspectiva exclusiva da possibilidade das pessoas em demandarem alguma causa
judicialmente ou mesmo da existência de mecanismos para que as pessoas possam a
vir demandar judicialmente ou extrajudicialmente.
No entanto, é extremamente necessário que possam enxergar também pela ótica
da força motriz desses sistemas: as pessoas em situação de vulnerabilidade financeira
que buscam a justiça e os direitos.
Há diversas dinâmicas por trás das demandas judiciais. O fato de um indivíduo
ter à sua disposição uma instituição pública apta a representá-lo judicialmente em
uma Ação judicial não estabelece necessariamente o efetivo acesso à Justiça. Para
melhor visualização é preciso apresentar alguns exemplos (reais) do que ocorre na
busca ao acesso à justiça.
Primeiramente, a própria busca pelos órgãos estatais ou pelos Núcleos da
Defensoria Pública demandam tempo e dinheiro, dois recursos que os assistidos não

23 SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP, n. 101, p. 55-66, São Paulo,
2014, p. 57.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

possuem. Muitas vezes os trabalhadores perdem um dia de trabalho e não conseguem


o atendimento requerido, sendo obrigados a agendar novo atendimento em dia
e horário diverso. Isso ocorre por diversos motivos, seja porque não está havendo
atendimento no dia, ou porque a pessoa não levou toda a documentação necessária e,
até mesmo, porque se dirigiu ao local incorreto, exemplo: confusões entre Defensorias
de Execução Penal e Defensorias Criminais.
Além disso, existem os gastos com deslocamentos. A tarifa de ônibus em
Fortaleza custa atualmente (2019) o valor de R$ 3,60 (três reais e sessenta centavos)
inteira e R$ 1,60 (um real e sessenta centavos) a tarifa estudantil24. O deslocamento,
por si só, acarreta o gasto de R$ 7,20 (sete reais e vinte centavos), levando em conta
o valor da inteira. Considerando que, no último ano, pelo menos 13,5 milhões de
brasileiros viviam apenas com R$ 145,00 (cento e quarenta e cinco reais) por mês25 e
que o rendimento mensal per capita do cearense é de R$ 942,00 (novecentos e quarenta
e dois reais)26, o ínfimo valor de R$ 7,20 se torna um enorme custo financeiro.
É necessário ressaltar que, como dito, as idas aos locais (Fórum, Núcleos da
Defensoria, Cartórios) não acontecem apenas uma vez e que os processos raramente
são resolvidos em tempo razoável, perdurando por vários anos. Em algumas situações,
para obter informações sobre um processo, o assistido precisa se dirigir a dois núcleos
diferentes, que não estão localizados no mesmo bairro.
Outra situação diz respeito à esfera criminal. Nas situações de prisão em flagrante,
algumas vezes, por total desespero e falta de informação, as famílias dos presos contratam
advogados na esperança de que o problema se resolva ali em razão ânsia pela liberdade
do aprisionado. Dessa forma, a família, na maioria das vezes mães/esposas desesperadas,
contraem dívidas, descobrindo posteriormente que a Defensoria Pública poderia ter
patrocinado a defesa do flagranteado desde o momento de sua prisão.
Na esfera da infância e da juventude temos outro exemplo. O Estado do Ceará
conta atualmente com 07 centros socioeducativos no interior do Estado, sendo 01 em
Cratéus, 03 em Sobral, 02 em Juazeiro do Norte e 01 em Iguatu27. Os adolescentes

24 Isso é informação que pode ser verificada difusamente no Catálogo de Serviços do site da Prefeitura de Fortaleza.
Disponível em: https://catalogodeservicos.fortaleza.ce.gov.br/. Acesso em: 04 de novembro de 2019.
25 CAPETTI, Pedro; GARCIA, Karen. Crise empurrou 4,5 milhões para extrema pobreza, que bateu recorde e atingiu
13,5 milhões de brasileiros. O Globo. 2019. Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/crise-empurrou-
-45-milhoes-para-extrema-pobreza-que-bateu-recorde-atingiu-135-milhoes-de-brasileiros-24063455. Acesso em: 05
de novembro de 2019.
26 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades e Estados. 2019. Disponível em: ht-
tps://www.ibge.gov.br/. Acesso em: 05 de novembro de 2019.
27 Informação retirada do site da Superintendência Estadual de Atendimento Socioeducativo, mantido pelo Governo
do Estado do Ceará, 2019. Disponível em: https://www.seas.ce.gov.br/ Acesso em: novembro de 2019.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

das localidades vizinhas que são submetidos ao internamento acabam tendo que se
deslocar para os municípios em que há centro socioeducativos.
Esse deslocamento de ida é patrocinado pelo Estado, visto que tem interesse que
os adolescentes sejam submetidos ao internamento, no entanto, ao serem liberados,
os adolescentes não recebem qualquer auxílio, ficando sob a responsabilidade da
família o deslocamento de volta. Muitas vezes, a família não tem condições e
acontece de servidores que atuam nas Varas da Infância e da Juventude acabarem
custeando o deslocamento.
Essas são só algumas situações vivenciadas pelos hipossuficientes no contidiano
da Justiça. É importante identificar essas situações como impeditivos ao exercício
pleno do acesso à justiça, assim como abrir portas para investigação de outras situações
como estas, a fim de traçar estratégias de enfrentamento para ampliar e aperfeiçoar
não só a Defensoria Pública, mas o sistema judicial em sua totalidade.

4. UMA REFLEXÃO PARA PENSAR POLÍTICAS PÚBLICAS E A DEFENSORIA


PÚBLICA DO AMANHÃ

Percebe-se que muitas dessas situações estão para além do poder da Defensoria
Pública em oferecer assistência jurídica gratuita. Ressalta-se que o objetivo de levantar
essa discussão não é, de forma alguma, desmerecer a Defensoria Pública, pelo contrário,
a instituição destaca-se por ser a mais bem avaliada do sistema de justiça28, contudo,
alguns pontos podem ser trabalhados pela própria instituição.
As instituições e mecanismos que compõe a justiça não podem ser consideradas
imutáveis, como bem alertam Cappelletti e Garth29. É completamente aceitável que
se façam observações visando contribuir para a melhoria da Defensoria Pública.
A reflexão acerca do acesso à justiça deve levar em conta três etapas distintas
e interligadas, são elas: o ingresso buscando a obtenção de um direito, os caminhos
após a entrada e a saída. Assim, o acesso à justiça só é efetivo quando a “porta de
entrada” dê indícios da “porta de saída” em um período razoável de tempo. Essa “ca-
minhada” pressupõe que toda análise deve ser realizada incluindo condicionantes de

28 CONDEGE. Pesquisa divulgada pela Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), realizada pela Fundação Getú-
lio Vargas, no período de agosto/2018 a outubro/2019, mostrou 78% da sociedade aprova a Defensoria Pública. 2019.
Disponível em: http://www.condege.org.br/. Acesso em: 15 dezembro 2019.
29 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 1988, p. 8.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

natureza social, cultural e política30. As propostas apresentadas levam em conta todos


os estágios da caminhada do acesso à justiça efetivo.

Primordialmente, é necessário que se propague a própria noção da existência de


um direito. De acordo com a autora supracitada, análises comparativas internacionais
dão conta de que sociedades com maiores índices de desigualdade econômica e social
apresentam maior probabilidade de que sua população desconheça seus direitos.
Adaptando à realidade da Defensoria Pública, é possível pensar em novas
comunicações. A começar pela ampliação e maior divulgação dos canais de
comunicação (redes sociais, serviço telefônico). As pessoas não se sentem seguras
se elas possuem determinado direito e consideram cansativo o deslocamento até
uma unidade da Defensoria somente para tirar a dúvida. Embora seja de extrema
importância a análise pessoal realizada pelo Defensor Público, já que é indispensável
“avaliar o caso concreto”, a propagação de informações mais simples sobre divórcio,
partilha, direito do consumidor, etc., como forma de propagação de informações
sobre direitos, parece ajudar no problema do desconhecimento.
A comunicação interna também deve ser estimulada e reforçada, sobretudo
em conhecimentos sobre o funcionamento da própria Defensoria pelos Defensores,
Estagiários e Colaboradores. Em alguns momentos, ocorre a prestação de informações
equivocadas sobre, por exemplo, qual núcleo o assistido deve se dirigir para obter
determinada informação, então é interessante que, para evitar deslocamentos
desnecessários – ponto que será trabalhado doravante – a informação seja a mais precisa
possível. Para isso, um canal de comunicação interna, com núcleos especializados e
Defensorias Forenses, se mostra um mecanismo promissor.
Outro grande problema diz respeito ao deslocamento. No cotidiano do
atendimento da Defensoria Pública, acontece do assistido se dirigir à um local errado
ou simplesmente de precisar ir em locais diferentes para obter informações diferentes
sobre o mesmo caso.
Um bom exemplo são os casos em que o réu está preso. Para obter informações
sobre o processo, é necessário se dirigir à Defensoria Criminal localizada no Fórum
respectivo e, para obter informações sobre a prisão provisória, deve o solicitante se
dirigir ao Núcleo de Assistência ao Preso Provisório (NUAPP), localizado em outro
bairro. Uma única e grande estrutura da própria Defensoria, incluindo os núcleos
especializados e as Defensorias Forenses, ou pelo menos que funcionem próximo uns aos

30 SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. Revista USP, n. 101, p. 55-66, São Pau-
lo, 2014, p. 57.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

outros, ajudariam nos deslocamentos desses casos que detém proximidade. Tal proposta
deve ser pensada levando em conta aspectos econômicos da Defensoria Pública, assim
como questões logísticas, que só estudos e pesquisas diversos poderão oferecer.
Importante enfatizar que outra proposta para ajudar nos deslocamentos é a
expansão dos Núcleos descentralizados. A exemplo, atualmente, em Fortaleza, no
Ceará, a Defensoria conta com dois Núcleos Descentralizados: Núcleo Descentralizado
do João XXIII e Núcleo Descentralizado do Mucuripe. É interessante a construção de
novos núcleos em outros “extremos” da cidade, o que deve entrar no planejamento da
Defensoria, sendo que esta deve buscar, cada vez mais, por orçamento para assegurar
tal ampliação, tornando a Defensoria Pública mais próxima dos assistidos.
A Defensoria está em constante trabalho para garantir e ampliar o acesso à
justiça. A instituição já possui um projeto chamado “Defensoria em Movimento”,
no qual leva atendimento jurídico e educação em direitos aos bairros, comunidades e
municípios, de forma itinerante. É um excelente exemplo de aproximação ao público
que deve ser estimulado e ampliado para que alcance todos os bairros. Outro projeto
a ser destacado é o Orçamento Participativo, quando a população tem possibilidade
sugerir propostas e temáticas prioritárias à atuação da instituição.
Em novembro de 2019, mais especificamente, a Defensoria Pública Defensoria
Pública do Estado do Ceará criou o Núcleo de Estudo e Pesquisas (NUESP)31,
que tem como objetivo alimentar dados sobre a atuação dos defensores públicos e
auxiliar políticas públicas de inclusão social e diminuição das desigualdades sociais.
O estimulo à pesquisa, dentro e fora da instituição, deve visar maior democratização
do acesso à justiça, e devem ser muito bem vistos e ampliados. A participação de
outras ciências nesses estudos (sociologia, antropologia, estatística, engenharias)
possibilitará dados mais tangíveis e adequados para estudos de novas políticas e
ações adotadas futuramente.
Todos os problemas apresentados e outros que se manifestam no cotidiano
forense tem ligação estreita com a desigualdade social. O combate à pobreza é uma
das maiores – se não for a maior - ferramentas na busca ao acesso à justiça mais amplo
e efetivo. Devemos assumir que a luta pelo acesso à justiça caminha ao lado da luta
contra a extrema pobreza. Este é o grande desafio que gerações terão que enfrentar,
buscando políticas públicas mais eficazes na educação, saúde, segurança, entre outras
esferas da vida social e econômica.

31 BRASIL. Defensoria Pública Do Estado Do Ceará. Defensoria Pública do Estado do Ceará implanta Núcleo de
Estudos e Pesquisas. 2020. Disponível em: http://www.defensoria.ce.def.br/noticia/defensoria-do-ceara-implanta-nu-
cleo-de-estudos-e-pesquisas/. Acesso em: março de 2020.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

De acordo com José Afonso da Silva32, considerando que um dos fundamentos


da República é a construção de uma sociedade justa, o Estado não pode se contentar
apenas com a mera solução processual dos conflitos.
Nesse contexto, encontramos força argumentativa para reafirmar a ideia de que
o Estado e o sistema judicial possuem papel fundamental para enfrentar os imbróglios
que ainda limitam o exercício pleno do acesso à justiça, de forma a trabalhar na
construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A luta pelo acesso à justiça é um movimento histórico. É uma vertente da luta


pelos direitos, partindo da concepção de Ihering33 de que todo direito no mundo foi
adquirido através de luta. A luta pelo acesso à justiça, portanto, caminha ao lado das
lutas por direitos sociais e consequente redução da desigualdade social. Quando se
luta pela erradicação da pobreza, indiretamente, se luta para que, à título de exemplo,
mais pessoas possam ter a oportunidade de se dirigir à órgãos estatais para resolução
de algum litígio ou simplesmente para acompanhar o andamento processual.
Partilhamos da ideia de Ribeiro e Machado34, de que o acesso à justiça é um
mecanismo eficiente para promover a capacidade dos indivíduos, colaborando
para a criação de novas oportunidades individuais e coletivas. O efetivo acesso à
justiça possui inteira capacidade de transformar uma sociedade, mas é necessário
assegurar que este esteja à disposição de todas as pessoas, independentemente da
capacidade econômica.
Observa-se que quase todas as dificuldades que insistem em obstruir o acesso à
justiça nos dias atuais perpassam pela desigualdade social. Por isso, um passo importante
é lutar pela amenização dessas desigualdades sociais junto ao aperfeiçoamento da
Defensoria Pública.
Para Sadek35, não se pode falar em inclusão social se não houver condições
efetivas de acesso à justiça. Acreditamos que, em verdade, não se pode falar em efetivo

32 SILVA, José Afonso da. Acesso à justiça e cidadania. Revista de direito administrativo (RDA), vol. 216, abr/jun
1999. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
33 Conforme palestra proferida por Rudolf Von Ihering em 1872, em que expôs a luta pelo direito, que se tornou
objeto de debates e produções jurídicas dos mais diversos.
34 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira; MACHADO, José Alberto Oliveira de Paula. Acesso à Justiça e a Defensoria Pú-
blica na América Latina: Democratização de direitos como desenvolvimento. Revista Direito e Desenvolvimento, v. 8,
p. 89-106, 2017, p. 90.
35 SADEK, Maria Tereza Aina. Acesso à justiça: porta de entrada para a inclusão social. In LIVIANU, R., coord. Jus-
tiça, cidadania e democracia [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisa Social, 2009, p. 170.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

acesso à justiça se não houver práticas e políticas públicas de inclusão social que
possam oferecer subsídios básicos para que as pessoas possam buscar seus direitos
judicialmente ou extrajudicialmente.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, [2018]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/consti-
tuicaocompilado.htm. Acesso em: 04 nov. 2019.

BRASIL. Defensoria Pública Do Estado Do Ceará. Defensoria Pública do Estado do Ceará implanta
Núcleo de Estudos e Pesquisas. 2020. Disponível em: http://www.defensoria.ce.def.br/noticia/de-
fensoria-do-ceara-implanta-nucleo-de-estudos-e-pesquisas/. Acesso em: março de 2020.

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posse na tarde desta terça-feira (22). Fortaleza, 2019. Disponível em: http://www.defensoria.ce.
def.br/noticia/quatro-novos-defensores-publicos-tomaram-posse-na-tarde-desta-terca-feira-22/.
Acesso em: 04 de novembro de 2019.

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CAPETTI, Pedro; GARCIA, Karen. Crise empurrou 4,5 milhões para extrema pobreza, que bateu
recorde e atingiu 13,5 milhões de brasileiros. O Globo. 2019. Disponível em: https://oglobo.
globo.com/economia/crise-empurrou-45-milhoes-para-extrema-pobreza-que-bateu-recorde-a-
tingiu-135-milhoes-de-brasileiros-24063455. Acesso em: 05 de novembro de 2019.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

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90
Capítulo 6
O INFLUXO DO NOVO
CONSTITUCIONALISMO
LATINO-AMERICANO JUNTO AO
ACESSO À JUSTIÇA: A NATUREZA
COMO SUJEITO DE DIREITOS E
SUAS CONSEQUÊNCIAS
SUMÁRIO: Introdução. 1. O acesso à justiça em contato com o novo constitucionalismo
latino-americano. 2. a natureza como sujeito de direitos: o bem viver e a legislação atinente
ao novo constitucionalismo latino-americano. 2.1. O Bem Viver. 2.2. As Formas Jurídicas
e Legislativas da Temática. 2.2.1. Equador. 2.2.2 Bolívia. 3. O acesso à justiça e as
consequências da titularização de direitos pela natureza. Considerações finais. Referências
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 6

O INFLUXO DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-


AMERICANO JUNTO AO ACESSO À JUSTIÇA: A NATUREZA COMO
SUJEITO DE DIREITOS E SUAS CONSEQUÊNCIAS

Breno Silveira Moura Alfeu1

INTRODUÇÃO

A convivência social humana é, atualmente, regrada por conjuntos de normas


de conduta que permitem sua continuidade e estabilidade. É inegável que o Direito
cumpre a normatividade necessária para a manutenção, estabilização e continuidade
da vida em sociedade, sendo um daqueles conjuntos.

Assim, é papel do Estado assegurar o cumprimento dessas normas, mediante


seus procedimentos e lógica de conduta internas, garantindo e reforçando, primaria-
mente, a autoridade e imperatividade do Direito2. Hoje, o Poder Judiciário cumpre
esse papel mediante o exercício de sua função jurisdicional. Ou seja, viabiliza aquela
finalidade de regramento social do direito, resolvendo conflitos e especificando a apli-
cação das normas jurídicas em última instância.

Nesse contexto, surge como componente da vertente de possibilidade do


exercício daquela função o acesso à justiça3. De fato, não há que se falar em efetiva-
ção ou realização da função jurisdicional com efetividade e eficiência máximas, se não
se puder, ao mesmo tempo, incluir a ideia de abrangência.

Com efeito, a Justiça que somente funciona para resolver parte dos conflitos
de necessária intervenção sua, mas que são inviabilizados de serem levados à aná-
lise dela, não cumpre a sua função de jurisdição, tampouco o faz de forma efetiva

1 Mestrando em Direito (UFC), Pós-graduando em Direito Digital e Compliance (Damásio Educacional), Ba-
charel em Direito (UFC), Advogado (OAB/CE).
2 E aqui se menciona “primariamente” porque não se nega a possibilidade da exigência por meio de entidades
não estatais e particulares agirem no sentido de manter a autoridade e exigir o cumprimento do modelo normativo
objetivo de uma determinada sociedade.
3 Como pacto textual, utilizar-se-á a grafia “acesso à justiça” quando se objetivar fazer menção ao simples fato
de ser possível instar o Poder Judiciário para resolução de conflitos jurídicos. Ao lado disso, será grafado “Acesso
à Justiça” quando se desejar fazer menção expressa ao direito fundamental.

93
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

e eficiente. Ao revés, o consentimento de que haja essa parcialidade4 tão somente


reforça a desorganização social e enfraquece a legitimidade do próprio Estado – e
mais especificamente, do Poder Judiciário - em sua inabilidade de solucionar aquilo
que deveria resolver.

Nesse sentido, durante a evolução da teoria constitucional no decorrer da his-


tória humana, observe-se a formação da concepção do direito de Acesso à Justiça. Esse
direito tem sua concepção mais claramente observada a partir da origem do estado
de bem estar social e dos direitos de segunda dimensão. É que o período histórico a
elas contemporâneo exige uma atuação positiva do Estado em favo de sua população.

Assim, a concepção de Acesso à Justiça é associada ao combate às desigual-


dades sociais e às necessidades de uma vida humana digna, passando de uma noção
formal de acesso à justiça para uma noção material de acesso à justiça, em conexão
com o mandamento de igualdade, também material5. É dever do Poder Público, por
orientação desse direito, possibilitá-lo e viabilizá-lo.

Contemporaneamente, todavia, observa-se que a ciência jurídica passa por


novos influxos para além da concepção de direitos humanos. Esta promoveu diversas
mudanças nos períodos pós-guerra, tornando-se centro tanto de pesquisas científicas
quanto de influência difusa nos campos jurídico, social e político6.

Deles é possível de se destacar o novo constitucionalismo latino-americano.


Tal vertente se caracteriza por reformulação dos ideais constitucionais a partir das
peculiaridades culturais e históricas dos países da América latina, minorando o ideal
colonial, hegemônico e desenvolvimentista da era moderna e pós-moderna7. Em
outras palavras, não relegam ideias tradicionais do Estado Democrático de Direito,
por exemplo, democracia e necessidade de sistema jurídico, apenas as reavaliam e
modificam com base nas necessidades da cultura local.

4 Emprega-se “parcialidade” no sentido de cumprir apenas parte de seu potencial e não de se alinhar a alguma
vertente, ideologia e concepção política.
5 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Ale-
gre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 9-13.
6 idem, p. 11-12.
7 MIRANDA, José Alberto Antunes de Miranda; CADEMARTORI, Sergio Urquhart de. Processos constituin-
tes e novas condições do Estado na América latina: uma identidade comum? Revista Nomos, Fortaleza, v. 36, n.
1, jan./jun., 2016, p. 223-225.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Há, como expoentes e base dessa mudança de paradigma8, o Equador e a Bo-


lívia, cada um deles tendo como marco as suas respectivas constituições: constituição
do Equador em 2008 e a constituição da Bolívia em 2009.

A característica de relevo e de contato com o tema é o reconhecimento da na-


tureza como um sujeito de direitos e não mais como um objeto de interesses humano,
consoante se concebia a partir das concepções jurídicas europeias. Assim, a natureza
deixa de ser um objeto determinado pela ordem jurídica – ou mesmo uma noção pre-
cária de objeto a ser defendido - e, agora, é considerada uma entidade ativa que pode
e deve proteger-se por meio do exercício de seus direitos junto ao Poder Judiciário.

Isso representa um novo marco para o Acesso à Justiça, auxiliando não apenas
o combate às desigualdades sociais, mas também a combater outras ocorrências pre-
judiciais ao ser humano, tais como os danos ambientais. Ou seja, já se consegue ve-
rificar que o novo constitucionalismo latino-americano promove uma reformulação
do Acesso à Justiça, desenvolvendo-o junto à terceira e à quarta dimensão de direitos
fundamentais, inserindo a natureza no rol daqueles que merecem ter esse direito asse-
gurado para buscar sua proteção. Esta é a hipótese básica do presente texto.

O que é objetivado pelo presente trabalho, então, é analisar o influxo do novo


constitucionalismo latino-americano junto ao Acesso à Justiça. Essa análise terá como
foco de desenvolvimento a inclusão da natureza como sujeito de direitos que deve
ter o acesso à justiça garantido a si, bem como as consequências dessa inclusão. Por
sua vez, as consequências serão analisadas mediante apresentação de casos que tratam
dessa temática, os quais detiveram se conectam com o influxo ora apresentado. Tudo
isso a fim de constatar a validade da hipótese já indicada.

Para tanto, o texto foi divido em cinco seções. A primeira é a introdução


aqui observada. A segunda cuidará de abordar o acesso à justiça e o novo constitucio-
nalismo latino-americano. A terceira seção é centrada na abordagem do bem viver,
este que é a noção cultural que influencia esse modelo teórico, e na apresentação da
legislação que concretiza a posição da natureza como sujeito de direitos. A quarta
seção tem como foco a explicitação das consequências do influxo das premissas desse
constitucionalismo junto ao Acesso à Justiça, o que será demonstrado por meio de

8 Excluir-se-á da presente análise o sistema jurídico venezuelano, já que, em leitura preliminar, isso fugiria do
escopo específico da publicação objetivada e conduziria o trabalho para o perfil de um estudo exaustivo sobre todo
o movimento constitucional latino-americano. Isso extrapolaria o recorte temático ora pretendido. Porém, não se
nega ou se olvida a contribuição da Venezuela para esse marco teórico. É que o que se pretende utilizar como
aporte teórico é um referencial constitucional – Equador – e um constitucional e infraconstitucional – Bolívia –
acerca das possibilidades dos direitos da natureza junto ao Acesso à Justiça, mantendo-se uma concisão mínima.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

uma breve síntese e de apresentação de casos concretos. Por fim, a quinta parte será
a conclusão do texto, demonstrando e consolidando as informações apresentadas,
validando a hipótese de que o influxo do constitucionalismo representa em uma re-
formulação do Acesso à Justiça, promovendo inserção da necessidade de prover acesso
à natureza, já que está é sujeito de direitos e deve deter meios de buscar o Judiciário
para efetivar sua proteção.

Diante do exposto, o presente trabalho se trata de uma pesquisa explicativa


básica de abordagem qualitativa que se utiliza do método dedutivo mediante a confe-
rência direta de fontes bibliográficas e documentais.

1. O ACESSO À JUSTIÇA EM CONTATO COM O NOVO


CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

O Acesso à Justiça é concepção jurídica que surgida no decorrer da história


humana, mais especificamente nos períodos pós-guerra. E isso se afirma exatamente
porque houve, nessa época, reformas ocorrentes no Estado liberal clássico, as quais
foram propiciadas por novas demandas de cunho mais social e coletivista que se
contrapunham ao individualismo da época9. E isso deu origem à configuração do
Estado de bem-estar social.

Em razão do fato de que o Direito é ferramenta de organização, manutenção


e continuidade da vida social, conforme já exposto, a modificação na realidade social
e no modelo estatal também provocam mudanças a si, posto que ambos são elemen-
tos que o integram. Assim, houve uma progressão de atenção ao acesso à justiça ele-
vando-o ao patamar de direito humano e de direito fundamental10.

Desse modo, observa-se a ascensão do Acesso à Justiça como forma jurídica


decorrente da segunda geração de direitos fundamentais, sendo uma garantia da efe-
tiva possibilidade de se exigir uma conduta positiva do Estado em face da disparidade
entre proteção jurídica formal e real11.

E, ao passo em que a realidade social tem seus contornos e componentes al-


terados, também há modificação na compreensão desse direito. Ou seja, os seus con-

9 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Ale-
gre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 9-11.
10 idem, p. 11.
11 BORGES, Gustavo Silveira; AL, Mônica Abdel. A efetivação do direito fundamental do acesso à justiça por
meio da mediação virtual de conflitos. Revista Nomos, Fortaleza, v. 39, n. 1, jan./jun., 2019, p. 113.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tornos não são estanques como uma mera regra jurídica objetiva. Isso afasta o Acesso
à Justiça da noção de ideal estaque e o aproxima de uma noção mais ampla12.

Esse alargamento conceitual decorre daquela progressão de atenção.


Mauro Cappelletti e Bryant Garth ao se reportarem às soluções apresentadas pelos
Estados em prol de efetivo acesso à justiça e em alinhamento àquele imperativo
de conduta positiva de proteção social, sendo elas proposições básicas possíveis de
serem classificadas como ondas13.

A primeira “onda” é relativa à concessão da assistência jurídica gratuita para


a população mais carente, uma vez que as custas judiciais e honorários obstavam o
acesso ao Judiciário para pessoas com poucas condições financeiras14.

Como resultado disso, surgiram15: o sistema Judicare adotado por diversos


países europeus, por exemplo, França, Holanda e Inglaterra; o modelo de advogado
remunerado pelos cofres públicos, adotado pelos Estados Unidos da América; e o
modelo combinado, o qual combina ambos os sistemas, consoante realizado pela
Suécia e pelo Canadá.

No primeiro, em suma, os advogados são particulares e se mantêm por meio


de honorários pagos pelo Estado. Naquele segundo, objetivamente, os advogados são
servidores públicos remunerados pelo Poder Público. No terceiro modelo, há uma
fórmula intermediária que combina ambas as outras modalidades aludidas, mas ora
prestigiando mais uma vertente particular, ora dando mais ênfase à advocacia pública.

A segunda “onda” é, por sua vez, atinente ao reconhecimento dos interesses


difusos e coletivos. Seu foco a concepção de que o auxílio aos mais carentes de auxílio
do Judiciário e de proteção aos seus direitos não se restringiam à demandas indivi-
duais, devendo ser também considerados conflitos – imbróglios, problemas – comuns
a todos a um grupo social16.

12 XAVIER, Beatriz Rêgo. Um novo conceito de acesso à justiça: propostas para uma melhor efetivação de di-
reitos. Revista Pensar, Fortaleza, v. 7, n. 1, 2002, p. 1-2.
13 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Ale-
gre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 31.
14 BORGES, Gustavo Silveira; AL, Mônica Abdel. A efetivação do direito fundamental do acesso à justiça por
meio da mediação virtual de conflitos. Revista Nomos, Fortaleza, v. 39, n. 1, jan./jun., 2019, p. 114.
15 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op. cit., p. 35-47.
16 BORGES, Gustavo Silveira; AL, Mônica Abdel. Op. cit., p. 114.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Representando esse segundo universo de proposições referentes aos proble-


mas que atingem interesse difuso e coletivo, há também diversas vertentes17: as ações
governamentais – que partem de atuação do Poder Público para sua resolução, a
exemplo das agências reguladoras e eleição do Ministério Público como parte pro-
cessual legítima para essas questões -; os procuradores-gerais privados – os quais são
particulares que propõem ações representando o coletivo correspondente a um inte-
resse difuso, suplementando a ação governamental -; e os advogados particulares de
interesse público – que é representada por entidades privadas criadas para defender
interesses de uma parcela populacional (por exemplo, associações e sindicatos), sendo
que posteriormente foi reformulada, em algumas localidades, como assessorias cus-
teadas pelo Governo ou de representação mista, privada e pública, mas ainda com
foco na defesa do interesse difuso.

A terceira “onda” tem como base o foco no efetivo e eficiente Acesso à Justiça,
não mais bastando sua satisfação se exaurir na postulação junto ao Judiciário, mas sim de-
vendo albergar a ideia de celeridade e de métodos alternativos de resolução de conflitos18.

Assim, ela tem finalidade diversa das outras “ondas”, já que aquelas tinham
como fito tratar do que antes foi olvidado pela realidade jurídica e judicial. Essa ter-
ceira classificação apresenta como elemento característico a verificação de que alber-
gar o que foi relegado não é suficiente, tampouco efetivo, uma vez que a estrutura do
Judiciário ainda mantém suas deficiências.

Na realidade, após aquelas “ondas” de inclusão, o que se faz necessário é per-


mitir um funcionamento célere, efetivo e eficiente. E isso até porque albergar e re-
conhecer sem resolver em tempo a demanda nada mais é, conforme já ressaltado,
prejudicar a própria lógica sobre a qual o Poder Judiciário se erige, já que apenas serve
para fustigar as partes de um conflito perpetuado.

Consoante Cappelletti e Garth, o enfoque dessa terceira “onda” permitiu a


realização de novas soluções que colimam realizar aquele enfoque comum, originan-
do reformas tais quais: mudanças de estruturas do Judiciário; modificações no direito
material para evitar embates judiciais; criação de procedimentos adaptados a lides
específicas; e admissão de resolução alternativa de conflitos19.

17 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Ale-
gre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 51-67.
18 BORGES, Gustavo Silveira; AL, Mônica Abdel. A efetivação do direito fundamental do acesso à justiça por
meio da mediação virtual de conflitos. Revista Nomos, Fortaleza, v. 39, n. 1, jan./jun., 2019, p. 114-115.
19 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Ale-
gre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 67-73.

98
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Assim, é possível de se observar que a concepção de Acesso à Justiça, mesmo


que se mantenha seu reconhecimento de direito fundamental de caráter eminente-
mente social, é mais complexa do que a simples possibilidade de instar o Judiciário.
Com efeito, a sua compreensão perpassa diversas vertentes – conforme visto na obser-
vação das “ondas” – que advindas de necessidades daquela atuação positiva do Estado
em prol de uma sociedade mais igualitária.

Em um movimento na mesma direção da inclusão, surge o novo constitucio-


nalismo latino-americano. Também denominado de constitucionalismo andino, essa
nova concepção parte da noção de inclusão e democracia participativa com base no
reconhecimento do pluralismo que compõe a sociedade.

Ou seja, busca conceder participação aos excluídos do processo de construção


civilizatória hegemônica. E isso é proposto – e colimado – por meio de uma mobili-
zação social e política – manifestação da vontade constitucional transformadora - em
favor de uma renovação das bases estatais a partir de iniciativa dos povos colonizados
e à margem da sociedade de padrão europeu20.

Seus processos constitucionais são, dentro desse ideário, pautados em as-


sembleias constituintes de participação popular cujos projetos passam por crivo de
aprovação do povo mediante referendum21. Suas cartas constitucionais são amplas,
complexas e detalhadas, formuladas especificamente para a realidade do seu País de
origem, atentando para os valores, tradições e estruturas locais, sendo comprometidas
com a descolonização22.

Desse modo, tem como fim romper com ideais importados, reimaginando-
os e reformulando concepções próprias às identidades dos povos latino-americanos.
Com base nisso, esse novo constitucionalismo minora o ideal colonial, hegemônico
e desenvolvimentista da era moderna e pós-moderna23. E isso faz enquanto mantêm
ideias tradicionais do Estado Democrático de Direito, avançando sobre as necessidades
culturais e étnicas locais24.

20 SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado em América Latina: perspectivas desde uma
epistemologia del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad, 2010, p. 71-72.
21 MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América latina. Corte
Interamericana de Direitos Humanos, 2010, p. 5.
22 idem. p. 5.
23 MIRANDA, José Alberto Antunes de Miranda; CADEMARTORI, Sergio Urquhart de. Processos constituin-
tes e novas condições do Estado na América latina: uma identidade comum? Revista Nomos, Fortaleza, v. 36, n.
1, jan./jun., 2016, p. 223-225.
24 MELO, Milena Petters. Op. cit., p.5.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Há, como expoentes e base dessa mudança de paradigma, o Equador e a Bo-


lívia, cada um deles tendo como marco as suas respectivas constituições: constituição
do Equador em 2008 e a constituição da Bolívia em 2009.

Quanto ao reconhecimento das diferenças e aceitação delas, a concretização


do novo constitucionalismo permitiu a existência de diversas ordens jurídicas no ter-
ritório andino dentro de um mesmo Estado, este, no caso, agora denominado como
Estado plurinacional. Essa mesma configuração estatal origina uma sistemática jurí-
dica peculiar, que é o sistema plurijurídico. Assim, em um território, pode haver a
aplicação de ordenações e sistemas jurídicos distintos específicos para cada uma das
culturas nela existentes25. Dessa maneira, a cultura de um indivíduo é o parâmetro de
aferição para a aplicabilidade normativa, selecionando qual das infinidades de normas
que incidem – abstratamente - sobre um mesmo fato será a aplicável.

Quanto à ideia de inclusão e mobilização social, há o exercício da democracia


participativa. Os cidadãos não apenas atuaram no processo constitucional, mas tam-
bém têm possibilidade de agir no controle e gestão da administração pública a partir
de instituições de controle e de base popular26, sendo estas27: o “Quinto Poder” no
Equador; e o “Controlo Social” na Bolívia.

E todo o ideal promovido pelo novo constitucionalismo latino-americano e


os seus mecanismos de concretização provêm de uma mudança paradigmática sobre
o modo de vida cotidiana. Essa mudança é o bem viver. Nos dialetos indígenas, ela
pode ser denominada, de sumak kawsay para a realidade do Equador e suma qamaña
para a realidade da Bolívia28, além de também deter diversas outras denominações a
depender do povo ameríndio que a ele se refere: a população amazônica denomina
o bem viver pela expressão “volver a la maloca”; a população mapuche – que habita
o território chileno - adota a denominação “kyme mogen”; e, por sua vez, o povo
guarani a nomearam de “teko kavi” / “nhandereko”29.

25 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O Estado plurinacional e o direito internacional moderno. Curiti-
ba: Juruá, 2012, p. 105-106.
26 MELO, Milena Petters. Constitucionalismo, pluralismo e transição democrática na América latina. Corte
Interamericana de Direitos Humanos, 2010, p. 6.
27 Está incluso nesse rol o “Poder Ciudadano” reconhecido na Venezuela (cf. MELO, Milena Petters. Constitu-
cionalismo, pluralismo e transição democrática na América latina. Corte Interamericana de Direitos Humanos,
2010, p. 6).
28 MELO, Milena. Op. cit., p. 5.
29 ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu
Breda. São Paulo: Autonomia literária, 2016, p. 23; 75.

100
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Esse ideal propõe um novo modo de vida que se diferencia substancialmente


da realidade contemporânea usual. Ele é erigido por uma noção de harmonia com a
natureza com foco em uma melhor qualidade de vida fundado em características de
complementariedade, relacionalidade, reciprocidade e correspondência30.

A internalização induz a reavaliação da posição do ser humano como ente


central da existência, posto que, nessa perspectiva, a natureza é o centro dos valores
e parâmetro de verificação das outras noções existentes na realidade social e econô-
mica. Ela é um fim em si mesmo. Esse contexto revela que o humano nada mais é
do que uma de suas partes integrantes, não podendo se dissociar da natureza, já que
esta é o todo da existência e entre ambos há um vínculo indissociável. Sem um, o
outro não sobrevive ou subsiste.

Por isso, considerar a natureza como um mero objeto resulta em prejuízo


aos indivíduos que a compõe, sendo sua exploração irrefreável pela ótica desenvolvi-
mentista um atentado não apenas contra os seres irracionais, mas também contra a
própria existência humana.

Portanto, o bem viver institui uma ordem ecocêntrica em que o ser humano
perde seu prestígio, embora não se negue sua singularidade, em prol de uma entidade
superior a ele, da qual ele faz parte e depende. Assim, a natureza deixa de ser objeto
e passa a ser sujeito, que pode, deve e merece ser defendido. Ou seja, é considerado
sujeito de direitos dentro dessa ordem constitucional de matriz ecocêntrica31.

Ante o exposto, percebe-se que o Acesso à Justiça encontra convergências jun-


to ao novo constitucionalismo latino-americano, havendo, inclusive, compatibilidade
entre ambos. É que esse novo molde constitucional compartilha da mesma noção
inclusiva e de amparo estabelecida no ideal de Acesso à Justiça, uma vez que propug-
na a participação dos excluídos no processo histórico de desenvolvimento social e de
colonização. Isso é exatamente o que se observa pela primeira “onda”.

Ao lado disso, ambos também compartilham de atenção à realidade cole-


tiva, o que se observa das iniciativas da segunda “onda”, posto que buscam tratar
dos imbróglios envolvendo coletividades. Contudo, o constitucionalismo latino-
-americano mais além. Ele aborda a questão coletiva garantindo a participação de

30 ALFEU, Breno Silveira Moura. As ampliações da função multisemântica da dignidade pelo bem viver. In:
MORAES, Germana de Oliveira; FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda; FERRAZ, Danilo Santos. Do di-
reito ambiental aos Direitos da Natureza: teoria e prática. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019, p. 69-70.
31 MORAES, Germana de Oliveira. O constitucionalismo ecocêntrico na América Latina, o bem viver e a nova
visão das águas. Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v.34, n.1, jan./jun., 2013, p. 129-130.

101
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

todos os afetados pelo fato a ser tratado, não apenas auxiliando-os, mas também
estimulando uma conduta mais ativa.

De fato, isso já se assemelha às finalidades da terceira “onda”, na qual se


colima o efetivo Acesso à Justiça por meio de resoluções alternativas de resolução
de conflitos, os quais estimulam a autocomposição, além de eficiência e efetividade
aliadas a outras técnicas, tais como procedimentos, estruturas judiciais e direito ma-
terial específicos. Estas técnicas podem ser observadas pela existência, mencionada
anteriormente como exemplo, do Estado plurinacional, que também é plurijurídico.

Pelo constitucionalismo aludido, há irradiação para o campo político, mas ele


também observa o campo jurídico, por meio de uma ótica inclusiva e de internaliza-
ção da pluralidade cultural. Igualmente ao Acesso à Justiça, ele se relaciona aos ideais
sociais dos direitos de segunda dimensão.

Entretanto, esse novo modelo constitucional detém, consoante exposto, uma


noção que representa um passo a mais para a inclusão albergada por aquele direito
de Acesso à Justiça. É que o rol de indivíduos que devem ter esse direito garantido é
ampliado. Agora, a natureza se faz presente como sujeito que merece ser reconhecido,
tendo garantia de instar o Judiciário, pois – inegavelmente – questões relativas a si
tocam a interesses difusos e coletivos, além de ser necessário que haja efetividade e
eficiência no tratamento de suas demandas jurídicas. E isto até porque ineficiência e
inefetividade nada mais do que prejudica, em instância inicial ou final, o próprio ser
humano, já que este depende da natureza.

Assim, o influxo do novo constitucionalismo latino-americano promove um


contato entre este e as noções do direito de Acesso à Justiça, realizando uma mudança
qualitativa de alargamento de seu espectro de titulares, compatibilizando as necessi-
dades e iniciativas estatais originadas em sua consolidação na história jurídica com as
percepções e o paradigma ecocêntricos. Com isso, reimagina o Acesso à Justiça sob
um foco de direitos fundamentais de terceira e quarta dimensão.

A fim de explicitar esse influxo e de que modo isso se concretiza, faz-se


necessário aprofundar a análise ora realizada, abordando tanto o ideal que funda
esse modelo constitucional – com o fito de esclarecer e sedimentar as características
necessárias para o Direito dele oriundo - quanto a legislação que o viabiliza. Além
disso, é necessário demonstrar as consequências práticas desse influxo ao conheci-
mento do Acessa à Justiça mediante de casos concretos. E isso é o que será feito,
respectivamente, nas próximas seções.

102
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

2. A NATUREZA COMO SUJEITO DE DIREITOS: O BEM VIVER E A


LEGISLAÇÃO ATINENTE AO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO

O novo constitucionalismo latino-americano reavalia as noções existentes no


âmbito político e jurídico mediante um espectro de inclusão e de pluralismo étni-
co-cultural, trazendo centralidade para a identidade local em detrimento das noções
importadas de ordens jurídicas de matriz colonizadora, consoante explicitado.

Sua base ideológica é o bem viver e detém como elemento singular o reco-
nhecimento da natureza como entidade superior à existência humana, da qual esta
depende e se encontra impossível de dissociar. A centralidade da natureza conduz ao
reconhecimento dela como sujeito de direitos, sendo a ela conferidas possibilidades
resultantes dessa posição jurídica.

Existem, como expoentes e base dessa mudança de paradigma, o Equador e a


Bolívia, cada um deles tendo como marco as suas respectivas constituições32: Consti-
tuição do Equador em 2008 e a Constituição da Bolívia em 2009.

Adiante serão abordadas essas temáticas, de maneira a detalhar o tema ora


apresentado por meio de dois seguimentos. O primeiro pormenorizará o bem viver,
que é a matriz ideológica dos sistemas jurídicos desses países. O segundo tem como
foco a demonstração das formas jurídicas e legislativas de viabilização dessa ideologia,
especificamente quanto ao reconhecimento da natureza como entidade titular de di-
reitos. E isto será feito por observação das realidades equatoriana e boliviana.

2.1. O Bem Viver

O Bem Viver é ideologia que representa um movimento de contraposição ao


paradigma contemporâneo de desenvolvimento irrestrito e instrumental, que é cons-
tituído a partir da realidade dos povos ameríndios excluídos no decorrer da história
latino-americana33.

Ele refunda a relação humano-natureza com base em noções pressupostas


a si: complementariedade, correspondência, interculturalidade, comunidade,

32 BORGES, Gustavo Silveira; CARVALHO, Marina Moura Lisboa Carneiro de Farias. O novo constituciona-
lismo latino-americano e as inovações sobre os direitos da natureza na constituição equatoriana. Revista da facul-
dade de direito da Universidade Federal de Goiás (UFG). v. 43, 2019, p. 4.
33 MORAES, Germana de Oliveira. O constitucionalismo ecocêntrico na América Latina, o bem viver e a nova
visão das águas. Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v.34, n.1, jan./jun., 2013, p. 129.

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solidariedade, reciprocidade e relacionalidade entre todos os seres – humanos ou


não – da existência34.

A partir disso, supera-se o antropocentrismo – da posição do humano como


centro de importância e parâmetro da existência - adotado como base de origem dos
sistemas sociais, jurídicos, econômicos, educativos e políticos35. O bem viver rechaça
o meio de vida pautado na desigualdade, na geração de bens e serviços, no desenvol-
vimento e progresso almejados pela exploração natural e no consumismo como meio
de satisfação pessoal36. Ou seja, é contraposição ao ideal de viver melhor37, o que re-
presenta esse modo de vida materialista.

O bem viver reverte o paradigma contemporâneo em favor do ecocentrismo38.


Desse modo, o ser humano deixa de ser o centro e ente superior da realidade e passa a
ser apenas mais um elemento que compõe o todo da universalidade da vida e natureza,
posto que desta ele depende, por ela subsiste e, a partir dela, ele se complementa39. A
relação entre humano e todos os seres que formam a natureza, portanto, configura-se
em uma simbiose necessária40. E isso porque a natureza é um fim em si mesma.

Na sua generalidade, o bem viver é uma forma de vida harmônica e plena


junto aos ciclos naturais e históricos de todas as formas de vida. Tem foco no respeito
difuso a fim de combater qualquer prejuízo aos seres existentes, pois isso significa
prejuízo ao todo e ao ser humano41. E essa harmonia tem como meio de consecução a
efetiva igualdade, justiça comunitária, processo econômicos includentes, democrática
e verdadeiramente sustentáveis42.

34 ALFEU, Breno Silveira Moura. As ampliações da função multisemântica da dignidade pelo bem viver. In:
MORAES, Germana de Oliveira; FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda; FERRAZ, Danilo Santos. Do di-
reito ambiental aos Direitos da Natureza: teoria e prática. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019, p. 68.
35 HUANACUNI MAMANI, Fernando. Buen Vivir/Vivir Bien – Filosofía, políticas, estrategias y experien-
cias regionales andinas. Quito: Coordinadora Andina de Organizaciones Indigenas, 2010, p. 11; 25-26.
36 idem, p. 11–12; 26–29.
37 ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu
Breda. São Paulo: Autonomia literária, 2016, p. 83; 90 – 91.
38 MORAES, Germana de Oliveira. O constitucionalismo ecocêntrico na América Latina, o bem viver e a nova
visão das águas. Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v.34, n.1, jan./jun., 2013, p. 129-130.
39 ALFEU, Breno Silveira Moura. As ampliações da função multisemântica da dignidade pelo bem viver. In:
MORAES, Germana de Oliveira; FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda; FERRAZ, Danilo Santos. Do di-
reito ambiental aos Direitos da Natureza: teoria e prática. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019, p. 68.
40 HOUTART, François. El concepto de sumak kawsai (buen vivir) y su correspondencia con el bien común
de la humanidade. Quito: América Latina em movimiento, 2011.
41 HUANACUNI MAMANI, Fernando. Buen Vivir/Vivir Bien – Filosofía, políticas, estrategias y experien-
cias regionales andinas. Quito: Coordinadora Andina de Organizaciones Indigenas, 2010, p. 49.
42 ACOSTA, Alberto; GUDYNAS, Eduardo. El buen viver mas allá del desarrollo. In Quehacer. Lima: Desco,
2011, p. 78 – 81.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

No entanto, não é uma concepção estática, mas sim uma proposta de rein-
venção da realidade mediante parâmetros de resgate às identidades culturais43. Por
isso, ela influencia e é influenciada por aportes de reflexões filosóficas e intelectuais e
de práticas de cidadania e de espiritualidade, o que lhe permite ressignificar a realida-
de e as entidades e instituições que a constituem44.

Essa matriz ideológica permite, inclusive, conceber uma noção de dignidade


mais ampla de centro ecológico do que a dignidade humana, albergando esta, o que
se pode observar a partir de análise de seus elementos específicos, os quais são conden-
sados de suas noções pressupostas45. São eles: relacionalidade, complementariedade,
correspondência e reciprocidade. Todos os quais demonstram que o ser humano se
relaciona com os demais seres e se complementa por eles e junto a eles, não podendo
ser ele concebido em isolamento da totalidade da vida, bem como que a realidade e
sobrevivência humanas correspondem às de outros os seres sendo por eles afetadas e
os afetando mediante instâncias mútuas de causa e efeito.

Com base nisso, é possível constatar que o bem viver tem alinhamento com a
perspectiva científica de natureza – representada pela Terra - como entidade viva do-
tada de processos biológicos próprios. E isso ressalta sua importância e imprime a ne-
cessidade de a considerar um entidade própria, junto a qual há um imperativo moral
de convivência harmônica, conforme investigado por James Lovelock, Fritjof Capra,
Hans Jonas, Martin Heidegger e Michel Serres46. E, no plano jurídico, tal entendi-
mento consubstancia a consideração de ser a natureza um ente sujeito de direitos.

Ante o exposto, é possível observar que o bem viver, em relação ao estado de


coisas atual, traz consigo concepções disruptivas que internalizam a noção de nature-
za como entidade central e dotada de um fim em si mesmo. E isso porque é lastreada
pela ampliação de significado da concepção de dignidade - detendo como represen-
tativo maior a natureza como elemento representativo - não somente de titularidade
do ser humano, mas sim da ordem maior da qual ele participa.

43 ACOSTA, Alberto. O bem viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. Tradução de Tadeu
Breda. São Paulo: Autonomia literária, 2016, p. 73.
44 ALFEU, Breno Silveira Moura. As ampliações da função multisemântica da dignidade pelo bem viver. In:
MORAES, Germana de Oliveira; FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda; FERRAZ, Danilo Santos. Do di-
reito ambiental aos Direitos da Natureza: teoria e prática. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019, p. 69.
45 Idem, p. 68-73.
46 VIANA, Mateus Gomes. A terra como sujeito de direitos. Revista da Faculdade de Direito – UFC. Fortale-
za, v. 34, n. 2, jul./dez., 2013, p. 250–258.

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Esclarecido isso, passa-se à análise de como está concretizado esse ideal nos
países que o adotam.

2.2. As Formas Jurídicas e Legislativas da Temática

Conforme já explicitado, o novo constitucionalismo latino-americano adota


como referencial original a noção de bem viver e os desdobramentos dele em contra-
posição aos ideais existentes.

Embora seja base de enfrentamento das máculas e óbices da forma de vida


imposta pelo processo histórico de dominação e colonização, o bem viver não rompe
com elas. De fato, ele reavalia, reformula e ressignifica as concepções da vida con-
temporânea. Assim, mantém a forma geral do Estado Democrático de Direito, mas
introduz novos objetivos, estruturas e programas, consoante já exposto.

Nesse contexto, para os fins do presente estudo, o que há em cerne de análi-


se é a posição da natureza como sujeito de Direitos. E mais especificamente, de que
modo isso é efetivado pela legislação dos países que são expoentes desse nosso modelo
constitucional, que são Equador e Bolívia. Todos a seguir demonstrados.

2.2.1. Equador

O marco do novo constitucionalismo latino-americano do Equador é a sua


Constituição de 2008, sendo esta a forma jurídica pela qual se percebe de forma evi-
dente o protagonismo da natureza. Ela determina em seu artigo 275 o modo de de-
senvolvimento a ser adotado pelo país, sendo uma norma programática que estipula
deveres ao Estado47. Dentre eles, está objetivo e finalidade de orientação com base no
bem viver – ou sumak kawsay.

47 Art. 275 - El régimen de desarrollo es el conjunto organizado, sostenible y dinámico de los sistemaseconómi-
cos, políticos, socio-culturales y ambientales, que garantizan la realización del buen vivir, del sumak kawsay. El
Estado planificará el desarrollo del país para garantizar el ejercicio de los derechos, la consecución de los
objetivos del régimen de desarrollo y los principios consagrados en la Constitución. La planificación pro-
piciará la equidad social y territorial, promoverá la concertación, y será participativa, descentralizada, des-
concentrada y transparente. El buen vivir requerirá que las personas, comunidades, pueblos y nacio-
nalidades gocen efectivamente de sus derechos, y ejerzan responsabilidades en el marco de la interculturalidad,
del respeto a sus diversidades, y de la convivencia armónica con la naturaleza.

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Aliás, o artigo 10 dessa mesma constituição já demonstra a internalização e a


orientação pelo bem viver, uma vez que reconhecer ser a natureza sujeito de direitos48.
E o seu artigo 71 pormenoriza essa possibilidade de titularidade de direitos da natu-
reza e institui forma de exercício desses direitos49.

A natureza tem o direito de respeito integral à sua existência, manutenção e


regeneração de seus ciclos vitais, estruturas, funções e processos evolutivos. Em outras
palavras, ela é titular de proteção integral, a qual pode ser postulada por toda pessoa,
comunidade ou povo de qualquer nacionalidade.

A legitimidade é ampla para efetivar a sua defesa, já que se admite extensa


lista de representantes jurídicos aptos a tanto, alargando suas possibilidades de acesso
ao Judiciário em caso de qualquer lesão a si.

O artigo 72 da constituição equatoriana trata do dano à natureza50. Ele esta-


belece o direito de restauração da natureza, a qual será independente da obrigação de
indenizar comum do Estado e das pessoas naturais e jurídicas em face de lesão aos in-
divíduos e à coletividade dependentes dos sistemas naturais prejudicados. Essa norma
também estabelece, em caso de dano grave e exploração de recursos não renováveis, o
dever do Estado de instituir mecanismos de restauração e mitigação das consequên-
cias nocivas desse tipo de ato lesivo.

Por sua vez, o artigo 73 determina a necessária aplicação de medidas de pre-


caução e restrição de atividades lesivas ao meio ambiente, que possam destruir ecos-
sistemas e alterar ciclos naturais, até mesmo informando necessidade de dever de
biossegurança genética51.

48 Art. 10 - Las personas, comunidades, pueblos, nacionalidades y colectivos son titulares y gozarán de los dere-
chos garantizados en la Constitución y en los instrumentos internacionales. La naturaleza será sujeto de aquellos
derechos que le reconozca la Constitución.
49 Art. 71 - La naturaleza o Pacha Mama, donde se reproduce y realiza la vida, tiene derecho a que se respete
integralmente su existencia y el mantenimiento y regeneración de sus ciclos vitales, estructura, funciones y
procesos evolutivos. Toda persona, comunidad, pueblo o nacionalidad podrá exigir a la autoridad pública el cum-
plimiento de los derechos de la naturaleza. Para aplicar e interpretar estos derechos se observarán los prin-
cipios establecidos en la Constitución, en lo que proceda. El Estado incentivará a las personas naturales y
jurídicas, y a los colectivos, para que protejan la naturaleza, y promoverá el respeto a todos los elementos que
forman un ecosistema.
50 Art. 72 - La naturaleza tiene derecho a la restauración. Esta restauración será independiente de la obligación
que tienen el Estado y las personas naturales o jurídicas de indemnizar a los individuos y colectivos que dependan
de los sistemas naturales afectados. En los casos de impacto ambiental grave o permanente, incluidos los ocasio-
nados por la explotación de los recursos naturales no renovables, el Estado establecerá los mecanismos más
eficaces para alcanzar la restauración, y adoptará las medidas adecuadas para eliminar o mitigar las
consecuencias ambientales nocivas.
51 Art. 73 - El Estado aplicará medidas de precaución y restricción para las actividades que puedan conducir
a la extinción de especies, la destrucción de ecosistemas o la alteración permanente de los ciclos naturales. Se
prohíbe la introducción de organismos y material orgánico e inorgánico que puedan alterar de manera
definitiva el patrimonio genético nacional.

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A regra contida no artigo 74 determina que os povos têm o direito de se bene-


ficiar do ambiente e das riquezas naturais em afinidade com o bem viver, não permi-
tindo apropriação de serviços ambientais, posto que é matéria de regulação estatal52.

Ao lado do artigo 275, o qual, consoante já demonstrado, determina o segui-


mento ao bem viver, há as disposições dos artigos 276 a 278. Estes delineiam a neces-
sária participação comunitária e plural na proteção da natureza em concordância com
os ditames do bem viver53.

2.2.2. Bolívia

A constituição da Bolívia de 2009 detém parâmetros semelhantes, mas com


maiores especificações infraconstitucionais. O artigo 8º, inciso I, dessa constituição
apresenta que o Estado assume orientação ética e moral com base na pluralidade da
sociedade, do qual se indica o bem viver54.

Apesar de outras disposições tratarem do meio ambiente, vide seu capítulo V,


artigos 33 e 34, avançou no campo infraconstitucional por meio da Lei nº 071, de
21 de dezembro de 2010, institui reconhece a natureza como titular de direitos, sob
a denominação de mãe terra.

Em seu artigo 3º, é reconhecida a mãe terra, um sistema vivo dinâmico for-
mado por todos os sistemas de vida e seres vivos, inter-relacionados, interdependentes
e complementares, que partilham de um destino comum55.

O artigo 5º dessa legislação determina o caráter jurídico da natureza, a qual


é caracterizada como sujeito coletivo de interesse público56. Assim, todos que parti-

52 Art. 74 - Las personas, comunidades, pueblos y nacionalidades tendrán derecho a beneficiarse de lambiente y
de las riquezas naturales que les permitan el buen vivir. Los servicios ambientales no serán susceptibles de apro-
piación; su producción, prestación, uso y aprovechamiento serán regulados por el Estado.
53 Esses artigos e outros já referidos podem ser verificados com remissões no seguinte endereço: https://www.
oas.org/juridico/pdfs/mesicic4_ecu_const.pdf.
54 Artículo 8. I.El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla,
ama llulla,ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vi-
daarmoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble).
55 Artículo 3. (MADRE TIERRA). La Madre Tierra es el sistema viviente dinámico conformado por la comuni-
dad indivisible de todos los sistemas de vida y los seres vivos, interrelacionados, interdependientes y complemen-
tarios, que comparten un destino común.
56 Artículo 5. (CARÁCTER JURÍDICO DE LA MADRE TIERRA). Para efectos de la protección y tutela de sus
derechos, la Madre Tierra adopta el carácter de sujeto colectivo de interés público. La Madre Tierra y todos sus
componentes incluyendo las comunidades humanas son titulares de todos los derechos inherentes reconocidos en
esta Ley. La aplicación de los derechos de la Madre Tierra tomará en cuenta las especificidades y particularidades
de sus diversos componentes. Los derechos establecidos en la presente Ley, no limitan la existencia de otros
derechos de la Madre Tierra.

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cipam dela são titulares dos direitos reconhecidos nessa mesma lei. O seu artigo 6º
estabelece que todos os bolivianos e bolivianas podem exercer os direitos previstos
nessa lei em compatibilidade com os seus direitos individuais e coletivos57.

Os seus artigos 7º, 8º e 9º determinam, respectivamente, os direitos da mãe


terra e os deveres dos Estados e dos particulares58. Quanto ao primeiro, são direitos da
natureza: a vida em sua integridade e manutenção de seus processos naturais; a biodi-
versidade; a água; o ar limpo; o equilíbrio que consiste na continuidade da inter-re-
lação, interdependência, complementariedade e funcionalidade dos seus elementos;
a restauração em caso de lesão direta ou indireta por atividades humanas; e vida livre
de contaminação, principalmente se decorrentes de ações humanas.

Quanto ao segundo, são instituídos deveres específicos do Estado em desen-


volver políticas públicas: de ação e prevenção de danos ambientais; de formas de pro-
dução e consumo harmônicos com a natureza; de defesa da mãe terra; de soberania
energética limpa e renovável; de demandar reconhecimento internacional; paz e eli-
minação de destruição em massa; e promover o reconhecimento e defesa dos direitos
da mãe terra em todas as configurações de relações internacionais.

Em relação àquele terceiro, são deveres dos particulares: defender e respeitar


os direitos da natureza, promovendo harmonia junto à mãe terra em todos os seus
âmbitos no ambiente social; participar de forma ativa na defesa dos direitos da natu-
reza; adotar práticas e hábitos de harmonia com a mãe terra; denunciar todo ato que
forem contrários a esses direitos; e auxiliar as autoridades competentes e a sociedade
civil nas ações de proteção da natureza.

O artigo 10º cria a defensoria da mãe terra, cuja missão é velar pelo cumpri-
mentos dos direitos já aludidos59. De logo, é possível perceber que a Bolívia institui
um modelo de Acesso à Justiça intermediário, já que se utiliza tanto da iniciativa par-
ticular como de uma entidade pública para a defesa dos direitos da natureza.

57 Artículo 6. (EJERCICIO DE LOS DERECHOS DE LA MADRE TIERRA). Todas las bolivianas y bolivianos,
al formar parte de la comunidad de seres que componen la Madre Tierra, ejercen los derechos establecidos en
la presente Ley, de forma compatible con sus derechos individuales y colectivos. El ejercicio de los derechos
individuales están limitados por el ejercicio de los derechos colectivos en los sistemas de vida de la
Madre Tierra, cualquier conflicto entre derechos debe resolverse de manera que no se afecte irreversiblemente
la funcionalidad de los sistemas de vida.
58 A referida lei pode ser verificada mediante o seguinte endereço eletrônico: http://www.planificacion.gob.bo/
uploads/marco-legal/Ley%20N%C2%B0%20071%20DERECHOS%20DE%20LA%20MADRE%20TIERRA.pdf.
59 Artículo 10. (DEFENSORÍA DE LA MADRE TIERRA). Se crea la Defensoría de la Madre Tierra, cuya mi-
sión es velar por la vigencia, promoción, difusión y cumplimiento de los derechos de la Madre Tierra, estable-
cidos en la presente Ley. Una ley especial establecerá su estructura, funcionamiento y atribuciones.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Em 2012, foi publicada a Lei nº 300, de 15 de outubro de 2012, a qual


complementa e aprofunda as disposições da Lei nº 71. Ela minudencia noções gerais,
direitos e obrigações, além de tratar extensamente dos elementos naturais em prol de
um desenvolvimento ambiental harmônico. Perpassa questões energéticas, hídricas,
de terras e territórios, florestais, de gestão de resíduos, de qualidade de ar e de mudan-
ças climáticas e trata, inclusive de educação multicultural e multiétnico e das formas
de proteção administrativa e jurisdicional.

É neste ponto que se deve ressaltar a regra de legitimidade contida no artigo


39 da Lei nº 300. Nele há a definição de que são legitimados para postular judicial-
mente a proteção dos direitos da natureza possibilitando o acesso à justiça dela60.

Na realidade, essa legitimidade é disposta como uma obrigação das autorida-


des públicas, das quais faz parte a defensoria supramencionada -, das pessoas naturais
e jurídicas afetadas pela infração desses direitos, e qualquer pessoa ou entidade que
tenha conhecimento da infração e dos ditames do bem viver. Ou seja, mantém-se a
mesma possibilidade de Acesso à Justiça das mais plurais formas.

3. O ACESSO À JUSTIÇA E AS CONSEQUÊNCIAS DA TITULARIZAÇÃO


DE DIREITOS PELA NATUREZA

O Acesso à Justiça promovido para a natureza, em posição de sujeito de direi-


tos, no contexto do novo constitucionalismo latino-americano é efetivado de forma
ampla. De fato, há a concretização desse direito de forma mista, uma vez que tanto os
particulares quanto entidades coletivas públicas e privadas podem requerer o respeito
a esses direitos, bem como pleitear a reparação correspondente.

Com efeito, essa existência de uma lista aberta de indivíduos legítimos para
figurar como polo ativo em representação processual pela natureza não é apenas uma fa-
culdade, mas sim um dever, consoante verificado nas realidades equatoriana e boliviana.

Assim, é possível constatar que o Acesso à Justiça permitido tem adequação


correspondente àquelas suas feições da primeira e segunda “ondas”. E isso porque é

60 Artículo 39. (SUJETOS ACTIVOS O LEGITIMADOS). I. Están obligados a activar las instancias adminis-
trativas y/o jurisdiccionales, con el objeto de exigir la protección y garantía de los derechos de la Madre Tierra,
en el marco del desarrollo integral para Vivir Bien, las siguientes entidades según corresponda: 1. Las autoridades
públicas, de cualquier nivel del Estado Plurinacional de Bolivia, en el marco de sus competencias. 2. El Ministerio
Público. 3. La Defensoría de la Madre Tierra.4. Tribunal Agroambiental. II. Asimismo, podrán hacerlo las personas
individuales o colectivas, directamente afectadas. III. Cualquier persona individual o colectiva, que conozca la
vulneración de los derechos de la Madre Tierra, en el marco del desarrollo integral para Vivir Bien, tiene el deber
de denunciar este hecho ante las autoridades competentes.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

viabilizado meios de acesso ao Judiciário antes não admitidos nos sistemas jurídicos
importados dos modelos europeus.

Inclusive, a natureza é tratada como uma entidade de interesse público e as


características das questões atinentes a ela, conforme observado do Direito equatoria-
no e boliviano, detém inconteste contorno de interesse difuso e coletivo.

É que as questões a ela atinentes afetam um grupo determinado que dela


se beneficia direta ou indiretamente. As disposições normativas que tratam sobre a
legitimidade de postulação judicial determinam, em regras específicas, que essa cole-
tividade de pessoas afetada deve buscar a reparação do dano causado.

Em realidade, a legislação objetiva uma amplitude máxima de legitimados em


prol de aumentar as possibilidades de defesa dos sistemas biológicos. E isso é evidente
quando se observa que a defesa da natureza é um dever comum a todos os habitantes
de cada um dos países tratados na seção anterior.

Como consequência, portanto, do influxo novo constitucionalismo latino-


-americano, verifica-se que o acesso à justiça é viabilizado para além da figura única
do ser humano. Esse redimensionamento e reformulação partem dos conceitos tra-
dicionais do direito dos colonizadores, perpassando o filtro dos parâmetros culturais
do bem viver, este que é ideologia orientadora dos excluídos dos processos históricos.

Desse modo, a finalidade de combate às desigualdades e de inclusão social é


realizado em novo patamar, albergando ente da realidade nunca antes vislumbrado
sob a vertente antropocentrista.

Assim, o Acesso à Justiça é um direito redimensionado que é atribuído não


apenas ao ser humano, mas também à natureza, da qual aquele depende, subsiste e se
complementa. Óbvio é que isso traz uma reinvenção daquele caráter originário de-
corrente da segunda dimensão de direitos fundamentais, redimensionando o Acesso
à Justiça sob a orientação dos direitos de terceira e quarta dimensão.

Remanesce, diante do abordado no decorrer do presente texto, explorar a


forma de efetivação desse influxo. E isso com o objetivo de tanto explicitar a concre-
tização desse acesso ao Judiciário quanto de verificar o Acesso à Justiça na vertente
de sua terceira “onda”, ou seja, de uma postulação efetiva junto ao Poder Público no
exercício da sua função jurisdicional. Como exemplos práticos disso, serão apresenta-
dos os casos do Rio Vilcabamba e do Rio Atrato.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Esse primeiro é localizado no Equador. Em 2008, na localidade de Vilca-


bamba, na Província de Loja, houve a realização de obra de duplicação de rodovia
cujos detritos poluentes e outros materiais foram depositados às margens daquele rio
homônimo. Inexistiu estudo ambiental prévio61.

Em 2009, no período de chuvas, houve erosão das margens, alteração do


curso do rio e modificação de propriedades próximas ao rio, motivo pelo qual indi-
víduos norte-americanos que eram proprietários afetados por isso ajuizaram ação de
proteção constitucional62 contra o Governo Provincial e em representação do rio Vil-
cabamba, com o fito de condenação do ente público referido à reparação dos danos
sofridos por esse mesmo rio63.

O processo foi julgado improcedente em primeira instância por ilegitimidade


da parte inserida no polo passivo da demanda judicial64. Foi apresentado recurso de
apelação em 2011. A segunda instância – Corte Provincial de Justiça de Loja – deu
provimento à ação, reconhecendo a ação proposta como via idônea e eficaz para plei-
tear a reparação pelo dano ambiental causado, já que o poluidor não estava amparado
por estudo obrigatório de impacto ambiental, o que faz incidir a proteção do rio com
base no princípio da precaução65.

Esse caso concreto demonstra de que modo ocorre a concretização do Acesso


à Justiça pela natureza, não sendo uma mera previsão jurídica vazia, mas sim uma
ferramenta efetiva de proteção dos indivíduos e da coletividade. Aliás, verifica-se que,
por ser um meio de viabilização de postulação judicial, esse direito também se encon-

61 MELO, Álisson José Maia. A luta pelo reconhecimento dos direitos da natureza na América do sul e as novas
gramáticas para os direitos humanos: uma análise das garantias processuais de defesa dos direitos dos rios. In:
MORAES, Germana de Oliveira; LIMA, Martônio Mont1Alverne Barreto; ARARIPE, Thaynara Andressa Frota.
Direitos de Pachamama e Direitos Humanos. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2018, p. 80.
62 A referida ação é prevista no artigo 88 da constituição do Equador, segundo a qual: Art. 88.- La acción de
protección tendrá por objeto el amparo directo y eficaz de los derechos reconocidos en la Constitución, y
podrá interponerse cuando exista una vulneración de derechos constitucionales, por actos u omisiones de
cualquier autoridad pública no judicial; contra políticas públicas cuando supongan la privación del goce o
ejercicio de los derechos constitucionales; y cuando la violación proceda de una persona particular, si la
violación del derecho provoca daño grave, si presta servicios públicos impropios, si actúa por delegación
o concesión, o si la persona afectada se encuentra en estado de subordinación, indefensión o discriminación.
63 HUDDLE, Norie. World’s first successful ‘rights of nature’ lawsuit. Kosmos: the jornal for global citizens
creating the new civilization, Lenox, v. 13, n. 1, p. 15-19, fall/winter, 2013.
64 MORAES, Germana de Oliveira. Harmonia com a natureza e direitos de Pachamama. Fortaleza: Univer-
sidade Federal do Ceará, 2018, p. 90.
65 MELO, Álisson José Maia. A luta pelo reconhecimento dos direitos da natureza na América do sul e as novas
gramáticas para os direitos humanos: uma análise das garantias processuais de defesa dos direitos dos rios. In:
MORAES, Germana de Oliveira; LIMA, Martônio Mont1Alverne Barreto; ARARIPE, Thaynara Andressa Frota.
Direitos de Pachamama e Direitos Humanos. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2018, p. 81.

112
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tra condicionado aos requisitos das normas processuais vigentes, embora advenha da
inclusão de ente não usualmente admitido na realidade jurídica comum.

Por sua vez, o caso do rio Atrato é outro exemplo de Acesso à Justiça com base
em proteção e reconhecimento da natureza como sujeito de direitos. E ele é ainda
mais emblemático porque a legislação do país no qual se localiza esse rio – Colômbia
- não prevê essa posição jurídica para a natureza expressa e diretamente.

O rio Atrato é bacia hidrográfica colombiana dotada de diversidade mineral


considerável, além de ser zona fértil e de grande biodiversidade, sendo, assim, via
de integração econômica colombiana66. Por causa daquela abundância mineral, há
intensa atividade de mineração, o que ocasionou poluição do rio e contaminação da
população ribeirinha, sendo causa de dezenas óbitos67.

