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PENSANDO SOCIEDADE, CULTURA E

DIREITO
PEMBROKE COLLINS
EDITORIAL BOARD

PRESIDENT Felipe Dutra Asensi

MEMBERS Adolfo Mamoru Nishiyama (UNIP, Brazil)


Adriano Moura da Fonseca Pinto (UNESA, Brazil)
Adriano Rosa (USU, Brazil)
Alberto Shinji Higa (Procuradoria Geral de Jundiaí, Brazil)
Alessandra T. Bentes Vivas (DPRJ, Brazil)
Arthur Bezerra de Souza Junior (UNINOVE, Brazil)
Aura Helena Peñas Felizzola (Universidad de Santo Tomás, Colombia)
Carlos Mourão (PGM, Brazil)
Claudio Joel B. Lossio (Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal)
Coriolano de Almeida Camargo (UPM, Brazil)
Daniel Giotti de Paula (INTEJUR, Brazil)
Danielle Medeiro da Silva de Araújo (UFSB, Brazil)
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles (UNILASSALE, Brazil)
Diogo de Castro Ferreira (IDT, Brazil)
Douglas Castro (Foundation for Law and International Affairs, United States)
Elaine Teixeira Rabello (KIT, Netherlands)
Glaucia Ribeiro (UEA, Brazil)
Isabelle Dias Carneiro Santos (UFMS, Brazil)
Jonathan Regis (UNIVALI, Brazil)
Julian Mora Aliseda (Universidad de Extremadura, Spain)
Leila Aparecida Chevchuk de Oliveira (TRT 2ª Região, Brazil)
Luciano Nascimento (UEPB, Brazil)
Luiz Renato Telles Otaviano (UFMS, Brazil)
Marcelo Pereira de Almeida (UFF, Brazil)
Marcia Cavalcanti (USU, Brazil)
Marcio de Oliveira Caldas (FBT, Brazil)
Matheus Marapodi dos Passos (Universidade de Coimbra, Portugal)
Omar Toledo Toríbio (Universidad Nacional Mayor de San Marcos, Peru)
Ricardo Medeiros Pimenta (IBICT, Brazil)
Rogério Borba (UVA, Brazil)
Rosangela Tremel (JusCibernética, Brazil)
Roseni Pinheiro (UERJ, Brazil)
Sergio de Souza Salles (UCP, Brazil)
Telson Pires (Faculdade Lusófona, Brazil)
Thiago Rodrigues Pereira (Novo Liceu, Portugal)
Vania Siciliano Aieta (UERJ, Brazil)
ORGANIZADORAS:
ORGANIZADORES
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN,
ARTHUR BEZERRA DE SOUZA JUNIOR, DANIEL GIOTTI DE
GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS
PAULA, EDUARDO KLAUSNER, ROGERIO BORBA DA SILVA

DIREITOS HUMANOS
JURIDICIDADE
PENSANDOE EFETIVIDADE
SOCIEDADE,
CULTURA E DIREITO

GRUP O M ULTIF O C O
Rio de Janeiro, 2019

DEERFIELD BEACH, FL – UNITED STATES


PEMBROKE COLLINS
2022
Copyright © 2022 | Claudia Lima Monteiro, Nara Rúbia Zardin, Gutianna Michelle de Oliveira Dias (orgs.)

EDITORIAL PRESIDENCYFelipe Asensi


PUBLISHING Felipe Asensi
EDITORIAL COORDINATION Vanessa Abraim

PROOFREADING Pembroke Collins' Team

GRAPHIC PROJECT AND COVER Diniz Gomes

FORMATTING Diniz Gomes

PEMBROKE COLLINS
1191 E Newport Center Dr #103 - Deerfield Beach
FL 33442 - United States
info@pembrokecollins.com
www.pembrokecollins.com

ALL RIGHTS RESERVED

No part of this book can be used or reproduced by any means without this Publisher's written permission.

FINANCING

This book was financed by the International Council for Higher Studies in Law (CAED-Jus), by the
International Council for Higher Studies in Education (CAEduca) and by Pembroke Collins.

All books are submitted to the peer view process in double blind format by the Publisher and, in the case
Collection, also by the Editors.

P418

Pensando sociedade, cultura e Direito / Claudia Lima Monteiro, Nara


Rúbia Zardin, Gutianna Michelle de Oliveira Dias (organizadoras). –
Deerfield Beach, Florida: Pembroke Collins, 2022.

206 p.

ISBN 979-8-88670-023-7

1. Relações sociais. 2. Relações culturais. 3. Globalização. 4.


Direito. I. Monteiro, Claudia Lima (org.). II. Zardin, Nara Rúbia (org.).
III. Dias, Gutianna Michelle de Oliveira (org.).

CDD 340

Librarian: Aneli Beloni


CRB7 049/21
SUMÁRIO

ARTIGOS - VISÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE SOCIEDADE E DIREITO 13

SOCIEDADE DE CONSUMO: A ERA DOS INFLUENCIADORES DIGITAIS E


SUA EVENTUAL RESPONSABILIZAÇÃO FRENTE AO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR 15
Amanda Moulin Macatrozzo

PUBLICIDADE E O MITO DA BELEZA: DA MÍSTICA FEMININA AO


FEMVERTISING 29
Nathália Zampieri Antunes
Isabel Christine Silva de Gregori

ACELERAÇÃO SOCIAL MODERNA E SOCIEDADE DO DESEMPENHO:


REDIMENSIONAMENTO DA PERCEPÇÃO DE DURAÇÃO RAZOÁVEL
DO PROCESSO E CAUSA DE ESGOTAMENTO FÍSICO E MENTAL DOS
SERVIDORES DO JUDICIÁRIO 46
Matusalém Jobson Bezerra Dantas

CONSIDERAÇÕES REFLEXIVAS ACERCA DA TEORIA DE JUSTIÇA EM MARX 63


Edna Raquel Rodrigues Santos Hogemann

DÉFICIT DEMOCRÁTICO EUROPEU PELO VIÉS SOCIOLÓGICO 75


Yago Teodoro Aiub Calixto
A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE
URGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA ÀS MULHERES TRANSSEXUAIS 87
Mateus da Veiga Scherer

A SOCIEDADE DE RISCO E A RESPONSABILIDADE CIVIL DA RELAÇÃO


MÉDICO-HOSPITALAR: COMO O COMPLIANCE PODE SER UM
INSTRUMENTO REDUTOR DO RISCO 104
Julia Tolomeotti Ferrarini

A PRESERVAÇÃO DA AUTONOMIA DO DIREITO DIANTE DA


CRIATIVIDADE JURISDICIONAL 117
Daniella Gomes Reis Peixoto

AS RELAÇÕES DE PODER E A LEGITIMIDADE REPRESENTATIVA LEGISLATIVA 131


Arthur Bezerra de Souza Junior
Ronaldo de Oliveira Jarnyk

DA SOCIEDADE DISCIPLINAR E DE CONTROLE PARA A SOCIEDADE


ALGORÍTMICA 148
Renato Zanolla Montefusco
Jamile Gonçalves Calissi

O DIREITO CONTEMPORÂNEO DAS FAMÍLIAS: A ESTRUTURAÇÃO DE


NÚCLEO FAMILIAR POR MEIO DO PROCESSO DE ADOÇÃO POR CASAIS
HOMOAFETIVOS 168
Willian Lopes Amorim

RESUMOS 181

O DESCOMPASSO EXISTENTE ENTRE O DIREITO PENAL BRASILEIRO E O


TRATAMENTO DOS PSICOPATAS HOMICIDAS  183
Karina Ramos Perez Martins

ANÁLISE DOS SUJEITOS DA TEORIA PATERNALISTA 188


Leila Gomes Gaya
APLICABILIDADE DA TEORIA DA SOCIEDADE ABERTA DE INTÉRPRETES
DE PETER HABERLE DIANTE DA ASCENSÃO DAS REDES SOCIAIS 194
Daniella Gomes Reis Peixoto

RESPONSABILIDADE SOCIAL COMO CAMINHO DE EFETIVAÇÃO PARA O


PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA 200
Camila Corrêa Teixeira
Jéssica Holandini Costa
Samanta Carolina Magalhães Quaresma
Carina Leal Nassar
CONSELHO CIENTÍFICO DO CAED-Jus

Adriano Rosa (Universidade Santa Úrsula, Brasil)


Alexandre Bahia (Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil)
Alfredo Freitas (Ambra College, Estados Unidos)
Antonio Santoro (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Arthur Bezerra de Souza
(Universidade Nove de Julho, Brasil)
Junior
Bruno Zanotti (PCES, Brasil)
Claudia Nunes (Universidade Veiga de Almeida, Brasil)
Daniel Giotti de Paula (PFN, Brasil)
Danielle Ferreira Medeiro
(Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil)
da Silva de Araújo
Denise Salles (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Edgar Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano, Colômbia)
Eduardo Val (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Felipe Asensi
Brasil)
(Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Fernando Bentes
Brasil)
Glaucia Ribeiro (Universidade do Estado do Amazonas, Brasil)

9
(Johann Wolfgang Goethe-Universität -
Gunter Frankenberg
Frankfurt am Main, Alemanha)
João Mendes (Universidade de Coimbra, Portugal)
(Universidade Federal do Estado do Rio de
Jose Buzanello
Janeiro, Brasil)
Klever Filpo (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Luciana Souza (Faculdade Milton Campos, Brasil)
Marcello Mello (Universidade Federal Fluminense, Brasil)
Maria do Carmo
(Universidade Federal do Sul da Bahia, Brasil)
Rebouças dos Santos
Nikolas Rose (King’s College London, Reino Unido)
Oton Vasconcelos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
(Fundación Universitária Los Libertadores,
Paula Arévalo Mutiz
Colômbia)
Pedro Ivo Sousa (Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil)
(Universidad Nacional de Río Cuarto,
Santiago Polop
Argentina)
Siddharta Legale (Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil)
Saul Tourinho Leal (Instituto Brasiliense de Direito Público, Brasil)
Sergio Salles (Universidade Católica de Petrópolis, Brasil)
Susanna Pozzolo (Università degli Studi di Brescia, Itália)
Thiago Pereira (Centro Universitário Lassale, Brasil)
(Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
Tiago Gagliano
Brasil)
Walkyria Chagas da Silva
(Universidade de Brasília, Brasil)
Santos
SOBRE O CAED-Jus

O Conselho Internacional de Altos Estudos em Direito


(CAED-Jus) é iniciativa consolidada e reconhecida de uma rede de
acadêmicos para o desenvolvimento de pesquisas jurídicas e reflexões
interdisciplinares de alta qualidade.
O CAED-Jus desenvolve-se via internet, sendo a tecnologia parte
importante para o sucesso das discussões e para a interação entre os par-
ticipantes através de diversos recursos multimídia. O evento é um dos
principais congressos acadêmicos do mundo e conta com os seguintes
diferenciais:

• Abertura a uma visão multidisciplinar e multiprofissional sobre o


direito, sendo bem-vindos os trabalhos de acadêmicos de diversas
formações;
• Democratização da divulgação e produção científica;
• Publicação dos artigos em livro impresso nos Estados Unidos
(com ISBN Americano) e distribuição mundial, com envio da
versão digital aos participantes;
• Galeria com os selecionados do Prêmio CAED-Jus de cada edição;
• Interação efetiva entre os participantes através de ferramentas via
internet;
• Exposição permanente do trabalho e do vídeo do autor no site
para os participantes;
• Coordenadores de GTs são organizadores dos livros publicados.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

O Conselho Científico do CAED-Jus é composto por acadêmi-


cos de alta qualidade no campo do direito em nível nacional e interna-
cional, tendo membros do Brasil, Estados Unidos, Colômbia, Argenti-
na, Portugal, Reino Unido, Itália e Alemanha.
Em 2022, o CAED-Jus organizou o seu tradicional Congresso
Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus 2022), que
ocorreu entre os dias 27 e 29 de abril de 2022, e contou com 14 Grupos
de Trabalho com mais de 280 artigos e resumos expandidos de 52 uni-
versidades e 28 programas de pós-graduação stricto sensu. A seleção dos
trabalhos apresentados ocorreu através do processo de peer review com
double blind, o que resultou na publicação dos 12 livros do evento.
Os coordenadores de GTs foram convertidos em organizadores dos
respectivos livros, ao passo que os trabalhos apresentados em GTs que
não formaram 18 trabalhos foram realocados noutro GT, conforme pre-
visto em edital específico.
Os coordenadores de GTs indicaram artigos para concorrerem ao
Prêmio CAED-Jus 2022. A Comissão Avaliadora foi composta pelos
professores Arthur Bezerra de Souza Junior (UNIP), Mércia Cardoso de
Souza (Escola Superior da Magistratura do Ceará) e Thiago Rodrigues
Pereira (Universidade Autónoma de Lisboa). O trabalho premiado foi
de autoria de Matusalem Jobson Bezerra Dantas, sob o título “Acelera-
ção Social Moderna e Sociedade do Desempenho: redimensionamento
da percepção de duração razoável do processo e causa de esgotamento
físico e mental dos servidores do Judiciário”.
Esta publicação americana é financiada por recursos do Conselho
Internacional de Altos Estudos em Direito (CAED-Jus), do Conselho
Internacional de Altos Estudos em Educação (CAEduca) e da Editora
Pembroke Collins e cumpre os diversos critérios de avaliação de livros
com excelência acadêmica internacionais.

12
ARTIGOS - VISÕES
CONTEMPORÂNEAS SOBRE
SOCIEDADE E DIREITO

13
SOCIEDADE DE CONSUMO: A
ERA DOS INFLUENCIADORES
DIGITAIS E SUA EVENTUAL
RESPONSABILIZAÇÃO FRENTE
AO CÓDIGO DE DEFESA DO
CONSUMIDOR
Amanda Moulin Macatrozzo1

INTRODUÇÃO

A sociedade contemporânea é marcada por constantes evoluções e


peculiaridades e, entre elas, pode-se mencionar o crescente desejo da po-
pulação em consumir desenfreadamente, não mais por inevitabilidade,
mas sim por acreditarem que apenas com a obtenção de determinado bem
ou serviço é que estarão verdadeiramente completos. Ainda que o ato de
consumir seja inerente à sobrevivência do ser humano, somente a partir do
século XVII ele começou a ganhar papel de maior relevância.
A partir deste contexto histórico, configurou-se o chamado “consu-
mismo”, que praticamente acomete todo o povo ocidental e está presen-
te nas “[…] mais variadas classes sociais, faixas etárias, etnias e religiões,
elevando o hábito de consumir a um verdadeiro desejo de vida.” (CE-

1 Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Membro do Grupo de


Pesquisa “Invisibilidade Social e energias emancipatórias em Direitos Humanos”.

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CHETTO, 2016, p. 10). Nesse viés, é possível afirmar que a sociedade de


consumo influenciou diretamente as relações sociais e, principalmente, o
comportamento dos cidadãos.
O consumismo, ao mesmo tempo em que submete os cidadãos a um
estado permanente de esforço para conseguir viver diante das pressões que
recebe, principalmente a midiática, o obriga também a lidar com as in-
fluências introduzidas no conjunto da sociedade. Sendo que as dimensões
desse consumo podem ser capazes não somente de mover a economia para
alavancar determinado produto, mas também de determinar o comporta-
mento de diversos grupos da sociedade.
Esse fenômeno foi impulsionado principalmente pelo desenvolvi-
mento tecnológico, sobretudo com o surgimento da Internet, que não
só aproximou pessoas, culturas e facilitou o acesso rápido a diversas in-
formações, como também foi decisiva na evolução do mercado, uma vez
que proporcionou ferramentas que garantissem maior atuação publicitária
capaz de alcançar os consumidores de forma mais eficaz.
É nesse cenário em que surgem os profissionais conhecidos como di-
gital influencers (influenciadores digitais) que, por serem reconhecidos nas
redes sociais como grandes formadores de opinião devido a notória visi-
bilidade e autenticidade, fecham parcerias com empresas, fornecedores e
grandes corporações com o objetivo de movimentar a economia e tornar
os produtos e serviços divulgados mais atrativos.
Nesse diapasão, o presente trabalho busca analisar o surgimento
dessa figura e o seu papel exercido na sociedade de consumo, além
de buscar identificar a responsabilidade aplicada ao mesmo frente a
eventuais problemas que ocorrerem perante o consumidor, visto que,
tratando-se de uma problemática nova e extremamente presente no
cotidiano da maioria das pessoas, ainda não possui regulamentação
específica.

1. A ERA DA SOCIEDADE DE CONSUMO E A


PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR

É inegável que o consumo e o apego a bens materiais sempre


estiveram presentes na História, embora, na configuração social ho-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

dierna, impulsionado pelas estratégias capitalistas, seja flagrante a sua


presença. Isso porque na atual era digital pautada por ferrenhas cam-
panhas publicitárias e atuação midiática “O ato de comprar deixou de
se limitar unicamente a mera satisfação das necessidades humanas.”
(BARBOSA, 2004, p. 14).
Esse processo culminou para que, com o passar do tempo, as pessoas
não mais adquirissem produtos e serviços por necessidade, mas sim de-
senvolvessem o costume de obtê-los pelo prazer de consumir; tem-se que
este é umbilicalmente “[…] associado a evolução dos valores sociais e aos
processos históricos […]” (TADEU, 2005, p. 203), como a Revolução
Industrial que, ao proporcionar melhorias nos modos de produção, poten-
cializou a procura por mercadorias.
Nesse contexto marcado por novos hábitos da população e pelo con-
sumo não mais moderado, mas frequentemente descontrolado, é que
surge a denominada “sociedade de consumo”, a qual se vincula à imple-
mentação de padrões e dita a forma de integração social (SILVA, 2019,
p. 19). Assim, para serem aceitos em determinados grupos, os indivíduos
são estimulados a comprar e, muitas vezes, os que não possuem condições
financeiras para satisfazer esses anseios são estigmatizados.
De modo geral é perceptível que atualmente o consumo é uma ati-
vidade mais complexa do que o simples ato de consumir em si. Assim,
observa-se a influência do consumo nas relações sociais e principalmente
no comportamento do cidadão.
É imperioso destacar que essa caracterização de sociedade é,
atualmente, representada pelo incentivo às compras, pela necessida-
de de novas aquisições e consequente insatisfação dos consumidores,
posto que com o frequente lançamento de novos produtos, as pessoas
já veem a necessidade de os adquirirem, o que faz com que “[…]
desvalorizem a sua durabilidade e sejam vistos como descartáveis.”
(BAUMAN,2008, p. 31).
Dessa forma, diante de evidente priorização dos bens materiais, o ato
de consumir ditará quem você é perante a sociedade, de modo que ser
feliz não está atrelado a valores e momentos, mas sim ao que o dinheiro
pode comprar. À vista disso, o indivíduo passa a ser identificado pelo que
de fato possui, não pelas suas virtudes.

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Ressalta-se que na sociedade capitalista essas compras excessivas ad-


vêm de intensa enxurrada de ofertas pelas empresas, as quais, visando o
lucro, investem incessantemente em propagandas e promoções a fim de
angariar clientes e induzi-los a obter produtos supérfluos que passarão a
ser vistos como essenciais.
É diante dessa inegável vulnerabilidade do consumidor frente aos
fornecedores, cada vez mais fortes e estrategicamente preparados para ma-
nipulá-los, que se fez necessária uma regulamentação especial que ampa-
rasse tal relação.
Para tanto, a Constituição Federal de 1988 sabiamente observando o
modelo de produção industrial capitalista reconheceu, em seu artigo 5º,
inciso XXXII, a figura da defesa do consumidor como direito fundamen-
tal dos cidadãos brasileiros, o que acaba por gerar até mesmo o desenvol-
vimento econômico, uma vez que essa figura protegida tende a comprar
mais. Por conseguinte, o artigo 170, inciso V do mesmo diploma também
assegura a tutela do consumidor como princípio geral da atividade eco-
nômica, reconhecendo essa figura como sujeito de direitos (SANTOS,
2009, p. 9)
Além disso, visando organizar e efetivar no plano infraconstitucional
os princípios e garantias constitucionais de defesa dessa figura vulnerável,
promulgou-se a Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, a qual deu luz ao
Código de Defesa do Consumidor (CDC) que, nas palavras do ilustre
doutrinador Sérgio Cavalieri (2010, p. 11): “[...] é um sistema de regras de
direito logicamente unidas, compreendendo todos os princípios cardiais
do nosso direito do consumidor, todos os seus conceitos fundamentais e
todas as normas e clausulas gerais para sua interpretação e aplicação.”
Diante disso, o Código de Defesa do Consumidor atua como um
instrumento de defesa da sociedade, sendo um mecanismo ardil na busca
da tutela e do equilíbrio entre os interesses dos compradores, reconheci-
damente indefesos, e dos anseios econômicos dos fornecedores os quais,
normalmente, se encontram em posição privilegiada por possuírem o do-
mínio da técnica.
É levando em consideração a sociedade de consumo em que vivemos
e a posição de fragilidade em que os indivíduos se encontram que ire-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

mos analisar a influência disseminada pelas marcas e pela mídia através dos
meios de comunicação na aquisição exacerbada de bens e a necessidade de
proteção diante dessa nova organização social.

2. A EVOLUÇÃO DIGITAL E O PAPEL DOS


INFLUENCIADORES NO COMPORTAMENTO DOS
CONSUMIDORES

A sociedade é complexa e está inserida em um contexto dinâmico de


interações uma vez que o Homem é, por excelência, um ser social. Essas
formas de comunicação passaram por constantes evoluções e no contexto
atual, caracterizado por novas tecnologias, os Homens devem se adaptar
às mudanças proporcionadas pela internet, caso contrário se tornarão ul-
trapassados e, não raro, relegados.
Sob esse prisma, é possível considerar que a internet revolucionou
a maneira pela qual os indivíduos se relacionam, principalmente porque
através dela foi possível quebrar barreiras, não mais ficando o conheci-
mento e as informações restritas a um grupo seleto, mas sim disseminadas
a uma velocidade antes inimaginável e propagadas em qualquer lugar do
mundo, o que facilitou o contato entre os usuários.
Todavia, em que pese à facilitação do consumo pela era digital, os
adquirentes, por possuírem maior acesso a dados e variedades, estão cada
vez mais exigentes e, por isso, as marcas não podem se limitar unicamente
em expor os seus produtos, precisam também utilizar suportes midiáticos
capazes de angariar novos clientes e conquistar o mercado.
Frisa-se que dentro da nossa sociedade a mídia não só é uma
forma de propagação de informações como também é um meio de
expressão, ao passo que a informação pressupõe o acesso a fatos ver-
dadeiros e a expressão remete à liberdade para se manifestar diante da
realidade. Considerando a natureza social do Homem, toda a dinâ-
mica de receber informações, processá-las, seja de maneira conscien-
te ou inconsciente, construir suas opiniões, reforçar crenças e poder
comunicar seu pensamento é necessária para a vida em sociedade e o
crescimento individual.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Com isso, sendo a mídia formadora de opinião em sua essência, ela


influi diretamente na relação de consumo por meio da avaliação compor-
tamental do consumidor. O estudo do comportamento do consumidor é
o estudo de como os indivíduos tomam decisões de gastar seus recursos
disponíveis em itens relacionados ao consumo e, na posse desses dados,
a mídia leva ao consumidor informações e anúncios que os conduzem a
uma decisão anteriormente projetada.
Dessa forma a mídia muitas vezes cumpre um papel importantíssimo
na sociedade e alimenta a máquina capitalista ao influenciar o comporta-
mento do consumidor. Sobre esse assunto, Silney Alves Tadeu (2005, p.
2016) comenta: “A publicidade se faz cada vez mais complexa e elaborada,
vinculando-se ao cinema, à televisão, e às novas tecnologias, como a pró-
pria internet, completando sua finalidade instrumental ao converter-se
em um consumo valioso por si mesmo.”
O marketing cumpre papel central dentro dessa atuação midiática, e
ele pode ser definido como “[…] um processo social que busca satisfazer
as necessidades e os desejos de pessoas e organizações através da criação
livre e competitiva de produtos e serviços que geram algum tipo de va-
lor para ambas as partes.” (OLIVEIRA; NETO, 2016, p. 31). Assim,
a mídia utiliza essa ferramenta para identificar e estudar os anseios do
mercado, de modo a se adaptar à realidade social e influenciar o compor-
tamento do consumidor ao fazer uso de uma ciência sociológica, com
o objetivo de aumentar os lucros de empresas tanto do ramo midiático
quanto do comércio.
É nesse cenário de divulgação das mercadorias e serviços com o
fulcro de persuadir os indivíduos a adquiri-las em que as redes sociais,
entre elas os Blogs, Youtube, Twitter e posteriormente o Instagram, atuarão
como uma ferramenta imprescindível. Isso porque possibilitam que as
marcas criem perfis e, dessa forma, não só tenham credibilidade e gerem
engajamento como também consigam mapear o conteúdo com o qual
os usuários se identificam, além de criar proximidade com os mesmos.
Destaca-se dentre essas redes sociais o Instagram, especialmente
porque através deste aplicativo de compartilhamento de fotos, vídeos e
histórias (stories) em que as pessoas expõem de modo espontâneo a sua

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

rotina, o mercado pôde inovar a sua técnica de anúncio e assim, expor


suas mercadorias, captar novos clientes e realizar vendas de maneira
mais eficaz.
Para divulgarem e alcançarem elevados índices de lucro fazem uso
dos chamados digital influencer, termo em inglês utilizado para determinar
os profissionais que “[…] se destacam nas redes e possuem a capacida-
de de mobilizar um grande número de seguidores, pautando opiniões e
comportamentos e até mesmo criando conteúdos que sejam exclusivos.”
(SILVA; TESSAROLO, 2016, p. 5).
Nesse sentido, os influenciadores digitais são as pessoas que se apre-
sentam através da internet como grandes formadores de opinião, as quais,
através de intensa interação com o público por meio das redes sociais,
de forma simples e até mesmo se comunicando como se tivessem certa
intimidade, criam conteúdo em favor da empresa que os contratou, alcan-
çando engajamento e gerando resultados ao destacar a marca no mercado
e potencializar suas vendas.
Segundo Eloisa Costa Felix (2017, p. 24), essa classe é representada
por: “[...] um indivíduo produtor de conteúdo que através da web e das
mídias sociais consegue inspirar e persuadir pessoas, causando transforma-
ções comportamentais e de pensamento tanto na internet quanto na vida
real de seus seguidores.”
Desse modo, esses profissionais utilizam sua imagem e credibilidade
como fonte de renda ao representarem um elo acessível entre os forne-
cedores (seus patrocinadores) e os consumidores que os acompanham os
quais, desenvolvendo um sentimento de confiança, são induzidos a segui-
rem suas indicações.
Logo, é possível perceber que essa figura, se valendo da popularidade
e reconhecimento alcançados, interfere diretamente na cultura do con-
sumo e na decisão de compra do consumidor. Isso porque este, tomando
como referência os influenciadores digitais, principalmente por esses pro-
fissionais serem vistos como pessoas de grande prestígio social, compensa
suas frustrações obtendo o produto divulgado numa tentativa de equipa-
rar suas identidades, seja no modo de se portar ou sobre quais produtos
consumir e, dessa maneira, também ser aceito pelo todo.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Desta feita, é notório que a utilização do digital influencer tem se mos-


trado extremamente eficaz na prática da divulgação de diversos produtos e
no fomento ao desejo de consumo. Todavia, frente à atuação desses profis-
sionais na concretização da venda, surge para o mesmo a responsabilização
pelo Código de Defesa do Consumidor quando da ocorrência de algum
dano no produto ou serviço por eles trazido a público.

3. A RESPONSABILIDADE DO INFLUENCIADOR DIGITAL

Os influenciadores digitais atualmente exercem um papel de extrema


importância tanto para as empresas que os utilizam como meio de pu-
blicidade quanto para os seguidores que acompanham religiosamente sua
rotina, tomando-a como referência e fonte de inspiração.
Embora não haja dúvidas quanto a influência desses profissionais
no consumo cotidiano dos cidadãos, a legislação brasileira até o mo-
mento não dispôs de uma regulamentação específica para esse tipo
de publicidade. Em uma tentativa de sanar tal lacuna a associação da
sociedade civil fundada por empresas de publicidade, o Conselho de
Autorregulamentação Publicitária (CONAR), demonstra em suas de-
cisões que tal meio de propaganda deverá ser tratado em consonância
com as leis já existentes.
Assim, diante da ausência de uma legislação e regulamentação es-
tatal própria, é imprescindível que as demais pessoas jurídicas do Di-
reito Público, como Ministério Público e PROCON, juntamente ao
CONAR, atuem para tutelar os direitos constitucionalmente garanti-
dos ao consumidor.
Essa responsabilidade de reparação frente ao consumidor se dá em
razão do papel fundamental que os influenciadores digitais exercem na
cadeia de consumo, uma vez que se valem da grande representatividade
e confiabilidade que possuem nos canais de comunicação para persuadir
muitos usuários a seguirem suas recomendações de produtos e serviços,
pois os apresentam como algo de qualidade e que realmente agregará em
suas vidas.
Nesse viés, o doutrinador Paulo Jorge Scartezzini Guimarães (2001,
p. 98) entende que:

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

[…] devem ser aplicadas às celebridades todas as diretrizes do


CDC, inclusive no que concerne a responsabilidade em caso de
violação aos direitos dos consumidores, tendo em vista que as ce-
lebridades são partes integrantes da cadeia de consumo, figurando
ao lado de todos os outros agentes.

Dessa forma, os digital influencers, ao atuarem intermediando vendas,


tomam para si o papel de “garantidores” (GASPARATTO; FREITAS;
EFING, 2019, p. 79) e, por isso, devem se pautar na boa fé e se portar
com transparência em relação às informações, características, pontos
positivos e eventuais resultados, sob pena de responderem solidariamen-
te aos fornecedores caso as qualidades não sejam condizentes com a
verdade, por força do disposto no artigo 7º, parágrafo único do Código
de Defesa do Consumidor.
Imperioso destacar que, como o surgimento dessa profissão se deu
de modo natural em consonância com a expansão da internet e das redes
sociais, era extremamente comumque esses agentes, ao colaborarem com
determinadas empresas para divulgarem o uso de seus produtos, não si-
nalizassem que se tratava de uma publicidade, os inserindo em sua rotina
como algo espontaneamente adquirido e os elogios feitos eram porque
acreditavam no que aquilo prometia.
Todavia, com a disseminação da atuação foi preciso um controle de
modo queesses agentes identificassem o caráter publicitário de forma ex-
pressa, fosse por meio de legendas, hashtags ou qualquer outra função que
deixasse evidente que aquela publicação se tratava de uma parceria paga.
Contudo, ainda que exista essa cobrança, muitos atores sociais ain-
da persistem em realizar divulgações de modo velado, propagando a
mensagem publicitária a um enorme número de pessoas sem que isso
seja expressamente identificado, o que gera dificuldade para os usuários
constatarem se o conteúdo publicado é fruto de uma ação espontânea
ou patrocinada.
Essa prática, infelizmente recorrente, viola diretamente a determina-
ção legal disposta nos artigos 36 do Código de Defesa do Consumidor e
28 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária, elaborado
pelo Conselho de AutorregulamentaçãoPublicitária (CONAR), visto que

23
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

esses dispositivos determinam e reforçam a necessidade de a publicidade


ser rapidamente identificada como tal.
Sobre o tema, a jurista Claudia Lima Marques (2016, p. 907) explicita
a origem dessa determinação e qual a sua importância no contexto social
pátrio:

O princípio da identificação obrigatória da mensagem como pu-


blicitária, instituído no art. 36 antes mencionado, tem sua ori-
gem justamente no pensamento de que é necessário tornar o con-
sumidor consciente de que ele é o destinatário de uma mensagem
patrocinada por um fornecedor, no intuito de lhe vender algum
produto ou serviço. […] Em um país de tantas diferenças sociais,
econômicas e culturais, a jurisprudência brasileira foi exemplar
ao estabelecer que a publicidade abusiva e enganosa atinge a to-
dos, mesmo aqueles excluídos do consumo, aqueles aos quais a
publicidade não se dirige, pois não possuem as condições para
consumir, mas que por intermédio da televisão, placares e out-
doors deste imenso País, são atingidos, expostos a estas práticas
comerciais abusivas.

Assim, por serem parte desse processo tão importante, os influencia-


dores não podem se eximir de sua responsabilidade perante a sociedade.
Como transmissores de informações eles possuem um compromisso com
a veracidade do conteúdo que propagam.
Desse modo, ocorrendo a realização da publicidade abusiva caracteri-
zada pela apresentação com cunho publicitário de modo imperceptível e
subliminar, é preciso não só sancionar as empresas que utilizam os servi-
ços de divulgação e propaganda dos influenciadores digitais com o intuito
de alavancar as vendas e angariar lucros, como também os próprios pro-
fissionais que, entregando um conteúdo sem revelar suas reais intenções,
violam diretamente o direito dos consumidores.
Por todo o exposto, é necessário destacar a importância de uma regu-
lamentação devida por parte do Estado adiante da figura do influenciador
digital e suas várias formas de disseminação de publicidade, além de uma
atuação mais maciça das instituições responsáveis por tutelar os direitos
dos consumidores, os quais são, em sua maioria, vulneráveis e tem a sua

24
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

condição agravada ao serem influenciados por pessoas que consideravam


exemplos e, na realidade, atuam com interesses escusos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução digital, juntamente com o surgimento de diversos


meios de comunicação, ao democratizar o acesso às informações e
contribuir para a produção de conteúdo, exerceu um papel primordial
no desenvolvimento da sociedade de consumo, pois, através da Inter-
net, o mercado pode crescer economicamente e fazer uso de novas
ferramentas que expandiram o modo de divulgar seus produtos e de
se relacionar com o público.
Entre os métodos mais utilizados para essa divulgação tem-se a
parceria paga estabelecida com os influenciadores digitais os quais,
criando postagens autênticas e, muitas vezes se portando como se ti-
vessem intimidade com o público, conseguem persuadir o consumi-
dor a comprar o recomendado em razão de passar uma imagem de
proximidade e confiança.
Neste cenário as dimensões da influência midiática vão além dos per-
centuais econômicos. Agora, com os influenciadores digitais e as mídias
sociais não é somente um produto que está sendo vendido, é também um
estilo de vida.
Dessa forma, por serem utilizados como meio de manipulação do
comprador e por integrarem a cadeia de consumo por exercerem papel
primordial na concretização do negócio, possuem um compromisso com
a veracidade do conteúdo propagado, de modo que devem especificar cla-
ramente não só se tratar de uma indicação paga, como também as reais
características do produto, sob pena de eventual responsabilização.
Sobre o tema, urge salientar que, ainda que muitos usuários te-
nham senso crítico para receber o que lhes é transmitido, ainda são
considerados como “vulneráveis” pelo Código de Defesa do Consu-
midor e, por isso, terão seus direitos resguardados pelas normas do
ordenamento pátrio.
Salienta-se também que, embora o Conselho de Autorregulamenta-
ção Publicitária (CONAR) exerça um papel importante na fiscalização

25
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

da atuação desses profissionais, por ser uma instituição privada não possui
poder coercitivo para impor suas recomendações.
Assim, ante a ausência de uma regulamentação específica no que se
refere ao tema, torna-se de suma importância uma atuação conjunta das
demais pessoas jurídicas do Direito Público, como Ministério Público e
PROCON, na busca efetiva do direito dos consumidores, além da aplica-
ção das medidas pertinentes à responsabilidade solidária, prevista no artigo
7º, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor, em observância
ao princípio da boa-fé e solidariedade.

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28
PUBLICIDADE E O MITO DA
BELEZA: DA MÍSTICA FEMININA AO
FEMVERTISING
Nathália Zampieri Antunes2
Isabel Christine Silva de Gregori3

INTRODUÇÃO

Desde o surgimento das revistas femininas e da inserção da mulher


no mercado de trabalho, o cenário publicitário e a sociedade patriarcal
uniram forças para criar uma ferramenta voltada ao enfraquecimento do
movimento feminista, que invocava o forte sentimento de independência
nas mulheres: a mística feminina, um conceito voltado ao controle das
mulheres de classe média, altamente disseminado por meio dos anúncios
publicitários direcionados ao público feminino, visando afastar as mulhe-
res do mercado de trabalho ao pregar a imagem do padrão de beleza e da
dona de casa ideal.
Com o enriquecimento das indústrias de beleza e de publicidade
diante da disseminação da busca pela perfeição estética e comportamen-

2 Mestranda em Direito no PPGD/UFSM. Especialista em Direito Tributário e Contabilidade


Tributária pela FBT. Graduada em Direito pela FADISMA. Pesquisadora do GPPIC, registrado
no Diretório de Grupos do CNPq e certificado pela UFSM. Advogada.
3 Doutora em Desenvolvimento Regional pela UNISC. Mestre em Integração Latino-Ameri-
cana pela UFSM. Professora do PPGD/UFSM. Coordenadora do GPPIC, registrado no Diretó-
rio de Grupos de Pesquisa do CNPq e certificado pela UFSM.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

tal da esposa, mãe e dona de casa exemplar, a publicidade evoluiu com o


passar dos anos ao invocar subliminarmente nas mulheres os sentimentos
de necessidade e de pertencimento, os quais iniciaram na domesticação e
evoluíram até uma falsa ideia de empoderamento, hoje amplamente dis-
sipada pelo “femvertising”, termo resultante da soma de feminism (femi-
nismo) e advertising (propaganda), que nada mais é do que a publicidade
direcionada ao público feminino.
A evolução da mística feminina para o mito da beleza trouxe conse-
quências às mulheres, as quais foram agravadas com o advento da Internet,
visto que a migração da publicidade das revistas femininas para as redes
sociais escancarou o exibicionismo dos corpos e agravou desdobramentos
como distúrbios alimentares, cirurgias plásticas e o culto à magreza diante
da figura das influenciadoras digitais, que na maioria das vezes consistem
em mulheres consideradas como adequadas ao padrão de beleza vigente
fixado pela sociedade patriarcal.
O presente estudo tem como objetivo perceber como a indústria
publicitária e a indústria da beleza lucram ao alimentarem as insegu-
ranças das mulheres com a imposição de padrões de beleza inalcançá-
veis por meio da propaganda, desde o surgimento das revistas femini-
nas até a utilização das redes sociais para a disseminação de anúncios
publicitários por meio de influenciadoras digitais. Busca-se analisar de
que forma essa publicidade interfere nas relações de consumo, visando
dar voz ao movimento feminista e às mulheres para que se libertem
dessas amarras e busquem o empoderamento como um ato de liberta-
ção econômica, cultural e social.

1. DA MÍSTICA FEMININA AO MITO DA BELEZA: O


PADRÃO DA FEMINILIDADE INSTAURADO PELA
PUBLICIDADE COM O SURGIMENTO DAS REVISTAS
FEMININAS

Em uma sociedade que se transforma constantemente diante das ino-


vações tecnológicas, é possível dizer que os movimentos sociais se reno-
vam na mesma velocidade com que a globalização avança nas fronteiras
ressignificadas pela internet devido à sua disseminação a nível mundial.

30
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Entre os inúmeros movimentos coletivos atuantes no cenário global


contemporâneo, percebe-se que as lutas provenientes de coletivos de mu-
lheres feministas voltados à desconstrução da mística feminina, do con-
ceito engessado de feminilidade e da fixação dos padrões de beleza são
grupos de grande influência nas redes sociais e no mercado publicitário
nos últimos anos. Mas como surgiu essa revolução?
O movimento feminista abriu portas para que a mulher pudesse er-
guer a voz e ser ouvida, trazendo grandes temores àqueles que detinham
em suas mãos as estruturas do poder. Isso porque a revolução das mulheres
contrariava tudo aquilo que até então era pregado como tradicional e acei-
tável para os preceitos familiares e sociais, visto que, conforme já afirmava
Simone de Beauvoir, desde o surgimento da espécie humana e do que
hoje conhecemos por sociedade, a mulher é percebida com o gravame de
inferioridade diante do homem, sendo vista pelo sexo masculino como
“[…] uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defi-
ni-la.” (BEAUVOIR, 1960, p. 25)
O pensamento machista, portanto, enraizado na cultura da sociedade
patriarcal, parte do pressuposto de que os sexos deveriam ser tratados de
formas distintas, visto que a identidade social da mulher era limitada dian-
te de suas atribuições e dos papeis cumpridos por seu sexo (SAFFIOTI,
1987, n.p.), devendo respeitar uma ordem natural que iria ao encontro de
um sistema que delimitava os direitos das mulheres sob amparo na justifi-
cativa da supremacia masculina, reservando às mulheres apenas o âmbito
familiar, devendo esta permanecer no lar por ser esta a sua aptidão bioló-
gica (BOURDIEU, 2015, n.p.).
Esse contexto prosperou e contribuiu para o surgimento de uma
das principais ferramentas de dominação utilizadas contra as mulheres: a
mística feminina, posteriormente alimentada pelo mito da beleza, ampla-
mente estudado pela jornalista Naomi Wolf, cuja conceituação se fixa da
seguinte forma:

O mito da beleza tem a seguinte história a contar. A qualidade


chamada “beleza” existe de forma objetiva e universal. As mulhe-
res devem querer encarná-la, e os homens devem querer possuir
mulheres que a encarnem. Encarnar a beleza é uma obrigação para

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

as mulheres, não para os homens, situação esta necessária e natural


por ser biológica, sexual e evolutiva. Os homens fortes lutam pelas
mulheres belas, e as mulheres belas têm maior sucesso na repro-
dução. A beleza da mulher precisa corresponder à sua fertilidade;
e, como esse sistema se baseia na seleção sexual, ele é inevitável e
imutável. Nada disso é verdade. A “beleza” é um sistema mone-
tário semelhante ao padrão-ouro. Como qualquer sistema, ele é
determinado pela política e, na era moderna no mundo ociden-
tal, consiste no último e no melhor conjunto de crenças a man-
ter intacto o domínio masculino. Ao atribuir valor às mulheres
numa hierarquia vertical, de acordo com um padrão físico imposto
culturalmente, ele expressa relações de poder segundo as quais as
mulheres precisam competir de forma antinatural por recursos dos
quais os homens se apropriam. (WOLF, 2020, p. 29).

