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Coordenadoras

Elaine Adelina Pagani


Rosângela Maria Herzer dos Santos
Fernanda Osório

Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade:


Balanço e perspectivas – Volume VI

Porto Alegre, 2021


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Coordenadoras
Elaine Adelina Pagani
Rosângela Maria Herzer dos Santos
Fernanda Osório

D635
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do
Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas. / Elaine Adelina
Pagani, Rosângela Maria Herzer dos Santos, Fernanda Osório.
(Coordenadoras). Porto Alegre: OABRS. 2021. p. 187. V.6.
ISBN: 978-65-88371-16-9
1. Direito Urbano. 2. Planejamento Urbano. I Título
CDU: 34:711

A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos


assinados, são de responsabilidade dos seus autores.

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COOABCred-RS

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Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

PALAVRA DO PRESIDENTE – Ricardo Breier ............................................................ 8

PALAVRA DA DIRETORA – Rosângela Maria Herzer dos Santos ............................. 9

PREFÁCIO - Daniela Campos Libório .......................................................................... 10

APRESENTAÇÃO - Elaine Adelina Pagani .................................................................. 11

PLANOS DIRETORES E CIDADES: UMA ABORDAGEM SOB A PERSPECTIVA


DA CIDADE COMO UM SISTEMA COMPLEXO E AUTO-ORGANIZADO -
Alessandro Geremia .......................................................................................................... 12

A PAISAGEM CULTURAL: UMA REFLEXÃO PÓS-PANDEMIA A PARTIR DO


ESTUDO DE CASO DE CIDREIRA/RS - Andréa Marta Vasconcellos Ritter .......... 25

CAMPOS DE ATUAÇÃO PARA A ADVOCACIA URBANÍSTICA: DESAFIOS E


POSSIBILIDADES - Andrea Teichmann Vizzoto, Elaine Adelina Pagani, Fábio Scopel
Vanin e João Telmo de Oliveira Filho ............................................................................. 41

OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE E AS POSSIBILIDADES DE


PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO - Carla Portal Vasconcellos, Milena
Albrecht Silveira, Miléia Alves e Thaís Maria Rossetto ................................................ 53

ESTATUTO DA CIDADE, VAZIOS URBANOS E ÁREAS OCUPADAS - Carla


Portal Vasconcellos, Bruna Galvan, Juliane Avila Marques, Kauize de Moura
Valandro, Lucas Fernando Zuffo Ferreira Borges, Luiz Eduardo Lupatini e Rafaela
Zauza .................................................................................................................................. 74

IMPACTOS CAUSADOS PELO LANÇAMENTO DE RESÍDUOS URBANOS NO


OCEANO: ALTERNATIVAS DE PREVENÇÃO - Cristina Dal Sasso ...................... 92

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO FUNDAMENTAL A PROPRIEDADE


NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS FRENTE À LIMITAÇÃO DE SUA
FUNÇÃO SOCIAL - Diogeano Marcelo de Lima e Rafaela Patricia Inocencio da Silva
........................................................................................................................................... 109

O ESTATUTO DA CIDADE E OS INSTRUMENTOS DE PRESERVAÇÃO


PATRIMONIAL: O CASO DO ENGENHO BENINCÁ EM PASSO FUNDO – RS-
João Telmo de Oliveira Filho e Greice Barrufaldi Rampanelli .............................. 126
UTOPIAS, INSTRUMENTOS E TERRITÓRIO NO DIREITO URBANO — 20
ANOS DE ESTATUTO DA CIDADE - Jorge Guilherme Francisconi ...................... 143

ESTATUTO DA CIDADE 20 ANOS DEPOIS: ENTRE AVANÇOS E


DESENCANTOS - Marcelo Leão .................................................................................. 169
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

PALAVRA DO PRESIDENTE

Ao receber o convite para contribuir com o prefácio desta obra, um dos detalhes que
prontamente me chamou a atenção foi a publicação do sexto volume envolvendo a temática
do Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Pela intensidade com a qual está temática
vem sendo debatida e gerando artigos fica demonstrada a relevância desta pauta para a
sociedade brasileira.
O rápido desenvolvimento tecnológico e seus impactos no modo de viver das
pessoas, a necessidade de achar o equilíbrio entre desenvolvimento X sustentabilidade, e a
busca por alternativas que preservem o individual e valorizem o coletivo são fontes de
intensos questionamentos.
É preciso estabelecer parâmetros e segurança jurídica para que as pessoas tenham as
condições de viver e conviver dentro de regras transparentes e com aplicação a médio e
longo prazo. Ao mesmo tempo, é necessário fazer com que haja uma aproximação de
realidades tão distintas dentro de uma mesma localidade. Quem planeja corretamente tem
grandes chances de obter um resultado positivo. E isso vale para nossas cidades.
O protagonismo de advogados e advogadas em demandas do Direito Urbanístico e
Planejamento Urbano é de extrema relevância. Com o olhar especializado e conhecedor do
universo das leis, a contribuição da advocacia permite que tenhamos a construção de
soluções e a resolução de impasses diante de cenários complexos e desafiados.
Nos seis anos em que atuei como presidente da OAB/RS, fomentamos o espírito de
participação em trabalhos conduzidos pela Escola Superior da Advocacia. Temos recebido
significativas e emblemáticas manifestações do alcance e da relevância de artigos produzidos
em diferentes obras publicadas nos últimos anos.
Desta forma, é com grande satisfação que vejo a materialização do e-book digital
“Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas – Volume VI”.
Em nome da presidente da ESA/RS, Rosângela Herzer dos Santos, e da presidente
da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS, Elaine
Adelina Pagani, parabenizo todos os colegas que contribuíram com seus conhecimentos para
esta obra.

Desejo a todos uma boa leitura!

Ricardo Breier
Presidente da OAB/RS
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

PALAVRA DA DIRETORA

Mais uma vez, a Escola Superior de Advocacia da OAB/RS (ESA/RS), juntamente


com a Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano (CEDUPU) da
OAB/RS, cumprem com sua missão de abrir espaço e fomentar a difusão de conhecimento
atualizado e contextualizado com a realidade.
Deixo registrado minha satisfação em perceber que este assunto segue gerando
pesquisas e análises aprofundadas, e enriquecedora produção de conteúdo de relevante
interesse social.
O lançamento do livro, no formato e-book, “Direito Urbanístico e Planejamento
Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e perspectivas – Volume VI” é mais
uma ferramenta que se soma no processo permanente de debates e caminhos na busca de
soluções mais ajustadas para a área de estudo do Direito Urbanístico.

Boa leitura!

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Diretora-geral da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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PREFÁCIO

Uma lei não é apenas uma lei. Seu universo está além de suas letras, de sua leitura
ou compreensão imediata. Pode romper barreiras na realidade dos fatos, na relação das
pessoas e do Estado com os cidadãos. Pode inovar verdadeiramente e buscar equilíbrio na
sociedade. É disso que se trata quando o objeto de estudo é a lei federal nº 10.257/01,
chamada de Estatuto da Cidade. Uma jovem de 20 anos, com vigor e expectativas de ainda
muito vivenciar.
Se por um lado há essa norma jurídica tão significativa, classificada como norma
geral em direito urbanístico, prevista nos artigos 24, I e 182 da Constituição Federal, por
outro há um modo de viver, urbano e contemporâneo, em uma sociedade consumista e
capitalista que trata o acesso à terra como uma mercadoria como qualquer outra. Nesse
sentido, há uma tensão permanente entre a aplicação das diretrizes e dos instrumentos
previstos no Estatuto da Cidade e a realidade posta nas cidades brasileiras. O desequilíbrio
é evidente. Mais que isso, é cruel, desigual e tem se agravado em uma constância
proporcional à força advinda pelo interesse financeiro ao solo urbano.
Um dos grandes valores do Estatuto da Cidade é justamente trazer luz ao debate sobre
o planejamento urbano e a implementação de instrumentos específicos para lidar com a
realidade da ocupação seja no aspecto construtivo seja quanto à importância da participação
popular como elemento indissociável da efetivação dos planos urbanísticos elaborados.
Diante da falta de cultura planificadora e diante do crescimento desordenado e
espontâneo das áreas urbanas, a implementação do Estatuto da Cidade é um desafio posto.
Nisso está a importância dessa obra produzida pela Comissão de Direito Urbanístico e
Planejamento Urbano da OAB-RS, com suporte da ESA, que, ao homenagear os 20 anos da
lei, provoca uma reflexão necessária à sua continuidade e aperfeiçoamento. Muito há o que
avançar e o Estatuto da Cidade é o marco referencial para balizar o caminho para a
construção de cidades mais justas, sustentáveis e inclusivas.

Daniela Campos Libório


Presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico do CFOAB
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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APRESENTAÇÃO

É com imensa satisfação que a Comissão Especial de Direito Urbanístico e


Planejamento Urbano da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Sul
lança o sexto volume do periódico anual “Direito Urbanístico e Planejamento Urbano”.
Fruto do dedicado e comprometido trabalho em equipe dos membros da Comissão,
o conteúdo deste volume vem ao encontro do papel assumindo pela Ordem junto à cidadania,
visando provocar a reflexão e o debate sobre o desenvolvimento urbano sustentável,
inclusivo e a efetividade da aplicação dos instrumentos de regularização fundiária do
Estatuto da Cidade.
Cada um dos volumes anteriores teve por objetivo focar temas importantes,
polêmicos e emergentes para as questões urbanas e gestão das cidades.
E neste ano, o foco do livro é o Estatuto da Cidade, pois comemora-se vinte anos da
sua promulgação. Importante ressaltar que, não obstante os entraves administrativos,
judiciais e políticos encontrados para a implantação e implementação das normas do Estatuto
da Cidade, muitos municípios brasileiros lograram êxito na condução de importantes
avanços na direção da construção coletiva de cidades democráticas, justas, sustentáveis e
inclusivas. Entretanto um longo caminho ainda deve ser trilhado.
Com efeito, o volume seis traz para o debate as várias reflexões sobre a efetividade
na aplicação do Estatuto da Cidade. Cabe também atentar para o artigo escrito em
colaboração pelos membros da CEDUPU sobre os campos de atuação para a advocacia
urbanística.
Este livro foi elaborado com o apoio da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS
para servir como referencial teórico-prático para pesquisas acadêmicas.
Por fim, um especial agradecimento a todas as pessoas que protagonizam as
transformações sociais nas cidades com o intuito de torná-las lugares melhores de se viver e
conviver.

Elaine Adelina Pagani


Presidente de Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano
da OAB/RS
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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PLANOS DIRETORES E CIDADES:


UMA ABORDAGEM SOB A PERSPECTIVA DA CIDADE COMO UM
SISTEMA COMPLEXO E AUTO-ORGANIZADO

Alessandro Geremia1

Resumo: O presente estudo pretende refletir sobre a pertinência do modelo de planejamento


urbano centrado na figura do plano diretor - como preconizado pela Constituição Federal e
pelo Estatuto da Cidade -, na busca de cidades com uma melhor qualidade e bem-estar para
a totalidade de seus habitantes. Entende-se que as normas jurídico-urbanísticas brasileiras
possuem valências que deveriam refletir na evolução qualitativa da situação de nossas
cidades. Entretanto, verifica-se uma baixa efetividade dos instrumentos e mecanismos
previstos no Estatuto da Cidade. Parte-se da premissa que a cidade é um sistema complexo
e auto-organizado e, a partir disso, conjectura-se que, dentre outros fatores, a baixa
efetividade da normativa urbanística se dá em função de que cidades e planos diretores
possuem princípios distintos. Apresenta-se, ainda, algumas propostas que buscam
alternativas para superar o problema supracitado.

Palavras chaves: planos diretores – Estatuto da Cidade – cidades - sistemas complexos.

INTRODUÇÃO

Em 2009 a ONU anuncia formalmente que, pela primeira vez na história, a população
urbana havia superado o número da população rural. No Brasil o fenômeno da urbanização
se consolida a partir da segunda metade do século XX, fruto de um processo intenso de
migração do campo para as cidades. Em 2010 o IBGE estimava que 84% da população
brasileira vivia nas cidades. Esse processo de urbanização se deu de forma desequilibrada,
não sendo acompanhado do incremento apropriado de infraestrutura e de um controle sobre
o uso e ocupação do solo de forma adequada. Esse fato gera uma série de problemas que
ainda são verificados nas cidades brasileiras, tais como: crescimento urbano desordenado e
incompatível com a infraestrutura local, dispersão urbana, alta taxa de ocupação do solo em
áreas precárias, debilidade na mobilidade urbana e déficit habitacional. Nesse cenário, a
urbanização tem um papel importante nos processos de esgotamento e fragmentação de

1
Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS e em Direito pela UFRGS. Especialização em Direito
do Estado pela UFRGS e Especialização em Regulação de Serviços de Transporte Terrestre pela UFRJ. Mestre
em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR/UFRGS. Doutorando em Planejamento Urbano e Regional
– PROPUR/UFRGS.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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ecossistemas, criando ambientes vulneráveis, reforçando dinâmicas de segregação social,


desigualdade e dependência do automóvel2.
Nesse contexto a Constituição Federal de 1988 dedicou um capítulo exclusivo,
mesmo que singelo, para a política urbana, sendo a primeira vez na história brasileira que a
questão urbana adquire status constitucional.3 O artigo 182 da nossa Lei Maior assim dispõe:
“A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” Prosseguindo, o
parágrafo primeiro do artigo citado determina que o plano diretor “é o instrumento básico
da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
Cabe chamar a atenção para dois pontos da redação constitucional: necessidade da
promulgação de uma lei que venha regulamentar o disposto no seu texto e o papel central do
plano diretor na política urbana. O diploma legal que regulamentou os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal foi a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada de Estatuto da
Cidade e que só foi publicada depois de transcorridos 13 anos da promulgação do texto
constitucional e foi fruto de intensos debates.
O Estatuto da Cidade foi recebido como um sopro de esperança para superar ou, pelo
menos, mitigar problemas históricos das nossas cidades. Nesse sentido, Nelson Saule Júnior
(2001)4 reconhece o caráter inovador da lei, inferindo que as disposições contidas no diploma
possibilitariam o desenvolvimento de uma política urbana que contemplasse os princípios
de reforma urbana e serviriam para efetivar a transformação das cidades brasileiras em
cidades mais justas, humanas e democráticas. Entretanto, alguns autores5 advertiram que
não convinha superestimar as repercussões imediatas da lei pois ainda careciam de
regulamentação posterior,6 embora reconhecessem a aplicabilidade direta de algumas de suas

2
ROMICE, Ombretta; PORTA, Sergio; FELICIOTTI, Alessandra. Masterplanning for Change: Designing
the Resilient City. Routledge, 2020.
3
Para um histórico do processo de inclusão do Capítulo da Política Urbana na Constituição Federal ver
VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil. In DEÁK, C.; SCHIFFER,
S.R. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
4
SAULE JUNIOR, Nelson. Estatuto da Cidade: instrumento de reforma urbana. SAULE JÚNIOR, Nelson.
ROLNIK, Raquel. Estatuto da Cidade: novos horizontes para a reforma urbana. (Cadernos Pólis, 4). São
Paulo: Pólis. P. 10-36, 2001.
5
Por todos, SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas diretrizes gerais. In Dallari, Adilson Abreu
e Ferraz, Sérgio (coordenadores). Estatuto da Cidade - Comentários à Lei Federal 10.257/2001. São Paulo,
SBDP/Malheiros, 2002.
6
Sobre o assunto, escreve Bonizzato: “Portanto, as barreiras a serem transpostas para a consecução de muitos
objetivos insculpidos em documentos legais infraconstitucionais desprovidos de aplicabilidade plena e
imediata são firmes e robustas, portando-se grande desânimo aos ramos sociais interessados na
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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normas, como nos casos dos capítulos referentes ao usucapião especial de imóveis urbanos
e ao direito de superfície (SUNDFELD, 2002).
Edésio Fernandes (2021)7 ao analisar o itinerário histórico percorrido pelo Estatuto
da Cidade aponta a existência de três fases distintas. Um primeiro momento, na sua
aprovação, gerou um sentimento de otimismo em torno da lei. Depois de transcorridos alguns
anos, passa-se para um segundo momento em que o otimismo cede lugar a uma certa
desconfiança decorrente das críticas crescentes dos movimentos sociais urbanos. Após 10
anos, segue-se a um momento de descrédito em função de diversas avaliações negativas dos
novos planos diretores e de uma visão generalizada de inefetividade dos instrumentos
previstos no diploma legal. Por fim, o autor sugere a possibilidade de estarmos presenciando
um novo momento na percepção do Estatuto da Cidade dando-se um certo abandono da lei,
em consequência de resistências municipais crescentes à atualização dos planos diretores e
pela criação de leis e de outras figuras regulatórias que propõe “[...]as bases de outra cultura
jurídico-político-urbanística que não aquela do Estatuto da Cidade”.
Não obstante, transcorridos 20 anos da aprovação do Estatuto e já chegando a
segunda geração de planos diretores elaborados sob as suas diretrizes, vislumbra-se que os
problemas que deram origem aos dispositivos sobre política urbana da Constituição Federal
continuam existindo. As mazelas citadas anteriormente (crescimento urbano desordenado,
dispersão urbana, alta taxa de ocupação do solo em áreas precárias, precariedade na
mobilidade urbana, déficit habitacional etc.) permanecem afligindo as cidades brasileiras.

1. PROBLEMÁTICA

Diante de todo o exposto até aqui, é forçoso concluir que o Brasil possui normas
urbanísticas cujos atributos deveriam refletir numa evolução da situação de nossas cidades.
Mesmo considerando, de certo modo, o período relativamente curto de sua vigência, o retrato
de nossas cidades não condiz com o arcabouço legal vigente. Assim, a ideia deste estudo

concretização ampla de direitos e garantias legalmente previstos. Se, por um lado, prevê-se uma série de
direitos, representativos de avanços sociais e democráticos, por outro lado, impõem-se, paralelamente,
obstáculos à sua materialização”. (BONIZZATO, Luigi. Função ambiental da cidade, Plano Diretor e validade
das normas urbanísticas. Revista de Direito da Cidade, v. 5, n. 1, p. 86-116, 2013.)
7
FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, 20 anos, foi da euforia ao abandono, diz especialista. [Entrevista
concedida a] Talden Farias e Arícia Fernandes Correia. Revista Consultor Jurídico, 7 de agosto de 2021.
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-ago-07/entrevista-edesio-fernandes-professor-urbanista.
Acesso em: 13 de outubro de 2021.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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surge a partir da seguinte indagação: qual o motivo da baixa efetividade8 das normas
urbanísticas no contexto brasileiro, observada no fosso existente entre a idealização
normativa e a realidade das nossas cidades?
Nesse ponto, faz-se necessária trazer à baila a lição de Fernandes (2013, p.233),9 para
quem “[...]’boas leis’ por si sós não mudam as realidades urbanas e sociais, por mais que
expressem princípios de inclusão socioespacial e justiça socioambiental [...]”, tal
observação é válida também para o Estatuto da Cidade, cujas disposições previram uma série
de mecanismos e instrumentos para a materialização dos princípios inscritos na lei. Assim,
se associando a visão do autor, faz-se a ressalva que não se desconhece que a lei – como
norma de caráter geral e abstrata - não possui a faculdade de alterar a realidade urbana e
social das cidades brasileiras.

2. O PLANO DIRETOR COMO INSTRUMENTO BÁSICO DE POLÍTICA


URBANA
Preliminarmente, cabe uma advertência: não se ignora o fato de que para a efetiva
implementação de mudanças estruturais nas nossas cidades, mostra-se imprescindível o
comprometimento dos diversos atores políticos das nossas cidades, sobretudo por parte
daqueles que detém o poder decisório. Esse enfoque já foi abordado e muito bem
demonstrado em diversas ocasiões. Nesse sentido, para exemplificar, Maricato (2001, p.42)10
esclarece que “[...] entre a lei e sua aplicação existe um abismo que é mediado pelas
relações de poder na sociedade”.
Deste modo, propõe-se uma reflexão sobre a baixa efetividade das normas
urbanísticas por um outro ângulo, qual seja: a incompatibilidade entre o instituto do plano
diretor em função de possuírem lógicas distintas.
Observa-se que o Estatuto da Cidade põe em relevância o plano diretor como
instrumento básico para orientar a política de desenvolvimento e de ordenamento da
expansão urbana. Por disposição legal, o plano diretor é instituído por lei municipal, sendo
obrigatório para as cidades que se enquadram em alguns requisitos11. Além disso, integra o

8
Para fins deste estudo, entende-se por efetividade, a conformidade da situação de fato à situação jurídica
outorgada ou imposta ao sujeito para o cumprimento ou para a aplicação da norma. (JEAMMAUD, Antoine.
En torno al problema de la efectividad del derecho. Crítica Jurídica no. 1, p. 12.)
9
FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, mais de 10 anos depois: razão de descrença, ou razão de
otimismo? Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, n. 1, p. 212-233, 2013.
10
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Editora Vozes, 2001, pg.
42.
11
Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade:
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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processo de planejamento municipal devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias


e o orçamento anual municipal incorporar as diretrizes e prioridades nele contidas.
Dito isso, vislumbra-se que os planos diretores são o mais importante instrumento de
efetivação das políticas urbanas previstas no ordenamento jurídico. Vale dizer que os planos
são os instrumentos que traduzem as diretrizes gerais e abstratas previstas em leis para a
realidade cotidiana das cidades brasileiras. Dessa forma a elaboração de um plano diretor
não deveria visar apenas o atendimento a uma determinação legal, mas, sobretudo, buscar
melhorias das condições da cidade e dos seus habitantes. Verifica-se que o percentual de
municípios brasileiros que possuem planos diretores aprovados avançou de 15% em 1999
para 51,5% em 201812.
Apesar de sua importância, não se pode confundir o plano diretor com todo o
processo de planejamento urbano. Conforme ensina Villaça (1999, p.187),13 “o planejamento
urbano seria um processo çontínuo do qual o plano diretor constituiria um momento”. Dessa
forma, ao assumir que o plano diretor faz parte de um processo mais abrangente, não sendo
um fim em si, limita-se seu papel e demarca uma vinculação nítida com a gestão urbana. Os
planos urbanísticos, juntamente com outros instrumentos de política urbana, como os
projetos urbanos e a regulação carecem de estar harmônicos com a gestão da cidade, não
devendo estar descolados “[...] da capacidade de organização e possibilidades reais de
implementação e controle dessa política.” (ROLNICK, 2003, p.17)14
Cumpre anotar que não se desconhece que os impactos dos planos urbanísticos não
se dão de forma repentina, por vezes o período de tempo de maturação do planejamento e a
implementação de suas medidas é longo. Além disso, o plano diretor não é uma panaceia
para todas as questões urbanas, mas considerando que os planos têm papel de destaque e

Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:


I – com mais de vinte mil habitantes;
II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;
III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4o do art. 182 da
Constituição Federal;
IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico;
V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de
âmbito regional ou nacional.
VI - incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de
grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos.
12
IBGE. Perfil dos municípios brasileiros: 2018. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
13
VILLAÇA, Flávio. Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil. In DEÁK, C.; SCHIFFER,
S.R. O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
14
ROLNIK, Raquel. Política Urbana no Brasil: esperança em meio ao caos? Revista dos Transportes
Públicos - ANTP, v. 25, 2003, p.17.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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prevalência nos diplomas legais citados, especula-se que a abordagem, a metodologia


utilizada na elaboração de tais planos, bem como a forma e seu conteúdo não se mostram,
de maneira geral, adequados para reverberar os ideais preconizados nas leis urbanísticas.
As críticas aos planos diretores se avolumam e revelam problemas de diversas
naturezas. Villaça (1999, p.190) por exemplo, cita a inconsequência e inutilidade da maioria
dos planos desenvolvidos ao longo dos anos. Outro ponto que chama atenção negativamente
é a estandardização, verificada quando os planos são meras cópias de modelos que não
possuem aderência à realidade municipal (FERNANDES, 2013)15. No mesmo sentido
crítico, Santos Junior e Montandon (2011, p.31) apontam que “Muitos planos apenas
transcreveram os trechos do Estatuto, outros incorporaram os instrumentos sem avaliar sua
pertinência em relação ao território e à capacidade de gestão do município, outros, ainda,
incorporaram alguns fragmentos de conceitos e ideias do Estatuto de modo desarticulado
com o próprio plano urbanístico”16. O forte apelo principiológico e a falta de regras e
mecanismos que designem ações concretas de aplicabilidade imediata também são
verificados na maioria dos planos, resultando em formosos discursos sem, entretanto,
disponibilizar meios para a concretude da política urbana.
Usualmente os planos diretores tradicionais são estabelecidos dentro de um princípio
top-down17 e regula o desenvolvimento da cidade utilizando-se de mapas em duas dimensões
e documentos de texto (PISSOURIS, 2014)18. Esses planos regulam o espaço urbano,
tornando-se rígidos, predeterminados e não compatíveis com a incerteza e a dinâmica que
altera a feição das cidades19. Alfasi (2018)20 ensina que desde 1900, e particularmente a
partir de 1950, o planejamento urbano tem sido conduzido no modelo top-down, centrado
no zoneamento e planos estatutários de uso do solo, utilizados principalmente para definir
um quadro visionário do futuro das cidades. Entretanto, como advertem Alfasi e Portugali

15
FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade, mais de 10 anos depois: razão de descrença, ou razão de
otimismo? Revista da Universidade Federal de Minas Gerais, v. 20, n. 1, p. 212-233, 2013.
16
SANTOS JUNIOR, O. A.; MONTANDON, D. T. "Síntese, desafios e recomendações". In: SANTOS
JUNIOR, O. A.; MONTANDON, D. T (orgs.) Os planos diretores municipais pós Estatuto da Cidade:
balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011.
17
PISSOURIOS, Ioannis et al. Top-down and bottom-up urban and regional planning: Towards a framework
for the use of planning standards. European Spatial Research and Policy, v. 21, n. 1, p. 83-99, 2014.
18
VIDMAR, Jernej; KOŽELJ, Janez. Adaptive urbanism: a parametric maps approach. Theory and Practice
of Spatial Planning, v. 3, p. 44-52, 2015.
19
Ibidem.
20
ALFASI, Nurit. The coding turn in urban planning: Could it remedy the essential drawbacks of
planning?. Planning Theory, v. 17, n. 3, p. 375-395, 2018.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

18

(2007, p. 167)21, “[...] nenhum plano é capaz de controlar totalmente uma cidade, incluindo
aqueles criados por órgãos de planejamento estaduais e municipais e aqueles elaborados
por grandes empresas e organizações. Portanto, os modelos atuais de planejamento não
podem regular totalmente a forma urbana”. No mesmo sentido, Verebes (2013)22 reconhece
a dificuldade, ou até mesmo a impossibilidade de uma previsão totalmente precisa.