Em razão disso, os representantes dessa população ingressaram com ação ju-


dicial por meio do Centro de Estudos para a Justiça Social “Terra Digna”, objetivan-
do tanto o seu reconhecimento do rio como sujeito biocultural de direitos quanto a
proteção dele e dos povos lesados pela atividade poluente68.

Em primeira instância, a ação não foi acolhida, uma vez que foi decidido que
a questão tratava de interesses coletivos e não direitos inerentes ao próprio rio69. O
mesmo entendimento foi havido na segunda instância, em razão do que foi apresen-
tado recurso à Corte Constitucional Colombiana70.

O desfecho dessa ação ocorreu com a decisão dessa Corte sobre o tema em
dezembro de 2016. No seu julgamento, foi reconhecida a postura omissiva do Poder
Público em prover resposta institucional idônea e equivalente à gravidade da situação,

66 JORGE, Francisca Sandrelle Lima. Possibilidade constitucional de reconhecer rios brasileiros como sujeitos
bioculturais de direitos: estudo comparado entre o caso do Rio Atrato (Colômbia) e do Rio Doce (Brasil). In: MO-
RAES, Germana de Oliveira; FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda; FERRAZ, Danilo Santos. Do direito
ambiental aos Direitos da Natureza: teoria e prática. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019, p. 159-160.
67 idem, p. 160.
68 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-622/16. Bogotá, 10 de novembre 2016.
69 JORGE, Francisca Sandrelle Lima. Op. cit., p. 161.
70 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-622/16. Bogotá, 10 de novembre 2016.

113
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

o que vulnerou os direitos fundamentais envolvidos na questão71. E, principalmente,


embora a constituição colombiana não preveja isso expressamente, o rio Atrato foi re-
conhecido como sujeito de direito à proteção, conservação, manutenção e restauração
a cargo do Estado e das comunidades étnicas72.

Igualmente, nos dispositivos da decisão referida, foram determinadas diversas


medidas em face do Poder Público, desde plano de descontaminação do rio a fim de
recuperar os ecossistemas afetados, evitando danos adicionais, e plano de ação para
neutralizar e erradicar definitivamente às atividades de mineração que afetaram o rio
até a realização de estudos ambientais e plano de recuperação das formas de subsistên-
cia e alimentação que foram afetadas pela poluição do rio73.

71 TERCERO.- DECLARAR la existencia de una grave vulneración de los derechos fundamentales a la vida, a
la salud, al agua, a la seguridad alimentaria, al medio ambiente sano, a la cultura y al territorio de las comunidades
étnicas que habitan la cuenca del río Atrato y sus afluentes, imputable a las entidades del Estado colombiano ac-
cionadas (Presidencia de la República, Ministerio de Interior, Ministerio de Ambiente y Desarrollo Sostenible,
Ministerio de Minas y Energía, Ministerio de Defensa Nacional, Ministerio de Salud y Protección Social, Minis-
terio de Agricultura, Departamento para la Prosperidad Social, Departamento Nacional de Planeación, Agencia
Nacional de Minería, Agencia Nacional de Licencias Ambientales, Instituto Nacional de Salud, Departamentos de
Chocó y Antioquia, Corporación Autónoma Regional para el Desarrollo Sostenible del Chocó -Codechocó-, Cor-
poración para el Desarrollo Sostenible del Urabá -Corpourabá-, Policía Nacional – Unidad contra la Minería Ile-
gal, y los municipios de Acandí, Bojayá, Lloró, Medio Atrato, Riosucio, Quibdó, Río Quito, Unguía, Carmen del
Darién, Bagadó, Carmen de Atrato y Yuto -Chocó-, y Murindó, Vigía del Fuerte y Turbo -Antioquia-), por su
conducta omisiva al no proveer una respuesta institucional idónea, articulada, coordinada y efectiva para enfrentar
los múltiples problemas históricos, socioculturales, ambientales y humanitarios que aquejan a la región y que en
los últimos años se han visto agravados por la realización de actividades intensivas de minería ilegal.
72 como una entidad sujeto de derechos a la
protección, conservación, mantenimiento y restauración a cargo del Estado y las comunidades étnicas, conforme a
lo señalado en la parte motiva de este proveído en los fundamentos 9.27 a 9.32.

En consecuencia, la Corte ordenará al Gobierno nacional que ejerza la tutoría y representación legal de los dere-
chos del río (a través de la institución que el Presidente de la República designe, que bien podría ser el Ministerio
de Ambiente) en conjunto con las comunidades étnicas que habitan en la cuenca del río Atrato en Chocó; de esta
forma, el río Atrato y su cuenca -en adelante- estarán representados por un miembro de las comunidades accionan-
tes y un delegado del Gobierno colombiano, quienes serán los guardianes del río. Con este propósito, el Gobierno,
en cabeza del Presidente de la República, deberá realizar la designación de su representante dentro del mes siguien-
te a la notificación de esta sentencia. En ese mismo período de tiempo las comunidades accionantes deberán esco-
ger a su representante.

Adicionalmente y con el propósito de asegurar la protección, recuperación y debida conservación del río, los re-
presentantes legales del mismo deberán diseñar y conformar, dentro de los tres (3) meses siguientes a la notifica-
ción de esta providencia una comisión de guardianes del río Atrato, integrada por los dos guardianes designados
y un equipo asesor al que deberá invitarse al Instituto Humboldt y WWF Colombia, quienes han desarrollado el
proyecto de protección del río Bita en Vichada[343] y por tanto, cuentan con la experiencia necesaria para orientar
las acciones a tomar. Dicho equipo asesor podrá estar conformado y recibir acompañamiento de todas las entidades
públicas y privadas, universidades (regionales y nacionales), centros académicos y de investigación en recursos
naturales y organizaciones ambientales (nacionales e internacionales), comunitarias y de la sociedad civil que de-
seen vincularse al proyecto de protección del río Atrato y su cuenca.

Sin perjuicio de lo anterior, el panel de expertos que se encargará de verificar el cumplimiento de las órdenes de
la presente providencia (orden décima) también podrá supervisar, acompañar y asesorar las labores de los guardia-
nes del río Atrato.
73 COLOMBIA. Corte Constitucional. Sentencia T-622/16. Bogotá, 10 de novembre 2016.

114
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Para possibilitar o julgamento nesses moldes, o relator da decisão – Jorge Iván


Palácio – utilizou de interpretação constitucional pautada na visão ecocêntrica esta-
belecida pelo novo constitucionalismo latino-americano74.

Isso possibilitou uma reavaliação dos ditames ambientais estabelecidos pela


constituição colombiana, uma vez que a legislação e o próprio texto constitucional
são omissos quanto ao reconhecimento da natureza como sujeito de direitos, nesse
caso, o rio Atrato. E esse método interpretativo teve como fim a continuidade e efe-
tiva proteção da vida em prol de um futuro de cuidado ambiental em parâmetro de
harmonia com a natureza75.

Assim, com base nos casos judiciais apresentados, observa-se que as conse-
quências do influxo do novo constitucionalismo latino-americano junto ao Acesso à
Justiça ultrapassam a mera previsão abstrata da titularização de direitos pela natureza.

De fato, isso resulta em efeitos concretos, que seguem orientação ecocêntrica.


Em outras palavras, há concretização do reconhecimento do sistema jurídico desse
sujeito de direito mediante processamento de demandas judiciais em sua defesa, o
que se realiza por meio de representação processual. Assim, admite-se a postulação da
natureza por meio de um rol extenso de legitimados para tanto.

Isso promove uma proteção acentuada em consonância com sua importância


para a realidade humana, permitindo a exigência de reparação seja para essa entidade
coletiva seja para os particulares que dela dependem. E essa proteção é efetiva, já que
pode chegar a níveis elevados de detalhamento e de exigências para o cumprimento
da decisão judicial que trate da temática.

É que, relembre-se, a natureza é entidade central à existência humana, deven-


do ser protegida e respeitada, realizando-se isso mediante uma necessária convivência
harmônica, já que sem ela não é possível haver subsistência dos sistemas biológicos.
Por isso, é possível de se observar que o Acesso à Justiça é reformulado por esse re-
conhecimento, internalizando essa ordem de valores e as considerações realizadas no
decorrer do presente trabalho.

74 ra Mendes; FERNANDES, Maria Márcia dos Santos Souza. O Reconhecimento


Jurídico do Rio Atrato como Sujeito de Direitos: reflexões sobre a mudança de paradigma nas relações entre o ser
humano e a natureza. Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas, v. 12, n. 1, 2018, p. 232.
75 JORGE, Francisca Sandrelle Lima. Possibilidade constitucional de reconhecer rios brasileiros como sujeitos
bioculturais de direitos: estudo comparado entre o caso do Rio Atrato (Colômbia) e do Rio Doce (Brasil). In: MO-
RAES, Germana de Oliveira; FREIRE, Geovana Maria Cartaxo de Arruda; FERRAZ, Danilo Santos. Do direito
ambiental aos Direitos da Natureza: teoria e prática. 1 ed. Fortaleza: Mucuripe, 2019, p. 162.

115
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho tem como escopo a análise do influxo do novo consti-


tucionalismo latino-americano junto ao Acesso à Justiça. Essa pesquisa foi realizada
tendo como foco, dentre outras possibilidades, a natureza como sujeito de direitos
e suas consequências.

Consoante demonstrado, na primeira seção, esse movimento constitucional


também denominado de constitucionalismo andino é tem afinidade com o direito
de Acesso à Justiça, já que ambos são fundados em premissas de inclusão social e de
combate às desigualdades.

Porém, diante da complexidade e abrangência desse modelo constitucional,


surge a observação de que o Acesso à Justiça é reavalidado e reformulado em razão do
influxo desse novo paradigma de constituição.

Assim, naquela primeira seção, constatou-se que o constitucionalismo alu-


dido promove modificação qualitativa no Acesso à Justiça, já que não é suficiente
apenas considerar o ser humano como sujeito de direitos, mas também a natureza.
Isso realiza alargamento do espectro de titulares desse direito, compatibilizando as
necessidades e iniciativas estatais originadas em sua consolidação na história jurídica
com as percepções e o paradigma ecocêntricos. Com isso, reimagina o Acesso à Justiça
sob um foco de direitos fundamentais de terceira e quarta dimensão.

Partindo dessa verificação, abordou-se, na terceira seção, a ideologia base desse


novo molde de constituição – o bem viver – e as formas jurídicas originadas por essa
temática. O bem viver estabelece as bases de observação da natureza como entidade
superior que merece e deve ser respeitada por meio de uma convivência harmônica
dos seres da existência. O ser humano não é superior a ela, já que é apenas um mero
integrante seu, dependendo dela e se complementado junto a ela.

Esse ideal é comum aos povos ameríndios. Tanto isso é verdade que as cons-
tituições e legislações do Equador e da Bolívia. Ambos os países estabelecem o bem
viver como referencial de organização política, social e econômica, afetando o campo
jurídico. E assim o fazem elevando a natureza à condição de sujeito de direitos e esta-
belecendo um dever geral de proteção e respeito a ela.

Esse dever resulta na possibilidade de ela postular em juízo mediante repre-


sentação processual. Isso é viabilizado por um rol aberto de legitimados para repre-
sentar a natureza em juízo, o que combina as soluções havidas nas ondas iniciais do

116
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Acesso à Justiça. Na realidade, a legitimidade geral de proteção da natureza não é


apenas uma prerrogativa, mas também é uma obrigação imposta a todos, quando se
observar lesão aos sistemas biológicos, seja isso afetando diretamente um ser humano
ou não. Isso demonstra normativamente a mudança qualitativa havida no direito de
Acesso à Justiça, agora, titularizado pela natureza.

A quarta e última seção teve como foco a apresentação de casos concretos que
demonstram as consequências desse influxo. Eles evidenciam que a previsão normati-
va de natureza como sujeito de direitos não é apenas um norma abstrata e programá-
tica. Ela é, efetivamente, uma norma aplicável e que produz sua eficácia no Direito.
Isso é o que se verifica pelos casos do rio Vilcabamba, no Equador, e do rio Atrato,
na Colômbia, sendo este um caso em que o influxo originou suas revalidação e refor-
mulação por meio de técnica hermenêutica constitucional. E essa efetividade também
converge com a terceira onda de “Acesso à Justiça”.

Portanto, é inegável que o Acesso à Justiça sofre influxos do novo constitucio-


nalismo latino-americano. É que este majora a abrangência desse direito em favor de
um ideal de vida verdadeiramente sustentável, plural e participativo, prezando pelo
futuro humano e da continuidade da vida, já que tudo que afeta a natureza detém
contornos de interesse difuso e coletivo, não podendo ser negado amparo jurídico a
ela, mas, ao revés, deve ele ser ampliado o máximo possível.

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119
Capítulo 7
A DEMOCRATIZAÇÃO
DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS:
ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA
CONSTITUCIONAL
SUL-AFRICANA
SUMÁRIO: Introdução. 1. A resposta do judiciário para as omissões políticas: as sentenças
estruturais e a sua utilização no Brasil. 2.1. A chave de acesso para as políticas públicas: as
sentenças estruturais. 2.2. Os processos estruturais no Brasil. 3. A resposta sul-africana para
as omissões políticas: o Compromisso Significativo. 4. Vantagens de uma democratização dos
processos estruturais. Considerações finais. Referências
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 7

A DEMOCRATIZAÇÃO DOS PROCESSOS ESTRUTURAIS: ANÁLISE


DA EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL SUL-AFRICANA

Matheus Casimiro Gomes Serafim1

INTRODUÇÃO

O presente trabalho analisa as vantagens de uma democratização dos processos


estruturais, a partir do estudo do Compromisso Significativo, desenvolvido pela Corte
Constitucional da África do Sul.

Os processos estruturais estão diretamente ligados às omissões políticas e aos


direitos sociais. Na medida em que os poderes públicos se tornam inertes, e não for-
mulam as políticas públicas necessárias para assegurar os direitos socioeconômicos
de determinado segmento social, é natural que esse grupo recorra ao Judiciário, em
busca de proteção e reparação. Assim, originam-se os litígios estruturais.

O Judiciário, contudo, pode optar por uma atuação solipsista, determinando


unilateralmente as políticas públicas que devem ser executadas, o que pode compro-
meter a legitimidade e a eficiência da intervenção judicial. Por isso, é necessário bus-
car o desenvolvimento de sentença estrutural dialógica, que permita, principalmente,
a participação dos segmentos populacionais afetados pelas omissões políticas. Um
modelo bem-sucedido é o Compromisso Significativo, adotado na África do Sul e
estudado neste trabalho.

Como metodologia, adotou-se, além do estudo da bibliografia especializada no


tema, o estudo do caso Olivia Road v. City of Johanesburg, caso paradigmático para
o desenvolvimento do Compromisso Significativo, e que exemplifica as vantagens
decorrentes de uma democratização dos processos estruturais.

1 Professor do Instituto Intellegens. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade


Federal do Ceará (PPGD/UFC), com área de concentração em Constituição, Sociedade e Pensamento Jurídico.
Pós-graduando lato sensu em Filosofia e Teoria do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC-MG). Graduado em Direito pela UFC. E-mail: mcgserafim@gmail.com.

123
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

1. A RESPOSTA DO JUDICIÁRIO PARA AS OMISSÕES POLÍTICAS: AS


SENTENÇAS ESTRUTURAIS E A SUA UTILIZAÇÃO NO BRASIL

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, os direitos fundamentais se torna-


ram tema central dos estudos constitucionais, principalmente em razão do aumento
de Constituições que apresentavam um extenso rol desses direitos (BEATTY, 2014,
p. 216). Concomitantemente, passou-se a estudá-los sob uma nova ótica. Até então,
eram vistos como pretensões que resguardavam o indivíduo face ao Estado, o que
caracteriza a sua dimensão subjetiva.

A dimensão subjetiva, todavia, não era suficiente para explicar todas as fun-
ções inerentes aos direitos fundamentais, razão pela qual se iniciou o estudo da sua
dimensão objetiva. Conforme explica Nascimento (2016, p. 68), a dimensão objetiva
possui um papel fundamental na proteção dos direitos fundamentais: com base nela,
o Estado deve atuar para efetivar direitos fundamentais não apenas quando for de-
mandado, na verdade, o Poder Público está vinculado a esses direitos ainda que não
haja demandas individuais.

Ainda que essa vinculação estatal esteja pacificada na doutrina constitu-


cional, muitas vezes o Estado permanece inerte na prestação de serviços públicos
essenciais à efetivação dos direitos fundamentais, lacuna que é denominada omissão
política. Marmelstein (2015, p. 25) preleciona que, diferentemente da tradicional
omissão inconstitucional normativa, a qual implica em inexistência de ato nor-
mativo infraconstitucional que viabilize a proteção de um direito fundamental,
as omissões políticas têm caráter concreto e são verificas quando o Poder Público
permanece inerte em ofertar os serviços públicos indispensáveis à proteção de direi-
tos constitucionalmente assegurados. Os processos estruturais surgem como uma
tentativa de solucionar essas omissões estatais pela via judicial, permitindo que o
Judiciário intervenha no âmbito de formulação das políticas públicas. Assim, antes
de analisar os entraves epistemológicos para a formulação de uma teoria dos pro-
cessos estruturais para o Brasil, é necessário compreender o que são as sentenças
estruturais e como essas decisões têm sido proferidas no país.

1.1. A chave de acesso para as políticas públicas: as sentenças estruturais

Tendo em vista as omissões políticas, os segmentos populacionais por elas


afetados acabam recorrendo ao Judiciário, com o intuito de obter uma solução para a
inércia estatal. Surgem, assim, os chamados processos estruturais, litígios complexos

124
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

que envolvem múltiplos interesses e intentam modificar a estrutura de determinadas


instituições, geralmente públicas. Questões típicas de litígios estruturais envolvem di-
versos valores da sociedade, de tal forma que não só há vários interesses concorrentes
em jogo (SALAZAR; MEIRELES, 2017, p. 32), mas também há a possibilidade de
que as esferas jurídicas de terceiros, os quais não integram o conflito, sejam afetadas
pela decisão judicial (ARENHART, 2017, p. 423-424).

Assim, os processos estruturais têm como ponto de partida a sistemática


violação aos direitos fundamentais, mas o objetivo não é apenas reparar os danos já
ocasionados, e sim promover uma readequação das políticas públicas responsáveis por
efetivar os direitos violados ou reorganizar estruturalmente as instituições responsá-
veis por realizá-las (VITORELLI, 2015, p. 564.). Sintetizando o conceito de litígios
estruturais, Vitorelli (2017, p. 372.) explica:
Em resumo, litígios estruturais, para os efeitos do presente estudo,
são aqueles que envolvem conflitos multipolares, de elevada comple-
xidade, cujo objetivo é promover valores públicos pela via jurisdicio-
nal, mediante transformação de uma instituição pública ou privada.
Há necessidade de reorganização de toda uma instituição, com a al-
teração de seus processos internos, de sua estrutura burocrática e da
mentalidade de seus agentes, para que ela passe a cumprir sua função
de acordo com o valor afirmado pela decisão. (2017, p. 372)

Nesse contexto, o Judiciário, em todo o mundo, tem proferido sentenças


estruturais que viabilizam a intervenção judicial no âmbito de atuação dos poderes
políticos, no intuito de sanar, ainda que parcialmente, as omissões políticas do Es-
tado. Esses provimentos jurisdicionais não intentam apenas apontar que detém a
razão no caso concreto, afirmando os direitos que devem ser protegidos. Quando o
Judiciário recorre às sentenças estruturais, ele vai além: objetiva intervir no funcio-
namento das instituições envolvidas nos litígios, para que novas políticas públicas
sejam desenvolvidas ou que essas instituições sejam reorganizadas internamente,
para sanar as omissões existentes. Nas palavras de Campos, as sentenças estruturais
são “comandos voltados a alcançar as mudanças institucionais que caracterizam a
public law litigation” (2016, p. 189).

Assim, conforme preleciona Fiss (2017, p. 590), quando a instância judicial re-
corre à sentença estrutural, o comum é que o próprio arranjo burocrático, responsável
por formular e executar políticas públicas, encontre-se com graves problemas, razão
pela qual o Judiciário intervém para promover uma reorganização que leve essa estru-
tura fragilizada para dentro dos limites constitucionais. Quando essas sentenças são
utilizadas, dois riscos principais costumam ser levantados: primeiro, a incompetência

125
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

técnica do Judiciário em intervir na formulação de políticas públicas; em segundo


lugar, a falta da legitimidade dos órgãos judiciais em alterar escolhas feitas por setores
políticos que têm legitimidade de investidura (VITORELLI, 2017).

Tentando classificar as diferentes formas de intervenção judicial na esfera dos


poderes políticos, Tushnet (2008) afirma que existem dois modelos principais: o
strong-form review e o weak-form review. Ainda que toda classificação seja artificial,
visto que a realidade em si é mesma é hipercomplexa não possui essas segmentações
(MACHADO SEGUNDO, 2016), é importante subdividir esses provimentos em
grupos diversos, para estudar melhor as características específicas de cada sentença
estrutural, bem como os seus efeitos, vantagens e desvantagens. Importante ressaltar
que esses modelos não existem de forma pura na realidade, mas funcionam como ti-
pos ideais weberianos, ou seja, focam em determinadas características da realidade em
detrimento de outras, para facilitar a sua compreensão (NEVES, 2014, p. 101-102).

No strong-form review, os riscos da competência técnica e da legitimidade insti-


tucional são mais evidentes. Nesse modelo, o Judiciário tem o poder de dar a última
palavra sobre a solução das omissões políticas (TUSHNET, 2008, p. 21), podendo
inclusive influenciar diretamente na formulação de políticas públicas. Esse tipo de sen-
tença estrutural é classicamente utilizado pela Suprema Corte Americana, que utiliza as
chamadas structural injunctions para determinar profundas mudanças em instituições
públicas e privadas (JOBIM, 2013, p 91-93). Além disso, o Estado de Coisas Inconsti-
tucional, na sua primeira fase de aplicação, também se aproxima desse modelo.

Já no weak-form review, há a formação de um diálogo institucional entre os


poderes políticos e o Judiciário. Nesses casos, o Judiciário influencia a formulação
de políticas públicas, mas com base em um diálogo constante com a Administração
Pública, que mantem a primazia nesse processo. Assim, busca-se desenvolver um per-
manente diálogo entre as instâncias judicial e política, com o intuito de romper com
o monopólio da interpretação constitucional (RAY, 2016, p. 24).

À vista dessa classificação, Sabel e Simon (2004, p. 1.019) propõem um ter-


ceiro modelo decisório: o experimentalismo2. Nesse paradigma, as Cortes são aber-
tas à participação do segmento populacional afetado pela inércia estatal. Assim, as
características básicas do weak-form review são mantidas, contudo, há um foco maior
em incluir os grupos sociais afetados no processo deliberativo de superação das omis-

2 Tushnet identifica o experimentalismo como uma variante do modelo fraco de revisão judicial. (TUSHNET,
2008. p. 249)

126
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

sões políticas, incluindo nesse diálogo instituições públicas e privadas capazes de co-
laborar com a resolução da demanda estrutural.

Tendo em vista os modelos apresentados, resta analisar como eles têm influen-
ciado os litígios estruturais no Brasil e a sua eficiência em promover a efetivação dos
direitos de grupos sociais afetados pelas omissões políticas.

1.2. Os processos estruturais no Brasil

É crescente o número de estudos publicados no país sobre processos estrutu-


rais. Os fundamentos desses litígios, no entanto, não são novidade no STF, o qual já
tratou em diversas circunstâncias sobre a possibilidade de intervenção do Judiciário
no âmbito de atuação dos poderes políticos.

Importante caso levado ao STF, e que contribuiu para fixar a base jurídica para
o desenvolvimento dos processos estruturais, foi a ADPF nº 45, na qual se entendeu
que seria possível determinar medidas, para o Executivo, quando o mínimo existen-
cial dos detentos de determinando estabelecimento prisional estivesse sendo violado.
No referido caso, consolidou-se também o entendimento que o Executivo e o Legis-
lativo não tinham irrestrita liberdade de atuação, cabendo ao Judiciário resguardar o
mínimo existencial ameaçado pelas omissões estatais (BRASIL, 2004).

Com base nesse entendimento, o Supremo, no julgamento do RE nº 592.581,


consignou que o Judiciário pode determinar que a Administração Pública realize reformas
emergenciais em presídios para assegurar o mínimo existencial dos detentos. É nesse senti-
do o teor do tema 220, de repercussão geral e oriundo do julgamento do referido Recurso
Extraordinário, deixando claro que há “Competência do Poder Judiciário para determinar
ao Poder Executivo a realização de obrar em estabelecimentos prisionais com o objetivo de
assegurar a observância de direitos fundamentais dos presos” (BRASIL, 2015a).

Ainda que tais casos tenham propiciado uma maior intervenção do Judiciário
na elaboração e execução de políticas públicas, o principal marco para os processos
estruturais foi o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) do sis-
tema prisional, no julgamento da medida cautelar da ADPF nº 347/DF, em 2015. A
partir dessa decisão, multiplicaram-se os trabalhos que versam sobre litígios estrutu-
rais e o ECI. A razão para essa viragem é o ineditismo da decisão: pela primeira vez
o STF expressamente reconhece a utilização de uma sentença estrutural, destinada a
modificar profundamente um conjunto de instituições públicas.

127
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Analisando os pedidos cautelares da ação, o relator, ministro Marco Aurélio,


determinou que os juízes e tribunais, dentre outras medidas, estabelecessem, quando
possível, penas alternativas à prisão, e que a União liberasse o saldo acumulado do
Fundo Penitenciário Nacional para utilização na finalidade para a qual foi criado,
abstendo-se de realizar novos contingenciamentos (VIEIRA JÚNIOR, 2015 p. 19).

Já nos pedidos final, o PSOL requer, dentre outros pleitos: que o STF reco-
nheça o Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional; que o Governo Fe-
deral elabore e encaminhe ao STF, no prazo máximo de 3 meses, um Plano Nacional
visando a superação do ECI do sistema penitenciário brasileiro, dentro de um prazo
de 3 anos; que o STF delibere sobre o Plano Nacional, para homologá-lo ou impor
medidas alternativas ou complementares, que reputar necessárias para a superação
do crise (BRASIL, 2015b, p. 70-73).

Diante dos pedidos formulados na ação, é possível constatar que o eventual


deferimento transformará o STF em uma instância revisional superior dos trabalhos
do Executivo. Afinal, o tribunal poderá alterar ou complementar os planos que serão
formulados com quaisquer medidas que ache necessários, podendo ignorar até as
análises técnicas desenvolvidas pelos órgãos administrativos competentes para tanto.
Tendo em vista os ricos decorrentes de uma má utilização do ECI pela jurisdição
constitucional, o senador Antônio Carlos Valadares apresentou, em 11 de novembro
de 2015, o Projeto de Lei do Senado (PLS) nº 736/2015 (BRASIL, 2015c), o qual,
além de estabelecer pressupostos objetivos a serem observados pelo tribunal para o
reconhecimento do ECI, determinava também que o reconhecimento desse estado
de coisas implicasse na celebração de um Compromisso Significativo entre o Poder
Público e os segmentos populacionais afetados.

Analisando os pedidos formulados na ADPF nº 347/DF, é fácil constatar a


complexidade dos litígios estruturais, e como o Judiciário pode violar o princípio da
separação de poderes ao julgar essas demandas. Portanto, é importante conhecer as
soluções criadas em outros países, que limitaram a intervenção judicial e deram voz
aos grupos afetados pelas omissões estatais.

2. A RESPOSTA SUL-AFRICANA PARA AS OMISSÕES POLÍTICAS: O


COMPROMISSO SIGNIFICATIVO

Para melhor compreender o Compromisso Significativo, é necessário, antes,


compreender como a Corte Constitucional sul-africana tem atuando em litígios es-

128
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

truturais. Primeiramente é necessário ressaltar duas importantes características da


Corte, que tem influência na sua forma de decidir os processos estruturais. A primeira
é o elevado nível de estabilidade desse tribunal. Em 2003, oito dos onze juízes que a
integravam eram os mesmos desde a sua criação. Os três magistrados que se afastaram
o fizeram em virtude de problemas de saúde (ROUX, 2008, p. 68). Essa estabilidade
propiciou que a Corte construísse uma identidade própria, bem como contribuiu
para o surgimento de uma relação de confiança entre o Judiciário e os poderes polí-
ticos, de forma que seus pronunciamentos revelavam, de fato, o posicionamento do
tribunal de forma homogênea, e não o posicionamento de cada juiz, individualmente
considerado (ROUX, 2005, p. 67).

No julgamento de processos estruturais, a Corte, ainda que tenha variado ao


longo do tempo a sua abordagem quanto aos direitos socioeconômicos, possui um
perfil claro quanto aos limites de intervenção no âmbito das políticas públicas. Sem-
pre esteve mais confortável promovendo a eficácia desses direitos de forma dialógica,
apontando a inconstitucionalidade de atuações do Poder Público sem, todavia, de-
terminar unilateralmente o conteúdo das políticas públicas que devem ser realizadas
(RAY, 2016, p. 41-43). É por isso que Roux (2005, p. 76-77), analisando a relação
entre a Corte e os setores políticos, afirma que o tribunal foi bem-sucedido em in-
tervir em uma das áreas mais sacrossantas do setor político: a formulação de políticas
públicas. Ainda que não seja uma tarefa fácil, a Corte conseguiu ser eficiente em
promover os direitos sociais, respeitando as competências típicas da Administração
Pública (GOLDSTONE, 2006, p. 4).

Tentando compreender a atuação da Corte em litígios que envolvem direitos


socioeconômicos, Ray (2016, p. 45-46) divide os casos a ela submetidos em dois
grupos, os quais chama de primeira e segunda onda de litígios sociais. Ao julgar
os casos da primeira onda, a Corte adotou uma postura mais interveniente (RAY,
2016, p. 45-46). Isso não significa que o tribunal formulou detalhadamente as po-
líticas públicas que deveriam ser realizadas pelo governo. Como dito, o perfil desse
órgão jurisdicional sempre foi mais voltado a autocontenção. Ainda assim, nesses
casos, houve um maior grau de intervenção judicial, com maiores restrições à dis-
cricionariedade administrativa. Já os casos da segunda onda consolidam o processo
que o autor chama de proceduralização: a Corte foca mais em promover a demo-
cracia participativa por meio dos litígios que tratem de direitos sociais (RAY, 2016,
p. 107), incluindo os segmentos populacionais afetados pelas omissões políticas no
processo de formulação de políticas públicas.

129
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A Corte utilizou o Compromisso Significativo pela primeira vez no caso Olivia


Road, julgado em 2009. O caso teve início quando a cidade de Johanesburgo ajui-
zou uma ação no Tribunal Regional de Witwatersrand3, solicitando a autorização
judicial para despejar mais 400 residentes de prédios que seriam reestruturados. O
Tribunal Regional rejeitou o pedido de despejo do governo municipal, determinando
que a cidade violou a seção 26 da Constituição, que assegura o direito à moradia, já
que a cidade pretendia despejar os moradores sem providenciar abrigos alternativos
(ÁFRICA DO SUL, 2008, p. 3). Após a decisão, o governo municipal apelou para
a Suprema Corte de Apelação (SCA), que reverteu a decisão do Tribunal Regional e
concluiu que os despejos eram autorizados pela Constituição. Em prol dos residentes,
a SCA apenas determinou que a cidade tinha o dever de providenciar abrigo para
aqueles que perdessem a sua residência (ÁFRICA DO SUL, 2008, p. 2).

Recorrendo da decisão proferida pela SCA, os residentes conseguiram levar a


ação até a Corte Constitucional, que aceitou o caso em maio de 2007. No dia 30 de
agosto de 2007, a Corte expediu a primeira ordem para que um Compromisso Sig-
nificativo fosse realizado entre as partes envolvidas no litígio. A decisão, redigida pelo
juiz Zakeria Yacoob, determinou que:
A cidade de Joanesburgo e os demandantes devem estabelecer entre
si um compromisso significativo assim que possível, em um esforço
para resolver as diferenças e dificuldades expostas nesta ação à luz dos
valores da Constituição, dos deveres constitucionais e estatutários do
município e dos direitos e deveres dos cidadãos em questão4 (tra-
dução nossa).

Após dialogarem por alguns meses, as partes chegaram a um acordo parcial.


Dentre outras determinações, o governo municipal concordou em não realizar a evic-
ção e tomar medidas que melhorassem os prédios e a vida dos seus moradores, como
limpeza da área residencial, acesso à água e saneamento básico (LIEBENBERG,
2012, p. 15). Além disso, a cidade aceitou reformar vários outros prédios localizados
na periferia da cidade, fornecendo serviços públicos essenciais para os moradores da
região, além de limitar quaisquer taxas de aluguel para não mais de 25% da renda
mensal dos ocupantes. Por fim, a cidade aceitou continuar o diálogo em longo prazo,

3 Os Tribunais Superiores (High Courts) ocupam a segunda instância judicial da África do Sul, com jurisdição
em uma área delimitada geograficamente. Já o Supremo Tribunal de Apelação (Supreme Court of Appeal) equiva-
le ao Superior Tribunal de Justiça no Brasil. Localizado em Bloemfontein, a SCA é a última instância para discus-
sões acerca de matérias infraconstitucionais, cujas decisões serão vinculantes para todos os tribunais inferiores
(SAMPAIO, 2016, p. 87).
4 The City of Johannesburg and the applicants are required to engage with each other meaningfully and as soon
as it is possible for them to do so, in an effort to resolve the differences and difficulties aired in this application in
the light of the values of the Constitution, the constitutional and statutory duties of the municipality and the rights
and duties of the citizens concerned (ÁFRICA DO SUL, 2008, p. 5).

130
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

buscando soluções para os problemas de moradia (SOUZA NETO, 2018, p. 110).


Após o processo de diálogo e formulação de um acordo, as partes retornaram à Cor-
te, que aprovou o plano desenvolvido. Além de aprovar o acordo, a Corte elencou 4
características que devem acompanhar o Compromisso Significativo.

Primeiro, o Compromisso deve seguir um padrão de razoabilidade, sendo fle-


xível e adaptável aos contextos específicos de cada caso (LIEBENBERG, 2012, p. 16).
Cada litígio estrutural exige uma solução específica, e o contexto deve ser levando em
consideração em cada Compromisso realizado.

Segundo, sempre que uma política pública de larga escala, como um plano
de regeneração urbana, puder afetar negativamente algum segmento populacional,
a municipalidade deve realizar o Compromisso logo no início do planejamento, ou
seja, o diálogo com os cidadãos afetados não deve iniciar na instância judicial, mas na
própria etapa de planejamento da política pública. Dessa forma, os grupos afetados
se tornam mais do que passivos recipientes de direitos, para serem participantes ativos
que ajudam a moldar as políticas públicas e as decisões que tem um direto impacto
em suas vidas (MAHOMEDY, 2019, p. 23).

Terceiro, a Corte reconheceu a vulnerabilidade dos cidadãos afetados pelos


despejos e a necessidade de representação especializada. Para lidar com essa desi-
gualdade de poderes entre a população e o Poder Público, determinou que grupos
da sociedade civil, atuantes na defesa dos direitos fundamentais afetados, tem um
importante papel constitucional a desempenhar. Os conhecimentos técnicos que
esses grupos possuem é fundamental para que as negociações sejam bem-sucedidas
(RAY, 2016, p. 122).

Por fim, a Corte determinou que o governo deve desenvolver e manter um ar-
quivo público sobre cada Compromisso, para que o Judiciário possa posteriormente
analisar não só o resultado das negociações, mas o próprio procedimento utilizado
para promover o diálogo entre as partes. Enfatizou que o sigilo seria contraproducen-
te para assegurar a eficiência do processo, ressaltando que esses registros permitiriam
ao Judiciário avaliar se a municipalidade adotou todas as medidas necessárias para
alcançar um acordo com os grupos afetados. No entendimento da Corte, a falha em
realizar o Compromisso, independentemente de considerações substanciais quanto
a política pública a ser desenvolvida pela municipalidade, pode, por si só, ser razão
suficiente para negar um pedido de despejo (ÁFRICA DO SUL, 2008, p. 14).

131
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Em síntese, pode-se definir o Compromisso Significativo como um proces-


so determinado pelo Judiciário, no qual se estabelece um diálogo entre cidadãos e
comunidades, de um lado, e o Poder Público, de outro, de tal forma que essas par-
tes tentam, a partir da compreensão das perspectivas do outro, formular um acordo
sobre a implementação de programas socioeconômicos que afetam essa população
(CHENWI; TISSINGTON, 2010, p. 11-12).

Complementando o conceito, Chenwi e Tissington (2010, p. 11-12). explicam


que o Compromisso Significativo não é uma mera consulta às populações atingidas
pela ação ou omissão estatal. A consulta pública não assegura que as manifestações
dos cidadãos sejam incorporadas às decisões do Executivo. O compromisso ocorre
quando a Administração Pública e a comunidade escutam-se mutuamente, com o
intuito de alcançar um ponto comum. As comunidades envolvidas devem ser consi-
deradas como partes integrantes do processo de construção das políticas públicas que
serão adotadas, estando o Poder Público obrigado a executar o que pactuar com esses
grupos. Assim, essa sentença estrutural permite que as vozes marginalizadas sejam
incluídas no processo de superação das omissões políticas, aumenta a legitimidade
do processo, permite soluções mais adequadas e flexíveis, e melhora a qualidade das
decisões tomadas (MAHOMEDY, 2019, p. 15).

3. VANTAGENS DE UMA DEMOCRATIZAÇÃO DOS PROCESSOS


ESTRUTURAIS

A experiência sul-africana em processos estruturais revela um aspecto impor-


tante desses litígios, até então ignorado no Brasil: a participação do segmento popula-
cional afetado pela omissão política pode maximizar a eficiência das políticas públicas
que serão desenvolvidas, gerando um maior comprometimento do Poder Público
com as medidas que devem ser adotadas.

Com base no Compromisso Significativo, é possível observar que a democra-


tização dos litígios estruturais pode ser defendida com base em valores intrínsecos e
extrínsecos. Este tópico apresenta as duas perspectivas, sintetizando as vantagens da
participação públicas nesses processos.

Tratando do valor intrínseco, Liebenberg (2018, p. 626) defende que a parti-


cipação dos grupos sociais afetados nos processos estruturais vale por si só, visto que
permites a segmentos historicamente marginalizados e economicamente excluídos,
tenham expressão política e influenciem diretamente o processo de tomada de de-

132
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

cisões públicas. É esse também o pensamento de Heller (2009, p. 130-131), o qual


defende que um aprofundamento da democracia participativa só é possível se os cida-
dãos puderem atuas nas mais diferentes instituições públicas de seus país, incluindo o
Judiciário, influenciando a formulação de políticas públicas que afetam diretamente
a sua comunidade.

Quanto aos valores extrínsecos ou instrumentais, há três argumentos princi-


pais. Primeiro, há um ganho epistêmico na tomada de decisões públicas. Com a
inclusão do grupo afetado no processo deliberativo, o Poder Público pode analisar
melhor perspectivas e pontos de vista que, até então, não foram observadas. É possível
também tomar decisões mais adequadas ao problema enfrentado, visto que as pessoas
diretamente afetadas poderão apontar quais são suas necessidades mais urgentes, e
sugerir novas soluções. Assim, quando mais pontos de vista forem considerados e de-
batidos, maior a chance de alcançar uma solução adequada a um problema concreto
(MAHOMEDY, 2019, p. 17).

Em segundo lugar, há uma maior transparência na formulação de políticas pú-


blicas (CHENWI, 2009, p. 371), tendo em vista que, dialogando com a população,
o governo deve justificar, publicamente, as razões pelas quais deseja adotar determina-
das medidas. Ao mesmo tempo, permite que haja uma maior fiscalização pública da
atuação estatal, tendo em vista que as políticas públicas a serem desenvolvidas devem
ser apresentadas para o grupo afetado, antes de sua execução.

Por fim, há um aumento da legitimidade das decisões tomadas (TYLER, 2003,


p. 350), o que promove uma maior adesão do Poder Público ao plano formulado,
visto que as políticas públicas a serem executadas não serão elaboradas, unilateral-
mente, pelo Judiciário. Como explica Osna (2017, p. 202), a colaboração dos setores
políticos é fundamental para a solução do litígio estrutural, e deve-se adotar medidas
que promovam esse comprometimento com a solução do problema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À vista do exposto, conclui-se que a experiência constitucional da África do


Sul, ao implementar o Compromisso Significativo, conseguiu promover a democra-
tização dos litígios estruturais no país, incluindo no processo de tomada de decisão
pública grupos sociais historicamente marginalizados pelo regime do apartheid.

133
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Viu-se também que existem razões para defender a democratização dos proces-
sos estruturais, baseadas em valores intrínsecos e extrínsecos. A participação popular
é importante para aprofundar a democracia e, por si só, tem o seu valor: é uma forma
de dar voz a segmentos sociais excluídos de poder político e econômico, e que terão a
oportunidade de influenciar a efetivação dos seus direitos fundamentais.

Verificou-se, também, que existem razões instrumentais para promover a refe-


rida democratização. Essas vantagens podem ser resumidas em três pontos principais:
primeiro, há um ganho epistêmico no processo de tomada de decisões públicas, tendo
em vista mais perspectivas serão levadas em consideração; segundo, há uma maior
transparência na atuação estatal, que precisa justificar as suas escolhas para a comu-
nidade afetada; e, terceiro, aumenta-se a legitimidade das medidas adotadas, que não
serão construídas unilateralmente pelo Judiciário, mas irão resultar de um diálogo
entre as instituições públicas e o segmento populacional afetada.

Por fim, é importante ressaltar que não se pretende defender a participação po-
pular como uma panaceia, capaz de solucionar, milagrosamente, todos os problemas
dessa espécie de litígio. O processo de democratização certamente não é fácil, e preci-
sa ser bem estruturado para que possa apresentar bons resultados. Mas a experiência
sul-africana mostra que é possível promove-lo, obtendo bons resultados tanto para
essa espécie de litígios, quanto para a democracia participativa.

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136
Capítulo 8
ACESSO À JUSTIÇA NOS
TEMPOS DE PANDEMIA: DA
CONTRIBUIÇÃO DO CONSELHO
NACIONAL DE JUSTIÇA PARA A
EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO
JURISDICIONAL NO BRASIL

SUMÁRIO: Introdução. 1. Do Conselho Nacional de Justiça. 2. Atuação do CNJ durante


a pandemia da COVID-19. 3. Resultados das medidas tomadas pelo CNJ e o acesso à
Justiça. Conclusões. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 8

ACESSO À JUSTIÇA NOS TEMPOS DE PANDEMIA: DA


CONTRIBUIÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA PARA A
EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NO BRASIL

Danilo Santos Ferraz1


Letícia Coelho Cavalcante Moreira2

INTRODUÇÃO

Quando foram noticiados pela imprensa especializada os primeiros casos do


novo coronavírus (COVID-19), no final do ano de 2019, cujo epicentro se deu na ci-
dade chinesa de Wuhan, capital da Província da China Central, a comunidade cientí-
fica internacional ficou em polvorosa, pois rapidamente o surto da doença se espalhou
pelo mundo, chegando a todos os continentes em poucos meses, provocando milha-
res de mortes e internamentos em unidades de terapia intensiva. Estava caracterizada
a pandemia, com infectados sintomáticos e assintomáticos contagiando vítimas de
forma generalizada e simultânea. A partir daí, diversas medidas começaram a ser to-
madas pelos países mais atingidos, desde isolamentos sociais, que foram se tornando
cada vez mais rígidos, até o fechamento temporário de repartições públicas e privadas
(com exceção daquelas consideradas prestadoras de serviços essenciais, como saúde e
segurança pública), caracterizando-se o chamado lockdown, na tentativa de conter o
avanço da doença e a superlotação dos hospitais. A utilização de EPI’s (Equipamentos
de Proteção Individual) passou a ser obrigatória em espaços públicos e a liberdade de
locomoção sofreu limitações necessárias.

Nessa esteira, os Poderes Públicos no Brasil tiveram que se reinventar, na ten-


tativa de continuar prestando a contento os serviços gerais à população, mesmo que
de forma virtual. O Poder Judiciário, em especial, há tempos já dispunha de uma
avançada rede de conexão processual, o que de certa forma facilitou sobremaneira a
continuidade da prestação jurisdicional a partir do peticionamento eletrônico e das
1 Doutorando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Professor do Curso de
Direito do Centro Universitário Christus (Unichristus) e Oficial de Justiça Avaliador Federal (TRT da 7ª Região).
E-mail: prof.daniloferraz@gmail.com
2 Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Christus (Unichristus). Bolsista do Programa de Monitoria
desta Instituição. E-mail: leticiaccmoreira@gmail.com

139
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

movimentações processuais de praxe. Entretanto, boa parte da população não dispu-


nha dessa tecnologia e alguns serviços, a exemplo das intimações e audiências pre-
senciais, tiveram que se adaptar à nova realidade. A existência no Brasil de um órgão
de cúpula, que fiscaliza a administração e as finanças do Poder Judiciário, nunca fora
tão oportuna, no afã de se garantir a continuidade do direito fundamental ao acesso
à Justiça, mas com o devido respeito à saúde pública, a partir de determinações que
visem à uniformização e eficiência dos atendimentos, ordinária e extraordinariamen-
te, a exemplo dos plantões judiciais. Inegável, outrossim, a importância do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) nesta conjuntura tão excepcional.

Neste estudo, trataremos inicialmente de como se deu o surgimento do CNJ


no País, sua composição eclética e suas atribuições constitucionais, fazendo menção
ao Direito Comparado, inclusive, demonstrando como o referido órgão superior da
estrutura do Poder Judiciário brasileiro vem desenvolvendo medidas estratégicas, a
partir de Resoluções e Recomendações, para garantir a continuidade e otimização dos
serviços judiciais nestes tempos sombrios de pandemia, refletindo sobre o legado que
o trabalho virtual poderá deixar à sociedade.

1. DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA

Há muito se ensaiava um órgão capacitado a realizar o controle externo do


Poder Judiciário no Brasil, já que este poder desempenha função de controle judicial
dos demais Poderes, seja controlando a constitucionalidade das leis e atos norma-
tivos que partem do Legislativo ou do Executivo (de forma difusa e concentrada),
seja julgando o Chefe do Poder Executivo nos crimes comuns. Ademais, já existia há
muito tempo o controle financeiro-orçamentário da Administração Pública, a cargo
dos Tribunais de Contas. Assim, importante seria a existência de uma instituição que
pudesse fiscalizar externamente o Judiciário, administrativa e financeiramente, em
parceria com o controle interno já realizado por intermédio das Corregedorias, que
nem sempre conseguiram fiscalizar os magistrados de forma isenta ou imparcial, haja
vista proximidade com os juízos e tribunais.

Em vários ordenamentos jurídicos estrangeiros, especialmente na Europa,


já era uma realidade há décadas a previsão constitucional de conselhos superiores
de magistratura, a exemplo da França (Constituição de 1946 e na atual, de 1958),
da Itália (Constituição de 1948), de Portugal (Constituição de 1976) e da Espanha
(Constituição de 1978), dentre outros, todos destinados a assegurar a autonomia da

140
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

magistratura, evitando um controle feito por outros Poderes. Tal realidade se espalha-
ria rapidamente por boa parte da América Latina, notoriamente influenciados pelo
modelo espanhol do Consejo General del Poder Judicial, criando-se os Conselhos de
Magistratura ou de Judicatura. Não tardaria a novidade, assim, a chegar ao Brasil,
especialmente após os amplos debates que se proliferaram na Assembleia Nacional
Constituinte (entre fevereiro de 1987 e outubro de 1988), quando a ideia de um
Conselho para controlar administrativa e financeiramente a Justiça brasileira fora der-
rotada nos sucessivos projetos e pareceres, mas sobrevivera nos porões dos Congressos
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), nas discussões da Associação dos Ma-
gistrados do Brasil (AMB), nas diversas pesquisas acadêmicas, experimentada como
necessidade por usuários e não usuários do Poder Judiciário. Nos dizeres de Joaquim
Falcão, a polêmica e esperada Reforma flutuava.3

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi finalmente criado pela Emenda


Constitucional (EC) de nº 45, em 30 de dezembro de 2004, alterando dispositivos
de vinte e cinco artigos da Constituição Federal de 1988, além de acrescentar quatro
artigos e diversos outros dispositivos4, colocando em prática a tão aguardada Re-
forma do Poder Judiciário, tendo em vista a necessidade de se realizar um controle
externo da Instituição, complementando o não tão eficiente controle interno que
já existia com as corregedorias. Instalado em 14 de junho de 2005, sedimentava-se
na realidade político-jurídica nacional um dos instrumentos jurídicos mais eficazes
para se combater a morosidade processual (algoz do direito individual fundamental
à duração razoável do processo, embasada no princípio constitucional da celeridade
processual) e a corrupção (investigando e punindo magistrados e serventuários da
Justiça por práticas desidiosas, criminosas e nepotistas) dentro da propagada crise
que vivia (vive?) o Judiciário. O axioma que embasou a criação deste Conselho foi
o binômio eficiência/lisura, mais facilmente obtido havendo um órgão imparcial e
externo, afinal, o sentimento de impunidade, inexoravelmente, gera a acomodação e
pior, o sentimento de total liberdade, ou melhor, de arbitrariedade.5

Mesmo sendo um órgão integrante da estrutura do referido Poder (artigo 92,


I-A, CF), entende-se ser o mesmo de natureza externa, tendo em vista sua composi-

3 FALCÃO, Joaquim. A história da Reforma do Poder Judiciário e de sua estratégia pré-legislativa. In: Dez
Anos de Reforma do Judiciário e o Nascimento do Conselho Nacional de Justiça (Org. Rui Stoco e Janaína
Penalva). Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2015. p. 178.
4 A Emenda Constitucional de nº 45/2004 alterou dispositivos dos artigos. 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102,
103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal de 1988,
acrescentando os artigos 103-A, 103-B, 111-A e 130-A, além de dar outras providências.
5 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. Ed. Saraiva, São Paulo: 2020. p. 1041.

141
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ção admitir membros que não pertencem ao Judiciário, como no caso dos represen-
tantes do Ministério Público, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dos dois
cidadãos escolhidos pelo Congresso Nacional. Tal controle - reafirma-se - é de índole
administrativa e financeira, haja vista não se admitir ingerência nas atribuições ju-
risdicionais dos juízes e tribunais, conforme definido na jurisprudência e na doutrina.

Com estruturação no artigo 103-B da Constituição Federal de 1988, o CNJ é


um órgão da cúpula federal do Poder Judiciário, estando em seu organograma consti-
tucional ao lado do Supremo Tribunal Federal (art. 92, I-A, CF), composto por quinze
membros, com mandato de dois anos, admitida única recondução. Destes, nove inte-
grantes já pertencem ao próprio Poder Judiciário: o Presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF); um Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por este indicado;
um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), por este indicado; um desem-
bargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo STF; um juiz estadual, indicado pelo
STF; um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo STJ; um juiz federal, indica-
do pelo STJ; um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo TST; e um juiz
do trabalho, indicado pelo TST. Os outros seis membros são externos à Instituição: um
do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República (PGR);
um do Ministério Público estadual, escolhido pelo PGR dentre os nomes listados pelas
Procuradorias Gerais de Justiça (PGJ); dois advogados, indicados pelo Conselho Fede-
ral da OAB; e dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um
pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal.

Após diversas polêmicas políticas e jurídicas, inclusive tendo sido impetradas


diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade6 no âmbito do STF, principalmente
em face das previsões do controle externo do Poder Judiciário, da vedação ao nepotis-
mo e das súmulas vinculantes, advindas com a Reforma do Judiciário – outra Emen-
da Constitucional (nº 61, promulgada em 11 de novembro de 2009) acabou sendo
aprovada pelo Congresso Nacional, detalhando a formalização da composição do
CNJ e seu funcionamento. Assim, o referido órgão é presidido pelo Ministro Presi-
dente do STF (em sua ausência, assume o Vice-Presidente do tribunal) e seus demais
membros são nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovadas suas
escolhas pela maioria absoluta do Senado Federal. A Reforma do Judiciário, iniciada
pela EC de nº 45 de 2004, determina que se tais escolhas não forem feitas dentro do

6 “No plano jurídico, travou-se a última batalha na ADI nº 3.367/DF, na qual o STF considerou que a configu-
ração dada ao CNJ seria compatível com os princípios da separação de Poderes e da forma federativa de Estado
(CF, art. 60, §4º, I e III).” In BARROSO, Luís Roberto. O Novo Direito Constitucional Brasileiro – Contribui-
ções para a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. 2ª reimpressão. Editora Fórum: Belo
Horizonte, 2013. p.372.

142
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

prazo legal (sessenta dias antes de vencer os mandatos dos titulares, o CNJ comunica
aos órgãos respectivos a necessidade de indicação de novos integrantes) caberão as
mesmas ao STF. Ainda, criou uma Corregedoria Nacional de Justiça dentro do CNJ,
sob a responsabilidade do Ministro do STJ indicado por esta Corte, tendo ele poderes
para receber denúncias e reclamações, de qualquer interessado, relativas aos magis-
trados e aos serviços judiciários, além de exercer funções executivas do Conselho, de
inspeção e de correição geral, podendo requisitar ou designar magistrados, delegan-
do-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive dos demais
entes da Federação. Junto ao CNJ, oficiarão o Procurador-Geral da República (Chefe
do Ministério Público Federal) e o Presidente do Conselho Federal da OAB, havendo
ainda previsão de criação de ouvidorias de justiça pela União. As idades mínima e
máxima, anteriormente exigidas para os integrantes do CNJ, foram suprimidas pela
referida Emenda de nº 61.

As competências constitucionais do CNJ, que integram um rol meramente


exemplificativo, referem-se, basicamente, a controlar a atuação administrativa e fi-
nanceira do Poder Judiciário, fiscalizar o cumprimento dos deveres funcionais dos
magistrados, além de outras atribuições porventura conferidas pelo Estatuto da Ma-
gistratura (projeto de lei ainda em curso no Congresso Nacional, para suceder ao Esta-
tuto de 1979), desde que não sejam de natureza jurisdicional, conforme mencionado.
Assim, zelar pela autonomia do Poder Judiciário, pelo cumprimento do Estatuto da
Magistratura, pelo respeito aos princípios da Administração Pública estatuídos espe-
cialmente a partir do artigo 37 da Lei Fundamental, receber e conhecer reclamações
contra membros ou órgãos do Judiciário (sem prejuízo da competência disciplinar
e correicional dos tribunais), representar ao Ministério Público quando souber de
crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade, rever (de ofício ou
mediante provocação) os processos disciplinares dos juízes e membros de tribunais
julgados há menos de um ano, além de elaborar relatórios semestrais e anuais acerca,
respectivamente, de estatísticas processuais e proposições de providências necessárias
sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho.

No âmbito de suas atribuições constitucionais, o CNJ acaba por editar atos


normativos primários (hierarquicamente inferiores apenas à Constituição Federal,
pois dela retiram seu fundamento de validade imediata e diretamente), a exemplo de

143
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

suas Resoluções, tendo o Supremo Tribunal Federal assentado o entendimento de que


as mesmas são passíveis de sofrer controle de constitucionalidade in abstracto.7

Trata-se de um amplo feixe de atribuições concernentes à supervisão adminis-


trativa e financeira do Judiciário nacional, além de ter sido criado no âmbito do CNJ,
pela Lei 12.106/2009 o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema
Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, que deve acom-
panhar o desempenho dessas áreas em todo o Brasil, iniciativa que tem permitido ao
Conselho reparar graves injustiças envolvendo prisões ilegais, bem como trabalhar
para aperfeiçoar a execução penal no País.8

Logo de início, o CNJ passou a implementar algumas mudanças na gestão do


Poder Judiciário nacional, promovendo planejamento estratégico e medidas para me-
lhorar a eficiência dos serviços judiciais, especialmente a partir da reforma regimental
de 2008-2009, que proporcionara instrumentos para tal desiderato, sendo suas dire-
trizes a celeridade, a facilitação, a simplificação da prestação jurisdicional e do acesso à
Justiça, e a ampliação dos meios de alcance à informação processual.9 Assim, passou
a ocupar uma posição de destaque no cenário jurídico na nacional, especialmente
na supervisão e organização da magistratura federal e estadual, com destaque para a
atuação durante momentos de crise institucional e, agora, também de saúde pública
em decorrência da pandemia provocada pelo novo coronavírus.

2. ATUAÇÃO DO CNJ DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Poucos dias após a declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS) que caracte-
rizou o surto da COVID-19 (vírus Sars-CoV-2) como uma pandemia10, o Conselho

7 A decisão do Pretório Excelso que permitiu essa possibilidade adveio da Resolução nº 7 do CNJ sobre a ve-
dação expressa ao nepotismo nos juízos e tribunais, onde se declarou a constitucionalidade da mesma por maioria
de votos no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade de nº 12, em 2006.
8 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 15ª ed.
Saraiva: São Paulo, 2019. pp. 1006-1007.
9 KOERNER, Andrei. Judiciário e Moralização da Política: três reflexões sobre as tendências recentes no
Brasil. Pensar: Revista de Ciências Jurídicas. – Vol. 18, n. 3 (set./dez. 2013) – 681-711 – Fortaleza: Universida-
de de Fortaleza, 2013. p. 692.
10 O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, em uma entrevista coletiva, no dia 11 de março de
2020, afirmou que a doença proveniente do coronavirus disease se alastrara em níveis alarmantes simultaneamen-
te por todo o mundo, tendo o surto global evoluído para uma pandemia, e que medidas equilibradas de todos os
países deveriam ser tomadas neste momento de crise mundial. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/
geral-51842518>. Acesso: 14 jun. 2020.

144
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Nacional de Justiça emitiu a Resolução n° 31311, no intuito de suspender o trabalho


presencial e os prazos processuais, bem como instaurar o regime de plantão extraordi-
nário na Justiça brasileira. Este documento representa uma das providências tomadas
pelo Conselho no sentido de minimizar os impactos da pandemia no Poder Judiciá-
rio. Assim, algumas resoluções, portarias e recomendações foram expedidas no de-
correr da pandemia, com o fito de fornecer orientação aos juízos e tribunais pátrios.

Vários tribunais editaram atos normativos suspendendo os atendimentos e


prazos processuais por seguidas vezes, quando então o CNJ aprovou a referida Re-
solução de nº 313, em 19 de março de 2020, determinando a suspensão dos prazos
processuais até o dia 30 de abril seguinte, dos trabalhos presenciais nos juízos e tri-
bunais, instituindo o plantão extraordinário e o trabalho remoto dos magistrados e
serventuários da Justiça em todo o País. Os efeitos de tais medidas, que visaram a
uniformizar as regras e o período de sobrestamento são os mais variados, na medida
em que são suspensos os prazos, mas não necessariamente o trâmite processual.12
Por exemplo, Oficiais de Justiça por todo o País cumprem mandados judiciais vir-
tualmente, seja notificando os destinatários por e-mail, seja intimando-os por wha-
tsapp ou qualquer outro meio idôneo para tal desiderato, inclusive empreendendo
buscas por redes sociais, tais como Instagram e Facebook, sem qualquer prejuízo
para as partes, haja vista todos os prazos processuais estarem suspensos, muito em-
bora alguns juízos e tribunais já estejam atuando por videoconferência, realizando
audiências e outras diligências.

As quatro Resoluções do CNJ editadas até aqui durante a pandemia são as de


nº 313, que como visto, implantou o plantão extraordinário no seio do Judiciário;
de nº 314, que prorrogou o regime instituído pela resolução anterior, além de
modificar as regras de suspensão de prazos processuais; de nº 318, que prorrogou os
regimes instituídos pelas duas resoluções anteriores e deu outras providências; e nº
322, que estabeleceu, no âmbito do Poder Judiciário, medidas para retomada dos
serviços presenciais, observando as ações necessárias para prevenção de contágio pelo

11 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Ex-
traordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio
pelo novo Coronavírus – Covid-19, e garantir o acesso à Justiça neste período emergencial. Resolução n° 313, de
19 de março de 2020. DJe/CNJ nº 71/2020, em 19/03/2020, p. 3-5. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/
detalhar/3249>. Acesso: 13 jun. 2020.
12 ALMEIDA, Marcelo Pereira de; PINTO, Adriano Moura da Fonseca. Os impactos da pandemia de COVID
19 no Sistema de Justiça – algumas reflexões e hipóteses. In: Revista Juris Poiesis. pg. 01-15. Rio de Janeiro. Vol.
23 – nº 31, 2020. pp. 03 e 04.

145
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

novo coronavírus e deu outras determinações, como a possibilidade de retorno das


prescrições extraordinárias estabelecidas pelas resoluções anteriores13.

Muitos dos atos propagados desempenham um papel de extremo valor ao in-


centivar uma uniformidade de decisões e, por conseguinte, a segurança jurídica. A
título de ilustração, cabe citar também a Recomendação n° 63 do CNJ, que sugere
aos juízos com competência para o julgamento de ações de recuperação empresarial e
falência a adoção de medidas específicas.

No que concerne aos plantões extraordinários, estes estão sendo realizados vir-
tualmente através do WEBEX, plataforma emergencial de videoconferência para atos
processuais14, fornecida gratuitamente pela empresa “Cisco Brasil Ltda.” até o fim do
isolamento social determinado pelas autoridades públicas, em virtude de um acordo
de cooperação técnica celebrado entre a empresa e o CNJ.

Essa postura inicial por parte do Conselho foi importante, uma vez que de-
monstrou sua proatividade, apto a trabalhar de forma clara e ágil em prol do acesso à
Justiça, elemento essencial ao exercício da cidadania e alicerce básico do direito fun-
damental à prestação jurisdicional efetiva.15

Outrossim, por meio da Portaria n° 57/202016, o CNJ incluiu o caso do coro-


navírus no “Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais
de Alta Complexidade”17 e instituiu um Comitê de Crise composto por membros e
auxiliares do Conselho para viabilizar o cumprimento da referida portaria e consoli-
dar registros de decisões, classificando-as como relativas ao coronavírus e possibilitan-
do a coleta de dados estratégicos.

13 No dia 12 de junho de 2020 foi publicado o Provimento n° 105, que prorroga para o dia 31 de dezembro de
2020 o prazo de vigência de determinados provimentos, a exemplo de serviços notariais e cartorários, sem prejuí-
zo de futura ampliação ou redução a ser feita por ato do Corregedor Nacional de Justiça.
14 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Portaria n° 61, de 31 de março de 2020. Institui a plataforma emer-
gencial de videoconferência para realização de audiências e sessões de julgamento nos órgãos do Poder Judiciário,
no período de isolamento social, decorrente da pandemia Covid-19. DJe/CNJ nº 91/2020, em 01/04/2020, p.2.
Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/files/original 221645202004015e8512cda293a.pdf>. Acesso: 13 jun. 2020.
15 CARVALHO, Luciano Lucio de. Prestação jurisdicional efetiva: um direito fundamental. 2006. 139 f.
Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Eurípedes de Marília, Fundação de Ensino Eurípedes
Soares da Rocha, Marília, 2006. p. 12.
16 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Portaria n° 57, de 20 de março de 2020. Incluir no Observatório
Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercus-
são o caso Coronavírus – Covid-19. DJe/CNJ, nº 75, de 23/03/2020, p. 2-4. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.
br/atos/detalhar/3252>. Acesso em: 13 de junho de 2020.
17 O Observatório Nacional foi instituído pelo Conselho Nacional de Justiça ao lado do Conselho Nacional do Mi-
nistério Público no intuito de aperfeiçoar a atuação das instituições em ocorrências de grande impacto e repercussão.

146
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Além das deliberações tomadas no sentido de fornecer orientação aos


magistrados e servidores públicos no desempenho de suas funções, a participação
do CNJ tomou novas proporções ao viabilizar ferramentas de comunicação para
que a sociedade tome conhecimento dos atos efetuados e interaja mediante seus
interesses. Para publicizar tais atos, a comunicação estabelecida pelo sítio eletrônico
do Conselho apresenta uma página intitulada “Coronavírus”, contendo informações
gerais e de cunho jurisdicional18.

O primeiro tópico em destaque concentra quatro painéis, são eles: municípios


em lockdown, que apresenta um descritivo quantitativo por Estado e as regulamentações
e datas previstas para o fim dos decretos; ações judiciais, para o acompanhamento de
todas as ações que estão sendo judicializadas nos tribunais; produtividade, onde se
disponibiliza uma atualização semanal dos resultados obtidos pelos servidores em
regime de teletrabalho e videoconferência, que expõe os dados da ferramenta WEBEX,
com o panorama do total de usuários cadastrados na plataforma, bem como diversas
estatísticas das reuniões, desde a quantidade de reuniões realizadas até a média de
duração e a quantidade média de participantes.

Dentre os diversos outros temas expostos na página mencionada acima,


ainda cabe ressaltar possibilidade de visualizar todos os atos normativos emanados
por diversos setores do Poder Judiciário que dizem respeito ao coronavírus, desde
portarias e resoluções proferidas pela presidência do CNJ, até notícias e documentos
publicados por Associações de magistrados.

Saindo da esfera de seu site, o CNJ acabou se enveredando por outros meios de
comunicação. Nessa perspectiva, o programa “CNJ Especial Coronavírus” é exibido
semanalmente na TV Justiça e aborda diferentes temas sobre as ações do Conselho
Nacional de Justiça frente à pandemia da COVID-19.

Ademais, verifica-se que a atuação do CNJ foi além do cumprimento natural


de suas funções ao estabelecer que recursos provenientes do cumprimento de pena
de prestação pecuniária, transação penal e suspensão condicional do processo nas
ações criminais deverão ser destinados para o combate à pandemia em decorrência

18 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/coronavirus/>. Acesso: 14


jun. 2020.

147
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

da COVID-1919. Referida providência é regulamentada na Nota Técnica Conjunta


emitida pelo CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).20

Nesse sentido, a Recomendação n° 62/2020 do Conselho Nacional de Justi-


ça foi amplamente elogiada pela comunidade internacional por incentivar a adoção
21

de medidas preventivas à propagação do novo coronavírus no sistema de justiça penal


e socioeducativo. Cumpre enaltecer a relevância deste ato, pois além de diminuir a
lotação carcerária, zela pela integridade física dos indivíduos sob custódia do Estado,
conferindo-lhes dignidade.

No capítulo a seguir, o estudo se destina a fazer uma breve análise dos re-
sultados obtidos pelas medidas supramencionadas, bem como considerar possíveis
reflexos da pandemia na prestação jurisdicional brasileira a médio e longo prazo.
Como visto, o CNJ desempenha um papel central dentro do sistema judiciário bra-
sileiro, já que suas decisões refletem diretamente sobre os atos e políticas públicas
do Poder Judiciário, resvalando na vida de todos os cidadãos, pois apesar da função
típica deste Poder ser a jurisdicional, seus órgãos empregam grande parte do tempo
em questões administrativas e financeiras (função atípica), principalmente quanto
à condução dos processos judiciais, a divisão do trabalho entre seus membros, e a
divisão estrutural e material dos seus recursos, imperando a necessidade de coorde-
nação entre as duas funções sobreditas22.

19 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Ex-
traordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio
pelo novo Coronavírus – Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial. Resolução n° 313, de
19 de março de 2020. DJe/CNJ nº 71/2020, em 19/03/2020, p. 3-5. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/
detalhar/3249>. Acesso: 13 jun. 2020.
20 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça; Conselho Nacional do Ministério Público. Nota Técnica referente à
destinação de recursos do Fundo Penitenciário Nacional em face da decretação de Emergência de Saúde Pública
de Importância Nacional para o novo Coronavírus – Covid-19. Nota Técnica Conjunta n° 1 de 28 de abril de 2020.
DJe/CNJ nº 118/2020, de 29/04/2020, p. 4-8. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3292>. Acesso:
13 jun. 2020.
21 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Recomenda aos Tribunais e magistrados a adoção de medidas pre-
ventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus – Covid-19 no âmbito dos sistemas de justiça penal e
socioeducativo. Recomendação n° 62, de 17 de março de 2020. DJe/CNJ nº 65/2020, de 17/03/2020, p. 2-6. Dis-
ponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246>. Acesso: 13 jun. 2020.
22 BOCHENEK, Antonio César; DALAZOANA, Vinícius; RISSETTI, Vinícius Rafael. Good Governance e o
Conselho Nacional de Justiça. In: Revista Direito FV. pp. 535-554. São Paulo, jul-dez 2013. p. 535.

148
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

3. RESULTADOS DAS MEDIDAS TOMADAS PELO CNJ E O ACESSO À


JUSTIÇA

Em um dos momentos mais emblemáticos de sua história, o Conselho Na-


cional de Justiça está sendo instigado a apresentar soluções para problemas inéditos,
e, nesse sentido, os números extraídos revelam o atendimento sob o compromisso
institucional firmado com a celeridade processual e a prestação jurisdicional. No pe-
ríodo decorrido entre 16 de março de 2020 até 07 de junho de 2020, a produtividade
do Poder Judiciário brasileiro atingiu o número de 6.118.651 sentenças e acórdãos
proferidos, somando incríveis 9.431.471 decisões, 15.470.657 despachos e cerca de
245.675.158 movimentações realizadas23. Além disso, já são mais de 2.470 ações
judiciais ajuizadas em todo o País mesmo durante o período da pandemia24.

Compondo o resultado, desde o início de sua disponibilidade, não obstante o


uso facultativo aos tribunais, a plataforma CISCO WEBEX já reúne cerca de 14.518
usuários cadastrados dos ramos da Justiça (Federal, Estadual, do Trabalho, Eleitoral,
Militar, Superior e Conselhos). Ademais, foram realizadas 125.316 reuniões, com
uma média de 38 minutos de duração e cinco participantes por sala, otimizando
tempo e deslocamento com economia de recursos públicos e privados.

Neste diapasão, ao realizar um levantamento com dados emitidos pela Secreta-


ria de Orçamento e Finanças do CNJ, constatou-se que os gastos com passagens aé-
reas e diárias em abril de 2019 somaram R$ 384.476,47 e, em contrapartida, devido
ao isolamento social, em abril de 2020, o gasto com as mesmas despesas somou R$
42.535,02, resultando em uma economia de 89%.25 Há de se avaliar se o referido
ganho não compromete a qualidade do serviço prestado pela Justiça, e sim confirma
a viabilidade de realizá-lo através de uma nova rotina.