Logo, uma breve análise da mística feminina e do mito da beleza são


suficientes para entender que estes, embora afetem diretamente as mu-
lheres, foram criados e giram em torno das instituições masculinas e do
poder institucional dos homens (WOLF, 2020, p. 31).
A concepção de feminilidade e do mito da beleza foi, portanto, cria-
da a partir do século XIX, com o objetivo de desacelerar o processo de
emancipação do movimento feminino a fim de defini-las pela figura da
domesticidade doutrinada pela mística feminina, pregando a encarnação
da figura da esposa, mãe e dona de casa virtuosa como complemento à
busca incessante da beleza, figura reforçada pelas primeiras revistas femi-
ninas que foram direcionadas especificamente à figura da mulher dona de
casa, fortemente influenciada ao consumo de cosméticos e de utensílios
para facilitar a sua condição de responsável pela boa apresentação do lar.
Diante dessa cobrança incessante tanto pela busca do padrão estético
relacionado à beleza quanto do padrão comportamental voltado à cultu-
ra patriarcal da mulher enquanto figura domesticada, consolidou-se um
novo mercado publicitário nas então recentes revistas segmentadas ao pú-
blico feminino: a partir de 1850, os produtores de remédios e cosméticos
eram os maiores anunciantes, assumindo grande influência e atingindo
um grande público, de forma que interferiram consideravelmente no pro-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

cesso dinâmico das publicidades (SOARES; FERREIRA BARROS,


2014, p. 04).
Neste período, as rendas com publicidade cresceram de forma ex-
traordinária, alterando o equilíbrio entre o departamento editorial arreca-
dado pelas revistas femininas e o departamento de publicidade, aumentan-
do exponencialmente os anunciantes responsáveis pela mística feminina,
os quais procuravam vender produtos domésticos (WOLF, 2020, p. 100).
Iniciava-se uma era de consumismo exacerbado onde não só o mito da
beleza era alimentado, como também a premissa de que os desejos de cor-
pos viravam produtos e os produtos viravam desejos de corpos.
A ascensão das revistas femininas, todavia, resultou de grandes inves-
timentos de capital, aliados à expansão da alfabetização e ao aumento do
poder aquisitivo das mulheres da classe trabalhadora e da baixa classe mé-
dia, o que resultou na denominada “democratização da beleza’’ (WOLF,
2020, p. 97).
Com o aumento da inserção das mulheres no mercado de trabalho
após a Segunda Guerra Mundial, o crescimento do poder aquisitivo e do
sentimento de independência foram imprescindíveis para que se iniciasse
o processo de combate à mística feminina e à idealização da feminilidade
e dos padrões de beleza como algo fundamental a ser seguido e perseguido
a qualquer custo.
Ainda que diversos escritores tenham ressaltado que as revistas femi-
ninas retratam a evolução da História das mulheres, poucos examinam a
forma pela qual parte de sua função consiste em determinar a evolução da
História e como o direcionamento das publicidades foram determinantes
para servir aos interesses daqueles que financiaram anúncios de produtos
os quais, na verdade, eram voltados a um ideal de dominação e controle
por meio da imprensa (WOLF, 2020, p. 100).
Fica claro que o papel esperado da mulher na sociedade era o de pro-
curar a perfeição nos deveres pregados pelo ideal da mística feminina, que
se alternava, contudo, de acordo com os ideais políticos, culturais, sociais
e, principalmente, com as necessidades dos empregadores, dos políticos,
e na economia do pós-guerra, que dependia do aumento do consumo,
o qual por sua vez dependia da publicidade e dos anunciantes. (WOLF,
2020, p. 100).

33
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Após a clara manifestação do gênero feminino pelo abandono do


conforto doméstico e o desejo por oportunidades similares às ofere-
cidas aos homens, a emancipação das mulheres teve um impulso ex-
ponencial, dando início à revolução sexual e a uma nova era histórica
(MILLETT, 1970, n.p.).
Com o colapso da mística feminina e o renascimento do movimento
feminista, as revistas e os anunciantes se depararam com a própria obsoles-
cência dos ideais de padrões inalcançáveis. O mito da beleza, em sua con-
cepção moderna, surgiu para tomar o lugar da mística feminina de forma
definitiva e para salvar as revistas e seus anunciantes das terríveis conse-
quências econômicas da revolução das mulheres (WOLF, 2020, p. 103).
O que ocorre, contudo, é que o mito da beleza possui desdobramen-
tos ainda mais agressivos do que a mística feminina possuía no passado.
De 1968 a 1972, o número de artigos relacionados a dietas aumentou em
70%. A perseguição pela magreza passou a ser normalizada, enquanto
artigos sobre dietas na imprensa popular aumentaram de 60 no ano de
1979, para 66 somente em janeiro de 1980. Entre os anos de 1983 e 1984,
a Reader’s Guide to Periodical Literature relacionava 103 artigos ao tema de
emagrecimento e dietas, enquanto em 1984 havia 300 livros sobre dietas à
venda (WOLF, 2020, p. 105).
Essa nova era das revistas segmentadas ao público feminino, ambien-
talizadas e de certa forma adaptadas às demandas perseguidas pelo mo-
vimento feminista, acabaram formalizando uma nova imagem, também
fundada em um padrão de comportamento tóxico e de natureza ques-
tionável: a caricatura da mulher de sucesso. Essa imagem foi fortalecida
com a reformulação da revista Cosmopolitan no ano de 1995, considerada
revolucionária em comparação às antigas revistas de serviços. A mulher de
sucesso possuía uma fórmula constituída por um tom otimista, individua-
lista, estimulante, que convencia a leitora de seu empoderamento pessoal
e sexual, ressaltando a ambição feminina e seu apetite erótico; além de
imagens sexualizadas de modelos femininos que, embora sejam apenas
um pouco mais discretas do que as imagens destinadas aos homens, tem a
finalidade de simbolizar a libertação sexual da mulher, o que simbolizou
a versão mais letal do mito da beleza a ser reproduzida pela publicidade
(WOLF, 2020, p. 107).

34
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Essa libertação da mulher concorreu com um aumento da promoção


da cultura da magreza e da plastificação da beleza, onde o excesso da cul-
tuação do aspecto físico iniciou um mercado altamente lucrativo que se
alimentou de um único aspecto incessante: as inseguranças das mulheres.
(SOARES; FERREIRA BARROS, 2014, pg. 10)
Essa dose obrigatória do mito da beleza fornecida pelas revistas in-
duziu nas leitoras um desejo incontrolável, insaciável e furioso de obter
certos produtos, e uma fantasia permanente da perseguição à beleza inal-
cançável (WOLF, 2020, p. 108). A mulher acabou perdendo sua identi-
dade quando se prendeu ao mundo das aparências ao ceder ao mercado
da beleza, pois acreditou que, por meio da cultura fortalecida através da
publicidade, ao consumir a beleza evitaria perder seu valor enquanto pes-
soa (SOARES; FERREIRA BARROS, 2014, p. 10).
Embora o mito da beleza seja claramente uma ferramenta prejudi-
cial ao desenvolvimento do sentimento de independência e liberdade das
amarras estéticas e comportamentais pregadas pela sociedade às mulheres,
deve-se admitir que com o surgimento das revistas femininas e a cons-
tante divulgação de materiais educativos de cunho positivo voltados ao
público feminino, a evolução do mito da beleza acompanhou o avanço
das mulheres, ainda que em contrapartida propagasse o aperfeiçoamento
da produção em massa de imagens de beleza padronizadas, popularizadas
especialmente com o lançamento de revistas como The Queen e Harper’s
Bazaar (WOLF, 2020, p. 97).
Da mesma forma, o surgimento da Internet contribuiu para a pro-
pagação da voz de movimentos femininos, mas também disseminou a
imagem da beleza padronizada e voltada a ideais inalcançáveis, as quais
acabam influenciando fatores negativos que vão desde transtornos alimen-
tares, consumo desenfreado, e superendividamento, até cirurgias plásticas
de natureza estética.
Percebemos, portanto, que o mito da beleza consiste em uma evolu-
ção um tanto quanto agressiva da então desconstituída mística feminina,
que age ambiguamente como uma ferramenta obscura de dependência
econômica e cultural disfarçada de empoderamento feminino, e como um
combustível para o direcionamento da publicidade, atualmente veicula-
da no ambiente virtual, para que se constitua como o que Naomi Wolf

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

denominou uma “[…] violenta reação contra o feminismo que emprega


imagens da beleza feminina como uma arma política contra a evolução da
mulher.” (WOLF, 2020, p. 26-27), agindo como um resquício dos anti-
gos saberes das antigas ideologias do feminino para controlar as mulheres
que a segunda onda do feminismo teria libertado do controle patriarcal.
Demonstrou-se necessário, portanto, compreender como surgiram e
como podemos quebrar as correntes que prendem a mulher às suas inse-
guranças, à sua necessidade de consumir a beleza e ao peso que a cultura
do patriarcado e as redes sociais, por meio dos anúncios que fortalecem a
visão da beleza padronizada, acabam exercendo contra a luta feminista e
os ideais da libertação do corpo, da mente e do direito da livre existência
da mulher perante a sociedade.

2. A UTILIZAÇÃO DAS INFLUENCIADORAS DIGITAIS


COMO FERRAMENTAS DE PUBLICIDADE NAS REDES
SOCIAIS E O SURGIMENTO DO FEMVERTISING

Uma revista feminina, conforme já observamos no capítulo anterior,


não é simplesmente uma revista. O relacionamento entre a leitora e sua
revista é diferente daquele de um leitor com a revista direcionada ao públi-
co masculino. Ao ler a Popular Mechanics ou a Newsweek, um homem está
folheando apenas uma perspectiva entre inúmeras outras da cultura geral
de orientação masculina, que encontra em fontes diversas. Ao ler a Gla-
mour, uma mulher está segurando nas mãos a cultura de massa orientada
para a mulher (WOLF, 2020, p. 108)
Os conteúdos femininos são apartados das demais seções informativas
de jornais, por exemplo, que agrupam questões femininas na “página das
mulheres”. Programas de televisão possuem canais especiais ou horários
específicos destinados às “reportagens femininas” para o horário diurno.
Em comparação, as revistas femininas são os únicos produtos que acom-
panham verdadeiramente as mudanças na realidade da mulher, pois são
em sua maioria escritas por mulheres e para mulheres, portanto levam a
sério as preocupações do gênero (WOLF, 2020, p. 109).
Esse ideal da “cultura de massa” orientada para a mulher fica ain-
da mais claro quando se percebe o aspecto socioeconômico representado

36
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

pelas revistas em comparação aos livros e periódicos científicos, os quais


muitas vezes são de fácil acesso apenas para mulheres instruídas da classe
média. As revistas, no entanto, se dirigem à maioria das mulheres que
estão lutando com problemas financeiros para lhes dizer que elas têm o
direito de se definirem primeiro. Mesmo que seja apenas em termos de
abertura de espaço para uma experiência cultural e política, a revista fe-
minina mais fútil é uma força mais séria para o progresso das mulheres do
que o periódico de interesse geral de maior peso (WOLF, 2020, p. 111).
O mesmo ocorre nas redes sociais. A Internet trouxe poder às mulhe-
res na medida em que a informação as libertou e trouxe independência da
toxicidade em ambientes diversos que ainda são dominados pelos homens.
O conteúdo direcionado às mulheres traz uma ligação subconsciente com
a luta que as acompanha desde o surgimento deste conteúdo informativo
nas revistas.
Com o advento da globalização, o progresso das tecnologias imple-
mentadas nessa era comandada pela internet, e a constante modernização
da vida em sociedade, as relações sociais e os hábitos de consumo vêm
sofrendo mudanças constantes diante do grande avanço do comércio ele-
trônico e do massivo investimento em publicidade realizado por grandes
empresas, devido à constante utilização das mídias sociais.
A era das redes sociais, portanto, por meio do fomento ao exibicio-
nismo e ao constante desejo de autoafirmação propagado pela figura das
influenciadoras digitais acaba sendo um ambiente hospitaleiro para o estí-
mulo constante ao consumismo desenfreado, conceituado por Adalberto
Pasqualotto como “o consumo além da necessidade”, provocando conse-
quências negativas que vão desde a frustração emocional até o superendi-
vidamento, maquiando a falsa ideia criada pelo mercado das necessidades
artificiais por bens supérfluos (PASQUALOTTO, 2021. p. 43).
Essa constante evolução da sociedade, influenciada diretamente
pela crescente dependência da Internet em todas as esferas de nossas
vidas, fez com que o virtual passasse a se fundir com a vida real. As
informações passaram a ser compartilhadas em uma velocidade expo-
nencial, e consequentemente as imagens de beleza passaram a ser di-
fundidas com maior facilidade, de forma que a publicidade passou a ter
uma nova roupagem, utilizando novas ferramentas de persuasão para

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

atingir a percepção do consumidor e convencê-lo da necessidade e da


essencialidade dos produtos.
Com esse viés puramente comercial da publicidade, especialmente
no âmbito da Internet e das redes sociais, pode-se dizer que houve um
fortalecimento do capitalismo onde o produto ou o serviço é apresentado
como a solução para satisfazer todos os desejos do consumidor. Trata-
-se do ideal do advertising, uma ferramenta publicitária de comunicação
e marketing utilizada para promover produtos e serviços utilizando os
meios de comunicação nos espaços publicitários (CASTRO, 2020, p. 21).
Essa conceituação é de importante compreensão pois os contratos de
consumo são constantemente estimulados pelas mensagens publicitárias
nas redes sociais, especialmente diante do uso da figura dos influenciado-
res digitais como uma ferramenta de disseminação de novas técnicas de
marketing para publicidade digital, muitas vezes realizadas em desconfor-
midade com os padrões exigidos pelas legislações vigentes. Essas figuras
são vistas no ambiente virtual como modelos a serem seguidos e em razão
disso influenciam diretamente no poder de escolha do consumidor.
Assim, “[…] por meio de estudos comportamentais das sociedades
contemporâneas, as empresas perceberam que aquelas pessoas exercem
uma espécie de autoridade capaz de ditar o que os outros devem usar, co-
mer ou gostar.” (PASQUALOTTO; BRITO, 2020, p. 44).
A publicidade, portanto, constitui-se de um meio utilizado para di-
vulgação de produtos e serviços com o objetivo de incentivar o seu con-
sumo. Assim, é a forma através da qual se leva aos consumidores o co-
nhecimento de determinados bens ou serviços com a finalidade de serem
examinados e posteriormente adquiridos (DIAS, 2018, p. 25). E é uma
das formas mais comuns de disseminação de ideais de beleza e de padrões
femininos por meio do conceito de advertising, na medida em que a utili-
zação constante da imagem padronizada de mulheres magras e extrema-
mente embelezadas para a promoção de produtos segmentados ao público
feminino acaba mais uma vez fixando, subconscientemente, o padrão de
feminilidade de forma indiscriminada.
O processo de persuasão do consumidor é realizado, portanto, de
forma sutil e muito facilitada através da Internet, produzindo o com-
portamento de compra esperado por meio da comunicação voltada ao

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

encantamento e sedução das massas. O sentimento de necessidade do


consumo surge pela formação da atitude, que atinge uma percepção
cognitiva, afetiva ou instintiva. O consumidor formula seu comporta-
mento de compra de acordo com seus conhecimentos acumulados que
estruturam sua forma de pensar, agir e ser ao longo de toda a sua vida
(DINIZ, 1999, p. 18.).
E é através de mensagens midiáticas, em programas de televisão, co-
merciais, videoclipes, entre outros, que as mulheres e meninas entram em
contato com discursos segundo os quais para ser uma mulher, é pré-re-
quisito ser bela. “Diferentemente do passado, quando quem mandava era
o marido, hoje o algoz não tem rosto. É a mídia. São os cartazes de rua.
O bombardeio da televisão.” (CASTRO, 2020, p. 24). Por isso, as redes
sociais e o movimento feminista iniciaram um processo de desconstrução
e mudança na imagem da publicidade feminina que afetou diretamente as
campanhas publicitárias das grandes marcas.
A publicidade no âmbito virtual é voltada a um potencial consumi-
dor em específico, e não mais a um público em geral. Conforme explica
Adalberto e Dante (2020, p. 43), “[…] passou-se de uma economia antes
focada na oferta para outra centrada na procura, no mercado e no próprio
consumidor.”.
Assim, através da coleta de dados pessoais dos usuários, os anúncios
são direcionados de forma surpreendente ao público conforme as suas
preferências. Por exemplo, o site de uma livraria, por meio do histórico
de compras de um cliente, é capaz de direcionar ou enviar mensagens
publicitárias personalizadas com o nome conforme o interesse literário
do consumidor. Essa prática já se tornou comum no comércio eletrônico
(ERENBERG, 2003, p. 37).
No entanto, apesar do surgimento dessa nova demanda no mercado,
a publicidade convencional que selecionaria mulheres consideradas den-
tro do padrão de beleza para vender produtos tem se mostrado cada vez
menos eficiente em termos de publicidade positiva. Essa mudança foi o
marco inicial para o surgimento do femvertising — junção de duas palavras
da língua inglesa, female (feminino) e advertising (anunciar) —, que signifi-
ca a união entre a publicidade e o empoderamento feminino (CASTRO,
2020, p. 36-37).

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Movimentos como o Corpo Livre, manifestações feministas pela li-


berdade das amarras do mercado das inseguranças, e marcas que promo-
vem a saúde da mulher sem a preocupação com a busca incansável pelo
corpo considerado ideal pelos padrões inatingíveis elencados pela cultura
dos distúrbios alimentares e da cirurgia plástica trouxeram um grande
desafio às grandes marcas, mas também uma grande oportunidade de
negócio.
Para o fornecedor, inúmeras são as vantagens de utilizar a Internet e
as redes sociais para encaminhar mensagens publicitárias aos consumido-
res. Dentre essas vantagens, é possível citar o baixo custo; o acesso livre,
constante e democrático, 24 horas por dia e durante o ano todo; a rápida
interação através de links de recomendações; o rastreamento do comporta-
mento de cada usuário e dos seus principais interesses; a maleabilidade para
alterações ou novas criações entre outros (ERENBERG, 2003, p. 39).
As grandes empresas publicitárias estão atentas às demandas do mer-
cado feminino e às reivindicações do movimento feminista que cresce pe-
las redes sociais. Quando se fala em publicidade e empoderamento, há
uma grande preocupação em não utilizar nenhum elemento (palavras,
imagens, sons, cores entre outros) em vão. Como mencionado, as suas
campanhas têm base em pesquisa de mercado, programadas para atuarem
sobre as emoções do consumidor, construindo verdadeiras estratégias de
marketing voltadas ao poder de persuasão da linguagem publicitária que
identifique valores e crenças dominantes numa sociedade (CASTRO,
2020, p. 24).
Entre suas múltiplas definições, entendemos que feminismo é um
movimento organizado e orientado para lutar pela libertação de mulheres
em situação de opressão. O femvertising, portanto, se afasta de uma ação
positiva e “empoderadora” com o objetivo de emancipar mulheres, para
tornar-se uma estratégia publicitária. Utiliza-se um mau entendimento
da palavra “empoderamento”, no sentido de ser aplicado como uma ação
individual, uma tomada de poder, perpetuando as relações de opressão,
mais uma vez perpetuando o mito da beleza (CASTRO, 2020, p. 40).
Considerando que o mercado publicitário é movido por lucro, o fem-
vertising é uma proposta de explorar um nicho mercadológico em expan-
são. Trata-se de um novo recurso da publicidade que utiliza e um acon-

40
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

tecimento histórico, fruto de uma instância econômica predominante. A


união de feminismo e publicidade gera uma mistificação sobre o que de
fato é empoderamento feminino, considerando que, para a publicidade, a
mulher “empoderada” é aquela que consome, que está inserida no mer-
cado de trabalho e está submetida ao sistema capitalista (CASTRO, 2020,
p. 42).
Vivendo na sociedade de consumo, o femvertising se aproveita ainda
da exploração da busca incessante por uma felicidade ideal, em meio da
qual a consumidora se vê envolvida. O papel da linguagem publicitária é,
então, produzir mensagens cujos objetivos propiciem a impressão de satis-
fação das carências e desejos desta consumidora (CASTRO, 2020, p. 24).
Neste ponto é que o impacto do compartilhamento de detalhes da
vida pessoal nas redes sociais, sem pudores, compactuou para o cresci-
mento da publicidade amplamente adotada pelas influenciadoras digitais,
que usam conteúdo editorial criado por meio de uma narrativa que en-
volve o consumidor em um contexto que induz o consumo, dificultando
a identificação do conteúdo publicitário (PASQUALOTTO; BRITO,
2020, p. 55).
É por meio de dicas, unboxing, e reviews que as influenciadoras reali-
zam anúncios disfarçados de análises indicativas de pontos positivos e ne-
gativos de um produto ou serviço, geralmente voltados à beleza. As gran-
des empresas acabam direcionando suas campanhas para influenciadores
que captem um público específico de acordo com seu produto ou serviço,
garantindo a entrega da mensagem às grandes massas, ainda que ferindo o
princípio da identificação da publicidade (PASQUALOTTO; BRITO,
2020, p. 57). E essas influenciadoras, em grande parte, contribuem para a
propagação do mito da beleza por corresponderem a ele.
No entanto, ainda que a publicidade seja uma atividade lícita e prote-
gida constitucionalmente, seu exercício não é ilimitado, estando sujeito a
controles em relação a possíveis abusos cometidos por meio do Código de
Defesa do Consumidor e do Código Brasileiro de Autorregulamentação
Publicitária (CBARP), elaborado pelo Conselho Nacional de Autorregu-
lamentação (CONAR).
É evidente que a associação da imagem de um influenciador digital a
um produto ou serviço, atualmente, é um papel determinante para a decisão

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

final do consumidor. O influenciador em tempos de soberania das redes


sociais transmite confiança e credibilidade aos seus seguidores, os quais
acreditam fielmente na proposta ofertada pelo produto ou serviço devido à
imagem e à opinião da celebridade digital que realiza a publicidade.
Entretanto, para Lucia Ancona Dias (2018, p. 323-324), o influen-
ciador digital é um mero porta-voz do anunciante, isto é, apenas empresta
sua imagem para divulgar aquele produto ou serviço, sendo a incumbên-
cia da criação e da qualidade apenas do seu fornecedor. O que traz uma
responsabilidade maior para as marcas no que tange a uma construção de
políticas saudáveis de propagação de imagens de publicidade positivas des-
tinadas às mulheres e que respeitem também os limites legais estabelecidos
pelo Código de Defesa do Consumidor.
O movimento feminista, ao longo dos anos, explanou que a voz das
mulheres deve ser não só ouvida, mas propagada pela eternidade. O mer-
cado, a publicidade, a sociedade e os padrões impostos por ela nos mostram
que essa luta não é um produto e que esses ideais não estão à venda. O
femvertising, portanto, não auxilia na mudança almejada pelo feminismo,
visto que as redes sociais dão espaço para essa propagação do movimento,
mas ao mesmo tempo disseminam as imagens de magreza e padrões de
beleza inalcançáveis constantemente.
Cabe às mulheres exigirem diante de seu empoderamento, assim
como todas as demais reivindicações que já fazem parte de sua luta diária,
que os anunciantes passem a ter um olhar mais empático e realista sobre
seus corpos e sua luta e menos voltados a um ideal de beleza há muito já
ultrapassado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das considerações realizadas acerca da evolução da publicidade


desde o surgimento das revistas femininas até as redes sociais, em especial
com a utilização das influenciadoras digitais como ferramentas de marke-
ting e publicidade, percebe-se que a mística feminina e o mito da beleza
foram ideais utilizados com a finalidade de controlar as mulheres social e
economicamente para impedir sua evolução profissional e intelectual, que
aumentava após o fortalecimento de sua inserção no mercado de trabalho.

42
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

A Internet, embora tenha contribuído para o esclarecimento diante


da facilidade na obtenção de informações e também tenha dado voz às
mulheres na medida em que possibilitou a difusão do movimento feminis-
ta e dos ideais do empoderamento feminino por meio de espaços direcio-
nados a este público, também facilitou a propagação das imagens de beleza
fixadas pela mística feminina e pelo mito da beleza.
A publicidade direcionada às mulheres foi um dos impulsos para tor-
nar a indústria publicitária uma das mais lucrativas do mundo, fundada
em um pilar essencial: as inseguranças femininas. Desde as revistas com os
anúncios direcionados a produtos domésticos essenciais à dona de casa, até
o marketing voltado à busca da sua melhor versão e da quebra do padrão,
porém ainda dependente de um ciclo vicioso guiado por um comércio de
beleza mutilador e irrealista, o mercado publicitário se reinventa sempre
buscando se adaptar para contornar as demandas vividas e sofridas na pele
das mulheres independente das lutas e dores vigentes.
O femvertising, desta forma, constitui-se claramente como mais
uma das ferramentas de lucratividade dessa indústria para potencializar
seus ganhos, utilizando o falso discurso da “desconstrução da feminili-
dade” para indiretamente propagar os padrões de beleza por meio das
influenciadoras digitais e de campanhas publicitárias milimetricamente
calculadas para incentivar as mulheres a se libertarem do padrão de beleza,
ao mesmo tempo que as induz, subconscientemente, à sensação de neces-
sidade, voltada à aquisição de produtos ou serviços relacionados à estética
padronizada.
Pode-se dizer, portanto, que embora o femvertising passe uma falsa
ideia de empoderamento e contribua indiretamente para a propagação dos
ideais do mito da beleza, ele inegavelmente acaba abrindo espaço para re-
flexões ao público que não tem acesso a essa temática e que não está fami-
liarizado a pensar acerca dos preceitos da luta feminista. Mas essa reflexão
rasa não é suficiente para alavancar as mudanças que farão a diferença.
Empoderar-se é um ato social, cultural e político, de forma que a
luta contra essa publicidade irresponsável e persuasiva que segue tentando
prender as mulheres às garras do mito da beleza é constante. Seja exigindo
uma responsabilização das marcas, dos anunciantes e até mesmo das in-
fluenciadoras digitais que propagam essas publicidades por meio das legis-

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

lações vigentes, cabe às mulheres mostrarem que o feminismo não é um


produto a ser vendido e que seus corpos não são mercadorias para serem
constantemente embelezados conforme as regras que os homens e suas
indústrias tentam constantemente impor.

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45
ACELERAÇÃO SOCIAL MODERNA
E SOCIEDADE DO DESEMPENHO:
REDIMENSIONAMENTO DA
PERCEPÇÃO DE DURAÇÃO
RAZOÁVEL DO PROCESSO E CAUSA
DE ESGOTAMENTO FÍSICO E MENTAL
DOS SERVIDORES DO JUDICIÁRIO
Matusalém Jobson Bezerra Dantas4

INTRODUÇÃO

A marca da sociedade contemporânea é a grande velocidade de suas


transformações. Transformar-se sempre foi uma tônica social, mas nunca
na velocidade com que tem acontecido. O tempo é elemento de impor-
tância em diversas áreas, como na economia, na sociologia e no direito.
No campo do Direito Processual, bem representa a importância do tem-
po o princípio da duração razoável do processo, de índole constitucional
(Constituição Federal, art. 5º, LXXVIII).

4 Mestrando em Direito pela FADIC. Professor Universitário. Diretor de Secretaria na JFRN.


Vice-Presidente do Instituto Potiguar de Direito Processual Civil - IPPC. Membro da ABDPro.
Membro da ANNEP.

46
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

O Judiciário deve dar respostas eficientes, efetivas e tempestivas (Có-


digo de Processo Civil, arts. 4º e 6º), embora se constate que a realida-
de dessa prestação jurisdicional é aquém do devido. Há descumprimento
constante do comando normativo, o que gera insatisfação na comunidade
jurídica e na sociedade em geral, provocando cobranças e pressões para o
atendimento do texto constitucional e infraconstitucional.
O objetivo deste trabalho não é analisar o estado de coisa inconsti-
tucional provocado pelo ainda moroso, caro e pouco eficiente Judiciário.
A proposta é diagnosticar, a partir das obras Aceleração: a transformação das
estruturas temporais na Modernidade, de Hartmut Rosa, e Sociedade do cansaço,
de Byung-Chul Han, que se vive uma veloz aceleração social a qual im-
plica numa sociedade cansada. E então, com isso, analisar se ela afeta o
Judiciário brasileiro e quais seus impactos.
Há mutação da percepção de tempestividade, numa sociedade de ace-
leração do tempo, notadamente pós-revolução digital? Qual o impacto
que a adoção da tecnologia no processo judicial tem provocado na espera
por constante aumento de produtividade, por respostas mais ágeis e por
maior demanda por inovação no Judiciário?
A carga de trabalho a que se submete a grande maioria dos servidores
e juízes é alta. A cobrança por celeridade5 e por eficiência tem aumenta-
do exponencialmente, cobrança esta tanto interna, através do Conselho
Nacional de Justiça (estabelecimento de metas etc.), quanto externa, pela
Ordem dos Advogados do Brasil (os advogados exigem atuação mais efi-
ciente, inovadora e rápida), além de pela mídia e pela sociedade em geral,
já que a tecnologia aproxima a prestação jurisdicional do cidadão.
A que preço humano essa revolução digital, que acelera a noção de
tempo, é praticada no Judiciário? É possível conjugar as vantagens da ace-
leração social, notadamente na era digital, com a proteção ao esgotamento
físico e mental dos servidores e juízes?
Não obstante se festejar a aceleração do tempo no Judiciário, com
slogans do tipo “Judiciário 4.0”, há que se ponderar o efeito colateral disso.
O trabalho, através de metodologias dedutiva, indutiva e pragmatis-
ta, apoiado no referencial teórico de Hartmut Rosa e Byung-Chul Han,

5 A exigência social não é por duração razoável do processo, mas por celeridade mesmo. É
uma sociedade ansiosa, uma sociedade de e com “pressa”.

47
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

procura dialogar com os questionamentos apontados acima. Para tanto,


aborda, no capítulo 1, o conceito de aceleração social, o impacto nela da
revolução digital e o que vem a ser a sociedade de desempenho e a so-
ciedade do cansaço, que traz a marca do esgotamento físico e mental de
alguns de seus sujeitos. No capítulo 2, a partir dessas constatações socioló-
gicas e fenomenológicas, analisa-se o efeito delas no Poder Judiciário, com
a mudança de percepção de tempo delas decorrentes e o que isso provoca
no trabalho dos servidores e juízes. Por fim, pondera-se se há saída para os
problemas apontados.

1. ACELERAÇÃO SOCIAL, SOCIEDADE DE


DESEMPENHO E O CONSEQUENTE ESGOTAMENTO
FÍSICO E MENTAL

1.1. A VELOCIDADE DA ACELERAÇÃO SOCIAL


HODIERNA

A aceleração da sociedade acontece, não exclusivamente, mas muito


influenciada pela evolução do modelo de produção econômica. Implica-
-se, assim, que a aceleração social não é fenômeno próprio da atualidade,
mas sempre esteve presente na “evolução” social. Poucos são os registros
da aceleração do passado, que passaram a ser feitos por volta do século
XVIII. Rosa (2019, p. 28) nos traz constatação de que esses registros,
“[…] aproximadamente em 1750, surgem, em uma quantidade que cres-
cem rapidamente, escritos sobre a percepção de uma enorme aceleração do
tempo e da história, muitas vezes relatados com perplexidade”.
O que chama a atenção para a aceleração hodierna é a sua velocida-
de, muito em decorrência da era digital que se atravessa. Segundo Klaus
Schwab (2016, p. 18),

A velocidade da inovação em termos de desenvolvimento e ruptu-


ra está mais rápida do que nunca. Os atuais disruptores – Airbnb,
Uber, Alibaba e afins – que hoje já são nomes familiares, eram re-
lativamente desconhecidos há poucos anos. O onipresente iPhone
foi lançado em 2007. Mas, no final de 2015, já existiam cerca de 2
bilhões de smartphones.

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

A “revolução digital” ou, na expressão de Klaus Schwab, “a quarta


revolução industrial”, afeta diretamente a forma de estudar, trabalhar, se
relacionar consigo e com o outro, comercializar, inovar, acelerar, enfim,
de viver na sociedade pós-moderna. Há uma combinação concomitante
de novas tecnologias, aliada a uma sociedade hiperconectada, a significar
mudanças constantes de paradigmas.
Sem dúvidas, a ruptura disruptiva e o ritmo da vida moderna são mais
acelerados do que a da sociedade de outrora. Para Hartmut Rosa (2019,
p. XI), o que define uma sociedade como moderna é a estabilização di-
nâmica, estruturada na busca pelo crescimento, pela inovação e pela ace-
leração. Para Rosa (2019, p. XVI), ainda, diferente da estabilização social
adaptativa do passado, a estabilização dinâmica tem uma “[…] compulsão
endógena, estrutural, ao aumento ou à inovação continuada.”.
Há verdadeira cultura de compulsão ao crescimento. Somos estimu-
lados sempre a crescer e inovar no menor tempo possível. Nas redes sociais
proliferam perfis de pessoas que se tornaram milionárias antes dos 30 anos.
Cases de sucesso de pessoas que alcançaram altos cargos governamentais
com pouca idade. Isso gera uma pressão interna e externa pelo sucesso
rápido, pelo crescimento pessoal e profissional. Para aqueles que não con-
seguem, há a indústria de coaching para dizer que “sim, nós podemos” e
para estabelecer o caminho da vitória, com detalhes minuciosos, exemplos
de sucesso e de como devemos proceder até o “dia tão esperado”.
A sensação é de que estamos buscando algo inalcançável e que, por-
tanto, é preciso correr mais rápido para alcançar, embora seja cada vez
mais perceptível que não se alcançou. Dito de outra forma, aceleração so-
cial leva a apressar os passos para se manter no mesmo lugar. O esforço de
hoje não significa menor trabalho amanhã, já que terá de caminhar tudo
novamente, mas num ritmo ainda mais acelerado.
Hartmut Rosa (2019, p. XXIV) relata que

pela primeira vez em 250 anos, pais já não têm esperança, de modo
amplo, de que as coisas serão melhores para seus filhos do que fo-
ram para eles. Bem ao contrário: eles esperam que as coisas não
sejam tão ruins, que as crises não se tornem tão graves, que os
padrões alcançados possam ser, até certo ponto, mantidos.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

E isso não implica na desaceleração, mas na necessidade, como dito


acima, de acelerar, inovar, para se manter no mesmo lugar.

1.2. SOCIEDADE DO DESEMPENHO E O


ESGOTAMENTO FÍSICO E MENTAL (SÍNDROME DE
BURNOUT)

O modelo social foulcaltiano de uma sociedade disciplinar, hierar-


quizada, cujo paradigma é a autoridade, resta superada pelo modelo da
sociedade de desempenho. O foco não é o cumprimento de tarefas como
no modelo da fiscalização da sociedade disciplinar. Atualmente, há o es-
tabelecimento de metas e os sujeitos são estimulados ao desempenho e à
produção.
Essa superação de paradigma pode ser observada também por outro
prisma. A sociedade disciplinar é orientada pela ideia de negatividade, por
um controle do Estado sobre a sociedade em cima do que não pode ser
feito. A sociedade do desempenho, por sua vez, é pautada pela ideia de po-
sitividade, partindo de uma desregulamentação (uma diminuição da in-
tervenção estatal) que abre espaço para a liberdade. O sujeito da sociedade
de desempenho é um empreendedor, que busca o prazer no trabalho. Di-
ferente da sociedade do controle, a do desempenho é a que estimula, mo-
tiva, e incentiva a proatividade. Sem dúvidas, a sociedade do desempenho
é mais produtiva do que a sociedade da disciplina (HAN, 2017, p. 23-25).
Isso tem relação com a crise de autoridade discutida atualmente6. A
sociedade do desempenho se desapega do passado, já que se afasta das
tradições. O que importa é crescer, inovar, acelerar, e isso não é encontra-
do no passado. Aí então a explicação para o rompimento com os valores
clássicos da família, da religião e da sociedade. Quer-se construir uma
sociedade a partir de um marco zero, baseada na tecnologia. O problema
é quando esses valores tradicionais são tirados e, num momento de crise,
a pessoa se sente só, vazia.

6 Hannah Arendt, em seu livro Entre o passado e o futuro, identifica essa crise da autoridade
e o rompimento da base fundamental e histórica que ela provoca para a sustentação social
(2016).

50
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Para Christopher Lasch (1983), o homem psicológico do século XX


nega o passado e tem dificuldade de enfrentar o futuro, acarretando a per-
da de significado do próprio presente.
Diante disso, Elaine Santos (2018, p. 98) assevera que

A crise de autoridade e a ausência de referências estáveis também


revelam efeitos no que diz respeito à constituição da subjetividade.
Segundo a teoria psicanalítica, a decadência da figura paterna e o
enfraquecimento da instituição familiar acarretam efeitos nos pro-
cessos identificatórios, na medida em que a sustentação da teoria se
baseia na efetivação desses laços afetivos e simbólicos.

No plano subjetivo, a positividade acima narrada está aliada à auto-


confiança. O foco é no resultado e isso o impulsiona. Uma vez alcançada
a meta por si estabelecida, já trata de se autoimpor outra, de modo que
não alcança estágio de repouso da alma. Com isso se percebe que, parado-
xalmente, o mesmo que o liberta, aprisiona. “O sujeito de desempenho
encontra-se em guerra consigo mesmo.” (HAN, 2017, p. 29).
A positividade frustrada leva à desilusão, à sensação de fracasso, de
incapacidade e, em altos níveis, ao esgotamento mental e físico. Esse nível
de estresse crônico, o qual leva ao esgotamento físico e mental, é conheci-
do como síndrome de burnout. “O cansaço da sociedade do desempenho é
um cansaço solitário, que atua individualizando e isolando.” (HAN, 2017,
p. 71).
O que soa paradoxal para uma sociedade hiperconectada, narcisista7
e autoconfiante? sentir-se só num mundo extremamente conectado. Sen-
tir-se impotente, mesmo demonstrando aos outros que é forte. Enfim, é
uma sociedade artificial, pois se afasta do calor humano, de encontrar no

7 Esse narcisismo chega, inclusive, à religiosidade. Cada vez mais as pessoas se desapegam
dos padrões bíblicos para ter um Cristianismo para chamar de seu. Creem no que lhes inte-
ressa, no que lhes convém. Não se submetem aos padrões preestabelecidos, porque isso é
contrário à sociedade do desempenho, baseada na individualidade e na liberdade. A Igreja
que agrada essas pessoas é a do discurso narcisista: “você é obra de Deus”, “a onde quer
que seus pés pisem abençoada será a terra”, “O melhor de Deus está por vir em sua vida”
etc. Não gostam do discurso do pecado, do Céu e do Inferno.

51
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

outro o apoio. É uma sociedade do ego, do individualismo, da vida ciber-


nética, mas distante da realidade natural.
Para Byung-Chul Han (2017, p. 99-100), “O sujeito de desempenho
concorre consigo mesmo e, sob uma coação destrutiva, se vê forçado a
superar constantemente a si próprio. Essa autocoação, que se apresenta
como liberdade, acaba sendo fatal para ele.”.
A consequência é uma sociedade cansada, doente, ansiosa, estressada,
depressiva e esgotada. De acordo com pesquisa realizada pela International
Stress Management Association (ANAMT, s.d.), 30% (trinta por cento) dos
mais de 100 (cem) milhões de trabalhadores brasileiros sofrem com a sín-
drome de burnout. Segundo a mesma pesquisa, o Brasil é o segundo país
com pessoas afetadas pelo burnout no mundo.
Enfim, a sociedade moderna que exige respostas imediatas, que cobra
e é cobrada para sempre evoluir e crescer e, como dito anteriormente,
tudo isso muitas vezes para permanecer onde está, traz as marcas em seu
próprio corpo: a ansiedade, o estresse, a frustração, a depressão e o com-
pleto esgotamento físico e mental.
Por um tempo, acreditou-se que a necessidade de aceleração da vida
seria passageira, para num futuro próximo poder usufruir dos benefícios
da vida acelerada, mas a “[…] ideia eclipsou-se integralmente do hori-
zonte da cultura, de modo a percebermos que era uma ilusão.” (ROSA,
2019, p. XXVI).

2. ACELERAÇÃO DO TEMPO NO PODER JUDICIÁRIO

Como visto nos capítulos anteriores, a sociedade contemporânea é


caracterizada pela estabilização dinâmica, estruturada na aceleração, na
busca pelo crescimento e na inovação. É uma sociedade do desempenho,
autoconfiante, narcisista, individualista, competitiva, hiperconectada, de
mãos dadas com a revolução digital; mas, ao mesmo tempo, por mais pa-
radoxal que possa parecer, é solitária, desesperançada, frustrada, cansada,
esgotada física e mentalmente (burnout).
Cabe aqui trazer essas marcas da sociedade atual e ver como elas se
relacionam com o Poder Judiciário do século XXI e quais os impactos que
causam na forma da prestação do serviço jurisdicional.

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

2.1. REDIMENSIONAMENTO DO TEMPO NO


PROCESSO JUDICIAL E O ESGOTAMENTO FÍSICO E
MENTAL DOS SERVIDORES

O tempo é uma instituição social, por isso também objeto do Direi-


to. O tempo é um fenômeno físico, basta observar o nascer do dia e da
noite. Mas o tempo também é uma experiência psíquica. A percepção do
intervalo de tempo para pessoas diferentes pode ter sentido distinto. Para
alguns ocorreu rápido, para outros, lento. (OST, 2005, p. 12).
Uma importante consequência da sociedade acelerada é o redimen-
sionamento social e psíquico do tempo. Na sociedade pretérita, o “daqui
a pouco” era suficiente, satisfazia; na sociedade atual, só o “agora” satisfaz.
Vive-se a era do “imediatismo”. “É um mundo do agora: um mundo em
tempo real, com direções de tráfego instantâneas e compras entregues di-
retamente em sua porta.” (SCHWAB, 2016, p. 60).
O sujeito de desempenho, o qual por característica é hiperativo, ace-
lerado e adepto da filosofia de que “tempo é dinheiro”, exige do outro
respostas rápidas, eficientes, com aumento de performance e de otimização.
E o que isso implica na prestação do serviço público pelo Poder Judiciário?
O processo judicial envolve o elemento tempo, é dizer, desenvolve-se em
intervalos de tempo. Para que alcance eficiência processual, os atos pro-
cessuais devem ser praticados em curtos intervalos. E quais intervalos são
esses? A legislação estabelece prazos para a prática dos atos. Cumpridos,
imagina-se que o processo teve duração razoável.
A questão que aqui se propõe a analisar é se a aceleração social re-
dimensionou a compreensão do que é a tramitação em tempo razoável,
passando, com isso, a se exigir uma maior celeridade na prática de cada
ato em si. Ou seja, se a ideia de François Ost de “imposição da urgên-
cia como temporalidade ordinária” está presente também no Judiciário
(OST, 2005, p. 32).
O cumprimento dos prazos legais é suficiente para a satisfação tem-
poral do cidadão? A resposta é negativa em boa parte das situações. É ver-
dade que a cultura da morosidade do Judiciário gera desalento no cidadão,
mas há mais “ingredientes” neste “caldeirão”. A ansiedade é um mal so-
cial. O Brasil, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS),

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

tem o maior número de pessoas ansiosas do mundo: 18,6 (dezoito vírgula


seis) milhões de brasileiros (EXAME, 2019). Essa ansiedade, somada ao
desalento referido, acrescida da facilidade no acompanhamento online da
tramitação do processo, bem como do acesso ao servidor que trabalha com
o processo através dos canais oficiais do Poder Judiciário (e-mail, telefone
e, notadamente em função da pandemia do coronavírus, Whatsapp), leva a
um verdadeiro monitoramento, pelo interessado, do andamento do feito.
Todas as vezes em que o advogado peticiona, o cidadão (ou mesmo
o próprio advogado) entra em contato pelos canais oficiais para comuni-
car, além de interceder pela movimentação célere do processo. Não movi-
mentados os autos, como requerido, nova comunicação é feita para dizer
que “desde ontem” foi peticionado e “nada até agora”. Situação seme-
lhante é quando se diz ao interessado que seu processo está concluso para
sentença e que o juiz possui 30 (trinta) dias úteis para prolatar a sentença.
Inúmeras são as situações de pessoas que choram, literalmente, ao telefone
porque a espera de tal prazo lhe custará enorme sacrifício à alma, porque a
pessoa está com crise de ansiedade, tomando remédio e se “não há o que
possa ser feito”8.
Enfim, o tempo razoável estabelecido pela legislação está dessin-
cronizado com o tempo acelerado da sociedade atual. A pessoa convive
com respostas rápidas do mercado econômico, das empresas privadas, na
sua convivência social e não espera comportamento diferente do Judi-
ciário. A constatação é que a percepção de tempo mudou na sociedade
de desempenho, o que acarreta alteração do que vem a ser uma duração
razoável do processo.
E quando se sabe que boa parte do Judiciário brasileiro não cumpre os
prazos legais para prática de atos que lhe competem? Aí a situação se com-
plica ainda mais. A espera pelo prazo significa, muitas vezes, uma agonia
da alma, potencializada quando se sabe que talvez nem será cumprido.