3. AS CIDADES COMO SISTEMAS COMPLEXOS

As cidades, por sua vez, sob viés modernista, cujo auge ocorreu em meados do século
passado, era entendida como uma máquina composta por partes separadas por função. Com
acerto, Verebes (2013)23 leciona: “Este paradigma de cidade como uma máquina está cada
vez mais sendo rejeitado em favor de analogias biodinâmicas”, prossegue o professor
americano afirmando que a cidade não pode mais ser concebido como um ideal construído
e que deve ser entendida como um sistema complexo, dinâmico e, inerentemente, difícil de
gerenciar e controlar. Na mesma senda, Batty (2012)24 afirma que as cidades são mais bem
compreendidas como organismos do que como máquinas.
Assim, vale-se da conceituação de Batty e Torrens (2001)25 para quem um sistema
complexo é uma entidade, coerente e de alguma forma reconhecível, cujos elementos,
interações e dinâmica geram estruturas e admitem novidades que não podem ser definidas a
priori. Para Portugali (2006)26 sistemas complexos são compostos por inúmeras partes
relacionadas, que possuem a faculdade de constituir novas valências do desempenho do todo
de acordo com a sua auto-organização. Além disso, anota-se que numa perspectiva sistêmica,
quantitativamente, o todo é maior do que a soma de suas partes, ou seja, em um sistema
complexo, as propriedades agregadas não se resumem a somas das propriedades dos
elementos individuais. Em suma, conforme expõe Hillier (2012, p. 43)27, “[...] as cidades

21
ALFASI, Nurit; PORTUGALI, Juval. Planning rules for a self-planned city. Planning theory, v. 6, n. 2, p.
164-182, 2007. (tradução livre do autor)
22
VEREBES, Tom (Ed.). Masterplanning the adaptive city: Computational urbanism in the twenty-first
century. Routledge, 2013
23
Ibidem.
24
BATTY, M. Building a science of cities. Cities, 29(6), S9–S16. 2012.
25
BATTY, M.; TORRENS, P. M. Modeling complexity: the limits to prediction. Cybergeo: European
Journal of Geography, 2001.
26
PORTUGALI, J. Complexity theory as a link between space and place. In: Environment and Planning A
38(4), London: Pion. pp 647-64. 2006.
27
HILLIER, J. Baroque complexity. In: DE ROO, G, HILLIER, J; e VAN WEZEMAEL, J. (eds) Complexity
and Planning: Systems. Farnham: Ashgate, 37–73. 2012.;
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

19

são sistemas complexos e não lineares de redes cujo comportamento futuro é essencialmente
imprevisível”.
Reconhecer a cidade como um sistema complexo, auto-organizado e adaptativo,
implica em aceitar que as cidades evoluem principalmente de baixo para cima (bottom-up),
como produtos das interações e decisões de milhões de indivíduos e com apenas ocasionais
ações centralizadas de cima para baixo (top-down) (BATTY, 2012).28 Assim, a ciência da
complexidade oferece uma nova lente para a compreensão das questões e dinâmicas urbanas.
Observa-se que a noção de cidade está evoluindo e criando novos paradigmas. Na
obra seminal “The New Science of Cities”, Batty (2013)29 defende uma maneira para estudar
as cidades cuja ideia central aduz que são as relações entre lugares e espaços - e não os seus
atributos intrínsecos 30– que definem o correto entendimento do lugar. Em outras palavras:
para entender um lugar, deve-se entender os fluxos (pessoas, bens e informação) que passam
por ele. Para entender os fluxos é necessário ter o conhecimento das redes, que, por sua vez,
sugerem relações entre as pessoas e os lugares.

4. A RELAÇÃO ENTRE PLANOS DIRETORES E CIDADES

Diante de todo o exposto, resta claro que a natureza estática e visionária do plano
diretor tradicional mostra-se incompatível com a complexidade e dinâmica da cidade de
hoje. Nesse sentido, Krafta (2016)31 aduz que:
Planos e cidades caminham em direções e sentidos distintos, por causa de
seguirem princípios opostos: enquanto cidades são formadas e transformadas a
partir de ações locais e decentralizadas, resultando em macroestados emergentes,
planos usualmente são pensados a partir de estados finais desejados, demandando
processos consistentemente coordenados para obtê-los.

Entre as tensões verificadas entre os planos e as cidades, Krafta (2016)32 leciona que
enquanto os planos veem o futuro como algo previsível e determinado (fechado), com foco
no controle do resultado das atividades de planejamento e o desenvolvimento urbano sendo
objeto de um processo decisório excludente; as ciências da cidade sugerem um futuro

28
BATTY, M. Building a science of cities. Cities, 29(6), S9–S16. 2012. (tradução livre do autor)
29
BATTY, M. The new science of cities. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press. 2013.
30
Contrapondo-se, por exemplo, com a ideia de Patrick Geddes, para quem a cidade era simplesmente “um
lugar no espaço.”
31
KRAFTA, Rômulo. Cidades Versus Planos Diretores. In: PANIZZI, Wrana (Org.) Outra Vez Porto Alegre:
a cidade e seu planejamento. Porto Alegre: CirKula, 2016.
32
Ibidem.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

20

indeterminado (aberto), com foco no controle dos processos das atividades e utilizando um
processo decisório includente.
Nas palavras de Verebes (2013)33, o excesso de confiança em planos inflexíveis que
idealizam o futuro ignora a complexidade do mundo moderno e as contingências que
moldam esse futuro, e acabam por incorporar a dinâmica do passado, as contingências do
presente e previsões do futuro.

5. ALGUMAS INICIATIVAS

Para tentar contornar essa disfunção, algumas iniciativas e proposições vem sendo
discutidas, a partir de uma nova lente de investigação e análise. Um diferencial nos dias
atuais são as possibilidades de acesso a informações que até pouco tempo não tínhamos a
disponibilidade. Técnicas geoespaciais e mapas de alta qualidade, análise de big data, dados
espaciais gerados pelo próprio usuário, lançam luz sobre a problemática e abrem infinitas
possiblidades para o planejamento e gestão urbana. Conforme explica Boeing (2019)34,
muito dos antigos desafios de coleta, armazenamento e compartilhamento de dados espaciais
evoluíram para processos comuns e plataformas padronizadas. Esse acesso facilitado a
informações permite a utilização de métodos e técnicas de planejamento que incorporam
com mais facilidade e rapidez eventuais mudanças no espaço e no tempo. Vidmar & Kozelj
(2015)35 e Schumacher (2013)36, por exemplo, sugerem a adoção dos chamados mapas
paramétricos, que regulam interativamente a forma de desenvolvimento urbano. Ademais,
este último autor propõe uma espécie de plano diretor sem um estado final, as
particularidades das circunstâncias futuras permaneceriam imprevisíveis.
Vislumbra-se algumas propostas de mudança de paradigma, com a substituição das
ferramentas e abordagens tradicionais (plano diretor), por uma abordagem baseada em
códigos (form-based codes) com foco na tipologia das edificações e as suas relações com o

33
VEREBES, Tom (Ed.). Masterplanning the adaptive city: Computational urbanism in the twenty-first
century. Routledge, 2013.
34
BOEING, Geoff. Spatial information and the legibility of urban form: Big data in urban morphology.
International Journal of Information Management, 2019.
35
VIDMAR, Jernej; KOŽELJ, Janez. Adaptive urbanism: a parametric maps approach. Theory and Practice
of Spatial Planning, v. 3, p. 44-52, 2015.
36
SCHUMACHER, P. Free Market Urbanism – Urbanism beyond Planning. In: VEREBES, T. (Ed.),
Masterplanning the Adaptive City – Computational Urbanism in the Twenty-First Century. New York, ZDA:
Routledge. 2013.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

21

espaço público37. A utilização de códigos abstratos como meio de regulação em substituição


dos planos diretores e planos de uso do solo também foram considerados por Alfasi e
Portugali (2007)38. Assim, esse código urbano ou código espacial poderia direcionar as ações
dos vários atores engajados no planejamento e a orientação desse modelo seria para a análise
das relações entres os elementos do ambiente construído. Verebes (2013)39 propõe a
substituição do modelo que trata a cidade em apenas duas dimensões, para um modelo
baseado em quatro dimensões com a incorporação da variável ‘tempo’ no planejamento.
Moroni et al (2020)40 lembra que a estrutura urbana complexa e auto-coordenada não é
anárquica, e requer certos tipos de regras, às quais ele denomina de “regras de estrutura”
(em contraposição às “regras de padronização”) que fornecem uma estrutura geral para o
desenvolvimento urbano, incorporando formas não planejadas e espontâneas e caracterizam-
se por serem simples, relacionais e negativas. A utilização de regras de estrutura de forma
mais simplificada também foi proposta por Chen (2015)41, no âmbito das cidades chinesas.
Frew et al (2016)42 e Pelorosso (2020)43 propõe um planejamento urbano baseado
em desempenho, que se utilizaria de indicadores e padrões de desempenho e permitiria um
planejamento mais flexível dentro dos limites de impacto predefinidos no sistema urbano.
Observa-se que todas as iniciativas apresentadas visam – pelo menos no discurso – aumentar
o potencial da cidade para se adaptar às mudanças contínuas que acabam por delimitar a sua
forma.
Por fim, constata-se que no contexto brasileiro, e sob o enfoque que identifica a
cidade como um sistema complexo e auto-organizado, existe uma série de desafios a serem
superados para possibilitar o desenvolvimento de um modelo adaptativo de planejamento e

37
Ver TALEN, Emily. Form-based codes vs. conventional zoning. In: Companion to urban design.
Routledge, 2011. p. 542-552 e CARMONA, Matthew; MARSHALL, Stephen; STEVENS, Quentin. Design
codes: their use and potential. Progress in Planning, v. 65, n. 4, p. 209-289, 2006.
38
ALFASI, Nurit; PORTUGALI, Juval. Planning rules for a self-planned city. Planning theory, v. 6, n. 2, p.
164-182, 2007
39
VEREBES, Tom (Ed.). Masterplanning the adaptive city: Computational urbanism in the twenty-first
century. Routledge, 2013.
40
MORONI, Stefano; RAUWS, Ward; COZZOLINO, Stefano. Forms of self-organization: Urban complexity
and planning implications. Environment and Planning B: Urban Analytics and City Science, v. 47, n. 2, p.
220-234, 2020.
41
CHEN, Yi. SPR as solution of action plan in China's master plan innovation. Habitat International, v. 50,
p. 300-309, 2015.
42
FREW, Travis; BAKER, Douglas; DONEHUE, Paul. Performance based planning in Queensland: A case of
unintended plan-making outcomes. Land Use Policy, v. 50, p. 239-251, 2016.
43
PELOROSSO, Raffaele. Modeling and urban planning: A systematic review of performance-based
approaches. Sustainable cities and society, v. 52, p. 101867, 2020.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

22

gestão urbana que propicie condições para a auto-organização da cidade a partir da interação
entre seus agentes e, tendo por propósito, conferir efetividade às disposições contidas nas
normas jurídico-urbanísticas brasileiras.

CONCLUSÕES

Diante de todo o exposto, resta claro que temos uma legislação urbanística que
quando analisada de forma isolada, mostra-se com valências que deveriam refletir em
cidades com uma melhor qualidade e bem-estar para a totalidade de seus habitantes.
Tanto a Constituição Federal como o Estatuto da Cidade estabeleceram que o plano
diretor fosse o cerne do processo de planejamento urbano. As cidades, por seu turno,
constituem-se como sistemas complexos, caracterizadas por uma inerente imprevisibilidade,
o que resulta, pelo menos aparentemente, em lógica distinta dos planos diretores cuja
racionalidade indica a possibilidade de prever as condições futuras das cidades, bem como
de manejar os processos formativos da cidade de forma coordenada.
Diante desse dilema, vem sendo desenvolvidos estudos que propõem alternativas
para a compatibilização entre a dinâmica própria das cidades e os instrumentos urbanísticos
que devem regê-la. Temos um longo caminho a percorrer, ao mesmo tempo que as cidades
possuem problemas prementes e urgentes que influenciam diretamente no bem-estar de seus
habitantes. Certo é que ainda estamos tateando em um campo com poucas certezas e muitas
dúvidas, buscando alternativas que possam redundar em modelos adaptativos de
planejamento urbano que disponham de instrumentos de suporte à gestão urbana ancorados
na perspectiva sistêmica das cidades.

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perspectivas - Volume VI

25

A PAISAGEM CULTURAL: UMA REFLEXÃO PÓS-PANDEMIA A


PARTIR DO ESTUDO DE CASO DE CIDREIRA/RS

Andréa Marta Vasconcellos Ritter1

Resumo: As paisagens fazem parte do cotidiano das cidades e presentes nas relações sociais,
ambientais, culturais, tradições, expressões, crenças, imaginativo popular e por isso,
especial, se constituindo em patrimônio cultural. A cidade de Cidreira, Estado do Rio Grande
do Sul, é litorânea, com atributos paisagísticos singulares, diversos que se destacam pelas
belezas naturais, estéticas, culturais, em harmonia com o urbano. O Estatuto das Cidades e
outros dispositivos legais visam à tutela difusa, a proteção, preservação, a manutenção da
paisagem, enquanto bem jurídico. Este artigo aborda a Paisagem Cultural, como instrumento
de preservação do Patrimônio Cultural e também, a necessidade pós-pandemia de
revalorização do direito à paisagem cultural material e imaterial, o objetivo é que o Estudo
de Caso contribua para a formação de uma política paisagística (re) valorizada e um
verdadeiro Plano Diretor capaz de medir valores subjetivos como cultura, afetos, tradições,
crenças, expressões, preservando porções singulares do território, onde a interação entre a
cultura e o ambiente natural confere à paisagem uma identidade específica. A pesquisa é
documental, de campo e de caráter qualitativo e os documentos analisados e citados são o
fundamento e o principal eixo. A conclusão é que este momento pós-pandemia exige
valorizar a natureza, referendar o direito subjetivo difuso à paisagem, considerar os direitos
da comunidade de permanecer nas paisagens e vivenciar sua cultura, em relação harmônica,
entre processo social e de natureza, estimulando a dimensão afetiva com o território, tendo
como preliminar a dignidade da pessoa humana e a qualidade de vida da população.
Palavras-Chave: Paisagem Cultural- Legislação Urbanística- Pós-Pandemia

1. INTRODUÇÃO

“Que soem as caracolas e que nossa memória não se perca, como se perderam os
nossos sambaquis e os nossos ancestrais” (Lizzi Barbosa)

No Brasil desde a década de 30 a paisagem é considerada patrimônio estético,


histórico, artístico, cultural, um bem jurídico, sujeito à tutela, preservação e proteção.

1Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais ( PUC 1987 ) Advogada desde 1987 e sócia de Roque e Vasconcellos
Advogados Associados ; Professora Universitária desde 1989; Bacharel em Relações Internacionais (
UNIRITTER 2016 ) , Pós Graduação em Metodologia do Ensino Superior ( UNISINOS 1991), em Direito
Público e Privado ( UNIRITTER ) e em Estratégias e Estudos Internacionais ( UFRGS 2018 ) ; Mestre em
Direito das Relações Internacionais ( UDE 2016 ) . Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS,
Julgadora do Tribunal de Ética e Disciplina da OABRS
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

26

O Estatuto das Cidades, Lei n. 10257/2001 reconhece os entendimentos e atributos


sobre a paisagem ser patrimonial e trazer no âmago sua preservação e qualidade de vida.

As paisagens singulares são patrimônios culturais, eis que fazem parte do cotidiano
e estão presentes nas representações sociais subjetivas como tradição, expressões, afetos,
crenças, imaginativo popular, que formam o patrimônio imaterial e neste ponto, está a
importância das paisagens culturais e a preservação, revalorização das paisagens naturais e
urbanas, pois cabal na construção da identidade cultural do povo do lugar.

O Plano Diretor e os demais dispositivos legais trazidos neste artigo objetivam o


pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, das propriedades, garantindo e
assegurando a preservação, proteção dos recursos, tutela do meio ambiente e da paisagem
cultural urbana, material e imaterial, tangível e intangível, objetiva e subjetiva, que tem
imanência e se confunde com o direito subjetivo difuso das pessoas à paisagem.

Cidreira é uma cidade com paisagens e recursos ambientais singulares e se destaca


pela beleza do relacionamento entre a comunidade praieira, o meio e a percepção
influenciada pelos aspectos da cultura. A paisagem é valorizada no contado direto com a
natureza e os valores da cultura praieira que influi na condição da sociedade que habita este
sítio localizado no Litoral Norte do Estado do Rio Grande do Sul.

O urbano e a “gente da praia” são agasalhados pelo universo que é dividido entre
água, areia, campo e o céu, que traz um lindo nascer do sol sobre o mar e o poente
acontecendo nas dunas e lagoas internas.

No domínio do campo estão às pastagens, os animais e a floresta de preservação que


é protegida com muita vida, nestes campos da Fortaleza há criação de ovinos, eqüinos e
bovinos, em várias propriedades rurais que mantém a função social da terra.

O domínio das águas é dividido entre o mar e as 05 lagoas e é o espaço sagrado dos
pássaros, das espécies aquáticas, da vegetação ribeirinha, mas também da Iemanjá e do boto
que encanta as moças.

Nas areias das Dunas primárias, secundárias e terciárias está contida a grande zona
de preservação, área de acúmulo de águas instáveis e também é o habitat do Tuco tuco e do
Maestro da Areia, pessoa e cinematografia local.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

27

Bastante a descrição destes domínios, para se inferir uma cultura, uma visão de
mundo, tradições, lugar dos antepassados, lugar de pertencimento onde tudo inicia, o lugar
em que essa “gente praieira“ vive e programa o futuro.

Há um pertencer recíproco, pois o povo da praia pertence à paisagem e a paisagem


lhes pertence e a cidade acolhida pelas paisagens é o lugar de construção de ensinamentos,
de valores morais que vão muito além de uma polis e isso tudo forma a paisagem cultural,
que é patrimônio imaterial.

Os elementos naturais inseridos na malha urbana de Cidreira são marcantes, mas a


cidade emerge e há paisagem em tensão e discursos de conflito de representação entre o
desenvolvimento, economia, mercado, tecnologia e o uso de revalorização, (re) apropriação,
de significados de uma realidade, da imagem dessa realidade e das referências culturais a
partir das quais esta imagem se forma.

O desafio é desenvolver e implementar políticas de recursos e paisagens protegidas,


preservadas, que conciliem os valores culturais herdados, que saibam interpretar o sentido
das mudanças e a melhoria das condições de vida das populações vistas como coautora da
construção de um território cujo valor identitário, também terá que incluir o presente e
projetar o futuro.

Neste sentido e privilegiando a dignidade da pessoa humana, a qualidade de vida e o


direito subjetivo difuso à paisagem, pois necessário estimular a participação cidadã,
considerando a permanência das pessoas na cidade, com atenção para os contextos
populares, tradicionais, culturais resistentes à expansão urbana, ao mercado e edificações
globalizantes.

Considerando o Pós – Pandemia, mister reconhecer os elementos materiais e


imateriais, recursos naturais e as práticas sociais, os significados existentes a partir dos
modos de criar, fazer, viver, perceber que são dinâmicas e que devem seguir ao longo do
tempo e assim (re)significar o Estatuto das Cidades e os demais dispositivos legais sobre o
tema.

O Estatuto das Cidades apresenta a experiência de Cidreira, no sentido de questionar


e implementar os dispositivos garantidos na legislação urbanista e também reabre no pós-
pandemia a discussão sobre o meio ambiente, os recursos naturais e a interação
pessoa/cultura.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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O Caso de Cidreira reabre a pauta sobre a preocupação constante de proteção sobre


a distinta paisagem local que deverá alterar o Plano Diretor de 2012 e considerar a Paisagem
Cultural como instrumento de preservação do Patrimônio Cultural, envolvendo a dignidade
da pessoa humana, qualidade de vida e o bem- estar da comunidade.

2. PAISAGEM CARTÃO–POSTAL E A INTERAÇÃO COM AS PESSOAS

A paisagem passou a existir com o sentido e utilidade pra a realidade dos grupos e
o conceito foi entorno da existência humana, como aduz Maximiliano (2004), como no caso
da paisagem desértica que fez olhar para as estrelas.

Seja natural, estética ou de uso, a paisagem foi entendida através da cultura de cada
grupo, tendo Ratzel, em 1880, incluído primordialmente a cultura na paisagem, embora uma
concepção limitada ao confundir com os artefatos utilizados pelos homens.

Claval (2001) cita Shutter para o qual a marca que os homens impõem a paisagem é
a que constitui o objeto de fundo de todas as pesquisas, porém deixava de lado as crenças e
as tradições.

Já Sauer (1998) aduz que a paisagem natural reflete as formas e objetos da natureza
que existe com ou sem a interferência do homem e a paisagem cultural resulta das relações
do homem e a natureza.

Segue Sauer (1998) que a paisagem cultural é moldada a partir de uma paisagem
natural por um grupo cultural e traz a equação, onde se vê que cultura corresponde aos
agentes, a área natural ao meio e a paisagem cultural ao resultado.

Assim, uma nova cultura pode rejuvenescer a paisagem ou formar nova paisagem.

Os estudos de percepção da paisagem, são dispostos por Melo (2001), sendo


fundamentos para analisar os valores, os sentimentos, com relação pás paisagens, valendo a
percepção do indivíduo e dos grupos sociais, à compreensão do significado que a sociedade
atribui ao espaço.

A partir dos anos 80, se volta para a paisagem simbólica e nela estão insculpidas a
materialidade da cultura e da natureza, também os sentimentos, valores em relação as
paisagens se dependentes da cultura.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Traduz Maximiliano (2004) que a cultura é o elemento que agindo sobre o meio
natural, resulta na paisagem cultural e Risso (2008) que a paisagem se constitui a partir das
relações entre os seres humanos e a natureza ao longo dos tempos, pois com base na
paisagem natural é que a cultura se desenvolve.

A paisagem determinada em contrapartida, para Berque (1998), é esse olhar, essa


consciência, essa experiência, essa estética, essa moral, essa política.

O sujeito observa e no subjetivo estão os sentimentos afetivos, vivenciados,


experiências, valores, cultura simbólica, representando a identidade territorial, consoante
Risso (2008).
Cabe dizer que cada pessoa que olha, sente uma paisagem carrega um significado
diferente, um valor diferente, um sentimento de apego ou desapego, uma crença, uma
tradição diferente.

As paisagens se expressam por causa da capacidade do homem de criar, que resulta


em uma valorização ou desvalorização e para Collot (1990), a paisagem se faz sentido, foi
repentinamente analisada, vivida e desejada e é o resultado do relacionamento.

Os atributos da paisagem como cartão-postal e os arranjos resultantes deste diálogo


é que são objetos de preservação e tal ato é objeto de proteção do legado cultural de uma
comunidade para as gerações futuras.

Importante considerar a dinamicidade da paisagem, a globalização, a massificação,


a transformação que está relacionada com o homem e com a natureza e mister disciplinar a
produção do espaço urbano através da legislação internacional, nacional e local, que
conterão medidas limites ao processo de uso e ocupação do espaço das cidades.

Franco (2000) define que a conservação ambiental pode ser entendida como o
convívio e harmonia do homem com a natureza, com o mínimo de impacto possível, sem
esgotar os recursos naturais, permitindo a vida das gerações futuras e tal entendimento está
inserido no conceito de desenvolvimento sustentável.

3. INSTRUMENTOS LEGAIS

A paisagem é algo vivo, dinâmico que se modifica no tempo, de acordo com fatores
da natureza e da ação das pessoas que se apoiam em um contexto cultural. É construída com
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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o acréscimo de novos elementos, modificadores dos existentes e de infinitas manifestações


culturais.

Toda a paisagem é cultural, é uma realidade visível, visão de conjunto, percepção a


partir do espaço existindo, a partir do sujeito que a aprende e cada pessoa vê diferente da
outra e com isso (re)significa cotidianamente.

A seguir, cabe trazer alguns instrumentos legais que norteiam a matéria e são de
grande importância para o trato do tema Paisagem Cultura e Paisagem Cultural.

- Carta de Atenas de 1931 – Considerou bem cultural a paisagem, mais seu entorno;

- Carta de Veneza de 1964 – Dispõe sobre o conceito de ambiência;

- Unesco de 1972 – Convenção relativa ao patrimônio mundial, cultural e natural:


categoria cultural e material;

- Unesco de 1992 – Paisagem é um bem valorizado inter-relações que ali coexistem;

- Convenção Européia da Paisagem de 2000 – Florença – Mudanças naturais e


evolução, sem perder o sentido histórico e desenvolvimento sustentável, meios produtivos e
recursos naturais sem esgotar;

- Decreto Lei n. 25/ 1937 – Designação de valor patrimonial para as paisagens e


criação do Livro Tombo, Etnológico, Arquitetônico e Paisagístico;

Cabe ressaltar que o Tombamento constituído era pelo valor cênico da paisagem e
valoração da relação homem e o meio e assim, tombada não só a cidade, ou paisagem, mas
também todo o seu entorno.

Na década de 90 e ano 2000, o conceito de paisagem foi incorporado ao IPHAN,


dentro de uma visão multidisciplinar da paisagem, elo entre os artefatos, natureza e cultura.

- Estatuto das Cidades, Lei 10257 de 2001 – Regulamenta os artigos 182 e 183 da
Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.

O Estatuto confere para cada cidadão o direito coletivo e difuso à cidade sustentável.
Uma nova leitura do ambiente local, agregando conceitos Dignidade da Pessoa Humana,
Qualidade de Vida, Bem-Estar e Bem Comum.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Democraticamente o instrumento traz a tomada de decisão e dá voz para à sociedade,


comunidade e bairros. A aplicação deverá levar em conta o impacto sobre a paisagem de
morros, dunas, vales e recursos d’agua.

É instrumento de proteção, preservação sobre o patrimônio natural e cultural e a


paisagem tem valor ambiental e mantém padrões estéticos inegáveis, interesses difusos com
relação á qualidade de vida e bem-estar da população.

A paisagem é um direito, necessariamente tutelado juridicamente, direito do morador


cidadão, ornamentada plasticamente, agradável e porque não dizer bela (Silva, 2006).