Ressalte-se que as economias também englobam despesas mais simples, po-


rém consideráveis. A título de ilustração, dados expedidos pelo Centro de Comu-
nicação Social do Tribunal de Justiça de Goiânia estimam que a adoção do teletra-
balho permitiu a economia de 98% em despesas como material de impressão, de

23 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Produtividade Semanal do Poder Judiciário. Regime de teletrabalho
em razão da COVID-19. Disponível em: <https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=ba-
21c495-77c8-48d4-85ec-ccd2f707b18c&sheet=b45a3a06-9fe1-48dc-97ca-52e929f89e69&lang=pt-BR&opt=
currsel& select=clearall>. Acesso: 14 jun. 2020.
24 BRASIL. Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e
Grande Impacto e Repercussão. Ações Judiciais. Disponível em: <https://observatorionacional.cnj.jus.br/observa-
torionacional/index.php/coronavirus-covid19/acoes-judiciais>. Acesso: 14 jun. 2020.
25 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Diárias e Passagens Aéreas. Disponível em: <https://www.cnj.jus.
br/transparencia-cnj/passagens-aereas/>. Acesso: 14 jun. 2020.

149
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

expediente e de limpeza, totalizando na economia de R$ 1,4 milhão, sem contar


com outras áreas26.

No âmbito carcerário, após três meses da Recomendação n° 62/2020 do CNJ,


responsável por incentivar juízes de todo o País a reanalisar prisões de determinados
grupos, verifica-se que mais 32 mil pessoas foram removidas dos presídios e inseridas
em outros contextos de cumprimento de pena, protegendo aqueles que vivem sob a
tutela do Estado27. Além disso, o montante repassado para o combate à pandemia da
COVID-19 já soma mais de R$ 368.488.954,20.

Decerto, não é fácil rever e aceitar novas rotinas. Todavia, mesmo diante das
resistências naturais associadas a visões conservadoras no tocante às novas tecnolo-
gias28, acredita-se que períodos de grandes mudanças - como o que ocorre com a
pandemia do coronavírus - propiciam quebras de paradigmas, na medida em que se
provou a eficiência desses meios disruptivos e sua importância para garantir a susten-
tabilidade nos diversos âmbitos sociais.

Ante o exposto, o Conselho Nacional de Justiça, além de contribuir para a


efetiva realização da prestação jurisdicional por parte do Poder Judiciário nacional,
apresenta ações que denotam seu entendimento diante das atuais urgências sociais
com a pandemia da COVID-19, participando como agente de solução em benefício
da sociedade. As ações do CNJ para garantir a produtividade dos tribunais são muito
oportunas, garantindo aos brasileiros o acesso à Justiça, sem criar riscos para a saúde
dos operadores do Direito e de suas famílias, a exemplo do desenvolvimento de pro-
gramas de informática em parceria com outros órgãos, com o objetivo de promoção
do acesso à informação e minoração da burocracia tão comum nos atos processuais.

Os atos normativos expedidos supracitados demonstram toda a preocupação


do Conselho com o direito fundamental de acesso à Justiça, pois esta não pode parar,
mesmo em situações excepcionais como a que estamos vivenciando, demonstrando
a importância da já estabelecida atividade judicial eletrônica, sendo o Brasil um dos

26 TRIBUNAL DE JUSTIÇA do ESTADO de GOIÁS. Teletrabalho: TJGO é segundo em produtividade dentre


os tribunais de médio porte e tem economia de até 98% em algumas áreas. TJGO, 2020. Disponível em: <https://
www.tjgo.jus.br/index.php/institucional/centro-de-comunicacao-social/20-destaque/19806-teletrabalho-tjgo-e-
-segundo-em-produtividade-dentre-os-tribunais-de-medio-porte-e-tem-economia-de-ate-98-em-algumas-areas>.
Acesso: 14 jun. 2020.
27 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Agência CNJ de Notícias. CNJ renova Recomendação n° 62 por
mais 90 dias e divulga novos dados. Conselho Nacional de Justiça, 2020. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/
cnj-renova-recomendacao-n-62-por-mais-90-dias-e-divulga-novos-dados/>. Acesso: 14 jun. 2020.
28 MATTIOLI, Maria Cristina. O comportamento do juiz diante das novas tecnologias: impactos e desafios
numa gestão de mudanças. Campinas: Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, n. 42, 2013. p.
81-92. Disponível em: <https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/103717> Acesso: 14 jun. 2020.

150
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

países mais virtualizados do mundo, mas que, na medida do possível, não se pode
tirar dos cidadãos, especialmente daqueles mais humildes e nada afeitos às moderni-
dades virtuais, a prerrogativa de acesso físico às repartições judiciais, mas dentro de
padrões sanitários e de máximo respeito à vida e à saúde pública, como se depreende
da última resolução supracitada. Assim, essa aparente antinomia entre o direito à saú-
de e o direito ao acesso à Justiça, facilmente se resolve com a utilização do princípio da
proporcionalidade, vetor hermenêutico que se conecta com a adequação, necessidade
e razoabilidade das medidas tomadas até aqui pelo Conselho Nacional de Justiça.

CONCLUSÕES

Despiciendo afirmar que o acesso à Justiça é um dos pilares do Estado Cons-


titucional de Direito, e que o mesmo não se limita à mera faculdade de se ajuizar
ou contestar uma ação. Desta feita, a existência de um órgão de cúpula do Poder
Judiciário, com natureza administrativa, voltado à garantia da prestação jurisdicio-
nal mais efetiva, baseada em celeridade, eficiência e moralidade, torna-se impres-
cindível, mormente em situações de crise, como a vivenciada no Brasil e no mundo
neste início da segunda década do século XXI, por conta da pandemia que nos
assola a todos. Cabe aos órgãos de cúpula essa postura de liderança das instituições
democráticas, agindo com altivez para garantir a mantença do devido processo
legal, desde a proteção e incentivo ao acesso à Justiça até a efetiva prestação aos ju-
risdicionados. E o CNJ não tem fugido às suas responsabilidades, atuando de forma
deveras sensível neste momento peculiar da História.

Apesar das críticas que sofre de setores da sociedade que o veem como órgão
correicional e gerencial, ou mero coletor de reclamações, mais preocupado em acele-
rar a prestação jurisdicional a partir de metas e decisões padronizadas, o CNJ cumpre
um papel estratégico na fiscalização e organização do Poder Judiciário brasileiro, ten-
do o grande mérito de ter se tornado um espaço para pensar e efetivar melhorias neste
importante Poder, sendo sua composição plural retrato da necessária democratização
das Instituições no País, especialmente no tocante ao acesso à Justiça por parte da
população, exercendo um papel de verdadeiro legitimador social do Judiciário.

Desde direcionamentos aos juízos e tribunais, passando pelos projetos endere-


çados à população em geral, de certa forma prestando contas de sua atuação junto à
sociedade, suas resoluções e recomendações durante a pandemia causada pelo novo
coronavírus (COVID-19), elogiadas inclusive pela ONU e pela Comissão Interame-

151
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ricana de Direitos Humanos, acenam no sentido de garantir o plantão extraordinário


das instâncias judiciárias e possibilitar o acesso à Justiça mesmo nesses tempos som-
brios de quarentena, onde medidas extremas como isolamento social rígido e lock-
down não podem ser justificadores para afastar a sociedade do acesso à Justiça e de se
renegar seu direito fundamental à ação e à prestação jurisdicional.

REFERÊNCIAS
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de COVID 19 no Sistema de Justiça – algumas reflexões e hipóteses. In: Revista Juris Poiesis.
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a construção teórica e prática da jurisdição constitucional no Brasil. 2ª Reimpressão. Editora
Fórum: Belo Horizonte, 2013.

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2006. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Centro Universitário Eurípedes de Marília,
Fundação de Ensino Eurípedes Soares da Rocha, Marília, 2006.

FALCÃO, Joaquim. A história da Reforma do Poder Judiciário e de sua estratégia pré-legislativa.


In: Dez Anos de Reforma do Judiciário e o Nascimento do Conselho Nacional de Justiça
(Org. Rui Stoco e Janaína Penalva). Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2015.

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152
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
15ª ed. Saraiva: São Paulo, 2019.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 18ª ed. ed. Saraiva, São Paulo:
2020.

153
PARTE II

Capítulo 9
DESAFIOS DA PESQUISA EMPÍRICA
EM DIREITO JUNTO AO CNJ E
A PERCEPÇÃO DE MAGISTRADOS
SOBRE CONHECIMENTO
ESPECIALIZADO
EM TUTELA COLETIVA

SUMÁRIO: Introdução 1. O real Acesso à Justiça: a pesquisa empírica em direito (PED) e


as pesquisas judiciárias do CNJ. 1.1. Ponderações sobre a pesquisa em direito e os desafios da
modalidade empírica no Brasil. 1.2. O Acesso à Justiça pelas pesquisas judiciárias do CNJ e
uma análise do Relatório Analítico Propositivo sobre Ações Coletivas de 2018 (RAPAC). 2.
A Percepção de Magistrados sobre o baixo conhecimento em Tutela Coletiva: reconhecendo
distorções e exatidões em prol do Acesso à Justiça. 2.1. Falhas metodológicas da pesquisa
mediante Survey e possíveis distorções do resultado. 2.2. O acerto “acidental” da Survey e as
exatidões da condição teórica da Tutela Coletiva brasileira. Conclusão. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 9

DESAFIOS DA PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO JUNTO AO CNJ


E A PERCEPÇÃO DE MAGISTRADOS SOBRE CONHECIMENTO
ESPECIALIZADO EM TUTELA COLETIVA

Carla Maria Barreto Gonçalves1

INTRODUÇÃO

“90% do Judiciário não têm conhecimento suficiente sobre tutela coletiva,


diz CNJ”. Essa foi a chamada adotada pelo portal jurídico JOTA para anunciar a re-
produção jornalística dos principais resultados de um relatório realizado pela Socieda-
de Brasileira de Direito Público (SBDP) a pedido pelo Conselho Nacional de Justiça
(CNJ). A reportagem se baseia no “Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa –
Direitos e Garantias Fundamentais. Ações Coletivas no Brasil: temas, atores e desafios
da tutela coletiva”, que a partir de então será denominado como RAPAC – Relatório
Analítico Propositivo de Ações Coletivas. A apresentação dos resultados da pesquisa
ocorreu em 19/10/2017, durante o Seminário Justiça Pesquisa 2017, organizado pelo
CNJ e a reportagem do JOTA é de 16/01/2018.

No subtítulo, tem-se que o relatório “conclui que a formação na área é in-


suficiente, além de apontar distorção no uso do instrumento” e inicia no corpo de
texto repetindo o índice, de que “nove em cada 10 servidores da Justiça consideram
necessário que magistrados e promotores aperfeiçoem seus conhecimentos em relação
à tutela coletiva” (TEIXEIRA, 2018)2.

Em seguida, afirma-se que “magistrados, promotores e servidores” do Judi-


ciário teriam sido ouvidos e indica que a porcentagem dos que consideram que o
conhecimento em tutela coletiva é parcialmente suficiente foi de 63,3% e a dos que
consideraram insuficiente foi de 25,7%, o que num total corresponderia a 89,3% de
sujeitos que não consideram plenamente adequada a formação da magistratura nesse

1 Mestranda em Direito do PPGD-UFC. Editora de Seção da Revista NOMOS (UFC). Especialista em Direito
Processual Civil (UNIDERP-ANHANGUERA). Oficiala de Justiça (TJCE).
2 TEIXEIRA, Matheus. Disponível em: https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/
90-do-judiciario-nao-tem-conhecimento-suficiente-sobre-tutela-coletiva-diz-cnj-16012018

157
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tema, encerrando-se com um indicativo de que 78,7% que acreditam que o conheci-
mento do quadro de pessoal é precário (TEIXEIRA, 2018).

Vale ressaltar que a matéria ainda foi atualizada em 14/06/2018 para o acréscimo
do tópico “Outro lado”, em que se reproduz uma nota encaminhada pelo CNJ ao portal
JOTA, frisando que a pesquisa se tratava de uma encomenda feita a entidades de renome
da academia brasileira3. Assim, segundo informado na nota enviada pelo CNJ ao portal,

a pesquisa não leva à conclusão de que a grande maioria do Poder Ju-


diciário “não tem conhecimento suficiente sobre tutela coletiva”, mas
mostra que 89,3% dos ouvidos pela pesquisa consideram que a “for-
mação da magistratura”, ou seja, o ensino ministrado nas faculdades
de Direito em geral, “não é plenamente adequada em temas relaciona-
dos aos direitos coletivos e aos instrumentos processuais para tutelar
tais direitos” (TEIXEIRA, 2018).

Em seu próprio portal, vale ressaltar, o CNJ atribuiu ênfase a outros resul-
tados apresentados pelo relatório, através dos títulos atribuídos às notícias, eviden-
ciando como o escopo de pesquisa foi abrangente e diversos resultados relevantes
poderiam ser apresentados4.

Ao mesmo tempo, essa diversidade de conclusões pareceu contribuir para


uma variedade de percepções dos fatos estudados ao mesmo tempo em que permite
a seletividade informacional. Inclusive, a reportagem até aponta outros problemas
detectados pelo estudo, como a proliferação de ações coletivas com vistas a ganhos
individuais e a firmação de jurisprudência que distorceria o instituto.

Contudo, pela chamada adotada percebe-se como alarmante, aparente deficiência


na formação dos integrantes do Poder Judiciário e, portanto, acabou sendo a mais relevante
constatação para o portal5. E estando corretas as porcentagens, essa verificação se torna

3 No caso específico coube à SBDP, sob coordenação dos professores Conrado Hubner (Universidade de São Paulo)
e Vanessa Oliveira (Universidade Federal do ABC).
4 Na sua aba “Notícias CNJ”, o órgão veiculou em 19/10/2017 a seguinte chamada para anunciar o lançamento da
pesquisa: “Pesquisa indica uso de ações coletivas para defesa de direitos individuais” Disponível em: https://www.cnj.
jus.br/acoes-coletivas-estrategia-para-defesa-de-direitos-individuais/. E noutra notícia, em 15/01/2018, afirmou-se
na chamada que “Ministério Público é o principal autor de ações coletivas na Justiça”. https://www.cnj.jus.br/ministe-
rio-publico-e-o-principal-autor-de-acoes-coletivas-na-justica/
5 Ressalte-se o equívoco da equipe jornalística, pois segundo a reportagem teriam sido ouvidos “magistrados,
promotores e servidores” na pesquisa, quando o questionário (ou Survey) destinou-se somente a magistrados (MEN-
DES et al, 2018, p. 46). Assim, está expressamente registrado no tópico 4.2, inserido na parte de Metodologia, que a
Survey era de percepção dos juízes. E o tópico apresenta a seguinte introdução: “O segundo eixo da pesquisa buscou
conhecer a percepção dos juízes de primeira instância sobre as ações coletivas. Diante do elevado número de magistra-
dos que integram os tribunais selecionados por este projeto, delimitamos o universo do survey às varas que possuem
competência para julgar ações coletivas” (MENDES et al, 2018, p. 46)

158
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

alvo certo para críticas e debates sobre o funcionamento do Poder Judiciário no sentido
de efetivar um melhor Acesso à Justiça, podendo também ser incorporada às discussões
sobre ensino e a avaliação de juristas no Brasil, ambos temas bastante problematizados.

Todavia, parece existir um desafio preliminar, e potencialmente ignorado, quanto


à análise desse polêmico resultado trazido no Relatório; e que deve ser superado para se
discutir a capacitação de juristas a partir do resultado noticiado. Afinal, antes de afirmar
essa insuficiência de conhecimento é preciso averiguar o rigor metodológico da pesquisa
que permitiu essa afirmação e, consequentemente, qual seria seu grau de procedência.

Inclusive, essa necessidade de ponderação se confirma a partir do momento


em que o CNJ se endereça à empresa de comunicação para adequar a reportagem
na interpretação do resultado destacado; como também em razão de um proveitoso
artigo publicado por Edilson Vitorelli e Hermes Zaneti Jr. (2019) dedicado a revisar
aspectos metodológicos desse relatório.

Assim, esse debate será aprofundado para contemplar outro tema familiar a
alguns investigadores, que é a ausência de rigor na pesquisa científica jurídica, no-
tadamente na modalidade empírica, que foi utilizada para a elaboração do relatório.
Inclusive, destaque-se desde já que a Pesquisa Empírica em Direito (PED) já conta
com notáveis iniciativas para seu fortalecimento e disseminação, como no caso da
REED (Rede de Pesquisa Empírica em Direito)6. Contudo, conforme se verifi-
cará, a PED é modalidade pouco difundida, especialmente em se considerando a
desigualdade acadêmica do país7.

Nesse sentido, no presente artigo se investigará o grau de rigor empregado


na coleta dos dados, que se deu por meio de uma Survey, a fim de concluir sobre a
acuidade da conclusão quanto sobre essa insuficiência de conhecimento sobre tutela
coletiva no judiciário brasileiro.

6 A organização foi criada em 2011 como uma “organização sem fins lucrativos de professores(as) e pesquisado-
res(as) que promovem iniciativas de pesquisa e reflexões de natureza metodológica e epistemológica no campo das in-
vestigações jurídicas”. E ainda promove eventos e publica semestralmente a Revista de Estudos Empíricos em Direito.
Disponível em: http://reedpesquisa.org/o-que-e-a-reed/
7 Pela literatura levantada parece haver um fortalecimento e um aperfeiçoamento limitado à REED e seus integran-
tes. Ou seja, apesar do trabalho relevante, a organização e suas iniciativas não parecem suficientemente divulgadas no
país. Cite-se ainda a iniciativa do já extinto “Projeto Pensando o Direito”, que funcionou na Secretaria de Assuntos
Legislativos (SAL) do Ministério da Justiça, entre 2007 e 2017, com 61 volumes de pesquisas publicados e 484 propos-
tas submetidas, dentre outros números. Em pesquisas que analisaram o potencial do Projeto em difundir a pesquisa
empírica, a análise se restringia somente às equipes candidatas ao Projeto, sendo a maioria delas do eixo Sul-Sudeste do
país. Cf. HORTA et al. Dez anos do projeto Pensando o direito. Boletim de Análise Político-Institucional. Institu-
to de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). n.17, 2018; HORTA et al. Avaliando o desenvolvimento da Pesquisa
Empírica em Direito no Brasil: o caso do projeto pensando o direito. Revista de Estudos Empíricos em Direito. vol.
1, n. 2, jul 2014, p. 162-183.

159
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Em seguida reflete-se conclusivamente sobre o porquê de essa afirmação, ainda


que aparentemente extraída de investigação pouco rigorosa, parecer provocadora e
pertinente quanto algumas falhas de formação e avaliação dos juristas, possivelmente
por refletir o processo de consolidação teórica da Tutela Coletiva. Essa que é, inclusive,
uma disciplina cada vez mais relevante na concretização do Acesso à Justiça.

1. O REAL ACESSO À JUSTIÇA: A PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO (PED)


E AS PESQUISAS JUDICIÁRIAS DO CNJ

No presente capítulo é feito um repasse sobre os principais problemas rela-


cionados ao desenvolvimento de pesquisa empírica em direito e quais tem sido as
perspectivas, entre avanços e desafios, para o aperfeiçoamento desse contexto.

Em seguida, demonstra-se o papel do CNJ no fomento à pesquisa jurídica,


especialmente na modalidade empírica, no contexto histórico dessa aproximação en-
tre instituições e academia, tão marcado por estímulos, mas também desestímulos.
Em seguida é feita uma síntese do relatório (RAPAC) produzido pela Sociedade Bra-
sileira de Direito Público (SBDP) sobre a Tutela Coletiva no Brasil.

1.1. A pesquisa em Direito e os desafios da modalidade empírica no Brasil

Inicialmente, importa relembrar que a pesquisa jurídica, seja em sua moda-


lidade teórica ou empírica, é alvo constante de debates e reflexões. Assim, importa
registrar que existem alguns problemas gerais, pertencentes ao universo maior da pes-
quisa jurídica e não apenas à pesquisa empírica, que não podem ser desconsiderados.

Nesse sentido, uma pertinente observação inaugural é a de que a pesquisa


científica ocupa, nas profissões jurídicas brasileiras, um lugar historicamente secun-
dário ou até terciário, pois normalmente quem fez direito é juiz, promotor, advogado,
mas não pesquisador. Trata-se de uma profissão que foi sempre “identificada com sua
vertente prática e aplicada, enquanto a pesquisa é identificada como uma espécie de
‘torre de marfim’ (COUTINHO, 2011, p. 46).

Então, a pesquisa jurídica seria atividade tradicionalmente menos prestigia-


da no universo de profissões jurídicas e logo receberia menos atenção especializada.
Portanto, haveria poucos pesquisadores no Direito exercendo tal ocupação em caráter

160
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

exclusivo. E isso se revela problemático porque argumenta-se que a falta de exercício


especializado e exclusivo da atividade leva a uma precarização da atividade8.

Ademais, já alertava Marcos Nobre sobre um dos prejuízos que acometem a


pesquisa em direito ser o da confusão entre prática jurídica, teoria jurídica e ensino
jurídico, que culmina na prevalência do modelo de parecer (2009, p. 09). Segundo
ele, esse parecer não seria tomado meramente como a peça jurídica, mas como uma
forma-padrão de argumentação praticamente sinônimo de produção acadêmica em
direito; e que seria problemático porque o parecerista é um detentor de opiniões,
diferente do pesquisador a quem cabe compreender, por exemplo o estatuto de um
determinado instituto na prática jurisprudencial (NOBRE, p. 10-11).

Inclusive, Fragale Filho, ainda que habitualmente se posicione criticamente


perante as ideias de Nobre9, reconhece o fenômeno ao mencionar que na maioria
das teses e dissertações em Direito que tem examinado “não é possível identificar uma
hipótese de trabalho. Os trabalhos são construídos por uma lógica argumentativa em
que todo o percurso realizado pela demonstração é uma tentativa de convencimento
em torno de uma ideia inicial” (2008, p. 24).

Assim, um grau indevido de parcialidade do pesquisador jurídico impõe que


haja atenção para a linha tênue que separa a argumentação pautada pela lógica cien-
tífica da argumentação pautada pela lógica subjetiva, que pode selecionar dados e
argumentos que conduzam à conclusão que ele, desde o princípio, já teria adotado
para si, embasado em convicções pessoais. Esse é um dos indicativos que evidencia
ausência de rigor metodológico.

Ademais, outros fatores que explicariam o relativo atraso da pesquisa em


Direito no Brasil seria o isolamento do Direito em relação a outras disciplinas das
ciências humanas (NOBRE, 2002, p. 04); configurando-se numa produção acadêmica
autista, sem autorreflexão sobre a atividade de pesquisa, sem que estudiosos do direito
se aprofundem criticamente sobre o tipo de ciência que praticam e também pela
“profunda falta de compromisso com a realidade na qual estamos inseridos”, em que
“[o] pesquisador desconhece a realidade em que se se encontra, por isso não é capaz
de formular as perguntas relevantes.” (VIEIRA, 2008, p. 44).

8 Nesse sentido, sobre o debate da profissionalização do pesquisador científico em Direito, cf. Panorama Atual da
Pesquisa em Direito no Brasil – Debate. Cadernos Direito GV, v.5, n.5, Set. 2008 (P. 27 e ss.); BARROS et al. Re-
vista de Estudos Empíricos em Direito. vol. 5, n. 1, mar 2018, p. 25-48 (P. 43 e ss.).
9 Dentre suas críticas à lógica do parecer, Fragale Filho entende que a escolha de fontes que se faz na elaboração de
um parecer não consiste numa seleção, mas num mapeamento, num recenseamento de ideias em que, ao final, se con-
clui com a adjetivação da “opinião”, de modo que se constrói um argumento de autoridade em que a opinião de A
prevaleceria sobre a opinião de B (FRAGALE, p. 25).

161
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

É precisamente essa ponderação sobre o isolamento do Direito, quanto a uma


tradição de baixa interdisciplinaridade, e essa tendência de estudiosos do direito igno-
rarem a realidade que os circunda, que a Pesquisa Empírica em Direito (PED) passará
a ser mais especificamente problematizada. Mas, antes, importa definir com exatidão
o que caracteriza essa modalidade.

Nesse sentido, Fábio de Sá e Silva a resume como “uma maneira de apreender


o direito que passa pela coleta e análise sistemáticas de dados da realidade (social,
política, cultural, econômica, institucional, etc.)” (2016, p. 27). Lee Epstein e Gary
King, por sua vez, a definem como uma pesquisa que procura atingir, ou combinar
três fins: dois deles seriam a coleta e análise de dados; o terceiro, que confere um cará-
ter adicional e relevante, consiste na realização de “inferências descritivas ou causais,
o que envolve usar os dados que observamos para aprender sobre os dados que quere-
mos levantar (2014, p. 23).

No Direito essa metodologia teria surgido nos Estados Unidos nas décadas de
1920 e 1930 dado a fatores como a possibilidade de coletas estatísticas sobre o sistema
judicial, o desenvolvimento das primeiras pesquisas criminológicas e o movimento do
realismo jurídico; enquanto no Brasil, por volta de 1970, o emprego dessas técnicas é
atribuído a pesquisadores pioneiros na modalidade10, muitos deles estudiosos da socio-
logia jurídica. Contudo, verificou-se um gradual aumento no número de trabalhos que
utilizavam tal método “por conta da positivação de direitos pela Constituição de 1988 e
do interesse pela realização de investigações sobre sua efetivação, bem como do estímulo
à discussão e promoção desses modelos de pesquisas” (HORTA et al, 2014, p. 166).

Uma nova ordem constitucional, contudo, não provocou apenas pesquisa-


dores do Direito. Na verdade, teria sido um movimento marcado consideravelmente
pelo interesse de pesquisadores de outras áreas de conhecimento que passaram a pes-
quisar assuntos jurídicos.

Esse fenômeno é tratado por Fábio de Sá e Silva pela exposição de dois, num
total de cinco, vetores de fortalecimento da PED11, que seriam a “apropriação do
direito por outros atores acadêmicos (e sociais)” e também como um “chamado das
políticas públicas”. Eles consistem, respectivamente, no fato de que “o direito e o sis-
tema de justiça passam a despertar o interesse de diversos outros atores, na academia

10 São indicados nomes como Joaquim Falcão, Cláudio Souto, Roberto Lyra Filho, Roberto Aguiar, João Batita
Herkenhoff, Edmundo Lima Arruda Jr., Luís Warat, José Eduardo Faria, Celso Campilongo, José Geraldo de Sousa Jr.,
Luciano Oliveira e Eliane Junqueira. (HORTA et al, 2014)
11 O autor originalmente detalha esses vetores em seu trabalho publicado em 2016. Contudo, em nova publicação
(2018) ele as sintetiza a fim de desenvolver outras ideias.

162
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

e na sociedade, para os quais é fundamental conhecer os efeitos concretos da ordem


jurídica”; e no advento de um “um conjunto de oportunidades e incentivos vindos
do Estado e conectados com esforços de formulação ou aperfeiçoamento de políticas
públicas em temas e dimensões variados” (2018, p. 12-13).

Esse processo de transformação representa, assim, um marco decisivo para


expansão e aperfeiçoamento para a pesquisa em Direito, notadamente a PED, pois o
contexto de trocas interdisciplinares entre pesquisadores crescia, criando um verda-
deiro trabalho em rede e um cenário de fomento institucional se consolidava, haven-
do pesquisa para além das universidades. Contudo, vale apontar que essa participação
de outros atores nos debates acadêmicos do Direito também revelou os atrasos meto-
dológicos existentes no meio acadêmico jurídico.

Conforme ressalta Oscar Vilhena Vieira, na década de 2000, percebia-se ainda


que alunos, vendo a “confusão que eram os programas de mestrado e doutorado em Di-
reito” fugiam para disciplinas correlatas, como Ciência Política, Sociologia e Economia,
e lá se surpreendiam com “não-advogados refletindo sobre o Direito”. Iniciava-se então
uma troca interdisciplinar que gerava “um refluxo, uma colisão com o tipo de produção
acadêmica que se fazia tradicionalmente nas faculdades de Direito” (2009, p. 45).

Esse mal-estar criado, contudo, foi positivo, porque levou uma parte da
pós-graduação das faculdades de Direito a ser dominada por gente que tinha dupla
formação e, desse modo, tais pesquisadores implementavam metodologias de outras
áreas das ciências sociais, o que até teria gerado uma perda de identidade do Direito,
segundo o autor (VIEIRA, 2008, p. 45).

Assim, nessas trocas marcadas pelas vantagens e desvantagens no aperfeiçoa-


mento das metodologias de pesquisa jurídica é que se verifica um maior desenvolvi-
mento da PED. Resta, portanto, apontar os principais avanços e desafios que marcam
a trajetória mais recente, para inclusive compreender o papel do CNJ no cenário.

Quanto aos avanços, aos acadêmicos foi possível descobrir as inigualáveis pos-
sibilidades de coleta e produção de dados que as pesquisas empíricas proporcionavam,
principalmente as que ocorriam em um contexto de apoio institucional – o que se com-
preenderá mais à frente, em que órgãos como o CNJ, o Ipea e o Ministério da Justiça
tiveram papel decisivo – como pelo trabalho em rede que “permitiram formação de
grandes bancos de dados, cujo potencial para a produção de conhecimento inovador era
potencialmente muito maior que a dos estudos de caso localizados que, até então, cons-
tituíam o padrão de excelência dos estudos empíricos em direito” (SILVA, 2018, p. 15).

163
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Além do ganho acadêmico pelas informações sobre as quais se poderia


trabalhar, vale apontar o que Fábio de Sá e Silva lembra sobre o Brasil ser um país
complexo e contraditório que imbui na PED um imenso potencial para interpre-
tar a relação entre ordens jurídicas e a vida social, política e institucional; sendo
a metodologia que, na apreensão do law in action, faz parte de um programa
consciente de intervenção na realidade, através de compromissos políticos e pela
solidariedade entre pesquisadores e comunidade ou do chamado das políticas
públicas, em que as pesquisas sejam concebidas com o objetivo principal de res-
ponder a questões práticas (2016, p. 45-46).

Por outro lado, ainda há muitos desafios que precisam ser reconhecidos e en-
frentados. E nesse sentido, vale registrar de início o que alertam autores como Lucia-
na Cunha (2011)12 e Epstein e King (2014)13, quanto ao fato de que a simples opção
pela pesquisa empírica em direito não poder ser automaticamente tida como positiva.
Isto é, só porque o pesquisador opta por uma pesquisa voltada para realidade, não se
pode presumir uma qualidade intrínseca a ela.

Essa observação é relevante porque de fato se percebe a difusão de uma aura,


quase inevitável, de otimismo e originalidade na pretensão de fazer pesquisa empírica.
Mas essa visão parece ocultar os inúmeros desafios que permeiam a PED. E um dos
que vale mencionar desde logo é quanto ao fato de que, até hoje, o conhecimento me-
todológico necessário para realizar pesquisas empíricas ainda não integra a formação
de juristas, que simplesmente não são treinados em estatística, entrevistas, observação
e outras técnicas (SILVA, 2016, p. 46).

Outro severo conjunto de obstáculos se verifica no já mencionado chamado


das políticas públicas, pois conforme relata Fábio Silva, a PED nas Políticas Públicas
é marcada por tensões. Algumas delas serão mais pormenorizadas no tópico a seguir,
pois se relacionam com a trajetória do CNJ e seu papel perante a PED, especialmente
com as pesquisas judiciárias. E essas tensões se caracterizaram, primeiro, por interesses
relativamente antagônicos entre acadêmicos e burocratas; pois os primeiros tendem a
se interessar pela produção de conhecimento novo, para assim melhorar suas posições

12 “Tenho visto que, de forma geral, a pesquisa empírica tem sido avaliada como de alta qualidade, essencial, impor-
tante, simplesmente porque é pesquisa empírica. Como se a simples “empiria”, seja lá o que ela signifique, garanta a
qualidade da pesquisa [...] independentemente de se é pesquisa empírica ou doutrinária, se analisarmos com cautela e
com critérios científicos: o que é a pesquisa empírica em direito e qual é a pergunta que queremos fazer para o objeto
que estamos olhando? [...] sou muito cautelosa em assumir que, pelo simples fato de estarmos fazendo pesquisa empí-
rica, ela seja válida e de boa qualidade” (CUNHA, 2011, p. 53).
13 “Enquanto muitos acadêmicos já compreendem a importância dessas diretrizes, percebemos que, para outros, isso
causa arrepios. Eles perguntarão: ‘Não é suficiente que nós direcionemos a pesquisa a problemas reais?’ Por pelo menos
quatro razões, a resposta é não” (EPSTEIN; KING, 2014, p. 72).

164
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

nas lutas disciplinares de que participavam, e para os últimos era mais importante
que as pesquisas respondessem a questões práticas e sinalizassem potencial para serem
implementadas no interior do estado (2018, p. 15).

Nesse sentido, era comum também que as instituições se mostravam incapa-


zes de dar vazão ao potencial crítico dos resultados gerados pelas pesquisas (SILVA,
2018, p. 16). Ou seja, a depender das evidências, nem sempre os estudos eram bem
recebidos pelas instituições.

Além disso, dentro do nítido espectro político em que essas agendas de pes-
quisas para políticas públicas costumam ser necessárias existe a inconstância quanto
à sua manutenção. Tanto que, como um nítido exemplo do recente desinteresse de
fomentar essa ponte entre pesquisadores e burocratas se deu com a extinção do Pro-
jeto Pensando o Direito, da também extinta Secretaria de Assuntos Legislativos (por
força do Decreto no 9.150, de 4 de agosto de 2017), que talvez tenha se revelado
desafiador não por sua operacionalização, mas, como bem apontam Horta et al, por
seu caráter inovador e dinâmico, pouco frequente na administração pública e que se
configura em mais uma lamentável descontinuidade institucional que, infelizmente,
é frequente no histórico de governos brasileiros (2018, p. 25).

Assim resta a órgãos de Estado14, como Ipea e o Departamento de Pesquisas


Judiciárias (CNJ), preservar “o espaço da racionalidade e do convencimento nos pro-
cessos de governo, reforçando a importância de evidências e escrutínio crítico de so-
luções de política pública [...]” (SILVA, 2018, p. 17). E esse é o contexto que melhor
se compreenderá a seguir, ponderando-se entre as vantagens e as desvantagens que se
verifica na PED institucional.

1.2. O Acesso à Justiça pelas pesquisas judiciárias do CNJ e uma análise do Relatório
Analítico Propositivo sobre Ações Coletivas de 2018 (RAPAC)

Criado por ocasião da emenda constitucional n.º 45, no ano de 2004, pela
renomada “Reforma do Judiciário”, o Conselho Nacional de Justiça representou des-
de a sua concepção uma considerável revolução na maneira como o Poder Judiciá-
rio poderia funcionar. Inclusive, juntamente com a Reforma na Segurança Pública,
pautava-se uma agenda política de mudanças institucionais profundas, evidenciando

14 Tais órgãos se revelam decisivos para equilibrar as tensões políticas entre pesquisadores e burocratas, porque per-
mitem fixar um quadro relativamente estável de servidores na estrutura desses órgãos (SILVA, 2018, p. 15).

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

um alinhamento muito preciso de agentes e contextos para a época vivida, apesar das
resistências naturais a transformações tão intensas15.

Uma das pretensões era superar o já estabelecido circuito de legitimação recí-


proca entre o campo jurídico e as políticas públicas de justiça e segurança, que ope-
rava pela presença de “juristas” no aparelho Estatal; e que eram definidos como su-
jeitos “cujas carreiras combinavam o exercício da advocacia e a ocupação de posições
acadêmicas em tradicionais faculdades de direito, e que se apoiavam nessa poderosa
combinação de capital familiar, político e cultural para “falar sobre o direito” com
presunção de autoridade” (SILVA, 2018, p. 14).

Para isso, promoveu-se uma aproximação entre o governo e a academia, para


que fossem incorporadas evidências científicas à gestão judiciária, prática essa que
já se concretizava pontualmente na Justiça Federal, desde os anos 1990, pelo Cen-
tro de Estudos Judiciários (CEJ), pertencente ao Conselho da Justiça Federal (CJF)
(PENALVA et al; 2018, p. 29).

Assim, dentre as atribuições constitucionais do CNJ estavam a competência


para “elaborar semestralmente relatório estatístico sobre o processo de sentenças pro-
latadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário” (Art.
103-B, §4º, VI, CF/88) e também de “elaborar relatório anual, propondo as pro-
vidências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as
atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo
Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da
sessão legislativa” (Art. 103-B, §4º, VII, CF/88). 

Passados dois anos da referida emenda, foi promulgada a Lei 11.364/2006


que em seu art. 5º criou formalmente o Departamento de Pesquisas Judiciárias. As-
sim, como ressaltam Horta et al, “[c]om a discussão sobre a reforma do sistema de
justiça, cria-se um cenário propício para a pesquisa de temas como acesso à justiça e a
percepção dos jurisdicionados sobre o funcionamento do judiciário” (2016, p. 166).

Essas providências decorriam da conjugação de dois fatores: um impulso por refor-


mas na justiça e na segurança pública; por outro lado uma conexão original entre os qua-
dros burocráticos à frente dessas reformas e uma parcela da academia (SILVA, 2018, p. 13).

15 Segundo Fábio de Sá e Silva, “[o] impulso de reformas está ligado ao relativo fortalecimento do papel do Executi-
vo nas áreas de justiça e segurança pública. Seja por conta da popularidade do ex-presidente Lula, seja por conta da
reputação profissional e da estabilidade no cargo do então ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, o Executivo
passou a dispor de inédito poder de agenda nessas áreas. Esse poder, todavia, nunca foi absoluto. Reformas na justiça e
na segurança pública afetam diversas corporações e grupos de interesse, sendo, por isso, de elevado potencial conflitivo”
(2018, p. 13).

166
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Assim, é possível afirmar que o CNJ, juntamente com os outros órgãos que incor-
poraram iniciativas semelhantes (Ministério da Justiça, Ipea, etc.), contribuiu para uma
verdadeira revolução na aproximação entre os gestores de políticas públicas e acadêmicos.
Permitia-se, dessa maneira, que os acadêmicos se debruçassem sobre problemas reais e
que, uma vez superados, representavam uma grande contribuição para a sociedade.

Inclusive, através de iniciativas como o programa “CNJ Acadêmico”, criado


em 2010, como uma cooperação técnica entre o CNJ e a CAPES, houve o repasse –
entre 2011 e 2016 – de R$ 6,7 milhões, destinados ao financiamento de pesquisas e
à concessão de bolsas para 89 estudantes de mestrado e de doutorado de 21 universi-
dades brasileiras (PENALVA et al, 2018).

De igual maneira, no ano de 2009 se verificou uma marcante conjugação


de esforços entre o CNJ e os centros de investigação para desenvolver pesquisas em-
píricas aplicadas, com a edição da primeira convocatória no mesmo ano. E, a partir
de tal experiência, inaugura-se a série Justiça Pesquisa, com inspiração no programa
Pensando o Direito, do Ministério da Justiça (MJ), em que “foram publicados, en-
tre 2012 e 2016, dois editais para investigação temática em dois eixos estruturantes
complementares entre si: Políticas Públicas do Poder Judiciário e Direitos e Garantias
Fundamentais (PENALVA et al, 2018, p. 32).

É então nessa exata série, no segundo edital convocatório, que está enqua-
drado o projeto de pesquisa que resultou no “Relatório Analítico Propositivo – Justiça
Pesquisa – Direitos e Garantias Fundamentais – Ações Coletivas no Brasil: temas, atores
e desafios da tutela coletiva” (RAPAC). Trata-se de mais uma pesquisa empírica desti-
nada a compreender um primas da realidade do Poder Judiciário brasileiro e nortear
medidas de aperfeiçoamento.

A partir disso, acompanhando a análise de Vitorelli e Zanetti sobre o referido


estudo, é necessário reconhecer como “a pesquisa processual brasileira sempre foi pau-
tada por investigações teóricas, muito ao gosto dos pensadores europeus continentais,
e pela pouca atenção aos problemas concretos que afligem o jurisdicionado” (2019,
Introdução). Logo essa tendência de pesquisa ultrapassada e persistente, estaria na
contramão do que se vivencia na realidade judiciária brasileira.

Assim, os autores ressaltam como tem sido positivo que o método empírico
tenha ganhado espaço em detrimento do viés teórico, pois “[q]uando se considera
que a função de um processo é solucionar problemas reais, de pessoas reais, esse viés
investigativo é, pelo menos, questionável” (VITORELLI, ZANETTI JR. 2019).

167
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Muito embora a crítica trazida tenha pertinência, sobre a insistência em inves-


tigações teóricas tradicionais, não se pode ignorar como a escolha temática do relatório
além de se alinhar com a obra seminal de Bryant Garth e Mauro Cappelletti, em que se
considerou a importância da tutela de direitos difusos como a segunda onda renovatória
do movimento de “Acesso à justiça”16; é assunto que permanece impositivo para que se
pense na superação do alto congestionamento do poder judiciário brasileiro.

Dessa maneira, o fomento do CNJ no fortalecimento da PED é iniciativa


que, em primeiro momento, se mostra relevante, tanto para otimizar a gestão do
poder judiciário a partir das evidências levantadas, como permite à comunidade aca-
dêmica do direito de operar ativamente em pesquisas que enriquecem as teorias e que
concedem retorno à sociedade, na medida em que se analisam problemáticas reais. O
aperfeiçoamento das pesquisas judiciárias representa uma significativa otimização do
Acesso à Justiça, inclusive; e quando se alinham com o movimento teórico das ondas
renovatórias, há um duplo ganho.

Dito isso, encaminha-se para uma verificação dos principais elementos de


pesquisa que compuseram especificamente o RAPAC, notadamente quanto aos pro-
blemas a que a pesquisa teria se endereçado e os objetivos a serem alcançados. Assim,
segundo consta do relatório, a referida pesquisa objetivou

apresentar um quadro descritivo e analítico da tutela coletiva de di-


reitos no Brasil, examinando empiricamente o funcionamento e a
eficiência das ações coletivas, dos instrumentos processuais existentes
para canalizar a defesa de direitos transindividuais e individuais homo-
gêneos e para assegurar o cumprimento das decisões em processos co-
letivos, bem como os mecanismos extrajudiciais atualmente existentes.

Para alcançar esse objetivo, foi traçado um desenho de pesquisa que se dividiu
em três frentes complementares que podem ser resumidas a seguir:

i) a construção de um banco de dados com ações coletivas e ações que


utilizam ações coletivas como precedentes;

ii) aplicação de um survey com juízes de primeira instância alocados

16 “Centrando seu foco de preocupação especificamente nos interesses difusos, esta segunda onda de reformas forçou
a reflexão sobre noções tradicionais muito básicas do processo civil e sobre o papel dos tribunais. [...] A concepção
tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos [...] A visão individualista do devi-
do processo judicial está cedendo lugar, rapidamente, ou melhor, está se fundindo com uma concepção social, coletiva.
Apenas tal transformação pode assegurar a realização dos “direitos públicos” relativos a interesses difusos.” (CAPPELLE-
TTI; GARTH, 1988).

168
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

em varas judiciais com competência para julgar processos coletivos;

iii) realização de entrevistas com outros operadores do Direito, como


promotores de justiça e defensores públicos, e estudos de casos emble-
máticos de tutela coletiva (MENDES et al, 2018, p. 28).

Tais objetivos, segundo consta do relatório, se destinavam ao enfrentamento


de dois macroproblemas de pesquisa, que foram assim definidos:

(i) entender o que dizem as ações coletivas existentes no Brasil, quais são
seus temas e quais são os problemas enfrentados em seus julgamentos;

(ii) compreender a percepção dos atores do sistema de justiça sobre a


tutela coletiva no país, como avaliam sua eficiência, como fazem uso dos
instrumentos legais e processuais existentes e quais problemas e diagnós-
ticos identificam na qualidade de operadores que cotidianamente labu-
tam na defesa de direitos coletivos (MENDES et al, 2018, p. 28).

Verifica-se, pelo que ficou exposto, que a pesquisa se revelou consideravelmente


abrangente e, quanto aos problemas anunciados, pouquíssimo clara. E sobre isso serão teci-
dos alguns comentários que, desse modo, encerra o presente tópico na pretensão de se de-
monstrar que a pesquisa trouxe pretensões investigativas que não puderam ser concretizadas.

Quando à abrangência do escopo da pesquisa, é possível demonstrar, através


da crítica de Vitorelli e Zanetti quanto à pretensão de tratar a atuação extrajudicial
da tutela coletiva, sem que tenham sido incorporados ao relatório “quaisquer dados
quantitativos relacionados à atuação extrajudicial do Ministério Público nem dos de-
mais legitimados coletivos”, de modo que aos autores “[n]ão parece adequado, por-
tanto, afirmar que a pesquisa em análise apresenta um panorama da atuação extraju-
dicial da tutela coletiva no País. Nada desse vasto universo de atuação extrajudicial foi
objeto da pesquisa, qualitativa ou quantitativamente” (2019, item 3).

Não custa reforçar que a providência que deveria ter sido tomada para redu-
zir um escopo de pesquisa muito largo seria o recorte, essencial para o pesquisador
que atenda a chamado institucional como é o caso ora estudado17. Nesse sentido,

17 Fábio de Sá e Silva comenta que “[a]o convocarem acadêmicos para que examinem um objeto ou problema em
profundidade, gestores esperam respostas rápidas e apropriáveis em seus processos cotidianos de tomada de decisão.
Acadêmicos, por outro lado, em geral se preocupam mais com o valor teórico de suas possíveis descobertas. Por isso,
tendem a pleitear prazos mais dilatados e projetos com escopo mais amplo, a fim de que lhes seja possível dialogar com a
literatura acumulada e com outras preocupações correntes em seu campo de estudo” (2016, p. 36). Assim, um recorte
rigoroso, que garanta viabilidade à pesquisa, é providência essencial para uma pesquisa institucionalmente selecionada
por edital público.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

relembra-se que o recorte é a forma pela qual “o pesquisador segmenta os aspectos


da realidade que pretende examinar  e/ou enquadra os resultados desse esforço”
(SILVA, 2016, p. 36).

Ademais, o escopo abrangente ainda se torna um dos motivos pelos quais


o relatório apresentou uma variedade considerável de resultados, que consequente-
mente permitiram que o CNJ e o JOTA pudessem noticiar diferentes aspectos desse
estudo, por ter havido tantas constatações. Inclusive, Vitorelli e Zaneti Jr. (2019),
em seu artigo, debruçaram-se sobre diversos outros aspectos do estudo dada a di-
mensão de debates trazidos18.

Quanto à baixa clareza dos problemas de pesquisa, seria possível afirmar


que, na realidade, a pesquisa não apresentou problemas. Talvez, em razão dos ob-
jetivos que perquiria é que se pode afirmar os problemas encontrados no percurso.
Supõe-se que haveria uma crença implícita dos principais problemas, já que alguns
dos desafios atualmente enfrentados pelo Poder Judiciário brasileiro são o conges-
tionamento, a morosidade, o uso concentrado do judiciário por certos litigantes, a
inadequação das providências judiciais, etc. Mas ao final, não houve demonstração
clara de quais problemas a pesquisa encabeçada se destinava a superar, mas somente
a pretensão de dados que se pretendia levantar.

Nesse último aspecto, inclusive, torna-se clara uma falha da pesquisa em


se alinhar com as diretrizes da PED, pois como se tem verificado, uma das gran-
des relevâncias dessa modalidade de pesquisa está no diálogo que propicia, entre
teoria e prática, para que problemas efetivos sejam compreendidos e superados.
É uma pesquisa que sai de conjecturas lógicas e se faz instrumento de transfor-
mação da realidade. Trata-se, aliás, de atender ao que propõem Epstein e King
ao sintetizar dois requisitos para que se faça uma boa pergunta de pesquisa: a ne-
cessidade de contribuir ao conhecimento existente e possuir alguma importância
para o mundo real (2014, p. 71).

18 Para isso o artigo se estruturou nos seguintes tópicos: i) a revisão da literatura, apontando uma mistura indevida
de considerações teóricas e práticas; ii) sobre o objeto e os problemas de pesquisa, demarcando a temática da atuação
extrajudicial; iii) a pesquisa quantitativa em bancos de dados, debatendo a seleção pouco significativa de casos e apon-
tando hipóteses não justificadas pelas pesquisas empíricas; e finalmente, iv) destacam problemas apresentados na con-
dução da Survey entre os magistrados, tanto quanto ponderando sobre o questionário elaborado, como sobre a análise
das respostas.

170
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

2. A PERCEPÇÃO DE MAGISTRADOS SOBRE O BAIXO CONHECIMENTO


EM TUTELA COLETIVA: RECONHECENDO DISTORÇÕES E EXATIDÕES
EM PROL DO ACESSO À JUSTIÇA

Neste tópico pretende-se demonstrar como existem no relatório descom-


passos com as principais diretrizes sobre como realizar uma pesquisa empírica ri-
gorosa, especificamente quanto à técnica de pesquisa Survey. Para isso se refletirá
sobre alguns dos aspectos básicos dessa técnica de pesquisa, tanto na forma como
foi aplicada pela SBDP na pesquisa, como em contraste com a teoria que aponta as
noções básicas que devem ser observadas.

Logo, conclui-se inicialmente que os resultados encontrados não podem ser


tomados como fielmente representativos da realidade do judiciário. Por outro lado,
apesar da imprecisão dos métodos para atingir a conclusão, não se ignora como ela
ainda representa significativa uma realidade que, possivelmente, está incrustada no
imaginário jurídico de que a tutela coletiva é um universo temático complexo que
não tem recebido tratamento especializado.

Nesse sentido, encerra-se este artigo demonstrando que, mesmo com uma pos-
sível condução não-rigorosa do Survey, o RAPAC ainda apresentou uma conclusão que,
especialmente quando noticiada da maneira chamativa pelo portal JOTA, é relativa-
mente compatível com o contexto estrutural da formação e avaliação jurídica no Brasil.
Entende-se, desse modo, que houve um “acerto acidental” da pesquisa, que significa
que, apesar da inobservância estrita da metodologia que levou a resultados despropor-
cionais, ainda foi identificado um problema real e é merecedor da atenção de futuras
pesquisas e providências para otimizar políticas de gestão judiciária e educacionais.

2.1. Falhas metodológicas da pesquisa Survey e possíveis distorções do resultado

Como o presente estudo faz a análise específica a da técnica de Survey aplicada


a magistrados, relembra-se que a mesma foi destinada a captar a percepção apenas
daqueles atuantes em varas que possuíam competência para julgar ações coletivas,
aprofundando reflexões sobre a pergunta quanto à (in)suficiência de conhecimento
em tutela coletiva.

Para examiná-la no presente tópico, serão verificados dois aspectos tidos aqui
como fundamentais sobre como ela foi conduzida considerando as principais dire-

171
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

trizes para uma pesquisa tipo Survey. Assim, se refletirá sobre: i) a amostragem de
entrevistados e ii) a utilidade e precisão do questionário19.

Quanto à amostragem, tem-se que o universo da Survey correspondia ao total de


varas detentoras de competências em tutela coletiva nos, de modo que o sorteio aleatório
da amostra apresentou um total de 335 varas para as quais deveriam ser enviados os ques-
tionários, dos quais apenas 142 foram respondidos, havendo inclusive o destaque para o
fato de que na Justiça Federal foram obtidas 82,3% das respostas, ao passo que na Justiça
Estadual o percentual foi de 30,1%. (MENDES et al, 2018, p. 46 e ss.)20.

Como bem aponta Earl Babbie, a amostragem é necessária por razões óbvias
de tempo e custo, afinal, um clínico que examina o sangue de uma pessoa não precisa
retirar todo o sangue dela, para depois selecionar uma amostra probabilística de célu-
las sanguíneas (2005, P. 118).

Contudo, essa simplificação não pode afastar o controle de qualidade neces-


sário ao processo. E, no caso analisado, mesmo com utilização de uma fórmula esta-
tística – sem precisar a fonte de onde ela fora extraída21 – para obter um quantitativo
viável da amostra, pareceu inexistir uma ponderação qualitativa profunda sobre a
heterogeneidade dessa amostra. Afinal, “as amostras devem representar as populações
das quais são retiradas, se devem fornecer estimativas úteis quanto às características
daquela população (BABBIE, 2005, P. 118)”.

Esse problema se revela comprometedor primeiro porque, como se verificou


acima, houve um retorno maior da Justiça Federal quanto às respostas. E essa condi-
ção desequilibrada da amostra é até reconhecida no relatório, através do trecho em
que se afirma que “[é] provável que a opinião dos juízes nestes pontos varie signifi-
cativamente entre a Justiça Federal e as justiças estaduais, e, nesta última, entre os

19 Cumpre mencionar que as análises da Survey, neste estudo dialogam com apenas algumas, mas não todas, avalia-
ções feitas por Vitorelli e Zanetti, principalmente quanto a perguntas sobre o conhecimento em tutela coletiva. Assim
recomenda-se a leitura do artigo, notadamente quanto à discussão do tópico 5.3, que trata do “Enviesamento na análi-
se das respostas da survey”, que trata sobre como o percentual das respostas foi tendenciosa e indevidamente somado.
20 A escolha dos tribunais analisados é relativamente justificada no tópico 4.1, em que se informa, de modo geral,
que eles foram selecionados considerando o porte e a região geográfica desses tribunais, resultando em 14 órgãos. Con-
ferir p. 33 e seguintes do Relatório. Já para o Survey foi limitado o universo de 11 tribunais do país - cinco federais e
seis tribunais de justiça – inicialmente selecionados para análise. Logo, havia um total de 2.529 varas com esse perfil. E
nesse universo houve seleção, embasada em fórmula matemática apresentada, com um intervalo de confiança de 95%.
Conferir p. 46 e seguintes do Relatório.
21 A supressão da escolha metodológica e a fonte de onde se extraiu a referida fórmula inclusive viola a prescrição de
Epstein e King (2014), que relembram que a pesquisa é um empreendimento social e que, por isso, deve ser orientada,
dentre outros deveres, pela documentação seus procedimentos. E, segundo eles, os juristas tendem a violar a regra da
replicação, pois não se atentam para essa necessidade de “documentar seus procedimentos quanto aos dados, nem, como
apressamo-nos a anotar, estabeleceram procedimentos para garantir a necessária atenção ou repositórios (públicos ou
privados) para seus dados” (P. 57).

172
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

diferentes tribunais de justiça” e, logo em seguida, é feita paradoxal afirmação de que


“[n]ossa abordagem aqui foi desenhada, todavia, para captar apenas a imagem global
do Judiciário, sem ponderar, nesta parte, as variações inerentes à sua organização”
(MENDES et al, 2018, p. 126). Fica, então, contraditória a captação de uma imagem
global que deixa de ponderar as variações inerentes à organização.

Além da própria incoerência localizada no relatório, a improcedência da


amostra consistiu ainda numa das refutações apresentadas pelo CNJ em nota repas-
sada ao JOTA. Relembra-se que restou afirmado, em edição na reportagem, que “a
pesquisa não leva à conclusão de que a grande maioria do Poder Judiciário “não tem
conhecimento suficiente sobre tutela coletiva”, mas mostra que 89,3% dos ouvidos
pela pesquisa” (TEIXEIRA, 2018).

Desse modo, houve um esvaziamento da técnica de amostragem utilizada, já


que, como se mencionou, ela é concebida justamente para permitir uma afirmação
generalizante sobre o seu universo. Logo, se construída adequadamente, essa amostra
deveria ter robustez para ser representativa da percepção dos demais magistrados do
país. Contudo, ela perdeu seu valor representativo e se tornou mera consulta a uma
parcela de magistrados.

Passando para o segundo aspecto, quanto à relevância do questionário, cum-


pre relembrar que “[h]á provavelmente tantas razões diferentes para se fazer surveys
quanto há surveys”, logo, haveria inúmeros propósitos para a realização de uma sur-
vey; mas seria possível classifica-las em duas grandes modalidades, considerando as
suas finalidades, divididas basicamente na descrição ou na explicação de fenômenos
(BABBIE, 2005, p. 96).

Logo, ou elas servem para revelar traços e atributos da população estuda-


da – e.g. idade, gênero, raça22 - ou para a explicação de fenômenos, como Babbie
exemplifica nas tentativas de compreender a preferência por candidatos políticos con-
siderando variáveis como filiação partidária, educação, etc. sendo, aliás, um trabalho
mais árduo porque “[e]xplicar quase sempre requer análise multivariada – o exame
simultâneo de duas ou mais variáveis”. (2005, p. 97).

22 São modalidades investigativas, inclusive, que têm bastante utilidade, pois tendem a revelar uma hegemonia de
perfis, como foi o caso do Censo Nacional do Poder Judiciário sobre a implantação de cotas para negros no ingresso na
magistratura, que resultou na aprovação da Resolução n. 203/2015 do CNJ. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/
pesquisas-judiciarias/censo-do-poder-judiciario/ . Assim como foi elaborada pesquisa sobre o perfil do professor de
Direito no Brasil, eminentemente branco e masculino. Disponível em: https://direitosp.fgv.br/sites/direitosp.fgv.br/
files/arquivos/relatorio_oed_out_2013quem_e_o_professor_de_direito_no_brasil.pdf

173
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Diante dessas explicações, surgem as seguintes dúvidas sobre a relevância de


utilizar essa técnica de pesquisa: de que maneira a percepção de magistrados sobre
o conhecimento de seus pares e de seus servidores sobre o tema da tutela coletiva é
útil, tem serventia? E, se essa informação for útil, qual a maneira mais precisa de ser
extraída essa percepção, sem distorções?

Em primeiro lugar, quanto à utilidade é importante primeiro lembrar que


o conhecimento – sendo um conceito vago, inclusive – é tradicionalmente uma ap-
tidão humana normalmente submetida a processos avaliativos. Logo, pensa-se que
seria mais útil e objetivo que fossem realizadas avaliações periódicas do que extrair a
percepção de magistrados.

Trata-se de uma conclusão que, inclusive, pode ser equiparada à afirmação de


Vitorelli e Zanetti sobre a avaliação subjetiva dos magistrados quanto à efetividade e
frequência de aplicação das técnicas processuais. Segundo os autores, como tem sido
cada vez mais difundidas pesquisas em psicologia comportamental sobre os vieses e as
heurísticas que comprometem a avaliação humana, o fato de os juízes “pensarem que
uma técnica é efetiva não quer dizer, necessariamente, que o seja” (2019, Item 5.5.)

Em segundo lugar, quanto à precisão do Survey, existe a necessidade de vigi-


lância quanto à modulação das perguntas. E, para isso, serão reproduzidas as estrutu-
ras textuais relativas às assertivas sobre o conhecimento em tutela coletiva, suposta-
mente trazidas no questionário23 e reproduzidas na Tabela 5.2.12, a saber:

Conhecimento especializado dos juízes em matérias de direitos coletivos.

Servidores com conhecimento especializado em matérias de direitos co-


letivos.

Logo, dentre várias reflexões sobre a elaboração textual dessas assertivas, apre-
senta-se mais uma pertinente observação levantada por Vitorelli e Zanetti, é de que
a construção da assertiva com a expressão “conhecimento especializado em matérias
de direitos coletivos”, confere uma dubiedade, pois é possível que o conhecimento
objeto da questão não correspondesse a conhecimentos jurídicos ou processuais sobre
o universo da tutela coletiva. Ou seja, “[i]sso significa que os juízes podem estar levan-
do em conta para responder ao questionamento a necessidade de conhecimentos em
matéria de saúde e educação pública, de engenharia ambiental biologia, mineralogia,
engenharia, espeleologia etc.” (2019, Item 5.3).

23 O relatório de pesquisa não anexou os questionários confeccionados, o que novamente implica inobservância da
diretriz de o pesquisador documentar seus procedimentos, como afirmam Epstein e Lee (2014, P. 57).

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Desse modo, resta verificado como tanto no processo de amostragem, como


na ponderação sobre a (im)pertinência da adoção do questionário, que a percepção
subjetiva dos magistrados consultados é pouco conclusiva sobre a real capacitação
dos juízes e servidores no tema da tutela coletiva. De fato, a afirmação que encabeça
a reportagem que inaugurou este artigo seria, no mínimo, pouco compatível com a
realidade já que não houve rigor e objetividade na produção dessa assertiva.

Acontece que, conforme se tem tentando expor, essa afirmação, representa


um dos mais expressivos resultados da pesquisa e por isso não pode ser ignorada. E,
apesar de postura esquiva à autocrítica institucional, o CNJ refutou esse resultado de
maneira pouco útil a novas discussões sobre a situação.

Entende-se que, ainda que distorcida, a conclusão é representativa, pois, apesar


de não ser uma resposta obtida por métodos cientificamente rígidos, ela representa um
problema que pode, e deve ser, cientificamente explorado. E nesse último tópico serão
trazidos os principais motivos do porquê há pertinência na ideia de que há, de maneira
generalizada, conhecimento insuficiente dos juristas brasileiros sobre tutela coletiva. E é
essa reflexão que encerrará o presente artigo no derradeiro tópico que segue.

2.2. O acerto “acidental” da Survey e as exatidões da condição teórica da Tutela


Coletiva brasileira

Como se pôde concluir no tópico anterior, a aplicação da pesquisa de Survey


inobservou diretrizes básicas que garantiriam maior acuidade à conclusões. Contu-
do, nesta pesquisa tem-se entendido que houve um acerto acidental. E neste tópico
se explicará melhor o porquê, pois o relatório, ainda que impreciso, não pode ser
inteiramente desconsiderado diante da sua relevância temática e a reverberação desse
resultado sobre o qual se tem refletido.

Dessa maneira, vale lembrar que na mensagem do CNJ ao portal JOTA, viu-
-se que o órgão, mesmo desconsiderando a representatividade da amostra consultada,
como analisado no tópico anterior, contraditoriamente ainda reputa válida a afirma-
ção sobre a insuficiência de conhecimento ao atribuir esse conhecimento deficitário
ao ensino ministrado nas faculdades de Direito, já que afirmam que ele “não é ple-
namente adequada em temas relacionados aos direitos coletivos e aos instrumentos
processuais para tutelar tais direitos” (TEIXEIRA, 2018).

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Ou seja, aparentemente, a falha existe, em um caráter que estaria limitado


aos entrevistados, e consistiria numa consequência de uma causa alheia e externa ao
alcance do poder judiciário: o ensino das faculdades de Direito no Brasil.

Diante dessa contraditória resposta dada pelo CNJ, é importante demons-


trar, então, que há uma relevância na conclusão obtida pelo relatório, ainda que não
seja uma afirmação cientificamente obtida. Porque, primeiro, como se aprofundará,
ela representa realidade verificada no âmbito do senso comum, entre os juristas; e,
segundo, porque também é compatível com a busca por identidade epistemológica
e disciplinar do tema da tutela coletiva que pode ser verificada nas doutrinas mais
especializadas sobre o assunto e que, certamente, repercutem nas maneiras como a
matéria deveria ser, ou acaba deixando de ser, ensinada.

Para isso, cumpre primeiro saber que o senso comum, como aponta Marques
Neto, é o “tipo de conhecimento eminentemente prático e assistemático que rege a
maior parte de nossas ações diárias” (2001, p. 38). Assim, surge um novo ponto de
partida para a investigação, que se dará com a problematização dessa realidade verifi-
cada no RAPAC e que, a partir de então, se entendem como representativas do senso
comum entre os juristas.

Dessa forma, lembra-se que “[a] realidade, em si mesma, não apresenta pro-
blema algum. Nós é que a problematizamos e procuramos explicá-la” (MARQUES
NETO, 2001, p. 41). E essa problematização é necessária porque, como lembram
Lima e Baptista, “o Direito não pode ser estudado de forma dissociada do seu campo
social de atuação porque ele é parte integrante desse espaço, constituindo-se no aspec-
to normativo de cada sociedade” (2014, p. 06).

Nesse sentido, é prudente reconhecer que, na medida em que se enalteceu o méto-


do científico pelo seu potencial de conexão racional com a realidade, não se pode negar que
por vezes aquilo que se reputa científico pode acabar distante daquilo que é consensual-
mente admitido como realidade, assim como é possível que esteja falho. Logo, é prudente
conciliar as experiências e evidências com as possibilidades do conhecimento científico.

Trata-se de entender, inclusive, que o senso comum pode ser constituído de


muitos conhecimentos verdadeiros, mas sabendo que lhe falta “suficiente sistematiza-
ção racional, ordenada e metódica, bem como um posicionamento crítico perante o
ato mesmo de conhecer. Raramente o senso comum se autoquestiona” (MARQUES
NETO, 2001, p. 39). E é essa sistematicidade e autoquestionamento que se conferirá
a partir de então, demonstrando os principais desafios da teorização da tutela coletiva

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

e que parecem retroalimentar a problemática de inclui-la como uma disciplina a ser


objeto de ensino e avaliação especializados.

Assim, adentra-se na compreensão de como o universo temático da tutela


coletiva apresenta uma gradativa e instável consolidação como ramo autônomo do
direito, pois ainda que se imagine que possa representar, por exemplo, um desdo-
bramento lógico da ementa de Direito Processual Civil, a situação é um pouco mais
complexa. E nesse sentido Gregório de Almeida é um proponente da tripartição do
direito processual, entre direito processual civil, direito processual penal e direito pro-
cessual coletivo, sendo este uma modalidade que supera a técnica processual fundada
no liberalismo individualista dos séculos XVIII e XIX (2007, P. 58).

Para ele, o direito processual coletivo como novo ramo do direito processual
brasileiro, pautado por diretrizes constitucionais, sendo a sua natureza jurídica de
um “direito processual-constitucional-social, cujo conjunto de normas e princípios a
ele pertinentes visa disciplinar a ação coletiva, o processo coletivo, a jurisdição cole-
tiva”, etc. (ALMEIDA, 2007, p. 58-59). E, com maior reflexão, é possível relembrar,
invocando o senso comum, como o tema da tutela coletiva está inserida em várias
disciplinas, como é o caso de Direito Constitucional, Direito Administrativo, Direito
Ambiental, etc. Afinal, em cada uma delas há pertinência em compreender os institu-
tos da Ação Popular, da Ação Civil Pública, por exemplo.

Essa pulverização disciplinar pode, inclusive, ser contextualizada em face das


tentativas de se elaborar um Código de Processo Coletivo, já que a legislação do tema,
o “Microssistema do Processo Coletivo”, conforme explica Nery Jr., o Processo Co-
letivo é regulado por um ou outro dispositivo da Constituição Federal e por dois di-
plomas infraconstitucionais, a Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85) e o Código
de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), além de dispositivos outros, como no
caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/90). Essa regulamentação
estaria, em trocadilho do autor, um pouco difusa. (2009, p. 147)24.

Para isso, vale registrar que se reconhece que não ser necessariamente pela
codificação que um ramo do Direito obtém sua respectiva autonomia disciplinar.
Toma-se por exemplo os casos do Direito Administrativo e Direito Ambiental, des-

24 À época da fala do autor Nery Jr., no ano de 2009, o CPC vigente, de 1973, era eminentemente preocupado com
a lide individual e vinha sendo, segundo ele, mutilado por diversas reformas. Logo, especialmente em razão de o CPC
da época não dialogar com a tutela coletiva, ele era favorável à codificação do Direito Coletivo. Mas em sua fala, que se
recomenda a leitura, consigna uma série de alertas sobre como essa inovação legislativa não seria garantia de boa aplica-
ção. Nesse sentido, reforça o autor como o CPC/73 foi desfigurado, de modo que ele apontava não ser contra aperfei-
çoamento de leis, mas que se insurgia com “a afoiteza com que as coisas são feitas e pela falta de cientificidade e profis-
sionalismo na condução dessas matérias” (2009, p. 148).

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providas de código único, mas reconhecidas como relevantes ramos autônomos para
fins de compreensão e avaliação. E, no caso da tutela coletiva, entende-se desde já que
sua falta de autonomia não é uma decorrência direta da ausência de um Código25. E
nem se considera problemática a falta de varas especializadas na matéria, que foram
ideias inclusive mencionadas no relatório26.

Contudo, é pertinente uma breve incursão nas principais ideias lançadas nos
debates sobre uma codificação do processo civil, num movimento relativamente ex-
pressivo e que, apesar de estar aparentemente suspenso até o presente momento, ain-
da é possível verificar alguns fatores que demonstram alguns obstáculos para uma
autonomia disciplinar do assunto.

Nesse sentido, dentre as providências para um Código de Processo Coletivo,


havia três empreitadas e a primeira delas teria sido a elaboração de um Código Mode-
lo de Processos Coletivos, publicado em 2004, servindo de fonte de inspiração para
países latino-americanos27.

No Brasil, esse Código Modelo teria incitado pesquisadores a repensar a legis-


lação brasileira em torno das ações coletivas, de maneira que os programas de Mestra-
do em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universida-
de Estácio de Sá (UNESA) foram, ao lado da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP) e da Universidade de São Paulo (USP), considerados pioneiros na
pioneiros na introdução de disciplinas voltadas para o estudo dos processos coletivos,
teriam iniciado suas respectivas discussões em torno de um Anteprojeto de Código
Brasileiro de Processos Coletivos, de maneira paralela e concomitante ao longo dos
anos de 2004 e 2005 (MENDES, 2007, p. 50).

25 Menciona-se “Código de Processo Coletivo” nas pp. 142, 145 e 221 do RAPAC. E, além do que se sabe sobre disci-
plinas como as mencionadas, em que um Código único é dispensável para que haja o ensino especializado sobre seus
universos teóricos, remete-se mais uma vez ao que observa Nery Jr., de que “[o] problema não é normativo, mas de efeti-
vidade do processo. Temos leis muito boas, o que não temos são pessoas capazes de aplicar essas leis boas. São problemas
culturais, sociais e políticos. Existem muitas barreiras ideológicas contra a ação coletiva.” (2009, p. 149). Verifica-se, por-
tanto, que os desafios em aplicar a legislação referente ao processo coletivo se relaciona mais com uma vontade política – e
também com capacidade técnica, como se verá – do que necessariamente à existência de uma boa arquitetura normativa.
26 Menciona-se “Varas especializadas” nas pp. 98, 145, 215 e 217 do RAPAC. Sobre a situação das varas especiali-
zadas, Vitorelli e Zaneti dedicam tópico específico (6.3) e basicamente indicam que não são apontados achados empí-
ricos que validassem a proposta. Ademais, sobre o tema, recomenda-se a pesquisa conduzida pela Associação Brasileira
de Jurimetria (ABJ), que levou à criação de duas varas empresariais no TJSP. Cf. https://abj.org.br/wp-content/
uploads/2018/01/ABJ_varas_empresariais_tjsp.pdf
27 Trata-se de um documento produzido no âmbito do Instituto Íbero-americano de Direito Processual e que tem
por objetivo a “unificação e harmonização de normas entre países que possuem razoáveis semelhanças em termos de
sistemas jurídicos, bem como o fomento de modificações que estejam em sintonia com as necessidades de inovações
segundo o consenso ou a maioria da doutrina destas nações” in MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. O código
modelo de processos coletivos do Instituto Ibero-americano de Direito Processual. Revista da Seção Judiciária
do Rio de Janeiro, p. 19-48, 2007. Logo, como se verifica da definição, não se trata de um instrumento jurídico
vinculante, mas um parâmetro normativo para futuras elaborações.

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Em 2008 foi criada, através da Portaria nº. 2.481/2008, Comissão Especial


pela modernização da tutela coletiva e assim apresentou o Projeto de lei nº 5.139/09.
Contudo, houve a sua rejeição em 2010 (AZEVEDO, 2011, p. 490). E pelo que
se verificou da produção acadêmica consultada desde então, a questão parece ter se
arrefecido; ou melhor, talvez se tenha voltado para os trabalhos de elaboração de um
novo Código de Processo Civil.