8 E o complicado é que as pessoas que entram em contato com o Judiciário e não ficam
satisfeitas com o atendimento pedem para falar com o chefe de secretaria ou com o juiz.
O problema é que a sociedade ansiosa, que exige respostas rápidas, acaba demandando
excessivamente por audiências, o que acaba impedindo que os servidores e os juízes produ-
zam mais rápido, já que investem parte do tempo com atendimentos.

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Para evitar que processos tidos pelo legislador como mais “sensíveis”
ficassem sem tramitação adequada, editam-se legislações com fixação de
prioridades legais. A pretensão é a de que se dê preferência a esses pro-
cessos na tramitação judicial. Na prática, não funciona. A quantidade de
processos com prioridade legal de tramitação supera a capacidade de res-
posta, implicando em descumprimento judicial e cobrança de respeito ao
comando normativo pelo jurisdicionado e seu advogado. Basta o exemplo
da prioridade de tramitação para pessoas acima de sessenta anos ou porta-
dora de doença grave. Isso significa, numa Vara Federal Previdenciária, a
quase totalidade dos processos em tramitação com o regime de prioridade.
Os processos em que se discute concessão de leitos em Unidade de
Terapia Intensiva (UTI), bem como os de medicamentos, também são
prioritários. Os processos em que há pedido de desbloqueio de bens in-
disponibilizados, ocorridos através do Sistema de Busca de Ativos do Po-
der Judiciário (SISBAJUD), do Sistema Online de Restrição de Veículos
(RENAJUD), da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB)
e do Sistema de Tramitação de Ofícios entre o Poder Judiciário e a Sera-
sa Experian (SERASAJUD)9, são tidos como prioridade, não obstante
ocorram diuturnamente nas varas judiciais.
Há ainda os processos de prioridade legal/judiciário, como mandado
de segurança, habeas corpus, habeas data, improbidade administrativa, ação
civil pública etc. Ou seja, parte considerável dos processos em tramitação
nas Varas pertence ao regime de prioridade. Trata-se de legislação sim-
bólica, de cunho mais conotativo do que denotativo, com normatividade
latente, para usar conceito dado por Marcelo Neves (2007), mas que tem
o efeito de permitir a cobrança pela sociedade, o que causa maior pressão
nos servidores e juízes.
Para além disso, há pressão advinda do CNJ para cumprimento de
metas. Há pressão dos tribunais para que as metas sejam efetivamente
cumpridas. Os juízes recebem a cobrança pelos números e repassam a co-
brança aos servidores, os quais são cobrados por si mesmos também pela
performance e pela eficiência.

9 Todos os convênios do Poder Judiciário com órgãos públicos para facilitar o intercâmbio
de comunicações.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Veja que o problema é no redimensionamento do tempo no pro-


cesso, agravado pela situação de déficit de servidores no Judiciário e do
acúmulo de processos nas Varas. O cidadão não quer saber dos proble-
mas do Judiciário, ele quer a solução do seu próprio problema e de forma
rápida. Diante da dificuldade de atender, surge a pressão, desencadeada
através de petições reiteradas nos autos; mensagens de Whatsapp, e-mails,
ligações etc. Olhe o ciclo vicioso: o processo demora pelo acúmulo de
serviço e pelo baixo quantitativo de servidores. Com a demora, cresce
o número de ligações, e-mails e mensagens, o que toma mais tempo do
servidor que, além de “perder” tempo com essas tarefas, ainda sai mental
e fisicamente cansado.
O “detalhe” é que a percepção de tempo se altera, mas a capacida-
de de resposta do Judiciário é limitada. Por mais que a tecnologia tenha
avançado bastante, ela não trouxe um aumento de tempo livre para os
servidores e juízes como se imaginava10, como parecia ser lógico. Como
diria Oliver Holmes Jr. (1991), a vida do Direito não é de lógica, mas de
experiência. Na prática, a tecnologia provocou um redimensionamento
do trabalho, exigindo maior produtividade, menor custo, maior inovação
das metodologias aplicadas e respostas cada vez mais rápidas. Saíram ta-
refas burocráticas, mas vieram atividades concentradas na “pressão” por
números, pela excelência, pela inovação e pelo menor tempo.
A sensação dos servidores é que atualmente o tempo é muito mais
escasso do que antes. Atravessa-se, ironicamente, uma crise do tempo:
como falta tempo se a tecnologia avança cada vez mais para economizar o
tempo em diversas atividades?
Neste contexto, Hartmut Rosa (2019, p. 34-35) expõe que:

Apesar de um alto volume quantitativo de ‘tempo livre’, no sentido


de recursos temporais disponíveis que não têm que ser gastos com
a execução de atividades produtivas ou reprodutivas importantes,

10 E olhe que a tecnologia retirou dos servidores bastante atividade burocrática, como pe-
gar os processos físicos no protocolo, autuar processos, tirar cópia de petições e decisões,
acompanhar publicação do diário oficial, carga de processo físico para advogados, além de
localizar processos “perdidos” na Secretaria, o que frequentemente “tomava” um tempo
considerável.

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

cientistas sociais diagnosticam a sociedade contemporânea, desde


o influente estudo de Staffan B. Linder The Harried Leisure Class,
como passando por uma ‘carência de tempo’ aguda que se manifes-
ta nos três níveis temporais. ‘A sociedade americana, no momento,
está faminta – não como os somalis ou outras culturas tradicionais,
que morrem por falta de alimento, mas faminta da suprema es-
cassez do mundo pós-moderno: de tempo’, escrevem (orientados
estritamente de forma empírica) os pesquisadores do uso do tempo
John P. Robinson e Geoffrey Godbey, e acrescentam: ‘Estar fa-
minto por tempo não resulta na morte, mas sim, como os antigos
filósofos atenienses observavam, em nunca começar a viver.

Hartmut Rosa (2019) trabalha a aceleração social num tripé: a) a ace-


leração técnica; b) a aceleração da mudança social; e c) a aceleração do
ritmo da vida. A aceleração técnica decorre da produção mais rápida de
bens, numa aceleração dos serviços. Essa aceleração técnica acarreta al-
terações na própria estrutura social, com a qual se relaciona, causando
a aceleração da transformação social. A alteração social vai impactar na
aceleração do ritmo das vidas das pessoas. Segundo Rosa (2019), esse im-
pacto é objetivo e subjetivo. Objetivamente, ele significa aceleração para a
prática das atividades cotidianas, como se alimentar (pausas menores para
as refeições, fast food, menor tempo de sono, menos tempo com a família
etc.). No campo subjetivo, o impacto é na sensação constante de falta de
tempo, uma pressão temporal e estressante obrigação de aceleração.
Isso quer dizer que pode até ser que se trabalhe com menos tarefas do
que outrora, o detalhe é como se trabalha com o que se tem. E essa forma
atual traz pressão, cobrança e aceleração; sempre um trabalhar mais rápido
e melhor para amanhã fazer o mesmo, só que com inovação. Depois de
amanhã, bater metas. No início do próximo mês, o novo ciclo se inicia, e
assim por diante. Há a crença de que não são necessários mais servidores,
basta investir em tecnologia. Daí a decisão de reposição apenas parcial do
quadro de servidores diante de aposentadorias. E isso gera mais serviço
para quem fica, ou seja, mais pressão.
Ao fim e ao cabo, diante da aceleração do ritmo de vida, da ansiedade
que assola a sociedade, do estabelecimento de metas, da exigência de ino-

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

vação, da autopressão para melhorar e produzir mais e melhor, os servi-


dores e os juízes são expostos a fatores que desencadeiam estresse crônico,
com esgotamento mental e físico. O índice de depressão, de estresse e de
doenças ocupacionais tem crescido vertiginosamente no Judiciário.
Todavia, trata-se de tema pouco enfrentado e discutido nos tribunais.
O relatório da “Justiça em Números” do CNJ é voltado unicamente para
produtividade, eficiência e economicidade, mas nada fala sobre a saúde
física e mental, sobre o preço humano para que se alcance o proclamado
“Judiciário 4.0”.
Repita-se que este trabalho não visa defender um Judiciário não digi-
tal. O que se defende é a utilização das vantagens tecnológicas e a presta-
ção de serviço jurisdicional eficiente e tempestivo, mas também a obser-
vação dos seres humanos que trabalham no Judiciário.

2.2. A RESSONÂNCIA SOCIAL COMO CONTRIBUIÇÃO


PARA SOLUÇÃO DO PROBLEMA

A primeira impressão é a de que o problema da aceleração social, da


sociedade do desempenho, da ansiedade, do redimensionamento da velo-
cidade do tempo e das doenças daí decorrentes, é um mal do atual estágio
social e nada pode ser feito contra isso.
Hartmut Rosa, após início pessimista, reformula sua teoria para de-
fender a seguinte solução para o problema: superação das experiências de
alienação e assegurar espaços de ressonância.
É que o problema da sociedade de desempenho é o individualismo,
a autoconfiança, o narcisismo, a hiperconectividade solitária. Contra esse
mal será necessário identificar o problema e perceber a alienação (relação
de reconhecimento); em seguida, estabelecer relações de ressonância, de
ter contato com “pessoas reais”, humanizar as relações e socializar a vida.
A preocupação com o outro e a empatia, são práticas de humanização
que devem nortear a conduta do cidadão e, em especial, a do advogado.
“Apenas se e, enquanto, experenciam amor, atenção e estima social po-
dem os sujeitos dar forma à autoconfiança, ao autocuidado e à autoestima,
e, além disso, conquistar uma relação estável com o mundo e consigo
mesmos.” (ROSA, 2019, p. XXXII).

58
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Por muitos anos, o bom advogado era o que brigava pelo seu cliente.
Esse verbo “brigar” vem carregado de unilateralismo, de falar sem ouvir,
de pouco se preocupar com o outro, de focar cegamente na vitória, pouco
importando o meio utilizado. Há a necessidade de evoluir o pensamento.
É preciso buscar experiências de ressonância. Ressonância, para Hartmut
Rosa (2019, p. XL),

diz respeito a um modo de relação com o mundo no qual sujeito e


mundo ‘alcançam-se’ mutuamente, de tal modo que uma relação
responsiva, que produza efeitos transformativos, pois que liquefaz
as já dadas relações do mundo, emerja. Em relações de ressonância,
os sujeitos são tocados (afetados) por um outro, o qual os refere e
lhes diz algo, ao mesmo tempo que respondem (emocional e fisica-
mente) e, com isso, experienciam-se como autoeficazes.

É necessário criar etiqueta para o contato dos advogados e partes com


o Judiciário. Devem ser evitados os contatos desnecessários. Evitar conta-
tos fora dos horários do expediente ou em dias não úteis.
É necessário entender que nem toda aceleração é síncrona. Que mui-
tas vezes não é possível atender o pleito formulado, não por má vontade,
mas por impossibilidade humana. Que a pressão gratuita é nociva ao Judi-
ciário. Praticar a alteridade, a empatia.
Isso deve ser construído de mãos dadas com a Ordem dos Advogados
do Brasil e com a sociedade em geral, não imposta pelo Judiciário. O pro-
cedimento democrático é por demais salutar e dar legitimidade à constru-
ção das soluções. Como bem disse Elaine Santos (2018, p. 103), “Talvez
este seja o momento adequado de reestabelecer velhos padrões afetivos de
relacionamento humano.”.

CONCLUSÃO

A sociedade atual caracteriza-se, conforme Hartmut Rosa, pela ve-


locidade da aceleração, própria de modelo de produção econômica ro-
botizada e hiperconectada que provoca na estrutura social aceleração no
consumo, na prestação de serviços, na comunicação entre outros.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

A aceleração na estrutura social provoca aumento no ritmo de vida,


com condutas aceleradas, como realizar refeições mais rápidas, dormir
menos e passar menos tempo com a família, para que, dentro de um ci-
clo vicioso, possa-se produzir mais, crescer mais, inovar mais e, com isso,
chegar ao sucesso profissional e pessoal.
Essa sociedade atual é também a do desempenho, na concepção de
Byung-Chul Han, marcada por individualismo, autoconfiança, positivi-
dade, competitividade e isolacionismo. A soma dos ingredientes provoca
sensação de falta de tempo. Por mais que se “corra”, mais falta o que
percorrer. A impressão é de estar numa roda de hamster. Este comporta-
mento a médio-longo prazo leva ao cansaço, ao estresse, à depressão e ao
esgotamento físico e mental. E por quê? Porque a ausência de socialização,
de bases tradicionais da família e da Igreja, além da forte concorrência
consigo para se superar, conduz ao esgotamento.
Além do esgotamento, outro fator é a ansiedade. Como se corre cada
vez mais rápido para alcançar algo que o indivíduo projeta, ele deseja che-
gar ao final o quanto antes. Só que o final nunca chega. Isso traz proble-
mas como déficit de atenção, hiperatividade e ansiedade.
Essa sociedade, ao se relacionar com o Judiciário, redimensiona
a percepção da duração razoável do processo. O que era razoável no
passado, já não o é no presente. Exigem-se respostas mais rápidas e
contatos mais diretos, o que enseja cobranças e pressões para o atendi-
mento das expectativas.
Tais expectativas, muitas vezes legisladas, embora de forma simbólica
(na concepção defendida por Marcelo Neves), são pouco prováveis de fiel
observação prática, mas servem de instrumento de cobrança perante o
Judiciário. As facilidades da virtualização dos processos aproximaram o
cidadão do Judiciário, com as vantagens daí advindas, mas também com
os problemas dessa sociedade acelerada e cansada acima descrita.
A consequência da pressão, oriunda também dos órgãos superiores
do próprio Judiciário, tem causado altos índices de estresse, que em níveis
crônicos provoca a denominada síndrome de burnout, caracterizada pelo
esgotamento mental e físico dos servidores e juízes.
Aponta-se fortemente nas lições de Hartmut Rosa a necessidade de
humanização das relações, com espaços de ressonância e freio nessa so-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

ciedade do desempenho, marcada pelo individualismo e pelo narcisismo,


para um contexto de empatia, de alteridade, de respeito, de preocupação
com o próximo. A essência da vida em sociedade é o se relacionar, são os
laços afetivos. Sem isso não há coesão social. Há, portanto, a necessidade
de superação do “eu”, do que eu acredito, do que eu quero, para se adap-
tar à convivência com alteridade.
Defende-se que é necessária uma etiqueta de contato do cidadão e dos
advogados com o Judiciário, construído democrática e multilateralmente,
para que se atenda ao interesse dos que buscam a Justiça, mas também se
proteja o servidor e o juiz.
Acredita-se na possibilidade de arrefecimento da sociedade de de-
sempenho e seus efeitos nocivos. É possível ilhas de desaceleração social.
É preciso entender que tudo tem seu tempo e é importante debater qual
o tempo razoável que o Judiciário pode e deve ter para prestar a tutela de
forma efetiva, eficiente e tempestiva.

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trabalhadores brasileiros sofrem com a síndrome de burnout.
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61
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

BRASIL é o país mais ansioso do mundo, segundo a OMS. Exame, 2019.


Disponível em: <https://exame.com/ciencia/brasil-e-o-pais-mais-
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HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução Enio Paulo Gia-


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SCHWAB, Klaus. A quarta revolução industrial. Tradução Daniel


Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.

62
CONSIDERAÇÕES REFLEXIVAS
ACERCA DA TEORIA DE JUSTIÇA
EM MARX
Edna Raquel Rodrigues Santos Hogemann11

INTRODUÇÃO

A questão da justiça entre os indivíduos e entre o Poder e os indiví-


duos têm sido matéria de muita elaboração e discussão filosófica, desde a
antiga Grécia de Aristóteles e Platão até nossos tempos de início de milê-
nio, sem que seja possível apontar um referencial de justiça que contemple
totalmente e com unanimidade os anseios e expectativas gerais.
A doutrina ética marxista, objeto de considerações no presente ensaio,
se opõe diametralmente ao pensamento liberal do capitalismo em vigor —
particularmente nos países do Ocidente, pretende uma conexão entre justi-
ça, distribuição proporcional de riquezas e realização plena das necessidades
do indivíduo. A partir desta premissa, a presente reflexão busca oferecer
algumas considerações acerca dos postulados marxistas que tratam desses
vetores sociais: justiça social, necessidades do homem e outros a estes rela-

11 Pós-doutora em Direito (UNESA), doutora e mestre em Direito (UGF). Especialista em


Bioética pela Cátedra em Bioética da UNESCO. Especialista em Direitos Humanos pela Uni-
versidade de Coimbra, Portugal. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Decana do Centro de Ciências
Jurídicas, Políticas e de Administração da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
Coordenadora do Grupo Direitos Humanos e Transformação Social (CNPq).

63
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

cionados, pelos quais “A igual prestação de trabalho cabe igual salário, isto
é, cabe igual participação no produto do trabalho” e “De cada um segundo
sua capacidade, e a cada um segundo as suas necessidades”.
Tal elaboração tem como base as visões contidas nos trabalhos de al-
guns estudiosos a respeito do assunto “marxismo e justiça social” à luz da
crítica do pensamento liberal e do positivismo jurídico, ainda que sem a
pretensão de ter por esgotado assunto assaz relevante, mormente nesses
tempos demarcados por tanta injustiça e visões mais que truncadas a res-
peito do tema.
O estudo proposto parece relevante, considerando a urgência em ver-
ticalizar um estudo acerca de teorias da justiça para além das tradicionais
discussões que evocam o anacronismo de autores, cujo pensamento mere-
ce ser resgatado, para além da visão estritamente racionalista e dogmática,
desde um ponto de vista jurídico ainda dogmático.

1. A TEORIA DA JUSTIÇA SOB UMA UTOPIA


ROMÂNTICA?

A reconstituição promovida por Marx entre as várias dimensões e


instâncias da vida social pode ser verificada na medida em que este autor
promove ou elege prioritariamente o aspecto ontológico do âmbito das
relações de produção material da vida, implicando em relações estabeleci-
das entre os indivíduos que se configuram como prevalecentes em deter-
minado grau de expansão pertinentes à mesma existência social.
Em relação ao aspecto ontológico, tem-se que Marx retoma essa ideia
de justiça em Crítica ao Programa de Gotha. De modo a reafirmar a natureza
ontológica de seu procedimento, Marx pergunta:

Que é a “repartição eqüitativa”?

Não afirmam os burgueses que a atual repartição é “eqüitativa”?


E não é esta, com efeito, a única repartição “equitativa” cabível,
sobre a base da forma autal de produção? Acaso as relações eco-
nômicas são reguladas pelos conceitos jurídicos? Pelo contrário,
não são as relações jurídicas que surgem das relações econômicas?
(MARX, 1961, p. 66).

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Na procura pelo esclarecimento dessa questão o autor coloca em evi-


dência o valor da força de trabalho. O equitativo que, nesse sentido con-
textual, em sentido modo do conceito de justiça equitativa aristotélica,
construído a partir de uma concepção segundo a qual “O equitativo é jus-
to, superior a uma espécie de justiça – não à justiça absoluta, mas ao erro
proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do
equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão de sua
universalidade.” (ARISTÓTELES, 1987, p. 17). É compreendido como
relativo a uma referida forma de existência social, demarcada por relações
específicas. Trata-se, assim, da possibilidade historicamente estruturada
de se mensurar o valor da força de trabalho aos moldes de uma mercadoria
qualquer.
Tais relações, indispensáveis desde a percepção da reprodução das
condições sociais em vigor, formam o alicerce das formações ideais que
lhes modela e fornece inteligibilidade e visibilidade. O rol das formações
ideais, nele incluídas as normativas, performa a ideologia no seu sentido
mais lato, onto-prático, como revela Lukács (2013), ou seja, elaborações
norteadoras da práxis humana em seus diversos aspectos. Consubstan-
ciam-se enquanto modos de conscientização de relações sociais especifi-
cadas e se comportam no sentido de lhes conferir inteligibilidade e revelar
uma normatividade que atenda às necessidades sociais.
A análise das relações sociais modernas, a revelação da forma mercan-
til que conduz tais relações e suas implicações na conformação da indivi-
dualidade moderna, condições que estão presentes na obra de maturidade
deste autor, confere maior conteúdo às elocubrações mais gerais no que
diz respeito à relação de alinhamento que estão presentes em seus textos,
na medida em que Marx rompe com o suporte teórico idealista.
A sociedade comunista estruturada por Karl Marx e Frederich En-
gels é embasada fundamentalmente pelo reconhecimento e pela defesa do
princípio do fim das classes sociais, ou seja, nem exploradores nem ex-
plorados. Numa tal sociedade futurista, o desenvolvimento das potencia-
lidades humanas, lato sensu, seria responsável pela eliminação de todas as
formas de opressão, inclusive a configurada pela existência de um Estado
de perfil classista, assim como do Direito, que segundo os autores, seria
um espelho deste Estado ao existir tão somente para refleti-lo e tendo

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

por objetivo maior dar-lhe legitimidade e coerência. Razão pela qual


defendem uma outra produção normativa que seja o resultado do fim da
relação entre dominadores versus dominados, Estado versus particular.
Marx e Engels defendiam ser condição mais que necessária a reunião
de condições objetivas (o desenvolvimento das forças produtivas) com as
condições subjetivas (existência de uma consciência de classe amadureci-
da dos trabalhadores oprimidos) para a implantação desse sistema deno-
minado como “comunista”, sob o qual uma sociedade ideal, sem divisão
de classes (ricos ou pobres), colocaria em prática o princípio de justiça sob
o referencial básico da necessária e completa realização do ser humano
enquanto tal.
Em breve síntese, a abordagem de Marx sobre o princípio da justi-
ça leva em conta ou repousa na possibilidade de novas formas de equilí-
brio social, sem marginalizados nem privilegiados. Nesse sentido, o autor
destaca reiteradamente a precedência das condições objetivas como pos-
sibilidade (mas, esclareça-se, não como única condição suficiente) para
que possa vir a ser promovida uma mudança de horizonte a qual venha a
possibilitar a emergência de uma nova concepção de justiça, totalmente
apartada de uma medida que seja única; aspecto que se revela inconcebível
num cenário demarcado por uma sociabilidade dos equivalentes, como é
o caso da sociabilidade burguesa, a saber:

Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desa-


parecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão
do trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e
o trabalho manual; quando o trabalho não for somente um meio
de vida, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desen-
volvimento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem
também as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais
da riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar totalmente o
estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscre-
ver em suas bandeiras: “De cada qual segundo sua capacidade, a
cada qual segundo suas necessidades.” (MARX, 1961, p. 216-17).

A ideia de justiça que se vislumbra no pensamento marxista está apar-


tado do referencial de mensuração do equivalente, na medida em que se

66
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

coloca no sentido da superação histórico-social deste referencial. Essa pos-


sibilidade é prevista em seus escritos, tendo como pressuposto inicial um
entendimento que aponta para a existência de contradições do modo de
produção capitalista, as quais se revelam em relação ao suporte do valor
sobre o tempo de trabalho e a permanente redução desse tempo necessá-
rio em decorrência do desenvolvimento das forças produtivas. Esse estado
de coisas findaria por tornar inócuas as premissas objetivas sobre as quais
formam construídas as noções jurídicas modernas.
Sob outro vértice, a construção marxista expressa uma universalidade
a qual, por suposto, não consegue abarcar as situações específicas nas quais
os atos de justiça objetivar-se-ão. Importa afirmar que, em sua universali-
dade, a formulação construída por Marx deve ser considerada como uma
expressão genérica de uma outra possibilidade social.
Além do que, é também necessário considerar que o autor observa
com ênfase a estreiteza de se conceber um único critério de avaliação, o
que equivaleria a mensurar as individualidades tendo por referencial um
único parâmetro norteador.
Quanto a esse aspecto, se revela bastante oportuno traçar uma com-
paração entre a posição assumida por Marx e a do filósofo Nietzsche a
respeito da justiça. Em Humano, demasiado humano, pode-se indicar:

A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximada-


mente o mesmo poder, como Tucídides (no terrível diálogo entre
os enviados atenienses e mélios) corretamente percebeu: quando
não existe preponderância claramente reconhecível, e um com-
bate resultaria em prejuízo inconsequente para os dois lados, sur-
ge a ideia de se entender e de negociar as pretensões de cada lado:
a troca é o caráter inicial da justiça. Cada um satisfaz o outro,
ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro
o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua
vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e inter-
câmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual.
(NIETZSCHE, 2005).

A noção aqui exposta por Nietzsche corresponde à concepção mo-


derna de justiça. Essa justiça, como o autor reconhece, está lastreada por

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

uma situação social de isonomia, em que não teria vez, a título exemplar,
uma ideia de hierarquia em termos de justiça que contivesse privilégios
estamentais. Oportuno ponderar que esse autor promove a ligação entre a
noção de troca e a de justiça.
No entanto, a conclusão alcançada por Nietzsche a partir de suas
considerações revela-se muito distinta da de Marx. A sua genealogia se
propõe não somente à promoção de uma denúncia do esquecimento da
gênese das ações justas, que por isso levam a crer se originárias de uma
razão pura, sem apresentar qualquer traço de contaminação com o mundo
real. É o que se deduz de trechos como: “Quão pouco moral pareceria o
mundo sem o esquecimento! Um poeta poderia dizer que Deus instalou
o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade huma-
na.” (NIETZSCHE, 2005, p. 66).

2. OS DISTINTOS CRITÉRIOS DE JUSTIÇA EM MARX

Cumpre apontar que é necessário, ao considerar os elementos princi-


piológicos expostos por Marx, como considerar o que se deve igualar em
termos de justiça para a superação das desigualdades. Nesse sentido, Sen
(2010) considera que toda concepção de justiça enaltece a igualdade num
espaço específico, divergindo no que se refere ao objeto de valor que deve
vir a ser igualado. Desse modo, sendo os indivíduos únicos e irrepetíveis,
tão distintos nos mais variados aspectos — sejam eles socioeconômicos,
biológicos, nas potencialidades, nos planos de vida entre outros — o que
requer ser igualado para que haja justiça?
Buscando responder essa questão tem-se que, segundo o pensamen-
to de Ralws (2000), são os bens primários que devem ser igualados; en-
quanto que na concepção de Nozick (2011), continuador do liberalismo
clássico, defensor de uma sociedade fundada num individualismo ético,
metodológico e de um Estado de feição mínima, restrito às funções que
lhe forem essenciais, esse objeto seriam as liberdades; já Dworkin (2005)
defende que são os recursos; e para o próprio Sen (2010) e Nussbaum
(2007), seriam as capacitações ou capacidades, revelando-se, desse modo,
um cenário contemporâneo de pluralidade de concepções de justiça, to-
das, no entanto, de caráter distributivo numa acepção aristotélica.

68
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Vale apontar que Nozick (2011, p. 206) propõe uma palavra de ordem
baseada num raciocínio com bastante similaridade ao equivalente marxis-
ta (embora em sentido contrário), tal qual: “De cada um, conforme es-
colherem; para cada um, conforme forem escolhidos.”. Isso porque, para
este autor, em sentido oposto à construção marxiana a concepção do que
é justo decorre objetivamente do respeito ao direito natural do sujeito de
decidir livremente o que fazer com os bens que lhe são pertencentes, da
forma que bem entender, sem ser obrigado a se sujeitar a qualquer espécie
de interferência alheia à sua vontade.
Por outro lado, impende conferir o destaque à elaboração da teoria da
justiça de Rawls, desde sua concepção contratualista, discorrendo sobre o
primeiro estágio do procedimento, ao qual se denomina posição original,
bem como sobre a condição precípua de que as pessoas na posição original
estejam sob um véu de ignorância (total ausência de consciência estratégi-
ca sobre o resultado das decisões que serão tomadas); até a concepção dos
princípios de justiça que resultarão ao final deste procedimento de decisão
coletiva na sociedade, evidenciando a importância do princípio da liber-
dade máxima, ligado às liberdades fundamentais das pessoas e à liberdade
de consciência e de pensamento.
A posição de Rawls sobre bens públicos, sistema de mercado, es-
trutura básica ideal da sociedade e benefícios econômicos entre gerações
opor-se-ão às posições neoliberais de Hayek e Nozick, ambos alinhados
a uma concepção liberal mais ortodoxa, centrada no individualismo e no
predomínio das regras determinadas pelo próprio mercado.
Sobre as posições de Rawls a respeito da justiça, eis as considerações
promanadas do jurista Wojciech Sadurski (1983) quando ilustra a ideia da
razão pública na discussão a respeito das concepções de justiça:

Na teoria de Rawls, a RP está intimamente ligada ao princípio


liberal de legitimidade que postula que somente aquelas leis que
são baseadas em argumentos e razões a que nenhum dos membros
da sociedade tem uma razão racional para se opor podem gabar-se
legitimidade política e, como tais, podem ser aplicadas coerciva-
mente mesmo àqueles que em realidade discordam delas. Outra
maneira de expressar o mesmo pensamento é o teste de “reconhe-
cimento intersubjetivo” que pode ser encontrado na sugestão de

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Jürgen Habermas sobre como interesses individuais podem apare-


cer nas deliberações públicas: “Em discursos práticos apenas con-
tam para o resultado aqueles interesses que são apresentados como
valores intersubjetivamente reconhecidos e, portanto, são candi-
datos para a inclusão no conteúdo semântico de normas válidas”.
Habermas conclui: “Somente orientações de valor generalizáveis,
que todos os participantes (e todos aqueles

afetados) podem aceitar com boas razões como apropriadas para re-
gular o assunto em questão [...] passam este limiar”. Talvez a melhor
articulação da RP (muito alinhada com a ideia de Rawls) foi dada
por Charles Larmore, que afirmou o postulado fundamental do libe-
ralismo político dizendo que “princípios políticos básicos deveriam
ser adequadamente aceitáveis para aqueles a quem deve vincular”.

O professor Ubiratan Macedo aponta que Marx apresentou dois cri-


térios distintos de justiça. O primeiro deles, de viés econômico, teria lugar
durante o processo socialista de transição rumo à sociedade ideal-comunis-
ta. Por este critério, o qual tem por base a distribuição da riqueza entre os
homens de uma determinada sociedade, todos ganhariam de acordo com
a prestação de trabalho realizada por cada indivíduo no seio da sociedade.
A este respeito, Kelsen (2001) pondera que, em verdade, não estaria
aí configurado um tratamento equânime entre os indivíduos, em função
das diferenças individuais que se consubstanciariam como um óbice à
igualdade e um limitador às pretensões de desenvolvimento no que diz
respeito à capacidade de trabalho daqueles os quais, por natureza, sejam
mais frágeis.
De tal forma, a legítima igualdade só poderia ser realizada na econo-
mia da sociedade em que estivesse consolidado o comunismo, onde cada
um segundo a sua capacidade a cada um conforme seja a sua necessidade.

3. JUSTIÇA COMO DIREITO À SATISFAÇÃO DE


NECESSIDADES

Em seu artigo crítico sobre a Teoria da Justiça de Marx, Sadurski


(1983, p. 51) transcreve a seguinte citação, no sentido de que

70
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

cada um deve, segundo as suas capacidades, ficadas de conformi-


dade com o ordenamento social, realizar o trabalho que é posto a
seu cargo pelo mesmo ordenamento social; e a cada um devem ser
satisfeitas as necessidades, pelo ordenamento social reconhecidas,
pela ordem no mesmo ordenamento estabelecida e com os meios
determinados também por esse ordenamento.

Sadurski (1983) afirma que a grande maioria dos críticos se atém à


fórmula de justiça social de Marx para cada um de acordo com suas ne-
cessidades. Alegam que as necessidades, além da esfera da maioria das ne-
cessidades básicas, são indefiníveis e vagas, então, é tanto utopia e, até
certa medida, impossível alocar bens para cada um de acordo com suas
necessidades plenas. No entanto, em sua opinião, há outros motivos mais
sérios para rejeitar a fórmula de justiça do Marxismo do que o seu alegado
caráter utópico.
Centra sua crítica além do caráter utópico da sociedade preconizada
por Marx, e levanta um questionamento sobre o fato de que tanto Marx
e, em particular Engels, explanaram que a sociedade comunista possibi-
litará a satisfação de todas as necessidades razoáveis. Tal questionamento
envolve o critério de como seria possível determinar o que seriam as reais
necessidades dos indivíduos, por quem seria determinado tal critério e de
que forma se daria tal determinação, de forma a apontar para o perigo de
se cair num processo de paternalismo e autoritarismo em função de os
indivíduos ainda não terem alcançado o patamar descrito por Marx como
desenvolvimento da personalidade na sociedade comunista.
Para Marx, a sociedade comunista possibilitaria ao homem libertar-se
de vez do perfil que lhe é determinado pelo capitalismo, qual seja, o egoís-
mo, o individualismo assoberbado e a alienação, i.e., transformando-os
em verdadeiros anjos. Destarte, afirma Sadurski (1983, p. 53) que “Uma
teoria de justiça social que pressuponha uma sociedade povoada de anjos é
não somente perigosa nesse sentido sublinhado; é também desnecessária.
Justiça social consiste essencialmente na solução das pretensões conflitan-
tes dos bens em situação de escassez.”.
Como exemplo do perigo dos ideais de justiça marxistas aplicados a
uma sociedade sem os predicados necessários à exequibilidade do comu-

71
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

nismo, o autor apresenta uma série de postulações do Partido dos Traba-


lhadores Unificados Polonês, as quais, em síntese, configuram um amon-
toado de considerações de caráter profundamente burocrático, nas quais o
Partido posiciona-se como verdadeiro “dono da verdade”, dos corações e
das mentes dos indivíduos.
O princípio da distribuição para cada um de acordo com todas as suas
razoáveis necessidades, muito embora pareça muito humanístico, quando
aplicado na realidade objetiva de países sem um desenvolvimento pleno,
seja econômico tecnológico ou social, finda por ter que assumir um tipo
de contorno filosófico e político sobre necessidades dos indivíduos que
inevitavelmente envereda para consequências paternalistas e autoritárias,
as quais acabam por invadir a seara das diferenças individuais de forma
burocrática e antidemocrática. O cerceamento da liberdade do indivíduo
no sentido lato do fazer suas próprias escolhas foi, em última análise, um
dos motivos preponderantes, aliado ao tremendo atraso econômico, que
levaram ao desmoronamento do dito “socialismo real” pretensamente ba-
seado na filosofia marxista.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito do fracasso da fórmula marxista aplicada à realidade dos


países que adotaram o regime do socialismo real, é incontestável, tal como
o aponta Kelsen (2006), que o postulado marxista segundo o qual “a cada
um segundo suas necessidades”, enquadrado mediante certos marcos de-
limitadores, tenha sido assumido como parte da política social dos Estados
modernos.
Ao caminhar para a finalização desse breve ensaio, cumpre subli-
nhar que, para que a sociedade continue a promover transformações
em sua permanente busca pela justiça adequada, necessário se faz des-
cobrir qual deva ser, no sentido mais aristotélico do termo, a justa me-
dida pela qual deverá cadenciar seus agires na seara tanto econômica,
quanto normativa e cultural, de tal sorte que o nível de condições ob-
jetivas e subjetivas coletivas permitam ao ser humano, independente-
mente de qualquer parâmetro a ser determinado, usufruir de condições
de liberdade e justiça ideais.

72
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

A necessidade da existência ou não do Estado burguês está relacio-


nada de maneira inversamente proporcional à necessidade do ser huma-
no em ser levado coercitivamente a assumir comportamentos da maneira
justa que tenha sido estipulada pelo coletivo. Logo, quanto maior a noção
de eticidade e moralidade, menor a necessidade da imposição estatal ou
mesmo de sua existência. Seguindo nesse raciocínio é possível considerar
que, a existência do ente estatal está estruturalmente relacionada a uma
sociedade equilibrada sob o signo da introjeção responsável de valores que
contemplam a igualdade muito mais material do que formal entre os indi-
víduos, sob o signo da justiça social.
Noutro olhar, vale retornar a uma reflexão a fim de considerar que
a formulação de Marx, como apresentado ao longo do presente estudo,
aponta para uma universalidade a qual, por suposto, não se coaduna com
as situações específicas nas quais os atos de justiça objetivar-se-ão. Razão
pela qual a sua aplicação dependerá de uma casuística, ou seja, das especi-
ficidades de cada caso per si.
De outro modo, o que se percebe da experiência histórica acerca do
socialismo real e seus parâmetros de justiça, é que não se pode falar em
justiça social onde inexiste democracia e os instrumentos institucionais
necessários à sua garantia, sob pena de imperar o arbítrio que, mais cedo
ou mais tarde, sucumbe diante da insatisfação social que provoca.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1987.

DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: A teoria e a prática da igual-


dade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KELSEN, Hans. O que é justiça? A justiça, o direito e a política no


espelho da ciência. 3. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. ed. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2006.

KELSEN, Hans. O problema da justiça. 5. ed. São Paulo: Martins


Fontes, 2011.

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LUKÁCS, Georg. Para uma ontologia do ser social. Rio de Janeiro:


Boitempo, 2013.

MACEDO, Ubiratan Borges. Liberalismo e Justiça Social. São Paulo:


Ibrasa, 1995.

MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. In: MARX, Karl; EN-


GELS, Friedrich. Obras escolhidas. v. 2. Rio de Janeiro: Editorial
Vitória, 1961.

NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.

NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Tradução Fernando


Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

NUSSBAUM, Martha. Frontiers of justice: Disability. Nationality.


Species membership. Cambridge: Harvard University Press, 2007.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes,


2000.

SADURSKI, Wojciech. For Each according to his (genuine?) needs. Po-


litical Theory, v. 2, n 3, ago. 1983. Disponível em: https://journals.
sagepub.com/doi/abs/10.1177/0090591783011003006. Acesso em
30 mar. 2022.

SEN, Amartia. A ideia de justiça. Coimbra: Almedina, 2010.

74
DÉFICIT DEMOCRÁTICO EUROPEU
PELO VIÉS SOCIOLÓGICO
Yago Teodoro Aiub Calixto12

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como pilastra basilar o estudo do déficit


democrático europeu pelo olhar da sociologia, na medida que se possa
traduzir quais as causas do déficit democrático são mais impactantes para
os eleitores europeus. Insta salientar que trata-se de causas meramente
enumerativas, sem a pretensão de taxar todas as nuances causadoras desse
fenômeno sócio-democrático.
Dessa forma, é de bom grado que antes de se adentrar no tema, se
faça dois estudos propedêuticos: se realmente existe déficit democrático
e o que seria o viés sociológico. Trata-se de honestidade intelectual, e até
mesmo uma forma de lógica, do (a) leitor (a) entender como o raciocínio
foi desenvolvido.
Após esclarecidos os conceitos inatos, o tema da pesquisa será discuti-
do, trazendo à baila os principais fatores para a alta abstenção democrática
europeia e como a estrutura institucional coloca a capacidade legiferante
fora da expectativa, retirando a força do Parlamento Europeu, o que im-
plica em uma perda de legitimidade insustentável.

12 Graduado em Direito e Comércio Exterior, pós graduado em Finanças, Negócios, Contro-


ladoria e Marketing, especialista em direito tributário. Mestre e Doutorando em Direito pela
UNESP FCHS. Advogado militante.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Para ordem de finalização do trabalho, será analisado se as políticas


econômicas têm tido maior peso para a União Europeia quando com-
paradas as políticas sociais, o que pode fomentar o déficit democrático, e
de forma a ilustrar a discussão apresentada serão dados como exemplos os
institutos sul americanos do Mercosul e da Unasul.
Por fim, será feita uma breve consideração de como a União Europeia trata
seus membros de forma diferentes, causando distanciamentos das populações
mais vulneráveis, seja econômica ou socialmente. De forma sintética, trata-se
da máxima “dois pesos e duas medidas”, o que demosntra parcialidade nas de-
cisões, o que diverge do conceito de democracia, afinal não se cabe tratamento
discricionário perante os membros, que na teoria, são todos iguais.

1. EXISTE DÉFICIT DEMOCRÁTICO?

É mister que antes de qualquer análise profunda de evento social de-


mocrático, seja feita a verificação da real ocorrência e o impacto sofrido
pela sociedade. Assim, a indagação originária do presente trabalho deve
ser se, realmente, existe um déficit democrático em terras europeias.
Ainda, em caráter propedêutico, buscar-se-á a definição de déficit
democrático. O conceito pode ser claramente definido como o fenômeno
social em que a população deixa de exercer a atividade cidadã eleitoral,
criando uma lacuna entre as decisões estatais e os governados. Atividade
essa que não se limita ao momento do sufrágio, mas nos atos diários de
fiscalização e cobrança dos representantes eleitos.
Nas palavras de André Barbieri Souza, ao refletir sobre o déficit de-
mocrático na União Europeia:

O déficit democrático é evidente quando não se possibilita ao ci-


dadão refletir sobre determinada questão, independentemente do
grau de relevância dessa, o que agrava ainda mais o atual quadro,
uma vez que muitos dos debates travados no Conselho da União
Européia são de interesses profundos dos Estados-membros.

A população além de não ter a chance de debater a proposta em tela,


recebe e tem que cumprir os resultados, assim como as conseqüên-
cias advindas daquela, quer sejam positivas ou negativas. A ausência

76
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

da participação popular produz um ambiente e um sentimento de


descrença, insatisfação e pouco – quando não a ausência – de com-
prometimento para a implementação e o cumprimento das decisões
emanadas pelo Conselho da UE. O vazio existente entre a possibi-
lidade de uma situação materializar-se até a efetiva decisão prejudica
todo o processo de integração comunitária. (SOUZA, 2007)

Assim ao analisar as altas taxas de abstenção bem como a alta insatis-


fação com os eurodeputados pode-se cravar que há um real e crescente
déficit democrático no Velho Continente. Em termos palpáveis, na última
euroeleição, em 2019, quase 50% dos eleitores se absteram das urnas, de
acordo com o eurobarômetro. Chega a ser paradoxal que um direito con-
seguido através da praxis seja renegado em tão grande escala.
O surgimento do atual déficit democrático é composto por diversas
pilastras, das quais podem ser destacadas a transferência de poder legife-
rante a um ente supra estatal (contudo não ao órgão legislativo esperado,
o Europarlemento, mas ao Conselho da União Europeia), no qual as po-
líticas econômicas integracionistas são predominantes frente as politicas
sociais locais e o distanciamento entre o eleitor e seus eleitos, na medida
em que os eurodeputados governam para seus Estados (afinal é o poder
executivo nacional que indica os componentes do Conselho), e não para
seu povo, o que na prática é muito diferente.
O fato de um bloco econômico trabalhar a integração como uma for-
ma de uniformizar as nações traz um grande risco, que é a desconsidera-
ção das características individuais de cada Estado-Membro, surgindo o
confronto entre o nacionalismo e a integração, que só pode ser resolvido
com o surgimento da supranacionalidade.
De forma convergente, características sociais construídas desde civili-
zações originárias da região são desprezadas em prol de um mercado unifor-
me e consoante. A própria legislação interna pode contrastar com as normas
continentais. Tanto é que o próximo estágio de integração europeu seria a
unificação legislativa. Estágio esse que não aparenta ser alcançado nos pró-
ximo anos, afinal quando o projeto de uma Constituição Europeia foi apre-
sentado aos cidadãos (Tratado de Lisboa -2007), houve respostas negativas
de algumas populações sobre a harmonização constitucional.

77
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Um fator de extrema importância é a legitimidade que os cidadãos


vêm descreditando do Parlamento Europeu, afinal não há atuações signi-
ficativas como as do Conselho, e nnão há caso de processo integracionista,
que subsista sem o lastro populacional. Frise-se que se trata de legitimida-
de e não de legalidade.
Seguindo a linha de pensamento, termina-se esse tópico com a valiosa
lição do Prof. Dr. Daniel Campos de Carvalho:

Independentemente da verticalidade ou horizontalidade dos proble-


mas de legitimidade democrática da União Europeia, é possível con-
cluir que a particular construção do processo de integração regional
pela cumulação de estratos normativos levou a uma situação de au-
sência de clareza e certeza, ameaçando inclusive a função precípua do
fenômeno jurídico que é a de estabilizar as expectativas recíprocas dos
indivíduos de modo a garantir a paz social. (CARVALHO, 2012).