- Carta de Bagé de 2007 ou Carta da Paisagem Cultural;

- Portaria n. 127/2009, instituiu a proteção patrimonial e gestão territorial: A


Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, com participação do IPHAN, sociedade civil e
esferas governamentais.

Neste ponto, importante salientar que a paisagem cultural é instrumento de


preservação do patrimônio cultural, eis que há uma nova possibilidade de reconhecimento
de bens culturais e a Chancela como Paisagem Cultural Brasileira está voltada para lugares
cuja especificidade é o resultado das relações entre grupos sociais e a natureza,
possibilitando a preservação de porções singulares do território, onde a interação entre a
cultura e o ambiente natural, confere à paisagem uma identidade específica e o instrumento
da Chancela valoriza a relação harmônica entre os processos sociais e os processos da
natureza, estimulando a dimensão afetiva com o território e a premissa é a qualidade de vida
da população.

O Selo de legitimidade e reconhecimento atribui valor de patrimônio nacional, a


determinada paisagem e estimula manifestações culturais locais, turismo, artes, cultura da
terra e outras atividades que preservam valores culturais e o ambiente chancelado.

Visível a integração entre o material e o imaterial, cultura e natureza e a Chancela é


instrumento de proteção, preservação patrimonial, de caráter agregador da paisagem e
caminho mais abrangente para política de desenvolvimento, contudo necessário debater,
orientar, intervir, quando há inevitável mudança social, técnica e cultural e a estratégia
promove respeito à diversidade da paisagem em conjunto com a dinamicidade social, de
mercado, econômica.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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- Decreto n. 3551/2000 – Lugares passaram a integrar o patrimônio imaterial.

Tal patrimônio é aquele bem jurídico, transmitido de geração para geração, é


construído, recriado, gera sentimento de identidade e continuidade, sendo locais onde se
concentram e se produzem as práticas culturais, coletivas, saberes, referidos a grupos, que
nestes espaços, efetuam trocas materiais, imateriais e simbólicas.

Importante considerar pessoas e seus modos de vida, o lugar e a paisagem são


misturados entre o material e o imaterial, sendo que as práticas sociais, dão sentido ao lugar
e o lugar é fundador de tais práticas e as relações se dão por meio de identidades, crenças,
valores, tradições, sentimentos.

Desafio é preservar o lugar e o “Espírito do Lugar “ e neste sentido, o Conselho


Internacional de Monumentos e Sítios, trazido pela Declaração de Quebec de 2008.

Nór (2013) salienta que o “Espírito do Lugar “incorpora caráter plural e polivalente,
diferentes significados e singularidade, possível manifestação simbólica, cultural, histórica,
compreendido como a essência dos valores imateriais, revela relações dialógicas entre
passado e presente, por meio das permanentes confirmações de caráter vivo e permanente às
paisagens.

O “espírito do lugar“consiste no conjunto de bens materiais (sítios, paisagens,


edificações, objetos) e imateriais (memórias, depoimentos orais, documentos
escritos, rituais, festivais, ofícios, técnicas, valores, odores) físicos e espirituais,
que dão sentido, valor, emoção e mistério ao lugar, de tal modo que o espírito
constrói o lugar e, ao mesmo tempo, o lugar constrói e estrutura o espírito.
(ICOMOS. Declaração de Quebec, 2008)

- Plano Diretor de Cidreira – Lei n. 1948/2012 – Dispõe sobre o Desenvolvimento


Urbano e Ambiental, observando o Estatuto das Cidades, Diretrizes Ambientais, Planos
Nacionais e a Função Social da propriedade.

Apesar de tal arcabouço legal, as paisagens e o espaço urbano revelam contradições


e por toda a parte se vê profundas desigualdades que resultam na exclusão de parte da
população aos espaços salubres e dignos da vida humana e tal identificação de exclusões e
desigualdades, aumentou muito mais, com a pandemia da COVID-19.

Neste contexto, necessário promover o equilíbrio do meio ambiente e a singularidade


da paisagem, em especial, a litorânea, em comento, pois a paisagem urbana reflete o
resultado do equacionamento possível entre os interesses dos agentes produtores do espaço
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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e as restrições ou flexibilizações norteadoras desta produção, cabendo salientar que


lamentavelmente, leis restritivas, que promovem proteção e equilíbrio são revogadas e as
leis permissivas da degradação dificilmente são modificadas.

4. O PLANO DIRETOR DE CIDREIRA

O Plano Diretor do Município de Cidreira, Lei n. 1948/2012, aprovada pela Câmara


dos Vereadores e sancionada, instituindo o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e
Ambiental PDDUA do Município de Cidreira, dispõe sobre o parcelamento do solo e
determina outras providências.

A implementação deste plano, traz um modelo de gestão urbana e busca garantir o


uso social da cidade e da propriedade, tendo o Estatuto das Cidades como instrumento de
regulação do uso do solo privado e para cumprir a função, a utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis, bem como a proteção, a preservação e a recuperação do meio ambiente
e do patrimônio histórico, cultural e paisagístico (art. 6º.2 e art. 4º.4).

Dentre as Funções sociais da cidade está o bem-estar dos habitantes, incluindo a


proteção, preservação e recuperação dos recursos naturais ou criados (art. 4º, parágrafo
único) e importante a gestão democrática urbana, que busca garantir este uso social da cidade
e da propriedade, como forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades, submetida
ao controle social e à participação da sociedade civil.

O Plano Diretor do município de Cidreira não traz capítulo ou clara divisão entre a
paisagem e os recursos naturais, mas devia também tratar a paisagem urbana com maior
propriedade, até porque está inserido em inúmeras páreas naturais e paisagens belíssimas.
Deveria o Plano concretizar que o espaço urbano está sobre o suporte natural, que é acrescido
pela sociedade que nele vai se reproduzindo.

Mas, equaciona ser possível o a relação entre os interesses diversos e o papel da


legislação enquanto mediadora destas situações, apontando para o futuro e a promoção
humana como o fim de todo o desenvolvimento (art. 28.1 e 2).

No entanto, a cidade real, com conflitos, contradições, interesses antagônicos diverge


do Plano Diretor e além disso, necessário discutir os limites da legislação, os limites do
mercado imobiliário, do desenvolvimento e da tecnologia e considerar que todo o arcabouço
citado no capítulo anterior, ainda não é capaz de garantir e aplicar uma perfeita proteção,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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preservação, bem-estar e a dignidade da pessoa humana, com qualidade de vida e incluir a


paisagem como direito subjetivo difuso.

O Plano Diretor define um modelo espacial de desenvolvimento, a partir do art. 63,


sendo elementos estruturadores para a composição do modelo, a definição de perímetro
urbano, zoneamento de uso, áreas especiais, malha viária e equipamentos urbanos (art. 65)
tendo a cidade sido dividida em duas zonas urbanas: de ocupação intensiva e de ocupação
diferenciada e uma zona não urbana (art. 66/68). Esta última é entendida pelas áreas de
preservação permanente, as áreas de proteção ambiental e as zonas rurais contidas entre a
área urbana e as divisas administrativas com os municípios vizinhos.

Importante destacar que a partir do art. 70, o Plano traz um capítulo sobre as áreas
especiais, que tem características peculiares e dentre elas estão as Zonas Especiais de
Interesse Urbanístico, que inclui Zonas Especiais de Interesse Paisagístico – art. 77 .4 – “
setores urbanos destinados a áreas verdes sem o devido tratamento e em degradação urbana
e a Zona Especial de Proteção e Preservação do Ambiente Natural (art. 79).

De vital importância para os atributos e qualidade das paisagens as áreas especiais


para a proteção ambiental que “valorizam o patrimônio ambiental, promovendo suas
potencialidades e garantindo a sua perpetuação e a superação dos conflitos referentes à
poluição, e degredação do meio ambiente, saneamento e desperdício energético (art. 79).

Neste ponto, não trouxe o Plano o valor cênico dos vários trechos paisagísticos da
cidade, como as dunas, inseridas no meio urbano, que é cenário a ser protegido, digno de
identidade, valores, crenças etc.

Se infere que o Plano traz algumas limitações de gabarito, como a altura das
edificações, que deve ser bastante questionada, no caso da orla marítima, volta das lagoas,
Parque das Dunas, cabendo dizer que o município de Cidreira ainda não tem “espigões “,
prédios de gabarito alto, mas também não tem rede de esgotos, tratamento de lixo ou rede
de águas reutilizáveis.

Argumentos paisagísticos culturais, de cenário, de qualidade de vida, dificilmente


são aceitos pelo mercado imobiliário que se preocupa só com interesses de mercado,
econômicos, particulares, mas são paisagens, áreas de preservação, de proteção, algumas
elencadas de preservação permanente e mister a participação de diversos segmentos sociais,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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imprensa, publicidade, enfim, debater a legislação urbanística e proteger sobremaneira a


paisagem cultural e cartão-postal (art. 127).

Mas as áreas localizadas em torno das lagoas e na Orla marítima são as preferenciais
e de mais lucro para o setor imobiliário e neste momento de tensão , de tornar público o
debate é que vale o caráter inovador e democrático do Plano Diretor, explicitado na lei, mas
que de forma dissociada estabeleça a conservação dos recursos naturais e a preservação da
paisagem, da paisagem cultural e do patrimônio cultural e após acompanhar a aplicação e as
adaptações do Plano , tendo a sociedade entendido seu papel neste processo.

Óbvio que a legislação deve ser elaborada de forma democrática, mas não modificada
com intransigências e totalitarismo, pois deve honrar a boa política para o desenvolvimento
econômico, que contemple a dignidade da pessoa humana, o bem-estar e a qualidade de vida.

5. DIREITO À PAISAGEM E VALOR MAIOR PÓS- PANDEMIA

As cidades e as paisagens foram atacadas pela Pandemia mundial da Covid-19 e


urgente e necessário resolver, além dos problemas de saúde, os causados pela
vulnerabilidade e exclusão, os de alimentação e fome, a qualidade de vida e seguir garantindo
os recursos presentes para as gerações futuras.

O mundo pós-pandemia requer considerar direitos e saberes, modos de vida e dentre


os direitos, (re) valorizar, construir, reafirmar, ratificar o direito subjetivo à paisagem.

Vale a lição de Ost (1995) o ambiente é um patrimônio, herança geracional passada,


conjunto de recursos das presentes e garantia comum das gerações g=futuras, em relação às
quais contraímos uma dívida de transmissão.

Então, há o dever de preservação, de reafirmação dos cenários, das paisagens, dos


sítios para as gerações futuras e com a pandemia a natureza restituiu vigor, mas também
necessita do homem para preservação e a crise revelou que a vida, a saúde, o cuidado, tem
relevância e os ambientes, os recursos naturais, as paisagens, não podem ser desmerecidas,
destruídas, pelo contrário, o afastamento social revelou o quanto necessitamos do ambiente,
das paisagens, da cultura, dos cenários.

Uma vida humanamente digna, exige um meio ambiente saudável que garanta o
direito á paisagem, no entanto, cabe ao Poder Público e à sociedade dirimir os conflitos,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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disputas, causadas pela forma que os problemas ambientais afetam os grupos humanos
produzindo injustiça social e as paisagens são manipuladas no interesse dos mercados, das
grandes construtoras e os seres que fazem parte daquele ecossistema sofrem, são removidos
e morrem.

A paisagem é degradada, destruída e há perda de sua fruição individual e coletiva,


sendo o mercado o responsável pelo desrespeito e morte da paisagem e do direito subjetivo
difuso.

Nesse sentido, o Mestre Ivan Therra (2021) aduz que “ a paisagem cotidiana de
dunas, ventos e lagoas, foi interrompida abruptamente, por cataventos gigantes, tudo isso
sem pedir licença aos olhos e as lembranças da nossa gente da beira”.

Assim, importantes os debates sobre a paisagem, modos de viver, pensar, fruir,


história, cultura, ritmo dos lugares, vivencia das paisagens e construções identitárias
coletivas, como aduz Alvez (2001).

Para Alvarenga (2021) são socialmente diferentes e conflitantes os olhares, vivências


e formas de uso dos patrimônios natural e cultural e o modo que devem ser usados tais bens,
como os trazidos neste artigo.

Segue o autor, dizendo que é necessária a participação e escuta das diversas formas
de pensar sentir e vivenciar o mundo e anuir que os seres humanos têm interação com os
lugares, vivências, experiências estéticas, afetivas e de fruição da paisagem, eis que cabe
compreender, visualizar, sentir as paisagens, os ambientes e cenários paisagísticos, para
muito além de meio ambiente e simples paisagem.

São patrimônios do ser humano, dotados de atributo estético, ecológico, histórico,


cultural e arquitetônico e a cidade estudada é abraçada pelas diversas paisagens, o povo vive,
mora, trabalha, estuda e retira seu sustento do ambiente.

Desta forma, o povo está inserido na paisagem que emerge das interações homem-
natureza e resulta das constantes transformações das práticas e usos sociais de determinada
região (Ost, 1995), mas também, uma experiência, uma visão, uma expressão, um
sentimento.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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É direito subjetivo difuso e conforme Latour (1994) é um híbrido natureza-cultura,


pois há identidade, percepção imaginação popular, cultura da população do povo da beira,
há ambiência e paisagens.

Para Alvarenga (2021) o direito ao proteger a paisagem deve tomar a noção de


existência e a de existência digna, reconhecer a ontologia dos seres humanos, titular dos
direitos ao ambiente e à paisagem protegida para além deles mesmos e segue dizendo que o
lugar participa do ser e o ser do lugar, citando um provérbio francês “uma parte do nosso ser
é arrancada quando deixamos um lugar ao qual estamos ligados “

Agora, o pós-pandemia alterou o cenário, que antes era de desequilíbrio, desordem,


primazia do mercado, degradação da paisagem pública.

Para Silva (2006) a paisagem urbana é a roupagem com que as cidades se apresentam
para seus habitantes e visitantes, valendo o art. 225 da Constituição Federal garante o direito
que todos temos a qualidade, satisfação, ao equilíbrio ecológico do meio ambiente e está
qualidade é que se converteu em um bem jurídico.

E neste sentido de bem jurídico tutelado dispõe a Constituição Federal, nos artigos
23, 24, 30, 182, 216 e 225, mas não só a Constituição, eis que cabível trazer o Código Civil
Brasileiro que traz os bens de uso comum do povo, e dentre eles cabe incluir a paisagem, eis
que a sociedade é destinatária final da proteção e também dever junto ao poder público, à
proteção e defesa.

Leciona Meirelles que a qualidade de vida dos moradores urbanos depende


fundamentalmente dos recursos naturais e muito em particular, das terras, águas, florestas
que circundam as grandes e pequenas cidades, assim como das atividades exercidas em seus
arredores.

Havendo equilíbrio e bem-estar, há uma sadia qualidade de vida e necessário aprovar,


(re)valorizar as paisagens, o meio ambiente natural e isto relacionado à dignidade da pessoa
humana e a qualidade de vida é medida pela dignidade e protegida pelo art. 1º e art. 170 da
Constituição Federal e o pós pandemia exige este olhar.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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CONCLUSÕES

A pandemia e o isolamento social possibilitaram um pensar, uma renovação dos


ambientes e das paisagens e uma oportunidade de (re)pensar, (re) valorizar os ambientes,
desenvolvimento, técnicas, negócios.

Importante (re)essenciar as paisagens, valorizar os ambientes culturais, as paisagens


culturais que por certo faltaram, causaram saudade, no período de isolamento combinado
com aquelas que não mais nos pertenciam, mas que estão na memória em razão da sua
destruição por projeto de desenvolvimento, cabendo reconhecer que as paisagens têm
integração do patrimônio natural e cultural na formação das pessoas e da coletividade.

Assim, necessário proteger as paisagens culturais, os patrimônios culturais, para


além do significado, face aos vários grupos sociais, respeito à diversidade de ritmos de vida,
modos de criar, fazer expressão, como pugna o art. 216, I e II da Constituição Federal.

O direito à fruição está ligado ao direito à vivência do espírito do lugar e este trabalho
forneceu contribuição teórica, no sentido de dispor sobre elementos para uma discussão de
uma legislação urbanística que contemple a paisagem cultural e também a necessária
proteção, preservação e valorização ao meio ambiente.

Cabe entender que a paisagem é singular, que é patrimônio cultural e afetivo e a


valorização e proteção se justifica pela importância, enquanto depositária das ações do
tempo, das gerações, das vivencias, das crenças, das tradições, das experiências, dos saberes.

Os argumentos acima são pertinentes eis que a paisagem cultural de Cidreira ainda
não foi totalmente degredada pelo mercado imobiliário, por intervenções urbanísticas e
adensamento de construções verticalizadas, que comprometam as representações sociais e
função do litoral e que levou muitos para a beira, com proximidade da natureza e a
possibilidade de desfrutar da paisagem com garantia do direito à paisagem.

Ao final, para (re)valorizar, para (re)equacionar é imprescindível harmonizar


interesses para que sejam mantidas as áreas paisagísticas e naturais, para que não se corra o
risco de perder referencias visuais incorporadas ao cotidiano e necessário reduzir distancias
entre cidade real e idealizada, mercado e direitos comunitários.

Neste diapasão, o Estatuto das Cidades, que comemorou 20 anos, surge como grande
garantia dos direitos democráticos do cidadão e da função social da propriedade, como
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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esperança e dever de transmitir para as futuras gerações uma paisagem cultural, um


patrimônio histórico, ambiental, cultural preservado e de fruição.

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CAMPOS DE ATUAÇÃO PARA A ADVOCACIA URBANÍSTICA:


DESAFIOS E POSSIBILIDADES

Andrea Teichmann Vizzoto1

Elaine Adelina Pagani2

Fábio Scopel Vanin3

João Telmo de Oliveira Filho4

Resumo: O Direito Urbanístico é um importante ramo do Direito Público que mais tem
crescido no Brasil, decorrente de leis especiais, que tornaram sólida a noção constitucional
da função social e ambiental da propriedade, além de elencar um rol de instrumentos
jurídicos para a implantação e implementação de políticas públicas municipais viabilizando
condições de gestão democrática das cidades e regularização fundiária em áreas de
assentamentos informais. Nesse sentido, urge a necessidade de os cursos jurídicos brasileiros
atentarem para a importância da inclusão do Direito Urbanístico em suas estruturas
curriculares como uma disciplina interdisciplinar e transdisciplinar necessária para dotar de
conhecimento os futuros profissionais que atuarão na área jurídica para que possam efetivar
a materialização, através dos princípios e dispositivos legais, das cidades includentes e
sustentáveis. O tímido trabalho desenvolvido pela academia com esta área do conhecimento
jurídico acarreta o seu desconhecimento e a geração de uma gama de futuros profissionais
que, diante das reais demandas sociais, não interpretam ou aplicam as normas de Direito
Urbanístico de forma adequada. Por outro lado, são muito vastos os campos de atuação para
a advocacia urbanística, seja no setor público e privado, e que necessitam de profissionais
competentes e habilitados para a resolução das demandas jurídico urbanísticas.
Importante frisar que este trabalho é resultante dos debates e das experiências
compartilhadas pelos membros da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento
Urbano da OABRS no evento integrante das atividades realizadas por ocasião do mês da

1
Doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. Mestra em Planejamento Urbano e Regional pela
UFRGS. Membro da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbanos da OABRS Advogada
e Professora Universitária.
2
Mestra em Direito pela PUCRS. Especialista em Direito Urbanístico pela PUCMinas. Diretora da Faculdade
CNEC Gravataí. Presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS.
Secretária Adjunta da Comissão Especial de Direito Urbano do Conselho Federal da Ordem dos Advogados
do Brasil.
3
Doutor em Direito pela UNISC. Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul e Especialista em
MBA Direito da Economia e da Empresa pela FGV/RJ. Membro da Comissão Especial de Direito Urbanístico
e Planejamento Urbanos da OABRS. Advogado e Professor Universitário.
4
Pós Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra - Portugal. Doutor em Planejamento Urbano e Regional
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduado em ciências jurídicas e sociais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Membro da Comissão Especial de Direito Urbanístico e
Planejamento Urbanos da OABRS. Advogado e Professor Universitário.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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advocacia ocorrido em agosto de 2021, e que que tratou sobre os campos de atuação para a
advocacia urbanística.
Palavras-chave: Direito urbanístico, ensino jurídico, áreas de atuação, advocacia pública,
advocacia privada.

1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa demonstrar o quão vasto é o campo de atuação para a advocacia
urbanística, seja no setor público e privado. No entanto, torna-se fundamental a necessidade
das Instituições de Ensino Superior – IES atentarem para a importância da inclusão do
Direito Urbanístico, em caráter obrigatório, nos currículos de seus cursos a fim de que os
egressos estejam aptos a desenvolver as competências necessárias para lidar com a resolução
das demandas jurídicas urbanas.

Com o constante aumento das cidades que presenciamos nas últimas décadas tem se
tornado cada dia mais necessária a existência do direito urbanístico, entretanto esta área da
advocacia ainda é desconhecida por uma parcela considerável dos profissionais da área do
direito, assim como os estudantes desta área. Tendo isto em vista este artigo tem por objetivo
mostrar sua importância e as diversas áreas de atuação que se pode seguir dentro do direito
urbanístico, não somente na área do direito público, mas também dentro do direito privado.
Na Constituição Federal de 1988 foi incluída a política urbana como um específico capítulo
de proteção, onde consta que a função social da propriedade deve ser protagonista, sendo
assim a advocacia deve estar preparada para enfrentar as diversas demandar que são
originadas e a área que visa a resolução destas demandas é o direito urbanístico.

2. ENSINO DO DIREITO URBANÍSTICO NO BRASIL

O curso de Graduação em Direito tem a função de formação inicial no processo de


educação permanente e continuada própria do mundo do trabalho, tendo em vista formar
profissionais hábeis, competentes e capazes de atenderam as demandas profissionais exigidas
pela sociedade. Os curso de Direito tem um importante papel no processo de produção do
conhecimento e formação dos profissionais que atuarão na sociedade, assim, num mundo
globalizado o ensino superior não é mais uma opção, mas sim uma necessidade fundamental
para o desenvolvimento do cidadão e do País. As Instituições de Ensino Superior,
indenpendente da organização acadêmica que adotam, são um agente ativo que ao cumprir
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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o seu papel, desenvolvimento da cultura, educação e arte, (re)criação do conhecimento,


inovação da ciência e da tecnologia e integração social, geram efeitos positivos na sociedade.
Nesse sentido, as Instituições de Ensino Superior devem estar atentas e inseridas na dinâmica
social, a fim de realizarem a função de formação de profissionais aptos a atuarem na
sociedade. Nessa esteira, os cursos de graduação devem contemplar em seus currículos
algumas disciplinas que proporcionem aos alunos a interação com as necessidades locais
e regionais. Deste modo, e em consonância com o propósito deste trabalho, entende-se que
a inclusão da disciplina de Direito Urbanístico nas estruturas curriculares dos cursos de
Direito no Brasil, é de suma importância, pois oportunizará a formação de profissionais
reflexivos, críticos e responsáveis com o processo de urbanificação, eis que munidos do
conhecimento necessário para a gestão do meio urbano.

Porém, longe da realidade que se desenha no horizonte, ainda é minoria os cursos de


Direito no Brasil que contemplam em suas bases curriculares a disciplina de Direito
Urbanístico. Levando-se em consideração que, hoje em dia, todo e qualquer projeto
referente a urbanismo requer estudos e levantamentos técnicos que envolvem os mais
diversos profissionais, torna-se acertado afirmar que o resultado de um trabalho eficiente e
eficaz que repercutirá na sociedade, somente será possível com a conjugação interdisciplinar
destes profissionais, inclusive os profissionais da área jurídica. Com efeito, não se perquire
a formação de um “superprofissional” que tem um conhecimento global e pleno de todas as
áreas do conhecimento e que é capaz de realizar todo o trabalho sozinho, até porque esta
hipótese é improvável. De outra banda, a ausência da disciplina de Direito Urbano nos cursos
jurídicos oportuniza a formação de profissionais despreparados para lidarem com as questões
concretas ligadas a disciplina do espaço urbano. A própria doutrina já é unânime em
afirmar que o Direito do Urbanismo é uma ciência de natureza eminentemente
interdisciplinar. Nesse sentido, Marcelo Lopes de Souza sustenta que para a superação dos
entraves do conhecimento dos profissionais acerca de determinados assuntos que norteiam
o seu trabalho é importante a complementação da formação profissional. Por isso, a
necessidade da inclusão e implementação da disciplina do direito urbanístico no âmbito do
ensino jurídico, eis que o processo de urbanismo faz parte, em algum momento, da atividade
profissional.

Devido a importância que o Direito do Urbanismo adquiriu ao longo das últimas


décadas, em especial, após a promulgação do Estatuto da Cidade, e considerando que o
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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processo de urbanização tem tratamento legal específico, não pode o Direito Urbanístico ficar
à margem das grades curriculares do ensino jurídico. Os ensinamentos do sistema urbanístico
bem como os instrumentos legais que ele proporciona são de extrema necessidade para os
futuros profissionais que forem desempenhar suas atividades profissionais.

Vale lembra que o Brasil, um país com alto índice de urbanização, vem enfrentando
sérios problemas nas cidades devido a questão das cidades serem excludentes e não
sustentáveis, por isso, a questão urbanística assume relevante importância no contexto
social, o que exige dos profissionais do Direito conhecimentos especializados acerca de
toda a legislação e doutrina referente à solução desses problemas, contribuindo assim para
a justiça social. Dentre as consequências advindas dos problemas antes relatados podemos
destacar o aumento de construções e loteamentos irregulares ou clandestinos, o
crescimento das favelas nas periferias das cidades de médio e grande porte, as habitações
frente as questões sanitárias, e a tensão social e violência cada vez mais marcante no meio
urbano.

Deste modo, faz-se importante incluir nas grades curriculares dos cursos de
graduação de Direito a disciplina de Direito Urbanístico para a formação de profissionais
habilitados e competentes para lidar com as demandas sociais no sentido de interpretar e
aplicar a lei na solução ou amenização dos problemas urbanos.