Nesse sentido, a promulgação do CPC/15 é considerado um marco para a tu-


tela coletiva, pois como apontam Didier Jr. e Zaneti Jr., enquanto o CPC/73 simples-
mente não regulava o processo coletivo, o CPC/15 passou a ter relação de mão dupla
com o microssistema da tutela coletiva, de modo que este passou a ser “suposto pelo
legislador, que não apenas expressamente passou a fazer menção a esse setor do pro-
cesso civil, mas, também, trouxe normas jurídicas novas para ele” (2019, p. 73-74).

Verifica-se, então, um movimento iniciado de autonomia disciplinar, em que


haveria respeito à natureza processual-constitucional-social, como reconhecida aci-
ma, parece ter recuado um pouco e essa disciplina restaria como um prolongamento
do Direito Processual Civil. O que inclusive se reforça com o advento do Incidente de
Resolução de Demandas Repetitivas, o IRDR (art. 928, CPC/15), que fez com que
o direito brasileiro possuísse agora duas maneiras de se tutelar situações jurídicas co-
letivas: as ações coletivas e o julgamento de casos repetitivos (DIDIER JR.; ZANETI
JR., 2019, p. 42; MENDES, 2015, p. 64)28.

Diante dessa síntese que demonstra os mais recentes rumos normativos e


doutrinários percorridos pela Tutela Coletiva, não é surpresa que o tema represente
desafio aos que o estudam e os que o aplicam. E assim, em aspectos ainda mais prag-
máticos, resta o desafio em dimensionar as causas e os efeitos quanto ao fato de ele
não estar contemplado instrumentos normativos oficiais de ensino jurídico da gra-
duação29, com uma aparente baixa oferta especializada na pós-graduação e também
na avaliação dos estudiosos de Direito.

28 As primeiras, mais difundidas e praticamente equivalentes à ideia de tutela coletiva, agora eram acompanhadas
por esses novos instrumentos que, segundo doutrina mais recente, não se havia consenso, ainda, sobre sua natureza de
técnica de processo coletivo. Na medida em que Didier Jr., Zaneti Jr. e Aluísio Mendes entendem afirmativamente,
Sofia Temer (Incidente de resolução de demandas repetitivas. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 91-92) entenderia que não.
29 Vale destacar que em dezembro de 2018 entraram em vigor as novas diretrizes curriculares da graduação em Direito,
na Resolução n. 5/2018 do CES/CNE. E dentre as reformulações, como explica, Horácio Rodrigues “os conteúdos e
competências a serem inseridos no eixo de formação profissional devem abranger os diversos ramos dos direitos [...] levan-
do em consideração a evolução do Direito e sua aplicação à realidade brasileira”. Havendo inclusive três novos conteúdos
obrigatórios (Art. 5º), sendo um deles a disciplina de “Formas Consensuais de Solução de Conflitos”, revelando certo
vanguardismo em prol de uma mudança de cultura. Propõe-se, então, que se reflita sobre como uma onda do Acesso à
Justiça pôde ter sido tão valorizada e a tutela coletiva, aparentemente, permanecer em uma relativa secundarização.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Essas, contudo, são afirmações iniciais e que certamente instigam novos apro-
fundamentos, inclusive pela aplicação da metodologia empírica, de modo que sejam
mapeados, por exemplos, quantos cursos de graduação em Direito apresentam disci-
plinas ativas de Direito Processual Coletivo, bem como investigação do número de
cursos de pós-graduação em que o assunto seja estudado – parcial ou exclusivamente
– ou ainda de programas de educação continuada de atualização, que são inclusive
promovidos por escolas institucionais, como escolas da magistratura. E também seria
possível apurar a constância da temática “Tutela coletiva” nos principais processos
avaliativos, como o Exame da Ordem e nos Concursos Públicos, sobre como esse
tema tem sido tratado nos editais.

Essas poderiam ser as principais possibilidades de se constatar como esse tema,


tão caro a uma otimização do Acesso à Justiça, vem sendo gradativamente apreendido por
estudiosos e aplicadores do Direito. O que permite a conclusão, através de tudo o que se
levantou neste estudo, de uma defasagem que precisa, urgentemente, ser revertida.

CONCLUSÃO

Foram múltiplas as conclusões alcançadas no presente artigo, na medida


em que se pôde lançar um olhar mais atento sobre panorama da Pesquisa Empírica
em Direito (PED) para melhor analisar o relatório sobre Ações Coletivas no Brasil
(2018), elaborado pela Sociedade Brasileira de Direito Público, por encomenda do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desde já a pesquisa disposta a compreender
dados da realidade e versar sobre uma da três ondas renovatórias de Acesso à Justiça,
propostas por Cappelletti e Garth, mostrava-se um duplo avanço à gestão judiciária.

No primeiro tópico, as conclusões sobre a pesquisa em Direito, notadamente


em sua modalidade empírica, apresentou avanços consideráveis, notadamente pela
verificação, a partir da CF/88, de que o isolamento do Direito deveria ser superado,
tanto pelas baixas trocas interdisciplinares, como pela baixa apreciação da realidade
que prevalecia até então.

Ainda é revelada a importância do CNJ, juntamente a outros órgãos, no for-


talecimento da PED, a fim de que a implementação de políticas públicas tivesse di-
retrizes mais apuradas, com base em evidências cientificamente colhidas. Todavia,
apesar da relevância da pesquisa institucional, é inevitável o registro de tensões que
permeiam essa parceria e que, inevitavelmente, podem comprometer a qualidade e o
senso crítico sobre os resultados obtidos.

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A partir do segundo tópico, foi possível concluir que a Survey realizada des-
cumpriu algumas diretrizes basilares para a referida técnica, tendo sido analisados os
aspectos da amostragem e na baixa relevância da ferramenta para a informação que
pretendia ser obtida. Afinal, extrair a percepção dos magistrados, que como todo o ser
humano estão sujeitos a vieses comprometedores de uma visão objetiva da realidade,
não se revelou a melhor forma de conhecer a capacitação de juízes e servidores sobre
o universo temático da Tutela Coletiva.

Todavia, apesar do baixo rigor metodológico da pesquisa, notadamente na


Survey, encaminhou-se o estudo para a compreensão do porquê a afirmação sobre a
insuficiência do conhecimento em tutela coletiva demonstrava uma relevância que
merecia aprofundamento e justificaria algumas ponderações finais.

Verificou-se que a afirmação generalizante extraída da pesquisa é compatível


com a realidade de estudiosos e operadores do direito, de realmente haver pouca
familiaridade com a matéria de Tutela Coletiva. E essa realidade, ainda que possa
demandar futuras pesquisas mapeando a condição do ensino e avaliação em Tutela
Coletiva pelo Brasil, pôde ser verificada no último tópico em aspectos gerais

Desse modo, demonstrou-se como pesquisadores e doutrinadores da área


processual evidenciam como esse novo ramo disciplinar do direito poderia justifi-
car tanto um novo ramo de direito processual – ao lado do direito processual civil
e direito processual penal – já que inclusive pareceu mobilizar processualistas pela
aprovação de um anteprojeto de Código de Processo Coletivos, que restou rejeitado
em 2010. Essa rejeição, dadas as circunstâncias da época, coincidiu com trabalhos de
elaboração do Código de Processo Civil de 2015, que incorporou muitas das noções
básicas da tutela coletiva e acrescentou mecanismos como o Incidente de Resolução
de Demandas Repetitivas (IRDR), instituto que tem despertado interesses diversos e,
para parte da doutrina, se incorpora no repertório teórico da tutela coletiva.

Desse modo, percebe-se que muitas são as dinâmicas que permeiam esse
universo temático e que parecem decisivas para que se decida sobre a natureza desse
tema, seja como disciplina universitária das graduações em Direito no país ou
como campo especializado de cursos de pós-graduação, ou seja objeto de avaliações
oficiais, como o Exame da Ordem ou nos concursos públicos de carreiras jurídicas.
E assim surgiria inclusive nova chance de investigar o cenário de ensino e avaliação
da Tutela Coletiva no Brasil, a partir de um mapeamento.

181
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Contudo, por todas as conclusões aqui apresentadas, entende-se que fun-


damental, além de uma contínua otimização das pesquisas empíricas institucionais
– especialmente as de avaliação do Poder Judiciário, sempre abertas à autocrítica ins-
titucional – que seja positivamente considerado o resultado trazido pela Survey, pois,
apesar de impreciso, ele ainda é coerente perante a realidade de compreensão, ensino
e avaliação de juristas brasileiros sobre o tema tutela coletiva, tão necessário para um
efetivo Acesso à Justiça.

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Capítulo 10
(RE)PENSANDO OS NÚCLEOS
DE PRÁTICAS JURÍDICAS COMO
INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO
DO ACESSO À JUSTIÇA SOB
A ÓTICA DA RESOLUÇÃO
No. 5 DO CNE/CES

SUMÁRIO: Introdução. 1. Da reforma normativa do Ensino Jurídico do Brasil promovida


pela Resolução CNE/CES no. 5/2018 1.1. Formação geral e os conteúdos transversais. 1.2.
Formação técnico-jurídica e as competências. 1.3. Formação prático-profissional. 2. A
Educação Jurídica e o Acesso à Justiça. 3. (Re)pensando os Núcleos de Práticas Jurídicas
como instrumento de fomento o Acesso à Justiça. Conclusão. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 10

(RE)PENSANDO OS NÚCLEOS DE PRÁTICAS JURÍDICAS COMO


INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA SOB A
ÓTICA DA RESOLUÇÃO No. 5 DO CNE/CES

Larissa de Alencar Pinheiro Macedo1

INTRODUÇÃO

O ensino jurídico no Brasil, pauta-se, primordialmente, na prevalência de


disciplinas no currículo dos cursos que primam por uma formação mais dogmática
e mitigam a importância das discussões de ordem pragmática para construção de
um profissional de Direito mais habilitado para as contingências do mercado de
trabalho, que estejam preparados para atuar nas mais diversas demandas da sociedade
contemporânea e na promoção do acesso à justiça.

Nesta seara, através do desenvolvimento de estudos sobre a temática, identificou-


se que a quarta onda ao movimento de acesso à justiça traz luz à perspectiva de que o
enfoque deve ser dado não somente ao cidadão, mas ao acesso dos juristas, ou seja, a
problemática do presente artigo se atém a responder aos seguintes questionamentos: 1.
De que forma se está formando os profissionais do direito para serem instrumentos de
garantia da efetivação da justiça para a comunidade? 2. Como a formação acadêmica
do estudante de direito contribui para o acesso à justiça?

1. DA REFORMA NORMATIVA DO ENSINO JURÍDICO DO BRASIL


PROMOVIDA PELA RESOLUÇÃO CNE/CES No. 5/2018

Em 2018, entrou em vigor a Resolução nº 5 do CNE/CES (BRASIL, 2018)


que revogou a Resolução nº 9, do mesmo órgão, e expressou a necessidade de um
projeto pedagógico curricular consistente, que visasse substituir a cultura do lití-
gio pela do consenso, revelando habilidades e competências a serem desenvolvidas
nos estudantes de Direito, abrangendo as novas tecnologias, metodologias ativas e

1 Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará; MBA em Gestão Empresarial pela
Fundação Getúlio Vargas; Advogada OAB/CE; Secretária Geral da Comissão de Direito e Tecnologia
da Informação da OAB/CE.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tratamento transversal dos conteúdos, além de uma série de ações para integração
entre teoria e prática.

Dentre essas ações, incluem-se diretrizes acerca da implantação e da estrutura


dos Núcleos de Práticas Jurídicas – NPJ, possibilitando a construção da capacidade
para desenvolver técnicas de raciocínio e de argumentação jurídica, com objetivo de
propor soluções e decidir questões no âmbito do Direito, assegurando ao graduando
uma aprendizagem autônoma e dinâmica. (BRASIL, 2018).

1.1. Formação geral e os conteúdos transversais

A preocupação com a formação do graduando em direito para além das disciplinas


dogmáticas próprias do ensino jurídico, desde muitos anos, vem despertando o olhar
e debates de grande parte da comunidade jurídica, principalmente, àquela parcela
que enxerga o Direito como instrumento de transformação social (STRECK, 2014).

Sabe-se que, segundo Almeida, Souza e Camargo (2013), o perfil do ensino do


Direito pautado em abordagens legalistas é insuficiente para abarcar as transformações
da sociedade, sejam elas sociais, políticas ou econômicas. A demanda por inclusão de
disciplinas capazes de preparar o discente para lidar não só com os casos práticos, como,
também, para a compreensão da origem das problemáticas complexas enfrentadas
após o curso de graduação, é crescente.

Levando-se em consideração que, até o advento das novas DCNs, o ensino


jurídico no Brasil estava baseado em uma construção normativa fechada, em que
o currículo engessado não permitia um diálogo eficiente com outros campos do
conhecimento, com a autorização legislativa para a flexibilidade dos projetos
pedagógicos e a previsão obrigatória dos conteúdos transversais há o início da
viabilização deste diálogo, balizando esta integração dos saberes.

É o que determina o artigo 5º, inciso I, da Resolução nº 5/2018 quando traz


que a formação geral tem como objetivo fornecer os elementos fundamentais do
direito ao estudante, proporcionando com o conhecimento filosófico e humanístico,
bem como com as novas tecnologias da informação, englobando saberes de outras
áreas formativas (BRASIL, 2018).

Embora não haja a determinação de um conteúdo obrigatório na formação


geral pelas novas Diretrizes Nacionais de Currículo - DNCs, diferentemente do que

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

estabelecia as DCNs de 2004 (oportunidade em que se privilegiou uma variedade


de disciplinas, mas não a qualidade da abordagem), há uma preocupação com a
necessidade de se estabelecer um contato efetivo e profundo do Direito com a as
outras áreas do conhecimento.

Tanto é, que o artigo 3º, caput, da Resolução, afirma que o curso de graduação
em direito deve garantir ao estudante uma sólida formação geral e humanística, que
contribua para a sua capacidade de análise e domínio de conceitos, bem como na
sua habilidade de argumentação interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos
e sociais, além de demonstrar autoridade na aplicação das formas consensuais de
composição de conflitos, somada às competências reflexiva e crítica, que promova
o aprendizado, a autonomia e a dinâmica indispensáveis ao exercício do Direito, à
prestação da justiça e ao desenvolvimento da cidadania (BRASIL, 2018).

Para atingir os objetivos propostos, de assegurar uma formação geral e


humanística, faz-se necessário o estudo dos temas transversais obrigatórios destacados
na legislações espaças que são lembrados nas novas DCNs, tais como as políticas de
educação ambiental, direitos humanos, de educação para a terceira idade, em políticas
de gênero, de educação das relações étnico-raciais e histórias e culturas afro-brasileira,
africana e indígena, entre outras (RODRIGUES, 2019).

A transversalidade, uma vez implementada substancialmente nos cursos de Direi-


to, saindo do papel e efetivamente inserida na cultura do ensino, permitirá a formação
de estudantes mais conscientes de seu papel na sociedade, com uma visão holística da
realidade social, incorporando diversos saberes e ampliando a sua capacidade cognitiva.

Esta transcendência na educação jurídica, no entanto, deve vir acompanhada


de um planejamento pedagógico inclusivo, fruto do engajamento dos docentes e dis-
centes, por meio de uma ação coordenada e propositiva entre todos os responsáveis
para a realização desta mudança estrutural na grade curricular, de modo que os resul-
tados esperados sejam efetivamente alcançados.

1.2. Formação técnico-jurídica e as competências

A formação do aluno que abrange, além do ensino dogmático, o


conhecimento e a aplicação dos diversos ramos do direito contextualizados de acordo
com as mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil e suas relações
internacionais, como pretende o artigo 5º, inciso II, das novas DCNs (BRASIL,

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

2018) está inserida em uma cultura de ensino jurídico capaz de colocá-lo em


contato, ao longo de todo o curso, com o fenômeno jurídico, complexo como ele se
apresenta, provavelmente torná-lo-á um profissional capaz de movimentar-se com
mais desenvoltura no mercado jurídico contemporâneo.

De uma forma resumida, é possível dizer que os conteúdos e competências a


serem inseridos no eixo de formação profissional devem abranger os diversos ramos
dos direitos público e privado e dos direitos material e processual, estudados em
seus aspectos teórico, dogmático e prático, de forma sistemática e contextualizada,
levando em consideração a evolução do Direito e sua aplicação à realidade brasileira
e internacional (RODRIGUES, 2019).

A lista de disciplinas previstas no inciso II do citado artigo 5º são basicamente


as que já conhecemos de há muitos anos nas grades curriculares das IES brasileiras e
que dão forma ao conteúdo dogmático propriamente dito das ciências jurídicas, sendo
basilares para a formação do bacharel em Direito, como Direito Constitucional, Direito
Administrativo, Direito Tributário, Direito Penal, Direito Civil, Direito Empresarial,
Direito do Trabalho, Direito Internacional e Direito Processual, com exceção das
disciplinas de Teoria do Direito, Direito Previdenciário e Formas Consensuais de
Solução de Conflitos, que foram inseridas nesta última resolução (BRASIL, 2018).

No entanto, sabe-se que uma formação dogmatizada não forma profissionais


preparados para lidar com as demandas da contemporaneidade2. As competências dos
estudantes de Direito devem ser ampliadas e desenvolvidas nas diretrizes curriculares
jurídicas, permitindo a esses discentes uma visão sistêmica das possibilidades e
consequências do cabimento e aplicação das normas jurídicas nas relações sociais,
propiciando uma nova perspectiva de pensar e entender a ciência jurídica.

É preciso formar profissionais capazes de gerir a atividade jurídica escolhida


após a graduação, através de metodologias ativas, com a expansão do aprendizado
prático, dotando-se esses profissionais de ferramentas úteis para otimizar o trabalho
e reduzir os custos da ineficiência. “A aliança entre a abordagem zetética do direito
e o desenvolvimento de capacidades analíticas e práticas de resolução de problemas
tornou-se exigência de mercado” (RODRIGUEZ; FALCÃO, 2005).

2 Esta mesma linha de pensamento verifica-se na obra de Rodrigues (2019), bem como no artigo de
Fincato (2010).

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Pensando nisso, a Resolução CNE/CES n°5/2018 trouxe de forma expressa,


em seu artigo 4º, que o curso de graduação em Direito deverá possibilitar a formação
profissional que revele, pelo menos, as competências cognitivas, instrumentais e in-
terpessoais (BRASIL, 2018).

A efetivação do direito fundamental de acesso à justiça, nos dias atuais, está


diretamente ligada à existência de profissionais competentes o suficiente para entender
e aplicar a norma de uma maneira a potencializar a concretização da busca pela justiça
(ECONOMIDES, 1999).

Saliente-se que, de acordo com RODRIGUES (2019) estas competências não


devem ser trabalhadas de forma isolada, mas sim ao longo do curso, em um processo
de apropriação do conhecimento a ser perseguido pelo aluno, para adequar a formação
do estudante de Direito às novas exigências do mercado, o ensino da dogmática
jurídica deve ser abordado de maneira que seja possível compreender seu viés prático,
no que diz respeito à sua utilização para a resolução de problemas jurídicos reais.

1.3. Formação prático-profissional

Dando sequência ao tripé que compõe as perspectivas formativas do PPC,


temos a formação prático profissional, que segundo dispõe a Resolução CNE/CES
n° 5/2018, em seu artigo 5º, inciso III, “objetiva a integração entre a prática e os
conteúdos teóricos desenvolvidos nas demais perspectivas formativas, especialmente,
nas atividades relacionadas com a prática jurídica e o TC” (BRASIL, 2018, s.p.).

A tarefa da academia, do ponto de vista das práticas didáticas, é a de multiplicar


as formas, implicações e domínios desse subconjunto das práticas profissionais e
acadêmicas avançadas, hoje inconscientes e limitadas, para transformá-las em práticas
prolongáveis e refletidas, centrais para o processo de ensino-aprendizagem da Escola.
(RODRIGUEZ; FALCÃO, 2005).

Criar soluções mais adequadas ao caso concreto e promover respostas mais


rápidas aos jurisdicionados, fomentando-se a resolução de conflitos e aumentando
a confiança das pessoas tanto no Poder Judiciário quanto nas demais formas de
jurisdição, é o que se espera do operador do Direito. E neste ponto devemos destacar
a importância do NPJ como eixo central desta formação que poderá ser reprogramada
e reorientada em função do aprendizado teórico-prático, de acordo com o artigo 6º,
parágrafo 4º, da referida Resolução (BRASIL, 2018).

191
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Entretanto, para que esta reorientação seja concretizada, faz-se necessário um


perfil docente adequado nos NPJ, com professores que deveriam necessariamente
exercer o direito, notoriamente a advocacia. Para além disso, o docente deve transpirar
o compromisso que decorre de sua função social, o que o afasta do modelo tradicional
das aulas (FINCATO, 2010).

O NPJ é o ambiente mais promissor para resgatar e desenvolver a criatividade


jurídica, a problematização do direito e para promover sua reaproximação com a
realidade social e com a ética (FINCATO, 2010), realizando-se um movimento
positivo de construção – e não de desconstrução de uma mentalidade já formada
(SALLES, 2010), com a implementação de metodologias ativas capazes de desenvolver
nos alunos as habilidades e competências necessárias para se comportarem de maneira
autônoma no mercado de trabalho.

Dentro desta proposta, às DCNs trouxeram novidades para o planejamento


curricular, que encontramos no artigo 6º, parágrafo 5º, a previsão de que “as práticas
jurídicas podem incluir atividades simuladas e reais e estágios supervisionados nos
termos definidos pelo PPC” (BRASIL, 2018, s.p.).

São as práticas jurídicas quem aproximam e realizam a conexão do estudante


com o mundo profissional e, neste contexto, (re)pensar o papel dos Núcleos de Práticas
Jurídicas como local de integração deste conhecimento teórico e prático dentro da
estrutura curricular do curso de Direito, inclusive como instrumento de promoção
do acesso à justiça, enquanto componente do processo de aprendizagem, é algo que
deve estar presente quando do planejamento pedagógico pelas IES.

2. A EDUCAÇÃO JURÍDICA E O ACESSO À JUSTIÇA

A expressão “acesso à Justiça” é reconhecidamente de difícil definição, mas


serve para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico, entendendo este
como o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar seus direitos e/ou resolver
seus litígios sob os auspícios do Estado. Como primeira finalidade, o sistema deve
ser acessível a todos; e, segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e
socialmente justos (CAPELLETI, GARTH, 1998).

O termo acesso à justiça passa a ser incorporado ao vocabulário jurídico pela


primeira vez com a publicação dos resultados das pesquisas do Projeto Florença de
Acesso à Justiça, coordenado pelo jurista Mauro Cappelletti, que identificou uma

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

série de fatores que precisavam ser superados para que o sistema judicial fosse acessível
a todos e produzissem resultados individuais e socialmente justos, os quais foram
sistematizados sob a nomenclatura de “ondas” de acesso à justiça, sendo três as ondas
de maior impacto no sistema judicial: a primeira onda, sendo a assistência judiciária
aos pobres; a segunda, a representação dos interesses difusos; e a terceira, seria um
novo enfoque de acesso à justiça (CAPELLETI, GARTH, 1998).

O acesso à justiça representa mais do que o acesso ao Judiciário e o ingresso


no processo ou ao acesso aos meios que ele oferece (DINAMARCO, 1987). A
problemática do acesso à justiça não pode ser estudada sob a ótica dos limites do
acesso aos órgãos judiciais já existentes, pois não se trata apenas de possibilitar o
acesso à Justiça enquanto instituição estatal, mas sim de viabilizar o acesso à ordem
jurídica justa. (WATANABE, 1988).

Nesta seara, através do desenvolvimento de estudos sobre a temática,


Economides (1999), que já havia feito comentários à segunda versão da série Acesso
à Justiça do “Projeto Florença”, identifica mais uma onda ao movimento de acesso à
justiça, que seria a quarta onda, representada pelo acesso dos operadores do direito
(inclusive dos que trabalham no sistema judicial) à justiça.

Esta nova perspectiva analítica deriva do fato de que a essência do problema não
está mais limitada ao acesso dos cidadãos à justiça, pois já há mecanismos que asseguram
este acesso, mas que inclui também o acesso dos próprios advogados à justiça. E tal
acesso se daria através da formação acadêmica do estudante de direito, que deveria
moldar o caráter profissional dos estudantes, transmitindo os valores da transformação
social que a lei pode fomentar nos indivíduos (ECONOMIDES, 1999).

Destaca-se que, em levantamento feito pelo Conselho Federal da Ordem dos


Advogados do Brasil – CFOAB, o Brasil é o país com o maior número de cursos de
graduação em Direito no mundo e a criação de novos cursos jurídicos se intensificou
na década do ano 2000, ficando em torno de 1.100 no final da última década, em
2017, havia 1.203 cursos de graduação em Direito, espalhados por 923 IES, de
acordo com o Censo da Educação Superior, do Inep. Entretanto, esta quantidade
não é sinônimo de qualidade, como traduz o estudo exame de ordem em números de
2020, publicado recentemente pelo CFOAB.3

3 Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/exame-ordem-numeros-2020.pdf>. Acesso em: 30 maio.2020.

193
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Neste ensejo, verifica-se que alguns dos problemas que se apresentam ao efe-
tivo acesso à justiça decorrem de uma deficiência na formação profissional de diversos
operadores jurídicos. O formalismo verificado na educação jurídica tem origem em
partes na formação positivista que não permite aos bacharéis em Direito o desenvolvi-
mento do raciocínio jurídico e do senso crítico necessários para se apropriarem de sua
função na sociedade, pois não se pode ter um efetivo acesso à justiça sem profissionais
devidamente qualificados; não se pode ter profissionais qualificados sem um bom
nível de ensino. (RODRIGUES, 1994).

A educação jurídica difundida em larga escala dentro da comunidade acadêmica


gira em torno de uma abordagem legalista e manualizada do Direito (STRECK,
2014), com a introdução dos precedentes judiciais como padrões jurisprudenciais
a serem seguidos, dentro de um ambiente de ensino impositivo e pouco dialético,
desestimulando a capacidade crítica e criativa do estudante de direito que devem estar
preparados para as rápidas mudanças da sociedade contemporânea e clientes cada vez
mais exigentes à procura de profissionais ágeis e eficientes.

Nas lições de RODRIGUES (1994), o problema do acesso à justiça transcende


a seara jurídico-processual, pois perpassa por outras instâncias, sendo importante ter
esta consciência para o progresso da equacionalização destas esferas, seja no contexto
político, econômico, cultural. O operador do direito que não percebe este aspecto,
continuará a enxergar a questão do acesso à justiça apenas como problemas a serem
resolvidos através da criação de novos instrumentos técnico-processuais ou da correção
dos existentes, contribuindo para a manutenção e propagação do status quo.

É preciso vislumbrar o sistema processual não somente como um instrumento de


solução de conflitos, seja os intersubjetivos ou mesmo difusos, coletivos ou individuais
homogêneos, mas igualmente, e de fundamental importância, como instrumento
político de realização da justiça social, escopo maior do estado contemporâneo
(RODRIGUES, 1994).

Esse condicionamento cultural precisa mudar, fomentando a importância de se


evitar disputas, pois no universo de todos os conflitos surgidos na sociedade, a grande
maioria deles é resolvida consensualmente, por negociação direta entre as partes ou
com o auxílio de terceira pessoa (SALLES, 2010).

O operador do direito precisa e deve ter um papel inclusivo nesta promoção da


solução de controvérsias, sem que seja preciso perpassar o Judiciário para se alcançar o
resultado desejado pela partes, fato que pode ser obtido por meio de soluções criativas

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

que só uma formação acadêmica crítica e voltada para a cultura do consenso podem
proporcionar ao bacharel em direito.

É neste ensejo que as novas DCNs incluem a disciplina de formas consensuais


de resolução de conflitos para serem trabalhadas dentro dos cursos de direito, pois
acredita-se que se houver o fomento de práticas colaborativas, que fomentem a resolução
das demandas de forma consensual como, por exemplo, por meio da autocomposição,
mediação e arbitragem, ou seja, dos serviços jurídicos preventivos, o resultado inevitável
será a melhoria do acesso dos cidadãos à justiça (ECONOMIDES, 1999).

Desta forma, o olhar para o ensino deve transcender buscando-se adequar


as metodologias para que contemplem estes novos obstáculos ao acesso à justiça,
trazendo os NPJs para cada semestre do curso, e não apenas ao final, construindo-se a
cultura do consenso desde o nascedouro da formação jurídica, formando profissionais
capacitados para oferecer à sociedade soluções estratégicas, que reduza os custos de
transação e conformidade, com a substancial diminuição do tempo de espera do
provimento jurisdicional, o que proporcionará a efetiva concretização deste direito
fundamental pelo jurisdicionado.

3. (RE)PENSANDO OS NÚCLEOS DE PRÁTICAS JURÍDICAS COMO


INSTRUMENTO DE FOMENTO DO ACESSO À JUSTIÇA

Para satisfazer os novos paradigmas do Estado Democrático de Direito frente


à sociedade contemporânea e às novas tecnologias, o operador do Direito deve servir
como um instrumento de afirmação da cidadania e da própria democracia, através
da aplicação do Direito e do resgaste substancial dos preceitos constitucionais,
promovendo uma verdadeira justiça substantiva para os jurisdicionados.

Desse modo, a dogmática jurídica, como reprodutora de uma cultura


estandardizada, torna-se refém de um pensamento metafísico, esquecendo-se de um
de seus teoremas fundamentais da hermenêutica, que é a diferença ontológica. Com
isso, torna-se “possível” separar o Direito da sociedade, enfim, de sua função social.
Dito de outra maneira, o formalismo tecnicista que foi sendo construído ao longo de
décadas “esqueceu-se” do substrato social do direito e do Estado (STRECK, 2014).

E diante destas novas DCNs, dentro da perspectiva do desenvolvimentos


das competências dos alunos de direito e da interdisciplinaridade que deve permear
o estudo jurídico, que deve-se inserir os NPJs como modelo de prática adequado

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

para preparar o discente para um mercado de trabalho cada vez mais insuflado de
profissionais que não tem competências básicas para a gestão de conflitos.

Dessa forma, faz-se necessário a (re)pensar os núcleos de prática jurídica como


instrumentos de fomento do acesso à justiça, pois é preciso formar não só juristas,
mas operadores do Direito mais críticos, com um conhecimento mais amplo em áreas
de competência pouco exploradas nas academias jurídicas, bem como profissionais
mais pragmáticos, preparados para lidar com as mais distintas adversidades, cientes
das ferramentas de gestão hábeis a promover a solução mais eficiente.

Desse modo, acaba-se sendo possível, no primeiro ano, desenvolver e


implementar atividades voltadas para o fomento da Conciliação, Mediação e
Arbitragem, com Núcleos de Práticas Jurídicas desde o primeiro contato do aluno
com o direito (SALLES, 2010), desenvolvendo-se centros de solução de conflitos e
programas de cidadania.

No segundo ano, iniciar o estudo das novas tecnologias, como as ferramentas


de processos judiciais eletrônicos, os meios on-line de resolução de disputas (online
dispute resolution - ODR), uso de aplicativos e ferramentas de proteção de dados.

No terceiro ano, a introdução do aprendizado baseado em problemas


(RODRIGUES, 2019), trabalhando a interdisciplinaridade com a participação efetiva
de profissionais de outros cursos dentro do Núcleo, tais como psicologia, assistência
social, administração, entre outros.

No quarto ano, deve-se articular a teoria e a prática por meio das clínicas
jurídicas (RODRIGUES, 2019), dentro dos quatro modelos distintos de clínicas:
1) assistência jurídica, com a atuação supervisionada dos alunos em litígios reais;
2) pesquisa, com a prestação de consultoria técnica e elaboração de pareceres; 3)
simulações, representando as partes em um dado conflito por meio de exercícios de
simulação, como nas constelações sistêmicas; 4) estágio prático, por meio do qual
o estudante poderá atuar em órgãos do Poder Judiciário, escritórios de advocacia,
ONGs, dentre outros (MACHADO; ALVES, 2006).

No quinto ano, atividades de criação e gestão de escritórios privados (advocacia


privada), às relacionadas às carreiras de Estado (Ministério Publico e Magistratura) e às
ligadas à advocacia pública (defensoria pública e procuradorias), de forma a preparar
os alunos, neste último ano, para as os aspectos mais pragmáticos do exercício da
profissão e atendimento do cidadão/jurisdicionado.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O NPJ é o ambiente mais promissor para a implementação de metodologias


ativas capazes de desenvolver nos alunos as habilidades e competências necessárias
para se comportarem de maneira autônoma no mercado de trabalho.

Metodologias ativas são consideradas “as centradas no aluno e as interativas,


tendo em vista que nelas há uma participação ativa do aluno”. Nesse vértice, o docente
deve agir como facilitador, propiciando que o discente possa pesquisar, refletir e
decidir, subjetivamente, o que fazer para atingir seus objetivos (RODRIGUES, 2019).

O principal desafio dos professores do ensino superior não está no domínio


da matéria, mas na transmissão do conhecimento (DEBALD, 2003). Logo a
utilização das metodologias ativas pode preencher essa lacuna a partir da utilização
de experiências reais ou simuladas, com o fito de trazer soluções aos mais diversos
problemas existentes na sociedade (BERBEL, 2011).

Por fim, a proposta apresentada de (re)pensar um NPJ que não seja mero
coadjuvante na formação dos alunos, mas verdadeiro protagonista no que diz respeito
a ocupar um papel fundamental na construção de competências multidisciplinares
e técnicas do profissional do Direito, é necessária para que se pense esse espaço
como um ambiente propício à implementação da mudança da cultura de ensino
jurídico, fomentando o consenso desde o início da formação do bacharel em direito,
funcionando como um instrumento de efetivação do acesso à justiça.

CONCLUSÃO

Conclui-se, portanto, que é urgente uma reflexão acerca da necessidade


de mudança e adequação das matrizes curriculares dos cursos de Direito às novas
DCNs, sendo o NPJ o espaço ótimo para a realização e implementação dessas
novas metodologias de ensino e da promoção desta justiça substantiva, por meio de
metodologias a serem implementadas através de um projeto pedagógico sério de (re)
estruturação, que foi apresentado neste artigo com a proposta da presença desta prática
ao longo da formação acadêmica, para construir as bases consensuais de solução dos
conflitos no estudante, proporcionando ao aluno uma experiência realista e tangível
da efetivação do acesso à justiça sob várias perspectivas (dentro e fora do Judiciário).

Dentro desta perspectiva, vislumbra-se que a educação jurídica é a via adequada


para a promoção do efetivo acesso à justiça aos jurisdicionados, pois somente através
da mudança da cultura jurídica do litígio para a cultura da importância do consenso,

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

onde não há ganhadores e perdedores, mas sujeitos colaborativos para a promoção


da solução do conflito, é que atingiremos os objetivos de transformação da realidade
pelo operador do direito, como verdadeiros agentes de afirmação da cidadania e da
própria democracia, através da aplicação do Direito.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando o ensino do direito no século XXI: diretrizes


curriculares, projeto pedagógico e outras questões pertinentes. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2005.

RODRIGUEZ, Caio Farah; FALCÃO, Joaquim. O projeto da Escola de Direito do Rio de Janei-
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SALLES, Carlos Alberto de et al. A experiência do Núcleo de Estudos de Meios de Solução de


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STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Editora
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WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. ln: GRINOVER, Ada Pellegrini et ai.
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199
Capítulo 11
LITIGANTES HABITUAIS FRENTE
À MASSIFICAÇÃO DE DEMANDAS
E CONGESTIONAMENTO DO
JUDICIÁRIO NO BRASIL

SUMÁRIO: Introdução. 1. Litigantes habituais: definição e contextualização. 2. Causas


para a litigância repetitiva. 3. Vantagens dos grandes litigantes. 4. Estratégias adotadas para
conter a litigiosidade repetitiva. Considerações finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 11

LITIGANTES HABITUAIS FRENTE À MASSIFICAÇÃO DE


DEMANDAS E CONGESTIONAMENTO DO JUDICIÁRIO NO BRASIL

Maria Teresa Barros Taumaturgo1

INTRODUÇÃO

Em um contexto de evolução do alcance às garantias jurisdicionais, órgãos


públicos e grandes empresas têm se destacado pela utilização do controle jurisdicional
para a apreciação de matérias concernentes às suas demandas em contraposição à
adoção de outros meios para a solução de litígios.
Sob essa conjuntura, as questões demandadas por esses atores possuem, por
diversas e recorrentes vezes, estruturas semelhantes, com o mesmo objeto e mesma
causa de pedir, levando à caracterização dos mesmos como “litigantes habituais” ou
“litigantes repetitivos”.
Desse modo, o presente artigo objetiva abordar uma visão geral acerca da
litigância repetitiva, apresentando sua definição, motivos que propiciam a sua
existência, assim como vantagens frente à inserção em um contexto de massificação
das demandas e sobrecarregamento e morosidade do judiciário, além de soluções
adotadas pelos poderes judiciário e legislativo para a manutenção de tais questões.

1. LITIGANTES HABITUAIS: DEFINIÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO

A litigância habitual diz respeito à propositura de demandas que possuem


causa de pedir e objeto similares, ou seja, questões fáticas ou de direito semelhantes,
somados à causa de pedir ou objetos iguais. Tal fenômeno, porém, não se relaciona,
necessariamente, com a conexão de processos.
Além disso, a existência de litigantes repetitivos é analisada por estudiosos
como uma das razões para a morosidade existente no Poder Judiciário brasileiro,
posto que a propositura descomedida de ações dificulta a análise, o andamento
processual e a apreciação das demandas, não apenas na fase de conhecimento, mas
também na etapa de execução.

1 Aluna do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Federa do Ceará.

203
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Em contraposição à existência dos litigantes habituais, há a figura dos litigantes


ocasionais, ou seja, indivíduos que eventualmente entram em contato com o judiciário
a fim de ver atendidas suas demandas.
A classificação dos litigantes, divididos em eventuais e habituais, foi proposta,
primeiramente, pelo pesquisador Marc Galanter, da Universidade de Wisconsin. Tal
divisão se baseia na frequência de encontros destes litigantes com o sistema judicial,
ou seja, no número de vezes que o litigante aciona o processo e submete seus interesses
aos órgãos do Poder Judiciário.
Desse modo, nesse contexto, destaca-se a pesquisa realizada pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ)2, em 2011, acerca da relação dos 100 maiores litigantes
no Brasil, abordando, em sua introdução:
Tão importante quanto monitorar continuamente o quantitativo de
processos existentes, qual é a estrutura disponível e quais são os níveis
de produtividade que o Poder Judiciário brasileiro dispõe para dar conta
dos litígios, é o conhecimento sobre quem são os principais demandantes
do trabalho de magistrados e servidores. O presente relatório cuida
exatamente deste segundo objetivo, dando continuidade à identificação
dos principais demandantes, com vistas a suscitar o debate sobre o que
pode ser feito para reduzir a excessiva litigância no Brasil.

Outrossim, no que concerne à pesquisa realizada pelo CNJ, o INSS ocupa a


primeira posição no chamado “consolidado das três justiças” relativo aos Juizados
Especiais, ou seja, na relação entre as Justiças Estadual, Federal e do Trabalho. Em
seguida, nessa mesma análise, encontram-se as instituições bancárias.
Sob esse viés, a Caixa Econômica Federal, junto aos Grupos Itaú e Bradesco
são responsáveis por mais da metade das demandas bancárias. Por fim, no que diz
respeito à telefonia, as empresas Oi, Tim e Vivo também possuem papel de destaque
junto à quantidade de processos em trâmite no judiciário brasileiro.

2. CAUSAS PARA A LITIGÂNCIA REPETITIVA FRENTE À AMPLIAÇÃO DO


ACESSO À JUSTIÇA

Com o advento da Constituição Federal de 1988, também chamada de


constituição cidadã, houve um fortalecimento de direitos fundamentais e o
estabelecimento de diversos direitos sociais, como saúde, moradia, alimentação,
transporte, dentre outros.

2 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Os 100 maiores litigantes. Brasília: CNJ, 2012, p. 4

204
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O estabelecimento de que esses direitos como deveres públicos pelo texto


constitucional faz com que o Judiciário seja invocado em face da omissão do Estado
em seu papel de garantidor do cumprimento da ordem jurídica nacional, mediante o
exercício de sua função jurisdicional.
Desse modo, a Constituição Federal de 1988 pode ser apontada como uma das
razões de existir dos litigantes habituais. Isso porque que esse diploma legal também
promoveu a garantia de diversos direitos relacionados ao acesso à justiça. Em seu art.
5º, inciso XXXV, ela erige não só o direito de ação, como o direito a um processo
justo, efetivo e de razoável duração, para concretização da prestação jurisdicional
estatal, além de outras garantias processuais distribuídas ao longo do seu texto.
Além disso, diversos outros fatores também são propostos como causas
ao usufruto desmedido da Justiça pelos litigantes habituais, podendo ser citadas a
situação econômica destes e a facilitação do acesso ao judiciário através da criação de
meios menos burocráticos, como a criação de juizados especiais.
Outrossim, cabe destacar que os litigantes habituais não só ingressam com ações
judiciais como, por diversas vezes, figuram como réus destas. Tal ocorrência se dá pela
violação de direitos particulares que estes empenham, levando seus consumidores à
necessidade de acionar o judiciário frente às tentativas frustradas de negociação pela
via extrajudicial. Assim, não somente a atuação processual ativa dos litigantes afeta o
quantitativo processual do País. Sua atuação passiva também interfere na quantidade
de demandas tramitando no Judiciário brasileiro.
Sob esse viés, no relatório Justiça em números, elaborado pelo Conselho
Nacional de Justiça em 20193, verificou-se que o Poder Judiciário encerrou o
ano de 2018 com 78,7 milhões de processos em tramitação, aguardando alguma
solução definitiva. Ressalta-se que, apesar da desmedida quantidade de processos em
andamento, o acesso à justiça ainda não é pleno no País.
Essa situação de dificuldade de acesso ocorre porque o indivíduo brasileiro
ainda encontra dificuldades na busca pelo alcance à jurisdição frente a motivos como
hipossuficiência econômica, distância geográfica e a própria lentidão do Judiciário.
Tal assunto que é objeto de análise de diversos estudos, destacando-se o
Projeto Florença. Este foi elaborado na década de 1970, sob a coordenação de Mauro
Cappelletti, com o objetivo de identificar e mapear as dificuldades do acesso à justiça
a fim de propiciar os meios necessários para o alcance do mesmo.

3 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2019. Brasília: CNJ, 2019, p. 79.

205
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

3. VANTAGENS DOS GRANDES LITIGANTES

É de notável relevância a análise das vantagens auferidas pelos atores da litigância


repetitiva, frente aos litigantes eventuais, podendo ser elencadas:
a) Conhecimento e familiaridade: Por lidarem com muitas causas que
possuem as mesmas demandas e mesmos objetos ou causas de pedir, os
litigantes repetitivos adquirem experiência para lidar com tais causas,
muitas vezes chegando a antecipar o andamento de certas situações
envolvendo litígios, podendo adotar as estratégias necessárias para a
satisfação de suas demandas;
b) Organização da defesa: A partir da proximidade com a causa e o
ajuizamento de ações em cadeia, há uma maior possibilidade de preparo
para a gestão das demandas, garantindo uma sistematização dos processos
pela adoção de métodos de melhor gerenciamento;
c) Menor custo: litigantes habituais se defendem em larga escala e otimizam
as custas judiciais referentes às demandas ajuizadas que devem ser arcadas
em relação aos litigantes ocasionais. Sob esse viés, geralmente são litigantes
habituais o poder público e as grandes empresas privadas, que são dotados
de muitos recursos disponíveis;
d) Aproximação com a justiça: configura-se uma relação de proximidade
com o órgão judiciário responsável pelo andamento dos processos pela
quantidade de demandas pelas quais este é responsável. Sob esse viés,
afirma José Pimenta4:
O litigante habitual tem oportunidades de desenvolver relações
informais com os membros da instância decisora (que, embora não
sejam capazes de influenciar o conteúdo de suas decisões imparciais,
não deixam de constituir uma vantagem adicional, ao menos para lhe
permitir saber qual a melhor maneira de se conduzir ao longo dos
feitos e de argumentar da forma mais persuasiva possível, em função
de seu conhecimento das posições de cada julgador, já manifestadas
em casos similares)

e) Formação de precedentes judiciais: A litigância repetitiva leva à constituição


de precedentes favoráveis que influenciam o julgamento de casos futuros.

4 PIMENTA, José Roberto Freire. A conciliação judicial na Justiça do trabalho após a Emenda constitucional
n 24/99: aspectos de direito comparado e o novo papel do juiz do trabalho. Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 3ª Região. Belo Horizonte, v. 32, n. 62, p. 29-50, jul./dez., 2000, p. 41.

206
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Destaca-se, ainda, a relação de vantagens enumerada por Mauro Cappelletti5;


Segundo o professor Galanter, as vantagens dos habituais são
inúmeras: 1) a maior experiência com o direito possibilita-lhes melhor
planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala,
porque tem mais causas; 3) o litigante habitual tem oportunidades de
desenvolver relações informais com os membros da administração da
justiça; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por maior número de
casos; e 5) pode testar estratégias com determinados casos, de modo
a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros.

4. ESTRATÉGIAS ADOTADAS PARA CONTER A LITIGIOSIDADE


REPETITIVA

Convém, finalmente, destacar algumas das medidas adotadas pelo Poder Judiciário
a fim de controlar a litigiosidade repetitiva. Primeiramente, enfatiza-se a própria
reestruturação do Judiciário através da criação de juizados especiais e varas especializadas.
Também é importante ressaltar o estímulo à adoção de mecanismos alternativos à resolução
de conflitos, como a mediação e a conciliação. Conforme José Morais6:
Em contrapartida aos processos judiciais que, lentos, mostram-
se custosos, os litígios levados à discussão através do Instituto da
Mediação tendem a ser resolvidos em tempo muito inferior ao que
levariam se fossem debatidos em Corte tradicional, o que acaba por
acarretar uma diminuição do custo indireto, eis que, quanto mais
de alongar a pendência, maiores serão os gastos com a sua resolução.

Além disso, destacam-se técnicas de julgamento agregado de demandas, como


a instituição pelo Código de Processo Civil de 2015 do Incidente de Resolução de
Demandas Repetitivas (IRDR). Quanto a essa técnica, Daniel Amorim7 expõe que:
Nos termos do art. 976, caput, do CPC, é cabível o incidentes de
resolução de demandas repetitivas, conhecido por IRDR, quando
houver simultaneamente a efetiva repetição de processos que contenham
controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e o risco de
ofensa à isonomia e à segurança jurídica. (AMORIM, 2019, p.1491)

O IRDR é utilizado com o fito de uniformizar o julgamento de demandas


semelhantes a partir da escolha de uma causa “piloto” que será decidida de forma a
esgotar os debates argumentativos acerca de matéria de direito.

5 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet. Porto Alegre:
Fabris, 1988, p. 25.
6 MORAIS, José Luis Bolzan; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e Arbitragem: alternativas à
Jurisdição. 3. Ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 129.
7 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 11 ed. Salvador: Editora
JusPodivm, 2019, p. 1.491.

207
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Com a decisão relativa a esta demanda, vincula-se o julgamento das demais


causas semelhantes. Tal procedimento visa agilidade para casos que apresentam
mesmo fundamento, uma vez que não será mais necessário rever a matéria de direito
já analisada em sede dos institutos repetitivos.
Outrossim, em sede dos tribunais superiores, com destaque para o Superior
Tribunal de Justiça, é adotado o procedimento de recursos repetitivos, que
faculta ao relator a determinação da suspensão de processos para aplicação da tese
apreciada pelo tribunal.
Assim, conclui-se que as principais alternativas adotadas objetivando o controle
dos litigantes repetitivos são as medidas gerenciais e as técnicas de julgamento agregado
de demandas, visto que a padronização das decisões permite estendê-las ao maior
número possível de processos que se portam de modo semelhante.
Ademais, outras medidas são analisadas por análises técnicas como aplicáveis
à gestão dos litigantes repetitivos. Por exemplo, o incentivo e estruturação de
mecanismos extrajudiciais de controle e sanção contra os litigantes habituais e a
reestruturação do regime de despesas processuais a fim de desestimular a manutenção
da litigância repetitiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da visualização da problemática envolvendo a recorrência da litigância


repetitiva, buscou-se fazer uma análise da situação dos litigantes habituais dentro do
judiciário brasileiro.
Sob essa vertente, é evidente a influência de tais atores processuais no andamento
da apreciação dos litígios frente à propositura desmedida de ações semelhantes, o que
dificulta a apreciação das demandas pelo judiciário.
Nesse contexto, o estudo do panorama dos litigantes habituais se mostra de
extrema relevância para a elaboração de medidas para o controle dos mesmos, a fim
de visar a um melhor fluxo dos andamentos processuais no Brasil.

REFERÊNCIAS
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça: Trad. Ellen Grancie Northfleet.
Porto Alegre: Fabris, 1988.

208
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Os 100 maiores litigantes. Brasília: CNJ, 2012. Dis-
ponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2011/02/100_maiores_litigantes.pdf
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BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2019. Brasília: CNJ, 2019. Dispo-
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MORAIS, José Luis Bolzan; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediação e Arbitragem: alternati-
vas à Jurisdição. 3. Ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil. 11 ed. Salvador: Edi-
tora JusPodivm, 2019.

PIMENTA, José Roberto Freire. A conciliação judicial na Justiça do trabalho após a Emen-
da constitucional n 24/99: aspectos de direito comparado e o novo papel do juiz do tra-
balho. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região, Belo Horizonte, MG, v. 32,
n. 62, p. 29-50, jul./dez. 2000. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/bitstream/hand-
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d=y. Acesso em: 26 de outubro de 2019.

209
Capítulo 12
ASPECTOS GERAIS E
CONTROVERTIDOS DO
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE
INTERDIÇÃO: POR SOLUÇÕES
CRIATIVAS EM PROL
DA CELERIDADE E
DO ACESSO À JUSTIÇA
SUMÁRIO: Introdução. 1.1 Principais normas. 1.2 Teoria das Incapacidades. 1.3 Curatela
1.4 Procedimento na Interdição. 2. Inovações trazidas pelo CPC/2015. 2.1 Curatela
Repaginada. 2.2 Artigos do Código Civil revogados pelo CPC/2015 e repristinados pela
Lei nº 13.146/2015. 3. Aspectos controvertidos do Procedimento de Interdição: breves
apontamentos da práxis jurídica. 3.1 A citação do interditando. 3.2 A realização de
audiência una 3.3 É possível a Inspeção Judicial Indireta? 3.4 Da prova emprestada nos
processos previdenciários oriundos de Juízos Federais e o procedimento de revogação da
tutela. Considerações finais. Referências bibliográficas.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 12

ASPECTOS GERAIS E CONTROVERTIDOS DO PROCEDIMENTO


ESPECIAL DE INTERDIÇÃO: POR SOLUÇÕES CRIATIVAS EM PROL
DA CELERIDADE E DO ACESSO À JUSTIÇA

Bernardo Raposo Vidal1

INTRODUÇÃO

1.1. Principais Normas

Ao se tratar do procedimento de interdição é necessário ter em mente que há o


influxo, neste tema, de diversas normas e institutos do direito material.

O Código Civil (Lei nº 10.406/2002) trata dos principais objetivos da


Interdição tanto no que tange à Teoria das Incapacidades quanto da Curatela. Como
será visto, o CPC/2015 revogou a maioria das disposições previstas no Código Civil
referentes à curatela (arts. 1.767 ao 1.778), avocando para si o tratamento deste
instituto de direito assistencial (arts. 759 a 763).

Os art. 3º e 4º da Lei nº 10.406/2002 trazem as hipóteses de incapacidade


no direito civil brasileiro, cujos indivíduos que ali se enquadrarem serão legitimados
para serem interditados.

Como todo sistema normativo, o Código Civil sofre o influxo de outras normas
que lhes alteram o conteúdo, como ocorreu com o advento do Estatuto da Pessoa
com Deficiência, Lei nº 13.146/2015. Tal diploma veio regulamentar a Convenção
sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada em Nova York, em 2007, que
foi subscrita pelo Brasil e que ingressou em nosso ordenamento jurídico por meio do
Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008, que o aprovou e, posteriormente,
com a promulgação do Decreto Presidencial nº 6.949, de 25 de agosto de 2009, teve
iniciada sua vigência. A referida Convenção foi aprovada na forma do art. 5º, §3º da
Constituição Federal, alcançando, pois o status de Emenda Constitucional.

1 Mestrando em Direito pela UFC. Especialista em Direito Administrativo Empresarial pela UCAM/RJ. Juiz de
Direito no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará.

213
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Como referido, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, Lei nº 13.146/2015


teve por escopo regulamentar a Convenção de Nova York. Para tanto, promoveu im-
portantes alterações no Código Civil, impactando, sobremaneira, o procedimento da
Interdição, como por exemplo, determinar ao Juiz a realização de uma entrevista mais
detalhada com o interditando bem como orientar o uso de uma comissão multipro-
fissional em razão da necessidade de especificar-se, na sentença, os atos da vida civil
cuja incapacidade impossibilitará o interditando de atuar sozinho.

Como informado alhures, o CPC/2015, com vigência posterior à Lei nº


13.146/2015, revogou expressamente os arts. 1.768 a 1773 do Código Civil, que
tratavam da curatela.

1.2. Teoria das Incapacidades

O citado Estatuto alterou de forma substancial o tratamento relativo aos


absoluta e relativamente incapazes, previstos nos artigos 3º e 4º do Código Civil. O
objetivo foi a inclusão social das pessoas que apresentem algum tipo de deficiência.

Resultado disso foi que os absolutamente incapazes passaram a ser apenas os


menores de 16 (dezesseis) anos, não havendo mais menção aos enfermos e deficientes
mentais sem discernimento para a prática dos atos da vida civil (antigo inciso II do art. 3º).

Além disso, as pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não puderem
exprimir vontade deixaram de compor o inciso III do art. 3º, e agora constam do art.
4º, III, como relativamente incapazes.

De acordo com Cristiano Chaves de Farias


Inexiste incapacidade por conta de deficiência física, mental ou
intelectual, por si só - é certo - e isso não se põe em dúvida - que a
capacidade jurídica é a regra, sendo a incapacidade, consequentemente,
excepcional. O simples fato de uma pessoa humana ter algum tipo
de deficiência (física, mental ou intelectual), por si só, não é bastante
para caracterizar uma incapacidade jurídica. Um dos grandes méritos
do Estatuto da Pessoa com Deficiência é o absoluto desatrelamento
entre os conceitos de incapacidade civil e de deficiência. São ideias
autônomas e independentes. Uma pessoa com deficiência, em regra,
é plenamente capaz e, por outro lado, um ser humano pode ser
reputado incapaz independentemente de qualquer deficiência2.

2 FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa com Deficiência Comentado.
Salvador. 1ª edição. Editora Juspodivm, 2016.

214
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Em contraponto ao novo regramento, afirmando que há casos em que é ne-


cessária a declaração de incapacidade absoluta, menciona Flávio Tartuce
Pontue-se, mais uma vez, que o Projeto 757/2015 pretende retomar
a regra a respeito de pessoas absolutamente incapazes que não tem
qualquer condição de exprimir vontade, sem que isso tenha relação
com a deficiência, o que tem o apoio deste autor. Cite-se, a título de
exemplo, a pessoa que se encontra em coma profundo3.

Ainda dentro da teoria das incapacidades, o Estatuto veio trazer a dimensão


de que a pessoa com deficiência é plenamente capaz, especialmente para os atos
existenciais de natureza familiar.

De acordo com o art. 6º da Lei nº 13.146/2015, a deficiência não afeta a plena


capacidade civil da pessoa, inclusive para: a) casar-se e constituir união estável; b)
exercer direitos sexuais e reprodutivos; c) exercer o direito de decidir sobre o número
de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento
familiar; d) conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; e)
exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e) exercer o direito
à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade
de oportunidades com as demais pessoas.

1.3. A Curatela

Com relação ao segundo objetivo da interdição, a curatela, trata-se de instituto


de direito assistencial, para a defesa dos interesses de maiores incapazes.

O instituto da curatela completa o sistema assistencial das pessoas que não


podem, por si mesmas, reger e administrar seus bens. O referido modelo assistencial
tem por primeiro sistema “o poder familiar, em que incorrem os menores sob direção
e autoridade do pai e da mãe; o segundo é a tutela, concedida aos órfãos e aqueles
cujos pais foram destituídos do poder familiar; o terceiro é a curatela”, incidente sobre
aqueles que, “por motivos de ordem patológica ou acidental, congênita ou adquirida,
não estão em condições de dirigir a sua pessoa ou administrar os seus bens, posto que
maiores de idade”4.

3 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 8ª edição. São Paulo. Editora Método, 2018, p.1601.

4 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: Direito de Família. Atual. por Tânia da Silva Pereira. Rio de Janeiro. Forense,
2004, v. 5, p. 477 e 479.

215
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Sua regulamentação era integralmente prevista nos artigos 1.767 ao 1.778 do


Código Civil, derrogados pelo CPC/2015, que passou a tratar sobre o tema5.

Só as pessoas capazes têm a ampla aptidão para praticar os atos da vida civil.
Como os incapazes também podem ser sujeitos de relações jurídicas, a lei supre sua
incapacidade por meio da representação ou da assistência (CC, art. 120). No caso dos
filhos menores, cabe aos pais representá-los até os dezesseis anos e assisti-los após essa
idade (CC, art. 1.690, caput).

Na ausência dos pais, essa função se transfere para o tutor (CC, arts. 1.728
e 1.747, I). Assim, a tutela é atribuída pela justiça a uma pessoa adulta capaz de
responsabilizar-se e administrar bens dessas crianças e adolescentes.

Ocorre também a situação em que uma pessoa adulta é relativamente incapaz


para os atos da vida civil e condução de seus próprios interesses, em virtude de
algum vício (tóxico ou álcool), de sua prodigalidade ou em razão de alguma causa
que impede o sujeito de expressar sua vontade própria (CC, art. 1.767). Nesse caso,
possível a ação de interdição, atribuindo-se tais funções ao curador judicialmente
nomeado (CC, art. 1.774).

Material e processualmente, o múnus da curatela se equipara ao da tutela (CC,


arts. 1.774 e 1.781; CPC/2015, arts. 759 a 763), sendo que a nomeação do curador e
do tutor são procedimentos da jurisdição voluntária. Quanto à escolha do curador, é
ato que o juiz pratica, geralmente, na sentença de interdição (NCPC/2015, art. 755,
caput), podendo, contudo, conceder, provisoriamente, como tutela de urgência no
início do procedimento.

1.4. Do Procedimento de Interdição

O procedimento da Interdição está previsto nos artigos 747 ao 763 do CPC/2015.

O CPC/2015, na esteira do CPC/1973, manteve a clássica orientação de


nosso direito processual, dividindo os procedimentos especiais em dois grupos: um
de jurisdição contenciosa e outro de jurisdição voluntária6.

Apesar de a nomenclatura “jurisdição voluntária” ser criticada, não é objeti-


vo do presente trabalho expor tais críticas, até porque o próprio Código de Processo

5 Sobre a problemática da vigência da Lei 13.146/2016, que também tratou sobre a curatela, ver TARTUCE, op. cit., p.1623/1624.

6 DIDIER JR, Fredie; CABRAL, Antônio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma nova teoria dos Procedimentos Especiais: dos
procedimentos às técnicas. Salvador. Editora Juspodivm. 1ª ed. 2018, p. 22/24.

216
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Civil manteve a expressão. Portanto, remete-se o leitor à doutrina processualista clás-


sica7 para melhor compreensão do tema.

Todavia, assente-se que a doutrina, majoritariamente, entende que a interdição de


uma pessoa natural, medida extraordinária a ser adotada pelo menor tempo, se possível,
é realmente procedimento de jurisdição voluntária, não obstante o grande dissídio.

Além disso, o pronunciamento do Juiz não se destina a formar a coisa julgada entre
as partes, mas a gerar uma eficácia erga omnes, conforme melhor se explicará à frente.

A natureza jurídica da interdição – como, aliás, é característico dos


procedimentos de jurisdição voluntária – é, segundo Humberto Theodoro Jr. : “ação
constitutiva, pois visa à criação do regime de interdito. É, ainda, exemplo de ação
necessária, pois o estado do interdito somente pode ser obtido por meio de decisão
judicial”8. (...)

Segue o professor mineiro conceituando:


A ação de interdição, com efeito, é a demanda pela qual pretende
a decretação da perda ou da restrição da capacidade de uma pessoa
natural para a prática de atos da vida civil, constituindo o estado
jurídico de interdito – sujeição da pessoa natural à curatela.9

2. INOVAÇÕES DO CPC

O CPC/2015 promoveu algumas alterações no procedimento especial destinado


a promover a interdição, que serão apontadas no presente artigo. De antemão indica-
se que houve a mudança do título do Capítulo “A curatela dos interditos” (CPC/73)
para “A Interdição” (CPC/2015).

Pode-se dizer que a grande inovação do CPC/2015 foi a revogação de artigos


do Código Civil que dispunham sobre a interdição (arts. 1.768 a 1.773), ficando
quase toda a matéria tratada apenas na lei processual.

7 Dentre outros GRECO, Leonardo. Jurisdição Voluntária Moderna. Ed. Dialética. 1ª Edição. 2003; MARQUES, José Frederico. Ensaio sobre
a Jurisdição Voluntária. Ed. Millennium. 1ª Edição. 2000. O primeiro autor assim conceitua: Em perspectiva puramente descritiva, diz-se que jurisdição
voluntária é uma modalidade de atividade estatal ou judicial em que o órgão que a exerce tutela assistencialmente interesses particulares, concorrendo com o
seu conhecimento ou com a sua vontade para o nascimento, a validade ou a eficácia de um ato da vida privada, para a formação, o desenvolvimento, a
documentação ou a extinção de uma relação jurídica ou para a eficácia de uma situação fática ou jurídica. há atos da vida privada das pessoas, situações
fálicas ou relações jurídicas, que, independentemente da existência de uma lide, somente podem formar-se, modificar-se, documentar-se, extinguir-se ou
produzir efeitos com a intervenção de uma autoridade estatal. quando essa autoridade é um juiz, costuma-se qualificar o procedimento destinado a obter
o necessário pronunciamento judicial como um procedimento de jurisdição voluntária.

8 THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Volume II. São Paulo. 53ª edição. Editora Forense, 2016, p. 523.

9 Ibid., p. 523.

217
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Não foi revogado, contudo, o art. 1.767 do CC/2002, que define as pessoas
que estariam sujeitas à curatela: (I) aquelas que, por enfermidade ou deficiência men-
tal, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; (II) aqueles que,
por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade; (III) os deficientes
mentais, ébrios habituais e viciados em tóxico; (IV) os excepcionais sem completo
desenvolvimento mental; (V) os pródigos.

No tocante à interdição, foram introduzidos dispositivos destinados a resguardar


as características e potencialidades da pessoa com deficiência. Foi alterada, por exemplo,
a perspectiva de avaliação feita pelo Juiz, quanto ao estado mental do interditando,
prevista no art. 1.181 do CPC/1973. De acordo com o CPC/2015, o Juiz fará uma
entrevista, não mais interrogatório, acerca daquilo que for necessário para se convencer
quanto à incapacidade do interditando para a prática de atos da vida civil (art. 751).

Além disso, a sentença de interdição deve fixar os limites da curatela, observando


o estado e o desenvolvimento mental do interdito, bem como considerando suas
características pessoais, potencialidades, habilidades, vontades e preferências
(CPC/2015, art. 755, I e II). É a chamada “personalização da curatela”, vale dizer, é
realizado um projeto individual de curatela para cada interdito.

O CPC/2015 preocupa-se, ainda, com a reabilitação do curatelado, que


deve ser buscada pelo seu curador (art. 758). Assim, a curatela tende a ser um
procedimento protetivo extraordinário, que deverá durar apenas o período necessário
para a recuperação do interdito, se possível.

Outra questão relevante de se mencionar, ainda quanto ao CPC/2015, refere-


se à simultaneidade de sua tramitação com a do projeto que deu origem à Lei nº
13.146, de 06.07.2015, também chamado de Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Essa lei alterou significativamente as incapacidades do direito civil, o


instituto da curatela, além de criar um outro regime de proteção às pessoas com
vulnerabilidade: a tomada de decisão apoiada. Essa circunstância teve reflexos sobre
diversos dispositivos do CPC/2015.

Por outro lado, o fato de os dois projetos tramitarem ao mesmo tempo não
evitou que as duas normas contivessem disposições aparentemente conflitantes10. É
o caso dos arts. 1.768, 1.769 e 1.771 do Código Civil, os quais foram revogados pelo
CPC/2015 e tiveram sua redação modificada pela Lei nº 13.146/2015.

10 Ver o disposto na nota de rodapé nº4, supra.

218
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

2.1 Curatela Repaginada

A primeira alteração significativa refere-se ao art. 3º do Código Civil, que passa


a definir como absolutamente incapaz de exercer os atos da vida civil apenas os menores
de dezesseis anos. Foram revogadas desse artigo as disposições sobre a incapacidade
daqueles intitulados enfermos ou doentes mentais, bem como os que não conseguem
manifestar sua vontade, ainda que transitoriamente. Foram excluídos, ainda, do art.
4º, que trata das pessoas classificadas pela lei civil como incapazes relativamente a
certos atos da vida civil, os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo, e os
que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido. Incluiu-se, outrossim,
aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.

Além dessas alterações, o Estatuto declara que a deficiência não afeta a plena
capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e
à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas (art. 6º, VI, da Lei no 13.146/2015). Essa disposição tem impactos diretos no
CPC/2015, na medida em que limita a interdição aos atos patrimoniais do interdito,
alterando a sistemática do art. 757, da legislação processual. A extensão da curatela
à pessoa e aos bens do incapaz que se encontrar sob a guarda e a responsabilidade do
curatelado ao tempo da interdição passa a ser exceção e não regra.

Ao curatelado assegura-se o direito de não ser submetido à intervenção clínica


ou cirúrgica, devendo dar seu consentimento prévio, livre e esclarecido, exceto em
casos de risco de morte e de emergência em saúde, resguardado seu superior interesse
e adotadas as salvaguardas legais cabíveis (arts. 11, 12 e 13 da Lei nº 13.146/2015).

Especial atenção merece o art. 85 da Lei no 13.146/2015, que estabelece os


limites da curatela: afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza
patrimonial e negocial; ela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao
matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto (§ 1º). Ou seja,
“constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações
de sua definição, preservados os interesses do curatelado” (§ 2º). Enfim, a “definição
de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária,
proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo
possível” (art. 84, § 3º, da Lei no 13.146/2015).

Fixados os limites da curatela, a Lei nº 13.146/2015 revogou os incisos II e


IV do art. 1.767 do Código Civil, ficando dessa forma sujeitas à curatela (a) as pessoas

219
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade (inc. I);
(b) os ébrios habituais e viciados em tóxico (inc. III) e (c) os pródigos (inc. V).

De acordo com o art. 1.775-A, que foi acrescentado ao Código Civil, o juiz
poderá estabelecer curatela compartilhada a mais de uma pessoa.

Por derradeiro, a nova redação do art. 1.777 do CC tem como objetivo assegurar
ao curatelado a convivência familiar e comunitária, devendo evitar o recolhimento
em estabelecimentos que os afaste desse convívio. A redação anterior dispunha que
os interditandos seriam recolhidos em estabelecimentos adequados, quando não se
adaptarem ao convívio doméstico, o que na prática, ocasionava inúmeros abandonos
com a chancela legal. Ainda que a prática possa conter casos ilustrativos, a alteração legal
serve como vetor para que o Juiz analise e delineie melhor as obrigações da curatela.

2.3. Artigos do Código Civil revogados pelo CPC/2015 e “repristinados” pela Lei no
13.146/2015.

O art. 114 da Lei no 13.146/2015 deu nova redação ao art. 1.768 do Código
Civil, para incluir o interditando entre os legitimados a requerer a própria curatela.
Tendo em vista a revogação desse artigo pelo CPC/2015, restaria a dúvida sobre quais
as disposições estariam vigentes.

Para Fredie Didier Jr.,


a melhor solução é considerar que a revogação promovida pelo CPC
levou em consideração a redação da época, em que não aparecia a
possibilidade de autointerdição. A Lei n. 13.146/2015 claramente
quis instituir essa nova hipótese de legitimação, até então não
prevista no ordenamento – e, por isso, não pode ser considerada
como ‘revogada’ pelo CPC. O CPC não poderia revogar o que não
estava previsto11.

Segundo o autor, deve ser considerado que houve acréscimo de um inciso no


rol dos legitimados a promover a interdição: “a própria pessoa”.

Recebeu nova redação o art. 1.769 do CC, também revogado pelo CPC/2015.
Nesse caso, o artigo foi revogado em razão de a norma processual dispor que o
Ministério Público pode promover a interdição somente em caso de doença mental
grave (art. 748 do CPC/2015). A Lei nº 13.146/2015 deu nova redação ao revogado

11 DIDIER JR, Fredie. Editorial 187: Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código de Processo Civil de 2015 e Código Civil: uma primeira
reflexão. Disponível em: http://www.frediedidier.com.br. Acesso em: 20 de maio de 2020.

220
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

art. 1.769 do CC apenas para substituir a expressão “em caso de doença mental grave”
por “nos casos de deficiência mental ou intelectual”.

Humberto Theodoro Jr12 entende que não há, aparentemente, contradição


entre essa redação e o disposto no art. 748 do CPC/2015: “Trata-se, parece-nos,
apenas de técnica legislativa, optando a Lei por manter o dispositivo da lei civil e o
CPC/2015 por descrever tal comando apenas no estatuto processual.”

Outro dispositivo revogado pelo CPC/2015, o art. 1.771 do CC recebeu


nova redação para propiciar ao juiz ser assistido por equipe multidisciplinar. Esse
novo artigo guarda correlação com o § 2º do art. 751 do CPC/2015, que prevê a
possibilidade de a entrevista do interditando ser acompanhada “por especialista”.

Esclareça-se que o CPC/2015 facultou ao juiz o acompanhamento por


especialista nessa entrevista, enquanto o Estatuto da Pessoa com Deficiência
impôs esse acompanhamento, desta feita por equipe multidisciplinar englobando
mais de um especialista.

Ressalte-se que não se trata de imposição legal a ensejar a nulidade processual,


pois há que se ter cotejar a necessidade do caso concreto e as disponibilidades de
profissionais na Comarca onde tramita o processo de interdição.