Assim, fica expurgada qualquer dúvida sobre a existência ou impactos


práticos do crescente déficit democrático europeu.

2. O QUE É VIÉS SÓCIOLÓGICO?

Em caráter epistemológico, a sociologia é o estudo da sociedade hu-


mana e suas relações, dentro de seus grupos ou comunidades, objetivando
a reflexão dos fenômenos sociais.

A sociologia constitui em certa medida uma resposta intelectual


às novas situações colocadas pela revolução industrial. Boa parte
de seus temas de análise e de reflexão foi retirada das novas si-
tuações, como, por exemplo, a situação da classe trabalhadora, o
surgimento da cidade industrial, as transformações tecnológicas,
a organização do trabalho na fábrica etc. É a formação de uma
estrutura social muito específica - a sociedade capitalista - que
impulsiona uma reflexão sobre a sociedade, sobre suas transfor-
mações, suas crises, seus antagonismos de classe. Não é por mero
acaso que a sociologia, enquanto instrumento de análise, inexis-
tia nas relativamente estáveis sociedades pré-capitalistas, uma vez

78
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

que o ritmo e o nível das mudanças que aí se verificavam não


chegavam a colocar a sociedade como “um problema” a ser in-
vestigado. (MARTINS, 1994).

Dessa forma, o viés ideológico é a interpretação dos fatos sob o olhar


das relações sociais daquele grupo, no caso a União Europeia, ou seja, é a
interpretação do déficit democrático europeu pela visão de sua sociedade.
Tal interpretação é de extrema valia quando se coloca o status social
antes de outras ciências, como a jurídica ou a econômica, por exemplo, vis-
to que o direito deve tutelar a sociedade e não o contrário. O que se vê nas
sociedades neoliberais é uma inversão desse mandamento, nos quais os di-
reitos mínimos são sacrificados em prol de uma racionalização da produção.
Ademais, ao analisar pelos olhos dos cidadãos, sem se prender as nor-
mativas estatais, as ânsias e receios são externalizados, fornecendo um fa-
rol para a solução, ou pelo menos tentativa, dos problemas democráticos-
-sociais. Trata-se da representação na sua forma mais gutural, aquela feita
na Ágora e defendida por Rousseau.
A Sociologia só é reconhecida como ciência entre os séculos XIX e
XX, porém é uma inata a sociedade, sendo tão antiga quanto a própria
sociedade. Inata pois desde os primórdios, quando os seres humanos se
agremiavam em pequenas tribos a sociologia já estava presente. O mesmo
raciocínio vale para o déficit democrático, que é tão antigo quanto a pró-
pria democracia.
Ora, o que eram as observações entre tribos? A verificação dos cos-
tumes de um inimigo? A replicação dos costumes aceitos pelos membros?
Sociologia!

3. A ANÁLISE DO DÉFICIT DEMOCRÁTICO EUROPEU
PELA SOCIOLOGIA

Para que se entenda o déficit democrático europeu pelo viés socioló-


gico é necessário que se entenda as populações em suas particularidades.
Nas eleições de 2014, Portugal, por exemplo, teve baixíssima presença dos
eleitores nas urnas, de forma que menos de 35% dos eleitores exerceram
seu papel democrático. Fato que se repetiu em 2019, quando aproximada-
mente 50% dos euroeleitores compareceram às urnas.
79
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

A Eslováquia foi recordista em abstenções, na medida que apenas


13% dos eleitores compareceram as urnas. Em números gerais, a taxa de
participação foi de pouco mais de assustadores 43%.
Se no final do século XVIII os europeus lutavam pela primeira gera-
ção de direito humanos, abrangendo direitos civis e políticos, em pleno
século XXI a luta é para que esses cidadãos exerçam seu direito de sufrá-
gio, obtido com muita luta.
Normalmente, há situação de descrédito e desinteresse quando o po-
der central é subvalorizado pelo povo, o que acontece, em geral, quando
existe restrições das liberdades individuais, o que não é o caso da União
Europeia, que desde sua constituição tem uma visão integracionista libe-
ral, contudo ostenta um parlamento sem competência prática legislativa.
Um problema identificado é a continua perda do pensamento demo-
crático da população. Os eleitores devem se sentir protegidos pelos elei-
tos, porém quanto mais integrado é o bloco, mas genérica tem que ser sua
orientação, visto que a particularidade de cada nação perde espaço frente a
uniformização. Com a distância inerente da população para a União Euro-
peia, perde-se o orgulho democrático e a participação ativa do corpo social.

Uma vez que a democracia é hoje, sobretudo, um sistema de con-


trole do poder, quanto mais eficaz for esse controle muito mais
poderão ser atuados os princípios democráticos essenciais, comuns
à democracia grega e moderna. Em Atenas, o cidadão poderia su-
pervisionar pessoalmente aqueles que gozam de prerrogativas. Po-
deria diretamente extrair as informações necessárias para avaliar o
desempenho dos magistrados (por contato direto nos locais e com
as pessoas) e podiam participar diretamente das decisões a qual
considerava se ummagistrado tinha sido corretamente o seu papel.
Dada a dimensão espacial e a população da pólis, o indivíduo se
localizava junto do poder quando não o exercia. Ao contrário, o
cidadão moderno não pode comparecer em pessoa paranas ativida-
des públicas nem sequer é capaz de apreender diretamente os fatos
que lhes permite avaliar o desempenho de todos aqueles que gerem
poder político ou econômico que seja. (MIGLINO, 2016, p.131)

Assim a ausência de suas características peculiares nas propostas


da corte europeia, faz com que algumas populações se distanciem do

80
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

processo democrático, visto não se sentirem dentro do próprio sistema.


Nesse ponto, fica claro que a generalização é um faot negativo que é
inerente a qualquer agremiação, e apenas a participação política ativa
poderia sufocar os problemas democráticos, contudo a reflexão de que o
poder legiferante está como Conselho e não com o Parlamento, faz com
que isso se torne improvável.
É de bom grado ressaltar que o sistema representativo deve, sempre
que possível, invocar a participação popular, pois quanto mais distante a
população se sente do processo de elaboração das diretrizes públicas, mais
a crise democrática se agrava.
Contudo o maior problema reside na estrutura legislativa-organiza-
cional da União Europeia, como dito alhures. O Parlamento Europeu
eleito tem pouco força, sendo que muitas vezes sua capacidade é restrita
a elaboração de pareceres, enquanto as decisões significantes são toma-
das pelo Conselho, que é indicada pelos Estados (um exemplo de repre-
sentação lockeana)
Nas palavras de Pedro Henrique F. Lustosa da Costa:

Esse pouco espaço que a participação popular tem nas definições


dos caminhos da UE gera o déficit democrático. O déficit acontece
porque as pessoas veem que não é efetivo ir votar em representantes
para o Parlamento, pois essa instituição tem pouca força na hora de
definir o destino da união e as decisões importantes acabam sendo
tomadas pelas instituições que não foram eleitas pelo povo indepen-
dente do posicionamento do Parlamento. Uma evidência do cres-
cimento desses desinteresse é o de que os europeus votam menos
para as eleições da UE do que votam nas eleições nacionais. Dessa
forma, as pessoas se distanciam da união e entendem que as decisões
tomadas pela UE não são as que elas tomariam se fossem realmente
representadas. Dessa forma, o Direito produzido pela UE tem falta
de legitimidade por ter falta de democracia. (COSTA, 2018).

Veja-se que a estrutura legiferante da União Europeia é paradoxal:


trata-se de processo democrático, porém os representantes direitos do
povo não definem as políticas, mas sim aqueles nomeados pelo Estado.

81
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Tal falta de legitimidade é um entrave intransponível para a evolução


integracionista, visto que a transferência gradual de soberania dos Estados
para o bloco, conforme teoria neofuncionalista, perde sua força motriz.
Dessa forma é possível dar um viés sociológico ao déficit democráti-
co: o eleitor europeu entende que o Parlamento não tem poder de tomar
decisões cruciais; a falta de força parlamentar cria um estigma de que o
voto é indiferente; as instituições, indicadas pelos Estados (Conselho e
Comissão Europeus), ao tomarem as decisões transmitem a mensagem de
que a vontade do povo não é diretamente representada; a União Europeia
perde legitimidade e sua base social se torna frágil, trazendo a tona o ques-
tionamento dos malefícios do sistema de integração.

4. PREVALÊNCIA DE POLÍTICAS ECONÔMICAS FRENTE


AS SOCIAIS

Quando se há qualquer processo de integração, as políticas econô-


micas não devem ser privilegiadas em face das demais, contudo é o que
ocorre, muitas vezes, na União Europeia. Os Estados se mostram muito
mais preocupados em sua saúde financeira do que na legitimidade que
seus cidadãos lhes atribuem. Fato esse exatamente representado pela pos-
tura europeia frente a crise econômica grega de 2004.

Essa nova concepção do desenvolvimento econômica, com face


social, se afasta do modelo tradicional de nacional-desenvolvimen-
tismo do século XX, sobretudo porque entende o desenvolvimen-
to como um processo de mudança social profundo e não só como
modernização da matriz produtiva. Neste esquema, as políticas
sociais são entendidas como ferramentas primordiais para atingir
essa mudança desejada. É neste sentido que alguns autores come-
çarão a falar de políticas sociais ou até de um Estado de Bem-Estar
Neodesenvolvimentistas (RIESCO, 2009; DRAIBE e RIESCO,
2007; RODRIGUEZ e MADEIRA, 2013).

Em termos de União Europeia, por ser o bloco econômico mais de-


senvolvido em termos de integração, muitas vezes é difícil trata-se de polí-
ticas sociais em detrimento de políticas econômicas, mas a realidade é que
o euro tem mais valor que o cidadão.

82
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Para fins ilustrativos, compare Mercosul e Unasul (já extinta): ambos


são processos integracionistas no cone sul da América, porém o Mercosul
tem um viés majoritário econômico quanto a Unasul preza pelo desen-
volvimento social democrático dos povos. Ocorre que o Mercosul, criado
no início da década de 90, se perpetua até os dias de hoje, com constante
atenção dos Estados, enquanto a Unasul, criada em 2008, não produziu
nenhum avanço significativo, inclusive sua existência (já houve a extinção
prática) é ameaçada pelo recém-criado Prosul, que ensaia seus primeiros
movimentos. A falta de uma integração social demonstrou uma fragilida-
de no combate da COVID-19, por exemplo.
A cientista política Juliana Bighetti Almeida crava ao dizer que:

O diagnóstico sobre o atual momento é a prevalência a integração


econômica pela política e o direcionamento excessivo do bloco
às questões econômicas. Desde o início a UE foi formulada para
atender objetivos econômicos, com o mercado comum de bens, e
ao longo das décadas os Tratados firmados tinham na sua essência
um conteúdo voltado apenas a tratar da livre circulação de bens.
Dessa forma, o resultado que vemos hoje é consequência da ne-
gligência em pensar juntamente política e economia em condições
transnacionais. (ALMEIDA, 2017).

Ainda, agravando a crise, as políticas econômicas geralmente são vol-


tadas para a arrecadação estatal, sendo que o mercado interno é rebaixado
ao segundo plano, ou há privilégios, fazendo que a integração se torne
mais uma oportunidade comercial do que um desenvolvimento mutualis-
tico democrácito. Caso emblemático foi a Política Agrícola Comum, que
beficiou os produtores franceses em face aos demais, na década de 1960 e
anos seguintes.
Nessa linha, o desenvolvimento integracionista acaba por ser tolhido
frente a necessidade assistencialista causada pelas más decisões.

5. CADA PAÍS COM SEU PESO

É claro que a União Europeia trata cada um de seus membros de for-


ma particular, e tal discriminação pode ser vista quando comparada a crise
econômica grega e a recente discussão do Brexit.

83
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

É obvio que são situações diferentes com questões diferentes, mas a


União Europeia não titubeou em propor a exclusão da Grécia da Zona do
Euro, em 2004, sob o argumento de que o país afundaria os índices euro-
peus, enquanto o recente Brexit conseguiu atrair todos os holofotes euro-
peus. No caso grego, haveria a exclusão de um membro efetivo, enquanto
no caso reino unidense, houve uma verdadeira omissão da União Europeia
em punir a saída de um importante mercado. Ora, não defende-se que de-
veria haver represálias contra o Reino Unido, mas medidas que endureces-
sem a saída, como forma de demonstrar a força integracional do bloco.
A importância dada de forma diferente aos seus membros causa re-
pulsa entre as populações da União Europeia, já que seu país pode não
ser importante como o outro, na visão do bloco econômico. Será que as
Nações Balcânicas poderiam contrapor a Alemanha (principal economia
europeia) na elaboração política de normas exportadoras, por exemplo.
No caso da Grécia, uma das primeiras medidas propostas foi a ex-
clusão do pais da zona do euro para minimizar o impacto econômico em
outros países, mas tal medida destruiria efetivamente a frágil economia
grega. Ao longo dos anos, ficou claro que a organização não ajudou subs-
tancialmente a Grécia, omitindo-se em ser instituição supranacional de
apoio aos necessitados e posicionando-se como um veículo para privile-
giar os interesses de alguns membros.
No caso do Brexit, o processo de saída dos britânicos foi relativamen-
te tranquilo, apesar de mais de dois anos de negociações. As negociações,
tanto em termos de separatismo quanto de integração, foram amplamente
debatidas em esforços sem precedentes.
No final, o bloco do velho continente “se curva” ao Reino Unido e
permite que os britânicos saiam “tranquilamente”. A “facilidade” de êxi-
to no caso Brexit é uma facada na espinha dorsal da Europa. Deveria ser
de responsabilidade do Conselho da União Europeia impor embargos e/ou
multas draconianas, forçando o Reino Unido a enfrentar dificuldades ini-
magináveis ,​ previnindo que fantasmas separatistas ganhassem fôlego. Seria
uma obrigação demonstrar a força e a aliança da UE como bloco regional.
A questão é: se o Reino Unido fosse o país membro na condição de
estar enfrentando uma grave crise financeira, a UE seria tão inerte nas
medidas de auxílio? Ainda que não seja o euro a moeda de curso forçado?
A resposta parece ser não. Por outro lado, se a Grécia instigar um processo
de secessão, a UE daria tanta importância para o incidente, assim como fez

84
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

com o Reino Unido? Além disso, no caso de violação do sistema da UE,


seria possível que a Grécia sofresse embargos draconianos? É claro que
nestes casos a UE admitiu dois padrões diferentes para nações “iguais”,
sob o olhar da integração, rompendo com a parcialidade necessária.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo estudado, pode-se concluir que o déficit democrático europeu


não só existe como também é crescente, tendo como seu principal com-
bustível a falta de credibilidade que o cidadão dá ao Parlamento, uma vez
que sua capacidade decisória é mitigada pelas instituições, indicadas pelo
poder executivo de cada Estado membro. De fato é o Conselho da União
Europeia que detém o poder legislativo, fazendo o Europarlamento como
mero órgão consultivo, com poucas exceções. Havendo uma prevalência
da representação lockeana frente a rousseaniana.
O fato da União Europeia dar demonstrar se importar mais com
as políticas econômicas do que com as sociais, causa um maior dis-
tanciamento entre eleitor e os representantes eleitos, servindo como
combustível para enfraquecer as bases sociais do sistema representativo
europeu, dando lugar para um neoliberalismo, justificado pela racio-
nalização da produção. Surge-se inclusive uma nova discussão sobre se
os blocos regionais são instrumentos mutualisticos ou novas formas de
dominação comercial.
Assim vê-se que uma das soluções para a alta abstenção democrática
seja a redefinição das competências do Parlamento Europeu, mitigando o
poder decisório das instituições e o devolvendo ao povo, pois assim have-
ria menos ruídos entre a vox populi e as decisões legislativas. Também é
necessário que as decisões institucionais sejam feitas com imparcialidade
e sempre permeadas pelas questões sociais, execrando um neoliberalismo
justificado pela produção de riquezas.
Afinal, não há sistema representativo que subsista sem a legitimidade
de seu povo!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, J. B.. A crise da democracia na União Europeia: Uma


resposta por Jürgen Habermas. In: VII SEMINÁRIO DISCENTE

85
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIêNCIA POLÍTICA DA USP, 7.,


2017, São Paulo. Anais. São Paulo: Esp, 2017.

CARVALHO, D. C. (2012). Deficit democrático na União Euro-


péia. Tese de Doutorado, Faculdade de Direito, Universidade de São
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HABERMAS, J. Direito e Democracia entre Facticidade e Valida-


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JESUS, P.. Portugal é o oitavo estado-membro com mais absten-


ção. 2014. Diário de Notícias. Disponível em: <https://www.dn.pt/
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-e-o-oitavo-estado-membro-com-mais-abstencao-3933389.html>.
Acesso em: 24 abr. 2019.

MARTINS, C. B.. O QUE É SOCIOLOGIA. 38. ed. São Paulo: Bra-


siliense, 1994.

MIGLINO, Arnaldo. As cores da democracia. 2. ed. Florianópolis:


Empório do Direito, 2016.156 p. Tradução: Fauzi Hassan Choukr.

RIESCO, M. Latin America: a new developmental welfare state model


in the making? International Journal of Social Welfare, v. 18,
suplemento s1, p. S1–S11, 2009.

SOUZA, A. B. A União Européia e o déficit democrático: um es-


tudo a partir de Jürgen Habermas. Belo Horizonte: Publica Di-
reito, 2007. XVI Congresso Nacional do CONPEDI.

86
A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO
DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE
URGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA
ÀS MULHERES TRANSSEXUAIS
Mateus da Veiga Scherer13

INTRODUÇÃO

Pelo vasto tempo em que a sociedade se formou e evoluiu, as questões


que envolviam o sexo do indivíduo eram interpretadas como sendo uni-
camente um fator anatômico e biológico da pessoa. Os responsáveis por
determinar tal característica eram exclusivamente os genes e, com isso,
o sexo se apresentava como algo imutável e determinável pela natureza.
Todavia, nos tempos que seguem, as discussões de questões pertinentes
ao sexo do indivíduo são mais complexas do que antes. Hoje, no Brasil e
no mundo, esses tópicos são alvos de constantes divergências e discussões.
Não que antes não existissem problemáticas envolvendo tais assuntos, mas
atualmente tem-se mais liberdade e mais acesso à informação, o que ajuda
na interpretação e no estudo de vários assuntos que antes eram inviáveis,
ao passo que, cada vez mais, o Direito se adapta à sociedade, principal-
mente às minorias.
Esse posicionamento, embora polêmico, é preciso para a garantia
de direitos dos transsexuais, indivíduos os quais possuem uma iden-

13 Aluno de graduação do curso de Direito, Universidade de Cruz Alta, Cruz Alta-RS.

87
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

tidade de gênero contrária ao seu sexo biológico. Entre agressões,


piadas, nomes pejorativos e muitas outras formas de preconceito que
essa classe vem sofrendo, indubitavelmente os LGBTQI+ são alvos de
inúmeras atrocidades, atos resultantes de um costume enraizado no
machismo e no patriarcado.
Por outro lado, sabe-se que o Direito possui mecanismos que regu-
lam e combatem crimes que envolvem gênero, dentre estes destaca-se a
Lei Maria de Penha, responsável por dispor de vários mecanismos legais,
eivados de dignidade humana, cenário em que são evidenciadas as medi-
das protetivas de urgência. Entretanto, como regra geral para a execução
das medidas, há a necessidade de cumprimento de três requisitos: sujeito
passivo do sexo feminino, a prática ser tipificada como crime e o ato ter
sido realizado no âmbito familiar.
Isto posto, ao saber que a Lei Maria da Penha é aplicável exclusi-
vamente à mulher, nasce a problemática que se pretende resolver: há a
possibilidade de aplicação das medidas protetivas de urgência previstas na
Lei Maria da Penhas às mulheres transexuais? O objetivo geral do traba-
lho é ver a compatibilidade da Lei Maria da Penha às mulheres trans sob
a ótica da jurisprudência nacional. Para tanto, foi-se adotado o método
bibliográfico-descritivo qualitativo.

1. IDENTIDADE, GÊNERO E IDENTIDADE DE GÊNERO

Como citado, em tempos modernos, para definir o sexo de alguma


pessoa, deve-se levar em consideração alguns fatores essenciais além dos
órgãos sexuais, como a cadeia hormonal, a genética, a psicológica, a social,
a somática e a jurídica. Variadas são as premissas que devem ser conside-
radas e analisadas (GUEDINHA, 2015). A identidade de gênero e a tran-
sexualidade são fenômenos bastante estudados pela psicologia e analistas
comportamentais.
Desta forma, para uma melhor interpretação dos resultados que este
trabalho pretende obter, é necessária uma breve análise de alguns elemen-
tos que, atualmente, influenciam na sexualidade das pessoas, como a dife-
renciação entre o termo “identidade” e o termo “gênero” e, em seguida,
esclarecer o termo “identidade de gênero”.

88
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Segundo Zygmunt Bauaman (2005), a identidade é algo maleável,


onde o procedimento de mudança ocorre durante o percorrer da vida
humana de acordo com as decisões e experiências auferidas na vida,
as quais moldam a individualidade da pessoa. Na identidade, todas as
características do ser podem ser ciclicamente reformuladas por seus
costumes, não se prendendo a condições fixas e imutáveis da natureza
(BAUAMAN, 2005). Assim, as identidades sexuais e de gênero aparen-
tam obter o mesmo grau de maleabilidade de acordo com as escolhas
do ser, se considerados os fatores biopsicossociais que caracterizam o
indivíduo (CIAMPA, 2002).
Nesta esteira, Carl Ransom Rogers (2009, p. 58) define a personali-
dade como:

[...] uma estrutura, isto é, um conjunto organizado e mutável de


percepções relativas ao próprio indivíduo. Como exemplo dessas
percepções citemos: as características, atributos, qualidades e de-
feitos, capacidades e limites, valores e relações que o indivíduo re-
conhece como descritivos de si mesmo e que percebe constituindo
sua identidade. Esta estrutura perceptual faz parte, evidentemente
– e parte central – da estrutura perceptual total que engloba todas
as experiências do indivíduo em cada momento de sua existência.

O autor ainda aponta que tais percepções relativas ao próprio ser


constituem uma característica da aceitação em ser o que é (ROGERS,
2009). Nesse contexto, percebe-se que quando o assunto é identidade há
a ideia de que ela começa a se desenvolver a partir do início da vida e se
concretiza na fase adulta. Em sua formação, levam-se em conta as seleções
pessoais efetuadas pela própria pessoa, pois a individualidade demonstra
ser influenciada diretamente pelos aspectos identitários do indivíduo, e
não apenas pelos moldes comportamentais impostos pela sociedade.
No que tange ao conceito de gênero, Joan Scott (1990, p. 35) ensina:

Por “gênero”, eu me refiro ao discurso sobre a diferença dos se-


xos. Ele não remete apenas a ideias, mas também a instituições, a
estruturas, a práticas cotidianas e a rituais, ou seja, a tudo aquilo
que constitui as relações sociais. O discurso é um instrumento

89
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

de organização do mundo, mesmo se ele não é anterior à or-


ganização social da diferença sexual. Ele não reflete a realidade
biológica primária, mas ele constrói o sentido desta realidade. A
diferença sexual não é a causa originária a partir da qual a organi-
zação social poderia ter derivado; ela é mais uma estrutura social
movediça que deve ser ela mesma analisada em seus diferentes
contextos históricos.

Nessas perspectivas, o gênero é uma categoria historicamente prevista


que, além de se construir com base na diferença dos sexos, dá sentido a
esta diferença. Assim, o gênero serve para auferir uma determinação certa
de tudo o que é social, cultural e historicamente determinado. Diferen-
temente de sexo, que delimita a condição sexual biológica com a qual a
pessoa nasceu.
Noutro ponto, abrangendo todas as fundamentações advindas dos
termos “identidade” e “gênero”, nasce a “identidade de gênero”. O ter-
mo corresponde a uma forma como a pessoa se vê e se sente. Está rela-
cionado à identificação da pessoa. Assim, ela pode se enxergar mulher,
homem, transgênero entre outros, ou até não se identificar com nenhum
deles (LEITE JÚNIOR, 2018). A identidade de gênero se diferencia da
homossexualidade, pois enquanto o primeiro diz respeito à forma como
o indivíduo se vê perante a sociedade, o segundo está relacionado à sua
atração sexual, a quem ele é atraído sexualmente. Indivíduos que possuem
sua identidade de gênero diversa do sexo biológico são chamados de tran-
sexuais (BAUAMAN, 2015).
Maria Helena Guedes Guedinha (2015, p. 10) define a transexuali-
dade como:

[...] a condição do indivíduo transgênero que sofre disforia de gê-


nero, sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio
sexo anatômico, e deseja fazer uma transição para um gênero dife-
rente do imposto no nascimento, com alguma ajuda médica para
seu corpo ou psicológica para seu cérebro.

Berenice Bento (2012, p. 10-11) leciona que: “A transexualidade é


uma expressão identitária que revela divergências com as normas de gêne-

90
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

ro, uma vez que estas são fundadas no dimorfismo, na heterossexualidade


e nas idealizações. Assim, o transexual está na explicitação dos limites das
normas de gênero.”. Dessa forma, a transexualidade se refere à situação
em que o indivíduo demonstra hábitos, comportamentos e pensamentos
divergentes daqueles que são considerados “naturais” de seu sexo biológi-
co. E tal comportamento advém de sua identidade de gênero.

2. DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DA LEI


MARIA DA PENHA E SUA APLICAÇÃO

A lei Maria da Penha pretende assegurar às mulheres seus direitos


fundamentais constitucionais. Para tanto, o texto normativo traz tipifica-
do um rol de medidas protetivas que objetivam dar a devida efetividade à
defesa das pessoas do sexo feminino. Nesse sentido, Fredie Didier Júnior
e Rafael Oliveira (2008, p. 4) urgem que, na lei, é previsto “[…] a possi-
bilidade de concessão, em favor da mulher que se alegue vítima de violên-
cia doméstica ou familiar, de medidas provisionais, dando-lhes, porém, o
nome de medidas protetivas de urgência.”.
Tais mecanismos correspondem a instrumentos assecuratórios englo-
bados pela Lei nº 11.340/06, os quais visam a manutenção da proteção
da vítima, bem como a prevenção e a repressão à violência doméstica e
familiar. Quando as medidas são aplicadas nos casos em que a agressão já
foi consumada, elas visam resguardar os direitos da vítima ao impedir a
continuidade da lesão, e podem ser requeridas pela própria ofendida ou a
requerimento do Ministério Público (ESPÍNOLA, 2018).
As medidas protetivas de urgências também podem ser oferecidas de
forma imediata, ou seja, independente de audiência entre as partes ou ma-
nifestação ministerial, devendo este ser devidamente comunicado. Nesse
sentido, Fredie Didier Júnior e Rafael Oliveira (2008) destacam a impor-
tância das medidas protetivas de urgência, as quais oportunizam proteção
à vítima através das medidas previstas no artigo 888 do Código de Pro-
cesso Penal. Assim, as medidas protetivas de urgência foram instituídas de
maneira que a autoridade policial deve agir quando tiver conhecimento
de algum fato que configure a violência doméstica (DIDIER JÚNIOR;
OLIVEIRA, 2008).

91
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Tais medidas estão elencadas na Lei Maria da Penha, em seus arti-


gos 22, 23 e 24, e são divididas entre as medidas executadas na figura do
agressor e as na figura da vítima. Conforme se verifica no artigo 22 da lei
em comento, na constatação do ato de violência doméstica contra a mu-
lher, o juiz poderá aplicar contra o acusado as medidas de: suspensão ou
restrição da posse de arma; afastamento do agressor do lar ou domicílio de
convívio do casal; proibição de qualquer tentativa de contato ou aproxi-
mação do agressor à vítima (BRASIL, 2006).
No tocante às medidas aplicáveis à vítima, os artigos 23 e 24 da referi-
da lei se preocupam com sua proteção, com o intuito de salvaguardar sua
integridade física, sua saúde e a de seus dependentes, bem como seus bens
patrimoniais. O artigo 23 traz o rol de medidas que acobertam a mulher,
tais quais: seu encaminhamento, e de seus dependentes, a programas esta-
tais comunitários de proteção; seu afastamento ou sua recondução ao lar
após o afastamento do agressor; e a determinação da separação do casal.
No artigo 24, para a guarda patrimonial da ofendida, a lei autoriza o juiz
a proibir qualquer celebração contratual com os bens em propriedade em
comum com o acusado, suspensão de procurações outorgando poderes,
restituição de bens que foram depredados ou furtados e prestação de nota
promissória no valor desses materiais (BRASIL, 2006).
Estas medidas possuem caráter cautelar e pregam providências
apontadas como um dos maiores avanços no combate à violência do-
méstica e familiar, pois garante o amparo à mulher mesmo que se
contraponha ao direito de liberdade do agressor. Tais medidas caute-
lares podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente e não impedem
a aplicação de outras providências não descritas na lei, podendo ser
requisitado, inclusive, força policial para seu cumprimento (COSTA;
NERI; BARBOSA, 2012).
Para que seja pedida a aplicação das medidas, a vítima, primeiramen-
te, deve se conduzir à delegacia, preferencialmente as especializadas no
tratamento à mulher, para a elaboração do boletim de ocorrência. O de-
legado responsável, por força legal, deve remeter o pedido a um juiz. Não
é necessário a presença de um advogado, já que as próprias delegacias já
oportunizam uma assistência jurídica adequada a fim de garantir a efeti-
vidade das medidas para a vítima. Também há a possibilidade de acusação

92
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

pelo Ministério Público, através da instauração de um procedimento pe-


nal (LIMA, 2020).
Acerca do descumprimento das referidas medidas, a Lei nº 13.641, de
03 de abril de 2018, alterou a Lei Maria da Penha com a inclusão do artigo
24-A, o qual tipifica o crime de descumprimento de medidas protetivas
de urgência (BRASIL, 2018). Dessa forma, a partir da data de publica-
ção desta lei não há mais controvérsias a respeito: caso o agressor venha a
descumprir quaisquer das medidas protetivas de urgência a ele impostas,
fatalmente incorrerá nas penas do novo artigo 24-A da Lei Maria da
Penha. Trata-se, pois, de um tipo penal autônomo, com destinatário certo
(LENZA, 2018).
Conforme aponta Guilherme de Souza Nucci (2019), para que haja a
incidência da Lei Maria da Penha, o fato típico deve apresentar três requi-
sitos cumulativos. O primeiro é a mulher como sujeito passivo; o segundo
é a prática de alguma das violências expressas na lei; e o terceiro, a violên-
cia deve ter sido praticada na esfera da unidade doméstica, âmbito familiar
ou em qualquer relação íntima de afeto.
Deste modo, a proteção garantida pela lei em comento terá incidên-
cia apenas quando o ato de violência contra a mulher for executado nas
situações de vulnerabilidade apontadas. Caso contrário, se a mulher tiver
sofrido a violência fora do ambiente doméstico, familiar ou de relação ín-
tima, não há a aplicação da Lei nº 11.340/06, apenas do Código Penal e
Processual Penal (NUCCI, 2019).
Portanto, percebe-se que as medidas protetivas possuem duas finali-
dades distintas: prevenir a prática da violência doméstica contra a mulher
e penalizar as práticas de atos ilícitos relacionados à Lei Maria da Penha.
Assim, insta frisar que a Lei nº 11.340/06 não estipula nenhuma punição
ou tipifica algum crime, tais elementos ainda permanecem na aplicação do
Código Penal e Processual Penal.

3. APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA ÀS


MULHERES TRANSSEXUAIS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA

Conforme apontado, constata-se que o viés legislativo já apresenta


ferramentas legais para o combate à violência contra a mulher, no âm-

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

bito familiar, através da aplicação das medidas protetivas de urgência


arroladas pela Lei Maria da Penha. Tais medidas são aplicáveis tanto ao
agressor, como forma de retenção à conduta ilícita, quanto à vítima,
na tentativa de resguardar, ou ao menos restituir, o bem juridicamente
tutelado lesionado.
Esse sistema legal de proteção tem o objetivo de defender os direitos
das cidadãs, aquelas que possuem tanto o gênero quanto o órgão sexual
feminino. Todavia, percebe-se que, diante do atual cenário social, a co-
munidade transexual vem crescendo cada vez mais, de forma que traz um
grande aumento nos casos em que a vítima da violência é uma mulher
transexual (GUEDINHA, 2015).
Seguindo os apontamentos de Maria Berenice Dias (2019, p. 178):

A aplicação da Lei Maria da Penha aos casos de violência em face


de mulheres trans ainda é um tema controverso no cenário jurídi-
co brasileiro. O despreparo de muitos profissionais que compõem
os poderes Judiciário e Legislativo, frequentemente embaraçados
com os conceitos de sexo, gênero, identidade, orientação sexual
e seus desdobramentos, aliado à transfobia e ao trato frequente da
transexualidade enquanto patologia, criam uma situação de inse-
gurança jurídica muito grande para essas pessoas. No entanto, há
de se reconhecer que tem crescido o número de jurisprudências
que reconhecem a aplicabilidade da lei a esses casos.

Nesse prisma, a aplicabilidade da Lei Maria da Penha, no que se refere


à mulher transexual vítima de violência, ainda é um assunto bastante po-
lêmico no viés judicial. A falta de capacitação e preparação dos membros
que formam o Judiciário e o Legislativo para o devido tratamento isonô-
mico às pessoas trans, aliado com conceitos transfóbicos e tradicionalistas
de sexo, gênero, identidade e orientação sexual, resultam na perda de di-
reitos pela cidadã transexual e, em consequência, proporcionam grande
insegurança jurídica para este público.
Noutro giro, é necessário reconhecer que o tema tem aparecido com
frequência nos procedimentos jurídicos e aumenta o número de jurispru-
dências a favor da aplicação da lei nestes casos. Nesse sentido, em 2011

94
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

tem-se um caso em que a 1ª Vara Criminal da comarca de Anápolis-GO,


por meio da decisão proferida nos autos de nº 2011.0387.3908, se mani-
festou a favor da aplicação das medidas protetivas de urgência a mulheres
transexuais. No caso em comento, o Ministério Público se manifestou de
maneira contrária à aplicação, sob o argumento de que o sexo biológico da
vítima era do gênero masculino, mesmo sexo que o do acusado. Todavia,
a juíza manteve seu posicionamento, indo de encontro às controvérsias
apontadas pelo Parquet e sentenciando em prol da mulher:

Esta magistrada não pode deixar a mulher Alexandre Roberto


Kley, desabrigada em seus direitos! Não posso deixá-la à margem
da proteção legal já que ela se reconhece, age íntima e socialmente
como mulher. Para a mulher Alexandre Roberto Kley, eu aplico
TODAS as prerrogativas esculpidas na Lei Federal nº 11.340/2006!
(GOIÁS. Tribunal de Justiça, 2011).

Em sua sentença, a juíza de direito Ana Cláudia Veloso Magalhães


demonstrou que “[…] o termo ‘mulher’ pode se referir tanto ao sexo fe-
minino, quanto ao gênero feminino. Destarte, não teria sentido sancionar
uma lei que tivesse como objetivo a proteção apenas de um determinado
sexo biológico.” (GOIÁS. Tribunal de Justiça, 2011). Em sua fundamen-
tação, ainda, a juíza asseverou que:

O gênero é construído no decorrer da vida e se refere ao estado


psicológico, […] o que a torna pessoa do sexo feminino, no que
tange ao seu “sexo social”, ou seja, a identidade que a pessoa as-
sume perante a sociedade’ […] a não aplicação das mesmas regras
elaboradas para proteção da mulher transmuta-se no cometimento
de um terrível preconceito e discriminação inadmissível. (GOIÁS.
Tribunal de Justiça, 2011).

Ademais, a juíza também mencionou que “O princípio da liberdade,


que se desdobra em liberdade sexual, garante ao indivíduo, sujeito de di-
reitos e obrigações, a livre escolha por sua orientação.” (GOIÁS. Tribunal
de Justiça, 2011). Tal decisão demonstra de maneira bem explícita várias

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

questões em relação à aplicabilidade da Lei Maria da Penha quanto ao


público transexual.
Apesar de a sentença ter sido favorável, a juíza, ao tratar a vítima uti-
lizando várias vezes o seu nome registrado no cartório civil ao invés do
nome social, a expõe a uma situação constrangedora e preconceituosa.
Ademais, seu posicionamento, que é apontado como um dos primeiros
em relação ao tema no viés judicial, também apresenta alguns erros e equí-
vocos em comparação ao que é apontado pelos estudos de gênero. Muitas
das vezes, para justificar a aplicação da Lei Maria da Penha em mulheres
trans, a orientação sexual é o fator principal, o que corresponde a uma ati-
tude bem equivocada pois, como já demonstrado, a identidade de gênero
não é sinônimo de orientação/opção sexual, cada instituto possui concei-
tos distintos e autônomos.
O Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2017, ao analisar o Recurso
Especial de nº 1626739 RS 2016/0245586-9, apontou que:

[...]conforme se infere da prova produzida, M. D., que agora se


chama D. M., vê-se como uma mulher, comporta-se como uma
mulher, identifica-se socialmente como uma mulher, ou seja, seu
gênero é feminino, sobrepondo-se ao seu sexo biológico, à sua ge-
nitália e à sua configuração genética. Conforme se infere do laudo
de avaliação psicológica pericial, desde a infância sentia-se diferen-
te em relação ao sexo biológico e, a partir dos 18 (dezoito) anos de
idade, assumiu as características correspondentes ao gênero com
o qual se identifica. Atualmente reside em Paris, vive em união
estável com um cidadão francês e trabalha em um salão de beleza,
assumindo, em tudo, as características do gênero feminino. (BRA-
SIL. Superior Tribunal de Justiça, 2017).

O julgamento perante o STJ foi longo e apresentou certo pavor em


doutrinadores adeptos a padrões mais tradicionalistas. Tratava-se de uma
mulher trans, cabelereira, que enquanto morava no Brasil sofreu, por di-
versas vezes, violência psicológica e física de seu ex-companheiro. Com
a opinião do Tribunal Superior abriu-se várias premissas para que outros
tribunais também adotassem o mesmo posicionamento, o que representa
uma vitória aos direitos homoafetivos (DIAS, 2019).

96
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

O Tribunal de Justiça da Bahia adotou seu posicionamento através do


julgamento do processo APL 0306824-16.2015.8.05.0080, pela 1ª turma
da 1ª Câmara criminal, de relatoria de Aliomar Silva Britto, em 2018,
também se posicionando a favor da aplicação das medidas protetivas de
urgência à uma pessoa trans, conforme é visto na ementa:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO MINISTE-


RIAL. LEI MARIA DA PENHA. PLEITO DE MEDIDA
PROTETIVA. VÍTIMA TRANSEXUAL. DECISÃO COM-
BATIDA QUE JULGOU EXTINTO O PROCESSO SEM
JULGAMENTO DO MÉRITO. PEDIDO DE REFORMA da
sentença mediante retorno dos autos à Comarca de Origem, para
reabertura processual e respectivo julgamento do feito. POSSIBI-
LIDADE. AGRESSÕES PERPETRADAS CONTRA VÍTI-
MA DO GÊNERO FEMININO DENTRO DE UMA relação
íntima de afeto. CASO EM APREÇO QUE ATRAI A INCI-
DÊNCIA DA LEI N. 11.340/06. RECURSO CONHECIDO E
PROVIDO. (BAHIA. Tribunal de Justiça, 2018).

O juizado de Violência Doméstica contra a Mulher da cidade de Ara-


piraca-AL também aplicou as medidas da Lei Maria da Penha em favor de
uma mulher transexual agredida por outras duas mulheres, que embora
não fossem suas parentes, eram figuras presentes em seu âmbito familiar.
Ao julgar o processo de nº 0700654-37.2020.8.02.0058, em 2019, o juiz
Alexandre Machado de Oliveira entendeu que “Cabe ao Poder Judi-
ciário enfrentar a questão da transexualidade, definindo o alcance da lei
11.340/2006 com base em uma leitura moralizante da Constituição […]
de modo a emprestar maior efetividade à pessoa humana.” (ALAGOAS.
Tribunal de Justiça, 2019), assim, determinou a aplicação das medidas de
restituição dos bens deteriorados e impôs o distanciamento da vítima sob
pena de prisão.
No mesmo ano, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal - 2ª tur-
ma da 1ª Câmara Criminal, ao julgar o recurso em sentido estrito nº
2018.1610.0132.27RSE, adotou o posicionamento de que a mulher trans
é sujeito de direitos aplicáveis pela Lei Maria da Penha, dispondo que
“[…] comportando-se a recorrido como mulher e assim assumindo seu

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

papel na sociedade [...] o exercício pleno do gênero feminino pelo qual


optou, não pode representar um empecilho para o exercício de direitos
que lhes são legalmente previstos.” (DISTRITO FEDERAL. Tribunal
de Justiça, 2019).
Nesse contexto, o Relator desembargador Silvanio Barbosa dos San-
tos se manifestou da seguinte forma:

Com efeito, é de ser ver que a expressão “mulher” abrange tanto o


sexo feminino, definido naturalmente, como o gênero feminino,
que pode ser escolhido pelo indivíduo ao longo de sua vida, como
ocorre com os transexuais e transgêneros, de modo que seria in-
congruente acreditar que a lei que garante maior proteção às “mu-
lheres” se refere somente ao sexo biológico, especialmente diante
das transformações sociais. Ou seja, a lei deve garantir proteção a
todo aquele que se considere do gênero feminino. (DISTRITO
FEDERAL. Tribunal de Justiça, 2019).