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A AUTONOMIA DA DISCIPLINA DE DIREITO


URBANÍSTICO

No ensino acadêmico do direito urbanístico no Brasil, tanto em instituições públicas


como privadas, a disciplina de direito urbanístico, nas suas variadas denominações passa
ainda por um período de reconhecimento e “descoberta”. Muitas vezes com terminologias
diversas, dentre elas destacamos, direito urbano, direito urbano-ambiental ou direito da
cidade, em geral, está relegada à categoria de disciplina eletiva ou opcional nos currículos
dos cursos de direito. Outras vezes, tratada como conteúdo “enxertado” nas disciplinas de
direito administrativo, direito ambiental ou direito imobiliário. Embora tenhamos certa
tradição doutrinária do direito urbanístico no Brasil e o reconhecimento da importância do
conteúdo da matéria, os programas dos cursos de direito no país não acompanham esta
importante dimensão e a relevância do conteúdo político e social da matéria.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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É importante discutir, ainda que brevemente, a importância e a especialidade da


disciplina do direito urbanístico e a necessidade de que seja considerada como disciplina
autônoma nos cursos de direito no país. Além disto, o direito urbanístico também deveria ser
considerado e integrante dos currículos de outros cursos de graduação e pós-graduação,
tendo como exemplo nos cursos de arquitetura e urbanismo, engenharias, economia,
sociologia, ciência política, as áreas vinculadas ao meio ambiente e ao ambiente construído,
enfim, todo e qualquer curso que tenha vinculação com a cidade e o espaço urbano.

Dentre as características da matéria do direito urbanístico que conferem autonomia para a


disciplina, a partir dos trabalhos do professor Fernando Alves Correia está: a) a
especificidade das normas urbanas; b) o conteúdo reservado e abertura das normas; c) o
caráter social ou desigualitário; e, d) a regulação do uso do solo. (Correia, 1999)

Sobre a especificidade das normas objeto do direito do urbanismo, estas ao mesmo


tempo conjugam interesses públicos e particulares. Portanto é difícil enquadrá-las como
parte do direito público ou privado sendo o domínio do direito urbanístico de uma relevância
muito maior do que outras áreas específicas, incluindo elemento tanto do direito público
quanto do direito privado. As normas urbanas são de natureza complexa e metajurídicas (por
exemplo a intervenção dos planos urbanísticos que não se enquadra nem no conceito de
norma, nem no de ato de intervenção), portanto é necessário que haja um tratamento
diferenciado e adequado, informando sobre as especificidades das normas urbanas
decorrentes da complexidade de relações no território urbano e da complexidade das fontes
e dos efeitos, especialmente em relação aos planos e intervenções urbanísticas.

Quanto ao conteúdo reservado e a abertura das normas urbanas, estas possuem ao


mesmo tempo reserva e mobilidade e isto se deve a diversidade das fontes e a natureza
intrinsecamente evolutiva da matéria regulada, o que provoca, no dizer do professor
Fernando Alves Correia a “infixidez”, ou “instabilidade” das normas urbanísticas (Correia,
1999) em face da evolução dos fatos e realidades sociais. As mudanças muitas vezes são
muito rápidas e certos institutos são modificados mesmo antes de terem sido postos em
prática o que estabelece ao mesmo tempo dois tipos de normas a serem estudadas: As normas
reservadas e provenientes do processo legislativo regular e as específicas, locais e flexíveis
(por exemplo na gestão dos planos e do planejamento, com a permanente revisão e controle).
(Oliveira Filho, 2006)
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Em relação ao caráter social ou desigualitário das normas e operações urbanísticas


provém da necessidade de promover, na realidade social, desigualdades, ou seja, o caráter
eminentemente social das normas urbanas obriga muitas vezes a questionar institutos
jurídicos como a propriedade, visando à promoção de valores como a justiça social e a justiça
territorial. Quanto à conformação do território e do direito de propriedade do solo a matéria
necessita estudar e compreender a classificação dos usos, do zoneamento, dos parâmetros de
ocupação e das técnicas de urbanização e das intervenções urbanas, além de todo o processo
de decisão envolvido nas questões urbanas. (Oliveira Filho, 2006)

Neste sentido, importante referir o trabalho do promotor Luciano de Faria Brasil


(2020, p. 26) que propõe um plano de estudos para a disciplina do direito urbanístico nos
cursos de graduação no país, estruturado a partir de alguns eixos básicos: “a) temas básicos
do direito urbanístico (conceito, conteúdo, fontes e divisão didática); b) direito fundamental
social à moradia (a partir da análise do texto da Constituição da República); c) atividade de
planejamento urbano (tipologia, competências dos entes federados, etc.); d) atividade de
política e gestão urbana; e) ordenamento do uso do solo; f) atividade de regularização
fundiária; g) tutela da ordem urbanística”. Conforme o autor, no exame da atividade de
política e gestão urbana estariam incluídos, entre outros assuntos, os instrumentos trazidos
pelo Estatuto da Cidade e pelo Estatuto da Metrópole, além de temáticas como a mobilidade
urbana e a concepção e execução de políticas públicas de caráter urbanístico. O tema do
ordenamento do uso do solo comportaria o exame da disciplina do parcelamento, do uso e
da ocupação do solo; além dos tópicos correlatos e ainda o tema da tutela processual da
ordem urbanística, com o estudo de ações como a ação popular e ação civil pública. (Brasil,
2020, p. 26)

3. DIREITO URBANÍSTICO NA ADVOCACIA PÚBLICA

Atualmente, o planejamento e a gestão das cidades é tema multidisciplinar. Antes,


quando a tarefa de organização das cidades se restringia à delimitação territorial, poder-se-
ia afirmar que competia apenas aos arquitetos e urbanistas tal função.

Como o crescimento e desenvolvimento das cidades, que por natureza é um espaço


de conflitos, os territórios urbanos passaram a ser tratados para muito além da questão
territorial. Os espaços de desigualdade na oferta de infraestrutura e serviços públicos no
território urbano, assim como saúde, educação, mobilidade urbana, segurança, entre outros,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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passou a enriquecer o tema afeto às cidades. Isso gerou a necessidade de que áreas do
conhecimento passarem a atuar na ordenação do território.

A ciência jurídica, preocupada com as questões de justiça social urbana, passou a


compor o grupo multidisciplinar de atores no planejamento e na gestão dos espaços das
cidades. Nesse momento, a atuação dos operadores do direito passou a ser essencial
juntamente com o dos demais atores.

Ora, alterou-se o papel da advocacia que passou a fazer planejamento e gestão


urbana? A resposta, por evidência, é negativa. A partir da conscientização que a ordenação
das cidades é tarefa multidisciplinar, e ao mesmo tempo específica, o papel dos profissionais
do direito é o de trazer o seu conhecimento e dar o aporte jurídico às questões urbanas.

Nesse sentido, advogados públicos e privados, magistrados e integrantes do


Ministério Público, precisam apropriar-se da pauta do Direito urbanístico, na medida em que
a ordem urbanística passou a ser definido como direito difuso. Não há como fugir desse
conhecimento. As questões referentes à regularização fundiária, os instrumentos
urbanísticos de financiamento das cidades, os mecanismos de controle e indução do
desenvolvimento das cidades são tarefas que passaram a ser objeto do Direito. Ocorre que
ainda há carência de profissionais jurídicos especializado. Comumente confundido com o
Direito das Coisas, o de propriedade especificamente, o Direito Urbanístico ainda é
desconhecido da comunidade jurídica.

A partir do momento em que a Constituição Federal de 1988 incluiu a política urbana


como capítulo específico de proteção, onde a função social da propriedade é a protagonista,
é preciso que a advocacia esteja preparada para enfrentar as questões daí originadas.

Especificamente com relação à advocacia pública municipal, o papel do advogado é


específico e de fundamental importância. O planejamento e a gestão do território acontecem
no cenário da cidade, cabendo aos órgãos jurídicos delinear a pauta urbana com os contornos
legais. Esse é fruto do trabalho conjunto dos planejadores, gestores, historiadores,
sociólogos, assistentes sociais. O papel ado advogado público é dar o desenho jurídico ao
trabalho multidisciplinar em que ele também participa.

O Direito Urbanístico é um ramo do Direito Público, originado do Direito


Administrativo e muito próximo do Direito Ambiental e que está em consolidação junto à
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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advocacia pública municipal. Campo aberto àqueles que gostam do público, do social e do
cenário urbano.

4. DIREITO URBANÍSTICO NA ADVOCACIA PRIVADA

O Direito Urbanístico é tradicionalmente ligado a atuação estatal na promoção de


políticas públicas de desenvolvimento urbano, em especial em âmbito local. Ao serem
aplicadas concretamente, as normas urbanísticas alcançam aos particulares, com impacto
direto em direitos tradicionais como a propriedade e a livre iniciativa.

Em decorrência deste contexto, embora seja um campo típico do Direito Público,


existem inúmeras possibilidades de prática da advocacia privada em Direito Urbanístico.
Seu desempenho de qualidade está atrelado a uma correta compreensão de conceitos e
institutos próprios.

As possibilidades de atuação podem ser inseridas em dois grandes grupos de serviços


jurídicos: (1) o apoio a administração pública; (2) a tutela de diretos de particulares. O
presente tópico visa descrever algumas destas oportunidades, com o objetivo de reforçar e
incentivar a expansão deste campo na advocacia privada.

O primeiro aspecto trata da advocacia pública como um apoio a atuação


administrativa urbanística, em especial de Municípios. Tal possibilidade não visa, em
absoluto, restringir o papel da advocacia pública. Pelo contrário: há pleno reconhecimento
de que boa parte da evolução deste campo está ligado ao desempenho dos advogados
públicos ao longo dos anos.

A atuação da advocacia privada em apoio a administração pública se dá naqueles


casos em que a estrutura administrativa existente, apta a lidar com situações tradicionais, se
vê desafiada com um novo programa ou projeto governamental, em que é necessário um
apoio externo especializado.

Tais possibilidades podem ser exemplificadas de inúmeras maneiras, a depender do


tamanho e estrutura administrativa de um ente federado. Para alguns municípios médios e
grandes, a realização de um Plano Diretor por exemplo, tem caráter corriqueiro, sendo
facilmente comportando pela sua estrutura jurídica administrativa. Já para municípios
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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menores, a realização deste processo de criação/revisão, que tem peculiaridades muito


próprias, já demanda um apoio externo, tanto técnico, quanto jurídico.

Neste exemplo, cabe destaque especial, sobre os requisitos que têm sido escolhidos
quando das licitações para realização de planos e normas urbanísticas. Não se defende aqui,
que um advogado, com especialização ou prática reiterada em direito urbanístico, seja capaz
de substituir um arquiteto ou engenheiro nas funções técnicas, típicas destas normas. Por
outro lado, não é aceitável, que o profissional do direito, sempre requisitado nestas
contratações, não apresente amplo conhecimento na matéria jurídico-urbanística.

É somente com avanços no reconhecimento da atuação da advocacia privada em


Direito Urbanístico que situações como a relatada serão superadas. Para fechar a questão das
possibilidades de apoio a administração pública, cabe destaque a aplicação cada vez mais
frequente de instrumentos urbanísticos como operações urbanas, mecanismos de solo criado,
sistemáticas de compensações, mitigações, que muitas vezes não são de domínio imediato
das estruturas a administrativas, necessitando do apoio de consultorias jurídicas privadas
para a implementação.

A segunda possibilidade apresentada diz respeito a atuação da advocacia privada em


direito urbanístico na tutela de diretos de particulares. Para explanar tais exemplos, sugere-
se uma subdivisão: a) a defesa de interesses individuais; b) a defesa de interesses coletivos.

A atuação da advocacia privada urbanística, na tutela de direitos individuais, tem


desdobramento civis, penais e administrativos. Em direito civil, temáticas como
desapropriação e limitações administrativas, tem sido reiteradamente debatida em tribunais,
tendo peculiaridades que adentram em dogmáticas do Direito Urbanístico.

O desdobramento administrativo é amplo: desde a consultoria jurídica para


acompanhamento e superação de entraves em licenciamentos ligados ao direito de edificar
e parcelar solo, até a defesa em processos originados no exercício do poder de polícia, que
podem redundar em embargos, suspensão de obra, penalidade de multas ou outros
desdobramentos. Em âmbito penal, embora restrito, há tipos específicos na lei de
parcelamento do solo, que necessitam de conhecimento dos aspectos urbanísticos para uma
defesa técnica e precisa.

No que diz respeito a advocacia privada urbanística, na tutela de direitos e interesses


coletivos, encontra-se inserida toda ação em favor de ongs, associações, grupos vulneráreis,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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que podem ser alcançados por ações, normas, licenças, decisões judiciais, que contrariam os
objetivos e as diretrizes fundamentais da Política Urbana. Neste aspecto, a atuação poderá
ser administrativa ou judicial, buscando-se a regulamentação de algo importante ou reversão
de atos prejudiciais a ordem urbanística.

Entre os exemplos destas ações pela advocacia privada está o impedimento de


despejos que não cumpram requisitos humanitários; garantia da gestão democrática da
cidade; embargo de obra em descordo com legislação; medidas contra gentrificação em
grandes projetos urbanos, entre outros.

Desta forma, fica evidente o amplo campo de atuação para a advocacia privada no
âmbito o Direito Urbanístico. Trata-se de um espaço pouco explorado, ainda em expansão.
O avanço da atuação de advogados nesta área contribuirá cada vez mais com a consolidação
dos conceitos, princípios, institutos e dogmática deste ramo do direito, tanto na legislação,
quanto na doutrina e jurisprudência.

5. CONCLUSÃO

Tendo em vista os argumentos apresentados no decorrer deste trabalho é possível


perceber a importância que a atuação da advocacia urbanística, seja no âmbito do direito
público como no direito privado, representa no cenário nacional, regional e local.

O desafio está na superação da invisibilidade da disciplina de Direito


Urbanístico. Por isso, faz-se necessário a inclusão do conteúdo de direito urbano como
disciplina obrigatória nos currículos de graduação dos cursos jurídicos do País. O ensino
jurídico deve abranger o estudo do Direito Urbano como forma de despertar para a
necessidade do desenvolvimento do ser humano como parte integrante do planeta e
perceber o papel do Direito nos processos de urbanificação. Portanto, é de fundamental
importância e necessária a inclusão do conteúdo de Direito Urbanístico no âmbito do
ensino jurídico a fim de os egressos possam ter o conhecimento e a capacitação na
interpretação e aplicação da legislação urbanística em vigor, identificar as necessidades
presentes e futuras dos meios urbanos e rurais, pondo em evidência as possibilidades, os
desafios, as condicionantes e as ameaças ao seu desenvolvimento sustentado, bem como,
gerir e avaliar os efeitos e as implicações das transformações urbanísticas, entre outras
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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atribuições.

Por outro lado, há um leque de possibilidades para a atuação da advocacia


urbanística. O planejamento e a gestão das cidades é um tema multidisciplinar e, a partir
da conscientização que a ordenação das cidades é tarefa multidisciplinar, e ao mesmo
tempo específica, o papel dos profissionais do direito é o de trazer o seu conhecimento
e dar o aporte jurídico às questões urbanas.

Nesse sentido, os campos de atuação da advocacia urbanística na área pública apontam


para o papel do advogado público em dar o desenho jurídico ao trabalho multidisciplinar em
que ele também participa, seja como: advogado público municipal, magistrado e integrante
do Ministério Público, que precisam apropriar-se da pauta do Direito urbanístico, na medida
em que a ordem urbanística passou a ser definida como direito difuso.

No âmbito do direito privado, os campos de atuação da advocacia urbanística


apresentam amplos espaços de atuação para serviços jurídicos de apoio a administração
pública e na prestação de tutela de diretos de particulares.

As questões referentes à regularização fundiária, os instrumentos urbanísticos de


financiamento das cidades, os mecanismos de controle e indução do desenvolvimento das
cidades são tarefas que passaram a ser objeto do Direito e que necessitam da atuação de
profissionais jurídicos especializados.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Luciano de Faria, O CONTEÚDO DO DIREITO URBANÍSTICO: notas


exploratórias sobre o plano didático da disciplina Revista do Ministério Público do Rio
Grande do Sul - RMPRS n; 79. Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
2020.

CORREIA. Fernando Alves. Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra,
Almedina, 2012; Vols. II, Coimbra, Almedina, 2012; e Vol. III, Coimbra, Almedina, 2012.

__________. O plano urbanístico e o princípio da igualdade. Coimbra. Almedina, 1990.

SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução críticaao planejamento e à gestão
urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

52

OLIVEIRA FILHO, _______. O Direito do Urbanismo Constitucional. Elementos para a


configuração jurídica da disciplina. Revista Brasileira de Direito. Passo Fundo, Ed.
Métodos, 2006.

OLIVEIRA FILHO, _______. A participação popular no planejamento urbano: A


experiência de Porto Alegre. Tese de Doutorado. Porto Alegre: Propur-Ufrgs, 2009.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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OS INSTRUMENTOS DO ESTATUTO DA CIDADE E AS


POSSIBILIDADES DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO HISTÓRICO

Carla Portal Vasconcellos (autora)1


Milena Albrecht Silveira (coautora)2
Miléia Alves (coautora)3
Thaís Maria Rossetto (coautora)4

Resumo: O presente artigo busca fomentar a discussão acerca das perspectivas no


desenvolvimento de políticas públicas com base no Estatuto da Cidade, especificamente no
que diz respeito ao instrumento da transferência do direito de construir, através de exemplos
de casos de sucesso da sua aplicação no município de Passo Fundo/RS e também da reflexão
sobre o patrimônio que se perde quando há uma lacuna na aplicação dos mecanismos legais
de salvaguarda e inventariação. Primeiramente é apresentado um panorama sobre a evolução
da legislação referente à proteção do patrimônio, com enfoque nos instrumentos do Estatuto
da Cidade que tem relação com esse tema, em especial a transferência do direito de construir.
Em seguida é referenciado o caso da antiga Madeireira Engenho Benincá, no município de
Passo Fundo, exemplar do patrimônio histórico da cidade que se perdeu por não estar
inventariado. Apresentam-se também conceitos referentes à paisagem, ao território e às
relações que envolvem os dois termos no desenvolvimento de abordagens mais inclusivas
na gestão patrimonial. Finalmente, são investigados os casos de sucesso na aplicação do
instrumento da transferência do direito de construir, trazendo uma crítica e reflexão a
respeito do processo, especialmente da sua implementação no município de Passo Fundo/RS.

Palavras-chave: Patrimônio Histórico; Legislação Municipal; Estatuto da Cidade;


Transferência do Direito de Construir; Paisagem.

1. INTRODUÇÃO
Desde o ano de 1937, a partir do Decreto-Lei n° 25, a legislação brasileira sofreu
grande evolução quanto ao estabelecimento de mecanismos de salvaguarda do patrimônio

1 Arquiteta e Urbanista (FAU/UFRGS). Mestre e Doutora em Planejamento Urbano e Regional


(PROPUR/UFRGS). Pós doutora (Universidade de Sevilha e Universidade Lusófona do Porto). Professora da
Universidade de Passo Fundo (UPF). Coordenadora do Projeto de Pesquisa ‘Relendo Passo Fundo’
2 Graduanda cursando o último período em Arquitetura e Urbanismo (FEAR/UPF). Atua como voluntária no

Projeto de Pesquisa ‘Relendo Passo Fundo’


3
Arquiteta e Urbanista (FEAR/UPF). Trabalha como profissional autônoma em escritório próprio, na cidade
de Passo Fundo – Rio Grande do Sul – Brasil.
4 Arquiteta e Urbanista (FEAR/UPF). Trabalha como profissional autônoma associada ao Arquiteto e Urbanista

Adilson Giglioli, na cidade de Santo Antônio do Palma – Rio Grande do Sul – Brasil
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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histórico e cultural. Passando pelo estabelecimento da Constituição de 1988, até a legislação


mais atual com o Estatuto da Cidade, percebe-se o avanço dos critérios de enquadramento
do patrimônio material e imaterial e também das ferramentas legais para protegê-lo. Deste
modo, a estruturação deste artigo inicia-se com um panorama geral da legislação referente
ao tema.

Apesar da legislação assegurar a proteção dos bens tombados e, conforme


mencionado, apresentar diversos mecanismos para a salvaguarda dos mesmos, esse processo
pode ser desafiador por existirem diferentes interesses e atores envolvidos no
desenvolvimento de uma cidade. Neste sentido, no segundo capítulo é discutido o caso da
Madeireira Engenho Benincá no município de Passo Fundo, exemplar notório da história do
desenvolvimento urbano e econômico da cidade que foi irreparavelmente perdido diante das
pressões exercidas sobre o território.

Tanto o patrimônio quanto o território são produções sociais em disputa que


constroem a paisagem. Deste modo é fundamental compreender as dinâmicas que envolvem
ambos os conceitos, pois somente assim é possível estabelecer uma abordagem participativa
que garanta a prevalência dos interesses coletivos sobre os interesses particulares, mesmo
essa já estando definida pela legislação.

Através da análise dos casos de sucesso da aplicação de um dos instrumentos


definidos pelo Estatuto da Cidade, especificamente a transferência do direito de construir,
no município de Passo Fundo, é possível perceber como os mecanismos criados através da
legislação se tornaram importantes ferramentas para garantir não somente a proteção dos
bens, mas também sua utilização produtiva e sustentável, especialmente do patrimônio
construído.

2. EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO E OS


INSTRUMENTOS PREVISTOS NO ESTATUTO DA CIDADE
Os estatutos jurídicos brasileiros sobre patrimônio têm como marco inicial o Decreto-
Lei nº 25, de 19375, ao qual relacionam-se os Livros do Tombo. A este decreto seguem-se,

5
Anteriormente à 1937 houveram uma série de atos relativos à proteção do patrimônio cultural, como a criação
do Museu Histórico Nacional, em 1922, e o projeto de lei, não aprovado, para a criação de uma Inspetoria de
Monumentos Históricos, apresentado em 1923 ao Congresso Nacional. Em 1924 tramita também, no entanto
sem ser apresentada, uma proposição de legislação no mesmo sentido elaborada pelo jurista Jair Lins.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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dentre outras normas jurídicas, o art. 216 da Constituição Federal de 1988, o Decreto nº 3551
de 2000, que estabelece o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), assim como
o registro de bens culturais de natureza imaterial, além dos instrumentos incluídos no
Estatuto da Cidade, Lei 10.251/2001.

Em 1933 a cidade de Ouro Preto é elevada a Monumento Nacional e o Decreto


Federal 22.928, que regulamenta esta condição, acaba por traçar as bases para as normas
supervenientes, estabelecendo em seu texto que “(...) é dever do Poder Público defender o
patrimônio artístico da Nação”.

O Decreto-Lei nº 25, de 1937 exprime o entendimento progressivo sobre a relevância


do patrimônio histórico e artístico nacional e a indispensável necessidade de sua proteção
sob tutela do Estado, passando, a partir daí, a figurar como parte do sistema jurídico
brasileiro. É importante ressaltar no Decreto-Lei de 19376 a prevalência do interesse coletivo
sobre o interesse particular: “(...) conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e
cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da
história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico
ou artístico”. O decreto-lei prevê também o tombamento compulsório, reforçando a
precedência da proteção com relação aos interesses privados (VASCONCELLOS e
TONELLO, 2020).

O decreto-lei prevê ainda a “(...) alienabilidade das obras históricas ou artísticas


tombadas, de propriedade de pessoas naturais ou jurídicas de direito privado (...)”, com
previsão de penas para a não informação relativa à transferência de propriedade de bens
tombados, para a destruição, demolição ou mesmo restauração sem autorização, e ainda para
a construção que prejudique a visibilidade de bens tombados. Pelo decreto de 1937 é ainda
responsabilidade do proprietário de um bem tombado comunicar a necessidade de sua
conservação, pois, em não dispondo meios próprios para fazê-lo, as custas devem ficar, neste
caso, a cargo da União.

A Lei 3.924 de 19617 acrescenta à legislação existente especificações referentes às


jazidas arqueológicas, ficando os “(...) monumentos arqueológicos ou pré-históricos de
qualquer natureza existentes no território nacional e todos os elementos que neles se

6
Este estatuto jurídico também inclui entre os bens a serem preservados os monumentos naturais.
7
Conhecida como Lei de Sambaquis.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

56

encontram (...)” sob a proteção do Poder Público, também em conformidade com o artigo
175 da Constituição Federal de 19468. A Lei declara o ‘direito imanente ao Estado’ a posse
e a salvaguarda dos bens de natureza arqueológica ou pré-histórica, estabelecendo a
responsabilização pela não comunicação à Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional de sítio identificado, bem como pela retirada de bens do país, fixando ainda as
condições para a exploração destes bens por particulares.

A Constituição Federal de 1967, no parágrafo único do artigo 172, reproduz os


avanços existentes, colocando sob a proteção especial do Poder Público “os documentos, as
obras e os locais de valor histórico ou artístico, os monumentos e as paisagens naturais
notáveis, bem como as jazidas arqueológicas”.

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 216, evolui acerca de aspectos ainda não
tratados, incluindo como patrimônio cultural brasileiro, para além dos bens de natureza
material, também os de natureza imaterial que se constituam “(...) portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira
(...)”, nos quais estão incluídos: i) as formas de expressão; ii) os modos de viver, criar e fazer;
iii) as criações científicas, artísticas e tecnológicas; iv) as obras, objetos, documentos,
edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; v) assim como
conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico, estes já presentes na legislação anterior.

Os meios previstos na Constituição de 1988 para a proteção deste patrimônio, com a


colaboração da comunidade, são “(...) inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e outras formas de acautelamento e preservação”. O compartilhamento
destas tarefas e responsabilidades com a comunidade é um importante acréscimo na redação
da Constituição, do mesmo modo que o tombamento das reminiscências dos quilombos, e
no mesmo sentido em que avança a Emenda Constitucional nº 71 de 2012, que estabelece o
Sistema Nacional de Cultura como uma organização colaborativa, descentralizada e
participativa, instituindo “(...) um processo de gestão e promoção conjunta de políticas

8
Estabelece a Constituição Federal de 1946 em seu artigo 175: “As obras, monumentos e documentos de valor
histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza
ficam sob a proteção do Poder Público.”
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

57

públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a


sociedade (...)”.

A Constituição Federal de 1988 considera competência comum à União, Estados e


Municípios proteger bens de valor histórico, artístico e cultural, salvaguardar paisagens
naturais notáveis e sítios arqueológicos e impedir a descaracterização de obras de arte e de
outros bens de valor histórico, artístico ou cultural. A competência de legislar sobre a
proteção destes patrimônios, contudo, é concorrente entre União, Estados e Distrito Federal.
Compete de forma específica aos Municípios promover a proteção do patrimônio histórico-
cultural local. É, no entanto, a lei da ação civil pública que disciplina as ações de
responsabilidade por danos, dentre outros, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico (VASCONCELLOS e TONELLO, 2020).