O último dispositivo revogado pela legislação processual ao qual a Lei especial


deu nova redação é o art. 1.772 do CC, que dispõe sobre os requisitos da sentença
de interdição. A redação original previa que o juiz pronunciaria a interdição, fixando
os limites da curatela, “segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito”.
O CPC/2015 revogou o dispositivo, com lastro na Convenção de Nova York e
no Estatuto da Pessoa com Deficiência, por entender que a sentença de interdição
deveria ser mais atenta à pessoa do interdito, levando em consideração não apenas o
seu estado e o desenvolvimento mental, mas, também, suas características pessoais,
potencialidades, habilidades, vontades e preferências (CPC/2015, art. 755 I, e II).
Além disso, a curatela deveria ser atribuída a quem melhor pudesse atender aos
interesses do curatelado (CPC/2015, art. 755, § 1º).

A Lei nº 13.146 alterou a redação do art. 1.772 do Código Civil, porém,


adotando a mesma orientação do CPC/2015. Assim, os limites da curatela deverão
levar em conta as potencialidades da pessoa e a escolha do curador levará em conta
a vontade e as preferências do interditando, a ausência de conflito de interesses e de

12 THEODORO JR, op. cit., p. 521.

221
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

influência indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa.


Os dispositivos do CPC/2015 e do Código Civil, destarte, estão em harmonia.

3. ASPECTOS CONTROVERTIDOS DO PROCEDIMENTO DE


INTERDIÇÃO: BREVES APONTAMENTOS DA PRAXIS JURÍDICA

3.1 A citação do Interditando

Segundo Didier, “a citação é a condição de eficácia do processo em relação ao


réu (art. 312, CPC/2015) e, além disso, requisito de validade dos atos processuais que
lhe seguirem (art. 239, CPC/2015)”13.

Conforme vimos, despachada a inicial, o interditando será citado pessoalmente, não


sendo cabível a citação pelo correio (CPC/2015, art. 247, I), por edital ou por hora certa.
Se o citando estiver impossibilitado de recebê-la, observar-se-á o que dispõe o art. 245 do
CPC/2015. Em suma, tal dispositivo evoca um “mini-procedimento de interdição” como
regra específica de comunicação processual. Necessário também a sensibilidade e atenção
do Oficial de Justiça que deverá descrever minuciosamente a ocorrência.

Em se tratando de procedimento especial de jurisdição voluntária, poder-se-ia


ter como objeção a ausência do interesse em citar-se o interditando, mormente em
razão da ausência de capacidade para tal e, lado outro, economia processual, pois o
próprio autor da ação é quem pretende ser seu curador especial e, portanto, quem
deveria receber a citação representando o interditando.

A esta afirmativa pode-se contraditar de diversas formas.

Primeiro, porque a natureza jurídica da sentença na interdição é constitutiva.


Assim, enquanto não advier sua prolação, não há incapacidade e, portanto, o
indivíduo, em tese, pode ser citado.

Outro ponto importante é que, ainda que se trate de procedimento de


jurisdição voluntária, sem lide, há a possibilidade de contestação por parte do
interditando, advogando sua capacidade plena. Portanto, se houver má fé do autor
da ação, apenas a sua citação evitará aquela situação de fraude, possibilitando o
interditando de defender-se.

13 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Volume I, 17ª edição, Salvador. Editora Juspodivm, 2015, p. 611.

222
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Segundo Carlos Alberto Alvaro Oliveira:


A litigiosidade não é efeito da citação, mas da litispendência. A
citação é apenas o marco inicial, e o caráter ligitioso da coisa é post e
não propter citationem.
É evidente, portanto, que a litigiosidade não decorre nem da propositura
da demanda, nem da citação, mas exatamente do fluir da demanda,
da litispendência, em suma, perdurando, em razão disso, para além
daqueles marcos, que são apenas determinantes do seu início14.

Perceba-se que o disposto nos parágrafos do art. 245 do CPC funciona como um
“pequeno” procedimento de interdição. Tem-se inclusive possibilidade de designação
da perícia e nomeação de curador. Mas, trata-se de “incidente no curso do processo”,
lateral ao limite objetivo da demanda.

Na prática, o artigo 245 é aplicado nas citações da ação de interdição quando


o próprio oficial de justiça percebe que o interditando não possui o necessário
discernimento para compreender o que ocorre. Como, em geral, já possuem um
“curador de fato” que, usualmente, também é autor da ação e funcionará como curador
no decorrer e final do procedimento, os oficiais de justiça já citam o interditando na
pessoa do curador de fato, certificam o ocorrido e, para evitar o bis in idem, os Juízes
não aplicam o disposto nos parágrafos do art. 245. Tal medida dá celeridade, já que o
“mini-procedimento de interdição” previsto nos parágrafos do art. 245 do CPC será
desenvolvida de forma mais ampla, no decorrer do processo. Frise-se, no entanto,
que o oficial de justiça deverá fazer minucioso relato do motivo de não ter citado o
interditando, explicando a impossibilidade encontrada naquele caso concreto, sob
pena de nulidade processual por vício na citação.

Como a ação de interdição pode ser julgada improcedente, não há razão para
não citar o interditando, ressalvadas as hipóteses previstas no art. 245 do CPC.
Principalmente, levando-se em conta que pode haver litígio post citationem.

Dessarte, na prática, em respeito ao devido processo legal e ao princípio da


legalidade que guia a administração pública, o oficial de justiça deve tentar cumprir
o mandado de citação, ressalvados os casos previstos no art. 245 do CPC/2015.
No entanto, em específico na ação de interdição, o incidente regulamentado pelos
parágrafos do referido dispositivo não precisarão ser seguidos, com exceção do 1º,
pois o procedimento em curso exaurirá o desiderato legal.

14 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Alienação da coisa litigiosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 97.

223
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

3.2. A Realização de Audiência Una

Conforme explicado no subitem anterior, despachada a inicial, o interditando


será citado para comparecer à entrevista com o Magistrado.

A doutrina tem entendido que não se trata de uma faculdade, mas de um ato
processual imposto pela lei como momento necessário do procedimento de interdição,
principalmente levando em conta a sistemática do novo Estatuto da Pessoa com
Deficiência (Lei nº 13.146/2015), na qual se prevê gradação da curatela e adoção
de medidas até mais brandas do que a interdição, proporcionais “às necessidades e às
circunstâncias de cada caso” (art. 84, § 3º).

Humberto Theodoro Jr pontua: “O juiz não é um especialista, mas precisa ter


um contato pessoal com o interditando para conhecer, pelo menos, sua aparência
e suas reações exteriores, bem como suas vontades, preferências e laços familiares e
afetivos (CPC/2015, art. 751, caput)” 15.

Encerrada a entrevista, inicia-se o prazo de 15(quinze) dias para impugnar o


pedido de interdição (CPC/2015, art. 752). Tal impugnação ao pedido poderá ser
feita por advogado constituído pelo interditando ou por curador à lide, caso ele não
constitua procurador nos autos.

Se o interditando não constituir advogado ou defensor público para representá-


lo, o juiz nomeará um curador especial (NCPC, art. 752, § 2º), função que é exercida
pela Defensoria Pública (CPC/2015, art. 72, parágrafo único), para que possa
apresentar a impugnação.

Segue o professor mineiro: “essa curadoria não está relacionada à capacidade


processual do promovido e não há conexão com o fato de ele ser ou não incapacitado
para atos da vida civil. Trata-se de curador especial nomeado única e exclusivamente
pelo fato de não ter sido apresentada defesa pelo interditando.”

Caso o promovido não constitua advogado, poderá o cônjuge, companheiro ou


qualquer parente sucessível intervir no processo como assistente (CPC/2015, art. 752, § 3º).

Na visão de Didier Jr., “há, aqui, presunção legal absoluta de interesse jurídico, que
autoriza a assistência, em razão da fragilidade do promovido, tornando-se o interveniente
litisconsorte unitário do interditando, ainda que legitimado extraordinário”16.

15 THEODORO JR, op. cit., p.527.

16 DIDIER JR, Fredie. Da interdição. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo.
Ed. RT, 2015, p. 1741.

224
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O §3º do art. 751 traz hipótese de difícil ocorrência pois, em geral, os parentes
lato sensu já são os autores da ação e legitimados à curatela.

Após a impugnação ou o decurso do prazo para impugnação, realizar-se-á


perícia médica na pessoa do interditando (CPC/2015, art. 753). A definição do
especialista variará de acordo com o tipo de incapacidade que se pretende reconhecer.

A perícia médica segue o procedimento comum da prova pericial (CPC/2015,


arts. 464 a 480). Poderá ser realizada ex officio.

O laudo produzido deverá especificar, se for o caso, os atos para os quais haverá
necessidade de curatela (CPC/2015, art. 753, § 2º), pois a incapacidade só poderá ser
decretada em relação aos direitos de natureza patrimonial e negocial, ex vi art. 85 da
Lei nº 13.146/2015.

Em situações especiais, pode o juiz dispensar a prova pericial, nos termos


definidos pelo art. 472 do CPC/2015, substituindo-a por parecer técnico, desde que
não impugnado pelos interessados ou pelo Ministério Público.

Após o laudo, serão produzidas outras provas e colhidos os depoimentos dos


interessados (CPC/2015, art. 754). Essa instrução complementar “deve restringir- se
à segunda perícia, caso o juiz não aceite a primeira, ou a colheita de prova oral que
sirva para esclarecer os limites da curatela e a gradação da interdição ou para auxiliar
o perito na elaboração do seu laudo”.

Se não há quesitos complementares e os interessados dispensam quaisquer


esclarecimentos sobre o laudo e não requerem oitiva de testemunhas, o juiz pode,
desde logo, julgar a causa com base na perícia e nos depoimentos pessoais colhidos.
O julgamento conforme o estado do processo é também aplicável à interdição.

Fez-se necessário explicar todas as etapas e provas previstas no procedimento


de interdição para que fique mais fácil advogar a tese de audiência una, assentada em
que se concentrará toda a prova testemunhal.

Portanto, o Juiz ao receber a inicial, já poderia determinar, de antemão,


a concentração probatória em apenas uma audiência. Assim procedendo-se, dá-se
eficiência e celeridade ao processo, sem que com isso seja desrespeitado qualquer
direito do interditando.

Importante frisar que, caso haja na contestação pedido para reabertura da


instrução probatória, desde que apresentadas novas testemunhas com a necessária

225
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

justificativa para tal, poderá o Juiz designar nova audiência para sua produção.
Entretanto, não é o que ocorre na maioria dos casos, mantendo-se hígida a proposta
de maior celeridade disposta no modelo de despacho supra.

3.3. A inspeção judicial indireta é possível?

É relativamente comum a impossibilidade de deslocamento do interditando


para a realização da entrevista no fórum. Em casos tais, a lei possibilita ao Juiz a ida
à residência do interditando ou a outro local em que se encontre (CPC/2015, art.
751, § 1º). O juiz poderá colher depoimentos de parentes e de pessoas próximas ao
interditando (§ 4º), com o objetivo de reforçar seu convencimento sobre a existência
de “lastro probatório mínimo para prosseguimento da ação de interdição e, se for o
caso, a designação de um curador provisório”.

A entrevista será reduzida a termo (CPC/2015, art. 751, caput, in fine) ou,
como ocorre na maioria das Comarcas do Estado do Ceará, através de gravação
audiovisual.

Esse é o procedimento padrão, que ocorre na maioria das vezes. Contudo,


diversas vezes após a intimação da parte requerida para comparecer à audiência cuja
finalidade é a sua entrevista, constata-se, com a juntada do mandado com a certidão
do oficial de justiça ou, através de contato na audiência com a promovente no dia
da audiência, que o interditando será incapaz de deslocar-se para o ato. Para tal, são
anexados aos autos, por exemplo, atestados médicos, fotos, vídeos ou depoimentos de
testemunhas intimadas para o ato.

Em tais casos, o CPC/2015, o §1º do art. 751 traz resposta para essas situações:
“§ 1º: Não podendo o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver.”
Trata-se da inspeção judicial.

A inspeção judicial, na forma do art. 481 do CPC, é meio de prova consistente


na percepção pessoal do magistrado, objetivando esclarecer sobre os fatos que
interessem à decisão da causa.

Acerca do tema, o professor Fredie Didier Jr.17 assevera:


“A doutrina costuma dividir a inspeção judicial em direta ou indireta.
Será direta quando feita pelo próprio juiz. Será indireta quando perito
assistir o magistrado no exame da pessoa ou coisa. Esse perito que

17 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Salvador. Editora JusPodium, 2015, Vol. 2, p.300.

226
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

assiste o juiz na inspeção submete-se às regras gerais de impedimento


e suspeição, como qualquer outro perito (art. 148, II, CPC).”

Considerando-se questões variadas como o grande acervo processual, a escassez


de suporte material como viaturas ou de tempo livre do Magistrado, em geral,
quando não for uma residência localizada próxima ao Fórum, resta inviabilizado
o deslocamento do Juiz e do Promotor até a residência do interditando, para dar
cumprimento ao que dispõe o art. 754 do Código de Processo Civil.

Fredie Didier faz interessantes ponderações sobre a natureza jurídica do


instituto e sua absoluta irrelevância para o convencimento do magistrado:
Parece que à denominada inspeção judicial indireta falta um elemento
nuclear do conceito de inspeção: o exame pessoal feito pelo Juiz.
Assim, consideramo-la uma perícia, embora realizada na presença do
magistrado, não vendo utilidade na distinção.
Há quem diga, contudo, que só há perícia se forem cumpridas as
formalidades de uma prova pericial (com laudo, formulação de
quesitos, prestação de esclarecimentos, etc.), do contrário será uma
inspeção indireta.
Não há utilidade nessa diferenciação, pois a perícia simplificada,
por exemplo, não deixa de ser perícia por não pressupor a
observância das formalidades previstas para a prova pericial.
A inspeção indireta confunde-se, na verdade, com uma perícia
simplificada, na medida em que se produz com a simples presença
e inquirição do perito sobre a coisa ou pessoa que observa junto
ao juiz (art. 464, §3º, CPC/2015). A diferença é que a diligência
pode não ocorrer em mesa de audiência, na sede do juízo,
mas, sim, no local onde se encontre a fonte de prova (art. 483,
CPC/2015).

Em casos tais, é possível que a entrevista seja substituída por inspeção judicial
indireta realizada por Oficial de Justiça. Este auxiliar do juízo procederá à entrevista
do interditando, em sua residência, e lavrará certidão contendo as respostas relativas
a questionamentos montados de acordo com o caso concreto. Por exemplo, em caso
de deficiência mental grave, o Oficial de Justiça poderá indagar:1) Qual seu nome?;
2) Quantos anos você tem?; 3) Diga-me o nome de parentes próximos; 4) O(A) se-
nhor(a) consegue ir sozinho(a) ao mercado fazer compras? 5) Está impossibilitado de
se locomover há quanto tempo? 6) O(A) senhor(a) recebe aposentadoria ou pensão
do INSS? Se sim, quem vai ao banco receber o benefício para o(a) senhor(a)? 7) O
(A) senhor(a) sabe quem é o presidente do Brasil e quem é o prefeito da cidade? 8) O
(A) autor(a) da ação de interdição ou o curador(a) lhe trata bem? O que ela(e) lhe dá

227
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

para comer? Ela(e) te leva ao médico? 9) Outras perguntas que, dentro do contexto da
ação, o Oficial de Justiça reportar relevante sobre o estado de saúde do interditando.

É possível, ainda, o uso de tecnologias como a filmagem da inspeção judicial


indireta com aparelho celular e posterior juntada aos autos, com a decretação do
segredo de justiça para evitar a exposição do incapaz.

Conclui-se, portanto, que não há inviabilidade legal para o uso de tal medida
criativa por parte dos Juízes efetivamente impedidos pelos fatores de carestia de recursos.

3.4. Da prova emprestada nos processos previdenciários oriundos de Juízos Federais


e o procedimento de revogação da curatela

É a regra, ao menos, em comarcas do interior do Estado do Ceará que a ação


de Interdição venha como consequência da procedência de processo previdenciário
tramitado na Justiça Federal em que se concedeu aposentadoria por invalidez ou
benefício de prestação continuado (BPC/LOAS) a determinado indivíduo.

Posteriormente, em razão de exigência do INSS, os legitimados e futuros


curadores, ajuízam ação de interdição c/c pedido de curatela para que possam gerir os
recursos dos aposentados/beneficiários, em razão de incapacidades intrínsecas e variadas.

Em muitos casos, as iniciais já vêm com o laudo da perícia realizada no juízo


federal e com pedido de uso de prova emprestada no juízo estadual.

Neste ponto, é necessário trazer balizas doutrinárias e jurisprudenciais sobre


prova emprestada, coisa julgada na ação de interdição e a cláusula rebus sic stantibus.

Eduardo Talamini, em obra icônica, assim define o conceito de prova emprestada:


A prova emprestada consiste no transporte de produção probatória de
um processo para outro. É o aproveitamento da atividade probatória
anteriormente desenvolvida, através do traslado dos elementos que a
documentaram18.

O art. 372 do CPC/2015 prevê, expressamente, a prova emprestada -


diferentemente do CPC/1973, em que pese ter sido amplamente aceita pela doutrina
e pelos tribunais como prova atípica.

18 TALAMINI, Eduardo. “A prova emprestada no processo civil ou penal”. Revista de Processo. São Paulo. RT,
1998.

228
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Portanto, qualquer meio de prova pode ser utilizado: depoimento, exame


pericial, confissão e inspeção judicial.

O Superior Tribunal de Justiça, em julgado sobre o tema, assentou a tese de


que , “é possível importar a prova produzida em qualquer espécie de processo:
19

penal, cível, trabalhista, arbitral e administrativo. O processo de origem pode ser


estrangeiro, inclusive.”

Há, todavia, que se ressalvar a necessidade de observação do princípio


contraditório. Em outras palavras, somente é lícita a importação de uma prova para
ser utilizada contra quem tenha participado do processo em foi produzida.

De acordo com Eduardo Talamini, a prova emprestada pode ser determinada


ex officio pelo Juiz, tendo em vista o seu poder instrutório.

Além do princípio do contraditório, necessário firmar balizas sobre a natureza


jurídica da sentença no procedimento de interdição.

Da sentença de interdição devem constar as razões e motivações da curatela,


preservados os interesses do curatelado (Lei nº 13.146/2015, art. 85, §2º).

Em se tratando de curatela de pessoa com deficiência, a limitação do curatelado


deve ser proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o
menor tempo possível (Lei nº 13.146/2015, art. 84, § 3º).

Decretada a interdição (CPC/2015, art. 755 ), na sentença o juiz: (a) nomeará


o curador do incapaz que poderá ser o requerente da interdição (inc. I);(b) fixará
os limites da curatela, segundo o estado e o desenvolvimento mental do interdito,
bem como considerando suas características pessoais, potencialidades, habilidades,
vontades e preferências (incs. I, in fine, e II);(c) fixará os atos que o interdito poderá
praticar, não sendo a interdição total (art. 755, § 3º, in fine).

Pode-se depreender, portanto, que o juiz elaborará um projeto individual


de curatela, atendendo às necessidades do interdito, para abranger apenas e tão
somente os atos para os quais efetivamente está impossibilitado de praticar sozinho,
respeitando a sua dignidade.

Como as incapacidade podem variar, inclusive há chances de reversão do


quadro fático, entende-se que a sentença prolatada na interdição, por regular relações

19 BRASIL, STJ, 2.ª T., RMS 33628/PE, rel. Humberto Martins, Segunda Turma, j. em 02.04.2013, publicado no
DJe de 12.04.2013.

229
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

jurídicas permanentes e sucessivas, contém a cláusula rebus sic stantibus, ou seja,


havendo modificação superveniente no estado de fato ou de direito, é lícito rever o
quanto se decidiu. Assim dispõe o art. 505, I do CPC/2015 e, na doutrina, lições de
anos trazidas por Pontes de Miranda20:
Modificando-se os fatos que dão ensejo à relação jurídica de trato
continuado (e o próprio direito) e que legitimam o pedido de uma
tutela jurisdicional, tem-se a possibilidade de propositura de uma nova
ação, com elementos distintos (nova causa de pedir e novo pedido),
a chamada ação de revisão ou ação de modificação. A coisa julgada
não pode impedir a rediscussão do tema por fatos supervenientes
ao trânsito em julgado (a eficácia preclusiva só atinge aquilo que foi
deduzido ou poderia ter sido deduzido pela parte à época da decisão).
A modificabilidade da decisão é decorrente da peculiar relação
jurídica de direito material que ela certificou; é o direito material
certificado que traz consigo a marca da modificabilidade, já que seus
pressupostos são suscetíveis de variações no tempo.

Cite-se como exemplo a ação de revisão da curatela, que tem rito próprio
previsto no CPC/2015. Cessada sua causa (CPC/2015, art. 756), o próprio interdito
poderá requerer seu levantamento. Poderão ainda requerer o levantamento da curatela
o curador e o Ministério Público (§ 1º).

O requerimento será autuado em apenso aos autos da interdição (§ 1º). O


curador e o órgão do Ministério Público deverão ser ouvidos.

O exame pessoal pelo juiz, na entrevista, e a perícia são necessários (§ 2º).

Se houver necessidade, realizar-se-á audiência de instrução e julgamento.

De acordo com Humberto Theodoro Jr21,


A sentença que acolhe o pedido de levantamento de interdição é
constitutiva, porque desconstitui o efeito da sentença anterior. Os
efeitos, todavia, não são imediatos: dependem de trânsito em julgado
(art. 756, § 3º).

Só após a coisa julgada, haverá a publicação de editais e somente após o prazo


dos editais é que será a sentença averbada no Registro Civil.

A interdição poderá ser levantada parcialmente quando demonstrada a


capacidade do interdito para prática de alguns atos da vida civil (art. 756, § 4º).

20 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t. V, p.147.

21 THEODORO JR, op. cit., p. 531.

230
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Do exposto, conclui-se ser possível o uso, no juízo estadual, de prova empres-


tada dos processos tramitados nos Juizados ou Varas Federais, desde que não tenha
havido longo período entre a perícia realizada naquele juízo e a data do ajuizamento
da ação na esfera Estadual. Isso porque a sentença na interdição é marcada pela cláu-
sula rebus sic stantibus e, a depender da natureza da incapacidade decidida na sentença
e sua reversibilidade intrínseca, pode haver a necessidade de nova perícia para definir
se aquela incapacidade foi superada e, por conseguinte, proceder-se ao levantamento
da interdição, ainda que parcial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Objetivou-se com o presente artigo trazer a lume as principais alterações


realizadas pelo novo CPC assim como pela Lei nº 13.146/2016, no procedimento da
Interdição e em suas normas materiais.

Outrossim, foram apresentadas questões práticas e de certo modo controvertidas


verificadas no cotidiano forense, sobre variadas etapas do procedimento da interdição,
relevantes para os que militam na área.

Com relação à adequação das alterações sugeridas neste artigo, que objetivam
dar celeridade e promover acesso à justiça a maior número de indivíduos, urge suscitar
prerrogativa judicial própria dos procedimentos especiais de jurisdição voluntária,
portanto aplicável à Interdição: o juízo de equidade, previsto no parágrafo único do
art. 723 do CPC: O juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo
adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna.

Sobre o tema Daniel Amorim Assumpção Neves22:


Segundo previsão expressa do art. 723, parágrafo único, do Novo CPC,
o juiz não é obrigado a observar o critério da legalidade estrita, podendo
adotar em cada caso concreto a solução que reputar mais conveniente
ou oportuna. A doutrina entende que tal dispositivo consagra a
possibilidade de o juiz se valer de um juízo de equidade na solução
das demandas de jurisdição voluntária, reconhecendo-se a presença de
certa discricionariedade do juiz. (…) O dispositivo legal ora analisado
é suficientemente claro ao afastar o juízo de legalidade estrita, dando ao
juiz discricionariedade para resolver a demanda da forma mais oportuna
e conveniente, ainda que contrariamente à lei, sempre observando o que
será melhor para as partes e para o bem comum.

22 NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. Salvador. 2ª edição. Editora JusPodivm, 2016, p.1141.

231
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Portanto, se o juízo de equidade pode ser utilizado para solucionar o caso


concreto, com mais razão poderá ser invocado para flexibilizar normas processuais.

Frise-se, por derradeiro, que tramitou no Senado o Projeto de Lei 757/201523,


estando atualmente na Câmara dos Deputados. O referido projeto de lei busca, em
resumo, trazer balizas para assuntos que não foram abordados, seja pelo CPC/2015
seja pela Lei 13.146/2016, além de unificar as normas sobre o tema. Importante,
portanto, o seu acompanhamento por aqueles que se dedicam ao tema.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, STJ, 2.ª T., RMS 33628/PE, rel. Humberto Martins, Segunda Turma, j. em 02.04.2013,
publicado no DJe de 12.04.2013

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Volume II, 10ª edição. Editora Juspo-
divm, 2015.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil - Volume I, 17ª edição, Salvador. Editora
Juspodivm, 2015.

DIDIER JR, Fredie. Editorial 187: Estatuto da Pessoa com Deficiência, Código de Processo
Civil de 2015 e Código Civil: uma primeira reflexão. Disponível em: http://www.frediedidier.
com.br. Acesso em: 20 de maio de 2020.

DIDIER JR, Fredie. Da interdição. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. Breves comentários
ao novo Código de Processo Civil. São Paulo. Ed. RT, 2015, p. 1741

DIDIER JR, Fredie; CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Por uma
nova teoria dos Procedimentos Especiais: dos procedimentos às técnicas. Salvador. Ed. Jus-
podivm, 2018.

FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da
Pessoa com Deficiência Comentado. Salvador. 1ª edição. Editora Juspodivm, 2016.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3ª


edição. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t. V

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo.
Salvador. 2ª edição. Editora JusPodivm, 2016.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. Alienação da coisa litigiosa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
1986

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família. Atual. por Tânia da
Silva Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 5, p. 477 e 479.

23 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/124251, consultado em 20/05/2020.

232
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte especial.


Direito de Família. Direito parental. Direito protectivo. Atual. por Rosa Maria de Andrade
Nery. São Paulo: Ed. RT, 2012, t. IX, p. 425.

TALAMINI, Eduardo. “A prova emprestada no processo civil ou penal”. Revista de Processo.


São Paulo. RT, 1998

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 8ª edição. São Paulo. Editora Método, 2018.

THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Volume II. São Paulo. 53ª
edição. Editora Forense, 2016.

233
Capítulo 13
HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS
À DEFENSORIA PÚBLICA EM
CAUSAS CONTRA O ESTADO:
A QUESTÃO DA CONFUSÃO
PATRIMONIAL
SUMÁRIO: Introdução. 1. Garantia constitucional do Acesso à Justiça e o papel da
Defensoria Pública. 2. Confusão patrimonial em cobrança de honorários sucumbenciais
contra a União na visão do STJ. 3. Reanálise do tema pelo STF sob o prisma constitucional.
4. Destinação da verba sucumbencial. Considerações finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 13

HONORÁRIOS SUCUMBENCIAIS À DEFENSORIA PÚBLICA


EM CAUSAS CONTRA O ESTADO: A QUESTÃO DA CONFUSÃO
PATRIMONIAL

 Ana Laura Beserra Lima Moura1

INTRODUÇÃO

Ao afastar a possibilidade de autotutela e chamar para si a responsabilidade da


jurisdição e resolução de conflitos, o Estado obriga-se a garantir o acesso de todos à
justiça. Nesse intento, a Defensoria Pública surge como uma entidade federal com au-
tonomia e função de prestar ampla assistência jurídica aos cidadãos hipossuficientes.
Desde a Constituição Federal de 1934 e o Código de Processo Civil de 1939,
a expressão “assistência judiciária” surgiu no direito pátrio. Ela trouxe destaque ao
assunto para imputar ao Estado a prestação dessa assistência aos necessitados, bem
como para obrigar a criação de órgãos essenciais para esse fim. Assim, instituiu a justi-
ça gratuita e o acesso à justiça. Entretanto, apesar da previsão constitucional indicar a
estatização de um serviço da assistência judiciária gratuita, o envolvimento do Estado
na prestação desse serviço resumia-se à indicação de um advogado que deveria atuar
pro bono, ou seja, voluntariamente para aqueles cidadãos que não tivessem condições
de contratar um profissional2.
Assim, no mesmo sentido, positivou a Constituição Federal de 1946, até ser
criada, em 1950, a Lei 1.060 (Lei de assistência judiciária) que menciona expressa-
mente que o serviço de assistência judiciária passaria a ser organizado e mantido pelo
Estado. Isso confirma o dever estatal de formatar uma instituição pública responsável
por garantir a assistência judiciária àqueles hipossuficientes.
Essa mudança não excluiu, entretanto, completamente o patrocínio da cau-
sa através de advogado indicado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou
pelo juízo competente. E isso porque, não havendo serviço de assistência judiciária
mantido pelo Estado no local, a indicação de Defensor cabe à OAB, por suas seções

1 Estudante no 6º semestre de graduação em Direito na Universidade Federal do Ceará. Estagiária na Defensoria


Pública da União no Ceará desde 2018. Pesquisadora no Centro de Estudos de Direito Constitucional (CEDIC).
2 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Direito à Assistência Jurídica: Evolução no ordenamento brasileiro de
nosso tempo. Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, n.3, ano VI, Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 199.

237
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

estaduais, ou subseções municipais e, na falta de subseções da OAB, o próprio juiz


nomeia um advogado para patrocinar a causa do necessitado.
A partir de então, coube aos Estados-membros a criação de órgãos governa-
mentais específicos para a prestação da assistência jurídica, com destaque para a Cons-
tituição estadual de 1975 do Rio de Janeiro que foi usada como base à concretização
da matéria na Constituição Federal de 1988. Após, a Defensoria Pública inseriu-se na
Constituição federal de 1988 junto ao Capítulo IV - das Funções Essenciais à Justiça
- de modo semelhante ao Ministério Público, à Advocacia Pública e à Advocacia.
Cumpre observar que a Constituição atual, ao organizar esses institutos fun-
damentais à justiça, não se limitou às descentralizações tradicionais entre os Poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário. Instituiu, então, entidades dotadas de autonomia
que, embora não constituam um quarto Poder, recebem a função essencial de prove-
doria da justiça perante todos os demais Poderes de Estado.
Frente a essa autonomia, conquistada diante da positivação da matéria na Lei
1.060, na Constituição federal de 1988, na Lei Complementar 80 e entre outras
Emendas Constitucionais, a Defensoria Pública da União passou a organizar-se
autonomamente. Por consequência, tomou a iniciativa de requerer honorários su-
cumbenciais mesmo em causas em que a União litiga no polo contrário, entenden-
do não haver qualquer confusão patrimonial, pois a submissão da Defensoria ao
Executivo estaria quebrada.
Os valores se destinariam a um Fundo de Aperfeiçoamento Profissional da
Defensoria Pública da União (FUNADP). Isso tinha como objetivo a garantia de
recursos orçamentários obrigatórios para investimentos no aparelhamento da De-
fensoria e a capacitação profissional de seus integrantes, proposto pelo Projeto de Lei
Complementar 331/2002. 
O Superior Tribunal de Justiça já se posicionou acerca do assunto em julga-
mento repetitivo que resultou na criação da Súmula 421. Todavia, a matéria não foi
encerrada, tendo em vista a reanálise pelo Supremo Tribunal Federal ao ser identifica-
do interesse constitucional no tema.
Assim, diante da importância inquestionável da Defensoria Pública à efetiva-
ção do acesso à justiça e, tendo em vista a destinação da verba pública de maneira a
respeitar os princípios administrativos previstos na Constituição, além da considerá-
vel quantidade de ações que envolvem exatamente os sujeitos em questão, o presente
trabalho abordará esse tema.

238
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Ele foi desenvolvido mediante consulta a outros artigos científicos, jurispru-


dência, doutrinas e legislações pátria. Busca-se realizar uma análise sobre a possibi-
lidade - ou não - da fixação de honorários sucumbenciais à Defensoria Pública em
causas contra o Estado em face do argumento de confusão patrimonial.

1. GARANTIA CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA E O PAPEL DA


DEFENSORIA PÚBLICA

Como já mencionado, junto ao monopólio da jurisdição em detrimento da


autotutela, o Estado assume para si a obrigação de garantir o acesso de seus cidadãos à
justiça. Esse dever desenvolveu-se, ao longo de uma evolução histórica, diante da neces-
sidade social e, em razão de sua importância, foi adicionado à Constituição de 1988. 
A atual Constituição Federal informa a garantia do acesso à justiça, também de-
nominada de princípio da inafastabilidade da jurisdição, em seu art. 5º, inciso XXXV.
Além dela, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos de São José da
Costa Rica, da qual o Brasil é signatário, instrui - em seu art. 8º - que todas as pessoas
têm o direito de ser ouvidas por juízo competente, independente e imparcial, com as
devidas garantias e em prazo razoável. E isso na apuração de qualquer acusação penal
contra ela ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de qualquer natureza.
Assim, o direito de acesso à justiça ultrapassa uma garantia constitucional,
ganhando status de Direito Humano, revelando a imensidade de sua importância.
Dessa maneira também interpreta Mauro Cappelletti e Bryant Garth3 ao entender
o acesso à justiça como requisito fundamental, o mais básico dos direitos humanos,
de um sistema jurídico moderno e igualitário que deseja, não só proclamar, mas
garantir os direitos de todos.
Para Uadi Lammêgo Bulos4, a finalidade da garantia constitucional do aces-
so à justiça é “difundir a mensagem de que todo homem, independente de raça, cre-
do, condição econômica, posição política ou social, tem o direito de ser ouvido por
um tribunal independente e imparcial, na defesa de seu patrimônio ou liberdade.”
Ou seja, a extensão do acesso à justiça não se limita meramente à atuação processual,
mas compreende toda a expressão e instrumento do regime democrático.
Nesse viés, a Defensoria Pública surge, em âmbito federal, com a Consti-
tuição de 1988, oferecendo a prestação de um serviço jurídico, público e gratuito

3 CAPPELLETTI, Mauro e Garth, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988.
4 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 482.

239
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

à parcela necessitada da população, sendo definida como instituição permanente e


essencial à função jurisdicional. Assim, atua na orientação jurídica, na promoção dos
Direitos Humanos e na defesa, em todos os graus de jurisdição, tanto judicial quanto
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos. E isso ela realiza de forma integral e
gratuita aos hipossuficientes - seja em razão de idade, gênero, estado físico e mental,
seja por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas, culturais -, os quais encontram
especiais dificuldades em executar com plenitude, perante o sistema de justiça na-
cional, os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico. Essas atribuições são,
portanto, próprias do Estado Social de Direito.

Destaca-se que, segundo Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini


Grinover e Cândido Ragel Dinamarco5, a função da Defensoria não se limita ao
âmbito judiciário, daí a escolha da expressão “assistência jurídica” escolhida pelo
legislador. Dessa forma, são incluídas outras demandas ao serviço das Defensorias
Públicas, como o patrocínio e a orientação em sede extrajudicial, a advocacia pre-
ventiva ou a legitimidade para propor ações civis públicas, incluindo-se ao sistema
da tutela jurisdicional coletiva.
É importante observar que uma entidade tão importante à população deve ter sua
autonomia garantida, tendo em vista o necessário afastamento dos Poderes do Estado para
assegurar a eficiente prestação do serviço, desentranhada de qualquer amarra de supressão.
Essa autonomia funcional, administrativa e com iniciativa própria de proposta
orçamentária, é protegida pelo §2º do art. 134 da Constituição Federal e ganhou maior
materialização com a Lei Complementar nº 80 de 1994 (Lei da Defensoria Pública).
Também é diante dessa autonomia que surge o núcleo básico do presente tra-
balho, pois se questiona exatamente se essa independência seria suficiente para permi-
tir a cobrança de honorários sucumbenciais em favor da Defensoria nos casos em que
a União é parte contrária; ou se, diante da origem administrativa da Defensoria e por
ela ser mantida por orçamento público federal, haveria uma confusão patrimonial.

2. CONFUSÃO PATRIMONIAL EM COBRANÇA DE HONORÁRIOS


SUCUMBENCIAIS CONTRA A UNIÃO NA VISÃO DO STJ

A Lei Complementar nº 80/1994 prevê que são devidos honorários advoca-


tícios em favor da Defensoria Pública mesmo que a parte sucumbente seja um ente

5 GRINOVER, Ada Pellegrini.; CINTRA, A. C. DE A.; DINAMARCO, C. R. Teoria geral do processo. 31


ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 257.

240
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

público. Apesar da escolha do legislador, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou,


pela Súmula 421, o entendimento que é impossível esse pagamento de honorários,
pois se estaria diante de uma confusão patrimonial.
Nesse raciocínio, de acordo ao Código Civil de 2002, há confusão patrimo-
nial quando, na mesma obrigação, se reúnem credor e devedor na mesma pessoa.
Assim, segundo o STJ, nos casos em que a Fazenda Pública fosse condenada ao paga-
mento de sucumbência em favor da Defensoria Pública, estaria pagando a si mesma.
E isso porque o orçamento desta entidade é oriundo do ente público, ou seja, a fonte
dos recursos é o mesmo, o Governo Federal.
Dentre os julgados que levaram à fixação do entendimento sumulado, desta-
ca-se o Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.108.013-RJ (2008/0277950-6),
julgado em 03 de junho de 2009, cuja relatora foi a Ministra Eliana Calmon:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL SUBMETIDO À
SISTEMÁTICA PREVISTA NO ART. 543-C DO CPC. HONO-
RÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DEFENSORIA PÚBLICA. CÓ-
DIGO CIVIL, ART. 381 (CONFUSÃO). PRESSUPOSTOS. 1.
Segundo noção clássica do direito das obrigações, ocorre confusão
quando uma mesma pessoa reúne as qualidades de credor e deve-
dor. 2. Em tal hipótese, por incompatibilidade lógica e expressa
previsão legal extingue-se a obrigação. 3. Com base nessa premis-
sa, a jurisprudência desta Corte tem assentado o entendimento de
que não são devidos honorários advocatícios à Defensoria Pública
quando atua contra a pessoa jurídica de direito público da qual é
parte integrante. 4. A contrario sensu, reconhece-se o direito ao
recebimento dos honorários advocatícios se a atuação se dá em face
de ente federativo diverso, como, por exemplo, quando a Defen-
soria Pública Estadual atua contra Município. 5. Recurso especial
provido. Acórdão sujeito à sistemática prevista no art. 543-C do
CPC e à Resolução n. 8/2008-STJ.6

Em seu voto, a relatora defende que, ao ser instituída a Defensoria Pública,


o texto constitucional intui ser ela, o Distrito Federal, os Territórios e os Estados, se-
gundo o Direito Administrativo, órgãos desses entes da Federação.
Com isso, na relação jurídica processual contra o poder público ou por ele

6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.108.013/RJ. Relatora: Eliana Calmon. STJ
Revista Súmulas 2014. Brasília, 2009.

241
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

iniciada, e que há no polo contrário um cidadão juridicamente necessitado, represen-


tado pela Defensoria Pública, surge o cenário propício ao aparecimento da confusão,
no que toca aos honorários advocatícios, a depender da sucumbência.
Entretanto, ainda segundo a Ministra, sendo a Defensoria Pública integran-
te de pessoa jurídica de direito público diversa daquela contra qual litiga, não haverá
confusão entre credor e devedor, como, por exemplo, quando a Defensoria Pública do
Estado atua contra Município ou a da União contra Estado Membro e assim por diante.
Portanto, como assevera Manoel Ignácio Carvalho de Mendonça7, sobre o
direito de crédito:
Pressupõe essencialmente um sujeito ativo e outro passivo em pes-
soas distintas, das quais uma exerça o direito e a outra seja obrigada
a uma prestação. Ora, é inconcebível que essa relação possa subsistir
quando desaparece a dualidade fundamental dos sujeitos. Ela deixa
necessariamente de ser possível; estabelece-se um conflito, uma con-
tradição jurídica entre o poder e o dever, por se acharem reunidos em
um só indivíduo, pois que ninguém pode ser obrigado a si próprio.

A confusão resulta, desse modo, na extinção da obrigação e, para sua ca-


racterização, segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, é necessária
a presença de alguns requisitos: a unidade da relação obrigacional, pressupondo a
existência de uma mesma obrigação; a identificação na mesma pessoa das qualidades
de credora e devedora; e a reunião efetiva de patrimônios, e não apenas de acervos ou
expectativas de direitos8.
Logo, observa-se que, para que haja a confusão, é obrigatória a identificação
de credor e devedor na mesma pessoa e, ainda, a reunião patrimonial. Nesse contexto,
mostra-se evidente pelo exposto anteriormente que, considerando a autonomia ins-
titucional da Defensoria Pública, são descaracterizadas: a identificação pessoal, tendo
em vista que Poder Executivo e Defensoria Pública são pessoas jurídicas distintas, não
fazendo a segunda parte da administração direta ou indireta da primeira; e a reunião
do patrimônio, já que a Defensoria possui orçamento próprio e destinação específica
dos honorários, ou seja, a verba não faz parte do patrimônio do Poder Executivo ou
de qualquer outro Poder constituído.
É importante destacar, entretanto, que os precedentes embasadores da Sú-
7 MENDONÇA, Manoel Ignácio Carvalho de. Doutrina e prática das obrigações. 4. ed. t. I. Rio de Janeiro:
Forense, 1956, p. 682.
8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. v. 2. 9. ed. rev.,
ampl. e atual. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015, p. 469.

242
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

mula 421 – que se fundam na tese da confusão, ou seja, de que a Defensoria Pública
é parte do Estado e que com ele se confunde - foram firmados quando a Defensoria
Pública Federal era vinculada à administração direta da União.
Todavia, desde a Emenda Constitucional 74/2013 que incluiu o § 3º ao art.
134 da Constituição Federal, a Defensoria ganhou ampla independência para atua-
ção, inclusive com autonomia de patrimônio e orçamento, passando a ser tratada
como pessoa jurídica distinta da administração direta.
Nesse sentido, o Defensor Público Geral Federal tem a liberdade para ela-
borar proposta orçamentária, desde que dentro dos limites estabelecidos na Lei de
Diretrizes Orçamentárias, podendo administrar os recursos que foram destinados à
Defensoria autonomamente.
Ademais, a Lei Complementar 80/94 delega a função de executar e rece-
ber verbas sucumbenciais decorrentes da atuação da Defensoria Pública – inclusive,
quando devidas por entes públicos, considera esses entes somente como entes fede-
rados distintos - faz uma interpretação restritiva e desarrazoada do dispositivo de lei.
De modo semelhante, posicionou-se o Ministro Teori Albino Zavascki no
Recurso Especial nº 1.199.715 - RJ (2010/0121865-0), divergindo da fundamenta-
ção da referida Súmula:
Todos os precedentes da Súmula estão baseados na tese da confusão,
ou seja, a Defensoria Pública Estadual é parte do Estado e com ele
se confunde, razão pela qual não tem sentido o Estado pagar à De-
fensoria. Opera-se entre eles o fenômeno da confusão O caso concre-
to, todavia, é completamente diferente. A Defensoria não pertence à
Autarquia. Estamos, aqui, a questionar sobre confusão em relação à
Autarquia Previdenciária Estadual. Ora, a Autarquia Previdenciária é
uma pessoa jurídica diferente, tem personalidade própria, patrimô-
nio próprio, receita própria, de modo que não há confusão possível
entre ela e a Defensoria. O Sr. Ministro Relator adotou um outro
fundamento, que não é o da confusão, segundo o qual a Fazenda Pú-
blica está dispensada de custas. Se esse fundamento valesse, não teria
nem sentido a Súmula 421. Ademais, aqui não estamos tratando de
custas, mas de honorários advocatícios. A Fazenda Pública não está
dispensada de honorários advocatícios.9

9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.108.013/RJ. Relatora: Eliana Calmon. STJ
Revista Súmulas 2014. Brasília, 2009.

243
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Portanto, o orçamento anual destinado à Defensoria Pública da União é di-


verso daquele conferido ao Poder Executivo Federal ou de seus órgãos da Adminis-
tração Direta e entidade da Administração Indireta. Desse modo, não é possível que
ocorra a confusão, tendo em vista que o patrimônio da pessoa jurídica de direito
público interno é apartado daquele destinado à Defensoria, sendo inviável essa justi-
ficativa e, assim, merecendo revisão pelo referido tribunal.
Destaca-se, entretanto, que o entendimento do STJ não é, necessariamente,
equivocado, mas, como observado, desatualizado. Relembre-se que a Defensoria
Pública, nos últimos anos, tem crescido e ganhado importância e independência,
devendo, portanto, o antigo entendimento ser superado e atualizado conforme a
evolução da entidade10.

3. REANÁLISE DO TEMA PELO STF SOB O PRISMA CONSTITUCIONAL

O Supremo Tribunal Federal (STF) posicionou-se, por diversas vezes, sobre


o tema, reconhecendo a autonomia da Defensoria Pública. Porém, apenas recente-
mente, essa Corte analisou mais profundamente o assunto sob a ótica das mudanças
geradas pelas emendas constitucionais que deram maior autonomia à Defensoria. 
Em 2016, a Medida Cautelar na Reclamação nº 25.236 de São Paulo, a qual
foi analisada pelo Ministro Luís Roberto Barroso. Este deferiu liminar para determi-
nar a remessa ao STF, aduzindo a repercussão geral do assunto:
DIREITO CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. MEDI-
DA CAUTELAR EM RECLAMAÇÃO. HONORÁRIOS ADVO-
CATÍCIOS. DEFENSORIA PÚBLICA QUE LITIGA CONTRA
O ENTE A QUE É VINCULADA. AUTONOMIA. POSSÍVEL
REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA FIRMADA EM SEDE DE RE-
PERCUSSÃO GERAL. 1. Embora reconhecendo o caráter constitu-
cional da controvérsia, o Supremo Tribunal Federal negou repercussão
geral à discussão sobre a possibilidade de condenar ente federativo a
pagar honorários advocatícios à Defensoria Pública que o integra (RE
592.730, Rel. Min. Menezes Direito, j. 06.11.2008). Essa conclusão
tem impedido a subida a esta Corte de novos recursos extraordinários

10 Essa técnica processual de superação de um entendimento firmado é chamada de overruling e é definida por
Fredie Didier Jr. como um meio pelo qual um precedente perde sua força vinculante e é substituído por outro (cf.
DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula S.; OLIVEIRA, Rafael A. Curso de direito processual civil: teoria da pro-
va, direito probatório, ações probatórias, decisão, precedente, coisa julgada e antecipação dos efeitos da
tutela. 10ª ed. v. 2. Salvador: JusPODIVM, 2015, p.494).

244
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

sobre o tema. 2. A superveniência das Emendas Constitucionais nº


74/2013 e 80/2014, aliada à observação das dificuldades comumente
enfrentadas pelas Defensorias Públicas para o exercício de sua autono-
mia constitucionalmente assegurada, convida a revisitar as premissas
daquele julgamento. 3. Medida liminar deferida, para determinar a
suspensão dos efeitos da decisão que negou trâmite ao recurso extraor-
dinário e remessa dos respectivos autos ao STF. 11

Em julgamento, o aludido Ministro indica que aquela Reclamação já havia


sido objeto de apreciação do STF em Recurso Extraordinário, em 2008, e havia sido
negada sua repercussão geral, apesar de ter sido reconhecido o caráter constitucional
da controvérsia. Agora, entretanto, viu-se a necessidade de uma revisão da tese, a fim
de não engessar a jurisprudência à vista das novas necessidades e mudanças de pers-
pectiva com o passar do tempo. 
Barroso entendeu que, depois do julgado do Recurso Extraordinário nº
592.730, em 2008, o papel institucional da Defensoria e sua autonomia funcional,
administrativa e orçamentária foram reforçados pelas Emendas Constitucionais nº
74/2013 e 80/2014. Isso permite uma atuação mais ativa da Defensoria, inclusive
contra entes públicos e, notadamente, em ações coletivas.
Ademais, o Ministro observou que a maior parte das Defensorias Públicas en-
frenta graves problemas de estruturação de seus órgãos, sendo essa uma situação que, em
muitos Estados, não corresponde ao grau de aparelhamento do Judiciário e do Ministério
Público. Isso indica a existência de um desfavorecimento da instituição na escolha das
prioridades orçamentárias, comprometendo a atuação constitucional da Defensoria.
Portanto, ele preleciona que essa situação poderia ser atenuada diante do re-
cebimento de honorários, na forma da Lei Complementar 80/1994. Dessa forma, a
matéria continuava pendente de análise pelo Supremo Tribunal Federal.
Posteriormente, foi julgado o Agravo Regimental em Ação Rescisória nº
1.937/DF, julgada em junho de 2017, pelo Ministro Gilmar Mendes, podendo ser
exemplo dessa necessidade dessa revisão:
Ementa: 1. Agravo Regimental em Ação Rescisória. 2. Administra-
tivo. Extensão a servidor civil do índice de 28,86%, concedido aos
militares. 3. Juizado Especial Federal. Cabimento de ação rescisória.
Preclusão. Competência e disciplina previstas constitucionalmente.

11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação na Medida Cautelar nº 25.236. Relator: Min. Roberto
Barroso, Brasília, 2016.

245
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Aplicação analógica da Lei 9.099/95. Inviabilidade. Rejeição. 4. Maté-


ria com repercussão geral reconhecida e decidida após o julgamento da
decisão rescindenda. Súmula 343 STF. Inaplicabilidade. Inovação em
sede recursal. Descabimento. 5. Juros moratórios. Matéria não arguida,
em sede de recurso extraordinário, no processo de origem rescindido.
Limites do Juízo rescisório. 6. Honorários em favor da Defensoria Pú-
blica da União. Mesmo ente público. Condenação. Possibilidade após
EC 80/2014. 7. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão
agravada. Agravo a que se nega provimento. 8. Majoração dos honorá-
rios advocatícios (art. 85, § 11, do CPC). 9. Agravo interno manifesta-
mente improcedente em votação unânime. Multa do art. 1.021, § 4o,
do CPC, no percentual de 5% do valor atualizado da causa.12 

Segundo o relator, após as Emendas Constitucionais 45/2004, 74/2013 e


80/2014, houve mudança da legislação que diz respeito à Defensoria Pública da União
(DPU), permitindo a condenação da União em honorários advocatícios em deman-
das patrocinadas por aquela instituição de âmbito federal, diante de sua autonomia
funcional, administrativa e orçamentária, cuja constitucionalidade foi reconhecida.
Ademais, é válido salientar que essa verba sucumbencial tem como destina-
ção, exclusivamente, o aparelhamento da Defensoria Pública e a capacitação profis-
sional de seus membros e servidores, conforme preleciona o, já referenciado, art. 4º,
XXI, da Lei Orgânica da Defensoria Pública. Ou seja, os valores acabam por servir de
capital para melhoramento da própria entidade e dos serviços oferecidos, custeando
cursos, pesquisas científicas e desenvolvimento acadêmico voltados à instituição.

4. DESTINAÇÃO DA VERBA SUCUMBENCIAL

Segundo a pesquisa Justiça em Números, realizada anualmente pelo Con-


selho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em 201913, em média, a cada 100.000
habitantes, 11.796 ingressaram com ação judicial no ano de 2018. Nesse contexto,
o percentual de casos solucionados com a assistência judiciária gratuita foi de 34%,
sendo calculado esse percentual através de uma razão entre o número de processos
arquivados definitivamente com a assistência gratuita dividido pelo total de feitos

12 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Ação Rescisória nº 1937/DF. Relator: Min.
Gilmar Mendes, Brasília, 2017.
13 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números. Brasília, DF: CONSELHO NACIONAL
DE JUSTIÇA, 2019.

246
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

arquivados, retirando-se da base de cálculos as ações criminais.


Além disso, o levantamento demonstra que a concessão de Assistência Judi-
ciária Gratuita tem crescido ao longo dos anos: o índice em 2015 foi de 27%, em
2016, estava no patamar de 32%, 33% em 2017 e, em 2018, 34%, ou seja, aumen-
tou 6,7% no período avaliado.
Entretanto, os gastos com assistência judiciária gratuita equivalem a 1,09%
do total de despesas do Poder Judiciário, sendo um custo de R$ 4,91 por habitante.
Essa desproporcionalidade entre atuação e investimento - que é causado, talvez, pelo
desinteresse do Poder Executivo no patrocínio de assistências em causas que, muitas
vezes, reforçam a cobrança de ação governamental pela prestação de serviço público
de qualidade - poderia ser amenizada diante da possibilidade de cobrança de honorá-
rios sucumbenciais exatamente visando o melhor aparelhamento da entidade respon-
sável pela assistência gratuita.
Em vista do exposto, observa-se a distribuição da força de trabalho da Defenso-
ria que, segundo pesquisa realizada pela DPU, 31% é de defensores, 25% são servidores
redistribuídos e 44% de servidores requisitados, gerando instabilidade de pessoal.
Prova disso aconteceu no ano de 2019, quando 43 unidades municipais da
Defensoria Pública da União chegaram à iminência de fechamento caso os servidores
tivessem que voltar aos órgãos de origem, segundo notícia do Correio Braziliense,
publicada em setembro de 201914. A possibilidade de devolução compulsória dos
funcionários, prevista na Lei 13.328, de 2016, estabelecia prazo máximo de três anos
para requisição de servidores da administração pública federal, mas, findo o prazo,
não havia verba suficiente para a abertura de concursos públicos, como entende-se,
também, pela análise do Mapa da DPU15 .
Ademais, a Emenda Constitucional 88/2014 prevê prazo de 08 anos para
que a União, os Estados e o Distrito Federal dispusessem de defensores públicos em
todas as unidades jurisdicionais. Porém, até o momento, isso não foi possível, sendo
a falta de Defensores Públicos e aparelhagem das Defensorias Públicas um fato notó-
rio, testificado, até mesmo, pelo Ministro Roberto Barroso, como já referenciado na
Reclamação na Medida Cautelar nº 25.236.

14 PACHECO, Lorena. Servidores DPU: Aprovada MP que mantém servidores requisitados. Correio Bra-
siliense, 12 set. 2019. Disponível em: <http://blogs.correiobraziliense.com.br/papodeconcurseiro/servidores-dpu-
-aprovada-mp-que-mantem-servidores-requisitados/>. Acesso em: 4 nov. 2019.
15 DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Assessoria de Planejamento, Estratégia e Modernização - ASPLAN.
Assistência Jurídica Integral e Gratuita no Brasil: Um Panorama da Atuação da Defensoria Pública Da União,
Brasília, 3ª edição, 2018. Disponível em: <https://www.dpu.def.br/images/stories/arquivos/PDF/Panorama_Atua-
cao_mapa_DPU.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2019.

247
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Dessa forma, em 2002, foi apresentada a proposta de Projeto de Lei Comple-


mentar 331 cujo autor fora Mendes Ribeiro Filho. Ela prevê a criação do Fundo de
Aperfeiçoamento Profissional da Defensoria Pública da União (FUNADP) constituí-
do pelos honorários de sucumbência devidos aos defensores públicos da União nas
causas em que eles atuarem.
De acordo com aquele projeto, a administração dos recursos do fundo ficará
a cargo de um conselho gestor composto: pelo defensor público-geral da União, que o
presidirá; por um integrante do Conselho Superior da Defensoria Pública da União; e
por três representantes da categoria mais elevada da carreira, os quais serão eleitos, pelo
voto obrigatório por todos os integrantes da instituição para mandato de dois anos.
Além disso, constituirão a receita do FUNADP: as verbas devidas aos defen-
sores públicos da União a título de honorários de sucumbência; as doações, contribui-
ções em dinheiro, valores, bens móveis e imóveis que venham a receber de empresas
públicas ou de economia mista; os recursos provenientes de convênios, contratos ou
acordos firmados com entidades públicas ou privadas, nacionais, internacionais ou
estrangeiras; as transferências de outros fundos; as receitas decorrentes das aplicações
de seus recursos orçamentários e extraorçamentários, observada a legislação vigente; e
outros recursos que lhes forem destinados.
Todavia, foi incorporada emenda pela qual ficam excluídos dos honorários de
sucumbência aqueles provenientes da União, suas autarquias, fundações e empresas
dependentes. Por isso, deve ser revisto o texto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como observado no presente trabalho, o Estado tem a obrigação de garantir


o acesso de todos os cidadãos à justiça e, nesse contexto, foi criada a Defensoria Pú-
blica. Inicialmente, como não havia um órgão estatal responsável por essa assistência
aos necessitados, a defesa se dava por meio de advogados pro bono. No entanto, com
o passar do tempo, com o crescer da importância do assunto e com o desenvolver de
legislações com esse fim, os Estados começaram a incluir, em suas Constituições, as
Defensorias, sendo seguidos pela Constituição de 1988.
A Defensoria Pública é de imensurável importância por garantir não só a
assistência jurídica, mas ultrapassa esse objetivo, vindo a auxiliar os hipossuficientes
na participação democrática da Justiça, como um todo, conforme esperado em um

248
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Estado Social de Direito. E isso é garantido pela Constituição e pelo Pacto de São José
da Costa Rica, através do princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Também foi visto que, apesar de a Súmula 421 do STJ prever a impossibilida-
de de fixação de honorários sucumbenciais à Defensoria Pública quando o polo con-
trário é a União, por decorrência de confusão, observa-se a necessidade de superação
desse entendimento. Isso porque há conquista de autonomia pelas Defensorias, tendo
sido esse um entendimento corroborado pelo STF.
Ademais, o não recolhimento dessas verbas sucumbenciais afeta negativa-
mente o aparelhamento da Defensoria Pública e a capacitação profissional de seus
membros e servidores e tolhe uma potencialidade de robustez financeira do Fundo de
Aperfeiçoamento Profissional da Defensoria Pública da União (FUNADP), contido
no Projeto de Lei Complementar 331. Por isso, sua extinção representa um revés para
esse avanço proporcionado pela referida instituição.

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5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de edições técnicas, 2008. Dispo-
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l10406.htm>. Acesso em: 25 out. 2019. 

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criação do Fundo de Aperfeiçoamento Profissional da Defensoria Pública da União - FUNA-
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nas ações em que participem, assim como pelas receitas que especifica. Brasília, DF, 27 ago.
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sicao=67119. Acesso em: 4 nov. 2019.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

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250
Capítulo 14
JUIZ DAS GARANTIAS E ACORDO
DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL:
DESAFIOS DECORRENTES DOS
NOVÉIS INSTITUTOS INCLUÍDOS
PELA LEI ANTICRIME
SUMÁRIO: Introdução à Lei n. 13.964, de 24 de dezembro de 2019. 1. Juiz das garantias.
2. Acordo de não persecução penal. Considerações finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 14

JUIZ DAS GARANTIAS E ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL:


DESAFIOS DECORRENTES DOS NOVÉIS INSTITUTOS INCLUÍDOS
PELA LEI ANTICRIME

 José Luiz Noleto Castelo Branco1

INTRODUÇÃO À LEI N. 13.964, DE 24 DE DEZEMBRO DE 2019

No Brasil contemporâneo, têm sido progressivamente destacáveis as recentes


alterações e medidas que visam a combater problemas pertinentes à sociedade bra-
sileira hodierna, como os altos índices de corrupção e o demasiado fortalecimento
do crime organizado. Nesse contexto, são diversos os acontecimentos que servem de
referência a esse novo momento de combate à criminalidade, como foi a emergência
da célebre Operação Lava Jato e a recente aprovação da Lei n. 13.964, de 24 de de-
zembro de 2019, chamada de “Lei Anticrime”2. Esta norma legal promove várias
mudanças na legislação penal e processual penal, trazendo novidades como a polêmi-
ca figura do juiz das garantias.
Com efeito, a razão primordial para a elaboração da nova Lei Anticrime consistiu,
na potencialização e na criação de dispositivos capazes de promover, uma contenda
mais expressiva contra a criminalidade no País, fato evidente após inúmeras declara-
ções dos elaboradores do projeto antes da tramitação no Congresso Nacional3. É no-
tório que, nos últimos anos, o legislador pátrio tem se empenhado com afinco para a
superação de tal lide no Brasil, sendo evidenciado pela criação de mecanismos legais,

1 Graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Membro Pesquisador do grupo Estudos em Processo
Penal da Universidade Federal do Ceará.
2 BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal e processual penal. Brasília,
DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato
2019-2022/2019/lei/L13964.htm. Acesso em: 10 mar. 2020.
3 “O presidente Jair Bolsonaro disse hoje (16), em sua conta no Twitter, que o governo apresentará o projeto de
lei Anticrime ao Congresso Nacional na terça-feira (19). ‘Na próxima terça-feira apresentaremos projeto de lei
Anticrime ao Congresso. Elaborado pelo ministro Sergio Moro, o mesmo visa endurecer as penas contra assassi-
nos, líderes de gangues e corruptos’, escreveu na rede social.” (CAMPOS, Ana Cristina. Projeto de
Lei Anticrime será apresentado na terça-feira ao Congresso. Agência Brasil, Brasília, DF, 16 fev. 2019.
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-02/bolsonaro-projeto-de-lei-anticrime-sera-
-apresentadodo-na-terca-feira-ao. Acesso em: 10 mar. 2020).

253
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

como a Lei dos Crimes Hediondos4 e a Lei Maria da Penha5. Todavia, no plano
prático, ínfima foi a contribuição real de dispositivos como esses, principalmente no
que se refere ao combate ao crescimento das facções criminosas e dos índices colos-
sais de violência doméstica. É sabido que os cidadãos do Brasil hodierno anseiam
por políticas públicas capazes de amenizar os danos causados pelo crime, o que ficou
abalizado nas bandeiras levantadas e exaltadas por políticos e seus simpatizantes nas
últimas eleições presidenciais.

Foi justamente esse anseio evidenciado pelo próprio nome autoexplicativo da


norma a influência por trás da elaboração da nova Lei Anticrime, sendo iniludível
por algumas políticas e dispositivos implementados, como o aumento da pena má-
xima para 40 anos de prisão, o confisco alargado dos bens oriundos de atividades
criminosas, a possibilidade de uso dos bens apreendidos pelas forças de segurança e as
mudanças no rol dos crimes hediondos.
Outrossim, a Lei n. 13.964/2019 não se ateve apenas à repressão à crimina-
lidade, mas também a meios de promoção da desburocratização da eficiência e da
imparcialidade na seara criminal, além do alinhamento com a teoria do direito penal
mínimo e a salvaguarda de direitos e garantias constitucionais do investigado, o que
ficou claro com as novidades propostas pelas figuras do juiz das garantias (arts. 3º-A
a 3º-F do CPP6) e do acordo de não persecução penal (art. 28-A do CPP).

Ambos os dispositivos tiveram forte influência do direito alienígena7, não se


tratando de “jabuticabas” ou invenções do legislador pátrio e que acabam por promo-
ver uma grande mudança de paradigma no sistema penal acusatório brasileiro e na
organização operacional do Poder Judiciário. Tais temas sofrem com severas críticas

4 BRASIL. Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso
XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, [2019]. Dis-
ponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8072compilada.htm. Acesso em: 10 mar. 2020.
5 BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher;
altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, DF:
Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil
_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 abr. 2020.
6 BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Brasília, DF: Presidência
da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado.htm. Aces-
so em: 10 mar. 2020.
7 MACHADO, Leonardo Marcondes. Juiz das garantias: a nova gramática da Justiça criminal brasileira. Revista
Consultor Jurídico, São Paulo, 21 jan. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jan-21/
academia-policia-juiz-garantias-gramatica-justica-criminal. Acesso em: 10 mar. 2020; LAI, Sauvei. Primeiras impres-
sões sobre o acordo de não persecução penal. Migalhas, [s. l.], 10 fev. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.
com.br/depeso/320078/primeiras-impressoes-sobre-o-acordo-de-nao-persecucao-penal. Acesso em: 7 maio 2020.

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por parte da doutrina e de membros do sistema de justiça e subsistem por prolonga-


dos debates no campo jurisprudencial e legislativo. Essas problemáticas serão devida-
mente aprofundadas e estudadas durante o corpo do texto, com o escopo de fornecer
os subsídios necessários para elucidação das polêmicas sobre o tema.

1. JUIZ DAS GARANTIAS

A figura do juiz das garantias na forma como prevista pelo texto da Lei
Anticrime será responsável por fazer o controle da legalidade da fase pré-processual e
decidir sobre diversos procedimentos. São exemplos de atribuições (previstas no art.
3º-B do CPP) do juiz das garantias decidir sobre a aplicação de medidas cautelares,
sobre a expedição de habeas corpus e sobre medidas que tendam a invadir os direitos
fundamentais do investigado, como quebras de sigilo bancário e telefônico. Tais
funções já são atribuições clássicas do magistrado no processo penal brasileiro.
Todavia, dentre essas atribuições, também foram incluídas novas funções pioneiras
na sistemática processual penal do País, como a possiblidade do magistrado decidir
de ofício pelo encerramento do inquérito criminal e a necessidade de receber todos os
detalhes da investigação em andamento, mesmo que não provocado, ou seja, deverá
requisitar. Além disso, esse juiz ainda vai ser o responsável pela (não) aceitação da
denúncia (última competência).
É indubitável que as razões invocadas para implementação de tal instituto re-
metem a uma tentativa de evitar ao máximo a contaminação do juiz de instrução e
sentença. A justificativa teórico-científica para tal dispositivo baseia-se na tentativa de
mitigação do “efeito confirmatório”8, uma peculiaridade da mente humana que seria
a tendência que o indivíduo tem para instigação involuntária a buscar fundamentações
condizentes com o elemento subsequente, e não para uma possível revisão e reanálise.
Em casos contextualizados com o tema, o exemplo clássico é o de juízes que decretam
prisões antes do julgamento final (de mérito) e depois se sentem coagidos inconscien-
temente a respaldar e a firmar a credibilidade de suas decisões, tornando quase que
impossível mudarem de opinião sobre o sujeito e decidirem de maneira pró-réu.

No que se refere ao texto legal brasileiro, são diversas as críticas por parte da
doutrina e dos membros do Poder Judiciário para o juiz das garantias. Este instituto

8 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas; CANI, Luiz Eduardo; BALTA-
ZAR, Shalom Moreira. Do projeto de reforma do CPP ao projeto de lei “anticrime”: mirando a Constituição. Revista
Consultor Jurídico, São Paulo, 12 abr. 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.
br/2019-abr-12/limite-penal-projeto-reforma-cppao-projeto-lei-anticrime. Acesso em: 10 mar. 2020.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

não estava no texto inicial do Ministério da Justiça e foi incluído pelo Congresso e
sancionado pelo presidente da República em momento posterior. Atualmente, o juiz
das garantias está suspenso pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na figura do mi-
nistro relator Luiz Fux. A decisão cautelar proferida pelo ministro nas ações diretas
de inconstitucionalidade (ADIs) 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 será submetida a plená-
rio9. A crítica relacionada à constitucionalidade refere-se à violação do pacto federa-
tivo apontada no Parecer n. 01517/2019/CONJUR-MJSP/CGU/AGU, já que uma
lei federal, em tese, não pode interferir na organização e na autonomia dos tribunais,
urgindo, assim, a necessidade de emenda constitucional para sanar essa problemática.
Tal tese, além dos danos orçamentários, tem sido a principal alegação contra o dispo-
sitivo por parte da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).
Ainda existem outros entraves que se referem à inexistência da previsão das
regras de dinâmica de magistrados em comarcas com número reduzido de magistra-
dos e de transição de processos já existentes e futuros. Com o propósito de sanar tal
problemática, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) encaminhou o Processo n.
49.0000.2020.000002-6 para a Comissão Especial de Direito Processual Penal do ór-
gão. Para as comarcas que só dispõem de um magistrado foi sugerida a atuação de juiz
das garantias pelo magistrado da comarca vizinha, enquanto o juiz de instrução e jul-
gamento, bem como as autoridades policiais e o membro do Parquet, deverão ser do
local do fato criminoso, conforme o art. 70, caput, do CPP. Embora polêmica e com
jurisprudência contrária, a realização de audiência de custódia via videoconferência10
é sugerida pela OAB, com o escopo de reduzir os gastos de transporte e segurança
dos presos que deverão ser levados a comarcas vizinhas para realização de tal etapa.
No caso de dois magistrados, é sugerido que seja promovida alternância entre ambos,
ou seja, quando o juiz atuar como das garantias, o outro deverá ser o de julgamento.
Se apenas um for atribuído de competência penal, esse deverá atuar como o de jul-
gamento rotineiramente. Em caso de varas maiores, com número elevado de magis-
trados, é recomendado que seja promovida a criação de varas específicas encarregadas
de atuar somente como juiz das garantias, a fim de promover uma especialização dos
magistrados para que possam atuar de maneira mais competente e célere.
Na transição dos processos, a sugestão é a de que, se o andamento ainda esti-
ver na fase pré-processual, o juiz exerça suas funções até o recebimento da denúncia
e depois envie para um juiz de instrução/sentença. Já nos casos em que o juiz atuou
na fase pré-processual, deverá o magistrado fazer a livre distribuição dos processos

9 STF, ADI 6.298 MC, Relator: Min. Luiz Fux, j. 22/01/2020, DJe 03/02/2020, p. 42.
10 STJ, CC 168.522, Relatora: Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, j. 11/12/2019, DJe 17/12/2019, p. 4.

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para que um novo juiz possa dar prosseguimento ao momento posterior a essa fase,
podendo este anular ou ratificar as decisões já tomadas.
No Brasil, é notório que a Constituição Federal de 1988 é norteada pelo princípio
da tripartição dos Poderes. Logo, conforme previsto no texto constitucional, em seu
art. 22, I11, é de competência do legislativo elaborar/alterar as normas legais e suas
respectivas regras e peculiaridades. Sob esse viés é que o ministro da Justiça e Segu-
rança Pública, Sérgio Moro, tem demonstrado suas principais ressalvas ao ato legis-
lativo que formulou a inclusão do juiz das garantias na nova Lei Anticrime12. Não
se conhece ao certo os fatores que levaram a uma possível omissão na hora de prever
aspectos essenciais do juiz das garantias na nova lei, mas certamente a pressa para que
tal dispositivo estivesse incluído no momento da votação (antes do recesso de final de
ano) pode ter contribuído para tal problemática.

Nesse contexto, os arts. 3º-A a 3º-F deixaram de prever uma série de regras
importantes que auxiliariam na organização e na gerência do juiz das garantias, como
o rol de crimes e situações que estariam abrangidas pelo instituto, assim como a pos-
sível atuação de tribunais superiores ou recursais. Foi necessário o ministro do STF,
Dias Toffoli, decidir sobre essas matérias, por meio da decisão proferida nas ADIs
6.298, 6.299 e 6.300. Além de manter a validade da norma e entender que não houve
invasão de competência, o ministro afastou a aplicação das normas aos processos de
competência originária dos tribunais e tribunais do Júri, nos quais as decisões ocor-
rem por órgão coletivo, bem como também afastou dos casos de violência doméstica
(que demandam medidas de prontidão) e processos das justiças eleitorais por causa
das peculiaridades destes.