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao julgar o recurso em sen-


tido estrito nº 0008712-37.2018.4.24.0023, se posicionou no sentido de
que o acusado que cometer homicídio contra sua esposa, mulher trans, em
sua residência familiar, responderá por feminicídio, tipificado pela Lei do
Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), e não por homicídio da Lei Penal co-
mum (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça, 2020). Nesse sentido,
vê-se que tal tribunal também considerou a identidade de gênero femi-
nina da vítima para proferir sua sentença ao apontar que “A qualificadora
do feminicídio incide quando o sujeito passivo for mulher de acordo com
o critério psicológico, ou seja, quando a pessoa se identificar com o sexo
feminino, mesmo quando não tenha nascido com o sexo biológico femi-
nino.” (SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça, 2020).
Tendo em vista o grande teor de vulnerabilidade e insegurança ju-
rídica sofrido pelas mulheres trans no acesso às garantidas defesas na Lei
Maria da Penha, foi proposto o Projeto de Lei de nº 8032/14, o qual visa a
ampliação, de maneira positivada, da proteção da Lei nº 11.340/06 para as
pessoas transexuais e transgêneros. Conforme se extrai da justificação do
projeto, encontra-se o seguinte texto:

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Embora o foco inicial tenha sido a proteção da mulher, é cediço


que o ordenamento jurídico deve acompanhar as transformações
sociais. Nesse contexto, entendemos que a Lei Maria da Penha
deve ter o seu alcance ampliado, de modo a proteger não apenas
as mulheres nascidas com o sexo feminino, mas também as pes-
soas que se identificam como sendo do gênero feminino, como é
o caso de transexuais e transgêneros. Estamos falando, portanto,
de conferir a proteção especial da Lei Maria da Penha a pessoas
que se enxergam, se comportam e vivem como mulheres, e que,
da mesma forma que as que nascem com o sexo feminino, sofrem
violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral por parte
de parentes, companheiros ou conviventes. Com esse propósito, a
presente proposição acrescenta ao art. 2º da Lei Maria da Penha a
expressão “identidade de gênero”, a fim de permitir a sua aplicação
a transexuais e transgêneros que se identifiquem como mulheres.
(BRASIL, 2014)

Nesse prisma, percebe-se que tal projeto de lei reconhece a impor-


tância da preocupação com a segurança jurídica das mulheres trans. Por
representarem um público tido como minoria social, estas pessoas se apre-
sentam mais fracas e oprimidas pela sociedade, assim, para que sejam con-
feridos os mesmos direitos positivados na Lei Maria da Penha, o projeto
segue em trâmite, aguardando votação na Câmara dos Deputados.
Deste modo, considerando que nem todos os tribunais brasileiros se
manifestam de maneira favorável ao uso dos direitos e garantias previstos
na Lei nº 11.340/06 às mulheres transgêneros ou transexuais, a aprova-
ção do supracitado Projeto de Lei é de suma importância para garantir
que o Poder Judiciário aplique a Lei Maria da Penha a este grupo de
pessoas de maneira uniforme, respeitando os valores sociais da dignidade
da pessoa humana.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das informações e justificativas apontadas na pesquisa, perce-


be-se que o sexo feminino é, social e juridicamente, mais desfavorecido na
cultura machista atual. Os movimentos feministas em suas diversas fases

99
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

evolutivas sempre apresentaram uma luta pela igualdade feminina, assim,


pregavam a construção de uma identidade da mulher que não é consubs-
tanciada no nascimento, mas construída conforme o avanço da jornada
cível do indivíduo.
A comunidade transexual reconhece sua identidade feminina através
de uma análise particular e íntima do gênero, a qual se traduz nos trejeitos,
características e comportamentos do sexo oposto ao biológico. Todavia,
no que se refere a seus direitos como mulheres, há vários desafios a serem
enfrentados, como o preconceito, o ódio, a discriminação, a violência de
gênero. Para elas, conviver em ambientes cotidianos, como colégios, pra-
ças ou restaurantes é algo que envolve grandes riscos.
Nesse diapasão, vê-se que o Poder Judiciário, através de decisões de
diversos tribunais distintos, ainda apresenta resistência em aplicar a Lei
Maria da Penha às mulheres transexuais. Entretanto, há de se reconhecer
que tem crescido o número de jurisprudências que reconhecem a aplica-
bilidade desta lei em tais hipóteses, assim, é de fundamental importância
a expressa previsão legal desta possibilidade, para assegurar a aplicação da
Lei 11.340/2006 a todas as mulheres trans vítimas de violência doméstica
e familiar.
Além disso, ainda é necessário insistir na desconstrução de este-
reótipos racistas, homofóbicos e transfóbicos para que haja a imposi-
ção de conceitos científicos concretos em prol dos direitos das pessoas
transexuais. Ignorar que a sociedade trans feminina também está passí-
vel de sofrer violências domésticas é menosprezar os direitos humanos
das mulheres transexuais e, por conseguinte, violar frontalmente os
valores de Justiça.

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SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise histórica. Porto Alegre:


Editora Buqui, 1990.

103
A SOCIEDADE DE RISCO E A
RESPONSABILIDADE CIVIL DA
RELAÇÃO MÉDICO-HOSPITALAR:
COMO O COMPLIANCE PODE SER
UM INSTRUMENTO REDUTOR DO
RISCO
Julia Tolomeotti Ferrarini14

INTRODUÇÃO

A temática acerca da sociedade de risco, conceituada por Ulrich


Beck, conversa estreitamente com a criação e a implementação de pro-
gramas de integridade (ou compliance) efetivos e eficazes, os quais são uma
inovação no campo jurídico e tem como finalidade reduzir o risco atual
na sociedade contemporânea.
No presente trabalho, a temática sociedade de risco desenvolver-se-á
a partir da responsabilidade civil que surge da relação médico-hospitalar,
área do Direito Civil em que possui uma grande visibilidade quando abor-
da riscos e prevenções no âmbito jurídico, isso em razão do aumento de
demandas litigiosas acerca deste tema. Usar-se-á a doutrina da sociedade

14 Mestranda em Direito pela UNIVEL. Pesquisadora de Ciências Criminais da NECCRIM/


FAE. Pesquisadora do PPGD da UNIVEL em Fundamentos do Compliance. Associada da ANA-
CRIM/PR. Advogada.

104
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

de risco de Ulrich Beck com o objetivo de fundamentar a distribuição


dos riscos que a relação médico-hospitalar pode desencadear, e como essa
problemática ganha forças atualmente.
De forma breve, os objetivos do presente trabalho são definir a so-
ciedade de risco concretizada por Ulrich Beck, bem como a responsa-
bilidade civil do médico e do estabelecimento hospitalar. Além do mais,
explicar-se-á o que são os programas de compliance. Na sequência, bus-
car-se-á interligar aquela sociedade de risco e a sua distribuição de riscos
com a responsabilidade civil que advém da relação médico-hospitalar, a
fim de encontrar o ponto de intersecção. Por fim, indicar-se-á os pontos
positivos da implementação de um programa de compliance como uma fer-
ramenta de controle para os riscos inerentes à sociedade contemporânea.
A construção deste trabalho voltar-se ao seguinte problema de pes-
quisa: os programas de compliance podem ser uma ferramenta de redução
da distribuição de riscos para as relações médico-hospitalares? Para isso,
foi feita uma pesquisa bibliográfica e jurisprudencial acerca de todos os
temas que circundam este trabalho.
Desse modo, a pesquisa visa indicar os pontos positivos da implemen-
tação de um programa de compliance, para que este assegure às relações
médico-hospitalares uma maior segurança em seus atos, desde os admi-
nistrativos aos contábeis, contratuais e criminais. Além de indicar, super-
ficialmente, de quais formas este programa de compliance pode auxiliar na
redução de riscos.
Para a presente pesquisa o trabalho segue o método de pesquisa bi-
bliográfica (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 183) por meio de aborda-
gem hipotético-dedutiva (MARCONI; LAKATOS, 2003, p. 99-100).
A técnica de coleta se desenvolveu por documentação indireta, tendo em
vista que não foram utilizados métodos diretos, como pesquisas de campo,
laboratórios e técnicas de observação diretas intensivas ou extensivas.

1. A SOCIEDADE DE RISCO E A NECESSIDADE DO


SURGIMENTO DOS PROGRAMAS DE COMPLIANCE

A sociedade de risco conceituada por Ulrich Beck é julgada como


um resultado da modernização da sociedade (conceito que será abordado

105
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

posteriormente). Entretanto, Beck observou que o risco surge desde épo-


cas anteriores ao desenvolvimento industrial (BECK, 2019, p. 26).
Tornou-se palpável esse conceito de risco, quando, no século XIX,
as pessoas sofriam com o “risco da pobreza” ou os “riscos da saúde”, os
quais, até mesmo hoje, com toda a tecnologia ao alcance da sociedade,
seguem inquietando o público (BECK, 2019, p. 26).
A produção social de riquezas acompanha lado a lado a crescente do
risco social. Com isso, os problemas e conflitos acerca da distribuição des-
sas riquezas, na sociedade da escassez, tornam-se maiores do que os pro-
blemas e conflitos surgidos a partir de produção, definição e distribuição
de riscos científico-tecnologicamente produzidos (BECK, 2019, p. 23). E
os problemas e conflitos advindos da distribuição de riquezas, na socieda-
de da escassez moderna, tornaram-se distribuição de riscos. Essa mudança
advém em conjunto com a crescente força produtiva no processo de mo-
dernização, ocasionando riscos e potenciais de autoameaça, cujas medidas
são desconhecidas.
Sobre a modernização supramencionada, o autor explica que ela
é o salto tecnológico de racionalização e a transformação do trabalho
e da organização, englobando para além disto muito mais: a mudança
dos caracteres sociais e das biografias padrão; dos estilos e formas de
vida; das estruturas de poder e controle; das formas políticas de opres-
são e participação; das concepções de realidade; e das normas cogniti-
vas (BECK, 2019, p. 23). Em síntese, a modernização que causa riscos
à sociedade da escassez é o movimento de inovações tecnológicas, em
suas diversas nuances, o qual influencia em todos os aspectos de vida
de um cidadão daquela sociedade.
E neste cenário surge a seguinte pergunta: como podem ser evitados,
minimizados, dramatizados, canalizados esses riscos? E como esses riscos
minimizados podem ser redistribuídos a fim de que não seja comprome-
tido o processo de modernização?
Pois é preciso sempre levar em consideração que, por mais que
a sociedade da escassez sofra com a supracitada modernização, ela não
pode deixar de atualizar-se por causa de “medos” dos possíveis riscos
que poderão ser resultantes das inovações tecnológicas. É justamente
por isso que a promessa de segurança avança com os riscos e precisa ser

106
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

continuamente reforçada por meio de intervenções cosméticas ou efetivas


no desenvolvimento técnico-econômico (BECK, 2019, p. 24).
Se a promessa de segurança não caminhar ao lado do aumento dos
riscos, a sociedade deixa de avançar tecnologicamente e fica estagnada em
um status que poderá afundar nela mesma, pois não haverá mais a busca
inovadora por formas de minimizar os riscos, mesmo que eles aumentem
na mesma proporção de sua segurança. Em vista dessa promessa de segu-
rança, pode-se concluir, então, que o risco é futuro, pois busca-se uma
segurança futura. O risco poderá acontecer e, em razão disso, precisará ser
aplicado um meio para que ele tenha a suas consequências minimizadas.
Riscos têm, portanto, fundamental relação com antecipação, com
destruições que ainda não aconteceram, mas que são iminentes, e por este
motivo são considerados reais no hoje (BECK, 2019, p. 39). É por isso
que o autor afirma que o argumento do risco reside nas ameaças projetadas
no futuro. Os riscos podem vir a surgir a qualquer momento do futuro,
vindo a representar a destruição da sociedade. Deste modo, deve haver
uma promessa de segurança para que tal ameaça futura seja vetada ou mi-
nimizada por meio de um sistema preventivo a ser articulado no presente.
Aqueles [riscos] constituem-se ativos hoje para que sejam evitados e
mitigados problemas ou crises do amanhã ou do depois de amanhã, a fim
de tomar precauções em relação a eles (BECK, 2019, p. 40). Portanto, os
riscos produzidos pela sociedade da escassez em decorrência das inovações
tecnológicas são problemas futuros, os quais não são previstos e tampou-
co desejados, mas que podem ser mitigados com um sistema preventivo
criado no presente.
É nesse cenário em que se encaixa a necessidade da criação de pro-
gramas de compliance na sociedade de risco modernizada, ou contempo-
rânea15, uma vez que o risco é um evento futuro e indesejado, mas que
pode vir a ser minimizado com um sistema de prevenção articulado no
presente.

15 Zygmunt Bauman entende a sociedade contemporânea como a “[…] que aparece sob
o nome de última sociedade moderna ou pós-moderna, a sociedade da ‘segunda moder-
nidade’ de Ulrich Beck ou, como prefiro chamá-la, a ‘sociedade da modernidade fluida’.”
(BAUMAN, 2001, p. 31).

107
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

2. A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO E A DO


ESTABELECIMENTO HOSPITAL

Neste momento preocupa-se apenas em abordar, de forma sucinta, a


temática responsabilidade civil, com a finalidade de tornar o desenvolvi-
mento deste trabalho mais compreensível. A responsabilidade civil médi-
ca, da qual tratam os artigos 186 e seguintes e artigo 951 do Código Civil
(BRASIL, 2002), repousa sob o elemento culpa e configura, assim, a res-
ponsabilidade civil subjetiva, a qual necessita que a vítima prove o dolo ou
a culpa stricto sensu do agente para obter a reparação do dano (KFOURI,
2018, p. 81).
Cumpre aqui rememorar, brevemente, acerca da conceituação de
dolo e culpa stricto sensu para o Direito Civil. O primeiro (dolo), consti-
tui-se de uma violação intencional do dever jurídico com o objetivo de
prejudicar outrem, é a ação ou omissão voluntária mencionada no artigo
186 do Código Civil (TARTUCE, 2019, p. 519). Já a culpa em stricto sensu
não possui propriamente uma intenção de violar o dever jurídico, mas o
desrespeito (por meio de uma conduta diversa) acaba violando um dever
preexistente (TARTUCE, 2019, p. 521).
Sérgio Cavalieri Filho (2019, p. 36) entende como a violação de dever
objetivo de cuidado que o agente podia conhecer e observar ou, como
querem outros, a omissão de diligência exigível. Para o autor, a fim de que
se configure a culpa, deverão estar presentes três elementos: a) a conduta
voluntária com resultado involuntário; b) a previsão ou previsibilidade; e
c) a falta de cuidado, cautela, diligência e atenção (CAVALIERI FILHO,
2019, p. 36).
Desse modo, entende-se que a responsabilidade civil subjetiva é aque-
la figurada com o dano, a conduta, o nexo de causalidade e o dolo/culpa
stricto sensu do agente, devendo a vítima comprová-los.
A responsabilidade civil do médico é de natureza subjetiva, pois assim
ensina o artigo 951 do Código Civil quando afirma que a vítima deve
ser indenizada se, no exercício de atividade profissional (atuação médica),
houver negligência, imprudência ou imperícia por parte do médico de
modo a causar a morte do paciente (vítima), agravar-lhe o mal, causar-lhe
lesão ou inabilitá-lo para o trabalho (BRASIL, 2002).

108
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

É exceção a esta natureza de responsabilidade civil médica, ou


seja, configura-se a responsabilidade civil objetiva do médico em
casos, por exemplo, de cirurgia plástica puramente estética, uma vez
que esta modalidade visa o resultado fim. Esta especificidade segue
o que prevê o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil: “Ha-
vendo obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,
nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco
para os direitos de outrem.” (BRASIL, 2002). Todavia, o presente
trabalho não adentrará nesta temática.
Percebe-se, então, de forma geral, que quando defronte da respon-
sabilidade civil médica esta configura-se como subjetiva, pois é sabido
que a atuação profissional do médico é de evitar o risco e não o agravar;
por isso, quando um dano acontece em decorrência da atuação do pro-
fissional, deverá a vítima demonstrar o dolo ou a culpa em stricto sensu do
agente (médico).
No que tange à responsabilidade civil do estabelecimento hospitalar,
tanto a doutrina especializada como os tribunais superiores entendem-na
como objetiva, com base no artigo 14 do Código de Defesa do Consumi-
dor. Explica-se:

Os estabelecimentos hospitalares são fornecedores de serviços,


e, como tais, respondem objetivamente pelos danos causados
aos seus pacientes, quer se trate de serviços decorrentes da
exploração de sua atividade empresarial, [...] quer se trate de
serviços técnico-profissionais prestados por médicos que neles
atuam ou a eles sejam conveniados. (CAVALIERI JUNIOR,
2019, p. 420)

É o que o Código de Defesa do Consumidor chama de fato do servi-


ço, entendendo como tal o acontecimento externo, ocorrido no mundo
físico, o qual causa danos materiais ou morais ao consumidor, mas decor-
rentes de um defeito do serviço (CAVALIERI JUNIOR, 2019, p. 420).
O Superior Tribunal de Justiça já tornou precedente essa configura-
ção quando julgou o Recurso Especial no sentido de que a responsabili-

109
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

dade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de


serviços cuja atribuição afeta única e exclusivamente o hospital. (BRA-
SIL. Superior Tribunal de Justiça, 2017). Todavia, nas hipóteses de dano
decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente
quando este não tem nenhum vínculo com o hospital, seja de emprego
ou de mera preposição, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de
indenizar (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, 2017).
Conclui-se então que a responsabilidade civil do médico é subjetiva,
ao contrário da hospitalar, a qual se configura como objetiva e é regida
pelo artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor.

3. A RELAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICO-


HOSPITAL E O FATOR RISCO

Vale rememorar que o risco surgiu como uma nova forma de distri-
buição na sociedade de escassez, modernizada, substituindo a distribuição
de riquezas. Em vista disso, analisa-se a aplicação desse conceito na temá-
tica do presente trabalho, qual seja na responsabilidade civil que surge na
relação médico-hospitalar.
Acontece que quando há a intersecção entre a responsabilidade civil
do médico e a do estabelecimento hospitalar é preciso entender que o mé-
dico está prestando os seus serviços no estabelecimento, ou seja, compõe
o quadro clínico daquele hospital e, portanto, deve ser responsabilizado
de igual forma. Entretanto, após toda a fase de instrução probatória de um
processo judicial, a qual tem como tema a discussão da responsabilidade
civil de cada uma das partes dessa relação (médico e estabelecimento hos-
pitalar), o médico responda de forma subjetiva.
Nesse sentido, no julgamento de um Agravo Regimento no Agra-
vo em Recurso Especial, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que
aos atos técnicos defeituosos praticados, vinculados de alguma forma ao
hospital, respondem os médicos solidariamente à instituição hospitalar e
o profissional responsável quando apurada a sua culpa profissional (BRA-
SIL. Superior Tribunal de Justiça, 2016).
Além do mais, neste mesmo caso o hospital é responsabilizado indi-
retamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima

110
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza


absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil), sendo cabível ao juiz, de-
monstrada a hipossuficiência do paciente, determinar a inversão do ônus
da prova (artigo 6º, VIII, do CDC).
Todavia, ao considerar o que trata o artigo 14 do Código de Defesa
do Consumidor, tem-se que o hospital responde objetivamente pelos
danos causados ao paciente-consumidor em casos de defeito na pres-
tação do serviço (BRASIL. Superior Tribuna de Justiça, 2016). Nota-
-se que essa relação médico-hospitalar possui uma certa maleabilidade
quando o assunto é a responsabilidade civil de cada uma das partes e,
para tanto, deve o juiz competente analisar como cada uma delas deve
ser responsabilizada.
Acontece que a distribuição do risco na sociedade modernizada é
inerente a ambas as partes e, para isso, tanto o médico como o estabeleci-
mento hospitalar devem estar dentro de todas as conformidades necessá-
rias, a fim de que haja uma redução desses riscos.
Portanto, como ainda não há uma concreta caracterização da res-
ponsabilidade civil desta relação, pode-se considerar que, pelo fato de o
paciente (vítima) ser o elo mais fraco nesta relação, como um “terceiro
interessado”, a responsabilidade civil deve ser a objetiva.

4. COMPLIANCE COMO FERRAMENTA ALIADA À


SOCIEDADE DE RISCO

Inicialmente, define-se o compliance como uma ferramenta a fim de


assegurar controles internos de uma empresa, visando o funcionamento
de forma sistemática, a redução dos riscos com base no modelo de negó-
cios e a complexidade dos mesmos (LAMBOY et al., 2018, p. 9).
O Conselho Administrativo de Defesa de Concorrência definiu com-
pliance como um conjunto de medidas internas o qual permite prevenir ou
minimizar os riscos de violação às leis decorrentes de atividade praticada
por um agente econômico e de qualquer um de seus sócios ou colabora-
dores (CADE, 2016, p. 9).
O compliance pode ser entendido, também, como uma forma de cum-
prir normas através de mecanismos estruturados na organização, capazes

111
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

de garantir que a conduta da empresa esteja em conformidade com as di-


retrizes, os regulamentos e as leis aplicáveis à atividade ou ao setor em que
ela atua (MATOS, 2019, p. 37).
Desse modo, sintetiza-se o conceito de compliance como uma ferra-
menta utilizada, tanto no âmbito público como privado, para fazer-se
cumprir normas, regimentos e legislações com o escopo de reduzir ris-
cos e regularizar as condutas dos colaboradores vinculados à institui-
ção que implementou essa ferramenta. Quando alocado no âmbito do
Direito Médico, pode-se entender que a sua aplicabilidade é percebida
como uma imposição de formas e atividades médico-hospitalares de
acordo com exigentes padrões legais para que o risco, de qualquer na-
tureza, seja reduzido.
Em vista do que foi concluído no ponto 3 deste trabalho, e con-
siderando a forma de aplicação do programa de compliance, se a relação
médico-hospitalar é regida pela responsabilidade civil objetiva, todo o
corpo clínico do estabelecimento hospitalar deve atuar de forma sub-
missa ao programa de compliance a fim de que seja minimizado qualquer
tipo de risco.
A distribuição do risco na sociedade da escassez modernizada pode
acontecer na esfera civil, penal, administrativa e outras; com a natureza
objetiva da responsabilidade civil a distribuição do risco é ainda maior e,
por isso, o programa de compliance deve ser implementado e seguido por
todos os componentes da relação.
O Conselho Nacional de Justiça, anualmente, compartilha dados ju-
diciais, e um desses compartilhamentos é acerca dos assuntos mais deman-
dados judicialmente. Em 2021, o diagrama da Justiça Estadual (Figura 1)
mostra que um dos assuntos mais recorrentes referentes ao Direito Cível é
a indenização por dano moral (direito civil/responsabilidade civil) (CNJ,
2021, p. 276), e ainda é vista como um nó presente em diversos tribunais.
Indicamos o diagrama:

112
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Figura 1 - Diagrama CNJ/2021

CNJ – Justiça em Números 2021. 16

Tendo em vista que o tema responsabilidade civil é um dos temas


mais abordados judicialmente e que a área médica é muito vulnerável,
é possível perceber que este campo se torna fértil para a distribuição do
risco. Além do mais, o CNJ indicou que, em 2019, o Brasil registrou qua-
se 500 mil judicializações na Saúde (CNJ, 2019, p. 23), ou seja, conforme
todos esses dados é notável a necessidade de haver um instrumento que
auxilie na redução de riscos a fim de que as demandas judiciais reduzam
de igual forma.
A finalidade de aplicar o compliance na relação médico-hospitalar é
diagnosticar os riscos jurídicos presentes nesta atuação, verificar os pon-
tos mais vulneráveis, deixar os atos realizados por médicos e pelo hospital
dentro do ditame legal e, ainda, aprimorar as atividades a serem realizadas
por essas partes a fim de que haja uma redução de ações judiciais contra
médicos, hospitais e clínicas médicas.

16 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2021. Brasília: CNJ, 2021, p. 277.

113
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Assim, percebe-se que é de extrema valia a implementação de um


programa de compliance dentro da relação médico-hospitalar, pois se bem
executada poderá gerar uma redução de riscos futuros em área adminis-
trativa, contábil, contratual e criminal, atribuindo, assim, uma maior se-
gurança em todos os atos desta relação em caso.
Portanto, o compliance aplicado no Direito Médico surge a fim de
servir como um instrumento de prevenção e redução de riscos para a
relação médico-hospitalar, uma vez que a responsabilidade civil en-
tendida aqui é objetiva e que a sociedade do risco hoje está cada vez
mais inflamada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visto que o referencial teórico deste trabalho foi a sociedade de risco


de Ulrich Beck, quem ensina que a distribuição de risco é a nova distri-
buição de riquezas da sociedade de escassez, a partir da modernização
aplicou-se a ideia desta distribuição de riscos para a temática da relação
médico-hospitalar, com a finalidade de visualizar o programa de compliance
como um instrumento preventivo de tais riscos.
Construiu-se, também, um pensamento sucinto acerca da responsa-
bilidade civil no âmbito do Direito Médico, o qual culminou na síntese de
que a relação médico-hospitalar deve ser regida pela responsabilidade civil
de natureza objetiva, ou seja, não pode ser atribuído o fator culpa nesta
relação, em vista de haver um elo ainda mais fraco, qual seja o paciente
(vítima).
Portanto, devem essas instituições, o médico e o hospital, munir-se
com um programa de compliance para que o fator risco seja minimizado,
pois, tendo em vista os dados levantados pelo CNJ, a indenização por res-
ponsabilidade civil no âmbito do Direito Médico tem sido um forte tema
em demandas judiciais.
O compliance surge como instrumento a dar forma aos seguintes atos a
serem cumpridos pelos integrantes da relação médico-hospitalar: conduta
ética, correto preenchimento do prontuário, cientificar o paciente acerca
do Termo de Consentimento Informado, bem como deixar todos os atos
e atividades de acordo com as legislações vigentes.

114
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Assim, concluiu-se que o programa de compliance é uma forma de


reduzir o risco atual e crescente dentro de relações médico-hospitalares,
tendo em vista que as organiza e mitiga, assim, a possibilidade de haver
uma maior distribuição de risco neste campo.

REFERÊNCIAS

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TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Obrigações Responsabi-


lidade Civil. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. (Volume 2)

116
A PRESERVAÇÃO DA AUTONOMIA
DO DIREITO DIANTE DA
CRIATIVIDADE JURISDICIONAL
Daniella Gomes Reis Peixoto17

INTRODUÇÃO

A preocupação com a autonomia do Direito perpassa necessariamen-


te pela discussão acerca de sua interpretação e aplicação. Diferente do que
possa parecer, almejar essa autonomia não significa defender a “pureza”
kelseniana, a qual na pretensão de dar cientificidade ao Direito acabou
deixando a interpretação ao alvedrio judicial. Busca-se, ao contrário, de-
fender uma aplicação do Direito, que também é construído pelo intérpre-
te, com respeito à sua integridade e coerência, reconhecendo a necessida-
de de buscar por respostas jurídicas corretas.
Ademais, entender a interpretação jurisdicional como simples caráter
dedutivo de subsunção do fato à norma, em obediência a um formalismo
exacerbado, impede que o Direito assuma suas pretensões últimas de dar
concretude a direitos e princípios almejados pela sociedade constitucio-
nalmente organizada. Nesse sentido, os importantes compromissos assu-
midos pelo Estado demandam uma jurisdição comprometida e firme em
seu propósito de criar o Direito, além de ciente de sua responsabilidade
institucional e dos princípios democráticos.

17 Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis. Advogada.

117
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Em vista disso, é importante dispor sobre a necessidade de uma


criação jurisdicional que ofereça legitimidade e respeite o Estado De-
mocrático de Direito. A normatividade do Direito se expressa pelo
respeito ao texto jurídico. A função do juiz se apresenta justamente
com o objetivo de revelar o sentido da norma através de um desen-
volvimento hermenêutico, o qual parte de um conteúdo estrutural
formalmente previsto, que incorpora conteúdos morais quando da
sua elaboração e das regras do discurso prático geral, sem espaços para
o arbítrio e para decisões solipsistas.
O presente trabalho pretende discutir a necessidade de preservação
da autonomia do Direito diante das transformações que influenciaram
a função jurisdicional e proporcionaram o crescimento da criatividade
na interpretação jurídica. Será discutido a amplitude desse papel criati-
vo do Poder Judiciário e até que ponto ele não se confunde com a ativi-
dade legislativa. Será abordado também a institucionalização da moral
e a importância de uma discussão sobre a interpretação do Direito,
uma vez que conhecer todas essas questões poderá evitar comporta-
mentos abusivos e preservar a legitimidade e integridade das decisões
judiciais, de modo a evitar que a busca por decisões jurídicas corretas
dê lugar a escolhas políticas.

1. PROBLEMATIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO
CRIATIVO DOS JUÍZES

A discussão acerca da legitimidade da atividade jurisdicional é uma


questão que sempre povoou as discussões jurídicas. Estudos sobre as fon-
tes do Direito e sobre a interpretação judicial são perenes e influenciados
pelos momentos históricos nos quais estão se desenvolvendo. Esse caráter
histórico refletiu no desenvolvimento da jurisdição que, em certos mo-
mentos, mostrou-se reclusa e passiva, mas em outros, revelou-se mais ati-
va e criativa.
A Revolução Francesa no enfrentamento ao absolutismo monárquico
vislumbrava dar mais racionalidade e independência ao Direito diante do
poder do Estado através da sujeição incondicional do juiz à lei. A burguesia
revolucionária almejava a segurança jurídica em oposição à arbitrariedade

118
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

que estava presente no regime anterior e, em vista disso, maior controle


sobre a atividade jurisdicional, reduzindo sua atuação a mera aplicação da
lei, sem possibilidade de criação do Direito.
Essa ideologia apresentada pela Escola da Exegese, firmada durante
o século XIX, na França, preconizava um Direito fechado, separado de
conteúdos morais, de modo a buscar uma certeza e objetividade na apli-
cação do Direito e restar para o juiz uma função meramente dedutiva e
descritiva com relação ao fato analisado e à norma aplicada.
Esse movimento de busca por fonte do Direito humanamente legi-
timada, o qual demonstra uma oposição ao jusnaturalismo, também era
percebido em ordenamentos de outros países. Na Alemanha, por exem-
plo, o formalismo se expressava na chamada “jurisprudência dos con-
ceitos”, a qual enfatizava o caráter lógico-dedutivo do sistema jurídico
enquanto desdobramento de conceitos e normas abstratas da generalida-
de para a singularidade, em termos de uma totalidade fechada e acabada,
o que trazia cientificidade ao Direito (FERRAZ JÚNIOR, 2010). Ou
ainda, nos ordenamentos de tradição common law, os quais pensavam o
Direito a partir de critérios lógico-descritivos pelo movimento da “ju-
risprudência analítica”.
Todos esses movimentos predecessores do positivismo jurídico for-
maram a base para a sua consolidação durante o século XX. A doutrina
juspositivista se sustenta em uma teoria da interpretação mecanicista da
norma, prevalecendo na atividade do jurista o elemento declarativo em
lugar do produtivo ou criativo do Direito, além de reconhecer o Direito
como um termo avalorativo. Essa linguagem é reforçada pela teoria do
formalismo jurídico, na qual a validade do Direito se funda em critérios
que concernem unicamente à sua estrutura formal, prescindindo de seu
conteúdo (BOBBIO, 1995).
Mas uma concepção afastada de todo elemento moral constituiu um
radical relativismo ético (nada é justo ou injusto por natureza), e essa afir-
mação de que “tudo é relativo” torna ela mesma relativa, resultando em
atitudes dogmáticas que eliminam toda a tolerância (ALBUQUERQUE,
1997). Todo o ideário de um juiz distante, com uma atuação puramente
declarativa, foi se desfazendo diante das complexas necessidades de uma
sociedade pluralista.

119
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Restou frustrada a ideia de demarcar de forma racional o âmbito da


atividade prudencial do juiz ao pretender garantir exaustivamente as ex-
pectativas de justiça do cidadão através da lei, que se tornou fundamento
aleatório de justificação “racional” da arbitrariedade e resultou em um
total desamparo ao cidadão (ALBUQUERQUE, 1997). Críticas a essa
racionalidade fria foram surgindo, conduzindo “[…] à descoberta de
que, efetivamente, o papel do juiz é muito mais difícil e complexo, e
de que o juiz, moral e politicamente, é bem mais responsável por suas
decisões do que haviam sugerido as doutrinas tradicionais.” (CAPPE-
LLETTI, 1999, p. 33).
A revolta contra o formalismo positivista veio de diversas frentes. O
século XX foi o berço histórico das ideias românticas que se opunham ao
academicismo, ao formalismo lógico e ao intelectualismo. Havia não ape-
nas a desconfiança na razão, em seus postulados e leis universais, em suas
sínteses abstratas, mas também a necessidade de crer, de desafogar livre-
mente as energias espontâneas criadoras do espírito, de reabilitar as ver-
dades que se fundam no sentimento e na intuição (ALBUQUERQUE,
1997). Com essas aspirações, surgem diferentes escolas de pensamento
que trazem uma pretensão mais criativa para as decisões judiciais.
A Escola do Direito Livre e a Jurisprudência dos Interesses, na
Alemanha, não apenas questionaram a atuação puramente mecânica
do juiz, como também buscavam a introdução de argumentos morais,
políticos e ideológicos na descoberta do Direito. A Escola Sociológica
do Direito e o Realismo Jurídico, nos Estados Unidos, e a Escola de
Livre Investigação Científica do Direito, na França, foram em direção
ao protagonismo do intérprete, considerando ilusória a ideia de um
juiz com a posição de declarar o direito de maneira não criativa, ape-
nas com instrumentos da lógica dedutiva sem considerar sua valoração
pessoal (CAPPELLETTI, 1999).
Diante das complexas relações sociais estabelecidas e de seus efei-
tos colaterais e não desejados, tornou-se inevitável a intervenção estatal
em seus domínios. Foram experimentados métodos e instrumentos no
sentido de minimizar as consequências desses efeitos através de preceitos
legislativos, além de um aparelhamento administrativo mais complexo,
para integrar e dar atuação prática às intervenções legislativas e, diante

120
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

disso, um reforço da função jurisdicional para tornar efetivo e contribuir


para a concretização das finalidades e princípios prometidos (CAPE-
LLETTI, 1999).
O próprio papel do Direito e do Estado na moderna sociedade de
bem-estar social se transformou. A legislação trazendo direitos, os quais
para serem efetivados necessitavam de um Estado provedor e, consequen-
temente, de um judiciário que assegurasse a sua execução, estabeleceu um
novo paradigma a ser alcançado. Diante dessa nova concepção do Direi-
to, no sentido de que não apenas prescreve consequências jurídicas, mas
também possui uma função social de integrar e dar concretude a direitos
e princípios almejados pela sociedade, o caráter criativo da atividade ju-
diciária se aflora. Os importantes compromissos assumidos pelo Estado
necessitavam de uma jurisdição também comprometida e firme em seu
propósito de criar o Direito quando da interpretação, além de ciente de
sua responsabilidade institucional e dos princípios democráticos.
Percebe-se como a transformação da função do Estado e da concep-
ção do Direito na sociedade moderna influenciou a criatividade jurisdi-
cional. Cappelletti (1999) inclusive dispõe que o crescimento do Poder
Judiciário se tornou o ingrediente necessário para o equilíbrio dos po-
deres. Considera que o aumento da criatividade judiciária é explicado e
justificado à luz do surgimento de um Judiciário cujo papel, de forma
consequente e paralela, aumentou com o crescimento, sem precedentes,
dos outros poderes do estado moderno.
Vale assentar que não apenas atitudes criativas e mais ativistas podem
levar a uma conduta judicialmente reprovável e de oposição aos desígnios
democráticos, mas qualquer omissão ou abstenção com propósitos volun-
tarísticos ou arbitrários colocam em suspeita a decisão judicial (CAPPE-
LLETTI, 1999). Nesse sentido, a conformidade da decisão judicial está
muito além desse agir criativo, mas implica também na integridade e na
coerência das decisões e no compromisso com o papel constitucional
exercido pelo magistrado.
Considerar que a interpretação judicial é um ato de criação do Direi-
to, que ao interpretar uma lei o juiz não faz apenas uma dedução lógica da
norma jurídica, mas atribui sentido ao texto, não significa que ele assu-
me a função de legislador e nem que ele possa agir de maneira arbitrária,

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

desconsiderando a normatividade jurídica. A interpretação criativa não é


livre e desvinculada de critérios. Há vínculos que direcionam a atividade
jurisdicional, procedimentos legalmente previstos, positivação de direitos
e deveres, além de precedentes judiciais os quais orientam o caminho para
a coerência.

2. A NECESSIDADE DE UMA INTERPRETAÇÃO DO


DIREITO QUE OFEREÇA LEGITIMIDADE À ATIVIDADE
JURISDICIONAL

Ao reconhecer esse poder criativo do juiz, há o risco de colocar, sob


a atividade judicial, toda autoridade sobre o Direito, como se o juiz fosse
o “dono” do processo, decidindo conforme suas próprias convicções e
desejos, desvinculado de limites e critérios jurídicos e entregando toda a
confiança e autonomia do Direito à vontade judicial. Entretanto, compor-
tamentos discricionários, solipsistas e arbitrários não são compatíveis com
um processo judicial democrático.
Ronald Dworkin foi um autor que enxergou a perda de legitimidade
de uma decisão judicial que aposta nessa discricionariedade e proporcio-
na comportamentos marcados por subjetivismos, por entender que tais
atitudes acabam recaindo nos braços do positivismo pós-exegético o qual
ele denuncia. O autor alega que os positivistas falam como se a doutrina
do poder discricionário judicial fosse um insight e não uma tautologia,
legitimando o argumento de que, quando o juiz esgota as regras à sua dis-
posição, ele possui o poder discricionário, no sentido de que ele não está
obrigado por quaisquer padrões derivados da autoridade da lei, como se
os padrões jurídicos que não são regras e são citados pelos juízes não im-
pusessem obrigações a estes (DWORKIN, 2002). Para superar essa dis-
cricionariedade judicial, Dworkin dispõe sobre a existência de princípios
como norma jurídica, os quais dariam as respostas certas aos casos difíceis
de modo a eliminar essa vagueza presente nas regras:

A doutrina positivista do poder discricionário (no sentido forte)


exige essa concepção de obrigação jurídica, pois, se um juiz tem o
poder discricionário, então não existe nenhum direito legal {right)

122
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

ou obrigação jurídica -nenhuma prerrogativa- que ele deva reco-


nhecer. Contudo, uma vez que abandonemos tal doutrina e trate-
mos os princípios como direito, colocamos a possibilidade de que
uma obrigação jurídica possa ser imposta por uma constelação de
princípios, bem como por uma regra estabelecida. Poderemos en-
tão afirmar que uma obrigação jurídica existe sempre que as razões
que sustentam a existência de tal obrigação, em termos de princí-
pios jurídicos obrigatórios de diferentes tipos, são mais fortes do
que as razões contra a existência dela. (DWORKIN, 2002, p. 71).

Dworkin se distancia da ideia de um Direito determinado pelas


vontades pessoais dos juízes e privilegia um Direito íntegro e coerente,
fundado em princípios constitutivos da sociedade, com intérpretes que
estejam comprometidos com a história institucional. O juiz, portanto,
possui responsabilidade política e o dever de manter essa integridade
jurídica. Para ele, a interpretação da norma vai muito além de descobrir
a intenção pessoal do intérprete, mas também descobrir suas verdadeiras
intenções históricas:

A interpretação criativa vai buscar sua estrutura formal na ideia de


intenção, não (pelo menos não necessariamente) porque preten-
de descobrir os propósitos de qualquer pessoa ou grupo histórico
específico, mas porque pretende impor um propósito ao texto,
aos dados ou às tradições que está interpretando. (DWORKIN,
1999, p. 275).

Nesse sentido, Dworkin (1999) compreende os juízes como igual-


mente autores e críticos do Direito, faz uma comparação entre literatura
e direito dispondo sobre a metáfora do romance em cadeia, entendendo
que um juiz que decide introduz acréscimos na tradição que interpreta e
que essa nova tradição será apresentada aos futuros juízes. Para ele, a inter-
pretação é construtiva, realizada em diálogo com a história, em oposição
a uma atividade isolada e ilimitada do juiz. No Direito como integridade
as proposições jurídicas serão verdadeiras se constarem, ou derivarem, dos
princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a me-
lhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

É inegável a contribuição de Dworkin para as críticas à discriciona-


riedade e, consequentemente, para o fortalecimento da autonomia do Di-
reito. Essa crítica ganha densidade por sua defesa à resposta correta no
Direito, a qual propõe um caminho entre o subjetivismo e o objetivismo,
uma vez que o juiz não poderá desviar de suas responsabilidades por ar-
gumentos resultantes de uma concepção subjetiva e nem fundamentado
em uma objetividade isolada. Alega que “[…] mesmo nos casos difíceis, é
razoável dizer que o processo tem por finalidade descobrir, e não inventar,
os direitos das partes interessadas e que a justificação política do processo
depende da validade dessa caracterização.” (DWORKIN, 2002, p. 430).
Lenio Streck, em sua crítica hermenêutica do Direito, denomina a res-
posta correta como a resposta adequada à Constituição, utilizando os ensi-
namentos de Dworkin e Gadamer, para dar reforço às pretensões contrárias
ao relativismo e à discricionariedade judicial. Atento às diferenças entre o
sistema jurídico da common law e da civil law, Lenio aderiu à tese dworkiana,
adequando-a às peculiaridades brasileiras, visto que, enquanto em Dworkin
a indeterminação de regras jurídicas obriga a recorrer a direitos ou a argu-
mentos principiológicos que se encontram fora da ordem jurídica positiva,
no Brasil, diante de Constituição que abarca em seu texto um conjunto
principiológico no qual contém a cooriginariedade entre Direito e moral, o
discurso moral-principiológico não vem de fora para atuar como “correti-
vo” para os “impasses” interpretativos (STRECK, 2011).
A partir da leitura hermenêutica de Gadamer, o ato interpretativo não
pode ser cindido — primeiro conheço, depois interpreto e só depois apli-
co. Interpretar o texto é dar concretude a ele, é também aplicá-lo, é um
processo sempre produtivo, consistindo na atribuição de sentidos. Gada-
mer ainda relaciona a applicatio com pré-compreensão, ao fundamento de
que sempre há um sentido antecipado. Assim, ele indica que a aplicattio
significa que o intérprete desde sempre está operando com esse conjunto
de elementos e categorias que o levam à compreensão. De acordo com
Gadamer, para compreender um texto, o intérprete deve deixar que o
texto lhe diga algo (STRECK, 2011).
E é nesse encalço em que Lenio formula a sua teoria e endossa que
a resposta adequada será alcançada pela interpretação — a qual só ocorre
na applicatio — que se estabelece dentro de um caráter intersubjetivo da

1 24
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

linguagem, o qual surge a partir de um a priori compartilhado, sempre


com um sentido histórico, com uma dimensão retrospectiva. Para ele, a
busca pela resposta correta não é uma construção arbitrária do intérprete,
como se o sentido atribuído à norma pudesse vir de um ato de vontade
que despreza seu sentido histórico e social e seu processo de consolidação:

Na hermenêutica, o círculo hermenêutico “atravessa” a com-


preensão antes que o sujeito pense que se assenhora da interpreta-
ção e dos sentidos. Por isso, a resposta correta que sempre pode e
deve ser encontrada não reside no juiz/intérprete como sujeito do
“esquema sujeito-objeto”, mas, sim no juiz/intérprete da relação
de compreensão baseada na intersubjetividade (sujeito-sujeito).
Assim, o ponto fulcral não é quem dá a resposta correta, mas como
esta se dá. (STRECK, 2011, p. 386).

Essa leitura demonstra o quão complexa é a atividade do intérprete. A


função interpretativa não está desconexa nem isolada do texto e do con-
texto, restando apenas o alvedrio do juiz. A dedicação à resposta correta
não pode ser a qualquer resposta que leve a um relativismo ilegítimo, mas
necessita de um compromisso com a coerência e a integridade e uma res-
ponsabilidade com o ato de criar o Direito.
A preservação da autonomia do Direito depende desse comprometi-
mento do intérprete, pois as balizas interpretativas não estão condiciona-
das à livre apreciação pessoal do juiz. A posição de julgador não confere,
por si só, autoridade para alterar os limites impostos pelo corpo norma-
tivo que inspira legitimidade, sendo confundida com a função legislativa.
Respeitar a sua autonomia implica uma jurisdição comprometida com os
critérios jurídicos e com a deslegitimação de julgamentos arbitrários.

3. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA MORAL NO DIREITO:


A PREDOMINÂNCIA DA NORMA JURÍDICA SOBRE A
MORAL INDIVIDUAL

Teses positivistas recusaram fundar suas epistemologias numa racio-


nalidade que desse conta do agir propriamente dito e, como alternativa,
estabeleceram um princípio fundado em uma razão teórica pura, através

125
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

do qual passou a ser visto como um objeto analisado segundo critérios


emanados de uma lógica formal rígida. E esse objeto seria produto do pró-
prio sujeito do conhecimento e daí o papel do sujeito solipsista. Na pre-
tensão de oferecer um método seguro para a produção do conhecimento
científico do Direito, acabou por invocar uma aposta numa racionalidade
teórica asfixiante que isolava todo o contexto prático de onde as questões
jurídicas realmente haviam emergido (STRECK, 2011).
A controversa cisão entre Direito e moral evidencia um distancia-
mento entre a faticidade —a realidade social— e a teoria do Direito,
confiando a resposta final a um ato de vontade do intérprete. Nessa linha
de pensamento, um caso de omissão legislativa ou casos difíceis em que
há uma impossibilidade de subsunção do fato à norma encontra abertura
para comportamentos desvinculados de limites ou controles. Mas essa
perspectiva é absolutamente incompatível com um sistema que inspira
legitimidade.
É nesse sentido em que Habermas (1997) defende a tese da coorigi-
nariedade entre Direito e moral, desfazendo esta lógica de separação entre
a razão teórica e a razão prática. Para ele, a autonomia moral e política são
cooriginárias e analisadas com o auxílio de um princípio do discurso, o
qual possui um conteúdo normativo, uma vez que explicita o sentido da
imparcialidade de juízos práticos, mas também se encontra em um nível
de abstração, que apesar desse conteúdo moral ainda é neutro em relação
ao direito e à moral, pois se refere a normas de ação em geral.
Lenio (2011) dispõe que essa contribuição de Habermas para o Di-
reito reforça a sua autonomia, pois a moral regula o comportamento in-
terno das pessoas, mas sem força jurídico-normativa, enquanto o Direito
que possui força vinculativa recebe conteúdos morais quando de sua ela-
boração legislativa. Argumenta que é por isso que o Estado Democrático
de Direito não admite discricionariedade nem para o legislador, que está
vinculado à Constituição, nem para o julgador, pois a decisão judicial se
encontra racionalizada na lei, ou seja, sob o comando da Constituição e
não sob o comando das injunções pessoais-morais-políticas do juiz ou
dos tribunais.
Com a democratização dos Estados modernos o Poder Judiciário
assumiu importantes mudanças em suas competências institucionais.

126
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Diante da preocupação do Direito com a realização dos direitos pro-


metidos, aquele ordenamento jurídico indiferente a valores morais,
com caráter meramente retórico, mostrou-se incompatível com os
movimentos constitucionais que se desenvolveram. A Constituição se
estabelece como o centro do sistema jurídico, não apenas como um
documento descritivo ou deontológico, mas como um documento de
especial relevância e peso normativo, o qual incorpora princípios subs-
tantivos e materiais e, com isso, fortalece sua normatividade jurídica e
projeta sua concretização.
O constitucionalismo está diretamente ligado ao movimento de am-
pliação do Poder Judiciário. Tem-se uma Constituição que, para além
de pretensões de limitação de poderes, institucionaliza demandas subs-
tantivas e impõe mudanças estruturais nas funções dos poderes estatais.
Ademais, diante das alterações políticas e sociais as quais demonstraram a
fragilidade das instituições e, consequentemente, um ceticismo em rela-
ção aos seus propósitos, o Judiciário se destacou como guardião dos com-
promissos constitucionais e protetor das expectativas sociais.
Nessa perspectiva, o jurista Antoine Garapon (1999), ao analisar o
fenômeno da ampliação de poderes do juiz, considera-o como terceiro
imparcial que compensa o déficit democrático da atuação ineficiente dos
demais poderes políticos:

O sucesso da justiça é inversamente proporcional ao descrédito que


afeta as instituições políticas clássicas, causado pela crise de desin-
teresse e pela perda do espírito público. A posição de um terceiro
imparcial compensa o ‘déficit democrático’ de uma decisão polí-
tica agora voltada para a gestão e fornece à sociedade a referência
simbólica que a representação nacional lhe oferece cada vez menos.
(GARAPON, 1999, p. 48).

Reconhecer o Judiciário como o guardião de promessas da Cons-


tituição revela seu papel como órgão capaz de garantir a realização das
pretensões democráticas do Estado. Entretanto, o protagonismo judicial,
isento de limites e controles, expõe o Direito a abusos e excessos de poder
e coloca em perigo o equilíbrio com os demais poderes constitucionais.

127
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

O renovado papel e as substanciais responsabilidades atribuídas ao


órgão Judiciário contribuíram para que este assumisse posturas mais ati-
vistas e discricionárias, por vezes marcadas pelo desprezo à legislação
democraticamente concebida e, por conseguinte, aos preceitos cons-
titucionais. Entretanto, o processo interpretativo legitimamente com-
preendido não encontra seus limites na subjetividade judicial, mas sim
na coerência com os princípios e preceitos incorporados pelo Direito de
forma constitucional.
A institucionalização da moral através dos princípios na Constituição
sustenta sua normatividade jurídica no sentido de conduzir à imperativi-
dade da concretização e da realização dos direitos previstos para a socie-
dade. Essa cooriginariedade não se mantém pelos poderes arbitrários do
juiz, sem possibilidades de precisar de uma resposta correta, mas se fun-
damenta em um conteúdo estrutural do texto jurídico. A incorporação
desses conteúdos axiológicos em seu texto indica que as escolhas políticas
já foram densificadas e cabe ao juiz, diante do caso concreto, intermediar
entre as intencionalidades problemáticas da lide e o sistema jurídico eleito,
desprezando seus julgamentos morais individuais.
O magistrado, diante de um conflito no caso concreto, deve estar
apto a dizer qual a norma a ser aplicada, qual o direito foi desrespeitado
e qual a resposta adequada à situação. Mas isso não pode significar que
ele integra um sistema jurídico simbólico e sem autoridade normativa, o
qual lhe dá o poder de julgar desprezando escolhas políticas daqueles que
estão legitimados a esta função. Isso demonstra a importância de um olhar
cuidadoso sobre a criação do Direito e sobre a interpretação judicial, uma
vez que apenas conhecendo as fronteiras de sua atividade e a amplitude de
sua responsabilidade institucional serão produzidas decisões judiciais com
respeito à legalidade e à separação de poderes, sem desprezar a importân-
cia de aperfeiçoamento diante das demandas da sociedade.

CONCLUSÃO

Diante das análises realizadas neste trabalho, é possível perceber a


inevitável e importante atividade criativa do Judiciário, a qual veio trazer
um equilíbrio com os demais poderes e um fortalecimento à autono-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

mia do Direito. Mas esse caráter criativo pode, por vezes, conduzir a
um sentido oposto e levá-lo para um caminho de protagonismo judicial
através de condutas ativistas e uma “politização” do juiz, o que ameaça
a ordem democrática.
Por conta disso, é fundamental entender os limites e os compromissos
assumidos pela jurisdição para que ela cumpra legitimamente a sua fina-
lidade. Entender a complexa função interpretativa não como um simples
exercício de subsunção, mas como um ato que, dentro de uma intersub-
jetividade, revela o sentido contido na norma e com importante responsa-
bilidade na criação do Direito é o caminho para se proteger de solipsismos
e julgamentos arbitrários.
Ademais, com a institucionalização de conteúdos morais o sistema
jurídico passou a orientar-se também por princípios que trazem uma
carga axiológica ao Direito, permitindo uma atuação jurisdicional me-
nos engessada, porém sem desprezar a retidão aos anseios jurídicos. Essa
cooriginariedade do Direito e da moral, portanto, vai em sentido oposto
à arbitrariedade, pois se fundamenta justamente na racionalidade dos pre-
ceitos constitucionais.
Necessita-se de um olhar atento não apenas ao Direito positivado,
ao conteúdo semântico das normas, mas também à interpretação do
Direito pelos magistrados. O processo criativo não se encontra limi-
tado pela subjetividade judicial, mas pela coerência com os limites e
mandamentos incorporados pelo sistema jurídico. E este sistema que
se pretende legítimo não se apresenta apenas como uma disposição
simbólica e sem força normativa, longe disso, é o parâmetro funda-
mental para a criação do Direito.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Mário Pimentel. O órgão jurisdicional e a sua


função: Estudos sobre a ideologia, aspectos críticos, e o controle do
Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 1997.

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de filosofia do


direito. Tradução Mácio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues.
São Paulo: Ícone, 1995.

129
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sérgio An-


tônio Fabris, 1999.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Nelson


Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz


Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Di-


reito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das pro-


messas. Tradução Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan,
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HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre facticidade e vali-


dade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêu-


tica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

130
AS RELAÇÕES DE PODER E A
LEGITIMIDADE REPRESENTATIVA
LEGISLATIVA
Arthur Bezerra de Souza Junior18
Ronaldo de Oliveira Jarnyk19

INTRODUÇÃO

Os conflitos de poder sempre estiveram presentes nas relações huma-


nas, em especial naquelas tocantes ao exercício da captação ou cooptação
de adeptos, com o objetivo de manutenção ou ampliação de influências
nas estruturas institucionais, seja na vida pública ou privada. Não há ne-
nhum registro ao longo da História de qualquer organização social e hu-
mana que tenha prescindido do poder para seu estabelecimento, organi-
zação e subsistência.

18 Doutor em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.


Mestre em Direito Constitucional pela Uninove. Especialista em Direito Processual pela
Unisul. Professor da Pós-graduação Lato Sensu em Direito Processual Civil da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Professor de Direito Constitucional e Direito Processual Civil na
UNIP e UNINOVE. Advogado.
19 Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Especialista em Administração de Empresas pela PUC-SP. Bacharel em Direito e Propaganda
e Marketing pela UNIP. Professor em Cursos de Pós-Graduação e MBA de Gestão, Brand e
Varejo de consumo da FIA (Fundação Instituto de Administração). Advogado.

131
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

O exercício do poder se dá pela atuação humana, quer seja de forma


individual ou colegiada, o que o confere, por vezes, equívocos ou omis-
sões, dada a falibilidade inerente à natureza do Homem. Isso acaba por
denegar àqueles submetidos ao detentor do poder sua exposição a situa-
ções de vulnerabilidade ou de indignidade, o que desequilibra as relações
sociais harmônicas e pode acarretar a sucumbência de tal grupo ou na sua
revolta para a tomada do poder. A revolta desencadeada para a tomada do
poder por parte dos comandados é resultado da perda de legitimidade do
detentor do poder junto ao grupo social que ele representa ou que tenha
deles sua confiança.
Amparando-se em fundamentos da Ciência Política, da Filosofia e
do Direito, o presente trabalho busca analisar, ainda que de maneira in-
cipiente e rápida, o distanciamento dos representantes legislativos e dos
eleitores por estes representados mediante o exercício do sufrágio, que
tem gerado a perda de legitimidade para o exercício do poder a eles con-
feridos. As possíveis causas deste distanciamento, e suas consequências,
tem gerado debates no mundo inteiro, em especial no Brasil, no sentido
de se a democracia representativa, nos moldes atuais, tem desempenhado
o papel a ela conferido, que é o de salvaguardar os direitos e deveres dos
cidadãos mediante a produção legislativa e a constante revisão do ordena-
mento jurídico.
Em última análise, a perda de legitimidade dos representantes elei-
tos pode fomentar uma ruptura institucional dos cidadãos entre o Es-
tado Democrático de Direito, posto os anseios populares e, mais am-
plamente, a estrutura de separação dos poderes decorrente de lacunas
abertas de poder.

1. O PODER E AS RELAÇÕES SOCIAIS

Como já clarificado na introdução, não existe registro algum na His-


tória de relações sociais que se estabeleceram e subsistiram sem o exercício
do poder.
Com o intuito de melhor elucidar o tema aqui proposto, será feita
uma breve exposição sobre o conceito de poder e sua aplicação, de forma
a visar sua correlação posterior com a organização do Estado e a atuação

132
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

dos cidadãos mediante a democracia representativa, característica impressa


na grande maioria das democracias do ocidente.
Conceitualmente, poder é o exercício ativo do ser humano, de forma
individual ou coletiva, com possibilidade de gerar algum impacto, direto
ou indireto, no comportamento de um grupo ou sobre algum elemen-
to natural. Na definição de poder proposta por Bobbio (1998) há uma
segmentação feita pelo filósofo de maneira que há o poder oriundo da
natureza e o poder social, como se depreende abaixo:

Definição - Em seu significado mais geral, a palavra Poder designa


a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos. Tanto
pode ser referida a indivíduos e a grupos humanos como a objetos
ou a fenômenos naturais (como na expressão Poder calorífico, Po-
der de absorção). Se o entendermos em sentido especificamente
social, ou seja, na sua relação com a vida do homem em sociedade,
o Poder torna-se mais preciso, e seu espaço conceptual pode ir
desde a capacidade geral de agir, até à capacidade do homem em
determinar o comportamento do homem: Poder do homem sobre
o homem. (BOBBIO, 1998, p. 933).

Para melhor contextualização do tema proposto, torna-se fundamen-


tal se ater apenas ao impacto do exercício do poder dentro das esferas so-
ciais, em especial naquelas integrantes da atuação do Estado e seus cida-
dãos, o que para Bobbio se reflete no “poder do homem sobre o homem”.
O exercício do poder do homem sobre o homem remonta os primór-
dios da humanidade, como fator primaz do estabelecimento local, da
sobrevivência e da defesa de grupos hominídeos. O uso da força atuava
como elemento garantidor de imposição de ordem e delimitação de posse
sobre grupos mais vulneráveis ou mais fracos. O poder é um elemento
intrinsicamente relacionado à cultura do grupo social a que se refere, me-
diante o que é valorado como quesito basilar para a organização ou origem
do grupo social.
Reinaldo Dias, em sua obra Ciência Política (2013, p. 29), explana
sobre o vínculo do exercício do poder e as características culturais
dos grupos, de modo que o exercício do poder pode migrar da prá-

133
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

tica de força física para a prática espiritual se tal valor exercer maior
influência sobre esse grupo. Assim, o detentor do exercício do poder,
no caso citado acima, deixaria de ser um militar e passaria a ser um
sacerdote, já que o valor religioso tem preponderância no valor social
para este grupo.
Pode-se depreender, neste caso, que para que um grupo confira o
exercício do poder a uma determinada pessoa ou colegiado, é necessário
que haja legitimidade confiada pelos comandados ao comandante. Bo-
bbio (1998, p. 675) define legitimidade fracionando em dois conceitos,
um genérico e outro específico. O significado genérico, para o pensador
italiano, trata-se daquele que é imbuído de racionalidade e justiça e, assim,
garante legitimidade de uma ação ou atitude. Em contrapartida, o sentido
específico de legitimidade refere-se à linguagem política, um atributo do
Estado de assegurar, de forma consensual por parte representativa da po-
pulação, o dever de obedecê-lo sem que, para isso, tenha que se valer do
uso da força.
Assim, no caso acima, a legitimidade posta neste ponto é a de
significado genérico. Já o significado específico definido por Bobbio,
identificado pela estrutura e pela atuação do Estado, será aprofundado
adiante, quando abordada a legitimidade representativa na esfera do
Poder Legislativo.
Em complemento ao que foi exposto até aqui, cabe a citação de Rei-
naldo Dias (2013, p. 31) em referência ao pensamento do sociólogo Par-
sons, a qual diz:

Em outros termos, Parsons entende que o poder como “a capaci-


dade que a sociedade tem para mobilizar seus recursos no interesse
de seus objetivos definidos como algo sancionado de maneira mais
positiva do que permissiva pelo sistema como um todo” [...] De
forma categórica, e simplificada, afirma: “defino o poder como a
capacidade de um sistema social para mobilizar recursos para atin-
gir metas coletivas.”

É vital debruçar-se sobre as considerações feitas acima pelo autor,


pois, ao se valer da citação do sociólogo estadunidense, Talcott Parsons,

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

compreende que o exercício do poder depende de uma valoração social,


a qual amparará uma legitimidade. Legitimidade esta que está vinculada
de forma direta ao atingimento de metas coletivas, ou seja, de defesa do
interesse geral ou da maioria do grupo socialmente organizado, o qual
confere o exercício do poder.
Em completude ao que foi discriminado até agora, e como fecho des-
ta linha de raciocínio, compreende-se que o exercício do poder pressupõe
uma relação coletiva, quer seja de duas ou mais pessoas ou instituições, de
modo a suportar a força e a superioridade de um dos polos desta relação
frente à fraqueza e à submissão do outro polo (DIAS, 2013, p. 30). Com
isso estabelecido, é possível compreender que o exercício do poder só se
dá de forma completa e irrestrita quando há espaço entre aquele que o
exerce e o endosso dessa prática por aquele que se submete, gerando o vín-
culo de legitimidade para a perpetuação e reconhecimento da autoridade
daquele que age com poder.

1.1. A RELAÇÃO DO PODER E A FORMAÇÃO DO


ESTADO MODERNO

Para melhor compreender a relação entre o poder e o Estado, é im-


prescindível pormenorizar o surgimento do Estado como resultado da
manifestação de poder de um grupo específico de pessoas sobre outras,
as quais, estejam estabelecidas dentro de uma porção delimitada de ter-
ritório, mantêm entre si semelhanças culturais, entre elas, a língua. Para
melhor fundamentar este conceito, Paulo Bonavides expressa de maneira
inquestionável a obra do autor Georg Jellinek, conforme se vê a seguir:
“Estado é a ‘corporação de um povo, assentada num determinado ter-
ritório e dotada de um poder originário de mando.’ Conceito este irre-
preensível, digno sem dúvida de fazer jus ao prêmio sugerido por Bastiat.”
(BONAVIDES, 2012, p. 71).
Embora o Estado seja uma entidade intangível, ele se torna completo
a partir de outros três elementos, dois deles materiais: o território e o povo
como materiais, e o seu poder como imaterial. Os elementos território e
povo são as bases materiais para a existência do Estado, já que sua ereção
se baseia no intuito de organização de uma comunidade humana, como já

135
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

visto anteriormente. A porção territorial é o local onde este grupo pode se


estabelecer de maneira perene.
Ora, mas de nada serve haver a porção territorial, a comunidade or-
ganizada com suas respectivas características culturais próprias, se não
houver a definição de quem deverá comandar o grupo. Neste ponto é
onde reside o poder, o qual se torna fundamental, já que abarque em si a
delegação facultada à uma pessoa, ou à parte do grupo de uma comunida-
de, para que possam tomar decisões em nome da coletividade, almejando
o bem de todos os envolvidos.
Essa delegação de poder também é a forma de manutenção do es-
tabelecimento da comunidade sobre a porção territorial determinada e
constitui autoridade de representar esta comunidade perante outras co-
munidades sufragâneas, de modo a se convencionar ao conceito que parte
dos pesquisadores denominam como soberania.
Assim, há uma característica indispensável para a existência e o esta-
belecimento do Estado diante da comunidade local e além-fronteiras, que
é a centralização do poder. Afinal, para a execução com sucesso das ativi-
dades sociais, torna-se imprescindível o reconhecimento do poder de agir
do Estado, delegado pela população do território. “O fato a ser destacado
é que a soberania somente existe na medida em que se atribui, com cará-
ter exclusivo, a esfera de territorialidade da soberania e a importância que
assumem, quando da criação de um novo Estado.” (DIAS, 2013, p. 136).
A partir da citação de Reinaldo Dias depreende-se que a soberania
determina as escolhas dos governantes perante os governados e, pela va-
lidação dos governados decorrente da delegação ao governante (por um
grupo) sobre uma porção territorial, há o reconhecimento da criação de
um novo Estado pelas comunidades externas.
Para a sedimentação do poder do Estado de forma organizada, pas-
sando pela delegação de poder e estruturação das instituições necessárias
para seu bom funcionamento, pensadores passaram a designar esta delega-
ção social como contratualismo. Este conceito aparece considerando que
tal surgimento se deu com o intuito de equilibrar as relações humanas de
um grupo social específico, a partir de um ato de lógica política, delibe-
rada e racional, a fim de estabilizar a responsabilidade e a segurança das
instituições sociais.

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Em sua obra, Reginaldo Dias (2013, p. 66) traz a seguinte definição


de contratualismo: “Denominamos contratualismo à concepção segundo
a qual o Estado é o produto da decisão racional dos homens destinada a re-
solver os conflitos gerados pelo seu instinto antissocial ou para solucionar
os conflitos advindos da convivência.”.
Entre os pensadores clássicos da teoria geral do Estado, destacam-se
como contratualistas: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rou-
sseau. Cada autor defendeu um modelo estatal como sendo ideal, à luz da
época e de suas realidades particulares. Assim, tem-se o modelo absolutis-
ta (defendido por Thomas Hobbes); o liberal (defendido por John Locke);
e o democrático (elaborado por Rousseau). Entre os pontos convergentes
dos modelos propostos que contribuíram sobremaneira para o constitu-
cionalismo a posteriori, há que se frisar:

Para os três pensadores, a constituição do Estado passa pela


necessidade imperiosa de balizar as relações sociais, haja vista
que, até então, estas estavam direcionadas pelo estado de na-
tureza do homem. Dessa forma, o comportamento e o direito
natural de cada indivíduo se sobrepunha as relações já que não
havia regras positivadas que organizassem minimamente um
arcabouço jurídico;

As leis desempenham um papel fundamental e determinante para


equilibrar as relações sociais dos indivíduos. O contrato social
prescinde de uma a estruturação mínima de Estado, cujo uma vez
organizado, passa a mediar e dirimir os conflitos derivados do di-
reito natural, se valendo do poder delegado pela população;

Necessidade de segregação e divisão do poder, como forma


de embate ao modelo absolutista, implantando organismos na
composição do Estado, almejando maior isenção, imparcialida-
de, equilíbrio e segurança jurídica nas ações tomadas por aquele
que governa.

Os consensos descritos acima pautariam, posteriormente, alguns dos


elementos basilares do Estado Democrático de Direito.

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1.2. A SEPARAÇÃO DE PODERES E A DELEGAÇÃO DE


PODER

No diapasão de conter abusos do poder constituído, emerge a neces-


sidade de desconcentração do poder contido nas mãos dos monarcas como
marco dos primeiros reinos absolutistas a partir da Era das Trevas e do
Feudalismo. Especialmente no velho continente, tal necessidade fez surgir
movimentos com este apelo. Como forma de retratar que o poder emana
do povo e é este que o delega a quem vai governar, a Magna Carta Inglesa
de 1215 é considerada por muitos o marco das constituições modernas.
Isso ocorre porque ela foi o primeiro esboço do que, mais tarde, embasaria
a formação do Estado Democrático de Direito, já que estabelecia submis-
são equânime à lei, até mesmo do monarca e dos demais detentores de
poder na estrutura estatal, configurando em si a derrota de um rei.
Esta nova organização estatal passa a ter destaque na Inglaterra com a
presença de diversos movimentos e a publicação de documentos (DIAS,
2013, p.232), entre os quais se destacam: o Agreement of the Free People
(1649), o Habeas Corpus Act (1679) e o Bill of Rights (1689). O pensamento
britânico cruzou o oceano Atlântico e influenciou as primeiras organiza-
ções estatais americanas, as quais deram mais relevância aos pontos levan-
tados e influenciaram a publicação da Declaração dos Direitos da Virgínia
(1776), na qual se previu a independência dos três poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário), sua temporalidade e sua precariedade no exercício
do poder, ainda no advento do texto constitucional estadunidense.
Os episódios descritos brevemente acima foram indispensáveis para
o surgimento e o amadurecimento de institutos da estrutura do Estado,
com destaque especial à divisão dos três poderes: o Executivo, o Legisla-
tivo e o Judiciário.
Michel Temer (2015, p. 120) enfatiza que o poder do Estado é uno,
indivisível e emana do povo, portanto, não há que se falar em “poderes”.
O que há, de forma estrita, é a segmentação de responsabilidades dentre os
organismos do Estado, os quais desempenham funções específicas como
forma de manutenção do princípio de freios e contrapesos (DALLARI,
2013, p. 218). Portanto, na visão de Temer seria um equívoco denominar
de “poderes” as esferas de responsabilidades do Executivo, do Legislati-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

vo e do Judiciário, pois em consonância a este entendimento é o texto


da Constituição Federal do Brasil em seu art. 2º, caput: “São Poderes da
União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e
o Judiciário.”. Harmonia essa que prescinde a atuação sincrônica e baliza-
das pelos mesmos princípios constitucionais.
Em sintonia com o entendimento de Temer está também o pensa-
mento de Dalmo Dallari (2013, p. 214), no qual “Embora seja clássica a
expressão separação dos poderes, que alguns autores desvirtuaram para
divisão dos poderes, é ponto pacífico que o poder do Estado é uno e indi-
visível.”. A separação das responsabilidades é necessária para a organização
das atividades do Estado que, por assim, estabelece o poder e a soberania
deste através da atuação dos órgãos, sem, no entanto, romper com a uni-
dade estatal.
Os primeiros esboços de separação de poderes são citados na An-
tiguidade, passando pela Idade Média e pelos tempos modernos. Paulo
Bonavides, em sua obra Ciência Política, registra que as primeiras citações
de tal segmentação foram feitas na Grécia Antiga, mais precisamente
com Aristóteles:

Distinguiria Aristóteles a assembleia-geral, o corpo de magistra-


dos e o corpo judiciário; Marsílio de Pádua no Defensor Pacis já
percebera a natureza das distintas funções estatais e, por fim,
a Escola de Direito Natural e das Gentes, com Grotius, Wolf e Pu-
ffendorf, ao falar em partes pontentiales summi imperii, se aproxima
bastante da distinção estabelecida por Montesquieu. (BONAVI-
DES, 2012, p. 146).

Outras interpretações e inclusões foram feitas ao longo do tempo,


mas foi com o Barão de Montesquieu, em sua obra O Espírito das leis, que
tal propositura passou a ganhar destaque. John Locke, com menos noto-
riedade e reconhecimento público, apresentou-se tão moderno quanto o
quase contemporâneo Montesquieu no tocante ao conceito de separação
de poderes. Considerou em sua conceituação mais um “poder”: a prer-
rogativa. Esta, como poder estatal, concentra-se nas mãos do príncipe,
“[…] que terá também atribuição de promover o bem comum onde a lei

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foi omissa ou lacunosa.” (TEMER, 2015, p. 147), apresentando o poder


discricionário de maneira mais detalhada.
A sistematização da distribuição de responsabilidades proposta pelo
Barão de Montesquieu acabou por desenvolver uma independência entre
os responsáveis, de forma que o Estado passaria a contar com órgãos dis-
tintos e independentes entre si, mas que atuassem de forma corroborativa.
Entre as atividades observadas pelo pensador, havia distinção exata en-
tre: administrar e executar; e atos especiais relacionados à legislação. Isso
porque ambas as esferas já se faziam presentes nos Estados absolutistas e,
na grande maioria, concentravam estas atividades nas mãos do monarca.
Desta forma, tornava-se imprescindível um organismo moderador e so-
lucionador de controvérsias. Nascia a “divisão de poderes”, composta por
Executivo, Legislativo e Judiciário.
Destarte, a separação de poderes tornou-se um dogma na com-
posição do Estado Moderno, aliado aos valores democráticos que,
por muitas vezes, tem gerado desconforto e apreensão nas formas de
críticas e na afronta direta e irresponsável (DALLARI, 2013, p. 219).
Por isso, corriqueiramente os pensadores trabalham em maneiras de
melhorar a eficiência do Estado sem que isso afete a estrutura de se-
paração de poderes.
A delegação de poder feita pelos comandados remonta o contratualis-
mo, uma vez que o Estado passa a gozar de algumas competências próprias
confiadas pelos cidadãos para que possa intermediar os conflitos sociais,
entre elas destaca-se o monopólio do uso da força. Dalmo Dallari enfatiza
que o sucesso da separação dos poderes é proveniente da delegação de
poderes, a qual, apesar de ter sido vista com certa reserva no princípio,
hoje permeia como elemento basilar dos textos constitucionais da grande
maioria das democracias ao redor do globo:

Recebida de início com muitas reservas e despertando forte resis-


tência, a delegação de poderes, sobretudo a delegação de poder le-
gislativo, foi aos poucos penetrando nas Constituições. Atualmen-
te, superada já a fase de resistências, admite-se como fato normal a
delegação, exigindo-se apenas que seja limitada no tempo e quanto
ao objeto. (DALLARI, 2013, p. 220).

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

É a delegação feita por meio da representação, seja pelo exercí-


cio do sufrágio de forma direta ou indireta, que além de conceder
o poder ao eleito, manifesta a vontade plena do eleitor e seu poder.
Também prevê a limitação temporal de sua representação a fim de
possibilitar outro fator preponderante da democracia: a alternância
de poder, para que outros grupos possam ascender em outro momen-
to (SILVA, 2014, p. 362).

2. REGIME DE GOVERNO E O PODER LEGISLATIVO

A democracia, concebida ainda de forma rudimentar pelos gregos, é


o regime de governo que mais se perpetuou na História, pois é um “[…]
instrumento de realização de valores essenciais de convivência humana
[…]” por traduzir as necessidades básicas do Homem e sua valoração so-
cial. Nesse sentido, a democracia “[…] revela um regime político em que
o poder repousa na vontade do povo.” (SILVA, 2014, p. 128). Por isso não
se pode considerar a democracia como um valor estático, mas como um
elemento em constante movimento, que resulta em responder aos anseios
do povo e deve ser frutificada na representação popular e na delegação de
poderes aos eleitos pela manifestação livre e plena do voto. Assim, pode-se
concluir que o Poder Legislativo, ao menos até este momento, é o único
sistema que ainda possibilita, ou ao menos deveria possibilitar, a represen-
tação popular de forma irrestrita.
Ao considerar o conceito de separação dos poderes proposto por
Montesquieu, pode-se definir o Poder Legislativo como o ente governa-
mental da estrutura do Estado responsável pelas funções legislativas (ela-
boração de leis) e pela fiscalização da atuação do Poder Executivo (pres-
tação de contas e legislação orçamentária). Entre suas funções atípicas, o
parlamento pode julgar determinados entes do Estado, a depender da pre-
visão constitucional, e administrar as casas legislativas, com a contratação
de pessoal e compra de materiais, por exemplo.
A depender do modelo adotado pelo país o sistema parlamentar ou
o Poder Legislativo pode ser bicameral ou unicameral. Em particular, o
sistema brasileiro é o bicameral, composto por duas casas legislativas, tais
quais: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

A Câmara dos Deputados é “[…] o ramo popular do Poder Legisla-


tivo federal […]”, composta por “[…] representantes do povo, eleitos em
cada Estado.” (SILVA, 2014, p.514) pelo sistema de votos proporcionais,
totalizando quinhentos e treze deputados com mandatos de quatro anos.
Já o Senado Federal, tido como a Câmara Alta brasileira, é convencionada
como a câmara de representação dos Estados federados, onde cada ente
federado elege três representantes com mandatos de oito anos, com alter-
nância de um terço e dois terços a cada quatro anos (art. 41 da CF). Todos
são eleitos pelo voto majoritário e totalizam oitenta e um senadores.
Vale ressaltar que dentro do sistema legislativo brasileiro não há so-
breposição, exceto pela primazia da iniciativa legislativa popular ou de
outros entes do governo, que deverão iniciá-la na Câmara dos Deputados.
Com exceção dos senadores, os quais se valerão da própria casa para pro-
positura legislativa.

A legitimidade é a legalidade acrescida de sua valoração. E o critério


que se busca menos para compreender e aplicar do que para aceitar
ou negar a adequação do poder às situações da vida social que lhe é
chamado a disciplinar [...] A legalidade de um regime democrático,
por exemplo, é o seu enquadramento nos moldes de uma consti-
tuição observada e praticada: sua legitimidade será sempre o poder
contido naquela constituição, exercendo-se de conformidade com
as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante, no
caso, a ideologia democrática. (BONAVIDES, 2012, p. 121).

A partir da citação acima, compreende-se que a legitimidade do exer-


cício do mandato do parlamentar é fruto de dois fatores: a confiabilidade
depositada pelo eleitor para o desempenho de sua função; e previsão legal,
mas essencialmente constitucional, que delimite o tempo de atuação e as
regras gerais de sua função.
No caso brasileiro, a Câmara dos Deputados, a priori, é composta por
sistema de distribuição de cadeiras que considera a demografia de cada ente
federado, devendo ser revisitada pela Justiça Eleitoral a cada ano anterior ao
pleito. O texto constitucional, em seu art. 41, §1º, determina que, embora
não haja um número fixo total de deputados, cada estado não poderá con-

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

tar com menos de oito e mais de setenta deputados. Ora, o fato é que ao
relacionar o voto recebido por cada representante frente ao total da popu-
lação do estado, verificar-se-á que um estado com “[…] quatrocentos mil
habitantes terá apenas oito representantes, enquanto um de trinta milhões
terá apenas setenta, o que significa um Deputado para cada cinquenta mil
habitantes para o primeiro e um para quatrocentos e vinte e oito mil e qui-
nhentos e setenta para o segundo.” (SILVA, 2014, p. 515). Com esse exem-
plo, é nítido não estar diante de um regime proporcional, mas estritamente
desproporcional, no qual a Câmara dos Deputados não se traduz em um
espelho fiel à demografia do povo, revelando um déficit representativo.
Os desequilíbrios representativos e de interesses perpassam uma va-
loração cultural, por vezes oculta pelas cortinas dos bons valores, mas que
acabam por se escancarar na prática legislativa, conforme explicita Fernan-
do Henrique:

A crise que estamos vivendo é a crise de uma matriz cultural que


vem de longe: o público a serviço do privado [...] quando eu esta-
va no governo, dizia que brigávamos para subordinar o atraso no
Congresso a nossos propósitos modernizadores. O “atraso” são os
valores e as práticas do clientelismo, corporativismo e do patrimo-
nialismo. (CARDOSO, 2018, p. 35).

Vale ressaltar que o Congresso nada mais é do que o espelho de uma


parcela populacional. Portanto, a análise do ex-presidente é pertinente ao
dizer que a crise de representatividade que se instala no sistema político
brasileiro é oriunda de uma matriz cultural, por vezes não explícita nas
relações privadas, mas que se clarifica na vida pública uma vez que o eleito
deixa de agir institucionalmente para dar prerrogativa aos interesses pes-
soais e particulares, levando mais a uma ruptura dos valores éticos do que
necessariamente dos valores sociais.

3. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE E A PERDA DA


LEGITIMIDADE

Como já abordado incialmente, a estrutura do Estado moderno está


amparada no emprego do poder confiado pela população e na sua legi-

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

timidade. No entanto, mesmo no regime democrático no qual a unani-


midade inexiste, a legitimidade do exercício do poder do representante
eleito está amparada em dois fatores preponderantes: a) a previsão legal no
ordenamento jurídico; e b) o vínculo do representante no atendimento
das demandas feitas pelos representados.
Fernando Henrique Cardoso, em sua obra Crise e reinvenção da polí-
tica no Brasil, faz uma abordagem de elementos influenciadores diversos
que tem minado o sistema democrático representativo, como é possível
ver a seguir:

A democracia representativa é cada vez mais percebida como um sis-


tema elitista, disfuncional, minado pela corrupção, insensível às ne-
cessidades e demandas das pessoas comuns. É como se todos os go-
vernantes se equivalessem, na medida em que nenhum se revela capaz
de proteger a sociedade das crises econômicas, da extinção dos em-
pregos, da violência ou da desigualdade. (CARDOSO, 2018, p. 75).

Como já dito anteriormente, na questão estatal o poder é possibili-


dade do exercício de organização do homem sobre o homem. Mas para
este poder subsistir é necessário também a conectividade feita através da
legitimidade social, depositada pelo representado ao seu representante ali-
nhavada ao valor social. A substituição de valores sociais do cidadão por
outro valor diferente daquele em que o representante acredite propiciará,
inicialmente, uma divisão de poderes em dois núcleos distintos: os valores
dos eleitos e os valores dos eleitores. A capacidade de captação de adeptos
a cada núcleo resultará em sua manutenção, crescimento ou diminuição.
No entanto, o embate dos dois núcleos de poder tende a um exercí-
cio de esgarçamento do tecido social, pois, se de um lado o grupo social
de eleitores tem a possiblidade de ter maior número de adeptos gerando
uma ruptura com os valores pautados e não atendidos, o grupo dos eleitos
poderá ter menor número, mas subsistirá operando dentro do sistema,
amparado pela legitimidade legal a ele conferida pelo ordenamento jurídi-
co nacional. Este movimento acarreta o afastamento e o desinteresse dos
cidadãos pelo sistema político partidário, criando instituições próprias de
representação, alternativas para o atendimento das demandas represadas e
levantamento de barreiras de relacionamento institucional com a popula-
ção, o que resulta na sucumbência do sistema, na ereção de auto-organi-

144
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

zação social paralela ao Estado e, por fim, na migração do núcleo de poder


das instituições para os centros periféricos e plurais da sociedade.
Este comportamento do cidadão é resultado de um mundo moderno,
veloz, com mais informação e que produz pessoas com pensamento mais
estruturado, capazes de propor mais e não se ater a argumentos simplistas
ou sem embasamento.

O momento atual é paradoxal. O déficit cada vez mais profundo


de confiança nas instituições políticas coexiste com a emergência
de cidadãos capazes de fazer escolhas que conformam suas vidas e
o futuro de suas sociedades. Os sinais de uma disfunção grave no
funcionamento das instituições políticas são múltiplos: aumento
do abstencionismo e do voto nulo, aumento do voto em partidos
de extrema direita, ressurgência do populismo e do anseio por sal-
vadores da pátria. (CARDOSO, 2018, p. 74).

Esse novo comportamento é anotado por Fernando Henrique Car-


doso na citação acima, de forma a deixar claro que a falta de confiança das
instituições republicanas está coexistindo com o aumento de capacidade
crítica e organização da população. Certamente os anseios da população
estão vinculados ao aumento da criminalidade, das desigualdades sociais,
da capilarização do crime organizado, da intolerância religiosa e imigra-
tória, e das ações terroristas, todos diante das portas de cada cidadão e,
muitas vezes, parece ser ignorado pelo Estado constituído.
Sabiamente observado por Fenando Henrique, o atual descolamento
das instituições representativas políticas e do Estado talvez seja incapaz de
representar a nova sociedade que emerge, além disso, “[…] o novo não se
vislumbra; ou, acrescento, se vislumbrado, não é reconhecido.” (CAR-
DOSO, 2018, p. 76).
No entanto, é necessário deixar registrado que não há problemas no
funcionamento do modelo representativo brasileiro, o qual se mostra eficaz
quando há convergência entre a agenda majoritária política e o anseio da
população, como foi possível ver na votação do Plano Real, denominado
de “momentos de dominância programática”. O problema reside quando a
agenda programática cede espaço às práticas espúrias do “[…] clientelismo,

145
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contribuindo para aumentar as desigualdades por meio da alocação envie-


sada de recursos públicos e implementação diferenciada das políticas públi-
cas.” (ABRANCHES, 2019, p. 364). Essa postura das instituições políticas
de se distanciarem das reais necessidades sociais é que gera revolta da popu-
lação, distanciamento e desvinculação de seus representantes.
A Constituição cidadã trouxe respostas a muitas demandas sociais
que não eram atendidas antes de 1988. Mas foi também este mesmo texto
constitucional que fortaleceu a atuação do Poder Legislativo, com prer-
rogativas fiscalizadoras diante do Poder Executivo, no entanto prevendo
a cooperação entre eles (ABRANCHES, 2019, p. 366). Por vezes o de-
sequilíbrio dessa relação acaba por gerar rotas de colisão, sanadas somente
na esfera judicial, o que traz ao cenário mais um ator, o qual tem desem-
penhado papel de grande destaque nos últimos anos na atuação da política
nacional: o Poder Judiciário. Até aqui, nenhum problema. A questão é: se
por um lado, representantes eleitos têm gerado rupturas com o eleitorado,
mesmo sabendo do risco ao capital político que isso consome, o que se
dirá dos magistrados, os quais podem tomar medidas, por vezes extremas,
sem qualquer apego ao posicionamento da sociedade?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Amparado pela doutrina e pelo pensamento de diversos autores cita-


dos ao longo do texto, pode-se concluir que o exercício da representação
político-partidária é um dispositivo essencial para o exercício pleno dos
direitos políticos positivos e elemento basilar para constituição das demo-
cracias do mundo.
Analisando os conceitos de poder e sua delegação, advindos ainda
como herança dos contratualismos da Idade Moderna, constata-se que, no
atual momento, há uma relevante ruptura entre os matizes de valores so-
ciais frente à perspectiva de atuação dos parlamentares, desvinculando os
interesses coletivos das políticas públicas aprovadas no Parlamento. Assim,
lançando mão de técnicas interpretativas, os magistrados buscam exercer o
papel do legislador para garantir o cumprimento do texto constitucional e
de seus respectivos direitos fundamentais, de forma a devolver a população
seus direitos, desviados na atuação parlamentar.

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No entanto, esta atuação desconexa entre Parlamento e cidadãos tem


aprofundado uma crise de identidade representativa, de modo a esvaziar o
papel das estruturas democráticas e esgarçar o tecido social, permeando o
terreno das relações políticas para o estabelecimento de poderes paralelos
nas estruturas sociais ou até mesmo a ruptura total do sistema democrático.
Portanto, diante desse cenário preocupante e dado as mudanças com-
portamentais da sociedade, a qual está muito mais conectada e informada,
torna-se imperiosa a recuperação do prestígio da atuação parlamentar ou,
até mesmo, o redesenho do modelo representativo democrático a fim de
que seja proposto um novo modelo que atenda os anseios da sociedade
contemporânea.

REFERÊNCIAS

ABRANCHES, Sergio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolu-


ção do modelo político brasileiro. 1. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfran-


co. Dicionário de Política. 1. ed. Brasília: Universidade de Brasí-
lia, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 20. ed. São Paulo: Malheiros,


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147
DA SOCIEDADE DISCIPLINAR E DE
CONTROLE PARA A SOCIEDADE
ALGORÍTMICA
Renato Zanolla Montefusco20
Jamile Gonçalves Calissi21

INTRODUÇÃO

Os “tempos modernos”, sombreados pela revolução informacional,


trouxeram à baila uma percepção acerca do meio em que o Homem in-
terage, a sociedade de controle. Para expor os contornos dessa moldu-
ra social é necessário observar o modo pelo qual evolui a sociedade que,
imersa em regras, funda a relação do Homem na teia social. É de suma
importância expor uma breve evolução histórica acerca do regramento
social, onde o apogeu e o declínio dos estados absolutistas monárquicos
transcenderam a novos modelos de Estados, modernos por assim dizer,

20 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da


Universidade Federal de São Carlos – PPGCTS-UFSCar. Mestrado em Direito com ênfase em
Teoria do Direito e do Estado pela UNIVEM. Especialista em Direito Civil e Processual Civil
pela UEL. Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG.
21 Pós-Doutorado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto - USP (em anda-
mento). Doutorado em Direito Constitucional, com pesquisa na área de Sistema Constitu-
cional de Garantia de Direitos, pela Instituição Toledo de Ensino (2015). Professora Univer-
sidade do Estado de Minas Gerais. Professora Mestrado em Direito e Gestão de Conflitos
da Uniara.