O Estatuto da Cidade, de 2001, traz dois instrumentos que podem aplicar-se à


proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico: o direito de preempção e a
transferência do direito de construir. O direito de preempção refere-se à preferência de
compra pelo Poder Público de áreas gravadas no Plano Diretor, tendo por objetivo
implementar a regularização fundiária, programas habitacionais, e, dentre outros, também à
proteção de áreas de interesse histórico e cultural. Já a transferência do direito de construir,
por sua parte, autoriza os proprietários de imóveis considerados de interesse histórico,
ambiental, paisagístico, social ou cultural, a vender seu direito de construir previsto no Plano
Diretor. Os dois instrumentos, não especificamente, mas de modo associado, objetivam
facilitar e estimular a preservação do patrimônio, estando relacionados à elaboração de Plano
Diretor participativo e sujeitos aos objetivos e diretrizes por este estabelecidos.

A transferência do direito de construir, instrumento a ser mais explorado no


desenvolvimento deste artigo, foi concebida com o objetivo compensar os proprietários de
bens a serem protegidos, viabilizando a preservação tanto de imóveis quanto de áreas de
relevante valor histórico ou ambiental. É condição para a efetivação da transferência, a
participação do proprietário em programa de preservação elaborado em conjunto com o
poder público ou pelo setor privado, desde que, neste caso, aprovado pelo órgão público
competente.

Ao poder público cabe definir as condições da transferência, através, por exemplo,


do estabelecimento de critérios claros para a sua aplicação, bem como da elaboração de um
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

58

cadastro de imóveis com potencial para aplicação do instrumento. E, muito embora a


transação se realize entre proprietários privados, é fundamental que a prefeitura registre a
perda do potencial de um imóvel e o aumento de potencial no imóvel a que se destina,
acompanhando e monitorando também a aplicação dos termos de preservação acordados
para o imóvel que se beneficiou do expediente.

Para a implementação do instrumento da transferência do direito de construir é


essencial a instituição de lei municipal baseada no Plano Diretor que permita a alienação
mediante escritura pública do direito de construir, conforme o previsto pelo artigo 35 do
Estatuto da Cidade. Cabe a esta lei municipal determinar a finalidade que o imóvel deve
atender em razão da restrição do exercício do direito de construir, assim como estipular os
limites máximos de potencial construtivo do imóvel que os cederá e daquele que os irá
receber. A mesma lei deve detalhar as condições da transferência, indicar os procedimentos
de controle, esclarecer as modalidades de extinção, definir as obrigações dos proprietários e
as responsabilidades do poder público.

A legislação brasileira referente a proteção do patrimônio, desde o decreto-lei de


1937 até o Estatuto da Cidade de 2001, evoluiu na compreensão do que deve ser preservado,
tendo passado dos “bens móveis e imóveis existentes no país”, para, a partir da Constituição,
englobar todo o patrimônio imaterial brasileiro. Suplanta-se também a inclusão nos Livros
do Tombo como procedimento de proteção, introduzindo-se toda uma nova série de
instrumentos de fomento à proteção, baseados em uma análise local, a partir dos Planos
Diretores, como a transferência do direito de construir. Estes novos instrumentos admitem e
provocam a participação de atores, agentes, iniciativas e interesses ignorados pelos institutos
anteriores, possibilitam a efetivação da salvaguarda mediante incentivos e compensações,
representando um aperfeiçoamento na proteção ao patrimônio e à memória.

3. O QUE SE PERDE DE PATRIMÔNIO POR FALTA DE UM TRABALHO DE


INVENTARIAÇÃO: O CASO DA ANTIGA MADEIREIRA ENGENHO BENINCÁ
Se por um lado, os mecanismos legais para salvaguarda do patrimônio,
especificamente do patrimônio construído, fornecem linhas guias para a aplicação dos
processos que garantem a sua preservação, especificando quais as condições necessárias para
o enquadramento das propriedades, por outro lado, eles podem também criar desafios para a
inventariação das mesmas, sendo um processo que pode levar muito tempo.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Considerando todos os aspectos que podem ter relevância no que diz respeito aos
interesses sobre um território, como a localização, a especulação imobiliária e os efeitos de
um desenvolvimento acelerado, mesmo partindo do princípio de que a existência ou não de
mecanismos legais de proteção sobre a edificação não determina o seu valor enquanto
patrimônio, é imprescindível o levantamento e inventariação do mesmo.

Pode-se afirmar que, fatores como a lacuna quanto à educação patrimonial, as


pressões do setor imobiliário e especialmente a inexistência de um inventário incluindo a
edificação, foram as principais causas que levaram a perda irreparável da antiga Madeireira
Engenho Benincá (Figura 1), no município de Passo Fundo.

O edifício, construído em 1916, teve sua relevância histórica ligada diretamente com
a evolução econômica do município, que chegou a ser conhecido como “terra dos pinheirais"
durante o ciclo da madeira no início do século XX. Esse setor se beneficiou muito com a
construção da ferrovia, pois isso permitiu o transporte da matéria prima para outras regiões
e até mesmo outros países. Além do edifício principal, ainda faziam parte do complexo,
outras pequenas edificações em madeira que se perderam a partir do ano de 2011 com o
encerramento das atividades da empresa. A importância da preservação de edificações desse
período comprova-se ao considerarmos que a madeira foi o principal produto de exportação
do município de Passo Fundo em 1918 e que haviam aproximadamente 200
estabelecimentos voltados para a extração da madeira no município, enquanto hoje restam
poucas evidências dessa época (WENTZ, 2004, p.72 apud KNACK, 2016, p. 62).

Figura 1: Edifício principal da antiga Madeireira Engenho Benincá em 2019.

Fonte: Thaís Maria Rossetto e Janaína Piazza, 2019.


Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

60

Outro fator chave para evidenciar a importância histórica do complexo como um todo
é que, a exploração da madeira na região foi o que direcionou a expansão urbana do
município (DAL MORO, et. al., 1998, p.94 apud KNACK, 2016, p.63) sendo fator
determinante para a elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de
1953 que considerava que a linha férrea, distribuía as atividades de forma desorganizada,
por exemplo as serrarias e seus depósitos.

Apesar de seu valor excepcional, enquanto testemunho construído da história da


evolução da cidade, o edifício da madeireira, bem como as outras edificações que faziam
parte do complexo, não encontravam-se inscritas em nenhum inventário, o que teve como
consequência a sua demolição em 2020 depois de sucessivos incêndios, levando o Ministério
Público a indicar o arquivamento do tombamento e encaminhar o caso para investigação
policial9. Portanto, é evidente que, apesar da existência de mecanismos que favorecem a
salvaguarda do patrimônio, dentro do Estatuto da Cidade e na legislação nacional, um país
ou, neste caso, um município, não pode aplicar sua legislação se não forem listados os
objetos aos quais pretende-se proteger (LEITÃO, 2011, p.58).

A dificuldade de inclusão de edificações, como a antiga Madeireira Engenho Benincá


e seu entorno, em inventários, se deve tanto pela lenta identificação e levantamento da
história referente à propriedade, quanto pelas pressões políticas e interesses econômicos da
cidade que tendem a colocar desenvolvimento e expansão urbana como conceitos opostos à
preservação de tais exemplares. Essas edificações poderiam se beneficiar, do ponto de vista
da manutenção do edificado, da busca por prestígio e estímulo econômico que a
inventariação traria na estruturação da oferta turística.

Por outro lado, a implantação de novos usos e a valorização patrimonial também não
depende do caráter turístico do município, se considerarmos Passo Fundo como uma cidade
universitária. Um exemplo disso é a criação da Gare Estação Gastronômica (Figura 2) que
atribuiu um novo uso para a edificação tombada (Decreto Nº 2.671/1991). Construído entre
1898 e 1920, o prédio abrigava a estação de passageiros, de modo que sua localização foi
marcante no desenvolvimento urbano do município e, com a desativação da ferrovia há

9
Procedimento nº 00820.001.190/2020 — Inquérito
Promotoria de Justiça Especializada de Passo Fundo – RS
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

61

pouco mais de 40 anos mantinha-se devoluto, pois mesmo a proteção legal, através da
inventariação e tombamento, não garante o seu estado de conservação na prática.

Figura 2: Gare Estação Gastronômica a partir da Av. 7 de Setembro.

Fonte: Acervo das autoras, 2021.

Entretanto, o processo de inventariação e tombamento, neste caso, preveniu que a


antiga estação de passageiros fosse derrubada e mesmo que não tenha garantido o estado de
conservação diretamente, influenciou a busca pela implantação de seu novo uso. Fato que
não ocorreu com a antiga madeireira, como citado anteriormente, mesmo sua implantação
localizada, no que se desenvolveu nos dias atuais, como um bairro boêmio da cidade.

4. CONCEITO DE PAISAGEM E SUA RELAÇÃO COM ASPECTOS DE


PROTEÇÃO MAIS ABRANGENTES AO PATRIMÔNIO: THE LANDSCAPE
APPROACH
O patrimônio, assim como o território, é uma produção social em disputa e por isso
frequentemente está sujeito aos sistemas complexos de gestão. Exercem-se pressões tanto
verticais, de diferentes níveis de governança, quanto horizontais, como do mercado
imobiliário e da população. Deste modo, “um corpo substancial de diretrizes e políticas
aplicam-se ao patrimônio, ou têm um impacto direto ou indireto no que está acontecendo
sobre ele” (VELDPAUS, 2015, p. 24), pois não é possível isolar o patrimônio do seu
território envolvente ou da sua área de influência.

Neste caso, especificamente referente ao patrimônio edificado, é possível citar as


edificações nos arredores da linha férrea em Passo Fundo, à qual se deve o fomento do seu
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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desenvolvimento econômico, social e cultural no início do século XX. Algumas edificações


remanescentes do período, como o Moinho do complexo da S.ª Moinhos Rio-Grandense,
foram protegidos pelo tombamento municipal (Decreto Nº 24/2011), não apenas pela
importância histórica ou pelas características arquitetônicas que remontam seu período de
construção, mas também pela sua participação na construção da paisagem da cidade de Passo
Fundo.

O conceito de paisagem compreende as transformações naturais e as dinâmicas


sociais, sendo, portanto, testemunho das relações humanas através do tempo. A construção
social do patrimônio sempre ocorre em meio à uma paisagem, transformando-a. Assim,
mesmo quando se visa a proteção de edifícios individuais, a ênfase deve ser dada ao todo, à
escala urbana. A proteção do patrimônio construído não deve apenas ser integrada à uma
estratégia mais ampla de gestão urbana, mas também levar em conta como edificações,
monumentos e conjuntos se relacionam e fazem parte dos processos de mudança
(VELDPAUS, 2015, p. 48).

Deste modo, talvez outros exemplares ainda remanescentes que fazem referência à
antiga via férrea em Passo Fundo, como as casas dos funcionários e do engenheiro chefe e o
antigo Moinho São Luiz, já pudessem estar incluídas nos mecanismos legais de salvaguarda
e nas políticas de desenvolvimento urbano. Além disso, se a conservação e a gestão
patrimonial fossem integradas dentro do planejamento urbano de forma mais ampla, atenuar-
se-iam os conflitos e tensões geradas pelas relações de poder entre os atores sociopolíticos,
diante de um território em disputa. (LEITÃO, 2011, p. 324)

A carta de recomendações para Paisagem Urbana Histórica (HUL) publicada pela


UNESCO em 2011, define como objetivo da ‘landscape approach’ a preservação da
qualidade do meio humano e a utilização produtiva e sustentável dos espaços urbanos,
reconhecendo o seu caráter dinâmico e promovendo a diversidade social e funcional. E
integra os objetivos da conservação do patrimônio e do desenvolvimento econômico,
equilibrando as necessidades do presente e das futuras gerações com o legado do passado.
(UNESCO, 2011)

Uma abordagem como a proposta pela UNESCO permite não somente a proteção do
patrimônio edificado em si, mas também dos aspectos sociais e econômicos que definem a
paisagem urbana local e de seus mecanismos vitais (VELDPAUS, 2015, p.49). Essa
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

63

integração requer o apoio das políticas locais, facilitadas por uma política nacional, tal qual
o Estatuto da Cidade, e necessita também da incorporação da definição dos conceitos de
paisagem e patrimônio desenvolvidos ao longo do último século.

Além disso, essas políticas devem ser baseadas em uma abordagem participativa por
todas as partes interessadas e coordenada tanto do ponto de vista institucional quanto setorial
(UNESCO, 2011). A democratização do processo deve-se iniciar desde a definição dos
atributos e valores por parte da comunidade local, pois “quando a comunidade é apenas
informada ou educada para respeitar e valorizar o patrimônio já designado, sem se envolver
no processo de definição”, não há o sentimento de dever em protegê-lo (VELDPAUS, 2015,
p. 132).

5. CASOS DE SUCESSO NA APLICAÇÃO DA TRANSFERÊNCIA DO DIREITO


DE CONSTRUIR
Com a finalidade de garantir a salvaguarda do patrimônio histórico da cidade de
Passo Fundo, o órgão municipal desenvolveu uma série de mecanismos para auxiliar o
proprietário do imóvel a entender o que significa ter uma edificação tombada e quais suas
vantagens. Para tal, foi dedicado um setor específico dentro da Prefeitura nomeado como
Núcleo de Patrimônio Histórico e Cultural, que, além de orientar, também vistoria as
edificações de interesse.

Por meio deste setor, bem como do Estatuto da Cidade, implementou-se o processo
de transferência do direito de construir, que permite que o proprietário do bem tombado ou
de relevância histórica, venda seu direito de construir através da transferência do potencial
construtivo. Ou seja, o potencial construtivo do local em que o imóvel histórico está inserido,
o qual, devido à preservação, não poderá ser utilizado neste, pode ser transferido por meio
da venda para uma nova área, podendo este espaço utilizar-se de até 25% à mais da
capacidade de índice que seu terreno de construção permitir.

A venda dos índices pode ser realizada somente após vistoria do imóvel pelo setor
responsável da prefeitura, o qual vai averiguar o estado de conservação da edificação de
acordo com os critérios de preservação do patrimônio. Se o imóvel em questão encontrar-se
em ótimo estado de conservação, o caso é encaminhado para o Conselho de Cultura, o qual
vai avaliá-lo, dentro dos critérios históricos e culturais. Após aprovação das duas etapas
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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relatadas anteriormente, inicia-se o processo de contabilização do índice que poderá ser


vendido.

Dentro das políticas de incentivo à conservação das edificações históricas, destaca-


se a Lei Complementar nº 239/2015 (a qual revoga a lei nº 259/2010), que objetiva
regulamentar a Transferência do Direito de Construir dentro dos termos estabelecidos pelo
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. Foi instituído através do Art. 3º que a
transferência será admitida para os imóveis utilizados para a implantação de equipamento
urbanos e comunitários, preservação quando o mesmo for tombado como patrimônio
municipal, implementação de programas de regularização fundiária ou promoção de
habitação de interesse social. Dentro deste artigo, a lei determina ainda, que poderão receber
a transferência do potencial construtivo apenas os imóveis localizados nas Zonas de
Ocupação Intensiva Um (ZOI1), Zona de Ocupação Intensiva Dois (ZOI2), Zona de
Transição (ZT) e nos Eixos Indutores (EI) (PASSO FUNDO, 2015).

No caso em específico de imóveis tombados, a transferência do potencial construtivo


está condicionada à preservação, recuperação e manutenção do mesmo, mediante laudo
técnico. No caso da não conservação ou demolição pelo proprietário, segundo o Art. 17º,
deverão ser aplicadas as seguintes penalidades:

I - extinção da faculdade de transferência do potencial construtivo;


II - cessação da isenção10, prevista no artigo 19 desta Lei;
III - pagamento dos valores que deixou de recolher em função das isenções
concedidas, devidamente atualizados; e
IV - pagamento de multa equivalente a 100% (cem por cento) do valor obtido com
a transferência edificável ou do valor da área construída oriunda da transferência,
calculados de acordo com o preço de mercado. (PASSO FUNDO, 2015)

O primeiro caso de transferência de índices em Passo Fundo foi do imóvel Moinho,


do complexo da S.ª Moinhos Rio-Grandense. O edifício, conhecido especialmente pela
implantação de seu silo e moinho, teve seu valor reconhecido a partir do tombamento
definitivo segundo o Decreto nº 23/2011, o que destaca a importância do mesmo no
desenvolvimento econômico, urbano e social da cidade.

10
Acresce-se ao Art. 14 da Lei Complementar nº 195, de 27 de dezembro de 2007, o VI inciso que isenta do
Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana os imóveis tombados pelo Município desde que o
proprietário zele e conserve os bens efetivamente, mantendo as características motivadoras da preservação.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

65

Sua importância histórica está ligada à chegada da ferrovia no final do século XX,
que foi responsável por impulsionar o crescimento de Passo Fundo. O município, por sua
vez, tornou-se um vetor de atração de atividades comerciais e industriais.

Segundo Francisco Antonino Xavier e Oliveira, em seu relatório agrícola de 1917,


nessa época o plantio de trigo no território de Passo Fundo tinha vantajoso
desenvolvimento e já possuía larga cultura, o que levou à construção de dois
grandes moinhos de trigo, ambos localizados na atual Av. Sete de Setembro, onde
na época corriam os trilhos da Viação Férrea. (BATISTELLA, 2011, pg. 69)

Conforme Batistella (2011), a edificação do moinho possui um caráter industrial


marcado, com traços da linguagem racionalista, principalmente em questões técnicas e
estruturais que foram preservadas ao longo das décadas (Figura 3). O autor segue afirmando
que o moinho e o silo representam um “conjunto monumental e de grande relevância
histórica, arquitetônica e conceitual” (BATISTELLA, 2011, p. 69).

Figura 3: Moinho e Silo.

Fonte: Acervo das autoras, 2021.

Após a desativação do moinho, implementou-se um novo uso na edificação, sendo


atualmente o edifício utilizado como um local de lazer noturno. Além disso, para garantir a
sua conservação e manutenção permanente, além de preservar a sua história, foi utilizado o
instrumento de Transferência do Direito de Construir, através da venda de índices para a
construção do Edifício Residencial Abu Dhabi (Figura 4), o qual está implantado em terreno
central da cidade na Zona de Ocupação Intensiva Dois (ZOI2). O patrimônio vendeu a
metragem de 1.862,00m² para a nova edificação. Apesar desta venda, o Moinho ainda possui
metragem a ser transferida para outras construções.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

66

Figura 4: Edifício Residencial Abu Dhabi.

Fonte: Acervo das autoras, 2021.

Outro caso de edificação que utilizou seu potencial para venda é o Solar do Glória
(Figura 5). Antigo hotel da cidade, construído em 1927 a partir da ação do empreendedor
José Knoll que objetivava, devido sua localização privilegiada, disponibilizar acomodações
aos passageiros que chegavam a Passo Fundo pela estação férrea. Reconhecido como um
sobrado imponente, o Hotel Glória simbolizou uma nova fase na cultura da cidade,
mostrando a modernização e o progresso da mesma (LECH, 2007).
Conforme o Inventário NADUC/UPF (FEAR, 2012), a edificação possui
características do historicismo eclético, destacando-se a platibanda reta com frisos e
elementos decorativos sobrepostos, a presença de um balcão na marcação da esquina em 45º
e outro lateral com verga em arco abatido, além de certa assimetria, que não atrapalha seu
equilíbrio formal e volumétrico. Destaca-se que a edificação passou por uma grande reforma
no ano de 2002, tendo seu interior totalmente modificado, o que possibilitou a diversificação
do seu uso, preservando-se apenas o aspecto externo original, com restauros posteriores de
reboco, pintura e substituição de algumas aberturas.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Figura 5: Comparação entre o Hotel Glória na década de XX, quando ainda era conhecido como Casa Knoll e
seu estado atual, após as ações de restauro.

Fonte: Elaborado pelas autoras, 2021.11

Em novembro de 2014 iniciou-se o processo de tombamento do imóvel, a partir do


pedido de preservação do espaço dos proprietários ao poder público. A edificação que
abrigava o antigo Hotel Glória, mais conhecido atualmente como “Solar do Glória”, foi
declarada como bem integrante do Patrimônio Histórico-Cultural do município a partir do
Decreto nº 122/2014, que institui seu tombamento definitivo. Ainda segundo o que consta
no referido Decreto, a edificação é composta por quatro pavimentos (incluindo o mezanino
e o porão), contendo oito unidades de uso privativo, sendo quatro lojas, três salas comerciais
e um restaurante.

O tombamento desta edificação está intrinsecamente ligado ao seu uso atual. O


proprietário do imóvel, com intenção de locar o espaço, mas não considerando-o atrativo,
por causa das características antigas, procurou um escritório de arquitetura com a intenção
de demolir o imóvel e construir uma nova edificação no mesmo local. Em contrapartida,
analisando o potencial do edifício, como marco histórico e arquitetônico na cidade, os
arquitetos contratados convenceram o proprietário da importância da conservação da
edificação.

A preservação desta edificação proporcionou uma vantagem monetária para o


proprietário com a transferência do direito de construir e também manteve preservado um
dos marcos da malha urbana e um dos pontos turísticos da cidade, tornando-se um atrativo
para a locação do imóvel. Este patrimônio vendeu a sua capacidade total de índice

11
Primeira fotografia obtida através do Jornal Diário da Manhã em 2016.
Segunda fotografia obtida a partir de acervo pessoal das autoras, 2021.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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construtivo para grandes construtoras da cidade utilizarem em seus empreendimentos em


outros terrenos. Com isso, o prédio pode ser restaurado e hoje possibilita a sua locação para
usos diversos em cinco dos seus espaços. Um desses locais ainda mantém o nome da
edificação, é o famoso restaurante Solar do Glória, importante na gastronomia e na
realização de eventos sociais da cidade.

Também aproveitando-se desta vantagem, outras edificações tiveram interesse por


esse mecanismo de transferência do direito de construir, como é o caso da Igreja Metodista,
importante ponto de referência, histórico e religioso. A Igreja Metodista foi construída no
ano de 1919 e localiza-se em pleno centro da cidade de Passo Fundo. Segundo Knack (2007),
esta edificação “marca a relação entre política e religião, uma vez que um dos principais,
maiores e mais antigos colégios da região funcionaram atrás dessa igreja, por iniciativa dos
pastores que a dirigiam” (KNACK, 2007, p. 90).

Além de representar a participação e a memória de um grupo social específico no


desenvolvimento da cidade, este patrimônio está ligado à afirmação da importância da
educação e da religião na construção de Passo Fundo como um centro regional de referência
(BATISTELLA, 2011). Foi através do Decreto nº 2906/1993 que o templo passou a integrar
a lista de edificações tombadas do município. A edificação mantém seu uso original de
centro religioso até os dias atuais (Figura 7). Conforme Batistella,

perdido em meio aos edifícios verticais que caracterizam o centro de Passo Fundo,
o espaço que abriga uma comunidade religiosa e que foi palco dos primeiros
passos do ensino no município reflete o contraste entre a afirmação de uma cultura
progressista (uma expressão da busca pelo progresso na cidade é a verticalização
do espaço urbano) e a memória patrimonial. (BATISTELLA, 2011, p. 28)
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Figura 7: Igreja Metodista localizada no centro da cidade de Passo Fundo/RS..

Fonte: Acervo das autoras, 2021.

A edificação da Igreja Metodista, que destaca-se desde o período de construção da


principal via da cidade, também iniciou seu processo de transferência do direito de construir,
tendo vendido uma das partes de seu índice para a Construtora Investplan.

No município ainda existem outros imóveis com interesse na venda de seus índices
construtivos através do instrumento de transferência do direito de construir. Como é o caso
da edificação do Clube Caixeiral, que encontra-se na fase inicial do processo, aguardando a
vistoria e avaliação das demais etapas necessárias pelo setor responsável da prefeitura.

Antigo badalado local, o Clube Caixeiral sede Social foi palco de festas importantes
da sociedade passo-fundense e ainda recebe eventos, mantendo-se como um patrimônio
ativo, conservado, e adaptável ao longo das mudanças de épocas. Sua sede social foi
inaugurada no ano de 1937 por um grupo de italianos radicados em Passo Fundo, integrantes
da “Sociedade Italiana de Mutuo Socorro – Yolanda Margarida de Savoia” (LORENZI,
2019; FEAR, 2012).

A edificação em questão se destaca na paisagem da cidade e expressa duas linguagens


arquitetônicas marcantes. Segundo o Inventário NADUC/UPF (FEAR, 2012), na face
esquerda do edifício é possível observar características do Historicismo através da
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

70

composição simétrica do volume original. Já na face direita da edificação, destaca-se o Art


Decó através dos balcões arredondados e dos frisos retos, ornamentos estes que foram
implementados na ampliação de 1944 (Figura 8).

Figura 8: Sede Social do Clube Caixeiral de Passo Fundo/RS.

Fonte: Acervo das autoras, 2021.

Figurando como um dos edifícios históricos mais bem conservados da cidade, o


Clube Caixeiral teve sua importância devidamente reconhecida através do Decreto nº
55/2021 que declara o mesmo como integrante do Patrimônio Histórico-Cultural do
município, para fins de tombamento definitivo, o que incentiva e auxilia ainda mais a
inicialização do processo de venda de seus índices para outras edificações da cidade.

Além dos benefícios descritos, em relação a venda e transferência de índices, sobre


as edificações conservadas e de interesse patrimonial, quem possui um imóvel tombado na
cidade, e mantém sua preservação, pode receber vantagens fiscais como a isenção do IPTU
pela benfeitoria da conservação do bem.

Para orientar os proprietários dos imóveis, sobre a responsabilidade social e


benefícios dos bens tombados e de interesse patrimonial, a prefeitura também criou a
Cartilha de Tombamento, a qual contém as informações mais relevantes sobre o assunto, de
forma didática e ilustrativa, explicando o que é uma edificação com estas características,
qual a importância para o valor cultural, as legislações que regem as mesmas, além do
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

71

cuidado necessário para que o imóvel seja valorizado e não visto como uma edificação antiga
e perdida no desenvolvimento e crescimento da cidade, mas como integrante da memória e
de sua transformação.

Ações como estas revelam a importância da história municipal e cultural de uma


sociedade. De forma criativa e eficaz, utilizar dos meios legais, desenho e pensamento, para
preservar e incorporar edifícios antigos ou históricos existentes atualmente, no presente e no
futuro das nossas cidades, adaptando-os através de métodos sensitivos e lucrativos (PINTO,
2021).

6. CONCLUSÃO

Através do panorama geral sobre a legislação brasileira é possível perceber uma clara
evolução nas definições sobre os atributos a serem protegidos pelo Poder Público. A partir
das disposições da Constituição de 1988, acresce-se a isso uma série de mecanismos que
incluem a participação comunitária no processo de salvaguarda do patrimônio, em
concordância com o Decreto-Lei n° 25, de 1937, que já estabelece a prevalência do interesse
coletivo sobre o particular.