Ainda que razoável e bem fundamentado o afastamento das situações apli-


cáveis que foram definidas por Toffoli, é iniludível o fato de que tal matéria deveria
ter sido debatida e incluída no corpo do texto legal durante o trâmite legislativo por
caracterizar clara violação do artigo anteriormente mencionado. Destarte, embora
revolucionário e importante para eficiência da justiça criminal brasileira, urge a neces-
sidade de aperfeiçoamento técnico que esteja de acordo com o princípio da repartição

11 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Presidência da República, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/
Constituiçao.htm. Acesso em: 10 mar. 2020.
12 MORO, Sérgio. Roda Viva: Sérgio Moro: 20/01/2020. [S. l.: s. n.], 2020. 1 vídeo (85 min). Publicado pelo
canal Roda Viva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=a6pJr7XdaiY. Acesso em: 10 mar. 2020.

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funcional13 de tal dispositivo pelas casas legislativas para que os devidos procedimen-
tos e princípios constitucionais sejam respeitados.

Outra polêmica relacionada ao texto da norma tem sido feita principalmente


por membros do Ministério Público a incisos e artigos classificados como “caprichos”
do legislador, como os arts. 3-B, IV, IX e X, e 3º-F do CPP. De fato, é possível consi-
derar que tais partes do texto legal fogem ao objetivo de buscar um juiz de instrução
desinteressado para o julgamento, mas é inegável que tais regras também contribui-
riam substancialmente para maior controle da legalidade. São diversos os casos de
abusos e perseguições em investigações e inquéritos criminais, muitas vezes pautados
por influências políticas e imorais, contra determinados sujeitos no Brasil.

É evidente que uma investigação arbitrária, por si só, é capaz de causar danos
à reputação, ao bem estar, ao psicológico e à vida dos familiares do investigado, assim
como pode prejudicar o sujeito nas áreas profissionais e interpessoais. Obviamente,
tal hipótese não é comum, mas sim uma exceção à regra, pois são raros os casos de
abusos por parte das autoridades policiais e dos membros do Ministério Público, que
em sua maioria, exercem primorosamente suas respectivas funções. Mas é justamente
por prever a hipótese de casos tão excepcionais e gravosos aos investigados é que urge
a necessidade de tais artigos. O acompanhamento de um juiz para agir nas excep-
cionalidades e nas discrepâncias morais e lógicas da investigação é fundamental. É
perceptível que tais dispositivos estariam permitindo o magistrado a atuar de ofício,
e não mais quando provocado, como nos casos de impetração de habeas corpus. Mas
como já citado anteriormente, a transparência existente entre o inquérito criminal e a
possibilidade de conhecimento de tal matéria por parte do investigado no Brasil está
longe de ser elogiável, o que atesta a necessidade de tais partes do texto legal.
Tomemos como exemplo o considerado mais polêmico ponto do juiz das ga-
rantias, presente no art. 3º-B, IX, do CPP. Sob um viés pragmático, a diferença sem
tal parte da norma seria ínfima, já que é certo que um juiz das garantias, que entende
estar havendo inconsistências, abusos ou desproporcionalidades exacerbadas em in-
quérito, já está intencionado a não aceitar a denúncia. Esse magistrado, claro que em
casos excepcionais, estaria atuando para proteger o investigado dos danos anterior-
mente já citados e poupando esforços da máquina pública em situações de má-fé.

2. ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL

13 MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Curso de hermenêutica jurídica. 6. ed. São Paulo: Fonte Editorial,
2018, p. 177.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A implementação de uma justiça penal negocial sempre sofreu resistência no


sistema penal de justiça brasileiro. Com o advento da Lei Anticrime, o acordo de não
persecução penal é mais um passo relevante para instauração da justiça penal negocial
no Brasil. O novel instituto consiste basicamente na aplicação de medidas menos
drásticas aos casos criminais que envolvam infrações de pequena e média lesividade,
evitando, assim, o desnecessário acionamento da máquina judiciária.
A previsão legal do acordo de não persecução penal veio após a Resolução n. 181,
de 7 de agosto de 201714, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Tal
resolução era objeto de críticas que focavam geralmente na sua inconstitucionalidade for-
mal, por suposta ofensa ao art. 22, I, da Constituição Federal de 1988, já que somente a
União poderia legislar sobre direito penal e processual penal. A novidade do art. 28-A do
CPP, inserido pela Lei Anticrime, não padeceria do vício apontado na resolução.
Alguns doutrinadores têm visto o acordo de não persecução penal como im-
portante instrumento para aceleração da resolução dos processos que lidam com in-
frações de médio potencial ofensivo, conforme explica Tasse:
A partir da exegese do acordo de não persecução penal em conformi-
dade à Constituição Federal, o sistema penal brasileiro passa a contar
com um importante instrumento redutor do poder punitivo, capaz
de auxiliar na maior celeridade, pelo afastamento do processo para as
infrações de médio potencial ofensivo.15

Nesse contexto, há de se ponderar também uma possível seletividade na utilização


do instituto ou mesmo uma má utilização no caso de réus mais vulneráveis tecnicamente,
que geralmente são os hipossuficientes financeiramente. Para Dotti e Scandelari, embora
existam ressalvas no direito brasileiro e no direito alienígena a este dispositivo, como a
dificuldade que réus pobres teriam de encontrar bons advogados para fazer satisfatórios
acordos e possíveis coações com a sugestão de acordos ruins no princípio da negociação,
tais problemáticas não sustentam os argumentos de permanência do sistema hodierno16.

14 BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017. Dispõe sobre ins-
tauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público. Diário Eletrônico do
CNMP, Brasília, DF, 8 set. 2017. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/atos-e-normas-busca/nor-
ma/5277. Acesso em: 10 mar. 2020.
15 TASSE, Adel El. O acordo de não persecução penal: possibilidade vinculada à observância da Constituição
Federal. Migalhas, [s. l.], 23 jan. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/318960/
o-acordo-de-nao-persecucao-penal-possibilidade-vinculada-a-observancia-da-constituicao-federal. Acesso em:
15 mar. 2020.
16 “[...], os defeitos que a mudança possivelmente trará não justificam a permanência do atual sistema criminal
brasileiro, que obriga à litigiosidade exacerbada em centenas de milhares de situações que poderiam ser rapida-
mente encerradas de forma satisfatória para as partes.” (DOTTI, René Ariel; SCANDELARI, Gustavo Britta.
Acordos de não persecução e de aplicação imediata de pena: o plea bargain brasileiro. Boletim IBCCrim, São
Paulo, ano 27, n. 317, p. 5-7, abr. 2019, p. 5-6).

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São diversas as regiões monótonas do Brasil que ainda não dispõem de serviços
da defensoria pública e cidadãos que inevitavelmente não recebem a devida assessoria
legal. Nesse sentido, devemos considerar as hipóteses de repercussão negativa que
o acordo de não persecução penal pode ocasionar para tais pessoas. Para Mendes e
Martinez, é possível pensar na hipótese de um investigado, com medo do processo
criminal, escolher por confessar um crime que não tenha cometido e, posteriormente,
não tenha meios de pagar uma prevista prestação pecuniária, o que acarretará em um
processo, e a confissão sobre o crime que não cometeu já constará nos autos17. Ainda
há uma divergência doutrinária se a confissão do investigado formalmente não acarre-
ta necessariamente a culpa (que demanda o devido processo legal). Mas o que se sabe
é que, no plano prático, continuará havendo uma tendência natural a ser acreditado
que a confissão de fato é verdadeira.
Outros ordenamentos jurídicos, como o norte-americano e o alemão, já ado-
tam a justiça penal consensual para alguns delitos. Observa-se, portanto, que não se
trata de instituto genuinamente brasileiro, mas sim de importação do que vem sendo
aplicado em outros modelos mundo afora. É de ser ressaltada ainda a crítica a uma
importação de apenas parte de sistemas alienígenas, o que poderia ocasionar uma
deturpação das finalidades do instituto. Para Coutinho, o notório conflito entre as
características do sistema inquisitório brasileiro e do sistema acusatório americano
não deveria permitir a importação pura do sistema de plea bargaining sem as outras
diversas características e peculiaridades típicas do ordenamento americano:
Ter plea bargaining é inevitável se o processo penal brasileiro vier a ser
acusatório. Mas para isso é preciso, antes, importar o sistema todo, com
ônus e bônus. Do jeito que se está tentando impor, os ônus ficarão para
os cidadãos investigados/acusados; e os bônus – tudo indica – ficarão
para o Estado e seus órgãos. Em tempos neoliberais, tudo é contra o
cidadão, quem sabe em nome daquela ética utilitarista precitada, em-
bora se saiba que ela é só discurso fácil para iludir os incautos.18

É mister ressaltar que há uma ligação fundamental entre a figura do juiz das
garantias e o acordo de não persecução penal, posto que será justamente o magistrado
17 MENDES, Soraia da Rosa; MARTINEZ, Ana Maria. Pacote Anticrime: comentários críticos à Lei 13.964/2019.
São Paulo: Atlas, 2020, p. 68
18 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anun-
ciado. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 27, n. 317, p. 2-5, abr. 2019, p. 4, grifo do autor. O autor ainda reitera
a dificuldade de conciliar o modelo importado com os dispositivos e atribuições do sistema de justiça brasileiro, bem
como da Constituição Federal: “Antes de tudo, a Constituição da República não permite que os sujeitos invertam ou
subvertam seus papéis constitucionalmente demarcados. O juiz, no lugar a ele reservado no processo do sistema in-
quisitorial, por certo não fará aquilo que faz ou deve fazer o juiz norte-americano. (cont.)

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

responsável pela fase pré-processual que irá decidir acerca da homologação, ou seja,
irá fazer o levantamento das adequações das condições para a consagração de tal acor-
do. Se for homologado o acordo, o juiz deverá encaminhar os autos para o Parquet,
a fim de iniciar a execução perante o juízo de execução criminal. Se for recusado,
também encaminhará para o Ministério Público que deverá avaliar necessidade de
complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.
O promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Suavei Lai, entende que
o acordo de não persecução penal acarretará duas consequências principais para os
membros do sistema de justiça brasileiro, quais sejam: sobrecarga de atribuições para
os membros do Ministério Público, o qual necessitará de amplo suporte estrutural e
técnico; e mudança de mentalidade, a fim de promover o devido aprimoramento de
uma justiça penal negocial no Brasil. Ele também ressalta que inevitavelmente a jus-
tiça abandonará o processo longo e custoso, fazendo com que haja claro enfoque dos
membros da justiça na concentração dos esforços em crimes mais graves.19

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É indubitável o fato de que tais dispositivos mudarão a sistemática do direito


processual penal brasileiro e acarretarão consequências que podem influir de maneira
positiva ou negativa na prática penal brasileira. Nesse sentido, é dever do Judiciário e
do Legislativo darem a devida importância que tais temas possuem, com o escopo de
propiciar o uso mais correto e justo dessas mudanças.
O juiz das garantias e o acordo de não persecução penal não representam o fim,
mas sim o começo de profunda alteração que urge no CPP brasileiro, o qual parece
saturado e em desconformidade com as inovações do direito processual pelo mundo,
posto que esse já persiste há quase um século e possui inspiração destoante do que se
tornou o Brasil hodierno.

(cont.) O sistema como que o empurra para outro lugar (para dizer que a culpa, em geral, não é dele), o de senhor do
processo. Tanto que, com muita frequência – para não dizer quase sempre –, são indicados e tomados como os chefes
do combate ao crime. E alguns se sentem, de fato, assim. Por óbvio, não haveria nenhum problema nisso... se não
fossem os juízes dos processos. Juris dictio, imparcialidade, e assim por diante, não são coisas compatíveis com quem
tenha lado nas disputas. Pelo menos que se saiba. A grandeza da jurisdição está – sabem todos – no lugar do poder
(Max Weber) de fazer valer a CR e as leis. Fora daí é ela invadida por um moralismo absurdo, inconstitucional e que
corrói a segurança jurídica da sociedade e, com isso, a própria democracia” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Mi-
randa. Plea bargaining no projeto anticrime: crônica de um desastre anunciado. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano
27, n. 317, p. 2-5, abr. 2019, p. 4).
19 LAI, 2020, p. 1.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

REFERÊNCIAS
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mos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Bra-
sília, DF: Presidência da República, [2019]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/leis/L8072compilada.htm. Acesso em: 10 mar. 2020.

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méstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe
sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código
de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília,
DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 10 abr. 2020.

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TASSE, Adel El. O acordo de não persecução penal: possibilidade vinculada à observância da
Constituição Federal. Migalhas, [s. l.], 23 jan. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.
com.br/depeso/318960/o-acordo-de-nao-persecucao-penal-possibilidade-vinculada-a-obser-
vancia-da-constituicao-federal. Acesso em: 15 mar. 2020.

263
Capítulo 15
OS MOVIMENTOS SOCIAIS
E A LEI 13.260/16:
DEMOCRACIA, RESISTÊNCIA E
CRIMINALIZAÇÃO

SUMÁRIO: Introdução. 1. Criminosos, desordeiros e vadios. 2. A Lei 13.260/2016 e as


propostas de alteração. Conclusão. Referências.
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CAPÍTULO 15

OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A LEI 13.260/16:


DEMOCRACIA, RESISTÊNCIA E CRIMINALIZAÇÃO

José Valente Neto20

“E se a balança deve pender, que seja para o lado do povo.


Ele sofre há mais tempo.”21

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo analisar as propostas de alteração da Lei


13.260, de 16 de março de 2016, a qual regulamenta o disposto no inciso XLIII do
artigo 5º da Constituição Federal e disciplina o crime de terrorismo. Os projetos de
lei 5.065/16, 9.604/18, 9.858/18 e 3.019/20 possuem como ponto em comum a
permissão para que movimentos sociais possam ser concebidos como organização ter-
rorista. Em vigência, o parágrafo 2º do artigo 2º prevê que a lei não se aplica à condu-
ta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais,
sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósi-
tos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o
objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da
tipificação penal contida em lei.
Em caráter inicial, adverte-se que o texto não tem o propósito de esmiuçar a
dogmática penal e processual da lei. No Brasil, manuais e artigos possuem inúmeros
comentários sobre o conjunto das normas propriamente ditas. Para além desta discus-
são, assoma-se como fundamental o contexto político na segunda década do século
XXI. Almeja-se, precipuamente, responder a duas perguntas: i) quais são, a partir da
interpretação das justificativas, as intenções dos parlamentares federais?; ii) as propos-
tas de alteração são compatíveis com a Constituição Federal de 1988? O método de
pesquisa empregado foi o bibliográfico e, como fonte primária, os projetos de lei e
suas respectivas justificativas.

20 Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Direito pela Universidade de
Fortaleza. Defensor Público do Estado do Ceará.
21 HUGO, Victor-Marie. Os miseráveis. Tradução de Regina Célia de Oliveira. São Paulo: Editora Martins Cla-
ret, 2014, p. 80.

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A Lei 13.260/16 foi promulgada mediante pressão de organismos interna-


cionais em virtude dos Jogos Olímpicos de 2016. Oficialmente, a proposição tinha o
apoio das 20 maiores economias do mundo e, extraoficialmente, do Comitê Olímpico
Internacional, sob o argumento da necessidade de ampliação da segurança do evento
esportivo. O interesse internacional provocou a tramitação em caráter de urgência no
Congresso Nacional e impediu um debate mais amplo sobre um tema tão complexo.

Segundo o Poder Executivo, autor do projeto, o país precisava cumprir um


acordo internacional firmado com o Grupo de Ação Financeira (GAFI). Esse orga-
nismo é vinculado ao G20 e foi criado em 1989 com o objetivo de definir padrões e
implementar medidas legais para combater a lavagem de dinheiro e o financiamento
do terrorismo, entre outras práticas delituosas. Entretanto, representantes de movi-
mentos sociais enxergam na Lei 13.260/16 e, principalmente, em suas propostas de
alteração, a chancela legal da repressão e da criminalização.

1. CRIMINOSOS, DESORDEIROS E VADIOS

Na história da justiça penal sempre foi uma constante, em menor ou maior grau,
a preocupação com as ações e pensamentos de determinadas pessoas ou grupos, em ge-
ral dos mais humildes, estrangeiros e não cultores de fé cristã. Os crimes de feitiçaria e
lesa-majestade foram ilustrativos de como a imputação de fatos abstratamente conside-
rados possuíam, na verdade, alvos mais certos do que vagos. A demonização das crenças
populares provocou a instauração dos Tribunais do Santo Ofício, a Inquisição e a morte
de inúmeras pessoas, entre as quais ciganos e nativos de terras dominadas.
No espaço ibérico, como em outros, um receio frequente da Igreja e do Esta-
do consistiu em “definir os não católicos ou os falsos católicos como indivíduos não
só condenados teologicamente mas também politicamente perigosos. O efeito disso
foi criar uma larga base de suspeita, rejeição e por vezes aversão fanática a esses gru-
pos.”1 A “caça às bruxas” foi efetivada por meio de instrumentos processuais, como
“visitações, delações, devassas, torturas, sigilos e atuação de magistrados – que facili-
tavam e encorajavam as denúncias.”2
Religião e religiosidade, na Idade Moderna e em épocas mais remotas, eram
questões de Estado e estavam no âmago da política das monarquias. Neste particular,
Arno Dal Ri Júnior enfatiza que uma ação ou omissão contra a segurança do Estado

1 SCHWARTZ, Stuart B. All can be saved: religious tolerance and salvation in the Iberian Atlantic world. New
Haven: Yale University, 2008, p. 78.
2 MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 63.

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ou os interesses do rei era, acima de tudo, “um delito de caráter religioso contra a
autoridade dos monarcas que se encontravam sob as graças e proteção de entidades
divinas.”3 As condutas de pessoas ou grupos contra a organização do poder, como
a promoção de revoltas, eram gravíssimas e, comparáveis ao sacrilégio, puníveis com
a morte. O surgimento e consolidação do “crime de lesa – majestade”4 ocorreu
oficialmente no direito penal romano no império de Augusto, no ano 8 a. C., por
intermédio da Lex Iulia de maiestatis. Nos primórdios de Roma, bem como nos de
qualquer povo primitivo, o direito penal teve uma origem sacra.
O imperador passou a ser concebido como a personificação do próprio povo
romano e iniciou-se o longo itinerário que culminou com a total confusão entre o
corpo do soberano e o corpo do Estado e a perpetuidade da realeza. “A expressão
maiestas nasce na cultura política da Roma Antiga, em que designava o lugar supremo,
a ordem superior que os súditos deveriam tratar com respeito e reverência.”5 O
crime de lesa-majestade foi aquele cometido contra o povo romano ou contra a sua
segurança e o seu autor, o inimigo político, eliminado ou subjugado, no exercício pleno
e impiedoso do direito do vencedor. Com efeito, “os sentimentos que os romanos
esperavam inspirar no inimigo eram temor e terror.”6 A compreensão da categoria
“inimigo” como sendo somente o externo, o estrangeiro invasor ou o resistente à
conquista, mereceu uma nova leitura, mais ampla e complexa.
Além desta concepção clássica, implicitamente também houve o inimigo “in-
terno”, alvo do direito penal ou, termos mais nítidos, de quem estabelece quais fatos
deverão ser considerados delitos. Este é um dos aspectos centrais do problema. “O
advento do Estado penal não é uma fatalidade. [...]. O recurso ao aparato prisional
não é um destino para as sociedades avançadas, é uma questão de escolha política.”7
A categoria de “inimigo” é cara ao direito penal, mesmo quando teoricamente laiciza-
do e cientificamente mais técnico e sofisticado. Conforme o magistério de Umberto
Eco, “para manter o povo sob controle, é necessário inventar constantemente inimi-

3 O Estado e seus inimigos: a repressão política na história do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 31.
4 “Majestade (majesté) – Uma grandeza visível, que justificaria ao mesmo tempo o respeito e a obediência. É o
que levava Alain a dizer que era ‘inimigo de qualquer espécie de Majestade’. E dava esta definição perfeita: ‘A
Majestade é tudo o que, tendo o poder, ainda quer ser respeitado’. É querer reinar também sobre os espíritos. Toda
majestade é ridícula ou tirânica.” (COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. 2. ed. Tradução de Eduar-
do Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p. 359).
5 Ob. cit., p. 65.
6 MATTERN, Susan P. Rome and the enemy: imperial strategy in the principate. California: University of Ca-
lifornia Press, 1999, p. 172.
7 WACQUANT, Loïc. As duas faces do gueto. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo,
2008, p. 104.

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gos, e pintá-los de maneira a inspirarem medo e repugnância.”8 Nesta perspectiva,


Francisco Tomás y Valiente ensina que

en este período, como en tantos otros de épocas más recientes, y de


regímenes políticos fuertes, la ley penal y su complemento la jurispru-
dencia se convirtieron en instrumentos de resistência y de defensa del
poder y del ordem establecidos, en mayor y más dura proporción de lo
razonablemente admisible.9

Carl Schmitt, sob os auspícios do nacional-socialismo alemão, resgatou de for-


ma explícita a categoria de inimigo: “Inimigo é somente o inimigo público, pois
tudo o que se refere a um conjunto semelhante de pessoas, especialmente a todo um
povo, se torna, por isso, público. Inimigo é hostis, não inimicus em sentido amplo;
polemios, não echtros.”10 Esse hiato de quase dois séculos, para ser mais coerente com
a derrocada do Antigo Regime, nunca interditou a função que o direito penal vem
desenvolvendo com êxito desde tempos idos, uma vez que

o hostis, inimigo ou estranho nunca desapareceu da realidade ope-


rativa do poder punitivo nem da teoria jurídico-penal (que poucas
vezes o reconheceu abertamente e, quase sempre, o encobriu com os
mais diversos nomes). Trata-se de um conceito que, na versão ori-
ginal ou matizada, de cara limpa ou com mil máscaras, a partir de
Roma, atravessou toda a história do direito ocidental e penetrou na
modernidade, não apenas no pensamento de juristas como também
no de alguns de seus mais destacados filósofos e teóricos políticos,
recebendo especiais e até festejadas boas-vindas no direito penal. Tra-
ta-se de um elemento conceitual contraditório dentro do Estado de
direito porque arrasta a semente de sua destruição, muito embora a
sua incoerência só se tenha manifestado nos anos 30 do século passa-
do, por obra da pena de Schmitt, o mais teórico político do nazismo.
[...]. Para os teóricos – e sobretudo para os práticos – da exceção,
sempre se invoca uma necessidade que não conhece lei nem limites.

8 Contracapa. In: ____. Construir o inimigo e outros escritos ocasionais. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho.
Lisboa: Gradiva, 2011.
9 El derecho penal de la Monarquía absoluta (Siglos XVI - XVII). Madrid: Editorial Tecnos, 1969, p. 45.
10 O conceito do político/Teoria do Partisan. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey Edi-
tora, 2009, p. 30.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A estrita medida da necessidade é a estrita medida de algo que não tem


limites, porque esses limites são estabelecidos por quem exerce o poder.11

Para Sérgio Buarque de Holanda, no Brasil, “a história jamais nos deu o exem-
plo de um movimento social que não contivesse os germes de sua negação.”12 Seja
sob um viés eminentemente crítico ou predominantemente pessimista, a frase retrata
a relação de forças da sociedade brasileira agrária, século XIX, pré-industrial, egressa
de um dos regimes escravocratas mais perversos do mundo, seja pela longevidade,
seja pela austeridade. A preservação da Colônia e do Império ocorreu a partir da
subjugação de vários levantes, como a Conjuração Baiana, a Guerra dos Emboabas, a
Sabinada e a Balaiada.
Todavia, muitos desses conflitos não foram genuinamente populares, como a
Guerra dos Mascates, 1710 e 1711, na qual houve uma disputa entre os senhores de
engenho de Olinda e comerciantes portugueses de Recife. Por outro lado, a Revolta
dos Malês13, 1835, na Bahia, foi produto da revolta de escravos de origem islâmica.
Os acusados foram julgados com base no Código Criminal de 1831. O artigo 113
definia como crime de insurreição a reunião de vinte ou mais escravos para haverem
a liberdade por meio da força.
Diferentemente de outros espaços nos quais o Estado punia com mais rigor os
escravos insurretos e indenizava os seus senhores, no Brasil optou-se por outra alter-
nativa. “Os escravos eram açoitados e logo em seguida devolvidos ao serviço. Só os
líderes recebiam pena de morte ou prisão. Neste caso, a lei não permitia concessões à
economia dos senhores por se tratar de uma questão de segurança e manutenção da
própria ordem escravista.”14 Em relação às rebeliões na Idade Moderna na América
Portuguesa, Luciano Figueiredo ensina que

a sociedade de Antigo Regime na Europa fundava-se em estruturas de


grande instabilidade. Uma vez que seu equilíbrio dependia da desigual-
dade entre setores distintos, como nobres, magistrados, clérigos, oficiais
mecânicos, dotados cada qual de privilégios e tradições que deveriam ser
assegurados pelo soberano, o processo implacável de centralização polí-
tica e administrativa durante a época moderna tendeu a desrespeitar os

11 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro:
Revan, 2007, p. 23-25.
12 Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 180.
13 À época, os africanos foram proibidos de circular à noite pelas ruas da capital e de praticar as suas cerimônias
religiosas.
14 Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês - 1835. São Paulo: Editora brasiliense, 1986, p.
254-255.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

velhos compromissos. A busca da unificação territorial, a concentração


de recursos nos cofres régios através da tributação nacional, a intensa
mobilidade social inaugurada pela expansão mercantil, a corrosão dos
princípios estáticos da religião católica não perdoavam os grupos sociais
tão ciosos de suas tradições e privilégios. A organização de uma rebelião,
agregando diferentes grupos sociais – privilegiados ou não -, com ata-
ques armados a autoridades constituídas, gritos e ruídos de desordens
nas ruas, ocasionalmente removendo e substituindo o governo local,
destruição de propriedades, raramente foi manifestação espontânea, sen-
do muitas vezes calculada e planejada. Rebeliões pareciam se revestir de
mais legitimidade quando os protestos eram capazes de agregar maior
número de grupos, dando mostras de que a insatisfação era ampla e fruto
de uma causa comum. Diversos movimentos empenhavam-se em ata-
car a autoridade local que estaria cometendo abusos longe das vistas do
rei. E em nome deste, sempre protetor, provedor e justiceiro, deveria ser
feita a rebelião. Ela se destinava a corrigir desacertos do governo local,
coibir medidas excessivas de autoridades, reclamar contra a injustiça de
um novo imposto ou aumento de preço. Instrumentos de reivindicação
costumeiros ameaçavam muito pouco a ordem política. Nem sempre a
revolta acabava bem. Afinal, constituíam crimes de caráter político pres-
critos na legislação e para os quais se previam punições terríveis, quase
sempre exemplares: a morte com a humilhação dos traidores ou o des-
terro. Esta ambigüidade vai ajudar a entender por que as reações dos
soberanos oscilaram tanto entre a forca e o perdão.15

Nos séculos XVI-XVIII, a Coroa lusitana conseguiu um relativo equilíbrio


entre uma disciplina dos vulneráveis e um sistema penal mais simbólico do que efe-
tivo. Se, com a ameaça do castigo, o rei se apresentava como justiceiro, ao perdoar,
ele se afirmava como o pastor que tinha o dom da compreensão e da clemência. Por
esta dialética, o soberano, como um verdadeiro representante divino, onipotente, era
o senhor da justiça e da graça. Conforme leciona António Manuel Hespanha, “a dis-
ciplina social baseava-se, de fato, mais em mecanismos quotidianos e periféricos de
controle, ao nível das ordens políticas infraestaduais – a família, a Igreja, a pequena
comunidade.”16 Em último grau, entre a pena e a dimensão simbólica da punição, o
rei poderia conceder a justiça, a graça e a misericórdia.

15 Rebeliões no Brasil Colônia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005, p. 21-22.
16 Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012, p. 161.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

As revoluções liberais norte – americana e francesa, 1776 e 1789, respectivamen-


te, propagaram os ideais da liberdade, da igualdade e da fraternidade. O aperfeiçoamen-
to das relações mercantis mudou sistemas políticos e jurídicos e manteve a sociedade
de classes. Apesar do liberalismo e do constitucionalismo, “a mecânica das instituições
que encantou os contemporâneos de Montesquieu, Madison ou Tocqueville não lhes
interessa. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições de seu
poder.”17 No plano técnico - jurídico, as nações organizaram a estrutura dos Estados,
os direitos e os deveres das pessoas em Constituições. O princípio da soberania popular
assomou como “categoria jurídica” e redentor da política. Os parlamentos europeus dos
séculos XVIII e XIX ocuparam esse espaço, com ressalvas à participação do povo, o que
se percebe pelo reduzido recurso ao plebiscito e ao referendo, ferramentas de uso mais
simples do que o voto direto. Para Friedrich Müller,

o Estado constitucional aqui referido foi conquistado no combate con-


tra uma história marcada pela ausência do Estado de Direito e pela
falta de democracia [unrechtsstaatliche(n) und undemokratische(n)
Geschichte]; e esse combate continua. A democracia e o Estado de
Direito legitimam desde os seus inícios a dominação da ordem social
burguesa; constituições como a brasileira de 1988 ou a Lei fundamen-
tal alemã mencionam expressamente a legitimação pelo povo. É de
importância decisiva saber em que campos e em que grau essas pre-
tensões são cumpridas ou descumpridas no funcionamento cotidiano
do ordenamento jurídico. Disso faz parte não apenas a atuação dos
políticos, mas também o trabalho prático da docência, da pesquisa e
sobretudo da decisão dos juristas, pois o seu fazer é operacionalizado
nos termos do Estado de Direito somente em caso de procedimento
racionalmente controlável dos titulares das funções jurídicas no Execu-
tivo e no Judiciário, bem como no trabalho prévio para o Legislativo. E
só então existe a oportunidade de que ao menos uma parte relevante da
vida social seja determinada pela democracia, à medida que ela ainda
possa ser genericamente controlada pelo direito.18

A democracia é um conceito em expansão e obtido por exclusão. A luta con-


tínua pela garantia e reconhecimento dos direitos deixa evidente a tensão entre as
classes sociais mais humildes e os protagonistas do cenário político oficial. No debate

17 RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 10.
18 Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 2. ed. Tradução de Peter Naumann. Revisão de Pau-
lo Bonavides. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 87. (cont.)

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

entre constitucionalismo e democracia, a premissa deve ser a de que a neutralidade


das constituições e do direito como um todo é uma quimera e deve estar sempre sob
o crivo do povo. Consoante a síntese de Gilberto Bercovici, “não há, ainda, consti-
tuição sem Estado. O Estado Constitucional conserva a estrutura básica do Estado
monárquico que o antecede, acrescentando a legitimação democrática do poder po-
lítico, com a soberania constituinte do povo.” De acordo com Eros Roberto Grau, “a
constituição não significa a defesa do povo contra o Estado. (...). O inimigo não é o
Estado, mas o Estado a serviço dos interesses privilegiados.”19

2. A LEI 13.260/2016 E AS PROPOSTAS DE ALTERAÇÃO

No Brasil, desde a segunda década do século XXI, os ânimos entre os seg-


mentos políticos e sociais estão mais perceptíveis. Em 2014, a reeleição da primeira
presidenta da República por um partido de centro-esquerda, a ascensão ao Congresso
Nacional de agremiações consideradas ultraconservadoras e índices mais discretos de
crescimento econômico provocaram quase uma convulsão social.
A zona de acomodação de forças reinaugurada com a Constituição de 1988 so-
freu uma ruptura com o impeachment no Poder Executivo em 2016, com as propostas
flexibilizadoras de direitos trabalhistas e, principalmente a partir de 2019, com várias
outras medidas, como a Reforma da Previdência (EC 103/19). No mesmo contexto,
houve a redução do garantismo penal, principalmente com a chancela pelo Supremo
Tribunal Federal, no Habeas Corpus 126.292/SP, em 17 de fevereiro de 2016, de exe-
cução de pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado.
Nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 43/DF e 44/DF, bem como na
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54/DF, a Corte, em 7 de
novembro de 2019, revisou o seu posicionamento, mas admitiu, em hipóteses excep-
cionais, a possibilidade de prisão. Se, por um lado, é verdade que nunca houve uma
coerência em sua jurisprudência, é flagrante que o texto, ao prescrever que “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”
(CF, art. 5º, LVII), não deixa muita margem a interpretações, principalmente se for
no sentido de sua rejeição.

(cont.) Em seguinda, complementa: “Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da popula-
ção, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; permite-se a essas parcelas da população a presença fí-
sica no território nacional, embora elas sejam excluídas tendencial e difusamente dos sistemas prestacionais [Leis-
tungssystemen] econômicos, jurídicos, políticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que
significa ‘marginalização’ como subintegração. Esse fenômeno não se restringe a países periféricos; fomentado
pela política ‘desregulamentadora’ de corte neoliberal em meio a um capitalismo triunfalista cada vez mais selva-
gem, ele grassa também nos países mais ricos, nos países do Grupo dos Sete.” (Ob. cit., p. 91-92)
19 A constituinte e a constituição que teremos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1985, p. 25-26 e p. 40.

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Além disso, é sintomática a publicação da Lei 13.26020, de 16 de março de


2016, a qual trata de disposições investigatórias e processuais e do conceito de organi-
zação terrorista. A ressalva “sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”, na parte
final do artigo 2º, § 2º, mais do que um expediente de pseudoverborragia, reafirma o
poder de punir do Estado, o “domínio da lei incriminadora” e a “autoridade” de seus
intérpretes, pois restou evidente a possibilidade de desclassificação, seja pela mutatio,
seja pela emendatio libelli.
Entretanto, pouco mais de um mês após, em 26 de abril de 2016, por intermé-
dio do Projeto de Lei 5.065/201621, o Deputado “Delegado” Edson Moreira (PR/
MG) propôs a alteração da Lei 13.260/16. Segundo o projeto, os principais objetivos
são: i) ampliar o espectro de motivações e finalidades que poderão servir de pano de
fundo para a caracterização do crime de terrorismo; ii) conferir maior detalhamento
e especificidade a determinadas hipóteses de crimes de terrorismo tipificadas na lei
em comento; iii) criar novas hipóteses de tipos penais do crime de terrorismo; e iv)
revogar a exceção legal referente à atuação de movimentos sociais, hoje em vigor,
que confere a esses grupos isenção quanto ao enquadramento de suas ações na lei
que tipifica o terrorismo no País. Conforme a propositura, acrescentou-se, como
razões, a “motivação ideológica, política, social e criminal” (art. 2º, caput).
Em sua justificativa, o parlamentar: i) ressalta o fato de a Lei nº 13.260/16 ter
sido “tímida” na tipificação propriamente dita do crime de terrorismo, vez que não
discriminou as motivações políticas e ideológicas; ii) cita definições diversas de terro-
rismo adotadas por órgãos, instituições ou pesquisadores; iii) defende a ampliação da

20 BRASIL. Lei 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Consti-
tuição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o
conceito de organização terrorista; e altera as Leis n º 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto
de 2013. Presidência da República, Brasília, 2016. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 20
maio 2020. O artigo 2º estabelece: “Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos
previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião,
quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimô-
nio, a paz pública ou a incolumidade pública. § 1º São atos de terrorismo: I - usar ou ameaçar usar, transportar,
guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou
outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa; (...); IV - sabotar o funcionamento ou
apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total
ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, esta-
ções ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou
locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações
militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de
atendimento; V - atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa: Pena - reclusão, de doze a trinta anos,
além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência. § 2º O disposto neste artigo não se aplica à condu-
ta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de
classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar,
criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem pre-
juízo da tipificação penal contida em lei – Grifo nosso.”
21 BRASIL. Projeto de lei 5.065, de 26 de abril de 2016. Altera o artigo 2º da Lei nº 13.260/16, dando nova re-
dação ao seu caput e ao seu §1º, inciso V, acrescendo os incisos VI, VII e VIII ao seu §1º, e revogando o seu § 2º.
Câmara dos Deputados, Brasília, 2016. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 20 maio 2020.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

proteção contra o terrorismo a instalações e obras de arte, em sua visão, não contem-
pladas na lei em vigor; e iv) destaca a inexistência do ‘terrorismo do bem’, ‘terrorismo
virtuoso’ ou ‘terror includente’ que, em tese, seria praticado por movimentos sociais
com métodos radicalizados de atuação, entre outros argumentos. No próprio sítio da
Câmara dos Deputados, a título de “dados complementares”, consta que a finalidade
do projeto consiste na tipificação de atos de terrorismo por motivação ideológica,
política, social e criminal. Em suma: tornar explícita a possibilidade de criminalização
dos movimentos sociais.
Das etapas previstas, Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacio-
nal (CREDN), Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado
(CSPCCO) e Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), falta ape-
nas a análise do parecer da segunda e o parecer da última para apreciação em plenário.
Na primeira, o parecer de rejeição foi aprovado. Por outro lado, na segunda há parecer
de aprovação com substitutivo, o qual se encontra pendente de exame.
Na CREDN, o parecer do Dep. Rubens Bueno (PPS/PR) pela rejeição da ma-
téria foi aprovado em 7 de dezembro de 2016. Em resumo, ficou assentado naquela
Comissão Permanente: i) que parte da matéria constante do projeto de lei em comen-
to já havia sido ampla e exaustivamente discutida – e rejeitada – apenas dois meses
antes, naquela mesma sessão legislativa, quando da aprovação da Lei 13.260/16, de
forma que sua reapresentação, no mesmo ano, por força constitucional e regimental,
deveria ser feita com apoio da maioria absoluta dos deputados federais; e ii) que as
ideias nesse PL veiculadas já restariam contempladas no texto legal em vigor ou te-
riam o objetivo indireto de criminalizar as ações dos movimentos sociais.
Na análise do projeto que resultou na lei, é relevante registrar que houve inclu-
são por parte do Senado Federal, em forma de substitutivo (PLC 101/15), de previsão
do extremismo político como motivação para a configuração do crime de terrorismo,
sendo definido como o ato “que atentar gravemente contra a estabilidade do Estado
Democrático, com o fim de subverter o funcionamento de suas instituições”. Além
disso, a norma que excluía os movimentos sociais das condutas típicas de terrorismo
havia sido retirada. Ao retornar ao Plenário da Câmara, o parecer do Dep. Arthur
Maia (PPS/BA) em nome da CREDN e demais comissões de mérito foi no sentido de
rejeitar o substitutivo e a manutenção do projeto como votado. Além do vício formal,
prevaleceu o entendimento de que o tema era anacrônico pelo recente debate.
Na CSPCCO, consta na tramitação legislativa que o parecer do Dep. Hugo
Leal (PSD-RJ), de 15 de maio de 2018, foi pela aprovação do projeto 5.065/16 e
dos projetos de lei 9.604/2018 e 9.858/2018, apensados, com substitutivo. O PL

276
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

9.604/201822, de autoria do Dep. Jerônimo Goergen (PP/RS), pretende alterar a


Lei 13.260 para incluir entre os casos de terrorismo eventuais atos dissimulados de
movimentos sociais. Para o congressista, como “não há direitos absolutos, nesta qua-
dra, promove-se a evolução da legislação penal antiterrorismo, a fim de se colocar um
paradeiro no clima de guerrilha que, não raro, instala-se em nosso território.”
No mesmo sentido, o PL 9.858/201823, proposto pelo Dep. Rogério Marinho
(PSDB/RN), pretende incluir entre os casos de terrorismo atos disfarçados de mani-
festação, ação individual, coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos
sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional que ocasionarem
invasão de prédios públicos, de propriedade privada, urbana ou rural, bloqueio de
vias públicas, impedimento ou tentativa de impedimento do direito de ir e vir, depre-
dação ou destruição de máquinas, equipamentos, instalações, prédios ou plantações.
A justificativa apresentada é extremamente fiel às aspirações dos seus proponentes:

Travestidos de movimentos sociais existem grupos terroristas arma-


dos e organizados para a prática de atos que levam pânico, prejuízos
psicológicos, materiais e atentam contra a propriedade e a vida do
cidadão no campo e nas cidades brasileiras. A realidade mostra com
admirável clareza que é preciso puni-los por seus crimes. Ninguém
pode estar autorizado a cometer crimes contra a segurança da coleti-
vidade. Nenhuma causa política justifica ações planejadas para infli-
gir terror na população. Movimentos sociais e políticos, hoje, estão
liberados a cometerem atentados, pois se tornaram inimputáveis. O
absurdo deve ser corrigido. Quem comete crimes de terror em nome
de causa social? São terroristas que devem ser enquadrados pela Lei.
A ressalva para movimentos sociais cometerem atos de terrorismo é
realmente inusitada. Não se encontra salvo - conduto para grupos em
nome de supostas causas praticarem o terror em nenhuma legislação
sobre o tema em outras nações. Vândalos, baderneiros e desocupa-
dos, embalados por palavras de ordem embrutecedoras, depredam o
patrimônio público e privado sem pudor em nome das mais diversas
reivindicações. Não é aceitável que fins justifiquem anarquia, desor-

22 BRASIL. Projeto de lei 9.604/2018, de 21 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre o abuso do direito de articulação
de movimentos sociais, destinado a dissimular atuação terrorista, inserindo parágrafo no art. 2º da Lei nº 13.260,
de 16 de março de 2016. Câmara dos Deputados, Brasília, 2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br.
Acesso em: 20 maio 2020.
23 BRASIL. Projeto de lei 9.858/2018, de 22 de março de 2018. Altera a Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016,
para dispor sobre a atividade terrorista de movimentos sociais. Câmara dos Deputados, Brasília, 2018. Disponí-
vel em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 20 maio 2020.

277
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

dem e atos contra o direito de propriedade privada e contra a vida.


Virou comum ver, no país, centenas de pessoas organizadas saírem
às ruas para causar tumulto, bagunça e depredação; geram terror na
população. Participam de ações planejadas e financiadas com o claro
objetivo de espalhar medo intenso e chamar a atenção dos meios
de comunicação para fins propagandísticos. Afrontam policiais com
violência. Provocam, incendeiam pneus, espalham lixo e quebram o
patrimônio de pessoas que levaram uma vida de trabalho e esforço
para construir. Manipulam o preceito da livre manifestação política
para cometerem crimes. Agem como estelionatários quando vivem
da falsidade ideológica. Não são manifestantes: são criminosos terro-
ristas liderados por políticos oportunistas e movimentos ditos sociais
nutridos, no passado, com dinheiro dos pagadores de impostos.

Em que pese a informação oficial de que o parecer recomenda a aprovação,


a sua leitura sugere ressalvas. Em anexo, o documento apresenta um substitutivo.
Conforme o parlamentar, quanto ao art. 6º do PL 5.065/2016, que revoga o § 2º,
do art. 2º, da Lei nº 13.260/2016, não se afigura adequado retirar essa previsão neste
momento, em especial porque não existe, no texto atual, nenhuma isenção aos movi-
mentos sociais, mas tão somente uma salvaguarda para que não haja o desvirtuamen-
to da visão estatal em relação aos grupos contidos no texto, desde que estes estejam
em consonância com as normas em vigor. A exceção já contempla manifestações po-
líticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional,
pois há margem para outras tipificações penais.
No que tange ao art. 2º do PL 5.065/2016, ele considerou oportuna a inclusão
de ‘estradas, rodovias, hidrovias e ferrovias’ como possíveis alvos do crime de terroris-
mo, mas a discriminação de instalações públicas da forma proposta não seria aceitável.
Ademais, quanto aos arts. 3º, 4º e 5º, há criação de novas situações potencialmente
mais graves de terrorismo, mas, em tese, elas já estão previstas na lei. Apesar deste
raciocínio, o relator preconiza o recrudescimento da pena inicial do artigo 2º de 12
para 20 anos de reclusão, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.
Em 2020, o PL 3.01924, proposto pelo Dep. Daniel Silveira (PSL/RJ), tem
como escopo tipificar os grupos “antifas” (antifascistas) e “demais organizações com
ideologias similares” como organizações terroristas. Na justificativa há alusão expressa
à manifestação de 31 de maio de 2020, na Av. Paulista, na qual integrantes de qua-

24 BRASIL. Projeto de lei 3.019/2020, de 1º de junho de 2020. Altera a Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016,
para dispor sobre a atividade terrorista de movimentos sociais. Câmara dos Deputados, Brasília, 2020. Disponí-
vel em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 2 jun. 2020.

278
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tro torcidas de futebol de São Paulo (Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos)
organizaram ato com faixas e brados com a expressão “Somos pela democracia!”. A
manifestação, que teve um princípio pacífico, foi encerrada após confronto com a
Polícia Militar (PM) e apoiadores do presidente Bolsonaro (sem partido; ex-PSL/RJ),
cujas bandeiras exibiam locuções contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal
Federal. Segundo o autor da proposição, a inclusão é urgente em virtude das flagran-
tes manifestações públicas de prática de ódio e incitação à violência, sob o falso viés
da defesa da democracia, praticadas pelas “famigeradas torcidas organizadas de clubes
paulistas, cujo histórico denota claramente poder de organização com potencial para
a efetiva prática de atos violentos em maior escala e altamente lesivos à sociedade”.

CONCLUSÃO

Se é certo que a Constituição Federal estabeleceu, na seção de direitos e garantias


fundamentais (artigo 5º), vários mandados de criminalização, por outro lado, a
proliferação de leis penais incriminadoras ocasionou o recrudescimento vertiginoso
dos contingentes prisionais. São exemplos a lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90),
a lei que define os crimes de tortura (Lei 9.455/97), a lei de drogas (Lei 11.343/06) e
a lei que define organização criminosa (Lei 12.850/13).
A Lei 13.260/16 é remanescente deste movimento de tipificação de condutas e
as propostas de alteração legislativa deixam mais evidente o propósito punitivista. Em
primeiro lugar, os parlamentares possuem como objetivo formalizar, em sede legal, o
que já ocorre na prática com a repressão e o tratamento de criminosos de manifestan-
tes por parte das autoridades de segurança pública, mesmo em protestos pacíficos. O
Projeto de Lei 5.065/2016, ao qualificar a Lei nº 13.260/16 como “tímida”, acusa-a
de omissa ao não contemplar no bojo de terrorismo as motivações políticas e ideoló-
gicas. Em segundo lugar, além de se tratar de uma excrescência na teoria geral do cri-
me, a qual não se compatibiliza com tipificações abstratas, as propostas vilipendiam a
liberdade de manifestação, de pensamento e de expressão.
O direito de resistência é inerente ao homem, ao povo. Em uma democracia,
o direito à liberdade de expressão deve ter espaço reservado na agenda institucional
do Estado e o povo não pode ser tratado como inimigo. Os órgãos de segurança pú-
blica devem ser deslocados para garantir exatamente o exercício da manifestação e
não como mecanismo de controle em busca de suspeitos e perigosos. Os movimentos
sociais são compostos por operários da construção civil, artesãos, coletores de resíduos
sólidos, pintores, professores, servidores públicos, escritores, artistas.

279
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A democracia é o espaço propício ao conflito, ao debate, ao respeito. Nos


movimentos sociais, nas categorias, nos sindicatos, nos partidos, o homem tem a
oportunidade de se reinventar enquanto ser social, se multiplicar, se emancipar. É
no ambiente discricionário das ruas que os laços afetivos, ideológicos, se unem e se
entrelaçam na construção de um destino mais belo e de uma história (re) escrita com
mais amor e menos sangue.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Projeto de lei 5.065, de 26 de abril de 2016. Altera o artigo 2º da Lei nº 13.260/16, dan-
do nova redação ao seu caput e ao seu §1º, inciso V, acrescendo os incisos VI, VII e VIII ao seu
§1º, e revogando o seu § 2º. Câmara dos Deputados, Brasília, 2016. Disponível em: https://
www.camara.leg.br. Acesso em: 20 maio 2020.

BRASIL. Projeto de lei 9.604/2018, de 21 de fevereiro de 2018. Dispõe sobre o abuso do direito
de articulação de movimentos sociais, destinado a dissimular atuação terrorista, inserindo pará-
grafo no art. 2º da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016. Câmara dos Deputados, Brasília,
2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 20 maio 2020.

BRASIL. Projeto de lei 9.858/2018, de 22 de março de 2018. Altera a Lei nº 13.260, de 16 de


março de 2016, para dispor sobre a atividade terrorista de movimentos sociais. Câmara dos De-
putados, Brasília, 2018. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 20 maio 2020.

BRASIL. Projeto de lei 3.019/2020, de 1º de junho de 2020. Altera a Lei nº 13.260, de 16 de


março de 2016, para dispor sobre a atividade terrorista de movimentos sociais. Câmara dos
Deputados, Brasília, 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 2 jun. 2020.

BRASIL. Lei 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art.
5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e
processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis n º 7.960, de 21
de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Presidência da República, Brasília,
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281
Capítulo 16
AS ZONAS ESPECIAIS DE
INTERESSE SOCIAL COMO
INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO
DE DIREITOS HUMANOS
EM FORTALEZA
SUMÁRIO: Introdução. 1. A previsão legal das ZEIS no Brasil em Fortaleza. 2. A
potencialidade das ZEIS na promoção do direito à cidade. 3. A implementação das ZEIS
em Fortaleza após o PDP/For. 3.1. Criação do Comitê Técnico Intersetorial e Comunitário
das ZEIS. 3.2. A eleição dos Conselhos Gestores das ZEIS e o início dos PIRFs. 4. As ZEIS
como instrumento de luta pela permanência. Considerações Finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 16

AS ZONAS ESPECIAIS DE INTERESSE SOCIAL COMO INSTRUMENTO


DE EFETIVAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS EM FORTALEZA

João Vito Castro Silva25

INTRODUÇÃO

As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) consistem em um instrumento


especial de zoneamento urbano capaz de flexibilizar índices e parâmetros urbanísticos
de uso e ocupação do solo, bem como desenvolver planos de melhorias específicos para
cada local demarcado como tal, tendo em vista a regularização jurídica, fundiária e
urbanística dessas áreas, as quais são caracterizadas como irregulares de acordo com os
padrões urbanísticos da cidade legal, que em muito se distanciam da realidade de gran-
de parte dos assentamentos urbanos irregulares, componentes da cidade informal.
No Brasil, as primeiras incorporações do termo ZEIS na legislação datam da
década de 1980, em Recife (BRASIL, 2009, p. 10), sendo mais concreta a sua pre-
sença – dentro das ações do Estado para enfrentar as problemáticas habitacionais – na
aprovação da Lei nº 16.113/9526, também de Recife. Atualmente, as ZEIS estão pre-
vistas a nível federal, por meio do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), fato que
é considerado uma conquista para os movimentos sociais que historicamente lutam
pela execução de uma política habitacional capaz de contemplá-los, promovendo a
regularização de suas áreas, bem como permitindo que tenham acesso a direitos fun-
damentais, como o direito à cidade e, mais especificamente, o direito à moradia.
O presente trabalho, nessa perspectiva, propõe-se a analisar as potencialidades
das ZEIS como instrumento de promoção de direitos humanos, e a contextualizar
tais potencialidades à cidade de Fortaleza, a partir da legislação local, destacando-se o
Plano Diretor Participativo de 200927 (PDP/For), bem como as posteriores medidas
do Poder Executivo para implementação das ZEIS. Além disso, buscar-se-á relacionar
a maneira como o Poder Público da cidade vem tratando o instrumento das ZEIS na

25 Aluno do 6º semestre da Faculdade de Direito da UFC. Integrante do NAJUC (Núcleo de Assessoria Jurídica
Comunitária). Estagiário no Fórum Clóvis Beviláqua.
26 A Lei nº 16.113, do município de Recife, dispunha, à época, sobre o Plano de Regularização das ZEIS – PRE-
ZEIS, sendo considerada pioneira na utilização das ZEIS dentro do Brasil.
27 O Plano Diretor Participativo de Fortaleza foi instituído em 2 de Fevereiro de 2009, com a aprovação da Lei
Complementar nº 062.

285
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

execução da política habitacional do município com o real aproveitamento dele como


forma de efetivar o direito fundamental à moradia na cidade.

1. A PREVISÃO LEGAL DAS ZEIS NO BRASIL E EM FORTALEZA

A Constituição Federal de 1988 inovou na maneira como o Brasil trata o direito


à propriedade, ao relativiza-lo ao cumprimento de sua função social, com o objetivo
bem delimitado de equilibrar o direito individual de propriedade ao interesse co-
mum, no que se pode entender como uso socialmente justo e ecologicamente equi-
librado do espaço urbano (FORTALEZA, 2016, p. 13). Anos mais tarde, em 2001,
houve a aprovação do Estatuto da Cidade, Lei Federal que dita as diretrizes da política
urbana no Brasil, as quais devem ser seguidas por todos os municípios. O Estatuto,
ao prever expressamente o instrumento das ZEIS em seu artigo 4°, foi responsável
por introduzi-las mais fortemente entre o leque de instrumentos capazes de auxiliar
na promoção do direito à cidade e à moradia. Diante disso, o texto constitucional,
ao vincular os municípios com mais de vinte mil habitantes à existência de um plano
diretor, responsável por regulamentar e orientar a política urbana do município que
o institui, de acordo com as diretrizes do Estatuto da Cidade, foi capaz de criar um
arcabouço legislativo que guia uma melhor implementação de ações do Estado, com
vista a promover o direito à cidade no Brasil.
Nota-se, entretanto, que já houve um descompasso entre a previsão das ZEIS e a
sua real utilização no fato de não haver, no Estatuto da Cidade, a sua definição legal.
Essa lacuna na legislação federal só veio a ser preenchida oito anos mais tarde, com a
Lei n° 11.977/091, a qual em seu artigo 47, inciso V, define as ZEIS como:
[...] a parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou defini-
da por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia
de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcela-
mento, uso e ocupação do solo”. (BRASIL, 2009).

Diante dos avanços da legislação federal na implementação de uma nova


ordem legal referente à política urbana, o Plano Diretor Participativo de Fortaleza
(PDP/For) é aprovado em 2009 com o intuito de viabilizar a execução dessa política
urbana dentro do município. Ele expressamente previu as ZEIS, as tratando como
ações estratégicas prioritárias, em seu artigo 6º, inciso VII. Ademais, traz os objetivos
do instrumento no artigo 127, em que se destacam o cumprimento da função social

1 Lei que regulamenta o Programa “Minha Casa, Minha Vida” e a Regularização Fundiária no território brasileiro.

286
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

da propriedade e da cidade, a promoção da regularização fundiária e urbanística dos


assentamentos ocupados por populações de baixa renda, a promoção de oferta de in-
fraestrutura básica e serviços, além do desenvolvimento humano dos ocupantes des-
sas zonas. Evidencia-se, aqui, o caráter essencial das ZEIS como forma de promover
direitos básicos às populações que se encontram em situação de vulnerabilidade e de
irregularidade em relação à cidade formal, não sendo contempladas pela maioria das
políticas públicas do Estado.
O PDP/For dita, ainda, os instrumentos capazes de serem utilizados dentro
das ZEIS, no artigo 128, estando dentre eles a usucapião especial de imóvel urbano
e a concessão de uso especial para fins de moradia (CUEM), bem como traz uma
classificação do zoneamento especial em três tipos. As ZEIS tipo 1 são caracterizadas
por assentamentos irregulares, as do tipo 2 constituídas por loteamentos clandestinos
e conjuntos habitacionais e, por fim, as ZEIS tipo 3 são comumente denominadas de
vazios urbanos. Enquanto as duas primeiras tipologias são destinadas à regularização
dos assentamentos já existentes, a terceira modalidade é voltada a áreas predominan-
temente vazias, as quais podem ser utilizadas para o desadensamento dos assentamen-
tos, em áreas que, via de regra, sejam próximas fisicamente e já dotadas minimamente
de infraestrutura, conforme explicam Freitas e Pinho (2012, p. 2).

2. A POTENCIALIDADE DAS ZEIS NA PROMOÇÃO DO DIREITO À CIDADE

O PDP/For, ao instituir as ZEIS como instrumento da política urbana de


Fortaleza, prevê uma série de ações a serem feitas com o objetivo de regulamentá-las.
Em seu artigo 270, aduz que em cada ZEIS 1 e 2 devem ser elaborados Planos Inte-
grados de Regularização Fundiária (PIRFs), específicos para cada zoneamento, com o
intuito de produzir normas e parâmetros específicos de uso e ocupação do solo desses
assentamentos, de acordo com o modo de vida da população, bem como tendo em
vista a regularização fundiária, a partir de diagnóstico da área e posterior apontamen-
to dos instrumentos jurídicos a serem utilizados para tal. Cada PIRF deve conter,
ainda, planos de geração de emprego e renda, plano de participação popular e plano
urbanístico, os quais, em conjunto, serão capazes de, a partir da realidade local e dos
anseios das populações, prever a maneira como a ZEIS será melhor regulamentada,
promovendo qualidade de vida e acesso da comunidade a serviços básicos, como sa-
neamento da rede de esgoto, transporte, educação, saúde, lazer e cultura.
A elaboração dos PIRFs, para cumprir com seu objetivo, deve se dar de manei-
ra participativa e comunitária, tendo a evidente missão de incitar a gestão democráti-

287
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ca da cidade, uma das diretrizes do Estatuto da Cidade. Para isso o PDP/For institui
a criação dos Conselhos Gestores:
Art. 268: Deverão ser constituídos, em todas as ZEIS 1 e 2,
Conselhos Gestores compostos por representantes dos atuais
moradores e do Município, que deverão participar de to-
das as etapas de elaboração, implementação e monitora-
mento dos planos integrados de regularização fundiária.
Parágrafo Único - Decreto Municipal deverá regulamentar a cons-
tituição dos Conselhos Gestores das ZEIS 1 e 2 determinando suas
atribuições, formas de funcionamento, modos de representação
equitativa dos moradores locais e dos órgãos públicos competentes.
(FORTALEZA, 2009).

O Conselho Gestor de cada ZEIS, nessa perspectiva, tem o papel de acompa-


nhar a elaboração dos PIRFs, sendo necessário que aprove cada etapa da produção
para que, assim, o Plano represente os anseios da comunidade. Dito isso, percebe-se
que as ZEIS são capazes não só de contemplar, com políticas públicas, populações
marginalizadas por décadas de uma excludente política habitacional, como, também,
de incitar a participação das pessoas, possibilitando que se apropriem de temáticas as
quais nem sempre lhe foram viabilizadas. No Guia “Como Delimitar e Regulamentar
Zonas Especiais de Interesse Social”, de iniciativa do extinto Ministério das Cidades,
é esse um dos objetivos da instituição das ZEIS:
[...] O estabelecimento de ZEIS significa o reconhecimento da diver-
sidade de ocupações existentes nas cidades, além da possibilidade de
construção de uma legalidade que corresponda a esses assentamentos
e, portanto, de extensão do direito de cidadania a seus moradores.
(BRASIL, 2009, p. 155).

Para além da regularização das áreas reconhecidas como zonas especiais, o


instrumento das ZEIS é inserido, também, no campo de luta das comunidades
para a permanência nos locais em que estão inseridas, tendo em vista as constantes
ameaças pelas quais são submetidas em virtude da força do capital econômico rela-
cionado ao mercado imobiliário. O Guia produzido pelo Ministério das Cidades,
nessa perspectiva, aponta:
[...] Trata-se de um produto da luta dos assentamentos irregulares
pela não remoção, pela melhoria das condições urbanísticas e pela re-
gularização fundiária. A concepção básica do instrumento das ZEIS
é incluir, no zoneamento da cidade, uma categoria que permita, me-

288
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

diante um plano específico de urbanização, o estabelecimento de um


padrão urbanístico próprio para o assentamento. (BRASIL, 2009).

3. A IMPLEMENTAÇÃO DAS ZEIS EM FORTALEZA APÓS O PDP/FOR

3.1 Criação do Comitê Técnico Intersetorial e Comunitário das ZEIS

Após a entrada em vigor do PDPFor de 2009, muitas expectativas foram cria-


das pelos movimentos inseridos na pauta do direito à cidade em Fortaleza, tendo em
vista a necessidade de o instrumento ser implementado o mais rapidamente, como
resposta às décadas de exclusão da cidade informal, inexistindo, para Freitas e Pe-
queno (2012, p. 6), ações diretas de enfrentamento à essa exclusão, o que demonstra
o descompasso das políticas municipais urbanas e habitacionais, que, ao não serem
feitas de forma conjunta, favoreceram a favelização.
A urgência da implementação das ZEIS, todavia, não foi reconhecida pelo
Poder Público de Fortaleza, o que se nota pela demora em iniciar a regulamentação
das zonas. Somente quatro anos após a aprovação do PDP/For, em 2013, a Prefei-
tura Municipal iniciou o processo, com a criação do Comitê Técnico Intersetorial e
Comunitário das ZEIS2, justamente para tratar do processo de regulamentação des-
tas. E essa criação só se deu após mobilizações das comunidades e das entidades que
atuam no eixo do direito à moradia, o que demonstra a insuficiente vontade política
de dar andamento à regulamentação das ZEIS.
A criação do Comitê foi considerada pela Gestão Municipal como uma forma
de exercer a gestão democrática e participativa, tendo a finalidade de produzir dados
capazes de guiar o Poder Público na implementação das ZEIS, apontando quais as
estratégias a serem adotadas, bem como fornecendo uma espécie de panorama em
relação à situação das ZEIS. Para isso, compuseram o Comitê representantes de nove
comunidades demarcadas como ZEIS (Lagamar, Pici, Moura Brasil, Poço da Draga,
Bom Jardim, Pirambu, Serviluz, Praia do Futuro e Mucuripe). Ademais, participaram
das reuniões regularmente outras entidades inseridas na luta pelo direito à cidade,
junto às comunidades, como o Laboratório de Estudos de Habitação (LEHAB) e o
Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária (NAJUC), ambos pertencentes à Univer-
sidade Federal do Ceará (UFC).

2 O comitê das ZEIS foi instituído por meio do Decreto Municipal nº 13.241, de 21 de outubro de 2013, com a
finalidade de “subsidiar o executivo municipal de informações suficientes para tomadas de decisão relativamente
à regulamentação e à implementação destas zonas especiais no âmbito do território municipal”.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Dito isso, destaca-se o fato de muitas informações do relatório produzido pelo


Comitê das ZEIS apontarem o fato de o Poder Público não priorizar a regulamentação
das ZEIS. Análise feita em relação ao planejamento orçamentário do município aponta
que inexistiram fundos de financiamentos e programas específicos para as ZEIS em
Fortaleza (FORTALEZA, 2015, p. 209), tendo sido, na Lei de Diretrizes Orçamentá-
rias (LDO) de 2015, a primeira vez em que as ZEIS estiveram expressamente previstas
em alguma LDO. Por conseguinte, evidencia-se que a regulamentação das ZEIS não
foi priorizada e sequer planejada pelo Poder Público, o qual continuou a negligenciar
a formulação de políticas públicas que contemplassem comunidades historicamente
cerceadas de direitos fundamentais, entre eles o da moradia digna, o qual acompanha o
acesso a serviços básicos capazes de gerar qualidade de vida.

Além disso, a produção do relatório pelo Comitê apontou inconsistências na


utilização de alguns instrumentos, como as operações urbanas consorciadas (OUCs),
as quais foram apresentadas por representantes da Prefeitura como alternativa de de-
senvolvimento das áreas demarcadas como ZEIS, entretanto entidades componentes
do Relatório destacaram o caráter contraditório e, na verdade, dissociado da utiliza-
ção das OUCs em relação à regulamentação das ZEIS:
[...] a demonstração de que esse instrumento nunca acarretou bene-
fícios sociais concretos, mas que sempre favoreceu exclusivamente o
setor privado, bem como que, em Fortaleza, o instrumento nunca foi
usado para ZEIS e que as OUC previstas também não consideram as
ZEIS, mesmo quando vizinhas a elas. Assim, torna-se contraditório
apostar neste instrumento como a principal ferramenta de viabiliza-
ção das ZEIS [...] (FORTALEZA, 2015, p. 195).

Nessa perspectiva, é notório o fato de a real regulamentação das ZEIS, mesmo


passados anos de aprovação do PDP/For, não ter sido, até a criação do Comitê, pensada
e posteriormente executada pelo Poder Público, muito embora a gestão municipal não
economize esforços para aplicar outros instrumentos que atendam ao interesse do capital
econômico e deem continuidade ao histórico de desigualdade da cidade de Fortaleza.

3.2. A eleição dos Conselhos Gestores das ZEIS e o início dos PIRFs

Após a entrega do relatório produzido pelo Comitê das ZEIS e a instituição, em


2016, da Comissão de Acompanhamento da Regulamentação das ZEIS, a Prefeitura de
Fortaleza identificou, como prioritárias, dez Zonas Especiais de Interesse Social, sendo
elas: Dionísio Torres/Vila Vicentina, Pici, Lagamar, Serviluz, Praia do Futuro, Bom

290
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Jardim, Pirambu, Poço da Draga, Moura Brasil e Mucuripe. Após a identificação dessas
zonas prioritárias, então, passou-se a cobrar a real regulamentação destas, a qual não po-
deria se fazer sem a criação dos Conselhos Gestores, em cada uma delas. Importante sa-
lientar, ainda, que do universo de 45 (quarenta e cinco) ZEIS do Tipo 1 e 56 (cinquenta
e seis) do Tipo 2, a escolha de apenas 10 para passar por esse processo já demonstra, de
maneira clara, o fato de a gestão do município não aproveitar da maneira ideal o instru-
mento das ZEIS para efetivar direitos fundamentais das populações de baixa renda, que
compõem grande parte dos assentamentos irregulares.
Dito isso, aponta-se o Decreto Municipal nº 14.211, de maio de 2018, o
qual, enfim, tratou de regulamentar o processo de eleição dos Conselhos Gestores
das ZEIS, bem como dispôs sobre a competência do conselho e a sua composição.
Por parte das comunidades, dos movimentos sociais da luta pelo direito à cidade
e das entidades apoiadoras houve enormes esforços para engajar as populações das
ZEIS a participar do processo, tendo em vista maior representatividade e, prin-
cipalmente, participação das pessoas em um processo essencial para que tenham
a regularização de suas comunidades. Para isso foram feitas oficinas, formações e
reuniões de quarteirões, por parte de assessorias e de movimentos. Ao fim do pro-
cesso, foram empossados, em novembro de 2018, 127 conselheiros (entre titulares
e suplentes), o que representou expressiva vitória daqueles que lutam, há anos, pela
regulamentação das ZEIS. O processo de eleição dos conselhos não só serviu de
exercício da cidadania, como deu indicativo do potencial das ZEIS como forma de
propiciar a gestão democrática da cidade.
Mais uma vez, no entanto, a regulamentação das ZEIS foi dificultada pela
insuficiente vontade política, não raro sendo apontada pela Prefeitura a carência de
recursos para destinar às ZEIS. Apesar disso, a conseguinte elaboração dos PIRFs, a
ser feita após a tomada de posse dos conselheiros, foi iniciada, em meio a inúmeros
entraves burocráticos e a conturbadas mudanças de prazos. Datam ainda de 2018 as
primeiras notícias veiculadas na mídia sobre a elaboração dos PIRFs das dez ZEIS
consideradas prioritárias. A Prefeitura apresentou a proposta de os Planos serem ela-
borados por universidades, iniciando conversas com a Universidade Federal do Ceará
(UFC), a Universidade Estadual do Ceará (UECE), o Instituto Federal do Ceará
(IFCE) e a Universidade de Fortaleza (UNIFOR). UFC e UNIFOR, cada uma, fi-
cariam responsáveis pela elaboração do PIRF de três ZEIS, enquanto IFCE e UECE
dividiriam a elaboração dos restantes.
Atualmente, os PIRFs das dez ZEIS prioritárias encontram-se em processo de
elaboração, de modo que se aguarda a sua futura implementação pelo Poder Público

291
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

para, enfim, dar concretude às previsões legais das zonas especiais enquanto instru-
mento que flexibiliza parâmetros e índices urbanísticos a vista de possibilitar a regu-
larização e a consequente melhoria da qualidade de vida dos habitantes.
Importa salientar, ainda, que a elaboração dos PIRFs é uma etapa primordial
à regulamentação das ZEIS, para que o resultado seja, de fato, consoante ao que as
comunidades desejam, de acordo com seus hábitos culturais e estilos de vida caracte-
rísticos, analisando suas potencialidades e particularidades. A elaboração dos PIRFs
foi comemorada por todas as ZEIS por significar, também, a garantia de, ao fim,
haver um plano, devidamente aprovado e validado, o qual dispõe sobre parâmetros
e normas específicas para a ZEIS em questão, justamente flexibilizando os índices e
passando a contemplar a cidade informal dentro do planejamento e da construção da
cidade formal. Para além disso, no contexto da cidade de Fortaleza, significa dizer que
as comunidades das dez ZEIS prioritárias terão um documento concreto que auxilie
na luta pela efetivação do direito à cidade.

4. AS ZEIS COMO INSTRUMENTO DE LUTA PELA PERMANÊNCIA

Diante do histórico de desigualdade na aplicação de políticas públicas destinadas


à habitação, o processo de adensamento da cidade de Fortaleza foi marcado pela rápida
expansão de assentamentos irregulares. Essa expansão, como apontam Freitas e Peque-
no (2012, p. 9), sempre pôs frente a frente a existência dos assentamentos e as ambições
do capital econômico em torno do mercado imobiliário. Tendo como exemplo as dez
ZEIS prioritárias que passam, atualmente, por processo de regulamentação, não é rara a
existência de ameaças de remoções, pelos mais variados motivos, mas que, em comum,
sempre estão a serviço de interesses econômicos que não trazem benefícios às pessoas
que são diretamente afetadas, apontando-se como exemplo mais comum a ocorrência
de mega obras no entorno dos territórios das ZEIS. Essas construções em muito afetam
à vida dos habitantes, que, além das ameaças de remoção, assistem a processos de exclu-
são, com a ocorrência da gentrificação nesses espaços.
Nessa perspectiva, as ZEIS surgem, também, como meio de a população resistir
e lutar pelo direito de permanecer em suas comunidades, servindo como argumento
para barrar remoções que desrespeitam as disposições presentes no PDP/For. A Vila
Vicentina, por exemplo, um território demarcado como ZEIS e localizado em área
extremamente valorizada pelo mercado imobiliário de Fortaleza, foi alvo de parcial
demolição, no ano de 2016, em virtude de ação de reintegração de posse promovida
por particulares. De acordo com reportagem do jornal O Povo, a remoção, que ainda

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

atingiu três casas e promoveu intervenções em outras cinco, só não foi concluída por
intensas manifestações, à época, não só dos moradores, engajados em torno da luta
pela regulamentação das ZEIS, como de movimentos atuantes dentro da pauta do
direito à cidade.3 Recentemente, inclusive, a Sociedade São Vicente de Paulo, a qual
havia tentado a reintegração de posse, impetrou com recurso à decisão que suspendeu
a reintegração. O agravo de instrumento da Associação foi julgado em 16 de outubro
de 2019, tendo o TJCE negado provimento ao recurso (CEARÁ, 2019).4 Constou,
no embasamento do Tribunal, justamente o fato de a Vila Vicentina ser uma ZEIS,
o que impossibilitava a remoção das casas sem melhor apuramento acerca da regu-
lamentação da área, que necessita da elaboração de plano próprio, no qual constará
diagnóstico fundiário da área.
Importante pontuar, portanto, que a instituição das ZEIS em Fortaleza,
ao longo dos anos, vem servindo como forma não somente de exigir o direcio-
namento de políticas públicas voltadas a essas comunidades, como, também, de
lutar pela permanência das pessoas nos locais que vivem e de resistir aos efeitos
da especulação imobiliária.