148
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

sob a influência do século das Luzes e do Iluminismo, inaugurando a era


dos Estados modernos, que pari passu foram acompanhados por diferentes
etapas da Revolução Industrial.
O mosaico de informações acima exposto contribuirá para desnu-
dar percepções de instituições disciplinares e dispositivas de segurança na
teia social. Fato é que a historicidade da sociedade, baseada no impulso
“industrial”, estabelece parâmetros essenciais para se cortejar expressões
como pré-modernidade, modernidade e (pós)modernidade como retóri-
ca aos avanços sociais impingidos pela industrialização e contínua evolu-
ção que carreia problemas típicos da modernização, como será observado
no decorrer do presente estudo.
Neste diapasão, é de mais valia inclinar os olhares para a Revolução
Industrial, subdividida em três grandes momentos históricos — primeiro
período (1760 a 1850), segundo período (1850 a 1950) e 1950 até dias
atuais (HOBSBAWM, 2015, p. 79) — que descortinou um processo
evolutivo da sociedade sem precedentes. A substituição da manufatura
pela maquinofatura, os processos evolutivos da tecnologia e, por fim, a
revolução tecno-científica são atributos para a explosão demográfica, o
surgimento de grandes centros urbanos e a formação de cadeias de pro-
dução e consumo em larga escala; em particular, é observado o “salto” da
sociedade analógica à sociedade da informação, imersa na virtualização
das relações.
Entrementes, diante da breve exposição evolutiva acima evidenciada,
a sociedade não deixou de balizar suas condutas tendo como paradigma
o aforismo atribuído ao jurista romano Ulpiano (170 – 228 d.C.), como
lembrado no Corpus Iuris Civilis, onde afirmava que onde estivesse o Ho-
mem, haveria sociedade; onde houvesse sociedade, haveria Direito, ou
seja, “ubi homo ibi societas; ubi societas, ibi jus”. Com base nesta reflexão
serão expostos argumentos sobre a sociedade disciplinar, a qual por for-
ça da evolução natural do Homem se desdobra em novas percepções, as
quais ultimam a figura da sociedade de controle que, exposta aos avanços
tecno-científicos, é afrontada com típicos “problemas da modernização”
(BECH, 2011, p. 26), os quais evidenciam nova modelagem para a socie-
dade algorítmica.

149
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

1. EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE IMERSA EM REGRAS

“Onde está o Homem, há sociedade; onde há sociedade, há Direito”.


Evidenciado como argumento introdutório, é exposto como um pressu-
posto importante a ser observado na contextualização da nominada socie-
dade disciplinar, quiçá sociedade de controle e algorítmica. Entretanto,
breve contextualização histórica do Direito se faz necessária, para tan-
to, são observados argumentos pontuais não exaurientes que corroboram
como aportes epistemológicos à pesquisa, tendo como ponto de partida
breve percepção sobre a evolução do regramento social.

1.1. EVOLUÇÃO DO REGRAMENTO SOCIAL

A percepção do que seja “regra social” permeia a própria evolução


do Homem em sociedade. Miguel Reale (2002, p. 5), em sua obra Li-
ções Preliminares de Direito, afirma que existe no comportamento humano
“[…] a presença, embora indireta, do fenômeno jurídico: o Direito está
pelo menos pressuposto em cada ação do homem que se relaciona com
outro homem.”.
O Homem imerso no contexto social atende a parâmetros mínimos
de coexistência “pacífica”, infere-se neste ponto a questão da suportabili-
dade, ao considerar a mitigação do pensamento hobbesiano que exprime a
ideia de que no estado de natureza o Homem pode todas as coisas. Popu-
larizada por Thomas Hobbes, na obra Leviatã (1651), a expressão “Lupus
est homo homini lúpus”, advinda de Plauto (254-184 a.C.), em sua obra
Asinaria, como restou evidenciado no dicionário de provérbios francês,
português e inglês, significa “o homem é o lobo do homem” (DE LA-
CERDA et al., 2003, p. 279), o que representa a ideia de que a natureza
humana era regida pelo egoísmo e pela autopreservação.
Fato é que, diante de um necessário corte metodológico, o convívio
social estabeleceu aqueles parâmetros mínimos de coexistência onde a
natureza egoística e preservacionista do Homem foi diluída no seio so-
cial. Sob este enfoque, a intuição de Dante Alighieri brindou a sociedade
em franca evolução com o pensamento “jus est realis ac personalis hominis
ad hominem proprtio, qua servata servat societatem; corrupta, corrupti” (REA-

150
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

LE, 2002, p. 60), ou seja, “O direito é uma proporção real e pessoal, de


homem para homem, que conservada, conserva a sociedade; corrompi-
da, corrompe-a.”.
Ao expor o pensamento de Dante cabe esclarecer que a “relação” evi-
denciada desnuda a noção de proporção, uma medida propriamente dita,
e nesse sentido o Direito como regramento social estabelece uma pro-
porcionalidade entre os Homens, na qual, quando respeitada, se obser-
varia uma harmonia social ou a busca de um processo de harmonização.
Entretanto, se o harmônico social for corrompido, corromperia a própria
sociedade. Insta ser mencionado que se trata de uma conceituação que
guarda grande atualidade, haja vista observar os meandros das dimensões
sociais, econômicas, políticas e até ambientais com as quais a humanidade
se depara em “tempos modernos”.
Sob esta perspectiva, a evolução do regramento social se ramifica
em percepções e contextualizações distintas com a gradativa evolução do
Homem em sociedade, que em seu percurso desagua necessariamente na
construção argumentativa do “panóptico”, da sociedade disciplinar pro-
priamente, objeto de breve apreciação a seguir.

2. SOCIEDADE DISCIPLINAR

Para insculpir argumentos acerca da sociedade disciplinar, é necessário,


inicialmente, observar a etimologia do verbete. Segundo a versão online do
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaellis (DISCIPLINA,
2021), “disciplina” estabelece a percepção inicial de instrução, ensino e
educação, mas também expõe a ideia de um regime de submissão às nor-
mas ditadas pelos superiores com o atendimento das regras e regulamentos
de uma organização, quer seja esta civil ou estatal. Em tempo, o dicionário
expôs, a título de exemplificação, que “disciplinar” é verbo transitivo di-
reito que dita submissão à obediência (DISCIPLINAR, 2021).

2.1. PARÂMETROS DISCIPLINARES DA SOCIEDADE

O cortejo da etimologia do verbete acima evidenciado é de mais va-


lia, pois como aludido anteriormente, percepções de ideais disciplinares,

151
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

quer sejam estas observadas na busca de regramentos sociais através da


expressão do pensamento de Ulpiano, quer sejam sob a ótica do Divino
Poeta, restaram evidenciadas. O fato é que “As luzes que descobriram a li-
berdade inventaram também a disciplina.” (FOUCAULT, 1991, p. 195).
É exatamente neste período histórico em que Gilles Deleuze, em sua obra
Conversações, aduz argumentos expostos por Michel Foulcault sobre socie-
dades disciplinares, afirmando que:

Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos XVIII e


XIX; atingem seu apogeu no início do século XX. Elas procedem
à organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo
não cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com
suas leis: primeiro, família, depois escola (“você não está mais na
sua família”), depois a caserna (“você não está mais na escola”),
depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a
prisão, que é meio de confinamento por excelência.” (DELEUZE,
2013, p. 223).

No contexto histórico acima evidenciado, as etapas da Revolu-


ção Industrial, bem como a ideologia sobre sociedades disciplinares, são
desnudadas a partir do século XVIII, com apogeu no XX. Grandes meios
de “confinamento” surgem onde indivíduos migram de um espaço fecha-
do a outro; fábricas, escolas, prisões e hospitais passaram a ser entendidos
como instituições disciplinares. Sendo assim, o surgimento da sociedade
disciplinar não se baseou num processo evolutivo natural do Homem
livre, muito menos pacífico; o fato é que ocorreu a mitigação daqueles
ideais Iluministas (liberdade, igualdade e fraternidade) através das nomi-
nadas “micropenalidades”. Nesse sentido, Foulcault (2013, p. 171-172)
afirma que

Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda


uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções
das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo),
da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (ta-
garelice, insolência), do corpo (atitudes ‘incorretas’, gestos não
conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). Ao

152
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de


processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras
e a pequenas humilhações.

A disciplina poderia ser observada como a decantação do Direito, da


regra social; uma metodologia que estabelece um dever para sociedades
imersas em Estados organizados, fato é que se pela mão direita são garan-
tidos os direitos, é a mão esquerda a cobradora da disciplina. O “pan-óp-
tico” (panóptico) surge nos argumentos de Michel Foulcault baseados na
ideia de uma penitenciária ideal; segundo Jeremy Bentham (1785), en-
tendia-se que um único indivíduo poderia observar todos os prisioneiros,
como se estivesse em uma torre de vigilância, sem que aqueles observados
soubessem e, com justo receio da possível vigilância, estariam compelidos
a adotar o comportamento desejado pelo vigilante, é a ideia do “olho que
tudo vê”. Desta feita, o panóptico representa uma tecnologia de poder,
onde processos de adestramento social são estabelecidos. “O esquema pa-
nóptico é um intensificador para qualquer aparelho de poder: assegura sua
economia (em material, em pessoal, em tempo); assegura sua eficácia por
seu caráter preventivo, seu funcionamento contínuo e seus mecanismos
automáticos.” (FOULCAULT, 2013, p. 170).
Assim, é possível observar que sociedades disciplinares tem metodo-
logia: (i) tecnologia de poder que se transformará num arquétipo onde “o
olho que tudo vê” é vigilante; e (ii) mecanismos de bom adestramento. O
maior valor de uma sociedade disciplinar são indivíduos dóceis e adestra-
dos socialmente por força da difusão social do panóptico. “A disciplina às
vezes exige a cerca”, afirma Michel Foucault (1991, p. 130).
O apogeu da sociedade disciplinar ocorreu no século XX, onde in-
clusive a terceira etapa da Revolução Industrial — a revolução tecno-cien-
tifica — aflora. Elementos de transmutação serão evidenciados a fim de
ser possível perceber nuances entre a sociedade disciplinar e a sociedade
de controle. Neste contexto, a ponderação de Gilles Deleuze acerca do
momento histórico é de mais valia quando então afirma que disciplinas
“[…] conheceriam uma crise, em favor de novas forças que se instalavam
lentamente e que se precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial:
sociedades disciplinares é o que já não éramos mais, o que deixávamos de
ser.” (DELEUZE, 2013, p. 223-224).
153
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Sob o condão dos argumentos acima insculpidos, uma vez que res-
taram observadas elucubrações acerca do “nascimento” da sociedade dis-
ciplinar, do seu apogeu e declínio, será observada a seguir a sociedade de
controle.

3. SOCIEDADE DE CONTROLE

Para insculpir argumentos acerca da sociedade de controle, primeiro


é necessário observar a etimologia do verbete. Segundo a versão online
do Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michaellis (CONTRO-
LE, 2021), “controle” representa o “Ato de dirigir qualquer atividade,
fiscalizando-a e orientando-a do modo mais conveniente.”; em tempo,
o mesmo dicionário, sob a ótica da sociologia, expõe o controle social
como um “Processo pelo qual uma sociedade ou grupo procura assegurar
a obediência de seus membros por meio dos padrões de comportamento
existentes.”.

3.1. O CONTROLE COMO NOVO PARÂMETRO PARA


DISCIPLINAR A SOCIEDADE

A exposição do verbete acima desnuda o contorno dos pensamentos


que serão evidenciados a seguir. Fato é que as aprendências da modernida-
de trouxeram, na contemporaneidade, mudanças sensíveis ao modelo de
sociedade. Daquela sociedade disciplinar observada por Michel Foulcault
para o que Gilles Deleuze (1992) identifica como sociedade de controle.

As sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para


trás, o que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de con-
troles, que funcionam não mais por confinamento, mas por con-
trole contínuo e comunicação instantânea, [...] São as sociedades
de controle que estão substituindo as sociedades disciplinares.
(DELEUZE, 2013, p. 220).

Da sociedade moderna “analógica” à sociedade contemporânea


“digital” são observadas nuances típicas do processo de modernização,
inclusive carreados pelo impulso ofertado pelas etapas da Revolução In-

154
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

dustrial, as quais oportunizaram profundas transformações na teia social,


como: (i) da manufatura a maquinofatura; (ii) processos evolutivos da tec-
nologia; e, por fim, aquela responsável pela alteração de paradigmas so-
ciais, (iii) a revolução tecno-científica.
A passagem da era moderna para a contemporânea ocasionou mu-
danças daquele modelo social existente no início do século XVIII. Nesse
sentido, hoje a sociedade se encontra em transição, pois ao passo que se
distancia de um encarceramento completo, um confinamento social por
assim dizer, uma forma de controle sutil, aberto, perene e fluído surge;
portanto, a sociedade de controle seria a “evolução” da sociedade disci-
plinar, como se estivesse um passo à frente da anterior. Controle “[…]
é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que
Foucault reconhece como nosso futuro próximo.”, esclarece Deleuze
(2013, p. 224).
Afirmar que a sociedade de controle está um passo adiante da so-
ciedade disciplinar não a desqualifica, ao contrário, é possível cortejar
a hipótese em que uma nova dimensão se sobrepõe à anterior de forma
simbiótica; nesse sentido, ao invés de identificar a sociedade de controle
como uma nova geração de pensamentos substitutos de todo o arcabouço
disciplinar como técnica de poder, é factível afirmar que ocorreu uma
evolução franqueada pela expansão tecno-científica do século XX. Desta
feita, fato que carece estar evidenciado desde logo é que na sociedade de
controle o aspecto disciplinar não deixa de existir, tão somente muda seu
modo de atuar nas instituições.
Nesse contexto, enquanto a sociedade disciplinar era caracterizada
por poderes transversais sutilmente dissimulados através das instituições
disciplinares, a sociedade de controle é estruturada pela invisibilidade e
pela “modernidade líquida” que se expande junto às redes de informação.
A percepção da modernidade no contexto da teia social é orgânica, segun-
do Zygmunt Bauman, em sua obra intitulada Modernidade Liquida (2001),
uma modernidade imediata pode ser sensivelmente leve e fluida e, nesse
sentido, suplanta o construto da modernidade “sólida” evidenciada como
experiência social nos anais da História. Assim, a transição daquilo nomi-
nado como sólido para o fluido carreou profundas mudanças em todos os
aspectos da vida humana.

155
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

A modernidade significa muitas coisas, e sua chegada e avanço


podem ser aferidos utilizando-se muitos marcadores difererentes.
Uma caracterísitica de vida moderna e de seu moderno entorno
se impõe, no entanto, talvez como a “diferença que faz a diferen-
ça”; como o atributo crucial que todas as demais caracterísiticas
seguem. Esse atributo é a relação cambiante entre espaço e tempo.
(BAUMAN, 2001, p. 16).

Do pensamento acima evidenciado infere-se que nuances distin-


tas de impulsos de modernização são apresentadas à sociedade que,
por sua vez, encontra-se imersa em provocações necessárias à sua ma-
nutenção e à própria evolução. Ao se caracterizar a “vida moderna” e
seu entorno, a percepção de espaço e tempo se apresenta como moe-
da de troca necessária e, nesse sentido, se estabelece como verdadeiro
mecanismo de transição de sólidos modelos sociais, econômicos e
políticos para uma forma mais líquida; como aludido anteriormente,
a sociedade está exposta a “problemas da modernização” (BECH,
2011, p. 26).
Na contemporaneidade a sociedade de controle redimensiona a es-
trutura criada pela sociedade disciplinar, isto porque a premissa maior era
fazer com que os sujeitos modelassem seus comportamentos sob a premis-
sa menor de estarem sendo vigiados por alguém; entrementes, tal pers-
pectiva sofreu uma mutação na sociedade de controle, pois houve uma
incorporação da disciplina onde os indivíduos estão sujeitos a “dispositi-
vos de segurança” sem que haja a presença de uma autoridade vigilante,
como se estivessem expostos a uma codificação digital. Entretanto, ob-
serva-se a passagem da sociedade disciplinar e analógica para a socieda-
de de controle e digital, na qual o mundo passa a ser “sentido” a partir
de tendências. Os instrumentos disciplinares de outrora ganham o status
de dispositivos de segurança, os quais, segundo Foulcault, são colocados
como eixo de governamentalidade que implicaria na análise das formas
de racionalidade, procedimentos técnicos e formas de instrumentalização
do poder onde “[…] o essencial é, portanto, este conjunto de coisas e ho-
mens; o território e a propriedade são apenas variáveis.” (FOULCAULT,
1979, p. 283).

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

“Vivemos na cultura digital”, uma ideia que vem sendo exposta há


algumas décadas; pensadores como Manuel Castells, em sua obra A socie-
dade em rede (2000), bem como Pierre Lévy, em sua obra A Conexão Pla-
netária: o mercado, o ciberespaço, a consciência (2001), cortejam a temática do
universo digital e informática e observam as transformações sociais diante
das novas tecnologias impulsionadas pela revolução tecno-científica. No
mesmo sentido, Deleuze afirma a facilidade de “[…] fazer corresponder
a cada sociedade certos tipos de máquinas, não porque as máquinas sejam
determinantes, mas porque elas exprimem as formas sociais capazes de
lhes darem nascimento e utilizá-las.” (DELEUZE, 2013, p. 223).
Nesse contexto uma comparação se faz necessária quanto à codificação
nas sociedades analógica e digital: (i) quanto ao diagrama, a sociedade ana-
lógica é disciplinar enquanto na digital observar-se-á o controle; (ii) quanto
à tecnologia, normas são observadas na sociedade analógica e os dispositivos
de segurança são observados na sociedade digital; (iii) quanto ao terreno po-
lítico, a biopolítica está presente na sociedade digital enquanto a anátomo-
-política era observada na sociedade analógica; (iv) quanto à forma de ação,
ocorre a fixação e meios de confinamento na sociedade analógica enquanto
a modulação em meio aberto é observada na sociedade digital; e, por fim (v)
quanto ao poder, na sociedade analógica é observado o biopoder enquanto
na sociedade digital a biopolítica da população toma vulto.

Biopolítica: eu entendia por isso a maneira como se procurou, des-


de o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática go-
vernamental pelos fenômenos próprios de um conjunto de viventes
constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevida-
de, raças… (FOULCAULT, 2010, p. 431).

Não se pode perder o escopo de que biopolítica representa um con-


junto de instrumentos e procedimentos tecnológicos que buscam manter
e ampliar uma relação de dominação da população. Uma breve alusão ao
Ensaio Jamais fomos modernos, de Bruno Latour (1994), é pertinente, pois é
interessante observar a crítica latouriana de que o pós-modernismo sequer
consegue superar o modernismo, em particular na questão da sempre bus-
ca de mecanismos de dominação da população.

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P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Nesse contexto, revisitar o argumento acerca da modernidade líquida


se faz necessário, posto que os avanços são observados ao utilizar muitos
marcadores diferentes. A sociedade de controle é uma transmutação da
sociedade disciplinar, representa uma evolução fundada na revolução tec-
no-científica e, sob esta ótica, restou evidenciada a superação da socieda-
de analógica diante da então recém-nascida sociedade digital. Com base
nesses contornos evolutivos observa-se, segundo David Lyon e Zygmunt
Bauman, o surgimento de outra espécie de vigilância:

“Vigilância líquida” é menos uma forma completa de especificar a


vigilância e mais uma orientação, um modo de situar as mudanças
nessa área na modernidade fluida e perturbadora da atualidade. A
vigilância suaviza-se especialmente no reino do consumo. Velhas
amarras se afrouxam à medida que fragmentos de dados pessoais
obtidos para um objetivo são facilmente usados com outro fim. A
vigilância se espalha de formas até então inimagináveis, reagindo à
liquidez e reproduzindo-a. Sem um contêiner fixo, mas sacudida
pelas demandas de “segurança” e aconselhada pelo marketing in-
sistente das empresas de tecnologia, a segurança se esparrama por
toda parte. (BAUMAN, 2014, p. 10).

A “era digital”, “era da informação”, “sociedade digital” e “socie-


dade algorítmica” são expressões comumente utilizadas para exprimir e
identificar a dita sociedade pós-moderna imersa em relações virtuais, por
assim dizer. Os indivíduos interagem em diferentes amplitudes de inter-
relacionamento virtual, quer sejam estes sociais, econômicos, políticos
entre outros. Neste cenário, novas tecnologias ofertaram a sociedade em
inúmeros aspectos; a internet, por exemplo, que passou a fazer parte do
cotidiano dos indivíduos. Pari passu ao surgimento da internet, empresas
de tecnologia da informação passaram a brindar a sociedade com diferen-
tes ferramentas de uso pela internet: AOL, ICQ, Orkut, Messenger, Skype,
Twitter, Facebook (META), Whatsapp, Snapchat, Tik Tok, Google, Youtube,
Netflix entre tantas outras ‘ferramentas’ tornaram-se usuais aos indiví-
duos, até extrapolando a conjectura de terem se tornado simbióticos ao
ser humano.

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

Fato é que, imersos na era digital, os indivíduos — agora chamados de


usuários — circundados por ferramentas fornecidas por empresas de tec-
nologia da informação, as Big Techs, as quais estão sempre definindo novas
tecnologias e serviços e atualizando produtos e dispositivos para atender a
todas as demandas e exigências da sociedade imersa na era digital, como
ícones, novamente a título de exemplificação, podemos citar a Apple, a
Amazon, a Alphabet, a Microsoft, a Netflix e, em particular, a Facebook (ago-
ra nominado META), agora focada em construir um “metaverso”, um
mundo onde os indivíduos podem interagir a partir de uma realidade au-
mentada, realidade virtual e outras tecnologias; em tempo, é cabível ob-
servar que a atual META (Facebook) acompanha, armazena e traça o perfil
e as preferências de seus usuários para melhorar sua “publicidade dirigi-
da”. Surge, nesse contexto, uma reflexão: a vigilância foi aperfeiçoada e se
tornou líquida. De fato, a tecnologia surpreende o Homem.
O intuito da exposição dos argumentos acima evidenciados está in-
serido no contexto da sociedade de controle, assim, Deleuze (2013, p.
226) afirma,

Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais


uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma
senha, ao passo que as sociedades disciplinares são reguladas por
palavras de ordem (tanto do ponto de vista da integração quanto
da resistência. A linguagem numérica do controle é feita de ci-
fras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está
mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornaram-se
“dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados,
mercados ou “bancos”.

O Estado nas sociedades disciplinares buscava através de instrumen-


tos disciplinares extrair mais-valia dos fluxos que os indivíduos faziam
circular, entretanto, na atualidade, diante da sociedade de controle, mo-
dula-se continuamente variáveis cada vez mais complexas. Como aludido
anteriormente, é observado, hoje, um sistema de controle aberto, perene
e líquido, insta ser novamente referendada a prática da Meta (Facebook),
que armazena, em fazendas de servidores, informações que se protraem

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no tempo de seus usuários. A “sujeição” do indivíduo ao controle e à


vigilância é sutil, pois é estruturada pela invisibilidade. Para corroborar
os argumentos acima insculpidos, o sistema “ECHELON” e o projeto
“TIA” são exemplos que expõe a figura da sociedade de controle e sua
“invisibilidade”.
“ECHELON” surgiu de um tratado internacional em 1946, nomi-
nado UK-USA; reconhecido como um sistema de vigilância global, sur-
giu em meio à Segunda Guerra Mundial. Segundo explica Duncan Cam-
pbell, em sua obra Vigilância Eletrônica Planetária (2001), o funcionamento
da vigilância global é baseado em estações de interceptação de sinais em
todo o globo, capturando comunicações via satélite, micro-ondas, celula-
res e fibra ótica, incluindo programas de reconhecimento de voz e de ca-
racteres e busca de palavras-chave. Inicialmente utilizado em aplicações de
espionagem diplomática e militar, entretanto, a rede de vigilância global
voltou seus olhos para a vigília contra crime organizado, tráfico de drogas,
quiçá outras aplicações da atividade do sistema.
“TIA” (Terrorism Information Awareness) busca a análise eficaz em ban-
cos de dados heterogêneos ao avaliar registros financeiros, registros mé-
dicos, registros de comunicação, registros de viagens entre outros; fato é
que a estratégia do projeto “TIA” é o rastreamento de indivíduos através
da utilização de softwares de armazenagem de informações para alimentar
um banco de dados virtual e centralizado. Desta feita, em posse daqueles
registros acima evidenciados o rastreamento é possível, onde reconhecer
padrões implica método de controle. A título de comparação, enquanto
Meta (Facebook) consolida um perfil dinâmico de usuários com fins co-
merciais, pois acompanha, armazena e traça o perfil e as preferências para
melhorar sua “publicidade dirigida”, o projeto “TIA” estabelece a cons-
trução do perfil completo de um indivíduo diante do cruzamento de um
mosaico de informações de amplo espectro.

3.2. SOCIEDADE DE CONTROLE

A sociedade de controle opera através de modulações, ou seja, ao


invés de observar um molde fixo ou estático para os indivíduos tal como
se observava na sociedade disciplinar, o controle opera por modulações,

160
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

flexíveis e maleáveis, líquidas como “[…] uma moldagem auto-de-


formante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma
peneira cujas malhas mudassem de um ponto ao outro.” (DELEUZE,
2013, p. 221). No mesmo sentido, converge o pensamento de Michael
Hardt e Antonio Negri, na obra Império, quando então afirmam: “A
transição para a sociedade de controle reflete a produção de uma subje-
tividade não mais fixada em subjetividade, e sim híbrida e modulada.”
(HARDT; NEGRI, 2012, p. 353).
Em tempo, Michael Hardt, em sua obra Sociedade Mundial de Controle,
propôs uma reflexão sobre os processos relacionados à natureza da passa-
gem da sociedade disciplinar para o controle, qual seja:

[...] pretendo situar a formação de que fala Deleuze em termos de


dois processos que Toni Negri e eu tentamos elaborar ao longo
dos últimos anos: qualificamos o primeiro desses processos de en-
fraquecimento da sociedade civil, o que, assim como a passagem à
sociedade de controle, remete ao declínio das funções medidoras
das instituições sociais; com o segundo, ocorre a passagem do im-
perialismo produzido, inicialmente pelos Estados-nação europeus,
ao império, à nova ordem mundial, que se entende hoje em torno
dos Estados Unidos, com as instituições transnacionais e o merca-
do mundial. Dito de outro modo, quando falo de império entendo
uma forma jurídica e uma forma de poder bastante diferente dos
velhos imperialismos europeus. Por um lado, segundo a tradição
antiga, o império é o poder universal, a ordem mundial, que talvez
realize hoje pela primeira vez. Por outro, o império é a forma de
poder que tem por objetivo a natureza humana, portanto, o bio-
-poder. O que gostaria de sugerir é que a forma social tomada por
esse novo Império é a sociedade de controle mundial. (HARDT,
2000, p. 358).

Uma nova ordem mundial; observar os argumentos acima insculpi-


dos revelam os contornos sutis do controle, o exercício do poder atra-
vés de mecanismos tecnológicos que desnudam um “novo império”;
como aludido anteriormente, jamais fomos modernos sob a ótica do
pensamento latouriano, o qual observa que os programas de vigilância

161
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

“ECHELON” e “TIA” foram embrionários para ser possível afirmar,


na atualidade, que a sociedade de controle inclina-se a um novo pata-
mar, a sociedade algorítmica.

4. SOCIEDADE ALGORÍTMICA

Para insculpir argumentos acerca da sociedade algorítmica, inicial-


mente, é necessário observar a etimologia do verbete “algoritmo”. Segun-
do a versão online do Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa Michael-
lis (ALGORITMO, 2021), trata-se de “Conjunto de regras e operações e
procedimentos, definidos e ordenados usados na solução de um problema,
ou de classe de problemas, em um número finito de etapas.”. Neste ce-
nário, é factível considerar que na contemporaneidade os indivíduos estão
submetidos a algoritmos.

4.1. BREVES APONTAMENTOS SOBRE SOCIEDADE


ALGORÍTMICA

Com base nos argumentos acima evidenciados, torna-se imperioso


observar que o design algorítmico na atualidade tem aplicabilidade em inú-
meros setores da sociedade onde existam sistemas de controle envolvendo
técnicas computacionais; o fato é que podem ser observados com as mais
variadas aplicações. Entrementes, é possível observar, a título de exempli-
ficação, a utilização de algoritmos para: (i) estabelecer quais contribuintes
serão submetidos a auditoria em seus impostos de renda; (ii) contagem de
votos em eleições; e (iii) gradar pontuação para indivíduos como possíveis
criminosos, quiçá aprovar ou negar a expedição de cartões de crédito. Algo-
ritmos comportam-se como caixas pretas, pois não é raro afirmar que mui-
tas vezes não se conhece a forma, ou se tem noção de como um dado forne-
cido para alimentar um sistema de informações é processado; conhecido é o
resultado, quer seja este negativo ou positivo, falso ou verdadeiro, autoriza-
tivo ou proibitivo. Nesse diapasão, é possível afirmar não saber quais são os
parâmetros arquitetados ou desenhados para a execução do algoritmo, insta
ser exposto que tais parâmetros podem ser inclinados a determinado aspecto
de interesse daquele que coordena a programação algorítmica.

162
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

“Armas de destruição matemática, como big data, aumentam a de-


sigualdade e a ameaça à democracia.” (O’NEAL, 2016). Cathy O´Neal
(2016), de maneira pragmática, desnuda como a utilização de algoritmos,
o design algorítmico propriamente dito, é precursora de consequências so-
ciais negativas. Fato é que, para simplificar a percepção, uma “arma de
destruição matemática” é representada por um algoritmo que tem, na
atualidade, capacidade de atribuir uma pontuação de forma secreta aos
indivíduos, segundo a parte introdutória da obra de O´Neal (2016).
Diante dessa perspectiva, surge atualmente discussão sobre a respon-
sabilização algorítmica (Algorithmic Accountability), exposta aqui para cor-
roborar a argumentação sobre sociedade de controle, onde se busca escla-
recer o que ocorre dentro dos algoritmos executados nos mais diversos
sistemas, nos quais se tornou usual perceber a existência de “caixas pretas”
em que é observada a execução previamente definida pelo arquiteto sem
que tal definição de parâmetros seja pública.
Uma nova dimensão surge para a sociedade de controle imersa na era
tecnológica e herdeira do arcabouço disciplinar de outrora: a necessária
regulação algorítmica. Diante disso, é de suma importância observar que
novas percepções e peculiaridades que são desdobramentos da inata ha-
bilidade do Homem em “criar”, em buscar o desenvolvimento de forma
transversal cortejando aspectos sociais, políticos, econômicos entre tantos
outros; fato é que os argumentos insculpidos neste artigo buscaram de-
monstrar o modo pelo qual ocorreu a evolução do Homem em sociedade,
carreando apontamentos da evolução do regramento social na pré-moder-
nidade, os quais desaguaram na modernidade provocada por revoluções
burguesas e industriais e que, por fim, alcançaram a contemporaneidade.
Além disso, a sociedade disciplinar e a sociedade de controle, as quais, na
atualidade, inclinam-se a uma nova fronteira apta a conjecturas e cortejo
de futuras pesquisas: a sociedade algorítmica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A evolução da sociedade disciplinar à sociedade de controle trouxe


à baila a necessidade de observar a evolução do regramento social; argu-
mentos insculpidos neste contexto estabeleceram um ponto cardeal: Ul-

163
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

piano, que brindou a sociedade pré-moderna com o ideal de que “onde


estivesse o homem, haveria sociedade; onde houvesse sociedade, haveria
Direito”, o qual reverberou pelos anais da História influenciando os sabe-
res e as aprendências do Homem em seu meio.
Como restou evidenciado, indivíduos inseridos em agrupamentos so-
ciais estavam submetidos à dinâmica e à disciplina social daquele grupo
que buscava estabelecer um harmônico social através de mecanismos her-
dados de experiências anteriores e, neste contexto, houve o surgimento
da sociedade disciplinar. Como exposto por Foulcault, ocorreu no século.
XVII, com apogeu no século XX; no entanto, como evidenciado nas ar-
gumentações, não foi baseado num processo evolutivo natural do Homem
livre, muito menos pacífico; houve a mitigação dos ideais iluministas, in-
clusive através das nominadas “micropenalidades”, onde o controle social
estava guarnecido por mecanismos sancionatórios; micropenalidades pas-
síveis de reprimenda eram usuais, infere-se deste contexto que mecanis-
mos disciplinadores através de castigos tiveram função pedagógica para
coibir comportamentos não quistos. O panóptico é evidenciado carrean-
do a ideia de vigilância. Deste contexto foi possível trazer à baila a figura
justificada da sociedade disciplinar e seus instrumentos disciplinares de
adestramento social, baseados no temor da sempre vigília.
É evidente que a modernização transmutou a sociedade disciplinar e
analógica à sociedade de controle e digital; como aludido, a sociedade de
controle representa uma forma de controle sutil, aberto, perene e fluido;
estruturada pela invisibilidade e pela modernidade líquida que se expande
junto às redes de informação. Em breve conclusão, na atualidade é obser-
vada a incorporação da disciplina no comportamento dos indivíduos e da
sociedade sujeitos através de dispositivos disciplinares sem a presença de
uma autoridade vigilante, expostos a uma codificação digital. Portanto, a
sociedade de controle resta guarnecida por dispositivos de segurança, pela
biopolítica e pela modulação em meio aberto.
Para além da modernidade, a revolução tecno-cientifica evidenciou
expressões como: “era digital”, “era da informação”, “sociedade digi-
tal” e “sociedade algorítmica”. Infere-se que a internet trouxe profundas
transformações à teia social. Um novo paradigma social pôde ser obser-
vado diante da imersão do Homem às relações virtualizadas, expondo os

164
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

indivíduos, agora usuários, a um contexto de grande fluxo de informações


e tráfego de dados informacionais, bem como dados pessoais que passaram
a ser armazenados, catalogados e categorizados para traçar o perfil dos
usuários. Daí se tem o contexto de que a vigilância foi aperfeiçoada e se
tornou líquida.
É nítido, também, que a ideia de vigilância na sociedade de controle
é fruto de projetos de vigilância eletrônica planetária (“ECHELON” e
“TIA”), os quais, na atualidade, são representados pelo design algorítmico.
Algoritmos são caixas pretas, pois não se conhece a forma como um dado
alimenta um sistema de informações, não se conhece o modo de proces-
samento, entretanto, notório é o resultado: negativo ou positivo; falso ou
verdadeiro; autorizativo ou proibitivo.
Por derradeiro, conclui-se imperioso observar o surgimento da so-
ciedade disciplinar e sua transmutação para a sociedade de controle. A
modulação de dispositivos de segurança substituindo ou aperfeiçoando
instrumentos disciplinares de outrora com amparo tecnológico culmina
necessariamente na figura da sociedade algorítmica carente de regula-
ção, entretanto sombreada pelas etapas evolutivas. Observa-se tecno-
logias de poder para disciplinar, moldar e influenciar quiçá subjugar o
Homem na teia social de maneira mais sutil e líquida. Em suma, “jamais
fomos modernos”.

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167
O DIREITO CONTEMPORÂNEO DAS
FAMÍLIAS: A ESTRUTURAÇÃO DE
NÚCLEO FAMILIAR POR MEIO DO
PROCESSO DE ADOÇÃO POR CASAIS
HOMOAFETIVOS
Willian Lopes Amorim22

INTRODUÇÃO

Ao longo da História, o termo família, cuja origem advém do latim


“famulus’’ — grupos de servos domésticos —, conquistou novos significa-
dos. No império Romano, família era conceituada pela união entre duas
pessoas e seus descendentes, surgindo, para tanto, a ideia do matrimônio
e a sua garantia quanto a heranças e à constituição de estatuto social here-
ditário, de pai para filho. Já na Idade Média, período em que havia forte
influência da Igreja Católica, a união matrimonial era estabelecida como
sacramento, considerada, portanto, uma instituição sagrada, indivisível,
cujo objetivo era a multiplicação. Consolida-se o conceito de família tra-
dicional, composta basicamente por pai, mãe e filhos.
Os fundamentos da família não eram baseados em princípios da so-
lidariedade ou afetividade, mas na religião e no culto que se praticava,
de modo a se tornar, na verdade, uma família patriarcal, cuja formação

22 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário FAM.

168
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

era composta por varão (marido), com o dever de zelar por uma ou mais
esposas e demais membros da unidade familiar, sendo os poderes da famí-
lia concentrados exclusivamente nas mãos do marido, tanto em relação à
esposa, quanto aos filhos (NADER, 2016, n. p.).
Após a Revolução Industrial, a complexidade das relações e a possibi-
lidade de formações distintas do núcleo familiar começam a crescer. Essa
mudança levou à evolução do próprio conceito, pois as questões relaciona-
das ao casamento e à reprodução perdem seu poder e aproximam, cada vez
mais, a ideia de vínculo afetuoso como principal fator para a constituição
de uma unidade familiar.
No Brasil, a influência religiosa, que vigorou até a promulgação da
Constituição Federal de 1988, centralizou o conceito de “família” exclu-
sivamente no casamento. Logo, os que não formalizavam matrimônio não
eram reconhecidos pela Igreja, o que implicava na perda de legitimidade
perante a sociedade. Qualquer outro modo de vida em comum, consti-
tuído de uma união de convivência amorosa entre homem e mulher sem
que houvesse as formalidades do casamento, era considerado uma for-
ma ilegítima de constituição de vínculo familiar (DIAS, 2009, p. 46). A
união advinda do casamento, em sua história, nem sempre foi concebida
também pelo casamento civil, de forma que o casamento religioso era o
instituto que dava status de “família” para o casamento.
Outra questão importante é a de que o casamento, inicialmente, era
uma sociedade indissolúvel, sendo a sacralização do mesmo e a tentativa
de sua manutenção responsáveis pelo entendimento de única estrutura de
convívio lícita e digna de aceitação, fazendo com que outros tipos de rela-
cionamentos fossem condenados à invisibilidade (DIAS, 2009, p. 39-68).
Entretanto, hoje a formação familiar sob ótica constitucional vigente
foca na afetividade e descentraliza a esfera de pater familias, heterossexuali-
dade e monogamia, de forma que passa a promover a dignidade da pessoa
humana como um dos seus fundamentos (FIÚZA, 2006, n. p.).

1. FAMÍLIA MODERNA

Historicamente, o modelo familiar ocidental sempre correspondeu


a uma família composta por pai, mãe e filhos, baseado em uma realidade

169
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

biológica da necessidade de um homem e uma mulher. Com o passar do


tempo, a família patriarcal foi se esfacelando e as funções conjugais e pa-
rentais foram se reajustando (LEAL, 2015, p.126-152).
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, institucionalizou
um modelo plural de família, considerando-a como a base da sociedade.
Passamos a reconhecer, com a nossa Carta Magna, a impossibilidade de
falar em família no singular, devido a tal realidade ser plural, como o ser
humano e as suas aspirações de felicidade. Além da família tradicional,
passam a ser reconhecidas, também, as uniões estáveis, as famílias mono-
parentais e as reconstituídas (OMMATI, 2015, p. 27).
Além disso, a República Federativa do Brasil preza pela isonomia,
pela liberdade e pela promoção do bem comum, sem discriminações de
qualquer natureza, sendo inadmissível a exclusão das uniões homoafetivas
do campo de atuação do Direito. Pactuar com a ideia de que pessoas do
mesmo sexo não podem constituir família seria uma forma de negar a
efetividade dos princípios basilares da própria democracia (PAIVA, 2011,
p. 236-255).
Conceitua-se a família homoafetiva como a união de duas pessoas do
mesmo sexo que tenham a intenção de se unir por laços de afetividade de
forma duradoura, devendo ser protegida e tutelada pelo Estado e gozar de
todos os direitos e deveres inerentes a esta instituição (GRANJA; MU-
RAKAWA, 2012,).
Para a escritora Maria Berenice Dias, o vínculo familiar através do or-
denamento jurídico está bem mais amplo do que anteriormente, pois vai
além do vínculo entre casais formados apenas por homem e mulher; desta
forma, é possível afirmar que:

Também pessoas do mesmo sexo ou de sexo diferentes, ligadas por


laços afetivos, sem conotação sexual, merecem ser reconhecidas
como entidades familiares. Assim, a prole ou a capacidade pro-
criativa não são essenciais para que a convivência de duas pessoas
mereça a proteção legal, descabendo deixar de fora do conceito de
família as relações homoafetivas. (DIAS, 2001, p. 102).

Com essas conformidades podemos entender que a família tem como


finalidade precípua a busca pela felicidade e a realização pessoal dos seus
170
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

membros, independente da sua orientação sexual. Também é importante


lembrar que as relações homoafetivas são marcadas pelo preconceito ins-
titucionalizado pela incapacidade de aceitação do diferente (ALMEIDA,
2017).

2. ADOÇÃO HOMOAFETIVA

A adoção está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente


(ECA), conforme disposto em seu artigo 39 e seguintes, tendo como
principal objetivo agregar de forma total o adotado à sua nova família e lhe
assegurar total cuidado e desvinculação de sua família sanguínea. Desta
maneira, conforme já previsto no ECA, ocorrerá o ingresso por completo
do adotante na família.
Com a ampliação e a flexibilização do conceito de núcleo familiar,
surge a possibilidade de adoção como meio válido para a constituição
dessas famílias e, consequentemente, contribui para a formação de uma
sociedade cada vez mais justa e igualitária ao ampliar a possibilidade de
adoção de crianças e de adolescentes, garantindo-lhes o acesso a saúde,
educação e, principalmente, afetividade. Considerada a adoção como uma
questão de carácter humanitário, o ato não beneficia apenas o adotando,
mas também o casal adotante que, por sua vez, consegue finalmente reali-
zar o sonho de obter uma família estruturada na filiação afetiva.
Dentro da adoção a pessoa adotada pode gozar do estado de filho com
os mesmos direitos do filho consanguíneo, pois, através deste processo,
independente do vínculo biológico, ele é inserido no ambiente familiar e
a ele é dado um lar, amor, carinho e afetividade (OST, 2009). Garantias
estas previstas no artigo 19 do ECA.
Em sessão do Congresso Nacional no dia 20 de fevereiro de 2020, foi
restabelecida a redução de prazos para a adoção de crianças e adolescentes
acolhidos em abrigos. Nada mais é do que uma tentativa de preservar essas
pessoas alheias de um ciclo familiar, de situações de abandono. O projeto
de Lei 5850/16 foi derrubado com 313 votos contrários entre os deputa-
dos e 50 entre os senadores. Com isso, o prazo de reavaliação de crianças
e adolescentes acolhidos em abrigos para determinar se podem ou não
ser adotados foi reduzido de seis para três meses. Também falando sobre

171
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

vetos, outros dois foram derrubados e, deputados e senadores autorizaram


o encaminhamento à adoção de crianças e recém-nascidos abandonados
e não procurados por familiares em 30 dias (AGÊNCIA BRASIL, 2018).
Adotados os procedimentos legais da adoção, torna-se necessária a emis-
são de nova certidão de nascimento, cujos dados pessoais como sobreno-
me e composição da filiação são devidamente alterados.
O princípio constitucional da igualdade, em que determina a não
discriminação em função de gênero ou posicionamentos ideológicos,
deve ser observado durante todo o trâmite da adoção, não cabendo a
exclusão de interesses no ato de adoção por casais homoafetivos, sejam
eles na escolha de crianças menores de idade ou adolescentes prestes a
entrar na fase adulta.
O artigo 46 do ECA institui a necessidade de serem seguidas normas
e princípios de convivência durante o processo de adoção do adotado,
desta maneira, o intuito é de reafirmar a possibilidade da conclusão do
processo de adoção. Nesta fase de adaptação ocorre um acompanhamento
dos envolvidos. A adoção se reveste de alta relevância sociojurídica, de re-
flexos óbvios na vida dos envolvidos que, como seres humanos, possuem
sentimentos, vontades, traumas, ressentimentos. Este acompanhamento
se presta à verificação quanto à adaptação do adotando à família substitu-
tiva (BORDALLO, 2010).
Preenchidos os requisitos da adoção, casais heteroafetivos ou homoafe-
tivos devem concorrer em pé de igualdade, como descreve Vechiatti:

A homossexualidade do casal que pretende adotar uma criança ou


adolescente, jamais deverá ser utilizada como fundamento para dar
preferência à adoção a um casal que seja constituído por um ho-
mem e uma mulher, configurando puro preconceito entendimen-
to em sentido diverso. (VECCHIATTI, 2012, p. 563).