Apesar das definições anteriormente mencionadas que estabelecem o dever do Poder


Público em proteger o patrimônio brasileiro, o processo de tombamento, embora assegure a
proteção legal, não garante a manutenção do estado de conservação do edifício em si.
Entretanto, a aplicação de mecanismos legais previne a descaracterização do ambiente
urbano no que diz respeito ao seu histórico de desenvolvimento, pois assegura que a
edificação e, portanto, os valores que a mesma representa, sejam preservados. Contudo, sem
o processo de inventariação dos imóveis ou monumentos com importância histórica e
cultural, a população fica sujeita a perda irreparável destes símbolos.

Logo, enquanto não houver uma abordagem mais participativa e didática no processo
de inventariação, bem como a definição de conceitos como paisagem e território, a busca
pela proteção do patrimônio através dos mecanismos legais continuará dependente de
instrumentos como a transferência do direito de construir, que concedem vantagens
legislativas e monetárias para garantir a salvaguarda de um atributo, cujos valores deveriam
ser designados pela população em si.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

72

Portanto, apesar dos casos de sucesso, no município de Passo Fundo, exemplificarem


uma maneira de conciliar os interesses dos diferentes atores sociopolíticos no
desenvolvimento urbano, e das definições estabelecidas tanto na Constituição de 1988
quanto no Estatuto da Cidade, a utilização produtiva e sustentável do patrimônio edificado
ainda depende de uma vontade particular e não de uma preocupação coletiva pela
preservação da memória e pela contínua transformação da cidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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73

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Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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ESTATUTO DA CIDADE, VAZIOS URBANOS E ÁREAS OCUPADAS

Carla Portal Vasconcellos (autora)1


Bruna Galvan (coautora)2
Juliane Avila Marques (coautora)3
Kauize de Moura Valandro (coautora)4
Lucas Fernando Zuffo Ferreira Borges (coautor)5
Luiz Eduardo Lupatini (coautor)6
Rafaela Zauza (coautora)7

Resumo: No capitalismo global a participação da especulação imobiliária foi ampliada e,


estas alterações nos interesses econômicos, levaram a um ajuste no padrão de localização
residencial das classes de menor poder aquisitivo as quais criaram formas de sobrevivência
e solidariedade alternativas à lógica hegemônica e ao sistema dominante, através de
subsistemas de lógicas e de racionalidades distintas, como as áreas de ocupação irregular.
Do mesmo modo, parte das formas de apropriação das mais-valias produzidas no espaço se
dá através da retenção especulativa dos imóveis, pode ser representada pelos vazios urbanos.
Este artigo aborda as contradições dadas pelo uso e ocupação da terra urbana, representados
pelas áreas de ocupação irregular e pelos vazios urbanos, aqui apresentados como resultado
da pesquisa ‘Caracterização dos Vazios Urbanos e Áreas Ocupadas em Passo Fundo/RS’,
em contraposição ao que define a Constituição Federal e ao que preconiza o Estatuto da
Cidade como função social da propriedade e função social da cidade. O artigo apresenta, na
primeira parte do seu desenvolvimento, o conceito político de território, referência à história
da terra no Brasil, reforçando o aspecto de marco desempenhado pela Lei de Terras (1850),

1
Arquiteta e Urbanista (FAU/UFRGS). Mestre e Doutora em Planejamento Urbano e Regional
(PROPUR/UFRGS). Pós doutora (Universidade de Sevilha e Universidade Lusófona do Porto). Professora da
Universidade de Passo Fundo (UPF). Coordenadora do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização dos vazios urbanos
e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’.
2
Graduanda do Curso de Arquitetura e Urbanismo UPF. Voluntária do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização
dos vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’. Estagiária Florense Passo Fundo/RS.
3
Graduanda do Curso de Arquitetura e Urbanismo UPF. Voluntária do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização
dos vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’. Ensino Médio Escola Nicolau de Araújo Vergueiro,
Passo Fundo. Estagiária empresa MARZ Urbanismo Passo Fundo/RS.
4
Graduanda do Curso de Arquitetura e Urbanismo UPF. Voluntária do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização
dos vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’. Ensino Médio Colégio Ipiranga, Três Passos.
Estagiária Alpha Construtora e Incorporadora, Passo Fundo/RS.
5
Graduando do Curso de Arquitetura e Urbanismo UPF. Voluntário do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização
dos vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’. Ensino Médio Instituto Estadual Cecy Leite Costa,
Passo Fundo. Estagiário Baze Arquitetura e Construção Passo Fundo/RS.
6
Arquiteto e Urbanista graduado pela UPF em 2012, mestrado MArch pela Universidade Europea de Valencia
em 2017. Atualmente atua como Arquiteto e Urbanista responsável técnico pelo Núcleo de Arquitetura e
Desenvolvimento Urbano e Comunitário da Universidade de Passo Fundo. Passo Fundo, RS, Brasil. Voluntário
do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização dos vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’.
7
Graduanda do Curso de Arquitetura e Urbanismo UPF. Voluntária do Projeto de Pesquisa ‘Caracterização
dos vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo/RS’. Ensino Médio Colégio Estadual Pe. Colbachini,
Nova Bassano. Estagiária Studio Grammés, Passo Fundo/RS.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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bem como aspectos gerais referentes às áreas ocupadas. O trabalho segue discorrendo sobre
conceito e consequências respeitantes aos vazios urbanos, bem como alguns os
mapeamentos das áreas ocupadas do município de Passo Fundo resultantes da pesquisa. As
conclusões retomam os aspectos apresentados, relacionando observações da pesquisa com o
Estatuto da Cidade, em seus princípios e instrumentos.

Palavras-chave: função social da propriedade, áreas ocupadas, vazios urbanos, Estatuto da


Cidade, Passo Fundo.

INTRODUÇÃO
O presente artigo apresenta resultados parciais de pesquisa sobre a caracterização dos
vazios urbanos e áreas ocupadas em Passo Fundo, desenvolvida no âmbito do Curso de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Passo Fundo, buscando relacionar, no que
couber, aspectos destes resultados com o Estatuto da Cidade, especialmente os que tangem
à função social da propriedade e da cidade.

A influência do capital econômico tem sido fundamental na conformação das


políticas urbanas, impactando fortemente a configuração das cidades brasileiras no sentido
inverso aos preceitos da legislação urbanística federal. Os artigos 182 e 183 da Constituição
Federal Brasileira incorporam ao sistema jurídico, como princípios fundamentais, a função
social da cidade e a função social da propriedade urbana, prevendo ainda a competência
municipal na garantia do cumprimento destes princípios. Ao relativizar o direito de
propriedade, associando-o ao cumprimento de sua função social, a Constituição reconhece
as dificuldades de acesso à terra, associada à retenção especulativa do imóvel urbano, como
um dos problemas para a superação do déficit habitacional brasileiro.

A contraposição entre a função social da propriedade, definida pela Constituição, e a


especulação imobiliária, podem ser representados por dois elementos opostos, faces de um
mesmo e insolúvel aspecto do planejamento urbano: i) as áreas de ocupação irregular,
solução possível de moradia para famílias não alcançadas pelos programas habitacionais; ii)
os vazios urbanos, apropriação privada e especulativa dos recursos coletivos
disponibilizados através de infraestrutura e investimentos públicos.

Áreas dotadas de infraestrutura, dentro do perímetro urbano e não-edificadas, livres


em sua totalidade, os vazios urbanos prejudicam o desenvolvimento pleno da cidade,
afastando as comunidades para a periferia, desperdiçando infraestrutura urbana instalada e
recursos públicos aplicados.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Já as áreas ocupadas emergem como áreas irregulares diante de algumas premissas


jurídicas, mas legítimas diante de outras, como a dos Direitos Humanos, dos direitos
Constitucionais e do próprio Estatuto da Cidade, revelando relações de poder e necessidades
colocadas sobre o território.

Este trabalho se ampara na perspectiva teórica clássica que refere a possibilidade de


captar a mais-valia da terra sem efetuar nenhum tipo de investimento nas visões de Marx e
Engels, e, mais recentemente, de Lefebvre, Harvey e Santos.

As razões encontradas para a exploração da terra como mercadoria não se alteraram


e ainda hoje se apoiam no corpo jurídico que respalda a propriedade privada. Esta exploração
pode ser incrementada pela localização relativa, pela existência de infraestrutura, de
investimentos ou de outras condições específicas. O capitalismo global alterou algumas das
relações anteriores, mas o que se observa é a ampliada participação e reforçada importância
da mais-valia realizada através da especulação imobiliária. Ao longo deste processo de
transformação do capitalismo, o padrão de moradia e localização da elite, foi levando ao
ajuste do padrão de localização residencial das classes de menor poder aquisitivo e, do
mesmo modo, ao ajuste das formas de sobrevivência e de localização dos setores populares,
através, por exemplo, das áreas de ocupação irregular.

Embora a legislação brasileira vigente proponha o cumprimento da função social da


propriedade e a regularização das áreas irregularmente ocupadas, através dos dispositivos
presentes no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) e, mais recentemente, na Lei do Reurb (Lei
13.465/2017), não existem alterações importantes nestas realidades.

Em Passo Fundo o último levantamento do IBGE sobre Aglomerados Subnormais


(Censo 2010) apontou 699 domicílios dentro da classificação estabelecida pela pesquisa,
significando 1,3% da população total do município. Levantamento realizado pela Comissão
de Direitos Humanos de Passo Fundo - CDHPF, apontam, em contraponto, 124 vazios
urbanos na área urbana de Passo Fundo, totalizando mais de 730 hectares, dos quais cerca
de 139 edificáveis.

Considerando-se o pleno conhecimento do território se constitui numa premissa para


ações consequentes de planejamento e projetos urbanos, o trabalho apresentará levantamento
parcial sobre os vazios urbanos disponíveis e sobre as às áreas ocupadas do município, e o
cotejamento da realidade com os institutos jurídicos disponibilizados.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

77

PREMISSAS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO E SOBRE AS ÁREAS


DE OCUPAÇÃO.

O território representa importante capital econômico sobre o qual incidem interesses


contraditórios, resultando divisão e hierarquização territorial, inscrição no espaço-território
das próprias relações sociais de poder.

A manutenção de uma relação assimétrica de poder, com a preponderância de um


grupo sobre os demais, exige recursos de gestão apropriados, dentre os quais uma
organização territorial que permita o alcance dos objetivos do próprio grupo, redundando
hierarquização territorial. Depreende-se, deste modo, que a estrutura real das relações de
poder pode ser representada, tanto por uma dialética social, como por uma dialética espacial.
A este processo de apropriação, através do qual Estado, empresas e outras organizações
reconfiguram o território, transformando-o em expressão do poder de cada um, de acordo
com Rückert, Raffestin e Becker, denomina-se territorialização.

De forma geral, a acomodação dos inúmeros interesses envolvidos na consecução da


necessidade de habitação, redunda em divisão e hierarquização territorial, com a manutenção
das relações de poder inscritas no território.

O direito à moradia é declarado como um dos ‘Direitos do Homem’ em 1948, no


entanto as políticas públicas, têm excluído a apreensão das condições de existência do
indivíduo e do grupo, enquanto direito à apropriação, direito à obra e à atividade participante
(LEFEBVRE, 2001). Esta lógica, impressa nas ‘soluções’ apresentadas pelo Estado para as
necessidades habitacionais, não se alterou com a passagem do capitalismo industrial para o
capitalismo global, mantendo-se a exclusão espacial (VASCONCELLOS, 2015). Na visão
de Marx, esta exclusão espacial está associada a possibilidade de captar a mais-valia a partir
da propriedade fundiária sem efetuar nenhum tipo de investimento, o que se associa ao
próprio corpo jurídico da propriedade, ao direito de propriedade (LEFEBVRE, 1972).

Lefebvre atualiza esta perspectiva, sem se distanciar da mesma lógica: no capitalismo


global a terra foi substituída pelo espaço enquanto produto do trabalho social. Assim,
segundo ele, o setor imobiliário se converte em segundo setor do neocapitalismo,
encarregando-se de amortecer eventuais depressões econômicas do setor industrial. O espaço
passa a refletir significados e representações relativos ao seu novo papel econômico, o que
reverbera na forma como é percebido, desejado ou rejeitado.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Para SANTOS (2002) esta nova realidade está marcada pela concretização de
condições plenas para alguns atores frente a falta de resposta às necessidades essenciais dos
demais:

“(...) a partir dessa racionalidade hegemônica, instalam-se, paralelamente, contra-


racionalidades (...) entre os pobres, os migrantes, os excluídos, as minorias; de um
ponto de vista econômico, entre as atividades marginais, tradicional ou
recentemente marginalizadas; e, de um ponto de vista geográfico, nas áreas menos
modernas e mais ‘opacas’, tornadas irracionais para usos hegemônicos (...)”
(SANTOS, 2002, p.309)

A produção habitacional é uma política setorial para a qual o território constitui-se


importante capital econômico e sua implementação repercute sobre o aproveitamento dos
recursos físicos nele contidos, implicando a reorganização das estratégias de vários atores
em função dos resultados a ela vinculados.

Entre os graves problemas que dificultam a superação do déficit (quantitativo e


qualitativo) de moradias no país estão a questão fundiária e a questão do acesso à terra
legalizada, as quais vinculam-se a própria história do direito à terra no Brasil.

As terras brasileiras foram inicialmente tidas como propriedade da Coroa portuguesa


e consignadas à Ordem de Cristo. A forma de garantir essa propriedade foi a sesmaria, uma
permissão de domínio condicionada ao pagamento de um dízimo, bem como ao seu uso
produtivo. Dadas às proporções do território, as demarcações destas terras eram bastante
incertas, permitindo a posse pura e simples nas lacunas do sistema. Desde aí passam a
conviver a ordem inscrita na lei e a legitimidade inscrita na prática (VASCONCELLOS,
2015).

A partir da Independência, em 1822, extingue-se o sistema de sesmarias e inicia-se


um período de apossamento de terras ou regime de posse de terras devolutas, passando existir
um padrão dual de ordens: um sistema oficial de concessão e registro, acessível a poucos, e
um reconhecimento de que o direito a terra estaria diretamente ligado à sua efetiva utilização.

A partir de 1850, com a promulgação da Lei de Terras, a única forma legal de posse
da terra passou a ser a compra devidamente registrada. Para ROLNIK (1997), o direito a
terra desvincula-se da condição de efetiva ocupação (absolutização) e a terra adquire status
de mercadoria (monetarização). Apossar-se de terras devolutas a partir daí acarretaria
despejo, multa e prisão.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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As mudanças nas regras do jogo do acesso à terra, alteraram a construção da cidade


e da legalidade urbana e a irregularidade do tecido colonial, ocupado sem previsibilidade ou
demarcação, começou a ser substituído por limites precisos, importantes para o registro e
para a atribuição de um preço ou valor.

A legislação passa a definir bens urbanos, bens comuns e os bens públicos. Com
desdobramentos para o mercado fundiário e imobiliário urbano. Até o início do século XX
predominavam os instrumentos de posse e uso das áreas urbanos baseados no sistema das
concessões e arrendamentos, instrumentos que com o tempo foram substituídos pelo sistema
de compra e venda de terrenos, a partir do parcelamento de áreas no entorno das cidades.

O espaço urbano brasileiro passa a ser marcado por ocupações de terras, públicas ou
privadas, ociosas e/ou subutilizadas, em áreas periféricas, de risco ou de fragilidade
ambiental, onde, a solução encontrada pelas famílias de renda mais baixa para produzir seus
espaços de moradia, caracterizado aqui pela precariedade da posse e da infraestrutura urbana
(SORAGGI e ARAGÃO, 2016).

O Censo 2010, IBGE, revela que o Brasil apresenta 3,2 milhões de domicílios
particulares permanentes distribuídos em 6.329 aglomerados subnormais, tendo sido
analisados 323 municípios. Segundo a pesquisa, as ocupações irregulares se caracterizam
como um fenômeno majoritariamente metropolitano, sendo que 88,2% dos domicílios em
favelas estão em regiões com mais de 1 milhão de habitantes.

As ocupações ditas irregulares, que caracterizam o suprimento da necessidade de


setores da sociedade com relação à habitação e à terra, incluem áreas que, excluídas do
interesse imobiliário, representam para seus ocupantes uma série de riscos, caracterizando-
se como áreas com declividades acentuadas, sujeitas a inundações, sob redes de alta tensão,
ou ainda ao longo de rodovias e de ferrovias.

Harvey (1973) defende que a elite, ao influenciar os sistemas de valoração da terra,


restringe a localização das moradias das famílias de menor renda à algumas áreas, do mesmo
modo, que os investimentos públicos que acarretam a elevação do preço da terra (SORAGGI
e ARAGÃO, 2016).

A cidade, expressão das disputas de diferentes atores, pode não só restringir o acesso
de alguns setores aos serviços e aos bens nela produzidos, mas à própria vida urbana e ao
direito à cidade, tal como proposto por Lefebvre (2001). As ocupações urbanas são a cidade
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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per se e não um fragmento da mesma, pois constituem-se uma ação política coletiva,
resultado de uma disputa e parte da configuração do território como ação política
(NASCIMENTO, 2016).

A realidade das áreas de ocupação explicita um abismo entre a realidade e o


arcabouço legal, entre a teoria e a prática do efetivo cumprimento do direito à cidade
estabelecido na Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Cidade - Lei Federal nº.
10.257/20013. (SORAGGI e ARAGÃO, 2016). A pesquisa apresentada neste artigo visa
compreender estes espaços, sua inserção urbana e principais características, de modo a
garantir informações relevantes a tomada de decisão relativas ao planejamento e gestão
urbanos na cidade de Passo Fundo e reflexões sobre as questões gerais passiveis de serem
aplicadas em realidades similares.

CONSIDERAÇÕES SOBRE VAZIOS URBANOS

A expressão vazio urbano surge no século 19 juntamente com os processos de


industrialização e o crescimento das cidades no período. Vários são os termos utilizados para
qualificar esses espaços, tais como, terrain vague, friches urbaines, wastelands, derocict
lands, tierras vacantes e vazios urbanos.

O vazio urbano pode ser caracterizado como área parcelada ou não, localizada em
meio à área urbana, sem edificações e sem utilização, podendo ser terrenos baldios, áreas
remanescentes da ocupação de lotes, áreas de interesse ambiental, terras sem uso próximas
a infraestruturas industriais e ferroviárias (SPERANDELLI, 2010), caracterizando-se por
intervalos ou lacunas ao espaço construído (FERREIRA e ZANOTELLI, 2018).

A partir da década de 1970 os vazios urbanos passam a ser entendidos como impasses
para as cidades. Resultantes do funcionamento do mercado de terras e das formas de atuação
dos agentes públicos e privados, representam a espera por valorização de áreas através de
investimentos coletivos, ou a apropriação da localização produzida socialmente para a
ampliação de ganhos, uma questão de ordem econômica (FERREIRA e ZANOTELLI,
2018).

Se, por um lado, o mercado pressiona áreas para adensamento, como áreas frágeis
ambientalmente, por exemplo, por outro, os vazios possuem potencial construtivo e
infraestrutura urbana e não são otimizados, levando à expansão urbana e condicionando,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

81

muitas vezes, uma urbanização dispersa que representa significativos problemas às


municipalidades (FERREIRA e ZANOTELLI, 2018).

Advindo de processos de expansão urbana e especulação imobiliária, através da


retenção fundiária, os vazios urbanos colocam em discussão a efetividade da aplicação de
instrumentos fiscais e tributários relacionados a gestão urbano-ambiental e concebidos a
partir da Constituição Federal8 de 1988, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01). A situação
dos vazios urbanos poderia ser modificada se sua gestão fizesse parte de políticas de
equidade urbana segundo objetivos políticos de desenvolvimento urbano e justiça social. O
Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) estabelece as diretrizes da política urbana e apresenta
uma série de instrumentos jurídicos e políticos de indução ao desenvolvimento urbano.

Dentre os instrumentos fiscais e tributários de competência dos municípios capazes


de enfrentar a questão dos vazios urbanos estão o Imposto Predial e Territorial Urbano
progressivo no tempo previsto no Estatuto da Cidade, fundamentado pelo princípio
constitucional da função social da propriedade e concebido no sentido de diminuir os vazios
urbanos e ‘forçar’ os proprietários de terras urbanas ociosas a dar-lhes um uso social.

Do mesmo modo, instrumentos previstos na lei como a outorga onerosa e a


transferência do direito de construir, o direito de preempção, dentre outros são importantes
instrumentos de arrecadação pública dos municípios através do processo de venda e
intermediação de índices construtivos a partir dos planos diretores municipais.

Inventário realizado em 2016 pelo grupo de estudos sobre a Beira-trilhos, que


integrou UPF e CDHPF, levantou 124 vazios dentro do perímetro urbano de Passo Fundo,
totalizando 731,43 hectares vazios, dos quais 179,10 hectares seriam potencialmente
edificáveis por não apresentarem restrições ambientais ou urbanísticas previstas no Plano
Diretor municipal.

8 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano,
executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 4º É facultado
ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da
lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu
adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação compulsórios; II -
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; III - desapropriação com
pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com
prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da
indenização e os juros legais.
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perspectivas - Volume VI

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Vazios urbanos - objeto deste estudo - assumem um papel fundamental pois


vinculam-se tanto à configuração das cidades, quanto às questões econômico-sociais desta
mercadoria especial que é a terra urbana, uma vez que esta constitui-se necessária a
implantação de novos projetos de habitação, à redução do déficit habitacional e, também, a
relocação de assentamentos precários e irregulares (PEREIRA e CARVALHO, 2008).

OS RESULTADOS PARCIAIS DA PESQUISA

O projeto de pesquisa cujos resultados parciais são aqui demonstrados tem por
objetivo inventariar e caracterizar as áreas ocupadas e os vazios urbanos do município de
Passo Fundo/RS, desenvolvendo subsídios a análises urbanísticas e jurídicas e, do mesmo
modo, contribuindo à discussão acerca dos direitos à cidade e à moradia adequada.

Os levantamentos realizados durante o ano de 2021, a partir de imagens de satélite,


mapearam as ocupações existentes na área urbana do município. Foram consideradas as
áreas ocupadas levantadas pela Prefeitura Municipal constantes dos documentos técnicos do
processo de revisão do Plano Diretor iniciado em 2018, no número de 82 núcleos urbanos
irregulares.

Figura 1: localização das áreas de ocupação na área urbana de Passo Fundo/RS com respectivos números de
edificações levantadas pelos autores no desenvolvimento do projeto de pesquisa (2020)

Os mapas foram desenvolvidos com o auxílio do Google Earth Pro e software de


desenho Autocad. O número total de edificações desenhadas avança às 6000 unidades, com
núcleos variando de oito à mais de seiscentas.
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Figura 2: localização das áreas de ocupação cujos levantamentos serão apresentados

Foram escolhidos cinco mapeamentos para ilustrar o trabalho desenvolvido, cada um


deles situado em um dos quadrantes a partir dos quais o levantamento se organizou.

Figura 3: levantamento das edificações que compõem as áreas ocupadas internas ao Bairro Jaboticabal,
geradas pelos autores no desenvolvimento do projeto de pesquisa (2020)
O mapeamento do bairro Jaboticabal, demonstra ocupações em diferentes graus de
consolidação, evidente pelas dimensões das edificações e pela organização das mesmas na
relação com o território, como a existência de acesso por via pública a cada uma das mais
consolidadas. Grande parte desta área, no momento da elaboração deste artigo, já está
regularizada, com mais de trezentas escrituras entregues aos moradores mais antigos,
deslocados de outras ocupações mais centrais na década de 1970 pelo próprio poder público
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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e sem solução cartorial até 2021. O bairro conta com escola municipal de ensino
fundamental, estratégia de saúde da família e ginásio comunitário, mas nenhuma área verde,
praça ou praça, localizando-se a mais de cinco quilômetros da área central da cidade.

Figura 4: levantamento das edificações que compõem as áreas ocupadas internas ao Bairro Zacchia, geradas
pelos autores no desenvolvimento do projeto de pesquisa (2020)

Também com localização exterior às rodovias que configuram a perimetral da cidade,


o bairro Zacchia teve origem em um empreendimento da COHAB-RS, posterior ao qual
houveram sucessivas ocupações, tanto internas às áreas da antiga Companhia, quanto, mais
recentemente, em suas adjacências, em pertencente à CORSAN, área alagadiça onde muitas
das edificações caracterizam-se como palafitas. O mapeamento evidencia as ocupações mais
recentes, que somam 664 edificações, externas ao loteamento inicial. O loteamento original
conta com equipamentos de educação, saúde e assistência social, além de infraestrutura
básica, a qual se estende a algumas das áreas de ocupação, principalmente às mais antigas.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Figura 5: levantamento das edificações que compõem as áreas ocupadas internas aos Bairros Boa Vista e
Manoel Corralo, geradas pelos autores no desenvolvimento do projeto de pesquisa (2020)

O levantamento realizado nas ocupações Manoel Corralo e Bela Vista somou 856
edificações irregulares. Apesar de próximas, as histórias e graus de consolidação das duas
áreas são bastante distintas, tendo a ocupação Bela Vista completado seis anos e construído
uma história de muita visibilidade às suas lutas por moradia, acesso à água e serviços,
enquanto a Manoel Corralo origina-se da deslocação de famílias de outras áreas,
apresentando-se bastante consolidada, com infraestrutura e equipamentos urbanos,
remanescendo soluções cartoriais e fundiárias.

Figura 6: levantamento das edificações que compõem as áreas ocupadas internas ao Bairro Lucas Araújo,
geradas pelos autores no desenvolvimento do projeto de pesquisa (2020)

A área irregular do Bairro Lucas Araújo caracteriza-se por moradias bem


estruturadas, ao longo de vias consolidadas em contraste com alguns acessos informais às
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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edificações, o que denota necessidade de ajustes urbanísticos e também cartoriais. Alguns


fundos de lote apresentam-se em confrontação com área de preservação permanente ao longo
de sanga canalizada pela Prefeitura Municipal em 2016, apesar do que permanece como área
crítica com relação a doenças como a dengue. Apesar de alguma dificuldade aos serviços
públicos, como recolhimento de lixo, a área está assistida de equipamentos de educação e
saúde.