CONCLUSÃO

O presente trabalho se propôs a analisar as Zonas Especiais de Interesse Social


como instrumento de promoção de direitos humanos, realizando reflexões e desdo-
bramentos acerca das possibilidades geradas a partir da previsão legal da ZEIS em leis
como o Estatuto da Cidade, embasado pelos princípios da política urbana instituídos
na Constituição Federal. Nesse sentido, foi feito recorte para o contexto da cidade de
Fortaleza, avaliando, também, a maneira como o instrumento das ZEIS foi previsto
dentro da legislação municipal, com destaque para o PDP/For.
Nessa perspectiva, avaliou-se a regulamentação das ZEIS em Fortaleza após a
entrada em vigor do PDP/For, de maneira que foram mostradas as incongruências do
Poder Público em não priorizar ou não planejar a regulamentação dessas zonas para
dar resposta aos problemas encarados por grande parte dos assentamentos irregula-
res da cidade. Desse modo, foram apresentados os motivos pelos quais as ZEIS não
são, de fato, aproveitadas em todo o seu potencial de promover o acesso de popula-

3 Para mais detalhes acerca do caso da Vila Vicentina, acessar: <https://www.opovo.com.br/noticias/fortale-


za/2016/10/vila-na-aldeota-e-alvo-de-disputa.html>
4 TJ-CE: AI 06283972220168060000 CE 0628397-22.2016.8.06.0000, Relator: Lira Ramos de Oliveira, julgado
em 16/10/2019.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ções historicamente negligenciadas a políticas públicas que, enfim, lhes possibilitem


o acesso a serviços básicos e essenciais a uma vida digna.
A análise do histórico de luta das comunidades e dos movimentos sociais em
torno das ZEIS permitiu notar, também, o seu caráter de luta pela permanência das
pessoas nos locais em que habitam, de modo a colocar as ZEIS como instrumento,
também, de enfrentamento à especulação imobiliária e ao capital econômico das em-
presas interessadas em obras e projetos em regiões que circundam as ZEIS ou, mes-
mo, fazem parte delas.
Foi possível perceber, portanto, que embora as negligências e incongruências
do Poder Público em muito dificultem a regularização das ZEIS e ponham a prova o
seu potencial de promover direitos fundamentais, as potencialidades do instrumento
continuam sendo evidentes diante do cenário de urgência pela regularização da cidade
informal. A flexibilização proporcionada pela instituição de uma área como ZEIS, bem
como o desenvolvimento de projeto de regularização específico para a área, com base
em mecanismos de participação social e de gestão democrática, foram defendidos como
via mais adequada e, de fato, transformadora, em busca por uma cidade menos desigual
e que, enfim, possibilita a efetivação do direito fundamental à moradia.

REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei Federal nº 10257 (Estatuto da Cidade). Brasília: Câmara dos Deputados, 2001.

BRASIL. Guia para regulamentação e implementação de Zonas Especiais de Interesse Social


- ZEIS em Vazios Urbanos. Brasília: Ministério das Cidades, 2009.

CEARÁ. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. Agravo de Instrumento nº 0628397-


22.2016.8.06.0000. Agravantes: Conselho Central de Fortaleza da Sociedade de São Vicente de
Paulo e Conselho Metropolitano de Fortaleza da Sociedade de São Vicente de Paulo. Agravados:
Antônia Freitas Carvalho e Possuidores Desconhecidos. Relator: Desembargadora Lira Ramos
de Oliveira. Fortaleza, CE, 16 de outubro de 2019. Diário da Justiça Eletrônico. Fortaleza, 21
out. 2019. p. 181-182.

FORTALEZA. Plano Diretor Participativo (Lei nº 062/2009). Fortaleza: Prefeitura Municipal,


2009.

FORTALEZA. Relatório das Zonas Especiais de Interesse Social. Fortaleza: Comitê Técnico
Intersetorial e Comunitário das ZEIS, 2015.

FORTALEZA. Prefeitura Municipal. Prefeitura de Fortaleza empossa os membros dos Conse-


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br/noticias/prefeitura-de-fortaleza-empossa-os-membros-dos-conselhos-gestores-das-zeis. Aces-
so em: 4 nov. 2019.

294
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O POVO. VILA na Aldeota é alvo de disputa. Fortaleza, p. 1-4, 20 out. 2016. Disponível em:
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2016/10/vila-na-aldeota-e-alvo-de-disputa.html.
Acesso em: 4 nov. 2019.

PEQUENO, Luis Renato Bezerra; FREITAS, Clarissa Figueiredo Sampaio. Desafios para imple-
mentação das Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza. São Paulo: Enampur, 2011.

PINHO, Ana Virgínia Elias; FREITAS, Clarissa Figueiredo Sampaio. Zonas Especiais de Inte-
resse Social em Fortaleza: caracterização e indicação de vulnerabilidades através do sistema de
informação georreferenciado. IV Simpósio Brasileiro de Ciências Geodésicas e Tecnologia da
Informação. Recife: 2012.

ROLNIK, Raquel. Guia do Estatuto da Cidade. Brasília: Câmara dos Deputados, 2001.

295
Capítulo 17
CASA DA MULHER BRASILEIRA:
O ATENDIMENTO
MULTIDISCIPLINAR COMO
INSTRUMENTO PARA A
CONCRETIZAÇÃO DO ACESSO
À JUSTIÇA POR PARTE DAS
MULHERES VÍTIMAS DE
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A violência de gênero e suas especificidades. 3. A Casa da
Mulher Brasileira. 4. O atendimento multidisciplinar e intersetorial como concretização do
acesso à justiça. Considerações Finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 17

CASA DA MULHER BRASILEIRA: O ATENDIMENTO


MULTIDISCIPLINAR COMO INSTRUMENTO PARA A
CONCRETIZAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA POR PARTE DAS
MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Lais Correia Campos Capistrano1

INTRODUÇÃO

A violência doméstica, sem dúvidas, é um grave problema e atinge milhares de


mulheres brasileiras. Segundo o Atlas da Violência de 20192, diga-se somente à gui-
sa exemplificativa, a taxa de crimes contra a vida feminina cresceu nos últimos anos,
somente em 2017, cerca de 13 (treze) mulheres foram mortas por dia.
Diante desse cenário, a necessidade de profunda alteração nas políticas públi-
cas de combate à violência de gênero se torna ainda mais latente. Assim, apesar dos
entraves históricos, sociais e culturais, o processo de institucionalização do enfrenta-
mento à violência contra a mulher vem tomando novas formas nas últimas décadas.
Nesse contexto, surgiu a Casa da Mulher Brasileira, projeto Federal idealizado como
um centro multidisciplinar, intersetorial e especializado no atendimento às mulheres
em situação de violência doméstica, reunindo, no mesmo espaço, diversas atividades
e instituições, para além de englobar múltiplas competências funcionais, tudo em
busca de fornecer uma reparação completa às vítimas.
O mencionado projeto, pois, face às suas características, revela-se como um
importante instrumento para a concretização do efetivo acesso à justiça por parte das
mulheres brasileiras que padecem do tipo de violência abordado, pelo que a presente
pesquisa se propõe a analisar a projeto e as suas respectivas contribuições.

1 Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Ceará. Estagiária do Ministério Público do Estado do Ceará.
Pesquisadora na área de Gênero, com enfoque na violência contra a mulher, feminicídio e direitos femininos. Foi
monitora de Direito Penal II (Parte Especial I) na Universidade de Fortaleza. Fez parte da Liga Acadêmica de Es-
tudos sobre a Mulher da Universidade de Fortaleza. E-mail: laiscapistrano@outlook.com.
2 Documento produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segu-
rança Pública (FBSP), onde são construídos e analisados inúmeros indicadores para compreender a violência no
Brasil (cf. CERQUEIRA, D. R. C. et al. Atlas da Violência 2019. 2019. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/
portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf. Acesso em 27 de outu-
bro de 2019).

299
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

1. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E SUAS ESPECIFICIDADES

A violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das principais


formas de violação dos direitos humanos femininos e atinge as mulheres em seus di-
reitos à vida, à saúde e à integridade física. Éla detém um caráter multifacetado, posto
que, além de se externalizar de diversas formas, repercute em inúmeros aspectos da
vida das vítimas.
Segundo a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-
lência contra as Mulheres3, esse tipo de violência deve ser entendido como qual-
quer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico,
sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. No
mesmo sentido, a Lei Maria da Penha4 (Lei nº 11.340/2006) conceitua o fenômeno
como “ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento
físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade do-
méstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou
sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregada, no âmbito da família,
compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se conside-
ram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa e
em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido
com a ofendida, independentemente de coabitação”.
A sociedade brasileira, especificamente, é marcada por desigualdades
que se explicitam na forma como os homens e as mulheres são atingidos pela violên-
cia, ao passo que os homens são mais frequentemente vitimados em espaços públicos,
as mulheres são recorrentemente assassinadas e agredidas no âmbito doméstico5. Os
protagonistas/autores dessas condutas, na maioria dos casos, são aqueles com quem
a mulher possui uma relação íntima de afeto, como maridos ou ex-companheiros, os
quais se prevalecem do relacionamento para fazerem com quem suas companheiras
padeçam de sofrimento.

3 A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher (conhecida como Con-
venção de Belém do Pará), firmada em 9 de junho de 1994, conceitua a violência contra as mulheres e estabelece
deveres aos Estados signatários, com o propósito de criar condições reais de rompimento com o ciclo de violência.
4 A Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, conforme esclarece sua ementa,“cria mecanismos
para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal,
da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Inte-
ramericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de
Execução Penal; e dá outras providências” (cf. BRASIL. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a mulher. Belém do Pará, em 9 de junho de 1994).
5 O que é demonstrado pela Nota técnica nº 13 do IPEIA.

300
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Como já mencionado, a violência contra a mulher tem por característi-


ca o fato ser materializada de várias formas. Consoante, aliás, estabelece a Lei Maria
da Penha, os atos violentos podem ser classificados em cinco grupos: violência física
(entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal);
violência psicológica (conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da au-
toestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise de-
gradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões); violência sexual
(qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada); violência patrimonial (entendida como qualquer conduta que
configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumen-
tos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômi-
cos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades); e, ainda, violência moral
(calúnia, difamação ou injúria)6.

Em verdade, a Violência de gênero, inclusive em suas modalidades familiar e


doméstica, não ocorre aleatoriamente, mas deriva de uma organização social de gêne-
ro, que privilegia o masculino7. Assim, entendendo que o fenômeno advém da pró-
pria construção da sociedade e que o seu combate não se esgota na simples punição
do autor, pode-se concluir que ele merece tratamento diferenciado.
Desse modo, considerando as especificidades da violência de gênero e, ainda,
que é dever do Estado8 combater e reprimir esses atos, é que foi idealizada a Casa da
Mulher Brasileira, projeto que será abordado no tópico seguinte.

2. A CASA DA MULHER BRASILEIRA

A Casa da Mulher Brasileira, uma das ações previstas no Programa Federal


“Mulher, viver sem violência”9, instituída pelo Decreto nº 8.086/2013, teve sua
primeira unidade inaugurada em 2015, pela então Presidente Dilma Roussef, em
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, reunindo em um mesmo espaço: Juizado Es-
pecial de Violência contra a Mulher; Promotoria Especializada; núcleo da Defensoria

6 A mencionada classificação em grupos está preconizada nos incisos do artigo 7º da Lei nº 11.340/2006 (Lei
Maria da Penha).
7 SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo. Ed. Perseu Abramo, 2004, p. 81.
8 A Constituição Federal assegura em seu art. 226, § 8º, “a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a in-
tegram, criando mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações”.
9 O citado programa foi idealizado pelo Governo Federal para, segundo suas diretrizes, mediante adesão dos Es-
tados, “promover a criação de centros integrados de serviços especializados, humanização do atendimento em
saúde, cooperação técnica com o sistema de justiça e campanhas educativas de prevenção e enfrentamento à vio-
lência de gênero”.

301
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Pública; uma Delegacia de Defesa da Mulher; alojamento de passagem; brinquedote-


ca; apoio psicossocial; capacitação para a autonomia econômica da vítima; e central
de transportes. E isso foi feito assim como as Unidades que a sucederam, inclusive a
do Estado do Ceará.
A referida instituição constitui unidade de acolhimento e atendimento huma-
nizado, tendo por objetivo a prestação de assistência intersetorial e integral10, através
dos mais diversos serviços especializados, de modo a propor uma norma formal de
enfrentamento à violência, que extrapola a simples punição do agressor, adentrando
no âmbito do protagonismo da vítima, da sua integridade física e psicológica, do seu
empoderamento social e econômico, e, ainda, do atendimento aos filhos das ofendi-
das, os quais, aliás, são vítimas indiretas da violência dirigida às mulheres.
Merece destaque que tal instituição representa a materialização do que há mui-
to a Lei Maria da Penha já idealizava, posto que o mencionado diploma legal, em seu
artigo 8º, inciso I, estabelece como diretriz das políticas públicas que visem coibir a
violência doméstica contra a mulher a “integração operacional do Poder Judiciário,
do Ministério Público e da Defensoria Pública com as áreas de segurança pública,
assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação”.
A Casa da Mulher Brasileira, portanto, é um vetor de transformação na pró-
pria estrutura estatal, já que, considerando que a problemática possui causas e conse-
quências plurais, garante às mulheres atendidas os mais diversos serviços necessários
e demandados em um só lugar, de modo humanizado e eficaz, além de aproximar o
público-alvo das instituições públicas.

3. O ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR E A CONCRETIZAÇÃO DO


ACESSO À JUSTIÇA

Para Horácio Rodrigues11, o efetivo acesso à justiça consiste em um direito


material legítimo e voltado à realização da justiça social. Nesse sentido, atentan-
do-se as já abordadas especificidades que caracterizam a violência doméstica, en-
tende-se que o efetivo acesso à justiça como direito inerente às mulheres somente

10 Segundo as diretrizes do Programa Mulher, Viver sem Violência, um dos objetivos da Casa da Mulher Brasi-
leira é a “assistência integral e humanizada às mulheres em situação de violência, facilitando o acesso destas aos serviços
especializados e garantindo condições para o enfrentamento da violência, o empoderamento e a autonomia econômica
das usuárias” (cf. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Secretaria Especial de
Políticas para as Mulheres. Programa Mulher, Viver Sem Violência: Diretrizes Gerais E Protocolos De Aten-
dimento. Brasília, 2015).
11 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual brasileiro. São Paulo:
Acadêmica, 1994.

302
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

pode ser concretizado se forem voltados os olhares profissionais aos aspectos que
extrapolam a punição do agressor.
Assim, a promoção do acesso à justiça das mulheres vítimas de violência domés-
tica perpassa necessariamente pela promoção do atendimento integral das mesmas, o
que envolve, obrigatoriamente, uma análise de todas as suas necessidades, levando a
conclusão de que o êxito implica na observância da pluralidade das demandas, o que
evidencia o caminho da multidisciplinaridade como instrumento de reparação.
Merece destaque que a fragmentação nos serviços de atenção à mulher em
situação de violência, bem como o acesso e a limitada capacidade de tomar resolu-
ções constituem aspectos institucionais que dificultam o processo de libertação das
mulheres da situação de violência doméstica12. Por esse motivo, a articulação setorial
proposta pela Casa da Mulher Brasileira quebra paradigmas e, com seu caráter multi-
disciplinar, se revela como instrumento efetivo de combate à violência e/ou minimi-
zação de seus efeitos.
Segundo preconiza o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as
Mulheres13, é necessário que o Estado brasileiro adote políticas públicas acessíveis a
todas as mulheres, que englobem as diferentes modalidades pelas quais ela se expres-
sa. Essa disposição, indiscutivelmente foi observada pelo projeto em discussão, posto
que, como já mencionado, as unidades reúnem Juizado Especial de Violência contra
a Mulher, Promotoria Especializada, núcleo da Defensoria Pública, uma Delegacia
de Defesa da Mulher, alojamento de passagem, brinquedoteca, apoio psicossocial e
capacitação para a autonomia econômica da vítima.
A aproximação dos núcleos do Juizado Especial, do Ministério Público, da
Defensoria Pública e da Delegacia Especializada, por si só, já contribui para a faci-
litação do acesso à justiça em sentido estrito, posto que aproximam as mencionadas
instituições de seu público. Mas, para além disso, a combinação dessa circunstância
com a presença do alojamento de passagem para àquelas mulheres que precisaram
sair de casa sem recursos financeiros e por isso necessitam de habitação provisória
(para ela e, eventualmente, os filhos que possuírem), bem como do apoio psicológico
tão necessário nessa situação e, ainda, a promoção de capacitação que a proporcione

12 GOMES, Nardilene et al. Enfrentamento da violência doméstica contra a mulher a partir da interdisciplinari-
dade e da intersetorialidade. Revista enfermagem UERJ. v. 17. n.1. jan.-mar. 2008.
13 Utiliza-se aqui, como referência, o documento intitulado “Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra
as Mulheres” elaborado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, no ano de 2011,
onde foram apresentados diretrizes, eixos estruturantes e objetivos em relação ao combate à violência contra as
mulheres no Brasil (cf. BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Pacto
Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Brasília, 2011).

303
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

empoderamento e autonomia, eliminando o poder financeiro que o agressor pode vir


a exercer sobre a vítima, são potentes medidas que, se considerado o conceito mais
abrangente de acesso à justiça, influenciam diretamente na plenitude do alcance deste
direito. Assim, promove-se a minimização dos danos provenientes da violência do-
méstica e restaurando os direitos violados das ofendidas.
Da análise da Casa da Mulher Brasileira, pode-se observar ainda que o projeto
privilegia a transversalidade de gênero, uma das premissas preconizadas no citado
Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, na medida em
que se demonstra capaz de perpassar por diversos setores, recortes, especialidades,
segmentos e realidades. Além disso, a coexistência dos diversos serviços oferecidos
evidencia outra premissa igualmente importante: a intersetorialidade, todos vetores
de promoção da justiça e reparação dos danos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo o que foi exposto, conclui-se que a Casa da Mulher Brasileira
constitui, de fato, um importante instrumento para a concretização ao acesso à jus-
tiça das mulheres que utilizam seus serviços, especial e nomeadamente em razão do
atendimento multidisciplinar e intersetorial, que possibilita uma reparação dos danos
causados pelo agressor (ou, quando impossível, proporciona ao menos uma minimi-
zação das consequências), a aproximação das vítimas em relação às instituições que a
fornecerão apoio policial (Delegacia Especializada) e prestação jurisdicional (Juizado
Especial, Ministério Público e Defensoria Pública), para além de atenção integral
(englobando aspectos sociais e psicológicos), às ofendidas e às vítimas indiretas.
Assim, continuidade e ampliação dos serviços nos Estados que já o possuem e
a difusão naqueles que ainda não contam com esses centros (que ainda são maioria)
devem ser estimuladas como medida indispensável ao combate e repressão à violência
doméstica, bem como ao instrumento de acesso à justiça por parte das vítimas.
Merece destaque, por fim, que, apesar das unidades encontrarem excelente
estrutura, alguns dos centros já existentes ainda enfrentam dificuldades técnicas e
operacionais em seu funcionamento, tais como carência de pessoal, pelo que esses
desafios devem ser enfrentados.

304
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

REFERÊNCIAS
BRASIL. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
mulher. Belém do Pará, em 9 de junho de 1994.

BRASIL. Lei 11.340 – Lei Maria da Penha. Brasília, 07 de agosto de 2006.

BRASIL. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Secretaria Espe-
cial de Políticas para as Mulheres. Programa Mulher, Viver Sem Violência: Diretrizes Gerais
E Protocolos De Atendimento. Brasília, 2015.

BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Pacto Nacional


pelo Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Brasília, 2011.

CERQUEIRA, D. R. C. et al. Atlas da Violência 2019. 2019. Disponível em: http://www.ipea.


gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.
pdf. Acesso em 27 de outubro de 2019.

GOMES, Nardilene et al. Enfrentamento da violência doméstica contra a mulher a partir da


interdisciplinaridade e da intersetorialidade. 2008. Disponível em: http://www.revenf.bvs.br/
pdf/reuerj/v17n1/v17n1a03.pdf. Acesso em 29 de outubro de 2019.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual brasileiro. São Paulo:
Acadêmica, 1994.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo. Ed. Perseu Abramo, 2004.

305
Capítulo 18
ACESSO À JUSTIÇA:
ACESSO A MEDICAMENTOS,
SUCESSOS E ENTRAVES

SUMÁRIO: Introdução. 1. Remédios e o ordenamento jurídico brasileiro. 2. A judicialização


do acesso a medicamentos. 3. Onerosidade ao Estado decorrente de seus problemas. 4.
Caminhos judiciais tomados para solução da problemática. Considerações finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 18

ACESSO À JUSTIÇA: ACESSO A MEDICAMENTOS,


SUCESSOS E ENTRAVES

Antonio Thales Marques Feitosa14

INTRODUÇÃO

Em 05 de outubro de 1988 promulgou-se a Constituição Federal do Brasil, que


é dotada de projeto extremamente arrojado, porém, ainda inaplicável até os dias atuais.
Ela preceitua inúmeras garantias ao pleno desenvolvimento do indivíduo e da sociedade
como um todo, tendo como objeto mais evidente a estipulação do Estado como prove-
dor de todas a necessidades vitais ao desenvolvimento pleno e digno do Povo.

É nesse contexto de tratado social que a Constituição veio em seu sexto artigo15,
um rol de direitos sociais, dentre outros direitos ou perspectivas de direitos, que
consubstancia uma verdadeira declaração do acesso à saúde. Para os fins do presente
trabalho, deve-se compreender saúde como um conceito amplo de “acesso a serviços de
saúde ou a meio de promoção, proteção e recuperação do estado ‘são’ do indivíduo”.

Aliás, é necessário ressaltar que tamanha é a importância, que há capítulo próprio


da Constituição dedicado à saúde como um elemento focal do ordenamento nacional16.

No primeiro artigo da seção ele exalta o caráter obrigacional do tema, dando


introdução ao que mais tarde aprofundar-se-ia na Lei 8.080/90. Observa-se aqui como
o constituinte deixou positivado o dever-agir do Estado em prol da “manutenção de um
estado salutar aos seus particulares”, dever esse nem sempre de fácil execução visto as
mais variadas particularidades encontradas no transcorrer da prestação do serviço.

É nessa logicidade que se encontra a questão de acesso a medicamentos, sua


acessibilidade, distribuição e disponibilidade frente àqueles que necessitem ou por
qualquer circunstância fazem jus à disponibilidade especial.

14 Acadêmico em Direito na Universidade Federal do Ceará, 6° Semestre. Porta Voz do Projeto Primeira Chance
e Instituto Voar. Estagiário da Caixa Econômico Federal.
15 BRASIL. Constituição (1988). Constituição.7. ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2019.
16 Idem.

309
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

2. REMÉDIOS E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) constatam que, até 2007, cer-
ca de 2 bilhões de pessoas não tinham acesso a medicamentos básicos1. Esses números
são assustadores, porém, não muito difíceis de se associar a uma justificativa no plano
factual, segundo outro levantamento da OMS. Por meio deste, constatou-se que 15%
da população fazia consumo de mais de 90% da produção farmacêutica mundial, não
por coincidência grande parte desses indivíduos está listado dentre os mais abastados do
globo, dado que, - em mais uma constatação da OMS – nos países ricos gasta-se, em
média, 100 vezes mais em medicamentos por pessoa do que nos países pobres2.

Os fármacos e as inovações médicas não chegam com eficácia em todos os paí-


ses do globo. E nos quais vem a chegar, por várias vezes, não se encontram em acesso
aos mais pobres em razão de seus elevados preços, possuindo, dentre outras justificati-
vas, a ausência de indústrias farmacêuticas com autonomia científica e produtiva fora
do núcleo dos países desenvolvidos3. Frente a esse contexto, no Brasil, faz-se uso da
Relação Nacional de Medicamentos, lista que traz, em âmbito federal, medicamentos
básicos a serem fornecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), dispondo o seu esto-
que e recursos a serem alocados para a sua manutenção. Começam a surgir as maiores
dificuldades quando, no caso concreto, encontram-se doenças ainda não amparadas
com seu devido medicamento pelo SUS ou mesmo pacientes, os quais, por qualquer
particularidade não reagem bem ou não apresentam os devidos resultados mediante
o que foi fornecido. Nessa situação deve-se enfrentar um dos maiores empecilhos do
cotidiano jurídico nacional: a burocracia.

Para o ingresso de um novo medicamento ou tratamento na lista de forneci-


mento do SUS, faz-se necessário o uso de um protocolo do SUS, em geral requeridos
pela indústria farmacêutica, por associações de pacientes, pelo Ministério da Saúde ou
por uma Sociedade Médica. Uma vez protocolado, as 13 instituições envolvidas (dentre
elas o Conselho Federal de Medicina, o Conselho Nacional de Saúde, a Agência Na-
cional de Vigilância Sanitária - ANVISA, a Agência Nacional de Saúde Suplementar
- ANS, além de outros conselhos estaduais e municipais que possam estar envolvidos)
têm 180 dias para avaliar evidências científicas e clínicas da droga, expor que sua in-

1 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Estratégia sobre medicamentos: países no centro da questão,


2004-2007[originalmente, Medicines strategy: countries at the core, 2004-2007], Genebra, OMS, 2004.
2 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Estratégia de medicamentos: 2004-2007, op.cit.
3 SABBATINI, Renato. Por que os remédios são tão caros? Disponível em:< https://www.sabbatini.com/rena-
to/correio/medicina/cp990604.htm >. Acesso em: 25 out. 2019.

310
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

clusão na lista do SUS poderá ser feita em consulta pública e, passado por esse crivo,
findando com a recomendação de sua inclusão ao secretário de Ciência e Tecnologia.

Este deverá tomar a decisão de inclusão ou não do medicamento em mais


180 dias. E, optando pelo ingresso, fará inclusão no Diário Oficial, além de eleger os
responsáveis pelos recursos. Tamanha demora tenta conciliar-se com a demanda do
paciente receitando a ele o uso de outros medicamentos análogos já em lista, mesmo
que menos eficazes e com efeitos colaterais mais danosos.

Infelizmente, nem sempre essa alternativa de substituição é executável e resta


ao paciente aguardar esses trâmites administrativos. Contudo, tendo em vista que
não é razoável, tampouco proporcional, forçar o enfermo a aguardar à finalização do
processo de inclusão, constata-se que a judicialização do pedido de obtenção do me-
dicamento é uma providência necessária a ser tomada por ele.

3. A JUDICIALIZAÇÃO DO ACESSO A MEDICAMENTOS

Diante a letargia apresentada anteriormente, diversos indivíduos encontram


como única via possível a judicialização da demanda, na qual se busca a tutela de
urgência, essa que não raramente é deferida pelo Poder Judiciário. Nesse contexto de
embates judiciais, em um primeiro momento, houve a discussão se tal possibilidade
era legal, uma vez que a lista de medicamentos a serem fornecidos estaria taxativa-
mente apresentada pelo SUS e a própria fazia previsão de renovações periódicas do
estoque, para solução4.

Encerrada essa fase inicial, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez ama sim-
ples leitura do texto constitucional. E ela foi a de que o acesso à saúde é garantia
constitucional expressa. Logo, foi sedimentado o entendimento de que a busca por
medicamentos ainda não fornecidos é direito amparado constitucionalmente, sendo
referência à essa constatação os julgamentos de Suspenção de Tutela Antecipada n°
175 e nº178 realizados pelo Plenário do STF. Contudo, em razão da ausência de
critérios expositivos e técnicos ou mesmo base jurisprudencial, o julgado se tornou
objeto de análises morais em maior grau do que de verificações técnicas, algo que traz
onerosidade aos cofres públicos, consoante se verá a seguir.

4 BLOG DO FALCONI. Direito à saúde: a obrigação do Poder Público em fornecer medicamentos. Dispo-
nível em:< https://franciscofalconi.wordpress.com/2012/02/21/direito-a-saude-a-obrigacao-de-o-poder-publico-
-fornecer-de-medicamentos/>. Acesso em: 30 out. 2019.

311
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

4. ONEROSIDADE AO ESTADO DECORRENTE DE SEUS PROBLEMAS

Quando foi permitido o arbítrio de juízes sobre o tema, percebeu-se uma ava-
lanche de pedidos de medicamentos na esfera judicial, sem igual acompanhamento
de crescimento nos pedidos dentro da esfera administrativa. Ou seja, a população
necessitada não mais protocolava pedidos administrativos de novos medicamentos,
mas sim recorria - de imediato - à esfera jurídica, mais ágil e menos exigente quanto
à verificação de sua necessidade5.

Nota-se, assim, um explícito desalinhamento legal com a realidade fática, pois


o número de filtros criados para o processo de incorporação de remédios ao SUS
parece que não levou em consideração o volume de demandas que poderia enfrentar
em País pobre e não plenamente desenvolvido em questões sanitárias6. Porém, como
era previsível que o montante seria grande, a atualização do sistema deveria ser a mais
qualificada possível. Contudo, observou-se um completo despreparo para haver algu-
ma concepção preventiva acerca dessa possibilidade de discussão judicial em razão da
necessidade dos enfermos pela obtenção dos medicamentos.

Segundo dados da Secretaria Judiciária do TJ-SP no ano de 2016, na seção de


direito público, tiveram os casos relacionados à saúde terceira maior causa de pedir7
e para o ano de 2017 a quarta8. Esses números somente não foram mais assustadores
que o montante a qual o Governo Federal foi condenado: cerca de 1 bilhão de reais
em causas da matéria de Saúde Pública (dessas, aproximadamente 957 milhões foram
decorrentes de uma concentração nos dez medicamentos mais caros) 9.

A morosidade administrativa é excessiva até para os padrões brasileiros. Dos


dez medicamentos que mais são objetos de judicialização em razão de fornecimento,
até 2017, oito ainda não se encontravam no rol dos fornecidos pelo SUS, o que tor-
nava a via judicial como a única viável para o fornecimento imediato.

5 CREPALDI, Thiago; MORAES, Cláudia. VIDA OU MORTE Com judicialização da saúde, juízes passam
a ditar políticas públicas do setor. Revista Consultor Jurídico, 15 de agosto de 2018. Disponível em: <https://
www.conjur.com.br/2018-ago-15/judicializacao-saude-juizes-passam-ditar-politicas-publicas-setor>. Acesso em:
4 nov. 2019.
6 SENADO NOTICIAS. Brasil tem 48% da população sem coleta de esgoto, diz Instituto Trata Brasil. Dis-
ponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/09/25/brasil-tem-48-da-populacao-sem-coleta-
-de-esgoto-diz-instituto-trata-brasil>. Acesso em: 29 out. 2019.
7 CHAER, Márcio. Anuário da Justiça São Paulo: Usina de ideias. 2017. ed. São Paulo: Consultor Jurídico,
2017. p. 1-440.
8 CHAER, Márcio. Anuário da Justiça São Paulo: Revolução Invisível. 2018. ed. São Paulo: Consultor Jurídi-
co, 2018. p. 1-476.
9 UOL. Gasto com 10 remédios mais pedidos na Justiça. Disponível em:< https://noticias.uol.com.br/saude/
ultimas-noticias/redacao/2017/04/06/gasto-com-10-remedios-mais-pedidos-na-justica-para-o-sus-chega-a-r-1-bi.
htm>. Acesso em: 30 out. 2019.

312
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Todavia, a inércia administrativa não é a única justificativa para aqueles prejuí-


zos financeiros. Muito se ocorre pela especificação da matéria, uma vez que o tema de-
tém muitas especificidades, que são ignoradas em razão da importância e da urgência.
De fato, a análise apressada do magistrado não totalmente orientado a dar o melhor
fim a lide - na maioria das vezes acatando-a sem maiores ponderações - ocasiona isso.

Ele somente realiza uma leitura superficial do texto constitucional, aduzindo à


clareza do dever de prover a saúde da população, mas não teve igual cuidado ao modo
de como efetivar essa concessão10. Com efeito, os magistrados acabaram por se filiar
à uma prestação extremamente distributiva do direito, ausentando-se de cuidados
básicos. Por exemplo, deveria ponderar a possibilidade de se estar fazendo uso do
acesso à Justiça de maneira gratuita para obtenção de fármacos que possuem um custo
compatível com a renda do reclamante, que oculta suas reais possibilidades. Deveria
o juiz, portanto, considerar e perquirir se há alguma burla nesse viés.

Outro ponto que deve ser explicitado é o de ausência de jurisprudência que


desse tratamento ao tema. Por longo tempo, as instâncias superiores negligenciaram
trazer critérios ao centro do debate, e isso ocasionou distribuição ao Judiciário o dever
de agir, mas não se explicou a maneira mais responsável de fazê-lo.

Por fim, existe ainda uma terceira crise ao correto trâmite dessa pauta. Três dos
dez medicamentos mais caros fornecidos pela União sequer possuem crivo da AN-
VISA. Isto é, embora administrativamente reprovados ou não estudados conclusiva-
mente, fármacos de grande valor estão aptos a serem fornecidos à população median-
te supervenientes ações e decisões judiciais, mostrando uma total falta de sincronia
entre a esfera judicial e a administrativa.

5. CAMINHOS JUDICIAIS TOMADOS PARA SOLUÇÃO DA PROBLEMÁTICA

Começam no Recurso Extraordinário n° 566.471, que teve como relator o Mi-


nistro Marco Aurélio, as tratativas mais aprofundadas acerca do correto tratamento
para do tema. O mencionado relator proferiu, em seu voto, que era dever claro e ine-
xcusável o fornecimento dos medicamentos aos hipossuficientes. Contudo, estabele-
ceu como requisito o registro desses ao menos na ANVISA, mesmo que não listados
dentre aqueles a serem fornecidos pelo SUS.

10 Cf. CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina, 1997, p.
1051/1052, e BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 4ª ed., Rio de
Janeiro: Renovar, p. 105.

313
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Em linha semelhante, já em 2018, o Recurso Especial n°1.028.835 de relato-


ria o Ministro Benedito Gonçalves, trouxe enfoque a esse tema de fornecimento de
medicamentos não especificados pelo SUS como aqueles que se deveriam ter em es-
toque. Nesse caso, houve maior especificação, já que foram listados requisitos a serem
atendidos cumulativamente para o fornecimento do fármaco requerido. São eles: (i)
comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido
por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medi-
camento, assim como da ineficácia, para tratamento da moléstia, dos fármacos for-
necidos pelo SUS; (ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento
prescrito; (iii) existência de registro junto à ANVISA do medicamento.

Deve-se destacar, ainda, que, em 2016, em debate do Recurso Extraordinário cita-


do, foram estabelecidas situações de exceção ao registro junto à ANVISA, mediante a reu-
nião de três requisitos: (i) exigência de pedido de registro de medicamento no Brasil; (ii)
exigência de registro em agências do exterior; e (iii) inexistência de substituto terapêutico
registrado. Entretanto conforme se pode observar pelos três pontos elencados - e mais pre-
cisamente o primeiro e o segundo - não há aí supressão de exigência de patenteamento
e cientificidade da droga, mas sim existe tentativa de contornar alguma morosidade
que possa se estar enfrentando no processo de registro no Brasil de fármaco já devidamen-
te testado e desenvolvido, isto é, medicamentos já devidamente testados e patenteados
em indústrias farmacêuticas estrangeiras deveriam encontrar fácil caminho em sua igual
aprovação no Brasil, sendo realizadas contraprovas e exposições a particularidades nacio-
nais, não absoluto retorno ao ponto de produção inicial. Contudo, embora os caminhos
indicados por nossos tribunais superiores tenham somado na busca de solução da proble-
mática, esses sozinhos ainda não se fazem suficientes para concluir a missão de superá-la.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do que se pode ver do exposto no presente trabalho e nos avanços acerca da


discussão do tema nas esferas judiciais e extrajudiciais, jamais se deve ser aceito dentro
de uma democracia bem estabelecida que excessos burocráticos estanquem o desen-
volvimento pleno de preceitos constitucionais.

Se o Poder Constituinte originário determinou que o desenvolvimento social


brasileiro seria realizado por garantia de proteção à saúde da população, é necessária
uma atuação do Poder Público a nível de políticas públicas comprometidas, qualifica-
das e amplas para isso efetivar.

314
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Aliás, como demonstra esse trabalho, é pacífico ser dever do Estado arcar com
esse ônus e desenvolvê-lo da maneira menos custosa e mais eficiente, sendo isso sua
missão política. Nesse contexto, é papel do Judiciário - que não é o único agente de
efetivação do direito à saúde - agir com responsabilidade e ponderação. Atuar com
ativismo, com pressa, sem critérios específicos, concretos e determinados que devem
estar aliados ao equilíbrio fiscal e jurídico, acarretam consequências tão desastrosas
quanto a omissão frente ao cenário de desobediência constitucional.

Existem possibilidades de se contornar esses excessos. Em primeiro plano, é ne-


cessária a realização de um referencial jurisprudencial firme e responsável no âmbito
constitucional quanto ao tema. É que disso partirá a inicial segurança jurídica para
determinar qual o melhor atendimento ao programa constitucional.

Outra iniciativa é a extensão do projeto já desenvolvido junto ao Tribunal de


Justiça de São Paulo (TJ-SP) a outros estados do denominado Acessa SUS11. Ele é
uma via conciliatória - portanto, prévia e extrajudicial - que, em primeiros contatos
com pacientes, informam acerca dos trâmites administrativos da aquisição de medi-
camentos, explicando a eles a possibilidade do uso de fármacos alternativos (mesmo
que mais desgastantes a ele) por um período que se terá certeza como suficiente e
certo para então receber o que foi solicitado.

Esse programa conta com grande alinhamento com a Secretária de Saúde do


estado de São Paulo, que analisa o pedido em até trinta dias ou, em casos de urgência,
até 72 horas. Essa celeridade confere maior conforto ao enfermo até o recebimento
do medicamento ou, em último caso, a judicialização do pedido.

Há outra possibilidade de ação a ser implementada, mas com maior dificulda-


de de realização. Ela é a inclusão, nas Comarcas, de especialistas médicos ou mesmo
juízes com formação ou experiência na área de causas médicas. Dessa forma, será
possível a indicação de medicação mais barata ou mesmo já existente no SUS e com
resultados aproximados ou idênticos.

Em última análise é necessária a atitude da administração pública e do le-


gislativo, trabalhando no sentido de desburocratizar o trâmite dos medicamentos a
serem incluídos ao SUS. Um exemplo disso poderia ser a existência de uma comissão
permanente de atualizadores capazes de previamente incluir novos fármacos à lista,

11 SÃO PAULO. Governo Estadual. Secretaria do Estado da Saúde. SP CRIA OFENSIVA PARA COMBA-
TER A ‘JUDICIALIZAÇÃO’ DA SAÚDE. Disponível em:<< http://www.saude.sp.gov.br/centro-de-referencia-
-e-treinamento-dstaids-sp/homepage/destaques/sp-cria-ofensiva-para-combater-a-judicializacao-da-saude>.
Acesso em: 1 nov. 2019.

315
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

além de efetivar a substituição daqueles menos necessários às demandas populares.


Isso desonera a receita, gerando fundos aos novos medicamentos. Outro exemplo
de medida a ser tomada é a retirada da consulta pública para remédios de exigência
imediata, sendo possível, ainda, que em determinadas demandas - como as atinentes
a fármacos já aprovados e testados por órgãos equivalentes à ANVISA no âmbito
estrangeiro - haja a supressão de análise dos comitês científicos, fazendo necessária
apenas a aprovação orçamentária.

De fato, que muitas demandas e ônus ao orçamento público poderiam ser


contornadas se houvesse, no País, a presença de melhores tratativas legais, processos
menos extensos e menor burocracia, além de ulterior interferência das maiores ins-
tâncias judiciais. Entretanto, a solução à questão aqui informada está no tratamento
do poder atribuído aos indivíduos que decidem acerca do tema.

Com efeito, em nada contribui para uma melhor solução o Judiciário, mesmo
pelas decisões e recomendações de suas instâncias superiores, se a atuação não estiver
alinhada a um exercício geral de compromisso público e conjunto. É que não é saudável
a nenhuma democracia organizada em um Estado de Direito a presença de várias deci-
sões judiciais que nada mais são do que declarações e expressões de subjetividade acerca
de fatos e da legislação. Por isso, é necessária a presença de um trabalho mais consciente,
inclusive na formação dos operadores do direito, desde a graduação até a investidura
no cargo de magistrado com disciplinas relacionadas à importância da consciência e da
responsabilidade orçamentária. Isso porque, embora infinitas sejam as necessidades de
um povo, sempre serão finitas as possibilidades de seu Estado para atendê-las.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição.7. ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2019.

BARROSO, Henrique Gabriel. O estado é obrigado a fornecer medicamentos aos cidadãos?


Disponível em: <https://henriquebarroso.jusbrasil.com.br/artigos/572613042/o-estado-e-obri-
gado-a-fornecer-medicamentos-aos-cidadaos>. Acesso em: 2 nov. 2019.

BLOG DO FALCONI. Direito à saúde: a obrigação do Poder Público em fornecer medica-


mentos. Disponível em: <https://franciscofalconi.wordpress.com/2012/02/21/direito-a-saude-
-a-obrigacao-de-o-poder-publico-fornecer-de-medicamentos/>. Acesso em: 1 nov. 2019.

CANOTILHO. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Editora Almedina,


1997, p. 1051/1052, e BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de
suas Normas. 4ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, p. 105.

316
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CHAER, Márcio. Anuário da Justiça São Paulo: Revolução Invisível. 2018. ed. São Paulo: Con-
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CHAER, Márcio. Anuário da Justiça São Paulo: Usina de ideias. 2017. ed. São Paulo: Consultor
Jurídico, 2017. p. 1-440.

CREPALDI, Thiago; MORAES, Cláudia. VIDA OU MORTE Com judicialização da saúde,


juízes passam a ditar políticas públicas do setor. Revista Consultor Jurídico, 15 de agosto
de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-ago-15/judicializacao-saude-juizes-
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HUNT, Paul; KHOSLA, Rajat. Acesso a medicamentos como um direito huma-


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Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
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OLIVEIRA, Mariana; BARBIERI, Luiz Felipe. Supremo impõe restrições para fornecimento
público de remédio sem registro na Anvisa. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/
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ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Estratégia sobre medicamentos: países no centro da


questão, 2004-2007[originalmente, Medicines strategy: countries at the core, 2004-2007], Gene-
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ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Estratégia sobre medicamentos: países no centro


da questão, 2004-2007[originalmente, Medicines strategy: countries at the core, 2004-2007],
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317
Capítulo 19
A PROMULGAÇÃO DA LEI
13.979/2020 NO CONTEXTO DE
COMPRAS E CONTRATAÇÕES
PELO PODER PÚBLICO NA
PANDEMIA DE COVID-19 À LUZ
DOS DIREITOS HUMANOS
SUMÁRIO: Introdução. 1. O Estado de Calamidade Pública e a Dispensa à Licitação na
perspectiva da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988. 2. A Importância
da Promulgação da Lei 13.979/2020, da Medida Provisória Nº 926 e do Decreto 10.282.
3. Problemáticas relacionadas ao mau uso das prerrogativas pelos Gestores Públicos nos
primeiros meses de 2020. Conclusão. Referências.
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CAPÍTULO 19

A PROMULGAÇÃO DA LEI 13.979/2020 NO CONTEXTO DE


COMPRAS E CONTRATAÇÕES PELO PODER PÚBLICO NA
PANDEMIA DE COVID-19 À LUZ DOS DIREITOS HUMANOS

Ívina Soares de Oliveira Arruda12

INTRODUÇÃO

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde decretou a


pandemia da Covid-19 e nesse ínterim, o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Man-
detta, anunciou uma série de ações para conter a propagação do vírus no Brasil. A
partir disso, nove dias depois, o Senado Federal aprovou um decreto que reconheceu
o estado de calamidade pública.
Foi publicado, em seguida, o decreto legislativo número 6 de 2020, que teve o fim
de dispensar o atingimento dos resultados fiscais previsto na Lei Orçamentária do ano.
Uma comissão mista no âmbito do Congresso Nacional ficou encarregada de acompanhar
a situação orçamentário brasileira em sentido amplo. O referido instrumento de dispensa
do atingimento dos gastos é de uso autorizado e excepcional pela Constituição Federal
e vai ao encontro de diversas outras medidas implementadas ao redor do mundo como
fronteiras fechadas, determinações de isolamento e suspensão das mais diversas atividades.
A esta altura, a discussão sobre a pandemia em âmbito nacional e internacional
já estava avançada. No primeiro semestre de 2020, no Supremo Tribunal Federal,
tramitavam 2.891 (dois mil, oitocentos e noventa e um) processos relacionados à
covid-1913. No que concerne ao cenário internacional, a Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, importante órgão relacionado à discussão sobre respeito à dignidade
humana, adotou uma norma intitulada “Pandemia e Direitos Humanos nas Américas”
– Resolução n. 01/202014 – pela qual formula recomendações político-sociais, expondo
o entrelace entre o tratamento à pandemia e o respeito aos direitos humanos.

12 Aluna do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. Membro do Núcleo de Assessoria
Jurídica Comunitária desde o primeiro semestre do ano de 2016.
13 BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. (comp.). Painel de Ações Covid-19. 2020. Disponível em:
https://transparencia.stf.jus.br/extensions/app_processo_covid19/index.html. Acesso em: 7 jun. 2020.
14 COMISIÓN INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS (org.). Pandemia y Derechos Humanos
en las Américas. 2020. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/decisiones/pdf/Resolucion-1-20-es.pdf.

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Ademais, cumpre ressaltar a importância do contexto político-econômico para


o entendimento do tema, eis que o médico e ex-deputado federal Luiz Henrique
Mandetta foi demitido no dia de 16 de abril de 2020 do cargo de Ministro da Saúde,
pouco mais de um mês após o marco oficial da decretação do estado de pandemia,
tendo assumido o médico e empresário Nelson Teich em seu lugar. A substituição
ainda na ocorrência da crise e próximo a seu ápice pôs em risco todo um planeja-
mento que havia sido já estruturado para o alcance da desaceleração do contágio e o
menor número de mortes possível.
A justificativa dada pelo Presidente Jair Bolsonaro fundou-se no fato de que o
ex-ministro não estava tratando dos assuntos relacionados à economia como o Chefe
do Executivo gostaria, remetendo ao incentivo do ex-ministro ao isolamento horizon-
tal. Ocorre que, até o final do mês de abril, o Brasil não portava nenhum plano de
diretrizes gerais estabelecidas em âmbito federal que servisse de direcionamento aos
outros entes federativos.
Nesta linha, o presente trabalho propõe-se a analisar as ações temporárias do
Poder Público para facilitar contratações e aquisições de materiais diversos no contex-
to de pandemia. Entre as ações excepcionais, é analisada especificamente as dispensas
à licitação e seu uso pelos agentes políticos.
Ainda, buscará analisar algumas das diferentes inovações legislativas que sur-
giram com o objetivo de modificar o planejamento financeiro do Estado, realizar
contratações e aquisições de maneira a priorizar o tempo dos processos.
As discussões tidas aqui pautaram-se na Constituição Federal da República Fede-
rativa do Brasil de 1998, Decreto Executivo 7.257/2010, Lei Complementar 101/200,
MP 926/2020 e nos termos e ideias corroborados por diversos doutrinadores e juristas
como Ayres Brito, Luis Roberto Barroso, Gilmar Mendes e Jessé Torres Pereira Júnior.
A partir da abordagem dos trâmites para o gasto público, chega-se ao problema
de pesquisa, qual seja: Como os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário atuaram,
no contexto de ocorrência da pandemia, no que se refere aos atos de gestão para diri-
mir as consequências das mortes e recessão econômica?

1. A GARANTIA FUNDAMENTAL À SAÚDE, O ESTADO DE CALAMIDADE


PÚBLICA E A DISPENSA À LICITAÇÃO NA PERSPECTIVA DA CFRB de 1988

Em primeiro plano, há de se compreender o direito à saúde como integrante


de um complexo de garantias individuais que formam a amplitude do direito à vida,

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ponto de convergência na ciência dos direitos humanos. Esse bem público é, priori-
tariamente, de responsabilidade dos Estados, e por isso, na formulação dos planos de
medidas adotadas no combate ao vírus, é preciso pensar, um passo adiante, ou seja,
na situação em que findarão as populações mais vulneráveis.
No Brasil, especificamente ao se discutir sobre a desigualdade social, o prin-
cípio da proporcionalidade deve ser considerado para que os recursos econômicos
sejam usados com o escopo de amenizar o dano socioeconômico. No ano anterior a
pandemia, já sob o governo de Jair Bolsonaro, a tendência era contrária à amenização
das desigualdades básicas, eis que foram extintos órgão como o Conselho de Segu-
rança Alimentar, através da Medida Provisória 870/2019, aprofundando ainda
mais o esvaziamento das políticas públicas voltadas ao provimento de insumos
básicos para o cumprimento do respeito à dignidade humana.
Nessa linha, analisaremos ainda a necessidade transparência e o dever de infor-
mação com base no histórico de construção da democracia brasileira, bem como na
construção jurídico doutrinária que permite que o governo tome decisões legislativas
para liberar créditos para os entes ou população em geral e facilitar ações que comi-
nem na distribuição de equipamentos de saúde pelo país.
O estado de calamidade pública foi primeiramente disciplinado pela Cons-
tituição Federal, sendo de competência do Presidente da República. O dispositivo
constitucional transcrito a seguir exigiu regulamentação posterior de modo a estabe-
lecer em que condições específicas pode ser decretado:
Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da
República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de de-
fesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e
determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e
iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de
grandes proporções na natureza.

Sobre a conceituação de “ordem pública”, é interessante conferir as palavras do


ministro Ayres Brito no julgamento do Habeas Corpus 101.300, em 2010, transcrito
abaixo. É chamada a atenção para a interpretação sistemática tendo como base a pró-
pria Constituição, não sendo possível que qualquer conceito seja definido somente
numa linha de raciocínio:
Segundo ressaltei em julgamentos anteriores, tenho buscado, a par-
tir da Constituição Federal, um conceito seguro de ordem pública.
Minha âncora, de longa data, tem sido o artigo 144 da Constituição,

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e nem assim consigo sentir-me absolutamente tranquilo quanto a


uma tentativa de formulação conceitual da matéria. [...] Avanço no
raciocínio para dizer que a expressão ‘ordem pública’, justamente, é a
que me parece de mais difícil formulação conceitual. Como a Cons-
tituição fala de ‘preservação da ordem pública e da incolumidade
das pessoas e do patrimônio’, fico a pensar que ordem pública é algo
diferente da incolumidade do patrimônio, como é algo diferente da
incolumidade das pessoas. É um tertium genus. Mas o máximo que
consegui até agora foi este conceito negativo: ‘ordem pública’ é bem
jurídico distinto da incolumidade das pessoas e do patrimônio.1

Na lição do professor e ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto


Barroso, mesmo com a interpretação sistemática, a valoração subjetiva é possível na
definição de tais expressões:
Conceitos jurídicos indeterminados são expressões de sentido fluido,
destinadas a lidar com situações nas quais o legislador não pode ou
não quis, no relato abstrato do enunciado normativo, especificar de
forma detalhada suas hipóteses de incidência ou exaurir o comando
dele extraído. Por essa razão, socorre-se ele de locuções como as que
constam da constituição Brasileira de 1988, a saber: pluralismo po-
lítico, desenvolvimento nacional, segurança pública, interesse social,
relevância e urgência, propriedade produtiva, em meio a muitas ou-
tras. Como natural, o emprego dessa técnica abre para o intérprete
um espaço considerável – mas não limitado ou arbitrário – de valo-
ração subjetiva (2010, p.313)

Finalmente em 2010, por meio do Decreto Executivo 7.257, instrumento utili-


zado pelo chefe do Poder Executivo para pormenorizar as disposições gerais e abstratas
da lei, definiu-se o estado de calamidade pública com base na interpretação sistemática
citada, além de certa valoração subjetiva com base na visão de mundo do legislador:
Art. 2o Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

IV - estado de calamidade pública: situação anormal, provocada


por desastres, causando danos e prejuízos que impliquem o
comprometimento substancial da capacidade de resposta do poder
público do ente atingido;’

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC nº 101300. Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, DF, 05 de ou-
tubro de 2010. Diário Oficial da União. Brasília, 18 nov. 2010. p. 27-39.

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Na prática, a possibilidade da decretação do estado de calamidade pública é


extremamente importante para ter sido regulada quase 20 anos depois da promulgação
da Constituição, somente na gestão do Ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O reconhecimento do estado de calamidade pública pode, também, ser soli-
citado por estados ou municípios, sendo necessário o referendo de suas respectivas
assembleias legislativas. Tal prerrogativa decorre do fato de que é o Poder Público, em
grande parte principalmente dos municípios, responsável pela dinâmica da economia
local de forma direta ou indireta.
A tramitação do projeto que foi enviado pelo Presidente da República e tinha
o objetivo de estabelecer o ponto de partida para o combate à Covid-19 no Brasil,
teve sua aprovação pela Câmara dos Deputados e depois pelo Senado Federal, no dia
20 de março, permitindo que eventualmente fossem ultrapassados os limites estabe-
lecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal, incidindo a regra prevista no seu artigo 65,
marco legal das contas públicas, que permite a suspensão de metas fiscais na ocorrên-
cia de calamidade pública, conforme segue:
Art. 65. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo
Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias
Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto
perdurar a situação:

I - serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas


nos arts. 23, 31 e 70;

II - serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação


de empenho prevista no art. 9º.

Há de se perceber, ainda, como é regulada a dispensa à licitação na Carta Mag-


na. Isso porque a dispensa de licitação para compras de equipamentos de saúde é um
instrumento citado pela lei 13.979/2020, a ser comentada posteriormente.
Para Jessé Torres Pereira Júnior, autor que trata de maneira aprofundada das
contratações públicas, no caso da dispensa é necessário a justificação de modo que
a inobservância dos princípios constitucionais poderá tipificar ato de improbidade
administrativa, passível de anulação por ação civil pública ou ação popular. No que se
refere ao seu âmbito constitucional, assim aduz o autor:
As hipóteses de dispensabilidade do art. 24 constituem rol taxativo, isto
é, a Administração somente poderá dispensar-se de realizar a competi-
ção se ocorrente uma das situações previstas na lei federal. Lei estadual,

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municipal ou distrital, bem assim regulamento interno da entidade


vinculada não poderá criar hipótese de dispensabilidade2.

O artigo 24, a que se refere, é extenso e consta na Lei 8666/93, nomeada Lei
de Licitações, contemplando desde contratações de baixo valor até as necessárias no
caso de emergência, conforme seus incisos III e IV abaixo transcritos:
Art. 24. É dispensável a licitação:

III - nos casos de guerra ou grave perturbação da ordem;

IV - nos casos de emergência ou de calamidade pública, quando


caracterizada urgência de atendimento de situação que possa ocasio-
nar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, servi-
ços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares, e somente
para os bens necessários ao atendimento da situação emergencial ou
calamitosa e para as parcelas de obras e serviços que possam ser con-
cluídas no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias consecutivos e
ininterruptos, contados da ocorrência da emergência ou calamidade,
vedada a prorrogação dos respectivos contratos

Insta aclarar que mesmo diante das flexibilizações autorizadas pelo legislador,
o agente político não se escusa do cumprimento da gestão responsável sob a alegação
de que procedeu com a decretação do estado de calamidade, ao contrário, é de suma
importância que se proceda ao profundo planejamento e acompanhamento orça-
mentário, visando o equilíbrio fiscal eis que as contas públicas estão em estado de
vulnerabilidade.
Logo, a indicação da emergência financeira é essencial para que se possa cus-
tear despesas que amenizem o prejuízo humano e financeiro, porém pode induzir
a uma parcela despreparada da Administração a entender que os seus atos estariam
acobertados pelo manto normativo, conquanto, na verdade, podem sofrer a rejeição
de contas e consequente responsabilização pessoal do agente político.

2. A IMPORTÂNCIA DA PROMULGAÇÃO DA LEI 13.979/2020, DA


MEDIDA PROVISÓRIA Nº 926 E DO DECRETO 10.282

Com a ocorrência da pandemia e o risco de colapso do sistema de saúde,


público e privado, exigiu-se dos entes federados uma ação conjunta que envolveu, a

2 PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários À Lei das Licitações e Contratações da Administração
Pública. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 102

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priori, a necessidade de legislar acerca das nuances técnicas relativas às possibilidades


de gasto do Estado, ao isolamento social, entre diversos outros fatores.
Por isso, em 4 de fevereiro de 2020, foi sancionada a lei 13.979/2020, que
em primeiro plano conceitua isolamento, quarentena, disserta acerca dos limites da
possível duração de tais institutos, bem como permite a restrição excepcional e tem-
porária de entrada e saída do país. Sobre tal restrição de ir e vir, importa dizer que
a Convenção Americana de Direitos Humanos3 sustenta que deva ser temporária,
razoável, proporcional e baseada em critérios científicos. Em suma, os atos de restri-
ção devem ser sempre motivados e baseados na proporcionalidade e razoabilidade,
conforme se pode inferir do artigo 27.1 da citada Convenção:
27.1. Em caso de guerra, de perigo público, ou de outra emergên-
cia que ameace a independência ou segurança do Estado-Parte, este
poderá adotar disposições que, na medida e pelo tempo estritamente
limitados às exigências da situação, suspendam as obrigações con-
traídas em virtude desta Convenção, desde que tais disposições não
sejam incompatíveis com as demais obrigações que lhe impõe o Di-
reito Internacional e não encerrem discriminação alguma fundada
em motivos de raça, cor, sexo, idioma, religião ou origem social.

Em segundo plano, são previstos procedimentos para aquisição de bens, servi-


ços, contratações de obras e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de
saúde pública aplicáveis à Administração pública direta e indireta, da União, Estados,
Distrito Federal e Municípios, além das estatais.
Ocorre que após a promulgação da dita lei, o Poder Executivo editou uma medi-
da provisória que flexibilizou as regras para a aquisição de bens, serviços e insumos com
a prerrogativa de dispensa de licitação. De acordo com a dita MP 926/2020, é restrito
ao governo federal a competência para determinar o que são serviços essenciais, além
da limitação de circulação interestadual e intermunicipal de pessoas e mercadorias, bem
como determina que caberá ao Presidente da República indicar quais serviços públicos
e atividades essenciais não podem ser interrompidos em meio à pandemia.
A intenção foi evitar que a circulação de insumos necessários para a popula-
ção fosse afetada pelas restrições sanitárias necessárias. E por isso, foram estabelecidos,

3 CIDH. CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS: (assinada na conferência especia-


lizada interamericana sobre direitos humanos, san josé, costa rica). (Assinada na Conferência Especializada Inte-
ramericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica). 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basi-
cos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 07 jun. 2020.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

nos termos do art. 4º- B, que foi incluído pela MP 926, as condições que são presu-
midas no ato da contratação:

Art. 4º- B Nas dispensas de licitação decorrentes do disposto nesta


Lei, presumem-se atendidas as condições de:

I - ocorrência de situação de emergência;

II - necessidade de pronto atendimento da situação de emergência;

III - existência de risco a segurança de pessoas, obras, prestação de


serviços, equipamentos e outros bens, públicos ou particulares; e

IV - limitação da contratação à parcela necessária ao atendimento da


situação de emergência.

Considerando a presunção relativa de atendimento às condições transcritas,


há a possibilidade de que a real existência de qualquer das condições seja contestada e
provada em eventual representação ao Judiciário e, consequentemente, a contratação
anulada por ocorrência de ilegalidade.
Outrossim, foi definido que essas contratações serão imediatamente disponibi-
lizadas em sítio oficial específico na rede mundial de computadores, devendo constar
o nome do contratado, o número de sua inscrição na Receita Federal, o prazo contra-
tual, o valor e o respectivo processo de contratação ou aquisição.
A publicidade, característica essencial do processo licitatório, foi contemplada no
texto da nova lei, deixando claro que a intenção da flexibilização não é a efetivação de gas-
tos sem o devido controle e prestação de contas, o que caracterizaria abuso de finalidade.
Todavia, algumas peculiaridades da citada lei podem ser usados de maneira er-
rônea pelos gestores públicos. A primeira a ser citada é o artigo 4º que autoriza a con-
tratação de empresa impedida de participar de licitação por irregularidades e releva a
“declaração de inidoneidade” normalmente exigida, se a empresa for a única fornecedo-
ra de bens e serviços considerados essenciais para enfrentar a doença, conforme trechos:
Art. 4º É dispensável a licitação para aquisição de bens, serviços,
inclusive de engenharia, e insumos destinados ao enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente
do coronavírus de que trata esta Lei.

§ 3º Excepcionalmente, será possível a contratação de fornecedora


de bens, serviços e insumos de empresas que estejam com inidonei-
dade declarada ou com o direito de participar de licitação ou con-

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tratar com o Poder Público suspenso, quando se tratar, comprova-


damente, de única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido.

Não obstante, mediante justificativa, poderá se dispensar até a


documentação que comprova a regularidade fiscal ou trabalhista das contratadas,
de modo que o Poder Público pode privilegiar empresas que se indispuseram
com a administração, vide artigo:
Art. 4º - F Na hipótese de haver restrição de fornecedores ou pres-
tadores de serviço, a autoridade competente, excepcionalmente e
mediante justificativa, poderá dispensar a apresentação de documen-
tação relativa à regularidade fiscal e trabalhista ou, ainda, o cumpri-
mento de um ou mais requisitos de habilitação, ressalvados a exigên-
cia de apresentação de prova de regularidade relativa à Seguridade
Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do
art. 7º da Constituição.

Os pregões, que já são procedimentos simplificados, terão os prazos reduzi-


dos pela metade, dispensada a realização de audiência pública. Os contratos terão o
prazo de duração de até seis meses e poderão ser prorrogados por períodos sucessi-
vos, enquanto perdurar a necessidade de enfrentamento dos efeitos da situação de
emergência de saúde pública. A renovação poderá ser mediante acréscimo de até
50% do valor inicial.
Art. 4º - G Nos casos de licitação na modalidade pregão, ele-
trônico ou presencial, cujo objeto seja a aquisição de bens, ser-
viços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de
que trata esta Lei, os prazos dos procedimentos licitatórios serão
reduzidos pela metade.
Também ficaram dispensados os estudos preliminares, que são documentos que
integram a fase de planejamento das contratações públicas e têm o objetivo de demons-
trar a real necessidade do procedimento, quando se tratar de bens e serviços comuns.
Para compras mais elaboradas, a autoridade poderá dispensar a pesquisa de
preços e autorizar a compra por um valor maior do que estimado diante de oscilações
de mercado, se houver justificativa para a medida.
Insta aclarar que a MP 926 aumentou o limite de gastos com o cartão de pa-
gamento do governo, conhecido por cartão corporativo, quando utilizados para o
pagamento dos serviços com dispensa de licitação. Ficaram autorizados pagamentos

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de até R$ 150 mil para serviços de engenharia e de até R$ 80 mil para compras em
geral, conforme o trecho colacionado:
Art. 6º-A Ficam estabelecidos os seguintes limites para a concessão
de suprimento de fundos e por item de despesa, para as aquisições e
contratações a que se refere o caput do art. 4º, quando a movimen-
tação for realizada por meio de Cartão de Pagamento do Governo:

I - na execução de serviços de engenharia, o valor estabelecido na


alínea “a” do inciso I do caput do art. 23 da Lei nº 8.666, de 21 de
junho de 1993; e

II - nas compras em geral e outros serviços, o valor estabelecido na


alínea “a” do inciso II do caput do art. 23 da Lei nº 8.666, de 1993.

Em seguida, foi publicado o Decreto 10.282/2020 com o escopo de detalhar as


atividades e os serviços públicos considerados essenciais e indispensáveis ao atendimento
das necessidades da comunidade. A lista teve sua última modificação do mês de abril no
dia 29, que incluiu a atividade de locação de veículos, as atividades de desenvolvimento
de produtos e serviços, além daquelas realizadas por meio de startups, entre outros.
A iniciativa do governo federal em momentos de crise é essencial para que
se possa manter o controle, de forma que a integração, o cruzamento de dados e as
sugestões repassados pelos Estados ensejem um fluxo rápido de tomadas de decisões.
Por fim, é mister pontuar que o§ 1º do art. 4º da lei 13.979/2020 reforça a
ideia de transitoriedade ao dispor que “a dispensa de licitação a que se refere o caput
deste artigo é temporária e aplica-se apenas enquanto perdurar a emergência de saúde
pública de importância internacional decorrente do corona vírus”.

3. PROBLEMÁTICAS RELACIONADAS AO MAU USO DAS PRERROGATIVAS


PELOS GESTORES PÚBLICOS NOS PRIMEIROS MESES DE 2020

Há de se contextualizar que, ao final do mês de abril de 2020, o Brasil conta-


bilizou 5.017 óbitos4, mais do que fora noticiado ter ocorrido na China, epicentro
da contaminação. A partir disso, percebe-se a importância das decisões políticas com
vistas a saber quais seriam as destinações da verba pública com o melhor custo-bene-
fício, ante a iminência do colapso do sistema de saúde.

4 GLOBO, G1. Após recorde diário e mais de 5 mil mortes, ministro diz que há ‘agravamento da situação’ da
Covid no Brasil. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/28/apos-recor-
de-diario-e-mais-de-5-mil-mortes-ministro-diz-que-ha-agravamento-da-situacao-da-covid-no-brasil.ghtml.>

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No mesmo período, ainda não havia perspectiva de se estabelecer um sistema


de informação unificado e ágil com dados detalhados sobre os casos notificados e con-
firmados. Ao contrário disso, o governo federal5 tornou-se alvo de acusações sobre
omissão de dados, indo de encontro ao direito à informação em um momento que o
monitoramento é o ponto de partida para o controle da contaminação.
Não obstante, lideranças de organizações e órgãos brasileiros que atuam na
defesa dos direitos humanos foram ouvidos pela Comissão Interamericana de Direi-
tos Humanos para que relatassem as violações aos direitos fundamentais sofridas6,
especialmente no que se refere às populações mais pobres e vulneráveis, sem acesso à
um sistema de saúde de qualidade.
Primeiramente, como uma forma de auxiliar no controle popular dos gastos
da administração, o Ministério da Economia ofereceu uma ferramenta para consultar
as compras sem licitação relacionadas ao enfrentamento da pandemia. Os valores
gastos, que são atualizados diariamente, podem ser consultados em um site específico
denominado: compras governamentais7.
Até o dia 27 de abril de 2020, as entidades que mais fizeram compras sem
licitações foram: a Fundação Oswaldo Cruz, com R$ 428,72 milhões (42,99% do
total gasto) e o Ministério da Saúde, com R$ 230,91 milhões (23,16%). Já quando
a referência é territorial, o Rio de Janeiro e o Distrito Federal caracterizavam quase
90% de todo o gasto sem licitação8.
Ante o exposto, o primeiro fato consultado a chamar a atenção refere-se a
contratação pelo Ministério da Saúde do fornecimento de soro fetal bovino, produto
usado para a fabricação de vacina, de uma empresa cujo dono foi condenado em pri-
meira instância por envolvimento em um esquema de desvio de recursos na Univer-
sidade Federal do Paraná. O montante contratual era de R$ 3,2 milhões e o dono da
referida empresa, Reagen Produtos para Laboratórios, foi condenado a quatro anos e
seis meses de prisão por lavagem de dinheiro pela Justiça Federal do Paraná9.

5 Brasil se une à Coreia do Norte e à Venezuela ao omitir dados da Covid-19. 2020. Disponível em: https://
g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/06/07/brasil-se-une-a-coreia-do-norte-e-a-venezuela-ao-omitir-
-dados-da-covid-19.ghtml. Acesso em: 06 jul. 2020.
6 ATUAL, Rede Brasil. Violações de Bolsonaro em meio à covid-19 são denunciadas na OEA. 2020. Dispo-
nível em: https://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2020/05/violacoes-bolsonaro-covid-19-oea/.
7 BRASIL. Ministério da Economia. Brasília-DF. Compras governamentais. Disponível em: <https://www.comprasgo-
vernamentais.gov.br/index.php/transparencia/1284-transparencia-dos-dados-de-dispensa-no-combate-ao-covid-19>
8 Idem.
9 BRAZILIENSE, Correio (ed.). Ministério da Saúde contrata empresa de condenado por lavagem de dinheiro.
2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/03/19/interna_politica,835186/
ministerio-da-saude-contrata-empresa-condenado-por-lavagem-de-dinheiro.shtml. Acesso em: 28 abr. 2020.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Não obstante, ainda relacionado ao Ministério da Saúde, houve a contratação


de uma empresa ligada ao financiamento de campanhas eleitorais do ex-ministro da
saúde Luiz Henrique Mandetta. A pasta comprou aventais hospitalares para o Siste-
ma Único de Saúde da empresa Prosanis Indústria e Comércio por R$ 700 mil reais.
A empresa é de Aurélio Nogueira Costa, dono da Cirumed Comércio Ltda, que foi
uma das maiores doadoras de campanha de Mandetta para o cargo eletivo de deputa-
do pelo Mato Grosso do Sul10.
Ocorre que essa empresa tem um histórico de fornecimento de produtos ao
governo quando há dispensa de licitação, eis que é personagem de irregularidades
apontadas por órgãos de fiscalização. Uma delas foi identificada pelos auditores da
Controladoria-Geral da União em 2018, no Fundo Municipal de Saúde na Prefeitura
Municipal de Rio Verde de Mato Grosso. Nesse caso, foi identificado um prejuízo de
R$ 42.747,78 decorrente da prática de sobrepreço pela Cirumed. Além disso, é alvo
de inquérito civil que apura irregularidades envolvendo notas fiscais frias11.
No Rio de Janeiro, que no final de abril contabilizava 7.944 pessoas infectadas
por Covid-19, a Secretaria Estadual de Saúde tornou sigilosos processos administrativos
que se referem às contratações emergenciais feita no combate ao novo coronavírus. Os
gastos somam ao menos R$ 1 bilhão e a medida foi tomada após um importante meio
de comunicação revelar que o Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde, com um
histórico de má gestão em unidades de saúde, foi contratada por R$ 835 milhões para
construir e administrar os 1.400 leitos dos sete hospitais de campanha no estado12.
Desse modo, é necessário que as instituições democráticas estejam alertas acer-
ca da possibilidade de desvirtualização dos objetivos da flexibilização dos processos de
contratações públicas, considerando o risco de que empresas com histórico de irregu-
laridades sejam beneficiadas por trocas políticas, conforme se demonstrou em alguns
casos no intervalo de janeiro até abril de 2020.
Tal conduta vai de encontro ao dever de moralidade pública positivado na legis-
lação, considerando que não atende ao melhor interesse social pois tende a ser mais cara,
objeto de desvio de recursos públicos e com produtos muitas vezes de qualidade duvidosa.