Ao impedir que a adoção seja concretizada pelo simples fato de se


tratar de um casal homoafetivo, fica claro a discriminação uma vez que
é feito distinção de quem pode e quem não pode utilizar os meios alter-
nativos de composição do grupo familiar. Partindo do princípio de que o
direito à dignidade humana da criança e do adolescente deve prevalecer

172
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

quando do sopesamento entre princípios, não faz sentido algum protelar a


adoção pelo fato de os possíveis genitores afetivos serem do mesmo sexo.
Negar o processo de adoção devido à sexualidade de um casal não
viola apenas os seus direitos, mas também o da criança e do adolescente
em ter um lar, direito constitucionalmente garantido. Diante de tantos
avanços da sociedade, não há mais espaço para discutir se casais homoafe-
tivos podem constituir família.
Segundo o pensamento de Dias (2009, p. 45):

Necessário é encarar a realidade sem discrminação, pois a homo


afetividade não é uma doença nem uma opção livre. Assim, desca-
be estigmatizar a orientação homossexual de alguém, já que negar
a realidade não irá solucionar as questões que emergem quando do
rompimento destas uniões.

A adoção de crianças e adolescentes por casal homoafetivo, desde que


observados os critérios instituídos pelo ECA, constitui a realização e a
concretização de dois direitos constitucionais, os quais ainda são assegura-
dos como fundamentais para a plena realização da pessoa humana: o direi-
to à convivência familiar (art. 227 da CF/88) e o direito à paternidade res-
ponsável (art. 226, 7º, da CF/1988). E estabelecida a relação paterno-filial,
a criança e o adolescente obtêm acesso aos demais direitos fundamentais a
eles consagrados (NAHAS, 2008, p. 116-123).
Partindo da hipótese de que se a lei não prevê nem afirmativa nem
negativamente a adoção por casal homoafetivo, a Constituição Federal de
1988, no seu art. 3º, inciso IV, diz que constituem objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil o bem estar de todos, sem preconceito
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimi-
nação; e ainda no art. 5º estabelece que todos são iguais perante a lei sem
distinção de qualquer natureza; e o inciso II do mesmo dispositivo prevê
que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em
virtude da lei, consequentemente, é possível a adoção por casais homoafe-
tivos (SANTOS, 2011, p. 01-30).
Por outro lado, as doutrinas defendem a adoção por casais ho-
moafetivos pensando sempre em prol de melhorias à criança e ao ado-

173
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

lescente em um ambiente propício à criação do adotado. Tentou-se


introduzir uma norma que a vedasse claramente, mas não encontrou
uma forma nítida e devidamente definida que não gerasse extrapola-
ções inconvenientes. Por esse motivo, assevera Nahas (2008, p. 111):
“Daí optar-se por vedar distinções de qualquer natureza e quaisquer
formas de discriminação, que são suficientemente abrangentes para
recolher também aqueles fatores que têm servido de base para dese-
quiparações e preconceitos.”.
Ademais, como nem todas as famílias apresentam uma configura-
ção na qual há uma continuidade biológica, as relações parentais que se
formam na família adotiva objetivam, de modo geral, proporcionar um
núcleo familiar às crianças e aos adolescentes que não podem, por algum
motivo, ser criados pelos pais que os geraram. Há ainda a possibilidade
de ter e criar filhos para pais que possuem limitações genéticas, sejam por
questões de infertilidade, sejam por questões de gênero.
Em se tratando de adoções que envolvam casais de mesma orienta-
ção sexual, nota-se uma resistência social à possibilidade de homoafetivos
habilitarem-se para a adoção. O discurso visto questiona a ausência de
referências comportamentais de gênero masculino e feminino e a possí-
vel manifestação de sequelas de ordem psicológica (LUZ, 2015, p. 9-18).
Muitos dizem que crianças adotadas por genitores do mesmo sexo podem
ter uma grande chance de desenvolverem problemas psicológicos, fato
este ainda não comprovado perante a sociedade.
O Brasil se encontra numa situação que, devido à omissão do le-
gislador na Constituição de 1988, deixou de reconhecer as parcerias
homoafetivas como entidade familiar, no seu art. 226. Essa lacuna deu
margens ao questionamento da possibilidade ou não de duas pessoas do
mesmo sexo adotarem em conjunto, já que não se encontrava na enume-
ração legal da família. Mesmo ante a omissão do legislador, a adoção por
casais homoafetivos é possível, por serem entidade familiar, com direito
a adotar, baseado nos princípios constitucionais através da interpretação
inclusiva ou com base na supremacia dos princípios constitucionais so-
bre as normas. Apesar de que a adoção por casais homoafetivos está sen-
do deferida não por terem direitos, mas por atender o melhor interesse
do menor (SANTOS, 2011, p. 157).

1 74
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

3. POSICIONAMENTO DO STF

Após anos de luta pelo reconhecimento de direitos em processos de


adoção, em 2015 o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve o acórdão
do Tribunal de Justiça do Paraná, o qual reconheceu o direito de um casal
homoafetivo de adotar sem restrições de idade e sexo.
Trata-se de um processo promovido por casal homoafetivo interessa-
do no processo de adoção, mas que foi barrado pelo Ministério Público do
Paraná com a limitação para adoção apenas de criança do sexo feminino e
faixa etária acima dos 10 anos. A ministra Cármen Lúcia, relatora do caso,
ao fundamentar o seu voto, ressaltou que: “Delimitar o sexo e a idade da
criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime rela-
ção de filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de
obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimen-
to.” (AGÊNCIA BRASIL, 2015).
Em sua fundamentação, a ministra relatora utilizou a interpretação
da Suprema Corte no julgamento da Ação Direita de Inconstituciona-
lidade (ADI) nº 4.277 – DF, que reconheceu os devidos direitos dos
casais homoafetivos no Brasil como um núcleo familiar igual qualquer
outra família.

CONCLUSÃO

A conclusão deste trabalho prova a igualdade e o respeito a todos os


seres humanos. Os homossexuais já sofreram muito, por longos tempos,
os preconceitos que deveriam já estar no passado. Preconceitos realizados
pela própria sociedade, como o realizado antigamente pela Igreja, que só
concebia o casamento como uma forma de procriação, o que impedia
casais que não podiam realizar tal procedimento de serem considerados
um casal.
Após muito tempo de evolução veio ocorrer, por meio de normas
sociais e morais baseadas nos princípios constitucionais, garantia de todos
os direitos aos casais homoafetivos, as quais são estendidas a crianças e
adolescentes, pensando sempre na possibilidade de um novo núcleo fami-
liar. Mesmo que ainda haja forte preconceito pela sociedade em relação à

175
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

adoção por casais homoafetivos, hoje está cada vez mais normal o interesse
desses casais pela construção de vínculo familiar.
Obviamente essas lutas alcançaram seus objetivos, e hoje, por exem-
plo, ninguém mais fica espantado em saber que há mulheres divorciadas,
chefes de família e mães solteiras. Uma grande evolução dos conceitos
familiares, a qual envolve as lutas diárias, por mais simples que sejam, em
compreender o significado de base familiar e buscar diariamente pelos di-
reitos de qualquer pessoa, o que faz com que esses novos núcleos familiares
sejam vistos como uma grande demonstração de carinho e afeto a todos
os envolvidos e com que essas crianças e adolescentes tenham os devidos
cuidados que realmente merecem.
Concorda-se que o termo família foi expandido, de forma a não ser
mais necessário que duas pessoas, homem e mulher, tenham que se unir
em matrimônio para formar uma família. Ainda nesta questão, o Direi-
to Civil trouxe diante da sociedade formas de conceito de família como
imagem de aliança estável existente mesmo que ela não tenha casamento
formal.
Ter uma família monoparental é quando apenas um dos dois, pai
ou mãe, convive e cria os filhos, sejam eles filhos biológicos ou ado-
tivos. A família afetiva do mesmo sexo também é conceituada como
a união de duas pessoas que pretendem se unir em uma relação dura-
doura através de laços afetivos, e devem ser reconhecidas e protegidas
de modo a obterem todos os direitos e obrigações independentemente
da orientação sexual.
Neste trabalho procurou-se demonstrar a contribuição através de ju-
risprudência e doutrina sobre evolução e filiação homoafetiva; foi analisa-
do também a real finalidade de que a adoção, nos moldes do Código Civil
de 1916, dá a um casal sem filho a possibilidade de criação de uma criança
ou adolescente como filho.
Desta maneira, não há como impedir que os casais homoafetivos ado-
tem conjuntamente uma criança ou adolescente. Através da jurisprudên-
cia, os brasileiros provam que os homossexuais têm os direitos a seu favor,
com base nos princípios da dignidade humana e da isonomia. Deixar de
proteger tal direito seria uma grave discriminação na orientação sexual
dos casais homoafetivos interessados em adotar.

176
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

REFERÊNCIAS

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Altera Regras de Adoção. Brasília, 20 fev. 2018. Disponível em:
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Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e
da União por Casais Homoafetivos. Rio de Janeiro: Método, 2012.

179
RESUMOS

181
O DESCOMPASSO EXISTENTE ENTRE
O DIREITO PENAL BRASILEIRO E O
TRATAMENTO DOS PSICOPATAS
HOMICIDAS
Karina Ramos Perez Martins23

INTRODUÇÃO

Desde os primórdios da era moderna há o interesse em decifrar a mente


humana, o comportamento e a criminalidade, porém, as pessoas que são
acometidas pelo transtorno de personalidade antissocial se tornaram um
empecilho para essa análise. Avulta perceber que já no século XIX havia
estudos de Esquirol sobre essa questão, no entanto, até os dias de hoje esses
indivíduos apresentam muitos enigmas a serem decifrados, porque há muita
dificuldade no que tange o seu comportamento e o porquê dele.
Seguindo na mesma lógica, hodiernamente percebe-se que há empe-
cilhos para a sua identificação na sociedade. Essas características marcantes
que são apontadas pelos estudiosos do tema, como o alto grau de dissimu-
lação e habilidade de dissociação, permite que eles passem despercebidos
pelas autoridades sem levantar quaisquer suspeitas.
Convém ressaltar que essas questões são de extrema relevância para
o Direito, visto que, não raras vezes, eles entram em conflito com a lei
uma vez que ela não é reconhecida por eles como uma barreira. Desse

23 Graduanda em direito pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

183
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

modo, percebe-se que esses indivíduos se fazem presentes em grande


escala no sistema penitenciário, sendo responsáveis pelos maiores índices
de reincidência, como é apontado pelo pioneiro Robert Hare em seu
livro Sem Consciência.
O presente trabalho tem o intuito de analisar as penas aplicadas aos
psicopatas homicidas e sua verdadeira eficácia. Almeja identificar os pon-
tos positivos e negativos de cada uma das sanções penais aplicadas a este
grupo tão ímpar de criminosos a fim de descobrir qual é a melhor medida
a ser adotada nesses casos.
Nota-se, portanto, que apesar de se tratar de um tema que por muitas
vezes provoca repulsa social, ele se mostra cada dia mais presente na so-
ciedade brasileira, o que cria a necessidade de ser analisado de forma mais
minuciosa. O caso do Lázaro, que ficou conhecido como o serial killer
de Brasília, assevera como o nosso modo de lidar com esses indivíduos é
falho, pois ele foi preso múltiplas vezes e mesmo assim continuou prati-
cando delitos ao fugir da penitenciária.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Nesse diapasão, é oportuno salientar que este trabalho disserta sobre


um tema que diverge opiniões entre os doutrinadores de todo o mundo.
Logo, no seu desenvolvimento foram utilizados como base os Manuais de
Direito Penal de Rogério Greco e Cezar Bitencourt, para análise da culpa-
bilidade, e o Manual de Criminologia de Nestor Sampaio.
Na mesma toada, foi utilizado Focault, em especial o livro A História
da Loucura, com o intuito de compreender a evolução histórica do tema,
mas também o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-
5) e obras de autores pioneiros sobre o tema, como Robert Hare, Harold
Schechter e Ilana Casoy em contexto mundial, e Hilda Morano ao se
tratar das pesquisas brasileiras.

METODOLOGIA

Registra-se, nessa ordem e ideias, que a análise do tema será feita


através do levantamento bibliográfico de livros, teses e artigos científicos

184
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

relevantes. Ademais, será feita uma pesquisa descritiva a partir da análise


de casos reais e também da jurisprudência, de forma qualitativa, com o in-
tuito de identificar na teoria e na prática as nuances e questões pertinentes
para o seu desenvolvimento.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir do que foi observado na doutrina e nos casos concretos, é


possível concluir que a melhor classificação para esse tipo de criminoso
é realmente a semi-inimputabilidade, a qual é apoiada por grande parte
da doutrina, como Bitencourt e Mirabete. Não obstante, é notório que a
classificação por si só não engloba todas as necessidades desse caso, ou seja,
ela precisa de ajustes para uma aplicabilidade eficiente
É mister salientar que há necessidade de se pensar em um meio de
ponderar o bem-estar coletivo e o bem-estar individual. Pois é preciso dar
ao indivíduo possuidor desse transtorno antissocial uma pena em simetria
com a nossa Constituição federal, a qual leve em conta os princípios penais
da humanidade e a individualização da pena.
Ademais, ficou evidente que esses criminosos devem ser tratados em
ambientes separados visto a complexidade do tratamento, por isso um
ambiente só deles, onde ficarão sobre vigilância e constante tratamento.
Nota-se que esse método trará benefícios não só para eles, mas também
para os profissionais entenderem melhor e, por conseguinte, tratá-los da
melhor forma.
É preciso evidenciar também que punge a necessidade da criação de
uma lei específica para tratar do assunto em questões relevantes, como a
previsão da aplicação do método “PCLR” para a identificação assertiva
desses indivíduos e também sobre disponibilidade de profissionais com-
petentes para lidar com eles nos hospitais de custódia.

CONCLUSÕES

De fato, o primeiro passo para garantir um tratamento que possua as


garantias constitucionais é a sua regulamentação, não obstante, fica evi-
dente que ainda se está longe de encontrar todas as soluções para que ele

185
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

seja efetivo. Porém, insta salientar que só ter-se-á respostas ao colocar o


tema em pauta e discutir as peculiaridades desses casos. Nessa toada sem-
pre é produtivo a análise do que deu certo em outros países e também do
que não deu certo, com o intuito de vislumbrar a aplicabilidade ou não
dessas práticas no contexto brasileiro.
À luz de tudo que foi exposto, é de se concluir que somente a refle-
xão acadêmica sobre esse descompassado permitirá a aplicação assertiva do
Direito Penal nesses casos. Pois é mister reconhecer que, apesar da mídia
reforçar que esses criminosos são desumanos e devem ser presos de forma
perpétua, eles são pessoas com dignidade e merecem um tratamento em
simetria com os valores constitucionais.

REFERÊNCIAS

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tísticos de transtornos mentais: DSM-5. 5.ed. Porto Alegre: Art-
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ral. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

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Rio de janeiro: Darkside Books, 2017.

FOULCAULT, Michel. Vigiar e punir. 27. ed. Petrópolis: Editora Vo-


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FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São


Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de
Janeiro: Impetus, 2011.

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para a escala PCL-R (Psycopathy Checkelist Revised) em popu-
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dade; transtorno global e parcial. 2003. Tese (Doutorado em Ciências)
– Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.

186
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de cri-


minologia. 10.ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

ROSENVALD, Nelson. Dignidade Humana e boa fé no código ci-


vil. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.

SCHECHTER, Harold. Serial killers: a anatomia do mal. Rio de janei-


ro: Darkside Books, 2013.

TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores


do direito. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

187
ANÁLISE DOS SUJEITOS DA TEORIA
PATERNALISTA
Leila Gomes Gaya24

INTRODUÇÃO

O liberalismo é o orientador do Estado Democrático de Direito como


forma de resguardar a autonomia da pessoa humana. O Direito Penal, em
seu sistema romano-germânico, tem sob sua tutela bens jurídicos indis-
pensáveis para manter as condições mínimas de sobrevivência, por isso há
limites ao poder punitivo do Estado quando há a restrição de liberdade das
pessoas por meio de leis, necessitando que haja uma justificativa para esta
restrição não implicar em arbitrariedade estatal.
O Estado começa a ter legitimidade para suprir esta autonomia com
intuito de tutelar o bem jurídico ameaçado, supondo que o ofendido, se
não estivesse vulnerável, buscaria esta proteção. Quando há um ser huma-
no vulnerável, seja por inconsciência, falta de capacidade, imaturidade ou
outro motivo parecido, o paternalista age contra a vontade do sujeito para
impor o que entende ser melhor para o próprio sujeito.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Esta pesquisa se desenvolve com o intuito de explanar, de forma


exemplificativa, quais os grupos vulneráveis passíveis do paternalismo ju-

24 Mestranda no Mestrado de Direitos Fundamentais do PPGD da Universidade da Amazô-


nia – UNAMA.

188
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

rídico com ênfase no Direito Penal. Paternalismo detém um significado


análogo ao papel do pai na época das famílias patriarcais, quando este cui-
dava e geria sua prole. Isso foi trazido para o Direito a fim de dar nome
às ações que limitam a autonomia das pessoas para o bem delas mesmas.
Seria então uma das formas de intervenção do Estado na vida do povo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente distingue a proteção em
dois grupos: o primeiro grupo é de leis protetoras dos menores enquanto
vítimas, mesmo quando há o consentimento deles, como por exemplo o
estupro de vulnerável e a agravante genérica quando o crime for cometido
tendo como vítima a criança entre outros; já o segundo grupo é de regras,
onde os menores são os autores da conduta. Por isso, aqui vai um adendo:
menor não comete crime, mas sim ato infracional, por isso, não cumpre
pena, mas medida socioeducativa. Não há finalidade educativa da pena
sobre estes menores pois estes não entendem o caráter lesivo de um ato.
Uma das finalidades da pena é a retribuição do Estado pelo mau provo-
cado, portanto, se aplicada aos menores não haveria compreensão dessa
retribuição e a tornaria ineficaz.
A Lei nº 12.015, de 2009, alterou o Título constante no Código Penal
de “Dos Crimes contra os Costumes” para “Crimes Contra a Dignidade
Sexual”, alteração feita porque aponta o bem jurídico protegido: liberdade
sexual. Foi introduzido o crime de estupro de vulnerável, caracterizado
não só pela conjunção carnal, como quaisquer outros atos libidinosos, de
forma a dar-lhe maior amplitude.
Mesmo antes desta alteração o Supremo Tribunal Federal já argu-
mentava sobre a vulnerabilidade para interpretar a presunção absoluta
de violência e confirma que é irrelevante o consentimento da vítima
menor de quatorze anos em casos de estupro de vulnerável. Em fevereiro
de 2008, ou seja, ainda com a redação antiga, foi julgado Habeas Corpus
93263/RS, onde a Primeira Turma se manifestou no sentido de que “o
eventual consentimento da ofendida, menor de 14 anos, para a conjun-
ção carnal e mesmo sua experiência anterior não elidem a presunção de
violência, para a caracterização do estupro.” O paternalismo também
abarca os adultos que têm problemas mentais, por isso a lei penal confere
tratamento diferente aos adultos que possuem capacidade de discerni-
mento. Exemplo disso está no artigo 26 do Código Penal: “É isento de

189
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental in-


completo ou retardado, era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente
incapaz, de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento.”
Tanto é que quando um indivíduo com problemas mentais compro-
vados não cumpre pena, ao invés, medida de segurança. E o estabeleci-
mento de cumprimento dessa pena é em hospital de custódia e não em
penitenciárias. Quando há a condenação deste agente, ocorre por senten-
ça penal absolutória imprópria, a qual se aplica ao inimputável em casos de
doenças mentais, sua finalidade legal é absolvê-lo em razão da ausência de
culpabilidade e, logo em seguida, de modo preventivo e curativo, aplicar-
-lhe uma medida de segurança.
Outro viés importante nesse contexto é que a pobreza leva os seres
humanos a aceitarem certos tipos de atividade para que consigam sobre-
viver, por exemplo, a prostituição. Essas situações, quando exploradas por
outras pessoas, trazem consequências criminais pois o consentimento do
vulnerável não é aceito para isenção da responsabilidade de quem as ex-
plora. Ora, quase todas as pessoas livres e com segurança financeira não
escolheriam a prostituição como meio de sobrevivência. Os tipos penais
que tratam do tema prostituição o prescrevem como crime quando houve
fraude ou coerção para o comércio carnal.
A prostituição em si não é crime no Brasil, sendo inclusive uma
atividade reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego por
meio da Classificação Brasileira de Ocupações, ou seja, se houver con-
sentimento não há que se falar em crime a não ser que haja provas
de que o agente utiliza da vulnerabilidade da pessoa explorada para
realizar a prostituição desta. Nesse contexto, o artigo 229 do Código
Penal, considera crime “Manter, por conta própria ou de terceiros, es-
tabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito
de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente.” Entretanto,
o legislador, embora não criminalize a prostituta, pretende punir de
alguma forma quem a favorece.
O grupo das ações afirmativas compreende, entre outros, as mulhe-
res. Exemplo claro é a Lei Maria da Penha (Lei 10.340/2006). Esta lei é
considerada uma ação afirmativa pois foi criada para contornar as dificul-

190
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

dades e fragilidades de uma mulher. E assim dita: “Serão considerados os


fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares
das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.” Uma situa-
ção paternalista latente que encontramos na citada lei é a situação de que,
caso a vítima mulher queira renunciar à representação, sua vontade não
será respeitada enquanto não houver audiência de justificação designada
para este fim. Como esta situação é determinação da lei contra a vontade
da vítima, é considerada uma situação paternalista. Inclusive, em 2015,
foi editada a Súmula 542-STJ, a qual dita que: “A ação penal relativa ao
crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher
é pública incondicionada.” Isso quer dizer que se o crime for de lesão
corporal no âmbito da violência doméstica contra a mulher, o Ministério
Público, sem o consentimento da vítima, poderá iniciar a ação penal.
Nesse sentido, o ministro Marco Aurélio afirmou:

[…] deixar a cargo da mulher autora da representação a decisão


sobre o início da persecução penal significa desconsiderar o temor,
a pressão psicológica e econômica, as ameaças sofridas, bem como
a assimetria de poder decorrente de relações histórico-culturais,
tudo a contribuir para a diminuição de sua proteção e a prorroga-
ção da situação de violência, discriminação e ofensa à dignidade
humana. Implica relevar os graves impactos emocionais impostos
pela violência de gênero à vítima, o que a impede de romper com
o estado de submissão.

METODOLOGIA

No presente trabalho foi utilizada a técnica de revisão bibliográfica,


além de fontes escritas e contemporâneas, como pesquisa bibliográfica por
meio de artigos científicos, teses, dissertações e outros materiais bibliográ-
ficos semelhantes.

RESULTADO E DISCUSSÃO

Conforme dados levantados pela pesquisa, é importante legitimar as


intervenções paternalistas estatais sobre a autonomia individual e, para

191
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

isso, é necessário compreender quem são os sujeitos abarcados pela teoria


paternalista e entender em quais situações o Estado estará autorizado a
gerir a vida e as escolhas particulares de cada indivíduo, com a justificativa
de que promoverá um bem ou defendendo-o de algum mal, para que não
haja abuso da liberdade e autodeterminação individual.

CONCLUSÕES

Como ficou constatado, tem-se admitido o paternalismo jurídico


penal que é invocado para o Estado tutelar os direitos dos sujeitos em si-
tuação de vulnerabilidade. O Direito Penal deve agir paternalisticamente
protegendo o bem jurídico fundamental, a autonomia individual e tam-
bém analisando se o indivíduo não pode ser autônomo, pois se houver
autonomia não há legitimidade para impedir a sua liberdade. É uma ma-
neira de resguardar os sujeitos diante de suas fragilidades e proporcionar a
igualdade de condições e a promoção do bem.
Ao proteger os grupos vulneráveis tem-se uma harmonização de
valores constitucionais, cumprindo a proteção da dignidade da pessoa
humana, valorizando a diversidade, respeitando as diferenças entre os
seres humanos em seus contextos sociais e culturais, reduzindo as de-
sigualdades, priorizando a promoção da justiça social com a equidade
e inclusão e articulando as dimensões ética, humanista e política do
Direito Penal.

REFERÊNCIAS

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CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

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normas penais. São Paulo: LiberArs, 2015.

193
APLICABILIDADE DA TEORIA
DA SOCIEDADE ABERTA DE
INTÉRPRETES DE PETER HABERLE
DIANTE DA ASCENSÃO DAS REDES
SOCIAIS
Daniella Gomes Reis Peixoto25

INTRODUÇÃO

As redes sociais permitiram uma maior integração da sociedade, não


apenas no sentido de buscar conhecimentos e informações, mas também
de compartilhá-los, tornando possível emitir opiniões e posicionamentos
sobre diferentes tipos de assuntos. Esse universo se abriu também para o
mundo jurídico, permitindo que a sociedade tivesse acesso e meios para
apreciar, criticar e interpretar normas jurídicas e decisões judiciais, tanto
da Suprema Corte, quanto de juízes e tribunais inferiores.
Em sua obra Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes
da Constituição, Peter Haberle busca uma mudança metodológica da inter-
pretação constitucional tradicional, de forma a promover sua democrati-
zação através da ampliação do círculo de intérpretes. Haberle propõe essa
alteração de paradigma da teoria da interpretação por meio de indagações

25 Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis (UCP).

194
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

sobre os participantes da interpretação, levando a discussão para além dos


questionamentos usuais sobre tarefas, objetivos e métodos.
Neste panorama, pretende-se investigar o seguinte problema: a teo-
ria da sociedade aberta de intérpretes tornou-se uma necessidade diante
da ascensão das redes sociais? Objetiva-se introduzir, com esta pesquisa,
uma abordagem sobre os sujeitos da interpretação constitucional e analisar
como essa realidade incorporada pelas redes sociais afeta o papel contra-
majoritário do Poder Judiciário.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Haberle possui uma teoria constitucional voltada ao pluralismo e, em


razão disso, uma preocupação com a representação dessa sociedade no fa-
zer interpretativo. Nesse sentido, ele entende que não se pode definir um
número fechado de intérpretes da Constituição, pois todos estão vincula-
dos a ela e todos estão qualificados a interpretá-la. Esse modelo interpreta-
tivo promove uma absorção do fato social no campo jurídico, permitindo
uma comunicação entre a Constituição e a realidade pública.

Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que
vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente, um
intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ati-
vo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do
processo hermenêutico. Como não são apenas os intérpretes jurí-
dicos da Constituição que vivem a norma, não detêm eles o mono-
pólio da interpretação da Constituição. (HABERLE, 1997, p. 15).

A teoria da interpretação constitucional de Peter Haberle possui fun-


damento de validade na teoria democrática. Através da abertura do fazer
interpretativo, desconstruindo o entendimento de que essa tarefa seja um
fenômeno restrito ao Estado, proporciona a participação de todas as forças
da comunidade política e permite, com isso, que todas as vozes sejam ou-
vidas e conhecidas no desenvolvimento do Direito.

Retira-se da obra de Peter Häberle a observação segundo a qual


não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada (Es

195
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). Inter-


pretar um ato normativo nada mais é do que colocá-lo no tempo
ou integrá-lo na realidade pública (Einen Rechssatz “auslegen” bedeu-
tet, ihn in die Zeit, d.h. in die öffentliche Wirklichkeit stellen – um seiner
Wirksamkeit willen). (MENDES; VALE, 2014, p. 125).

É nesse caminho em que Peter Haberle propõe a democratização da


interpretação constitucional. Será por debate público, audiências públi-
cas e intervenções processuais que o poder jurisdicional poderá conhecer
e incorporar as demandas da sociedade e, com isso, integrar a realidade
no processo hermenêutico. Desse modo, o constitucionalista alemão pre-
tende, a partir da sua teoria da interpretação, inserir valores pluralistas
da sociedade democrática na construção da jurisprudência do Tribunal
Constitucional, mediante o maior acesso do cidadão a essa esfera de justiça
(ABBOUD, 2012).
No constitucionalismo contemporâneo, a jurisdição constitucional
se manifesta em um contexto em que se busca evitar abusos de poder e,
sobretudo, proteger um núcleo intangível de direitos. Diante dessa nova
conformação do Estado Democrático de Direito e a complexa estrutura
social concebida, emerge o papel contramajoritário do Poder Judiciário,
principalmente quando se pensa na Corte Constitucional e na sua atri-
buição precípua de guardiã e intérprete final da Constituição. O judiciá-
rio assume o dever de proteção do jogo democrático como instrumento
de controle das instituições em um sistema que preza pela separação dos
poderes e pela defesa dos direitos fundamentais constitucionalizados, as-
sim, revelam-se imunes inclusive ao processo político majoritário. Nes-
se sentido:

[…] no contexto de sociedades democratizadas, o Judiciário se


mostra como um terceiro elemento para sopesar a força de rei-
vindicações majoritárias, reconhecendo um fator estruturante de
balanceamento do poder na faceta assumida pelos magistrados em
reforçar a proteção de minorias. A partir desse pressuposto assumi-
do, há uma concepção reinante nas teorias jurídicas tradicionais de
que tribunais constitucionais são órgãos que repousam sua função
no sistema de freios e contrapesos justamente no potencial con-

196
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

tramajoritário, exercendo um poder de veto frente a arroubos da


maioria estabelecida. (SILVEIRA, 2014, p. 196).

METODOLOGIA

A metodologia utilizada na pesquisa é fundamentalmente a da pes-


quisa bibliográfica. A partir da fundamentação teórica, identificam-se as
bases fundantes da teoria de Peter Haberle e os propósitos da interpretação
judicial em um Estado Democrático de Direito. Em seguida discute-se,
a partir dessa compreensão, a aplicabilidade da teoria na sociedade atual.
Passando, então, a uma breve conclusão — sem a pretensão de encerra-
mento da discussão, devido à extrema complexidade do tema proposto.

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O ambiente digital tornou-se um meio de expressão da cidadania.


As pessoas fazem manifestações, protestos, emitem opiniões e assumem
posicionamentos através de publicações em redes sociais com potencial de
impactar outras milhares de pessoas, organizações e até órgãos governa-
mentais. Assuntos que antes ficavam restritos apenas às portas do tribunal
agora percorrem o mundo digital comportando julgamentos variados. O
conhecimento de seus direitos e deveres e essa maior possibilidade de in-
fluência dão à população recursos para questionar as normas jurídicas e
reivindicar decisões judiciais mais adequadas às expectativas da sociedade.
Esse movimento está em perfeita sintonia com a teoria da sociedade
aberta de intérpretes, uma vez que esta teoria dispõe que a interpretação
da norma deve acontecer por todo aquele que está regulado por esta nor-
ma. A hermenêutica constitucional, portanto, deve estar aberta a todos os
setores da sociedade, permitindo o desenvolvimento do texto normativo
através de sua atualização pública. A presença de participantes ativos é fun-
damental no processo de reconhecimento e revelação do Direito, e cabe
ao Judiciário o papel de controlar essa atuação para a proteção dos direitos
fundamentais e do próprio regime democrático.
Diferente do que possa parecer, o juiz não será guiado pela opi-
nião popular. Como esclarece George Abboud (2012), Haberle não
pretende introduzir o sufrágio universal como critério legitimador

197
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

da atividade da jurisdição constitucional, muito menos introduzir a


vontade da maioria como parâmetro normativo a orientar as decisões
do Tribunal Constitucional; para Haberle, todo órgão que possui sta-
tus de realizar a jurisdição constitucional tem o dever de zelar pelo
texto constitucional, inclusive, se for necessário, fazê-lo contra a
vontade da maioria.
É o poder contramajoritário do Poder Judiciário que permite prote-
ger a força normativa da Constituição, caracterizada por sua superiorida-
de, centralidade e imperatividade. É da própria norma constitucional que
se extraem os parâmetros interpretativos da tutela jurisdicional, e não da
opinião pública. Esta apenas insere o magistrado em uma realidade que ele
deve enxergar e conhecer para buscar a melhor decisão.
A teoria haberliana propõe que a atividade hermenêutica do magis-
trado deve estar vinculada aos preceitos constitucionais, de forma a se
conformar com a evolução consciente da sociedade plural que se apresen-
ta. Esta interação entre a norma constitucional e a comunidade contribui
para o efetivo exercício da função contramajoritária do Poder Judiciário e
para a densificação de sua legitimação democrática.

CONCLUSÕES

Diante dos elementos trazidos neste trabalho, pode-se perceber


como o conhecimento e o estudo da teoria da sociedade aberta dos
intérpretes da Constituição, defendida pelo constitucionalista Peter
Haberle, é de fundamental importância na sociedade atual, na qual
percebe-se uma participação voluntária da população no fazer inter-
pretativo a partir da ascensão das redes sociais. Além disso, sua correta
aplicabilidade contribui para o fortalecimento do papel contramajori-
tário do Poder Judiciário, pois se complementam e trazem legitimi-
dade ao sistema, uma vez que a ampliação do círculo de intérpretes
possibilita ao poder jurisdicional conhecer a sociedade pluralista que
vivencia a norma fundamental. Diante disso, deve-se ter em vista que a
Constituição será o parâmetro interpretativo que vinculará as decisões
dos legitimados formais e que estes deverão estar em constante diálogo
com os demais intérpretes da norma.

198
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

REFERÊNCIAS

ABBOUD, George. STF vs. vontade da maioria: as razões pelas quais a


existência do STF somente se justifica se ele for contramajoritário.
Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 921, p. 191-211, 2012.

HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aber-


ta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação
pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução Gilmar Fer-
reira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.

MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino. O pensamento de


Peter Häberle na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In:
CUNHA, Ricarlos Almagro Vitoriano (org.), Filosofia e direito:
ética, hermenêutica e jurisdição. Vitória: Seção Judiciária do Espírito
Santo, 2014.

SILVEIRA, Daniel Barile. O poder contramajoritário do Supremo


Tribunal Federal. São Paulo: Atlas, 2014.

199
RESPONSABILIDADE SOCIAL COMO
CAMINHO DE EFETIVAÇÃO PARA O
PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA
EMPRESA
Camila Corrêa Teixeira26
Jéssica Holandini Costa27
Samanta Carolina Magalhães Quaresma28
Carina Leal Nassar29

INTRODUÇÃO

Deve-se pontuar, de início, que com as modificações sociais e o de-


senvolvimento do mercado, é notório que as empresas tiveram que se
reinventar para cumprir com o seu papel social, haja vista que é preciso
analisar para além do lucro e observar a forma como se concretizam as

26 Advogada. Docente. Graduada e Especialista em Direito (Unama/Ser Educacional). Mes-


tranda em Administração (PPAD/Unama).
27 Graduanda em Direito (UNAMA/Ser Educacional). Estagiária do Escritório C. Teixeira Ad-
vocacia. Integrante da Liga Acadêmica de Direito Empresarial
28 Acadêmica de direito da Universidade da Amazônia, Belém-Pa. Graduada em Engenharia
da computação pela Universidade Federal do Pará.
29 Advogada. Graduada em Direito (Unama/Ser Educacional). Especialista em Direito Civil.
Mestrado em Direitos Fundamentais (PPGDF/Unama) em andamento

200
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

relações entre comunidade e empresa para alcançar o interesse de todos


através de meios utilizados para a manutenção desse convívio.
Com isso, verifica-se que com a evolução estatal e a garantia de di-
reitos, as responsabilidades empresariais também se modificaram, já que
foram analisados mais parâmetros para a efetivação do desenvolvimento
social, uma vez que “[…] as relações com a comunidade, meio ambiente,
consumidores e trabalhadores constituem um dos meios de concretiza-
ção do desenvolvimento social.” (BARACHO; CECATO, 2016). Nessa
esteira, é notório que através de ferramentas existe a possibilidade de as
empresas cumprirem com as suas obrigações sociais, permitindo que, por
meio destas e da atuação estatal, seja possível criar mais oportunidades
para as comunidades.
Nessa perspectiva, o objetivo deste trabalho é observar a responsabi-
lidade social empresarial como meio para a concretização do princípio da
função social das empresas com as comunidades.
Desse modo, a pesquisa justifica-se em razão da necessidade de anali-
sar a responsabilidade social empresarial como caminho para a efetivação
do princípio da função social da empresa para com a sociedade, tendo em
vista que o art. 170 da Constituição Federal prevê que se deve atentar para
a função social da propriedade, observando o interesse da coletividade e
possibilitando a concretização de garantias fundamentais e direitos sociais
(BRASIL, 1988).

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O princípio da função social, previsto em diversos pontos da Car-


ta Magna de 1988, com destaque para o inciso III do art. 170 (BRA-
SIL,1988), tem como objetivo assegurar a todos a existência digna, como
estabelecido nos ditames da justiça social, ao obedecer a função social da
propriedade e possibilitar que direitos fundamentais sejam garantidos para
a coletividade.
Neste viés, o inciso III do art. 170 da Constituição Federal trata que,
por meio do cumprimento da função social, pode ser assegurada a existên-
cia nos ditames da dignidade da pessoa humana, obedecendo aos requisitos
da justiça social e garantindo a equidade na sociedade (BRASIL, 1988).

201
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Nesse diapasão, percebe-se que, com a evolução da sociedade e a


transformação na forma de atuação estatal e no modo da garantia de direi-
tos fundamentais, as empresas passam a ter relevante papel social perante
as comunidades, já que “[…] a empresa contemporânea assume novo pa-
radigma no Estado Democrático de Direito, o lucro deixa de ser o único
objetivo da empresa que passa a ter preocupações com os efeitos sociais
e ambientais de suas atividades e com os valores éticos e morais.” (BA-
RACHO; CECATO, 2016). Em vista disso, nota-se maior preocupação
das empresas com o cumprimento das suas obrigações sociais perante as
comunidades, visando a concretização dos seus valores e possíveis formas
de desenvolvimento social a partir das suas atividades.
Desse modo, a responsabilidade social como caminho de concreti-
zação para a função social é um formato de paridade entre as relações
Estado-empresa-comunidade, visto que “A função social da empresa
constitui o poder-dever de o empresário e os administradores da empresa
harmonizarem as atividades da empresa, segundo o interesse da sociedade,
mediante a obediência de determinados deveres, positivos e negativos.”
(TOMASEVICIUS FILHO, 2003, p. 40). Diante disso, é importante o
alinhamento das empresas e as ações estatais aos anseios sociais para que
seja assegurado a todos uma sociedade justa, equitativa e solidária através
das garantias fundamentais.
Nessa perspectiva, é necessário que as ações estatais e as ferramentas
de apoio à responsabilidade social empresarial sejam debatidas a fim de
que ocorra a efetivação do princípio da função social da empresa perante
as comunidades.

METODOLOGIA

Utilizou-se de uma metodologia pautada na abordagem teórico-nor-


mativa, a qual analisou, por meio das disposições legais, a relação da res-
ponsabilidade social empresarial e da função social das empresas para com
as comunidades.
O procedimento utilizado foi o levantamento bibliográfico e legal,
a fim de verificar como a responsabilidade social empresarial pode ser o
caminho para a concretização do princípio da função social da empresa
para com a coletividade.
202
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Por conseguinte, com as transformações mercantis e o estabeleci-


mento legal para o cumprimento da função social da empresa, foi necessá-
rio que Estado e empresa, através também da sua responsabilidade social,
atuassem em conjunto para que fossem verificados aspectos para além do
lucro, mas também observando as condições sociais, já que: “Esse com-
portamento não implica, contudo, em uma diminuição da lucratividade,
mas ao contrário, pode-se constatar uma melhoria nas condições socioe-
conômicas das empresas que se voltam para o atendimento de necessida-
des sociais.” (ALMEIDA, 2003, p. 1).
Nesse ínterim, constata-se que, além da contribuição social adquirida
através da responsabilidade social empresarial, é possível que a sociedade
ainda apresente novas visões sobre aquela empresa, de forma a notar uma
melhoria nas condições socioeconômicas das empresas e gerar maiores
oportunidades de assistência às comunidades.
Outrossim, verifica-se que essas ações proporcionadas pelas empre-
sas devem ser para além da sua aparência perante a sociedade, mas sim
cumpridas de fato, demonstrando sua ética e relevância social, dado que
“Responsabilidade social exige coerência entre valores e atitudes, e isso é
mais do que simplesmente uma ‘estratégia de marketing’, é um compro-
metimento ético com a comunidade, com a região e com o país nos quais
a empresa está inserida.” (LOPES, 2006). Assim, as atitudes obrigacionais
de responsabilidade social devem ir para além do mundo das aparências,
para que sejam verdadeiramente efetivadas.
Do mesmo modo, o princípio da função social é constituído de mé-
todos para que os interesses gerais e fundamentais sejam efetivados, visto
que: “A função social da empresa representa, portanto, um conjunto de
fenômenos importantes para a coletividade e é indispensável para a satis-
fação dos interesses inerentes à atividade econômica.” (ALMEIDA, 2003,
p.11). Em razão disso, percebe-se que a responsabilidade social empre-
sarial é um meio de extrema relevância para a efetivação do princípio da
Função Social da Empresa, concebendo possibilidades de concretização
de direitos sociais.

203
P E N S A N D O S O C I E D A D E , C U LT U R A E D I R E I TO

Diante disso, mesmo que de forma optativa, é de extrema impor-


tância que as empresas também apresentem ferramentas para além do
que é exigido na legislação, buscando cumprir com o seu papel/visão
social em virtude de que “A responsabilidade social da empresa é o exer-
cício de uma atividade transcendente à função social da empresa, que
visa interesses sociais não previstos na função social da empresa, mas que
estão ligados à atividade econômica da empresa. São valores sociais de
realização facultativa.” (LOPES, 2006). Desta forma, é notório que para
a manutenção empresarial perante as comunidades e principalmente
para a concretização de direitos fundamentais, é necessário que se tenha
a responsabilidade social como caminho de efetivação para o princípio
da função social da empresa.

CONCLUSÕES

Mediante a análise da responsabilidade social como caminho para a


efetivação do princípio da função social da empresa para com as comuni-
dades, qual seja o objetivo desta pesquisa, observou-se que:

O cumprimento da função social é fruto de uma atuação econô-


mica responsável e é obrigação legal do proprietário, como conse-
quência do regime jurídico-econômico constitucional do direito
de propriedade, enquanto a responsabilidade social é uma facul-
dade posta à disposição do proprietário que, ao exercer a atividade
econômica, poderá também contribuir voluntariamente na solu-
ção dos problemas sociais. (LOPES, 2006).

Nesse sentido, as empresas, com o intuito de promover uma melhor


imagem para a sociedade e lhe possibilitar a garantia de direitos sociais,
observam métodos por meio das suas obrigações sociais para que a função
social de seu negócio para com o interno e externo sejam efetivadas.
Isto posto, conclui-se que a responsabilidade social pode ser um ca-
minho para a efetivação do princípio da função social da empresa, haja
vista que, por meio de ferramentas utilizadas para a propositura de ações
sociais, pode garantir uma sociedade justa, equitativa e solidária, cum-
prindo com sua função social.

204
CLAUDIA LIMA MONTEIRO, NARA RÚBIA ZARDIN, GUTIANNA MICHELLE DE OLIVEIRA DIAS (ORGS.)

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Maria Christina. A função social da empresa na sociedade


contemporânea: perspectivas e prospectivas. Revista Argumen-
tum-Argumentum Journal of Law, v. 3, p. 141-152, 2003.

BARACHO, Hertha Urquiza; CECATO, Maria Aurea Baroni. Da fun-


ção social da empresa à responsabilidade social: reflexos na comuni-
dade e no meio ambiente. Direito e Desenvolvimento, v. 7, n. 2,
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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federa-


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Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/
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LOPES, Alex Luís Luengo. A empresa privada à luz da ordem eco-


nômica constitucional brasileira de 1988: papel, função e res-
ponsabilidade social. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade
de Marília, Marília, 2006.

TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A Função Social da Empresa. Re-


vista dos Tribunais, São Paulo, n. 92, p. 40-46, abr. 2003.

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