Figura 7: levantamento das edificações que compõem as áreas ocupadas da área denominada Beira Trilhos,
geradas pelos autores no desenvolvimento do projeto de pesquisa (2020)

A ocupação espontânea da área operacional e não operacional lindeira aos trilhos na


cidade de Passo Fundo vem ocorrendo há mais de 40 anos, coincidindo com a instalação da
ferrovia, e estendendo-se por aproximadamente 15 Km. Levantamento realizado pela
Comissão de Direitos Humanos de passo Fundo (CDHPF) e pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), em 2008, apontou 1012 famílias, com uma população
aproximada de mais de quatro mil pessoas, vivendo na área. As condições de habitação e de
urbanização na maior parte da ocupação são precárias, dadas as dificuldades de acesso a
infraestrutura (saneamento e transporte público) e a serviços públicos. Houve e continua
havendo judicialização contra esta e outras ocupações beira trilhos. A área em Passo Fundo,
segundo o mapeamento realizado pela pesquisa aqui apresentada, totaliza 1784 edificações.
O mapeamento realizado no exercício da pesquisa evidencia a existência de
diferentes tipos de irregularidades dentre as áreas levantadas, distinguindo-se de modo claro
as ocupações mais antigas das mais recentes, quer seja pela relação direta com rua nomeada
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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e estruturada, quer pelas dimensões e características materiais e geométricas das edificações.


Desta recolha pode-se inferir que, independentemente do grau de consolidação das áreas
apontadas como irregulares, o trabalho de regularização cartorial e registral será maior do
que a necessária incorporação urbana e adequação de infraestruturas, pois várias das áreas
já possuem acesso ao sistema de serviços públicos básicos urbanos.

A continuidade da pesquisa prevê a elaboração ainda mapas retroativos referentes


aos anos de 2014, 2010, 2006 e 2000, possibilitando análise relativa à evolução destes
territórios e suas tendências de crescimento, adensamento e expansão. Além disso será
realizada breve caracterização de cada uma das áreas, identificando questões como: i)
propriedade da terra; ii) graus de risco; iii) consolidação, a partir, das condições de moradia,
do acesso à infraestrutura, aos serviços e equipamentos públicos; iv) histórico da ocupação;
v) análise morfológica.

O estudo prevê ainda a atualização do Inventário realizado em 2016 pelo grupo de


estudos sobre a Beira-trilhos, que integrou UPF e CDHPF, que levantou 124 vazios dentro
do perímetro urbano de Passo Fundo, totalizando 731,43 hectares vazios, dos quais 179,10
hectares seriam potencialmente edificáveis por não apresentarem restrições ambientais ou
urbanísticas previstas no Plano Diretor municipal.

Os critérios para a atualização referente a análise dos vazios urbanos serão: i) áreas
internas ao perímetro urbano de Passo Fundo; ii) glebas livres em sua totalidade, ou seja,
espaços sem quaisquer edificações, habitações ou cultivo; iii) acesso a saneamento básico;
vi) com área superior a 5000 metros quadrados. A partir da atualização do mapeamento serão
elaborados mapas de impedimento ao uso habitacional, seja por restrições ambientais, legais
ou de planejamento, como declividades, rodovias, etc.

CONCLUSÃO

O Estatuto da Cidade (2001) responde à necessidade de instrumentos jurídicos


advinda dos novos conceitos dados pelos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988,
de modo que apresenta e detalha uma série de princípios acerca das cidades, de seu
planejamento e de sua gestão, disponibilizando, para a consecução destes fundamentos, um
conjunto de instrumentos.
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Os princípios do Estatuto dizem desta cidade pretendida: uma cidade sustentável


onde estejam garantidos, entre outros, o direito à terra, à moradia, à infraestrutura urbana e
aos serviços públicos; uma cidade que impeça a retenção especulativa de imóveis, no sentido
de fazer cumprir a função social da propriedade urbana; uma cidade que priorize os processos
de regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda,
dando seguimento à ideia de justiça e inclusão, sempre presentes na Constituição e no
próprio Estatuto.

O que se observa pelo trabalho realizado é que ainda estamos distantes desta cidade
objetivada pela concepção legal, mas, dado movimento iniciado no sentido da regularização
de algumas das áreas levantadas, percebe-se a instauração de um entendimento dos
benefícios gerais e, porque não, das obrigações geradas pela existência destas normativas
legais.

Os instrumentos dispostos pelo Estatuto da Cidade, sejam no sentido de conter a


especulação fundiária e a obsolescência de áreas urbanas - como o Parcelamento, Edificação
ou Utilização Compulsórios, o do IPTU progressivo no tempo, sejam no sentido da
promoção da regularização fundiária - como a ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) e a
Usucapião Urbano Coletivo, dentre outros, são instrumentos poderosos e detalhados que
permitiriam a alteração significativa da configuração das cidades e a ampliação da segurança
jurídica para muitos, uma segurança que vem somada aos sentidos de dignidade,
reconhecimento e pertencimento, sem os quais a própria participação, enquanto princípio do
planejamento, está comprometido, pois coloca os moradores da cidade em patamares
distintos.

O levantamento realizado até o momento permite demonstrar, em município com


Plano Diretor que contempla todos os instrumentos obrigatórios, a presença dos institutos
não realiza como letra transformações na realidade por sua simples inclusão no
planejamento. Edificação e parcelamento compulsórios, IPTU progressivo no tempo e
desapropriação são potenciais instrumentos capazes de reestabelecer o equilíbrio entre a
retenção especulativa dos imóveis urbanos e as áreas de ocupação urbanas, atendendo a
necessidade colocada por terra para a implementação de programas de atendimento à
moradia. No entanto, a efetivação dos instrumentos pressupõe sua regulamentação, o
propósito político, a adequação administrativa e a fiscalização do interesse público.
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O trabalho pretende ter contribuído para maior compreensão e visualização dos


desequilíbrios internos às cidades, vinculados a condição jurídica da propriedade fundiária
e a possibilidade de vantagens pecuniárias e valorização advindos do processo de
urbanização resultante de inversões públicas e/ou privadas, em conjunto com o franco
afastamento das populações mais fragilizadas economicamente desta disputa comercial e sua
consequente exclusão das áreas mais urbanizadas e reconhecidas para a busca de territórios
rejeitados pelos interesses econômicos.

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IMPACTOS CAUSADOS PELO LANÇAMENTO DE RESÍDUOS


URBANOS NO OCEANO: ALTERNATIVAS DE PREVENÇÃO

IMPACTS CAUSED BY THE DISPOSAL OF URBAN WASTE INTO


THE OCEAN: PREVENTION ALTERNATIVES
Cristina Dal Sasso1

Resumo: A pesquisa aborda um estudo propondo alternativas de descarte dos resíduos


sólidos de lixo urbano como peça fundamental no processo de despoluição dos oceanos.
Com o passar do tempo e aumento da população urbana, o problema se tornou muito grave,
sendo necessário apenas expandir as ações e políticas públicas que já existem. A proposta
deste estudo é que sejam divulgadas as tecnologias já existentes bem como incentivar o seu
aprimoramento e comparar com as técnicas de reciclagem utilizadas em outros Países,
criando mecanismos que unam sociedade, sustentabilidade, ciência, trabalho e inovação em
um só âmbito. A pesquisa aborda um estudo preliminar, verificando o que pode ser feito em
termos de políticas públicas, mas também em relação às técnicas utilizadas, propondo a
utilização de soluções práticas que evoluam para que sejam tornadas práticas cotidianas com
o fito de tornarem-se práticas habituais dos cidadãos. Todavia, o processo começa nas
residências urbanas com a separação correta do lixo, e após a coleta seletiva a matéria-prima
segue para os galpões onde cada classe de resíduos receberá o tratamento adequado para
transformação em novos produtos. O projeto propõe geração ininterrupta de energia através
do uso de resíduos da reciclagem e uso desses materiais.

Palavras - chave: Resíduo urbano. Tratamento adequado. Poluição ambiental. Alternativas


de solução.

Abstract: The research addresses a study proposing alternatives for the disposal of solid
waste from urban waste as a fundamental part in the process of depollution of the oceans.
As time went by and the population increased, the problem became very serious, requiring
only to expand the public actions and policies that already exist. The purpose of this study
is to disseminate the existing technologies, as well as encourage their improvement and
compare them with the recycling techniques used in other countries, creating mechanisms
that unite society, sustainability, science, work and innovation in a single scope.
The research addresses a preliminary study, verifying what can be done in terms of public
policies but also in relation to the techniques used, proposing the use of practical solutions

1Graduação: Pósgraduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do RS


Mini-currículo: Membro da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS, Membro da Comissão de Direitos
Humanos da OAB/RS, Moderadora do Grupo de Estudos em Direito Administrativo da Escola Superior da
Advocacia – RS, Funcionária Pública de Carreira, Advogada da Brigada Militar, Pós-Graduada em Direito
Constitucional pela Fundação do Ministério Público, Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Uniritter
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that evolve so that they become daily practices in order to become habitual practices of
citizens . However, the process begins in homes with the correct separation of waste, and
after selective collection the raw material goes to the warehouses where each class will
receive the appropriate treatment for transformation into new products. The project proposes
uninterrupted energy generation through use of waste from recycling and use of materials.
In addition, a general opinion survey is conducted, which addresses questions about the
process to be applied.

Keywords: Urban waste. Adequate treatment. Environmental pollution. Solution


alternatives.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho visa apresentar a problemática da questão da poluição ambiental


em relação aos dejetos sólidos oriundos de residências urbanas encontrados no oceano.
Saliente-se que a preocupação com questões ambientais teve início logo após a Segunda
Guerra Mundial, em um dos artigos da Carta das Nações Unidas que define a utilização de
agências e programas especializados como o meio de ação da ONU para chegar até a
população.

As forças de ações sociais em relação ao meio ambiente só começaram a ter forças e


importância política durante a década de 70 em vários países da Europa.

As perspectivas ecológicas também têm início com o “Clube de Roma”, pois este
“propunha uma mudança de rumo global destinada a formar uma condição de estabilidade
ecológica e econômica que se pudesse manter até um futuro remoto”. Este também foi o
responsável pela primeira versão do conceito de desenvolvimento sustentável. (Puc Rio,
2012)

As preocupações ecológicas procederam de tal forma que no ano de 1972 foi


realizada a primeira Conferência Internacional do Meio Ambiente, em Estocolmo, na Suécia,
que contou com a participação de cerca de 113 países e 250 ONGs.

Em 1972 realizou-se a primeira Conferência Internacional do Meio Ambiente, na


cidade de Estocolmo, na Suécia. Ela teve como resultados a Declaração sobre o Ambiente
Humano, que em suas 8 metas e 26 princípios defendem a importância do meio ambiente, o
alerta sobre a preservação deste e a responsabilidade dos países em preservá-lo, e por fim
criação o do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). (Senado, 2012)
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Após a Conferência de Estocolmo em 1972, nasce uma comoção mundial em relação


às preocupações ambientais. Torna-se necessária a criação de uma instituição que produza
legislações ambientais e promova conscientização ambiental a nível mundial, garantindo a
proteção e preservação do meio ambiente. (Senado, 2012)

2. HISTÓRICO DE POLUIÇÃO NO MEIO AMBIENTE

Antes de adentrarmos ao cerne da questão do histórico de descarte de resíduos sólidos


no meio ambiente, vamos primeiramente sobre a forma que a economia e a nossa sociedade
foram construídas nas últimas décadas. A questão pode ser abordada sob vários ângulos.
Objetos duráveis que não precisam ser trocados ou reparados com certa frequência podem
gerar um problema de falta de demanda para quem produz, tendo isso em vista a criação da
obsolescência programada para manter o mercado ativo foi criada. Além de poder baratear
os custos por ser algo menos resistente muitas vezes, com mercadorias menos duráveis elas
puderam também acompanhar o crescimento técnico-científico que tivemos desde as
revoluções industriais. Assim foi possível manter as pessoas comprando mercadorias ou pela
baixa durabilidade e a necessidade de troca assim como pela produção de produtos com mais
tecnologia e funcionalidades.

Alimentando um espírito consumista que foi sendo criado ao longo do tempo. Como
consequências tivemos o uso de muitos recursos naturais do planeta e a poluição do meio
ambiente, tendo esses resíduos, sendo levados para aterros e lixões que poluem o solo, ou
com os processos industriais que tem como subproduto e ou produto substâncias químicas,
que são tóxicas, em grande quantidade e são lançadas no ar, na água ou junto nos lixões e
aterros sanitários. (Marder, Michael 2018).

3. LIXO SÓLIDO ORIUNDO DE RESÍDUOS URBANOS NOS OCEANOS É UM

PROBLEMAS MUNDIAL

Poucos sabem, mas o problema do lixo sólido nos oceanos, que é um fator grave de
poluição ambiental, é proveniente da falta de saneamento básico. O lixo que termina nos
oceanos segue um caminho conhecido, pois ocorre que, sem o descarte adequado, vai para
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lixões, muitos deles à beira de corpos d'água, de onde seguem para o mar. Estima-se que
80% desse volume é fruto da má gestão dos resíduos sólidos nas cidades.

Surgiu assim a hipótese de que ao menos 25 milhões de toneladas desse lixo mal
descartado chega ao mar. O estudo foi divulgado durante o Fórum Mundial da Água.

Os dados do levantamento indicam que cerca de metade desse lixo que vai para os
oceanos (ou seja, cerca de 12,5 milhões de toneladas) é plástico - cada tonelada de resíduo
não coletada em áreas ribeirinhas, destaca a Iswa, representa o equivalente a mais de 1500
garrafas plásticas que terminam seu ciclo de vida no mar (e acabam virando microplástico
depois, vale lembrar).

A natureza leva 2 a 6 semanas a decompor um jornal, 1 a 4 semanas as embalagens


de papel, 3 meses as cascas de frutas, 3 meses os guardanapos de papel, 2 anos as bitucas de
cigarros, 2 anos os fósforos, 5 anos as pastilhas elásticas, 30 a 40 anos o nylon, 200 a 450
anos os sacos e copos de plástico, 100 a 500 anos as pilhas, 100 a 500 anos as latas de
alumínio e um milhão de anos o vidro (Mundo Verde). “Tem vários itens que encontramos
nas praias que vem pelo esgoto, como hastes flexíveis e absorventes íntimos, além daquilo
que a gente não enxerga, como fibras de tecido sintético. (PUC-RJ)

A ingestão de resíduos plásticos provoca a perfuração do tubo digestivo dos animais


podendo levar à morte. Aqueles que concentram muitas partículas de microplásticos no seu
interior ficam com uma sensação falsa de saciedade e não se alimentam adequadamente.
Assim, eles perdem energia, capacidade de locomoção, de crescimento e reprodução,
gerando seu desfiamento”. (Pst FCSC)

Outra grave consequência, é quando esses animais, assim como alguns vírus e
bactérias, são levados para longe por esses resíduos presentes em grande concentração na
água, causando desequilíbrios ecológicos. É o que ele chama de “carona” ou dispersão.

O emaranhamento faz a lista de problemas crescer. “As redes de pescas perdidas no


ambiente marinho afetam o meio. É um fenômeno conhecido como ‘pesca fantasma’. Ela
provoca a morte da fauna local e gera impacto tanto para a biodiversidade quanto para os
próprios recursos pesqueiros”, explica o especialista.

O lixo também afeta a vida terrestre. O especialista acrescenta que os seres humanos
também entram na lista de vítimas dessa poluição. Apesar de o contato com essas partículas
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se dar em menor escala, se comparado aos outros animais, nós também ingerimos os
microplásticos.

E segundo o administrador do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente


(Pnuma), Achim Steiner, destaca que essa situação tem se tornado cada vez mais grave.

Cerca de 83% da água que sai das nossas torneiras contém partículas de plástico.
Assim que consumidas, seus resíduos químicos, que são tóxicos, vão parar diretamente na
nossa corrente sanguínea”, alertou Steiner durante seu discurso em evento da ONU, no Dia
do Meio Ambiente de 2018. Entre as causas disso estão a gestão inadequada do lixo urbano
e as atividades econômicas (indústria, comércio e serviços), portuárias e de turismo. A
população também tem parte da responsabilidade pelo problema, devido principalmente à
destinação incorreta de seus resíduos que, muitas vezes, são lançados deliberadamente na
rua e nos rios, gerando a chamada poluição difusa. (ONU Meio Ambiente)

.
4. SOLUÇÕES PARA DESCARTE DE RESÍDUOS SÓLIDOS

Para lidar com os problemas ambientais associados ao lixo urbano precisamos pensar
em diferentes estratégias e pontos de vista para abordar o tema. Como é um ciclo complexo
com envolvimento da sociedade e da forma como ela foi constituída ao longo do tempo,
principalmente com as mudanças que ocorreram com as revoluções industriais que
aumentaram a capacidade de a sociedade usar os recursos naturais do planeta de forma
exponencial e superando a velocidade com que a natureza produz os recursos. Como esses
problemas foram criados como consequência da forma que a sociedade se estruturou
pensando que a natureza poderia fornecer um suprimento de recursos praticamente
ilimitados. Agora vivemos um momento onde presenciamos a finitude dos recursos naturais,
vendo a necessidade de mudar conceitos para que eles não se esgotem. (Scielo, 2012)

Para as indústrias era mais fácil produzir um produto novo a partir do recurso da
natureza do que fazer a reutilização ou a reciclagem do mesmo. Algo que com o passar do
tempo estamos vendo que é uma prática não sustentável para o planeta, pois além do
esgotamento dos recursos naturais gera um grande problema com os resíduos que por muito
tempo foram descartados de forma incorreta e acabam por serem depositados em efluentes
que vão para o mar e interferem nos ecossistemas dos locais onde são depositados de maneira
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direta e indiretamente no oceano pois com o curso da água são levados para lá. (Marder,
Michael 2018).

Para lidarmos com este complexo problema podemos pensar nos diferentes entes que
estão envolvidos e como eles podem contribuir para reduzir a poluição, mitigar os danos ou
até mesmo reduzir o dano já existente pela poluição dos resíduos descartados. Na esfera
pública temos a gestão, federal, estadual e municipal. No setor privado existem empresas
que como subproduto criam muitos resíduos. E na sociedade como um todo temos as pessoas
que com suas escolhas também moldam os outros entes. Existem diferentes iniciativas nas
empresas de produzir produtos com material reciclado, mas geralmente acabam tendo um
preço um pouco maior comparado aos outros devido aos custos adicionais no processo para
reciclar o material, entretanto há um público que tende a aumentar que escolhem produtos
devido ao baixo impacto ambiental que possuem. (Marder, Michael 2018).

4.1 Conscientização é a Primeira Alternativa

Mesmo que as questões ambientais sejam debatidas há algum tempo, não são todas
as pessoas que realmente têm atitudes levando em consideração o impacto ambiental. Muitas
cidades possuem bairros que têm coleta seletiva para os moradores, mas não são todos os
que fazem. As pessoas precisam se conscientizar sobre o problema e a responsabilidade
social que possuem e buscar adaptar os seus hábitos para isso (Souza, Bruna, et al. 2020).
Algumas pessoas realizam pequenas mudanças individualmente como utilizar sacolas de
pano ao ir ao mercado ou caixas de papelão para carregar as compras, para diminuir o uso
das sacolas plásticas. (Marder, Michael, 2018).

As pessoas podem buscar a conscientização, mas também, os entes públicos podem


realizar ações que visem a uma maior conscientização da população sobre o meio ambiente.
Uma possível alternativa que auxilia na conscientização da população e na mitigação e
redução dos danos nas cidades da faixa litorânea é o incentivo de mutirões de limpeza nas
praias. Essa prática envolve os habitantes e ajuda a população a se engajar na causa do meio
ambiente e a praticar o cuidado e auxiliando a manter os espaços públicos limpos. Em
mutirões realizados nas praias do Paraná mobilizaram de 12 a 158 voluntários em diferentes
ocasiões e realizaram a remoção de 500 kg até 7500 kg ao todo desde 2013 até 2017 foram
retirados por esses mutirões 22,2 toneladas de lixo nas praias do Paraná. Apesar deste
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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número parecer bem alto, são cerca de 70 a 190 mil toneladas de lixo jogados no mar pelo
Brasil, ocupando a 16ª colocação dos países que mais poluem os oceanos. (Grechinski,
Paula 2020).

4.2 Métodos Orgânicos para Evitar a Contaminação de Resíduos Urbanos nos Oceanos

O município também tem o dever de recolher o lixo gerado pelos seus habitantes.
Pensando na gestão de resíduos gerados pelas cidades devemos pensar sobre o conteúdo
desse lixo em uma perspectiva diferente da forma pejorativa que vemos o lixo, ou seja, vê-
lo como matéria também. O lixo orgânico descartado junto com os outros resíduos acaba por
contaminar o que está junto, mas se separado corretamente poderia servir como substrato em
uma composteira, seja feita pelo próprio indivíduo ou pelo estado para ser usada em hortas
comunitárias reflorestamento de alguma área verde da cidade entre outras possibilidades.
Devolvendo ao solo os nutrientes que foram usados para gerar o material orgânico de forma
não prejudicial. Os resíduos sólidos que podem ser reciclados ou reutilizados e não estão
contaminados podem ser separados para voltar ao processo industrial. O plástico, principal
material poluente, pode ser transformado em resina e ser utilizado para produzir novos
materiais plásticos. Assim não descartando o plástico, mas reciclando o material, sendo
necessário pouco ou nenhuma adição de mais matéria prima retirada da natureza. (SOUSA,
Lucas Saraiva de Alencar et al, 2019).

4.3 Resíduos Urbanos não Reciclados ou Reutilizados

Neste ciclo que pode ser feito nas cidades, reduzindo a necessidade de materiais
descartáveis, principalmente os de uso único, reutilizando e reciclando quando possível.
Existem alguns materiais que se tornam contaminados que exigiram a necessidade de uma
alternativa diferente, uma das soluções que é implementada em alguns países de forma
eficiente é a queima e a incineração. A queima possui menos vantagens já que não aproveita
a energia gerada nesse processo, enquanto a incineração usa a energia gerada nesse processo
para a produção de eletricidade. (Souza; Fernandes; et al. 2020).

No Japão eles realizam esses processos de forma bem eficiente, visto que possuem
uma densidade alta por quilômetro quadrado, a necessidade de lidar com os resíduos de
forma eficiente devido à pequena área territorial disponível no país. Eles reciclam as garrafas
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pet e produzem novas somente com a resina proveniente da reciclagem. Possuem mais de
1200 plantas de usinas que produzem energia a partir dos resíduos gerados também, uma das
mais eficientes chega a consumir 200 toneladas de lixo diariamente. (Senado, 2014).

Na Alemanha desde 2005 o envio de lixo sem tratamento, tanto da indústria quanto
do lixo doméstico, para aterros está proibido. Segundo dados de 2011 a Alemanha reciclou
63% do lixo produzido (46% por reciclagem e 17% por compostagem). Enquanto que a
média continental no ano era de 25%. Cerca de 38% do lixo na Europa vai para os aterros
sanitários, enquanto que na Alemanha esse número é próximo de 0. Por possuir uma boa
gestão dos resíduos gerados, reduz bastante o volume de resíduos, e outro grande fator que
contribui para esse dado é a utilização de incineradores, assim como no Japão, em que 8 kg
a cada 10 kg de resíduos que iriam para aterros sanitários são incinerados para gerar energia.
(Senado, 2014).

Outro exemplo foi na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos. Eles começaram
em 1989 a incluir estratégias de conscientização na população, ensinando e dando
informações a crianças, comerciantes e moradores sobre como separar o lixo e a técnicas de
reciclagem. E também em investir em tecnologias que permitam o reaproveitamento dos
materiais descartados pela população. A cidade implementou um programa de coleta seletiva
onde quem fazia a compostagem da matéria orgânica paga uma taxa menor do imposto para
tratamento do lixo. Junto com essa iniciativa também proibiu o uso de sacolas plásticas no
comércio. Como caminho para isso, a cidade recorreu a uma parceria público-privada com
a empresa Recology, responsável pelo programa da cidade Lixo Zero. (Senado, 2014)

Em 2011 os 850 mil habitantes produziram mais de 2 milhões de toneladas de lixo.


Dessas 1,6 milhão (80%) foi reutilizada ou reciclada ou eram material orgânico e foi
destinado para a compostagem. Junto com isso a cidade reduziu também a emissão de gases
de efeito estufa em 12%. Atualmente a cidade está perto dos 90% de reaproveitamento e
estuda como conseguir alcançar os 10% restantes. (Senado, 2014).

4.4 Estratégias Internacionais

Num âmbito internacional existem alguns órgãos que tratam do tema sobre poluição. Nesse
contexto é que se traz informações sobre a Quinta Conferência Internacional de Detritos Marinhos
(5IMDC), que em 2011 desenvolveu o modelo Honolulu que consiste em objetivos e estratégias que
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a sociedade poderia colocar em prática visando a redução da poluição, a mitigação dos danos, a
redução e reversão os danos causados pelos resíduos já existentes no oceano. O modelo foi criado
como uma tentativa de unificação dos esforços internacionais, não sendo obrigatório para nenhum
país seguir este modelo, mas na intenção de apresentar um farol e guiar de forma mais eficientes os
países e entidades governamentais que buscam melhorar a gestão de resíduos e diminuir o impacto
ambiental que causam a biosfera. A tabela a seguir mostra os objetivos e estratégias do modelo.
(SOUSA, Lucas Saraiva de Alencar et al, 2019).

Tabela 1 – Objetivos e estratégias da Estratégia Honolulu

Objetivo A: Redução quantidade e impacto de fontes terrestres de detritos marinhos introduzidos no

mar.

Estratégia A1: Conduzir a educação e a divulgação sobre os impactos de detritos marinhos e a

necessidade de melhorar a gestão de resíduos sólidos

Estratégia A2: Empregar instrumentos baseados no mercado para apoiar o gerenciamento de resíduos

sólidos, em particular a minimização de resíduos.

Estratégia A3: Empregar infraestrutura e implementar as melhores práticas para melhorar o

gerenciamento de águas pluviais e reduzir o descarte de resíduos sólidos nos cursos de água.

Estratégia A4: Desenvolver, fortalecer e promulgar legislação e políticas públicas para apoiar a

minimização e o gerenciamento de resíduos sólidos.

Estratégia A5: Melhorar a regulamentação sobre águas pluviais, sistemas de esgoto e detritos nos

cursos de água tributáveis.

Estratégia A6: Desenvolver a capacidade para monitorar, fazer cumprir a regulamentação e condições

permitidas sobre lixo, despejo, gerenciamento de resíduos sólidos, águas pluviais e escoamento

superficial.
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Estratégia A7: Realizar esforços regulares de limpeza em terras costeiras, em bacias hidrográficas e

em cursos de água, especialmente em pontos de concentração de detritos marinhos.