10 NOTÍCIAS, Uol. Mandetta contrata empresa ligada a sua campanha para combate ao coronavírus. 2020.
Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/constanca-rezende/2020/03/19/mandetta-contrata-empresa-li-
gada-a-sua-campanha-para-combate-ao-coronavirus.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 24 abr. 2020.
11 Idem.
12 NEWS, Pleno. Witzel põe sigilo em contratos de R$ 1 bilhão contra Covid-19. 2020. Disponível em: ht-
tps://pleno.news/brasil/cidades/witzel-poe-sigilo-em-contratos-de-r-1-bilhao-contra-covid-19.html.

332
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CONCLUSÃO

No presente trabalho foram apresentadas algumas das bases legislativas e


teóricas com o fim de contextualizar as mudanças advindas da ocorrência da pandemia
do Covid-19.
No desenvolvimento, foi chamada atenção para o importante papel da lei
13.979/2020 com vistas à aquisição de insumos para o sistema de saúde, especial-
mente quando se considera a primazia da garantia do direito à saúde, observadas as
diretrizes de proteção dos direitos humanos.
Assim essa lei, busca fazer com que o processo de aquisição de contratação
sejam mais rápidos e eficientes para o Poder Público.
Foi ressaltado a possibilidade de que a existência de qualquer das condições
presumidas no ato da contratação sejam contestadas em eventual representação ao
Judiciário e, consequentemente, a contratação anulada por ocorrência de ilegalidade.
Além disso, aclarou-se acerca de algumas contratações de empresas irregulares
que vêm ocorrendo de maneira cada vez mais frequente, de maneira a relembrar a
importância do acompanhamento dos gastos públicos pela sociedade civil.
Por fim, considerou-se que apesar de a iniciativa legislativa ter sido correta,
abre margem para que alguns gestores públicos optem por decisões políticas que não
priorizam o interesse público.
Nesse contexto, os três Poderes devem atuar de maneira harmoniosa, sustando
eventuais excessos, propondo soluções e sem esquecer dos serviços essenciais à justiça,
como o Ministério Público e a Defensoria Pública, quem vem cobrando ações cons-
tantemente da Administração para que a sociedade civil não fique desamparada.
Assim, espera-se que não tão somente os juristas, mas também a sociedade
considere acompanhar os gastos públicos, eis que precisam estar de acordo com os
preceitos que norteiam a Administração Pública e que a presente produção científica
contribua para o amadurecimento teórico dos sujeitos envolvidos e para a reconstru-
ção de uma sociedade verdadeiramente digna.

333
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

REFERÊNCIAS
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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

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PEREIRA JÚNIOR, Jessé Torres. Comentários À Lei das Licitações e Contratações da


Administração Pública. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 1239 p.

335
Capítulo 20
UMA ANÁLISE DA LEI Nº 12.318/2010
LEI DA ALIENAÇÃO PARENTAL,
NOS CASOS ENVOLVENDO
DENÚNCIAS DE ABUSOS
SEXUAIS POR UM DOS
GENITORES
SUMÁRIO: Introdução. 1. Abusos Sexuais no contexto familiar. 2. A Síndrome de
Alienação Parental. 3. A Lei 12.318/2010 e os obstáculos às denúncias de abuso sexual. 4.
Recomendações do CONANDA e da OEA. Considerações Finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 20

UMA ANÁLISE DA LEI Nº 12.318/2010 - LEI DA ALIENAÇÃO


PARENTAL, NOS CASOS ENVOLVENDO DENÚNCIAS
DE ABUSOS SEXUAIS POR UM DOS GENITORES

Pedro Henrique M. A. Menezes13

INTRODUÇÃO
A Lei de Alienação Parental, Lei nº12.318/2010, surgiu no ordenamento
jurídico pátrio após a repercussão do caso de Conflito de Competência nº 94.723
- RJ (2008/0060262-5), alçado ao STJ. No caso, a mãe, detentora da guarda dos
filhos, alegou que o ex-marido seria violento e que teria cometido abuso sexual con-
tra sua filha. Em defesa, o pai, por sua vez, acusava a genitora de fazer alienação pa-
rental. O desfecho foi favorável ao genitor, e a alienação parental passou a ser prevista
na legislação dois anos depois do julgado do STJ. 
Contudo, passados quase 10 anos da vigência da Lei de Alienação Paren-
tal,  percebe-se, atualmente, diversos problemas quanto à utilização do instituto
em ações que visam turbar a guarda, em geral da mãe, por uma espécie de machis-
mo difuso no processo, que visa descaracterizar as denúncias, realizadas por mulhe-
res,  de abuso sexual de menores por seu genitor, por meio do instituto da aliena-
ção parental e da tese da falsa memória. 
A presente pesquisa vai revelar que tal instituto, em verdade, não tutela o
melhor direito processual e por razões estruturais do judiciário brasileiro,  dificulta
a perseguição pelo indivíduo, ora acusado de alienar, da prestação jurisdicional do
Estado em evitar que um genitor, efetivamente abusador, se qualifique juridicamente
como o detentor da guarda. 

1. ABUSOS SEXUAIS NO CONTEXTO FAMILIAR


Primordialmente, é necessário abordar o que se entende por assédio
sexual,  para traçar como objeto os casos que ocorrem em contexto familiar.
Conforme  depreende-se da doutrina majoritária e do entendimento adotado pelo

13 Acadêmico de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Membro Pesqui-


sador e Coordenador da Linha de Economia do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais.
Membro Pesquisador do Grupo Ágora da Universidade Federal do Ceará.

339
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Ministério  Público, o abuso sexual trata-se de uma situação em que uma criança
ou  adolescente é invadido em sua sexualidade e usado para gratificação sexual de
um adulto ou de um adolescente mais velho. 
Cabe ressaltar que o abusador se manifesta de diferentes formas, sem desca-
racterizar, para tanto, a conduta delituosa, podendo ser por meio de carícias, mani-
pulação dos genitais, mama ou ânus, voyeurismo, exibicionismo ou até o ato sexual
com ou sem penetração. 
É sabido pela psicologia que o abuso sexual deturpa as relações socioafetivas
e culturais entre adultos e crianças ou adolescentes ao transformá-las em relações ge-
nitalizadas, erotizadas, comerciais, violentas e criminosas. O pior quadro, dentro do
espectro estarrecedor do abuso sexual, se manifesta quando a conduta abusiva parte
de um familiar, principalmente, do pai ou padrasto. 
Tais casos não são tão incomuns, conforme os gráficos a seguir, da base
de dados do Ministério da Saúde, compilados pelo Instituto de Pesquisa Econômi-
ca Aplicada – IPEA: 

Percebe-se do gráfico acima que a ampla maioria dos casos de estupro aco-


metem crianças de até 13 anos, sendo que, em média, quase 70% dos casos ocorrem
contra pessoas de até 17 anos, portanto, menores de idade. 

340
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A tabela seguinte dramatiza ainda mais o contexto recente, revelando a pro-


porção de vítimas de estupro, por faixa etária da vítima, segundo vínculo com o agressor:

Depreende-se, portanto, que cerca de 40,0% dos estupradores de crian-


ças  pertenciam ao círculo familiar próximo (incluindo pai, padrasto, tio, irmão e
avô). Por  fim, cabe uma comparação no que diz respeito à recorrência do estupro
quando o agressor faz parte ou não das relações da vítima. 

341
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Note que, enquanto “somente” 14,0% das pessoas violentadas por  des-
conhecidos haviam sofrido estupro anteriormente, a ampla maioria,  precisamente
56,5% das vítimas cujos abusadores eram conhecidos, sofreram estupros repetidos,
revelando um quadro de recorrentes abusos por parte de conhecidos. 
Neste contexto, não seria absurda, por exemplo, uma denúncia de uma
mãe a relatar situação de abuso por parte de um pai. No entanto, conforme apuração
do Ministério Público de São Paulo, em especial pela atuação da promotora de Jus-
tiça do Ministério Público de São Paulo (MPSP), Valéria Scarance Fernandes, mães
que entram na Justiça para comprovar o abuso sexual contra seus filhos e manter suas
guardas enfrentam, na Vara de Família, denúncias caluniosas de alienação parental, e,
dado o machismo difuso no judiciário e os instrumento falhos de apuração da SAP,
acabam por perder a guarda do filho em face do pai, eventualmente, abusador. 

2. A SÍNDROME DE ALIENAÇÃO PARENTAL (SAP) 


Cabe fazer um parêntese para elucidar sobre do que se trata a Síndrome
de Alienação Parental (SAP). Tal Síndrome foi terminologicamente proposta por  Ri-
chard Gardner (1985) para a situação em que a mãe ou o pai de uma criança doutri-
na-a para romper os laços afetivos com o outro genitor, criando fortes sentimentos de
ansiedade e temor em relação ao outro genitor, uma espécie de preocupação com a
desaprovação de um dos pais por parte da criança.1
Contudo, cabe destacar que a Síndrome de Alienação Parental não é reco-
nhecida como uma desordem pelas comunidades médica e jurídica e a teoria de Gar-
dnertem sido amplamente criticadas por estudiosos2 de saúde mental e de direito,
que alegam falta de validade científica e fiabilidade, além de não estar incluída no
Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais da Associação America-
na de Psiquiatria3. 
Foi essa a base, questionável, da Lei de Alienação Parental e que, portan-
to, reflete algumas gravíssimas incongruências jurídicas na aplicação do Direito. 

1 ACKERMAN, Marc J. (28 de fevereiro de 2002). Clinician’s Guide to Child Custody Evaluations (em in-
glês). [S.l.]: John Wiley & Sons. ISBN 9780471150916. Consultado em 05 de novembro de 2019.
2 BERNET, William; BAKER, Amy J. L. Parental Alienation, DSM-5, and ICD-11: Response to Critics.
Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law Online (em inglês). 41 (1): 98–104. ISSN 1093-6793.
PMID 23503183 Consultado em 05 de novembro de 2019.
3 COULBORN FALLER, Kathleen (2 de maio de 1998). The Parental Alienation Syndrome: What is it and
What Data Support it?. University of Michigan. Consultado em 05 de novembro de 2019

342
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Neste sentido, a promotora de Justiça do Ministério Público de São Pau-


lo (MPSP), Valéria Scarance Fernandes, destaca4 :

A base científica da nossa lei desconsidera as causas da rejeição e passa


a tratar superficialmente tudo como alienação, como se fosse possível
um silogismo. Mas precisamos entender que, se existe uma ação de
guarda e a criança rejeita o genitor ou se a criança viu o pai batendo
na mãe, certamente ela ficará com medo do agressor [...]

A Lei de Alienação Parental já foi abolida em diversos países da Eu-


ropa e América Latina, em razão do questionável fundamento teó-
rico do autor quando da elaboração da teoria e pela desobediência a
tratados e convenções internacionais, tendo por objetivo, em regra,
desqualificar as mães das crianças. 

Sem base científica sólida, percebe-se, portanto, que em muitos casos,


como, as provas são difíceis de se obter, os pais argumentam que as acusações de abu-
so sexual são falsas e deflagram, em face da mãe, a alienação parental. 
Como consequência, passam a ter acesso limitado aos filhos ou até mes-
mo perdem a guarda dos mesmos para os genitores supostamente abusadores. 

3. A LEI Nº 12.318/2010 E OS OBSTÁCULOS ÀS DENÚNCIAS DE ABUSO


SEXUAL
À análise da Lei de Alienação Parental, dispôs o art. 2º: 
Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação
psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por
um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou ado-
lescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie
genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção
de vínculos com este. 

Denota-se que a lei estabeleceu a ocorrência da alienação parental quando


crianças ou adolescentes forem afetados psicologicamente pelos pais, avós, guardiães,
tutores ou qualquer pessoa que os tenham sob sua autoridade, a fim de dificultar ou
prejudicar os seus vínculos afetivos com um dos genitores. 

4 MINISTÉRIO PÚBLICO DA BAHIA, MPBA, MP promove evento para discutir lei da alienação parental
e violência doméstica, Notícia, Redator: Milena Miranda DRT Ba 2510. Data: 22/05/2018 - 15:14. Disponível em:
<https://www.mpba.mp.br/noticia/42484 > Acesso em 05 de novembro de 2019.

343
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O parágrafo único do art. 2º da Lei 12.318/10 traz um rol de hipóteses


que caracterizariam a alienação parental: 
I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no
exercício da paternidade ou maternidade.
II - dificultar o exercício da autoridade parental.
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor.
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar.
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste
ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a
criança ou adolescente.
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visan-
do a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro
genitor, com familiares deste ou com avós. 
Cumpre mencionar que o texto do referido parágrafo é claro quanto
ao rol  meramente exemplificativo. É o caso concreto que poderá revelar outras
situações  possíveis de alienação parental, que poderão ser declarados pelo juiz
ou constatados por perícia.
Um dos mais graves problemas da referida lei já se apresenta no próprio texto,
pois os atos de alienação parental não precisam de demonstração inequívoca de ocorrên-
cia, portanto, o legislador se contentou a sustentar o quadro de SAP apenas por indícios. 
Logo, havendo indícios de atos de alienação parental, o órgão Judiciário, provocado
ou mesmo de ofício, poderá determinar provisoriamente as medidas processuais previstas. 
Por consequência, sem prejuízo das liminares, com ou sem a prova pericial,
o juiz decidirá e poderá impor ao alienador as seguintes sanções: 
I - declarar a ocorrência de alienação parental e advertir o alienador;
II - ampliar o regime de convivência familiar em favor do genitor alienado;
III - estipular multa ao alienador;
IV - determinar acompanhamento psicológico e/ou biopsicossocial;
V - determinar a alteração da guarda para guarda compartilhada ou
sua inversão;
VI - determinar a fixação cautelar do domicílio da criança ou
adolescente;
VII - declarar a suspensão da autoridade parental. 

344
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Percebe-se, de pronto, que o juízo acerca da alienação parental, que, em tese,


se consubstancia, pela própria terminologia cunhada por Richard Gardner,  como
uma síndrome, fica delegado ao magistrado, que poderá se satisfazer tão  somente
com alegações. 
A grave consequência disso é, no entanto, um reflexo da estrutura machista do
acolhimento de depoimentos, no Judiciário brasileiro. Conforme reportagem  do O
Globo, com base nos reiterados casos conhecidos pelo Ministério Público de São Paulo,
diversas mulheres apresentaram seus relatos de abuso sexual, acompanhado de provas
como gravações e foram desacreditadas. O mais emblemático retratado na reportagem,
inclusive, apresenta um laudo pericial confirmando o abuso sexual cometido5.
A psicanalista associada ao Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBD-
FAM), Ana Maria Iencarelli, alerta6:
[...] as provas de abuso sexual são difíceis de obter. Muitas pesquisas já
comprovaram que aqueles que cometem violência sexual contra crian-
ças e adolescentes são cuidadosos em não deixar vestígios físicos. No
entanto, a não comprovação de um relato de uma criança aponta, em
regra, para a incompetência da avaliação feita pelo Sistema de Justiça.

Em junho de 2019 ocorreu uma audiência pública sobre o projeto que re-
voga a Lei da Alienação Parental (LAP - Lei nº12.318, de 2010), na Comissão de
Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal.
Cumpre ressaltar, que existem posições que sustentam pela não revogação
da lei por alegar o tamanho impacto nacional, sugerindo pequenas modificações à
LAP, de modo a evitar que denúncias não comprovadas tenham presunção automáti-
ca da prática de alienação parental. 
No entanto, a ausência de fundamentação científica para a Síndrome de Alie-
nação Parental afastaria os laudos periciais da veracidade, tendo em vista, não haver ne-
nhuma comprovação científica da existência da possibilidade de implantar falsa memória. 

5 “ Apesar de ter um laudo comprovando o estupro de sua filha de 12 anos, uma avaliação psicológica
atestando a veracidade do relato e até uma gravação com a confissão do ex-marido e padrasto, Daniel-
le, que mora no interior de São Paulo, era acusada de alienação parental e corria o risco de perder a
guarda da caçula, de 3 anos, para o abusador”. Mães relatam dificuldades na Justiça para compro-
var o abuso sexual contra seus filhos. O Globo, Rio de Janeiro, 29 de setembro de 2019. Disponível
em:<https://oglobo.globo.com/sociedade/maes-relatam-dificuldades-na-justica-para-comprovar-abu-
so-sexual-contra-seus-filhos-23982962> Acesso em: 05 de Novembro de 2019.
6 MP promove evento para discutir lei da alienação parental e violência doméstica. Ministério
Público da Bahia, Salvador, 22 de Maio de 2018. Disponível em: <https://www.mpba.mp.br/noticia/42484
> Acesso em 05 de novembro de 2019.

345
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

4. RECOMENDAÇÕES DO CONANDA E DA OEA


Cumpre ressaltar, no contexto abordado, que diversas instituições nacionais
e internacionais já se posicionaram frente à problemática da Lei de Alienação Paren-
tal no ordenamento jurídico brasileiro. 
A Comissão de Direito de Família da OAB, secção Ceará, manifestou seu re-
púdio ao Projeto de Lei do Senado (PLS) nº498/2018, que visa a revogação da Lei
de Alienação Parental (Lei no 12.318/2010). Sustentando que a revogação pura da Lei
representaria um retrocesso ao Direito e às famílias brasileiras, na medida em  que
considera a alienação parental uma realidade que interfere no desenvolvimento  da
personalidade de crianças e de adolescentes. No entanto, destacou fazer-se necessário
repensar de maneira interdisciplinar, a partir de dados estatísticos e concretos, para
garantir uma proteção integral da criança e do adolescente. 
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente é mais ci-
rúrgico em suas recomendações, destacou, na própria legislação, os incisos e artigos a
serem revogados, bem como as medidas que podem ajustar a aplicação da lei de modo
mais justo e efetivo7:
Ainda que a Lei n° 12.318 de 2010 já esteja em vigor, este colegiado
identifica que em alguns aspectos não é oportuna e sequer adequa-
da, pois há dispositivos que ensejam violações graves aos direitos de
crianças e adolescentes, de modo que convém destacar alguns pontos
específicos, a seguir detalhados. 

O CONANDA destaca, ainda, um gravíssimo efeito rebote da legislação


atual,  ao afirmar que o inciso VI do artigo 2º pode inibir a denúncia de casos
reais de  abuso, pois, se um dos genitores verificar, mas não dispuser de provas
cabais, pode temer ser considerado ‘alienador’ e, portanto, sujeitar-se-á às sanções
imposta pela lei. 
Ademais, que o Estatuto da Criança e do Adolescente8, nos seus artigos
13,  18 e 70, convergem para a obrigatoriedade de comunicar a suspeita de vio-
lência,  bem como para a responsabilidade compartilhada por proteger direitos e
prevenir violações:

7 CONANDA. NOTA PÚBLICA DO CONANDA SOBRE A LEI DA ALIENAÇÃO PARENTAL LEI - N°


12.318 DE 2010. Publicada em <https://www.direitosdacrianca.gov.br/documentos/nota s-publicas-dos-
-conanda /nota-publica-do-conanda-sobre-a-lei-da-alienacao-parental-lei-ndeg-12-318-de-201 0-30-
08-2018/view> Acesso em 05 de novembro de 2019
8 BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990. Disponível em
< planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.html >. Acesso em 05 de novembro de 2019.

346
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de


tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou
adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho
Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providên-
cias legais. (Grifo)

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adoles-


cente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento,
aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Art. 70. É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou viola-


ção dos direitos da criança e do adolescente. 

Ademais, o Estatuto prevê que quando há suspeitas de violência e maus-tra-


tos, isso será apurado, inclusive em âmbito criminal, após ampla defesa e contraditó-
rio, de modo que eventuais falsas denúncias só serão caracterizadas como tal após a
conclusão do devido processo legal. 
Portanto, as consequências apontadas no artigo 6º da LAP, principalmen-
te,  os incisos V, VI, e VII, são desarrazoados em face do Processo Constitucional
que garante a ampla defesa e o contraditório. 
A posição do CONANDA em relação a tais pontos sustenta a tese de que
a lei intervém de modo prejudicial no contexto familiar9:
[...] uma intervenção desproporcional nas famílias e podem, inclusi-
ve, gerar distorções e agravar violações, à medida em que a mudança
de guarda, a fixação de domicílio e a suspensão da autoridade paren-
tal podem resultar na convivência da criança ou adolescente com seu
abusador, em detrimento do convívio com o suposto ‘alienador’. 

Por fim, cumpre destacar que Décima Primeira Reunião da Comissão de


Peritos, realizada em 19 de setembro de 2014, pela OEA, em atenção Convenção In-
teramericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida
como Convenção de Belém do Pará, orientou pela proibição de desvalorização do
depoimento baseado na suposta Síndrome Alienação Parental (SAP) 10

9 CONANDA. NOTA PÚBLICA DO CONANDA SOBRE A LEI DA ALIENAÇÃO PARENTAL LEI - N°


12.318 DE 2010. Publicada em <https://www.direitosdacrianca.gov.br/documentos/nota s-publicas-dos-
-conanda /nota-publica-do-conanda-sobre-a-lei-da-alienacao-parental-lei-ndeg-12-318-de-201 0-30-
08-2018/view> Acesso em 05 de novembro de 2019
10 FOLLOW-UP MECHANISM BELÉM DO PARÁ CONVENTION (MESECVI) Eleventh Meeting of the
Committee of Experts (CEVI) Disponível em: < https://www.oas.org/en/mesecvi/me etingofexperts.asp
>. Acesso em 05 de novembro de 2019.

347
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Realizar investigações rápidas e completas, levando em conta o contex-


to de coercibilidade como um elemento fundamental na determinação
da existência de violência, usando evidências técnicas e proibindo ex-
plicitamente evidências baseadas no comportamento da vítima inferir
o consentimento, como falta de resistência, história sexual ou retração
durante o processo ou a desvalorização do depoimento baseado na su-
posta Síndrome Alienação Parental (SAP), de tal forma que os resulta-
dos destes possam combater a impunidade dos agressores; 

Portanto, percebe-se, que existe uma convergência de diversas institui-


ções que apontam para a necessidade de alterações substanciais no texto legal da Lei
no 12.318/2010 de modo a assegurar garantias necessárias e constitucionais a proces-
sos que envolvem as circunstâncias aqui levantadas. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que passados quase 10 anos da vigência da Lei de Alienação Paren-
tal são diversos os problemas acerca das circunstâncias processuais que a lei impõe, indo
desde a desconsideração do devido processo legal, até a desproporcional intervenção,
sem sustentação científica razoável, na formação do indivíduo e na tutela deste. 
A presente pesquisa resumiu o contexto fático em que se encontra tal insti-
tuto, que, em verdade, não resguarda o melhor direito processual e por razões estru-
turais do judiciário brasileiro, dificulta a persecução pelo indivíduo, ora acusado de
alienar, da prestação jurisdicional do Estado em evitar que um genitor, efetivamente
abusador, se qualifique juridicamente como o detentor da guarda do infante.

REFERÊNCIAS
ACKERMAN, Marc J. (28 de fevereiro de 2002). Clinician’s Guide to Child Custody Evalua-
tions (em inglês). [S.l.]: John Wiley & Sons. ISBN 9780471150916. Consultado em 05 de
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ALMEIDA JUNIOR, Jesualdo Eduardo de. COMENTÁRIOS À LEI DA ALIENAÇÃO PA-


RENTAL - LEI 12.318, de 26 de agosto de 2010. Disponível em:<http://www.mpsp.mp.br/
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li_informativo/bibli_inf_2006/Intertemas_n.14.07.pdf> Acesso em 05 de novembro de 2019 

BERNET, William; BAKER, Amy J. L. Parental Alienation, DSM-5, and ICD-11: Response
to Critics. Journal of the American Academy of Psychiatry and the Law Online (em inglês). 41 (1):
98–104. ISSN 1093-6793. PMID 23503183 Consultado em 05 de novembro de 2019 

348
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990. Disponí-


vel em < planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.html >. Acesso em 05 de novembro de 2019.

CONANDA. NOTA PÚBLICA DO CONANDA SOBRE A LEI DA ALIENAÇÃO PAREN-


TAL LEI - N° 12.318 DE 2010. Publicada em <https://www.direitosdacrianca.gov.br/docu-
mentos/nota s-publicas-dos-conanda /nota-publica-do-conanda-sobre-a-lei-da-alienacao-paren-
tal-lei-ndeg-12-318-de-201 0-30-08-2018/view> Acesso em 05 de novembro de 2019 

COULBORN FALLER, Kathleen (2 de maio de 1998). The Parental Alienation Syndrome:


What is it and What Data Support it?. (em inglês). University of Michigan. Consultado em
05 de novembro de 2019 

IPEA. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. ESTUPRO NO BRASIL: VÍTIMAS, AUTO-


RES, FATORES SITUACIONAIS E EVOLUÇÃO DAS NOTIFICAÇÕES NO SISTEMA
DE SAÚDE ENTRE 2011 E 2014 .- Brasília : Rio de Janeiro : Ipea, 1990- ISSN 1415-4765.
Publicada em <http://www.ipea.gov.br /portal/index.php?option=com_content&view=arti-
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-notificacoes-no-sistema-de-saude-entren2011-e-2014&catid=397:2017&directory=1>Acesso
em 05 de novembro de 2019.

MINISTÉRIO PÚBLICO DA BAHIA, MPBA, MP promove evento para discutir lei da alie-
nação parental e violência doméstica, Notícia, Redator: Milena Miranda DRT Ba 2510. Data:
22/05/2018 - 15:14. Disponível em: <https://www.mpba.mp.br/noticia/42484 > Acesso em 05
de novembro de 2019. 

O GLOBO. Mães relatam dificuldades na Justiça para comprovar o abuso sexual contra seus
filhos. Reportagem. Constança Tatsch. Publicada em 29/09/2019. Disponível em: <https://
oglobo.globo.com/sociedade/maes-relatam-dificuldades-na-justica-para-comprovar-abuso-se-
xual-contra-seus-filhos239829 62> Acesso em 05 de novembro de 2019. 

OEA. FOLLOW-UP MECHANISM BELÉM DO PARÁ CONVENTION (MESECVI) Ele-


venth Meeting of the Committee of Experts (CEVI) Disponível em: <https://www.oas.org/en/
mesecvi/ meetingofexperts.asp> Acesso em 05 de novembro de 2019 

349
Capítulo 21
O ACESSO À JUSTIÇA
E O DIREITO DE
VISITA DOS AVÓS

SUMÁRIO: Prolegômenos. 1. Poder familiar. 1.1. Evolução Histórica. 1.2. Titularidade. 2.


Princípios do ordenamento pátrio e documentos jurídicos internacionais que versam sobre o
direito da criança e do adolescente. 2.1. Princípio da Dignidade Humana 2.2. Princípio da
Afetividade. 2.3. Princípio do Melhor Interesse do Menor. 2.4. Princípio da Solidariedade
Familiar. 2.5 Documentos Jurídicos Internacionais. 3. Convivência Familiar. 3.1. Conceito.
3.2. O Direito de Visita dos avós como parte integrante da convivência familiar. 4. Direito
de Visita dos avós. 4.1. Conceito de direito de visita. 4.2. Direito à Ancestralidade. 4.3. O
direito de visita dos avós antes do advento da lei nº 12398/11. 4.4. A importância do laço
afetivo entre avós e netos. Considerações Finais. Referências.
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

CAPÍTULO 21

O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO DE VISITA DOS AVÓS

Wallace da Silva Nascimento11


Juliana Magda Gabriel Holanda12

PROLEGÔMENOS
O presente artigo trata da lei nº 12.398/11 e tem como tema “O acesso à justiça
e o direito de visita aos avós”. Esse assunto já vinha sendo trabalhado pela comunida-
de acadêmica, pela doutrina majoritária e, nos casos concretos, pelas jurisprudências
dos tribunais, principalmente devido à ocorrência de inúmeros processos judiciais em
que os avós figuravam como autores da ação. O direito de visita resguarda a convi-
vência familiar e deve ser tratado como um direito fundamental, pois, em havendo
ruptura dos laços matrimoniais, conflitos familiares, ou, ainda, desentendimentos em
geral, os laços de afeto com a família deverão prevalecer.
Em primeiro lugar, é necessário entender que há diferença entre o direito de
visita, originalmente exclusivo dos pais, e o direito de visita dos avós. Este último é
estabelecido com critérios diferentes e deve ter um curto período de tempo, pois é
concedido unicamente no intuito de beneficiar a convivência entre avós e netos. Não
há que se falar em interferência na educação dos netos por parte dos avós, tendo em
vista que eles apenas serão partícipes no processo de desenvolvimento sadio da criança
e do adolescente. Além disso, não necessariamente deve ocorrer o divórcio entre os
genitores para que este direito seja obtido.
Percebe-se, dessa maneira, que o instituto jurídico aqui tratado possui ampla
importância para os avós, que tanto têm recorrido à Justiça Brasileira para ter seus
direitos reconhecidos, cuja gama de processos judiciais culminou com a promulgação
da Lei nº 12.398, de 28 de março de 2011. Ocorre que a retromencionada legislação,

11 Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). Estagiário no escritório Wagner Barreira Advoga-
dos Associados desde 2018. Monitor da Disciplina de Direito Civil I – Parte Geral nos semestres 2018.1, 2018.2,
2019.1 e 2019.2. Membro-pesquisador do Centro de Estudos em Direito Constitucional (CEDIC) da UFC em
2019. Formado pela Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) em 2011. Passou, como Cadete, pela
Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) no período de 2012 a 2016. Coautor na obra Coletiva “Acesso à
Justiça e Direitos Humanos – Vol. 1”. E-mail: wallacedas@hotmail.com.
12 Advogada. Graduação pelo Centro Universitário Estácio do Ceará (2017). Pós-Graduação latu sensu em Direito
do Trabalho e Previdenciário pela Faculdade Evolutivo (2019). E-mail: juliana_magda2@yahoo.com.br.

353
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

ao alterar o dispositivo geral, estendendo a interpretação do artigo 1.589 do Código


Civil de 2002, permitiu aos avós a possibilidade de exercer o direito de ação com uma
segurança jurídica que antes não existia, pois, ausente a previsão legal, havia maior
probabilidade de o pedido ser indeferido. Agora, com essa garantia legal explícita aos
avós, o direito e a forma de exercê-lo deixou de ser único e exclusivamente de enten-
dimento pessoal do juiz.
Diante do exposto, observa-se a magnitude desse artigo, o qual terá como ta-
refa a análise dos reflexos da lei nº 12.398/11 para o ordenamento jurídico brasileiro,
de modo que tanto os operadores do Direito quanto a sociedade como um todo pos-
sam ter conhecimento e saibam proceder em situações semelhantes.
Para isso, o objetivo principal do presente artigo é analisar a importância
da convivência entre netos e avós e as contribuições trazidas pela Lei 12.398/11,
perpassando pelos seguintes objetivos específicos: definir Poder Familiar; definir
o que é a Convivência Familiar de acordo com a Constituição Federal de 1988;
conceituar o direito de visita; explicar como era tratado o direito de visita antes
do advento da lei 12398/11; apresentar as mudanças trazidas pela lei 12.398/11
para o ordenamento pátrio.
A estrutura desta pesquisa divide-se em quatro seções, apresentando-se na
primeira seção o conceito de poder familiar, com uma breve evolução histórica
e tratando de sua titularidade; a segunda seção traz alguns princípios do ordena-
mento pátrio, tais como os princípios da dignidade humana, da afetividade, do
melhor interesse e da solidariedade, bem como traz documentos jurídicos inter-
nacionais conexos ao direito da criança e do adolescente; a terceira seção apro-
funda-se no conceito de convivência familiar, inserindo em seu âmbito o direito
de visita dos avós; e, finalmente, a quarta e última seção destina-se à explanação
propriamente dita do direito de visita dos avós, incluindo o conceito, o direito à
ancestralidade, a análise do direito de visita dos avós antes do advento da lei nº
12398/11, a importância do laço afetivo entre avós e netos e a relação desta lei
com a Alienação Parental.
No desenvolvimento deste artigo foi utilizada a metodologia da pesquisa biblio-
gráfica, com citação de doutrinadores, juristas e advogados da área civilista, acrescida
de análise do tratamento jurisprudencial dispensado à matéria em comento, bem
como por pesquisa com estudo aprofundando e crítico.

354
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

1. PODER FAMILIAR
1.1. Evolução Histórica
O instituto agora conhecido por poder familiar sofreu mudanças significativas
ao longo da história da sociedade brasileira. Antigamente, denominado de pátrio po-
der, nomenclatura derivada do Direito Romano - pater potestas -, este se caracterizava
pela centralização do poder na figura do pai, o chefe de família. Entretanto, devido à
conotação machista que o termo guardava, que se traduzia na ideia de exclusividade
do poder do pai sobre os filhos, houve uma reação de movimentos feministas no sen-
tido de haver uma igualdade de responsabilidade entre pai e mãe no tratamento dos
filhos. Desta forma, adveio o termo poder familiar1.
No Direito Romano, o homem é quem tinha o poder e era a autoridade dele
que prevalecia sobre a prole. Trazendo reflexos dessa tradição romana, o Código Civil
Brasileiro de 1916, aderiu à nomenclatura “pátrio poder”, pois o chefe da família é
quem tinha o domínio sobre a estirpe. Contudo, com a igualdade entre gêneros e os
avanços na sociedade familiar, este termo deixou de fazer sentido, sendo, hoje, conhe-
cido como poder familiar2.
Ainda nesse sentido, importante e necessária a lição de Rolf Madaleno:
A expressão pátrio poder induzia à noção de um poder do pai sobre os
filhos, afigurando-se incoerente com a igualdade dos cônjuges, indo
de encontro à doutrina da proteção integral dos filhos como sujeitos
de direitos, daí evoluindo para a denominação de poder familiar, a
traduzir uma noção de autoridade pessoal e patrimonial dos pais na
condução dos prioritários interesses dos filhos3. (grifos do autor).

Foi com a chegada do Estatuto da Mulher Casada que a mulher passou a exer-
cer também o pátrio poder, mas, ainda assim, em caso de divergência prevalecia a
decisão do pai. Explicitando essa situação, veja-se:

1 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2015, p. 460.
2 É válido ressaltar que, ainda assim, alguns doutrinadores não concordam com a atual nomenclatura. Silvio Rodri-
gues critica essa expressão por entender que não se trata de um poder dos pais sob a criança em si, mas de uma obriga-
ção exclusiva dos pais e que, apesar do nome, não se estende à família como um todo. Na mesma direção, Maria Bere-
nice Dias traz a crítica em relação à denominação poder familiar, pois o vocábulo mantém ênfase ao poder. Afirma que,
antes de poder, é um dever, de forma que seria mais adequado falar-se em função familiar ou em dever familiar (cf.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: direito de família. 28 ed., v. 6, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 355; DIAS, Maria
Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2015, p. 461).
3 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2013, p. 677.

355
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

O Código Civil de 1916 assegurava o pátrio poder exclusivamente


ao marido como cabeça do casal, chefe da sociedade conjugal. Na
falta ou impedimento do pai é que a chefia da sociedade conjugal
passava à mulher, que assumia o exercício do poder familiar com
relação aos filhos4.

Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e com o ad-


vento do Código Civil de 2002, a igualdade dos genitores prevaleceu, alterando-se a
nomenclatura do instituto pátrio poder para poder familiar. Conforme já demonstra-
do, a expressão “pátrio poder” se tornou incoerente, devido à desigualdade de gêneros
a ela intrínseca, sendo também criticável a utilização da expressão poder familiar, pois
não reconhece os filhos como sujeitos de direitos, dando a falsa impressão de que os
pais têm um poder sobre os filhos.

1.2. Titularidade
Segundo Maria Berenice Dias5, o poder familiar é um conjunto de direitos
e deveres do qual os pais, mesmo que separados, devem ser titulares, participando
da educação, criação, representação e o mais importante: dando amor e afeto. É im-
portante ressaltar que a autoridade deste poder sobre os filhos cabe aos genitores e,
mesmo havendo a situação de guarda, ainda assim os dois terão esta faculdade sobre
os filhos.
Quando se fala em poder, essa expressão não está ligada somente a direitos,
mas também a deveres que os pais devem se atentar para com os filhos. No artigo
16346 do Código Civil de 2002 há alguns dos deveres que os pais devem ter. Nesse
rol de deveres não estão o afeto, o amor e o carinho, mas sem dúvidas estes são a base
e deverão estar ligados aos demais do rol do referido artigo.

4 DIAS, Maria Berenice. 2015, op. cit., p. 460.


5 Idem, p. 464.
6 Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar,
que consiste em, quanto aos filhos: I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compar-
tilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes
ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem
sua residência permanente para outro Município; VI - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se
o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e
extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem
partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; IX - exigir que lhes pres-
tem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

356
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A Constituição Federal do Brasil, de 1988, em seu artigo 5º, inciso I7,


igualou homens e mulheres em direitos e obrigações. Tal dispositivo constitucional
teve reflexos na sociedade conjugal, conforme enunciado em nossa Carta Magna
em seu artigo 226, § 5º8, de modo que o poder familiar passou a ser exercido por
ambos os genitores.

Ademais, Simão9 elucida bem o que é o exercício do poder familiar:


A natureza do poder familiar é a de tratar os filhos como se-
res humanos independentes, que possuem dignidade própria,
criando-se um ambiente de convivência familiar propício ao
pleno desenvolvimento destes, sendo esta a orientação contida
no art. 227 da Constituição Brasileira (...).
Independente de nomenclatura, o que se objetiva reforçar é a ideia de que
os pais têm essa prerrogativa, atribuída de forma igualitária a ambos, e devem ter o
devido discernimento quanto ao seu exercício. Dessa maneira, o poder familiar não
é estendido aos demais integrantes da família, e sim exclusivamente aos pais. Não
se deve confundi-lo com o direito que os avós possuem de conviver com seus netos,
excluindo-se, portanto, a participação e fiscalização da criação de seus descendentes.

2. PRINCÍPIOS DO ORDENAMENTO PÁTRIO E DOCUMENTOS


JURÍDICOS INTERNACIONAIS CONEXOS AO DIREITO DA CRIANÇA
E DO ADOLESCENTE
2.1. Princípio da Dignidade Humana
Immanuel Kant, em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes10,
foi o grande pioneiro e responsável por levantar a questão acerca da dignidade huma-
na como um valor inestimável e absoluto, inerente a toda e qualquer pessoa humana.
A dignidade humana, enquanto princípio, encontra assento no artigo 1º da
Constituição Federal de 1988, em seu inciso III, sendo de importância basilar para
que sejam viabilizadas as condições de respeito, proteção e promoção à dignidade da
pessoa humana.
7 CF/88. Art. 5º. I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
8 CF/88. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) §5º Os direitos e deveres
referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
9 SIMÃO, Rosana Barbosa Cipriano. A imprescindível atuação interdisciplinar para uma justiça de família, in-
fância e juventude mais efetiva. In: PAULO, Beatrice Marinho (org.). Psicologia na prática jurídica: a criança em
foco. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 21-47.
10 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. 1 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

357
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Na conceituação de Sarlet11:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e dis-
tintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito
e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que
asseguram a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degra-
dante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existen-
ciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover
sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria exis-
tência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

Assim, o princípio da dignidade humana é, indubitavelmente, o fundamento


que assegura o direito de visita, por meio do qual todos os membros familiares devem
ter o direito à convivência familiar. Essa troca de experiências interfamiliares fortalece
a relação familiar, engrandecendo e tornando a vida mais digna.

2.2. Princípio da Afetividade


Para Rolf Madaleno12, o princípio da afetividade tem que estar nos vínculos
de filiação e parentesco, mas os vínculos consanguíneos não estão acima dos vínculos
afetivos. Dessa forma, o afeto seria a corrente que liga os laços familiares, para que
possa se conectar e dar sentido à dignidade e à existência humana.
Explicitando muito bem essa diferença tênue entre afetividade e relação con-
sanguínea, afirma Giselle Câmara Groeninga13, com a seguinte frase: “O amor é
condição para entender o outro e a si, respeitar a dignidade e desenvolver uma perso-
nalidade saudável”.
Pode-se dizer, também, que o princípio da afetividade está ligado ao princípio
da dignidade humana, pois juntos reforçam e garantem através dos laços afetivos uma
vida digna para o ser humano e a família. Logo, o princípio da afetividade para o di-
reito de visita é primordial, tendo em vista que é através do laço da afetividade que há

11 SARLET, Ingo apud DE LIMA, Francisco Arnaldo Rodrigues. O princípio da dignidade da pessoa humana

12 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2013, p. 99.
13 GROENINGA, Giselle Câmara. O direito à integridade psíquica e o livre-desenvolvimento da personalidade.
In: Família e dignidade humana, PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Belo Horizonte: IBDFAM. Anais do V
Congresso Brasileiro de Direito de Família, 2006.

358
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

uma interação entre o visitante e o visitado. O trecho a seguir de Scuro e Oltramari14


evidencia muito bem esse aspecto:
Percebe-se, desse modo, que o afeto é essencial para o fortaleci-
mento das relações familiares, as quais são reforçadas pelo conví-
vio entre os membros da entidade familiar. A garantia do direito
de visita para os casos em que esta convivência é interrompida,
uma vez que entre visitante e visitado existe uma forte ligação
afetiva, é a forma de impedir que se perca no tempo.

2.3. Princípio do Melhor Interesse do Menor


O princípio do melhor interesse do menor foi trazido pela comunidade internacio-
nal na Declaração dos Direitos da Criança, no ano de 1959. Antes esse princípio existia
no Código de Menores, que era utilizado para crianças em situação irregular. Agora, com
a doutrina da proteção integral, se usa principalmente em litígios da área familiar15.
De acordo com Peripolli16, o princípio do melhor interesse do menor tem
como ponto de partida o afeto na interação pai-filho, cuja existência se torna forçosa
para o desenvolvimento pleno. É sob essa perspectiva que a Declaração dos Direitos
da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) institui que:
“Princípio 6. Para o desenvolvimento completo e harmonioso
de sua personalidade, a criança precisa de amor e compreensão.
Criar-se-á, sempre que possível, aos cuidados e sob a responsabi-
lidade dos pais e, em qualquer hipótese, num ambiente de afeto
e de segurança moral e material, salvo circunstâncias excepcio-
nais, a criança da tenra idade não será apartada da mãe. À socie-
dade e às autoridades públicas caberá a obrigação de propiciar
cuidados especiais às crianças sem família e àquelas que carecem
de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de
ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos
filhos de famílias numerosas.”

14 SCURO, Andressa Bonato; OLTRAMARI, Vitor Hugo. O reconhecimento jurídico do direito de visitas entre
avós e netos no contexto da convivência familiar. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XII, n. 64, maio 2009.
15 MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: as-
pectos teóricos e práticos. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2013, p. 82-83.
16 PERIPOLLI, Suzane Catarina. O princípio do melhor interesse da criança como fundamento para o reconhe-
cimento da paternidade socioafetiva. 2014. In: Âmbito Jurídico, 01 nov. 2014.

359
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Para conceder o direito de visitas dos avós, o juiz deve sempre ter por base
o princípio do melhor interesse da criança para dar uma decisão razoável ao caso
concreto. Em face dos princípios que informam o Direito de Família, não se pode
recusar aos avós, salvo razões graves baseadas no interesse superior dos menores, o
direito de visita aos netos17. É o que se pode observar na seguinte ementa, em que o
melhor interesse do menor privou os avós de um contato mais frequente em virtude
de atitudes reprováveis:

AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO DE VISITAS À


NETA, PELOS AVÓS, AFORADA PELA MÃE. ALEGAÇÃO DE
ATOS DOS AVÓS QUE CAUSAM PREJUÍZO AO PLENO DE-
SENVOLVIMENTO DA INFANTE. PROVA QUE REVELOU
SÉRIOS DISTÚRBIOS NO DESENVOLVIMENTO AFETIVO
DA CRIANÇA. COMPORTAMENTO REPROVÁVEL DOS
AVÓS. SENTENÇA QUE BEM ANALISOU O CASO, REDU-
ZINDO O CONTATO COM A NETA – RECURSO DESPRO-
VIDO (TJSC – CÂMARA ESPECIAL REGIONAL DE CHAPE-
CÓ. – REL. AMARILDO DAROLD – APELAÇÃO CÍVEL AC
424386 SC 2009.042438-6 – DJ 07/06/2010) (grifo nosso).

2.4. Princípio da Solidariedade Familiar


Este princípio teve origem com a chegada da Constituição Federal de 1988.
Para Rolf Madaleno18, a solidariedade é o alicerce de todas as relações de família e das
afetivas, pois somente através deste princípio é que se pode ter um retorno de com-
preensão e colaboração, havendo uma ajuda sempre que necessário entre as partes que
compõem a família. Portanto, havendo a solidariedade familiar, tanto a criança quan-
to o adolescente crescerão em um ambiente que ajudará a entender a importância da
colaboração para o ambiente familiar.
Conforme será posteriormente explicitado no tópico referente à Convivência
Familiar, e devidamente expresso no artigo 227 da atual Constituição Federal brasilei-
ra, o princípio da solidariedade afirma que, com relação às crianças e aos adolescentes,
os direitos imanentes desses cidadãos em desenvolvimento devem ser garantidos, em
primeiro lugar, pela família, depois à sociedade e, por último, ao Estado.

17 CAHALI, Yussef Said. Divórcio e Separação. 9. ed. São Paulo: Editora Revistas dos tribunais, 2000, p. 951-957.
18 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2013, p. 93.

360
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Além disso, de acordo com a advogada Anna Luiza Ferreira19, o artigo 229
da CF/88 evidencia o dever ético da reciprocidade que deve existir entre ascenden-
tes e descendentes, deixando claro que os filhos, ainda que maiores, devem cuidar
de seus pais e, quando menores, seus pais devem criá-los e educá-los.
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos
menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os
pais na velhice, carência ou enfermidade.

Observa-se também a aplicação deste princípio quando, no artigo 230, tam-


bém de nossa Constituição, se afirma: “A  família, a sociedade e o Estado  têm o
dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”.
Por fim, e arrematando o que até aqui se afirma, conclui a supracitada autora20:
Em suma, há de se concluir que a ausência da efetividade do di-
reito de visitação, com a consequente quebra do convívio entre
os parentes, poderia afrouxar os laços da solidariedade familiar,
deixando de ser cumprida a vontade constitucional.

2.5. Documentos Jurídicos Internacionais


Na obra intitulada Curso de Direito da Criança e do Adolescente, coordenado
por Kátia Ferreira Lobo Andrade Maciel21, têm-se que o primeiro documento inter-
nacional que versou sobre direitos das crianças e dos adolescentes, por promoção da
Liga das Nações, foi a Declaração dos Direitos das Crianças de Genebra, no ano de
1924. Em 1959, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, adotada pela ONU,
foi primordial para que as crianças fossem elevadas ao patamar de sujeitos de direito.
Já em 1989, por meio da Resolução Nº 44, pela primeira vez a doutrina da Proteção
Integral foi adotada, reconhecendo a convivência familiar para crianças e jovens.
A convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de
San José da Costa de 1969, promulgada, no Brasil, pelo Decreto
nº678/92 reconheceu direitos aos já concebidos, especializou o tra-

19 FERREIRA, Anna Luiza. A supremacia do direito de visitação dos avós. 2009. In: Migalhas. 17. Jul. 2009.
20 Ibid.
21 MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: as-
pectos teóricos e práticos. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2013, p. 64.

361
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

tamento judicial para crianças e jovens, estabeleceu uma correspon-


sabilidade entre famílias, sociedades e Estado na proteção de crianças
e adolescentes22.

3. CONVIVÊNCIA FAMILIAR

A convivência familiar é de suma importância para a criança e para o adoles-


cente, pois é através da base da família que são iniciados os primeiros passos para a
construção do desenvolvimento do indivíduo. De acordo com o artigo 227 da Cons-
tituição Federativa do Brasil, essa convivência é um dever da família em primeiro
lugar, em segundo da sociedade e terceiro do Estado. Assim, a família como referência
deverá proporcionar o convívio com todos, para que haja um melhor desenvolvimen-
to e crescimento sadio para o infante.

3.1. Conceito
A Constituição Federativa do Brasil prevê em seu artigo 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cul-
tura, à dignidade, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.

Desta maneira, a convivência familiar encontra respaldo de nível constitucional,


permitindo que os infantes tenham esse direito fundamental garantido. Igualmente
importante é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que em seu artigo 16, inciso V23
e artigo 1924, prevê este direito como essencial ao desenvolvimento integral.
Segundo Paulo Lôbo25, em suas reflexões sobre a convivência familiar:

22 MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: as-
pectos teóricos e práticos. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2013, p. 65.
23 ECA, Art. 16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: (...) V - participar da vida familiar e
comunitária, sem discriminação; (...)
24 ECA, Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcional-
mente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu de-
senvolvimento integral.
25 LÔBO, Paulo, 2009 apud DOS SANTOS, Milena Andrade. Direito de Visita dos Avós. Revista Eletrônica
de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, out. 2013. Disponível em: <http://npa.newtonpaiva.br/direi-
to/?p=1460>. Acesso em: 20 jun. 2020.

362
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

A convivência familiar é a relação afetiva diuturna e duradoura en-


tretecida pelas pessoas que compõem o grupo familiar, em virtude de
laços de parentesco ou não, no ambiente comum. Supõe o espaço fí-
sico, a casa, o lar, a moradia, mas não necessariamente, pois as atuais
condições de vida e o mundo do trabalho provocam separações dos
membros da família no espaço físico, mas sem perda da referência ao
ambiente comum, tido como pertença de todos. É o ninho no qual
as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas
especialmente as crianças. 

Como bem citado pelo autor acima, a convivência familiar é de extrema im-
portância, e essa relação afetiva poderá ser de parentes mais próximos ou pessoas que
compõem o grupo familiar, não pressupondo necessariamente uma consanguinidade.

3.2. O direito de visita dos avós como parte integrante da convivência familiar
Garantido na Constituição Federal de 1988, o direito de convivência familiar
evidencia que o direito de visita está preservando a conexão da criança e do adolescen-
te com a parte que não detém a guarda e nem tem convívio direto. O direito de visita
dos avós teve seu reconhecimento na legislação e se entende por uma convivência
saudável e recíproca entre os ascendentes e os netos. Este direito permitiu aos avós a
oportunidade de ajuizar uma ação em caso de conflito.
É que os casos de conflitos familiares podem levar ao impedimento do direito
de visita dos avós. Todavia, tal obstáculo não deve prevalecer, porquanto as crianças
não devem ser afetadas pelas desavenças entre seus pais e familiares. O que deve ser
preservado, antes de qualquer coisa, é o bem-estar da criança mediante a convivência
pacífica. Sobre essa contradição, veja-se:
Em caso de divórcio ou separação, além da já complexa fixação da
guarda e do regime de convivência dos pais com os filhos menores de
18 anos de idade, surge, algumas vezes, a necessidade de regulamen-
tação do regime de visitas dos avós aos netos. Pode parecer estranho
os pais impedirem a visitação dos avós aos netos, já que o que se pode
esperar desta convivência é a maior alegria e o pleno bem-estar para as
crianças, salvo raríssimas exceções26.

26 DA SILVA, Regina Beatriz Tavares. O direito de visita dos avós. In: Associação de Direito de Família e dass Suces-
sões (ADFAS). Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-direito-de-visitas-dos-avos/>.
Acesso em: 27 de junho de 2020.

363
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Para Regina Beatriz Tavares da Silva27:


O pai e a mãe não podem, salvo por motivos graves, opor obstácu-
los às relações pessoais entre o menor e seus avós. Na falta de acor-
do entre as partes, essas relações serão regulamentadas pelo juiz de
família. Em caso de situações excepcionais, o juiz de família pode
estabelecer um direito de correspondência ou de visita a outras pes-
soas, parentes ou não.

É válido ressaltar que, para Maria Berenice Dias28, apesar da lei nº 12.398
de 2011 ter assegurado o direito de visita dos avós, o direito à convivência familiar,
previsto na Constituição Federal de 1988, já regulamentava o direito de visitas com
outros membros da família além dos genitores. Entretanto, aqui é o clássico caso de
que “às vezes o óbvio precisa ser dito”.

4. DIREITO DE VISITA DOS AVÓS

O direito de visita dos avós a seus netos é um tema considerado de


extrema importância pela corrente majoritária. O Superior Tribunal Federal, os
doutrinadores e a jurisprudência são favoráveis a este direito, que reconhecem a
importância do melhor interesse para crianças. Segundo Regina Beatriz Tavares da
Silva29 a comunidade acadêmica também foi favorável por ocasião da IV Jornada
de Direito Civil, realizada em 201130.

A criação da lei nº 12.398/2011 teve impulso inicial por parte da Senadora


Kátia Abreu (DEM/TO), e foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em 28
de março. Foram alterados os artigos 1589 da lei nº 10.406, de 10 de janeiro de
2002 do Código Civil e o artigo 888 da lei nº 5.869, de 11 de janeiro do Código
de processo Civil de 1973.

A nova redação estendeu o direito de visita aos avós e possui o seguinte enunciado:

Artigo 1589. O pai ou a mãe, em cuja guarda não estejam os filhos,

27 DA SILVA, Regina Beatriz Tavares. O direito de visita dos avós. In: Associação de Direito de Família e dass Suces-
sões (ADFAS). Disponível em: <http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-direito-de-visitas-dos-avos/>.
Acesso em: 27 de junho de 2020.
28 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2015, p. 666.
29 DA SILVA, Regina Beatriz Tavares. op. cit.
30 Enunciado 333, da IV Jornada de Direito Civil: “O direito de visita pode ser estendido aos avós e a pessoas com as
quais a criança ou o adolescente mantenha vínculo afetivo, atendendo ao seu melhor interesse.”.

364
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

poderá visitá-los e tê-los em sua companhia, segundo o que acordar


com o outro cônjuge, ou for fixado pelo juiz, bem como fiscalizar sua
manutenção e educação.

Parágrafo único. O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a


critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescen-
te. (Incluído pela Lei nº 12.398, de 2011).

O direito de visita aos avós é reconhecido e apreciado não só no Brasil, mas em


outros Códigos. Como salienta Regina Beatriz Tavares da Silva31:
O Código Civil francês, uma das legislações mais avançadas em Di-
reito de Família, também prevê a possibilidade de regime de con-
vivência dos avós com os netos ao prever em seu art. 371-4 que “a
criança tem o direito de manter relações pessoais com seus ascen-
dentes. Apenas os interesses da criança podem dificultar o exercício
deste direito”. No mesmo sentido o Código Civil Alemão, que prevê
em seu § 1685 o direito dos avós de conviverem com os netos se
isso estiver de acordo com o melhor interesse da criança. Também o
Código Civil Português prevê em seu art. 1887-A que “os pais não
podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos
e ascendentes”. Vê-se, portanto que diversas legislações de povos ci-
vilizados reconhecem a importância deste convívio e asseguram aos
avós e aos netos o direito de manutenção de contato recíproco.

Desta forma, Rolf Madaleno32 nos assegura que a convivência avoenga é fun-
damental na edificação da personalidade dos seus descendentes, pois essa transição
de quem já foi pai ou mãe e agora se tornam avós, acarreta que eles não serão dire-
tamente os responsáveis por sustentar, amparar e legislar a vida dos netos. Isso, por
consequência, os permite desfrutar de uma vasta experiência onde não se tem a preo-
cupação em relação às tarefas que são próprias dos genitores e, com isso, aproveitar os
prazeres e os benefícios que esta convivência traz para ambas as partes.

31 DA SILVA, Regina Beatriz Tavares. Op. cit.


32 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2013, p. 458.

365
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

4.1. Conceito de Direito de Visita


Fábio Maria de Mattia33 conceitua-o como “(...) o direito que os parentes têm
de visitar as pessoas com quem mantêm relações de parentesco, quer sejam menores
ou incapazes, quer sejam pessoas de maior idade, enfermas ou impossibilitadas”. 
Desta maneira, pode ser entendido o direito de visita, do ponto de vista tra-
dicional, como aquele no qual o genitor que não possuir a guarda do filho tenha
assegurado o contato físico e afetivo entre ele e a criança, em caso de separação
conjugal, ou até mesmo quando não necessariamente haja tal separação, mas que
exista uma natureza conflitiva no matrimônio. A convivência familiar deve ser res-
guardada em qualquer tempo.

4.2. Direito à Ancestralidade


Como preleciona Maria Berenice34, o direito à ancestralidade é um direito
personalíssimo, pois desde o momento do nascimento já recebemos o sobrenome
familiar. O reconhecimento da relação de parentesco implica ter um conhecimento
da árvore genealógica da família, até mesmo em casos de adoção.
O Estatuto da Criança e da Adolescente prevê, em seu artigo 2735, o reconhe-
cimento do status de filiação, sendo direito de personalidade inerente ao ser humano:

Nos avós, encontra-se também a referência mais próxima da ver-


dadeira história da família. Com envolvimento cumprem muito
bem, mesmo sem perceber, o papel de transmitir aos netos informa-
ções valiosas acerca da ancestralidade, auxiliando-os na formação de
uma vida calcada em raízes próprias36.

Conclui-se que o retorno da convivência avoenga para a descoberta de experiências


adquiridas com os ensinamentos repassados é essencial para as gerações vindouras.

33 MATTIA, Fábio Maria de apud BOSCHI, Fabio Bauab. Direito de visitas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 29.
34 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2015, p.663.
35 ECA. Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,
podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
36 FERREIRA, Anna Luiza. A supremacia do direito de visitação dos avós. op.cit.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

4.3. O Direito de visita dos avós antes do advento da Lei Nº 12398/11


Há muito tempo os avós imploravam por uma previsão legal que regulamentasse
uma situação de fato existente e que demandava uma participação mais ativa na vida dos
menores, bem como pleiteavam o reconhecimento do direito à visitação de seus netos.
O direito de visita dos avós antes do advento da Lei nº 12.398/11 era tratado
por meio de decisões judicias específicas a cada caso e o juiz decidia pelo melhor in-
teresse da criança e do adolescente. E aqui reside a importância do Acesso à Justiça
como forma de impulsionar mudanças necessárias à sociedade.
Segundo Maria Berenice37, a jurisprudência já vinha reconhecendo o direito
de visita aos avós antes mesmo do advento da Lei nº 12.398/2011. Entretanto, esse
instituto carecia de previsão legal e não fornecia segurança jurídica alguma para a
pretensão dos avós em tê-lo assegurado.
Muitos juízes procuraram enfrentar a problemática, demonstrando sensibili-
dade a uma situação recorrente, e buscaram contornar a circunstância, ao deferir a
questão da visitação avoenga. Contudo, não se tratava de matéria pacificada, e, desta
forma, havia oposição em muitas situações, especialmente quando se confrontava
com aplicadores legalistas. 
O desembargador Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, na apelação cível
nº 70010622280, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim
se posicionou:
DIREITO DE VISITA. PEDIDO DOS AVÓS PATERNOS.
GUARDA DA CRIANÇA PELA MÃE ESTANDO O PAI COM
O PODER FAMILIAR SUSPENSO. PEDIDO AUTÔNOMO
DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. 1. Os avós têm o direito
de visitar o neto e este de visitar os avós, sendo decorrência do liame
parental. 2. Embora esse direito deva ser exercido naturalmente, é
cabível a regulamentação judicial quando lhes é negado o convívio
com a criança e o genitor está com o poder familiar suspenso. Recur-
so provido. SEGREDO DE JUSTIÇA. (RIO GRANDE DO SUL.
Tribunal de Justiça. Apelação cível n.70010622280, da 7º Câmara
Cível. Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Porto
Alegre, 18 de maio de 2005.)

37 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 10 ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Revistas dos
Tribunais, 2015, p. 666.

367
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Observa-se, portanto, que, na decisão acima, o pedido de concessão do direi-


to de visita dos avós foi concedido, sob a argumentação de uma espécie de direito
natural dos ancestrais e, acima de qualquer coisa, um direito da própria criança, que
também é sujeito de direitos.
Outro exemplo que pode ser dado é do seguinte processo cuja ementa descreve:
AGRAVO DE INSTRUMENTO - REGULAMENTAÇÃO DE
VISITAS - AVÓS EM RELAÇÃO AOS NETOS - INTERESSE
DO MENOR - DEFERIMENTO DO PEDIDO. O direito de visi-
ta consiste num direito do menor em manter uma convivência sadia
com os seus pais e familiares, sendo, portanto, importante assegurar
o convívio do menino com a sua avó materna, mormente se não
há provas convincentes de que a regulamentação de visitas do neto
com pernoite na residência da avó materna seja prejudicial à saúde
da criança. (TJMG - Agravo de instrumento n.1.0000.00.321175-
2/000 (1), da 1º Câmara Cível. Relator: Des. Eduardo Andrade.
Belo Horizonte, 06/05/2003). 

Pode-se destacar, ainda, a seguinte decisão, para fins didáticos, que indefere
o pedido devido à ausência de regulamentação que servisse de subsídios a uma
decisão favorável:
AGRAVO INTERNO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS DOS
AVÓS A NETA. DIREITO RECONHECIDO NOS PRETÓRIOS.
AMPLIAÇÃO DEPENDENTE DE ESTUDO SOCIAL E OUTRAS
PROVAS NOS AUTOS. Por construção pretoriana, é reconhecido o
direito de visitas dos avós ao neto, com vista ao fortalecimento das rela-
ções familiares e saudável constituição afeto-emocional da criança. No
entanto, sua regulamentação depende de provas e estudo social com vista
a subsidiar o magistrado para decisão que melhor atenda os interesses
da criança. Ausente, ainda, tais provas, em razão da fase inicial do pro-
cesso, não há como atender, por ora, a ampliação das visitas buscada
pelos recorrentes. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO
(SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS – 7ª CÂMARA CÍVEL – REL.
DES. ANDRÉ LUIZ PLANELLA VILLARINHO – AGRAVO DE
INSTRUMENTO Nº 70023246952 – DJ 14.05/2008).

368
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Foi justamente esse cenário conturbado, que carecia de um posicionamento


consolidado capaz de fornecer segurança jurídica ao tema que levou o legislador a, em
sintonia com as demandas sociais, editar a Lei nº 12.398/11, no intuito de fornecer
caminhos jurídicos adequados para se alcançarem soluções mais justas. E tudo isso
graças à possibilidade de Acesso à Justiça, que impulsionou os estudos e reflexões so-
bre o assunto e culminou com a edição de lei específica para o assunto.

4.4. A importância do laço afetivo entre avós e netos


Segundo a psicóloga do Hospital São Camilo de São Paulo, Rita Calegari38, a
participação dos avós na criação dos netos, quando possível, pode trazer uma série de
benefícios a todos os envolvidos:
A criança se enriquece muito com esse contato, já que recebe mais es-
tímulos, amplia seu repertório e aprende a conviver em um ambiente
distinto com pessoas diferentes. Os avós também. Hoje, o ‘velho’ está
ligado a algo pejorativo graças ao mundo de consumo em que esta-
mos inseridos. O que é ‘velho’ tem que ser descartado. Para os avós,
então, ter a responsabilidade de cuidar de uma criança é sinônimo de
valorização social. A experiência dele é importante ali. Ele tem papel
utilitarista, está ajudando outras pessoas, e isso dá sentido à sua vida.
(CALEGARI, 2013).

Sobre a troca de experiências entre as gerações, Andréa Moraes, citando Mar-


garet Mead39, diz que:
(...) as relações entre as gerações constituem o mecanismo básico de
transmissão de saberes, costumes e práticas entre os indivíduos. Esse
acervo constitui as bases da sociedade. As relações intergeracionais
corresponderiam a três modelos (ou culturas): pós-figurativo, co-fi-
gurativo e pré-figurativo. A cultura pós-figurativa é aquela em que “as
crianças aprendem primordialmente com os mais velhos; a co-figu-
rativa é aquela em que tanto os adultos quanto as crianças aprendem
com seus pares, e a pré- figurativa aquela em que os adultos também
aprendem com os mais jovens”.

38 CALEGARI, Rita apud FERES, Elisa. A importância dos avós para pais e netos. Revista Crescer, 26. jul. 2013.
39 MEAD, Margaret, 2002 apud ALVES, Andréa Moraes, 2007. Os idosos, as redes de relações sociais e as rela-
ções familiares. In: Neri, A.L. (Org.). Idosos no Brasil: vivências, desafios e expectativas na terceira idade. São
Paulo, SP: Editora Fundação Perseu Abramo. p. 133.

369
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

Assim, ressaltam os autores Baroni, Cabral e Carvalho40 que é de extrema


importância a convivência avoenga para um crescimento salutar das crianças, poden-
do-se falar em um “direito moral” dos avós, cuja intenção é fornecer carinho e afeto
aos netos, bem como prestar assistência naquilo que lhes couber.
Não à toa, Edgar de Moura Bittencourt, em sua obra Guarda Dos filhos41 afir-
ma que “A afeição dos avós pelos netos é a última etapa das paixões puras do homem.
É a maior delícia de viver a velhice”.
A sentença abaixo, transcrita em parte, de autoria do Magistrado Fernando
Mottola, foi registrada na Revista Ajuris, principalmente pelo seu conteúdo inspira-
dor e de caráter humanístico. Rolf Madaleno42, afirma, inclusive, que em toda a sua
carreira jamais havia se deparado com uma sentença de tão alto nível de sensibilidade,
o que lhe incitou a proferir a seguinte menção: “Produziu uma das sentenças mais
belas de que se tem notícia na jurisprudência nacional”, a qual segue:
Quem, como o homem moderno, aprende desde cedo a quase tudo
sacrificar no altar alheio das convenções e dos modismos, pode per-
feitamente aprender a dar de si uma oferenda ínfima à própria estir-
pe, para, no mínimo, poder um dia pedir outro tanto. Uma sentença
que negasse, por esse prisma, a pretensão da autora, pessoa fisicamen-
te impedida de ir ter com os que lhe são caros, mais do que negá-la
afirmaria um odioso ‘direito à indiferença’ divorciando-se daquele
mínimo ético que constitui parte essencial do ideal jurídico de uma
civilização. Evidente, pois, que o ponto nevrálgico do caso repousa
na duvidosa eficácia e na discutível exequibilidade do decisum. O
amor não se impõe; o afeto não pode ser extorquido. Posso, enquan-
to menores, mandar ou fazer conduzir os netos à presença da avó.
Não posso determinar que a amem. Todavia, sempre entendi, que
não se nega um direito porque duvidosa a sua execução. Coube-me ou-
vir a autora, vê-la chorar, e, nada encontrando que lhe desampare
a súplica, iria contra minha consciência o subtrair-lhe a oportuni-
dade de, ao menos, tentar! Se for inevitável que a doçura almejada

40 BARONI, Arethusa; CABRAL, Flávia Kirilos Beckert; DE CARVALHO, Laura Roncaglio. Direito de visitas
dos avós aos netos. Disponível em: <http://direitofamiliar.com.br/direito-de-visitas-dos-avos-aos-netos/>. Acesso
em: 15 jun. 2020.
41 BITTENCOURT, Edgard de Moura, 1981 apud DE OLIVEIRA, Euclides. Direito de visitas dos avós aos
netos. Revista Brasileira de Direito de Família – Síntese. IBDFAM, ano IV, n. 13, abr-mai-jun-2002, p. 76.
42 MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 5. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense,
2013, p. 460.

370
ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

se converta em amargo fel, que o carinho tenha por recompensa a


incompreensão, que isso se faça por obra de outrem. Acho que, no
fundo, confio na generosidade dos jovens, no potencial imenso de
suas almas, e na sensibilidade de quem, sendo mãe e educadora, será
amanhã, também uma avó43.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho analisou a importância do direito de visita dos avós em conexão
com o interesse da criança e do adolescente, pois desta forma há uma sintonia para
que a decisão do juiz seja favorável e conceda este direito. Demonstrou, ainda, a im-
portância do Acesso à Justiça para que esse direito fosse paulatinamente reconhecido
e pudesse inspirar o legislador na promulgação de lei específica sobre a matéria.
Os objetivos propostos foram alcançados da seguinte forma: foi apresentado,
na primeira seção, o conceito de poder familiar, perpassando por uma breve evolução
histórica e tratando de sua titularidade. Restou claro que o poder familiar, antigo
pátrio poder, deixou de ser exclusividade do homem sobre a prole e, com a evolução
do pensamento da sociedade, estendeu-se esse poder-dever aos progenitores. A Cons-
tituição Federal de 1988 teve papel essencial no rompimento definitivo da noção de
família patriarcal e baseada numa certa hierarquia.
Na segunda seção, foram levantados alguns princípios do ordenamento pátrio,
tais como os princípios da dignidade humana, da afetividade, da solidariedade e do
melhor interesse. A partir do momento em que tanto a criança como o adolescente
tornaram-se sujeitos de direitos, passaram a ser protegidos pelo Princípio do Melhor
Interesse do Menor, o que orienta o juiz a ser cauteloso quando do proferimento
de sua decisão. Ademais, documentos jurídicos internacionais conexos ao direito da
criança e do adolescente surgiram, também, como marcos fundamentais para reafir-
má-los como sujeitos de direitos.
Na terceira seção, aprofundou-se o conceito de convivência familiar, expresso
nos artigos 226 e 227 da Constituição Federal de 1988, que define a família como
alicerce da sociedade, e ressaltou-se que o direito de visita dos avós se insere neste
âmbito e serve de fundamento para o desenvolvimento sadio do menor.
Por fim, na quarta e última seção, foi explanado o direito de visita dos avós
como um direito fundamental, que deve ser concedido sempre que for benéfico ao

43 LACERDA, Galeno. Direito de Família, casos selecionados. Rio de Janeiro: Forense, 2000. v. 111. p. 18-20.

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ACESSO À JUSTIÇA E DIREITOS HUMANOS VO L . I I

menor. Falou-se do direito à ancestralidade como elemento dignificador da crian-


ça e do adolescente ao ter conhecimento de sua árvore genealógica. Fez-se também
uma análise do direito de visita dos avós antes do advento da Lei nº 12.398/11, que
não trazia segurança jurídica aos avós e limitava-se ao entendimento do juiz. Evi-
denciou-se, por último, a relação desta lei com a Alienação Parental, pois havendo
proibição deste contato tão salutar, poderão ser aplicadas as regras contidas na Lei
nº 12.318/10, que, em última instância, poderão culminar na perda da Autoridade
Parental dos genitores.
É válido ressaltar que, para que fosse reconhecido o Direito de Visita aos avós,
o legislador teve a sabedoria de conciliar o interesse da criança em manter vínculo
com a sua família com os interesses dos avós, que clamavam pela chance de demons-
trar amor e afeto aos seus descendentes.
Diante de todas as premissas expostas neste trabalho, observa-se que o tema
abordado é extremamente relevante, já que, com o advento da Lei nº 12.398/2011,
o ordenamento jurídico pátrio passou a garantir aos avós a convivência com os netos.
Conclui-se, pois, em harmonia com o entendimento do legislador, que o insti-
tuto objeto deste trabalho é primordial para que o menor tenha apoio, vivência com
seus ancestrais, receba o carinho e afeto necessários e bastante amor dos avós para o
seu amadurecimento.

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