Objetivo B: Redução da quantidade e impacto de fontes marítimas de detritos marinhos, incluindo

resíduos sólidos; carga perdida; utensílios de pesca abandonadas, perdidas ou de outro modo

descartadas (ALDFG); e embarcações abandonadas.

Estratégia B1: Conduzir educação há quem utiliza o oceano e a sua divulgação sobre os impactos,

prevenção e gestão de detritos marinhos.

Estratégia B2: Desenvolver e fortalecer a implementação de minimização de resíduos e

armazenamento adequado de resíduos no mar e disposição em instalações portuárias de recepção, a

fim de minimizar incidentes de despejo oceânico.

Estratégia B3: Desenvolver e fortalecer a implementação das melhores práticas de gerenciamento da

indústria (BMP) projetadas para minimizar o abandono de embarcações e a perda acidental de carga,

resíduos sólidos e equipamentos no mar.

Estratégia B4: Desenvolver e promover o uso de melhores utensílios de pesca ou tecnologias

alternativas para reduzir a perda de artes de pesca e/ou seus impactos como ALDFG.

Estratégia B5: Desenvolver e fortalecer a implementação de legislação e políticas para prevenir e

gerenciar detritos marinhos de fontes no próprio mar e implementar requisitos do Anexo V do

MARPOL e outros instrumentos e acordos internacionais relevantes.

Estratégia B6: Desenvolver capacidade para monitorar e fazer cumprir a legislação nacional e local e

estar em conformidade com os requisitos do Anexo V do MARPOL e outros instrumentos e acordos

internacionais relevantes.

Objetivo C: Redução da quantidade e impacto de detritos marinhos acumulados nas linhas costeiras,

em habitats bentônicos e em águas pelágicas.


Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Estratégia C1: Conduzir a educação e a divulgação dos impactos dos detritos marinhos e a sua

remoção.

Estratégia C2: Desenvolver e promover o uso de tecnologias e métodos para localizar e remover

efetivamente as acumulações de detritos marinhos.

Estratégia C3: Desenvolver a capacidade de cogerência na remoção de detritos marinhos.

Estratégia C4: Desenvolver ou fortalecer a implementação de incentivos à remoção de ALDFG e

outros grandes acúmulos de detritos marinhos encontrados no mar.

Estratégia C5: Estabelecer mecanismos regionais, nacionais e locais adequados para facilitar a

remoção de detritos marinhos.

Estratégia C6: Remover detritos marinhos de linhas costeiras, habitats bentônicos e águas pelágicas.

Fonte: SOUSA, Lucas Saraiva de Alencar et al. 2019

Ao analisar a tabela percebemos que o modelo secciona em diferentes partes a forma


para lidar com a poluição de resíduos sólidos marinha. Isso faz com que tenham diversas
frentes para gerenciar. Entretanto, o modelo não foi feito para apenas um órgão ou entidade
governamental realizar, mas sim um esforço em conjunto de nível global integrando a
sociedade civil, o setor privado e as esferas governamentais a níveis nacionais, estaduais e
municipais, assim como organizações internacionais. (SOUSA, Lucas Saraiva de Alencar et
al, 2019).

No contexto atual onde diversos líderes de Estado estão recusando uma colaboração
a nível nacional ou uma visão especial para as questões ambientais, visando manter o
crescimento econômico a estratégia Honolulu pode ser implementada em partes. As
estratégias A4, A5, B3, B4, B5, B6, C2, C3 e C6 podem ser muito custosas às cidades para
cumprir e ou também por não possuírem o poder legislativo para as realizarem. Entretanto
podem se concretizar, em nível municipal, outras estratégias como A1, A2, A7, B1 e C1.
Três dessas cinco estratégias seriam sobre a educação e conscientização a respeito dos
resíduos urbanos terrestres, marítimos e os acumulados na região costeira. Podemos citar
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como exemplo os mutirões de limpeza podendo ser considerado parte do modelo Honolulu,
pois limpa as regiões costeiras ao mesmo tempo em que auxilia a conscientização e a
mobilização da sociedade civil em torno das questões ambientais e também os modelos de
gestão de resíduos vistos a nível municipal como na cidade de São Francisco, na Califórnia,
ou a nível nacional como visto em países como o Japão e a Alemanha. Todos os modelos de
gestão obtiveram resultados bem satisfatórios e as gestões pretendiam alcançar metas ainda
mais ambiciosas para melhorar a eficiência. (SOUSA, Lucas Saraiva de Alencar et al, 2019).

As parcerias público-privadas são exemplos que podem ser utilizados para alcançar
essas metas, principalmente nas regiões costeiras onde há um intenso turismo. A limpeza na
praia pode ser vista como essencial para a continuidade do turismo no local. Dessa forma
deixa de ser uma responsabilidade apenas do município em questão e de seus moradores,
pois integra a iniciativa privada em prol do mesmo objetivo, realizando as parcerias entre o
público e o privado de forma mutuamente benéfica, essa foi a alternativa encontrada em São
Francisco e os resultados comprovam a eficácia da mesma. (Senado, 2014).

Diante disso, podemos perceber que a as medidas para a proteção e preservação da


natureza podem ser tanto num sentido de cima para baixo, por exemplo medidas nacionais
ou acordos internacionais sobre o assunto, quanto de baixo para cima, como é visto em ações
realizadas pela sociedade civil em conjunto com o município e o setor privado.

Dentre os objetivos previstos, o que possui maior dificuldade é o objetivo C do


modelo Honolulu (Redução da quantidade e impacto de detritos marinhos acumulados nas
linhas costeiras, em habitats bentônicos e em águas pelágicas), pois é o mais custoso
economicamente e por não possuir uma forma que tenha uma boa relação custo-benefício na
questão econômica. Mas possui grande importância a longo prazo pois dentre os objetivos é
o único que visa a diminuir os danos que estão sendo causados pelos resíduos já existentes.
E para obter resultados mais significativos é necessária uma aderência entre os países aos
objetivos do modelo. Pois mesmo que tenha iniciativas que retirem o lixo dos oceanos,
enquanto houver mais lixo sendo depositado nos mares os problemas causados nos
ecossistemas vai só aumentar.
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5. LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil há leis que regulam os aspectos ecológicos da nação. Entretanto nem todas
as leis estão sendo cumpridas em sua plenitude. Como as leis 12.305/2010 e 11.445/2007 que
estabelecem algumas normas sobre o saneamento e a gestão dos resíduos, mas ainda não é
cumprida em plenitude. O mesmo pode ser dito das leis 6.938/1981 e 7.347/1985 que
legislam sobre a responsabilidade e a indenização dos danos causados. Entretanto as
indenizações aos danos causados ao meio ambiente não são rápidas. Podemos citar o
rompimento da barragem de Brumadinho, que trouxe inúmeras consequências aos
ecossistemas da região e tornou muitas águas impróprias, pois contaminou com metais
pesados e outros poluentes tóxicos. (Bouças, Cibelle. 2021).

Quanto às legislações existentes no Brasil, destacam-se abaixo as mais relevantes


acerca do assunto:

1. Lei 12.305/2010 - Institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e


altera a Lei 9.605/1998 - Estabelece diretrizes à gestão integrada e ao gerenciamento
ambiental adequado dos resíduos sólidos. Propõe regras para o cumprimento de seus
objetivos em amplitude nacional e interpreta a responsabilidade como compartilhada entre
governo, empresas e sociedade. Na prática, define que todo resíduo deverá ser processado
apropriadamente antes da destinação final e que o infrator está sujeito a penas passíveis,
inclusive, de prisão.

2. Lei 11.445/2007 - Estabelece a Política Nacional de Saneamento Básico -


Versa sobre todos os setores do saneamento (drenagem urbana, abastecimento de água,
esgotamento sanitário e resíduos sólidos).

3. Lei 6.938/1981 - Institui a Política e o Sistema Nacional do Meio Ambiente -


Estipula e define, por exemplo, que o poluidor é obrigado a indenizar danos ambientais que
causar, independente da culpa, e que o Ministério Público pode propor ações de
responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, como a obrigação de recuperar e/ou
indenizar prejuízos causados.

4. Lei 7.347/1985 - Lei da Ação Civil Pública – Trata da ação civil pública de
responsabilidades por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio
artístico, turístico ou paisagístico, de responsabilidade do Ministério Público Brasileiro.
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5. Lei 9.433/1997- Lei de Recursos Hídricos – Institui a Política e o Sistema


Nacional de Recursos Hídricos - Define a água como recurso natural limitado, dotado de
valor econômico. Prevê também a criação do Sistema Nacional para a coleta, tratamento,
armazenamento e recuperação de informações sobre recursos hídricos e fatores
intervenientes em sua gestão.

Além disso, enquanto diversos países estão indo ao encontro de soluções que causem
menos impactos ambientais, como a coleta seletiva, criação de incineradores que geram
eletricidade e reduz a necessidade de resíduos irem para os aterros sanitários, o Brasil vê um
cenário preocupante, onde devido a falta de interesse e ou investimentos a situação está
piorando pois está sendo descartado mais lixo de forma imprópria, e se investido em lixões
e aterros sanitários como uso principal. Mesmo possuindo riscos de poluição do solo, águas
e até mesmo dos lençóis freáticos. O que vai claramente na via oposta ao que é proposto na
lei nº 9.433/1997 que prevê que a água deve ser tratada como recurso natural, limitado,
valioso e possuindo valor econômico, prevendo a preservação e recuperação dos recursos
hídricos.

6. CONCLUSÃO

As soluções para os problemas ambientais que culminam na poluição dos oceanos


não são simples. Podemos dividir esse problema em algumas partes como por exemplo a
produção excessiva de lixos e resíduos sólidos, a falta de organização para o tratamento
correto dos resíduos que acaba sendo descartada de forma imprópria e ou prejudicial para o
meio ambiente e parte desses resíduos acabam por poluir rios e efluentes que posteriormente
levam esses resíduos aos mares. Sendo um dos principais problemas no descarte de lixo nos
mares, cerca de 80% do lixo no mar é proveniente de resíduos descartados na terra próximos
à faixa costeira. Vale salientar que no Brasil metade da população vive a uma distância de
200 km da região litorânea, algo similar acontece no cenário mundial também (Farias, Saulo
2015)

Para começar a lidar com essa questão, podemos pensar nos 5 R da reciclagem
(repensar, recusar, reduzir, reutilizar, reciclar). O primeiro passo que pode ser dado é
repensar nossas atitudes, como por exemplo, utilizar menos itens descartáveis ou que durem
menos e pensar se realmente precisamos daquele produto ou mercadoria. Recusar e ou
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reduzir mercadorias e objetos que não precisamos, um exemplo clássico disso são as
embalagens e as sacolas plásticas. Diversos países já começaram a dar esse passo com a
implementação de taxas sobre o uso de sacolas plásticas ou proibindo o uso. (Exame, 2012).

A reutilização dos materiais também é importante, evitando que mais recursos


naturais precisem ser extraídos. O plástico, principal poluente, pode ser reutilizado e um bom
exemplo disso são as garrafas “pet” reutilizáveis que oferecem desconto quando o cliente
retorna a pet, podendo assim economizar os recursos naturais. E por último, a reciclagem
destes materiais, o plástico pode ser reutilizado a partir de processos industriais
transformando-os em resina e podendo originar produtos novos a partir desta transformação.
O alumínio também pode ser reciclado e utilizado em embalagens. Entre diversos outros
materiais que podem ser reciclados para diminuir o uso dos recursos naturais e a produção
de resíduos.

Contudo, apenas a sociedade civil fazer a mudança não irá resolver todos os
problemas. É necessário que os municípios façam uma boa gestão de seus resíduos e
incentivem iniciativas em prol do meio ambiente. Assim como medidas nacionais que
padronizam uma boa gestão de resíduos tanto do setor privado quanto da sociedade e invista
recursos para que essa mudança possa ocorrer, pois com a sociedade civil, alinhada junto
com o setor privado e público, será possível diminuir o impacto ambiental que causamos no
meio ambiente.

REFERÊNCIAS

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Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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108

BRASIL. Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Institui a Política Nacional de Recursos


Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o
inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal. Jan. 1997.

_______. Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985. Disciplina a ação civil pública de


responsabilidade por danos causados ao meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de
valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. jul. 1985

_______. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1985. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio
Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. ago.
1985.

_______. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007. Estabelece as diretrizes nacionais para o


saneamento básico; cria o Comitê Interministerial de Saneamento Básico; altera as Leis nos
6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.666, de 21 de junho de 1993, e 8.987, de 13 de fevereiro
de 1995; e revoga a Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978. jan. 2007.
______. Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 1985. Institui a Política Nacional de Resíduos
Sólidos; altera a Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998; e dá outras providências. ago.
2010
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109

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO FUNDAMENTAL A


PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS FRENTE À
LIMITAÇÃO DE SUA FUNÇÃO SOCIAL

THE HISTORICAL EVOLUTION OF FUNDAMENTAL RIGHT TO PROPERTY


IN BRAZILIAN CONSTITUTIONS IN FRONT OF THE LIMITATION OF ITS
SOCIAL FUNCTION

Diogeano Marcelo de Lima1


Rafaela Patricia Inocencio da Silva2

Resumo: Este artigo traça a evolução histórica do tratamento adotado pelas Constituições
brasileiras, partindo do uso absoluto ao condicionamento a função social da propriedade.
Como método, é utilizado o estudo de referências bibliográficas que partiu do resgate
histórico do tratamento adotado nas constituições anteriores para ao fim comparar com a
definição do direito a propriedade empregado atualmente na legislação em vigor, permitindo
a conclusão de que as soluções adotadas nas cartas anteriores são incapazes de mostrar
respostas aos problemas atuais. Na Constituição de 1981 o direito a propriedade era exercido
de forma absoluta pelo proprietário. Conquanto tivesse ocorrido a relativização do direito a
propriedade na Constituição de 1934, a mesma não perdurou, pois, uma nova Constituição
fora imposta em 1937, tendo praticamente repetido o caráter absoluto do direito a
propriedade das constituições anteriores, já a Constituição de 1969, limitou a propriedade
privada a sua função social em grau superior ao empregado pela Constituição de 1934. Com
a Constituição de 1988 fora aferrada a limitação do direito a propriedade, determinando que
o seu exercício está condicionado a sua função social. Em suma, a tentativa de tornar o direito
a propriedade imune a limitações é proposta natimorta, pois colide com as experiências
adquiridas ao longo de seis Constituições, que relativizaram o direito a propriedade de forma
paulatina até chegar-se ao exercício do direito a propriedade limitado a sua função social
conforme se previu na Constituição de 1988.

Palavras-Chave: Direito a propriedade; Constituições brasileiras; Função social; Direito


fundamental.

1
Advogado. Especialista em Direito Processual Civil. Pós-graduando em Direito Médico (CERS). Pesquisador
do Grupo Vida (UFBA). Contato: adv.diogeanomarcelo@gmail.com
2
Professora Universitária. Advogada. Mestre em Direito Econômico (UFPB). Graduada em Direito pela
UFCG. Contato: rafaelainocencio@hotmail.com.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Abstract: This article traces the historical evolution of the treatment adopted by the
Brazilian Constitutions, starting from absolute use to conditioning the social function of
property. As a method, it is used the study of bibliographic references that started from the
historical rescue of the treatment adopted in the previous constitutions to compare it with the
definition of the right to property currently employed in the legislation in force, allowing the
conclusion that the solutions adopted in the previous letters are unable to show answers to
current problems. In the 1981 Constitution, the right to property was exercised absolutely by
the owner. Although there was a relativization of the right to property in the Constitution of
1934, it did not last, since a new Constitution had been imposed in 1937, having practically
repeated the absolute character of the right to property of the previous constitutions, already
the Constitution of 1969, limited the private property, its social function to a greater degree
than that employed by the 1934 Constitution. With the 1988 Constitution, the limitation of
the right to property was determined, determining that its exercise is conditioned to its social
function. In short, the attempt to make the right to property immune to limitations is a
stillborn proposal, as it clashes with the experiences acquired over six Constitutions, which
gradually relativized the right to property until reaching the exercise of the right to limited
property its social function as provided for in the 1988 Constitution.

Key words: Right to property; Brazilian constitutions; Social role; Fundamental right.

1. INTRODUÇÃO

O direito a propriedade é inexoravelmente ligado a sua função social, no entanto,


essa visão do direito atual, que relativizou um direito fundamental tão caro não aconteceu de
forma repentina. Foi preciso todo um processo histórico, do qual resultou da transformação
do uso absoluto da propriedade para uma relativização, a qual beneficiava não apenas o
titular do bem, mas a toda a coletividade. Neste momento nascia a expressão “função social
da propriedade”.

Este direito a propriedade privada, dentro do contexto brasileiro, teve um tratamento


diferenciado em cada uma das sete cartas constitucionais que já vigeram no Brasil. As
primeiras Constituições, de 1824 e 1891, embora tivessem nascidos em formas de governo
antagônicas (monarquia e república), davam o mesmo tratamento à propriedade privada,
onde o titular poderia usufruí-la de forma plena, havendo apenas a previsão de sua limitação
em face da desapropriação em nome do interesse público, o que não limitava o proprietário
de usufruí-la como bem entendesse.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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A primeira Constituição que desenhou o papel social da propriedade privada foi a


Constituição de 1934, no entanto, o novo instituto não teve sequer tempo de ser implantando,
uma vez que um novo golpe militar impôs uma nova Constituição já em 1937, a qual
extinguiu a função social da propriedade privada, dando tratamento similar ao que era
previsto nas cartas anteriores.

Somente em 1946, com a promulgação de uma nova Constituição, o direito a


propriedade privada voltou a ser condicionado ao instituto da função social, o qual impõe
limites ao uso e gozo do bem privado, não podendo o proprietário usá-lo de forma que venha
a ferir o interesse da coletividade.

Saliente-se que, a história da república é marcada por períodos conturbados que


ocasionaram diversas rupturas políticas e assim gerado diversas Cartas Constitucionais,
como aconteceu em 1967, tendo estrado em vigor uma emenda Constitucional que na
verdade configurou uma nova Constituição em razão da quantidade de mudanças, com o
intuito de legitimar o estado de exceção que perdurou de 1964 a 1985. Tais mudanças
também impactaram no direito a propriedade.

Embora estivesse o Brasil sob a égide de mais um novo regime militar, a nova
Constituição manteve o condicionamento do exercício do direito fundamental a propriedade
a sua função social, indo, inclusive, ainda mais além, passando a prever no próprio texto
constitucional, a possibilidade da desapropriação para os programas de reforma agrária.

Com o colapso do regime militar, veio a nossa atual Constituição Federal da


República Federativa do Brasil de 1988, também chamada de Constituição Cidadã,
justamente porque fora fruto da mais ampla participação popular, em amplitude jamais vista
em qualquer outra Carta Constitucional.

É em nossa Constituição Cidadã que a função social da propriedade é solidificada no


texto Constitucional, de forma ampla, limitando o exercício da propriedade privada a sua
função social, ou seja, o proprietário não deve exercer a propriedade apenas como benefício
próprio, mas de forma que atenda a toda coletividade, e embora a propriedade privada faça
parte da ordem econômica, há uma série de limitações importas pelo estado, especialmente
para atender a promoção dos diretos sociais.

Logo, por mais importante que seja o estudo dos atuais institutos do direito
urbanístico, realizar a análise histórica de sua evolução visa evitar que o direito retroceda,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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voltando a percorrer caminhos que já foram percorridos e não foram capazes de atenuar os
problemas relativos ao exercício da propriedade privada, logo, conhecer a história é uma
tentativa de se evitar errar de novo.

2. METODOLOGIA

É importante destacar a necessidade da definição dos métodos a serem utilizados na


presente proposta, já que com eles delimitamos as fontes de pesquisa e todo o seu
procedimento estrutural. Além disso, a definição dos métodos demonstra o respeito do
pesquisador ao método científico, a credibilidade e seriedade da pesquisa.

Adota-se como procedimentos teórico-metodológicos a revisão de literatura uma vez


que a pesquisa bibliográfica possibilita um amplo alcance de informações, além de permitir
a utilização de dados dispersos em inúmeras publicações, auxiliando também a construção,
ou melhor, na definição do quadro conceitual que envolve o objeto de estudo proposto (GIL,
1994).

Quanto à pertinência temática, este é relevante uma vez que, diversas vozes começam
a ecoar a respeito da suposta necessidade de tratar o exercício do direito a propriedade de
forma absoluta, ou pelo menos, aumentar a autonomia a patamares que já restou
demonstrado anteriormente como causas de profundas injustiças sociais.

Assim, o este estudo diferencia-se por voltar o olhar para o passado, resgatando todo
um histórico de textos legais que tentaram resolver os mesmos questionamentos, só que em
sentido inverso. Enquanto muitas pesquisas trazem o direito da propriedade e os seus
reflexos apenas a partir de sua concepção atual, neste o ponto de partida será o surgimento
do direito a propriedade na formação da civilização através de um breve apanhado. Em
seguida se apresentará o tratamento do direito a propriedade em cada uma das sete
Constituições que vigeram no Brasil desde o período colonial, passando pela Proclamação
da República até a nossa atual Carta Cidadã de 1988.

Sendo assim, resta evidenciado que para se entender este instituto da deve-se iniciar
partindo da evolução histórica do tratamento deferido ao direito fundamental da propriedade
privada nas diversas Constituições que vigeram no Brasil, traçando paralelos evolutivos para
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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demonstração das suas alterações, o que resultou no atual sistema, onde o direito a
propriedade é relativizado, sendo limitado a sua função social.

3. SURGIMENTO E EVOLUÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA

Nos primórdios da civilização não existia uma concepção sobre o que seria a
propriedade privada, esta era entendida apenas como aqueles objetos móveis de uso pessoal
sobre os quais o homem nômade detinha a propriedade. E que eram necessários a sua
sobrevivência.
O conceito de propriedade privada foi evoluindo na medida em que foi ocorrendo a
transição da comunidade gentílica para a organização centralizada das Cidades Estados, de
acordo com o que preleciona Luciano de Souza Godoy (1999, p. 19):

O Direito na Grécia Antiga, apesar dos esparsos registros a respeito, admitia


alguma forma de propriedade privada. Na Grécia arcaica, atestava-se, desde a
época mais antiga, a prática da divisão e atribuição das terras entre os vários grupos
familiares, consubstanciado em uma propriedade imóvel familiar. De forma lenta,
a partir do fim do século VII A.C início do século VI A.C. foi-se consolidando a
idéia da propriedade individualmente considerada.

Não existia, no período Pré-Homérico, uma acepção jurídica com relação à


propriedade individual além da que cercava os objetos de uso pessoal, as terras pertenciam
a toda a família, no caso aos genos, estando por sua vez os genos sob a liderança do chefe
familiar.

A partir do surgimento das primeiras cidades é que o conceito de propriedade


começou a evoluir devido à passagem da atividade familiar meramente agropastoril para
outras atividades como o comércio, tendo a propriedade individual se firmado na Roma
Antiga como sendo um direito absoluto. Sobre esta evolução, Silvio de Salvo Venosa (2008,
p. 150) afirma que:

Antes da época romana, nas sociedades primitivas somente existia propriedade


para as coisas móveis, exclusivamente para objetos de uso pessoal tais como peças
de vestuário, utensílios de caça e pesca. O solo pertencia a toda a coletividade,
todos os membros da tribo, da família, não havendo o sentido de senhoria, de poder
de determinada pessoa. A propriedade coletiva primitiva é, por certo, a primeira
manifestação de sua função social.
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A propriedade privada passou com o desenvolvimento das cidades a ter um caráter


meramente individual, não pertencendo mais a coletividade, podendo assim uma única
pessoa ser proprietária de quantos imóveis pudesse adquirir, podendo deles dispor como bem
entendesse, não havendo nenhuma limitação estatal quanto ao seu uso ou desuso, assim o
direito a propriedade além de ser individual passou a ser absoluto.

Foi apenas no período da República Romana que apareceu o direito de vizinhança no


Digesto impondo limites ao uso da propriedade de forma que o uso da mesma não
prejudicasse o bom uso e gozo da propriedade do vizinho, ou nas próprias palavras de Sílvio
de Salvo Venosa (2008, p. 150):

Apenas na época Clássica o Direito Romano admite a existência de uso abusivo


do Direito de propriedade e sua reprimenda. O Digesto já reconheceu o direito de
vizinhança, mas o elemento individual ainda é preponderante.

Essa visão de que era o direito de propriedade absoluto, podendo o proprietário dispor
dela da forma como bem entendesse, havendo limitações apenas ao que concerne ao direito
de vizinhança, perdurou até a Idade Média, passando a partir dessa época a perder o seu
caráter unitário e exclusivista. Com isso, o Direito Canônico começou a incutir na
propriedade o que viria a ser sua função social expressa pelas encíclicas papais, sendo estas
inspiradas nos ensinamentos de São Tomas de Aquino.

A doutrina social da igreja católica é bem expressa pelo Papa João XXIII na Encíclica
Mater Et Magistra apud Luciano de Souza Godoy (1999, p. 30), preleciona que:

Nossos predecessores nunca deixaram igualmente de ensinar que no direito de


propriedade privada está incluída uma função social (...) segundo os planos de
Deus, o conjunto de bens da terra destina-se, antes de mais nada a garantir a todos
os homens um decente teor de vida (...)

Esta doutrina social é baseada na fundamentação teórica de São Tomás de Aquino


em sua suma teleológica, onde, segundo Luciano de Souza Godoy (1999, p. 30) “os bens da
terra foram destinados, por Deus a todos os homens sendo reservados provisoriamente a
apreensão individual, e a utilização da propriedade deve visar o bem comum”.

Com grande dominação sobre o tema Gustavo Tepedino apud Luciano de Souza
Godoy apud (1999, p. 30):
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Os bens disponíveis na terra pertenciam a todos, sendo destinados provisoriamente


à apreensão individual. O jusnaturalismo, inspirado em critérios de equidade e
justiça superlegislativa, proclamaria, posteriormente, a função social da
propriedade traduzida na necessidade de utilização do bem enquanto instrumento
de realização da justiça divina.

O uso indiscriminado da propriedade sempre levantou controvérsias, não bastando


apenas à criação de institutos jurídicos para efetivar a sua proteção, mas também,
racionalizar o seu uso de forma a evitar o chamado abuso de direito de forma a prejudicar os
interesses e expectativas de terceiros. Assim, embora o uso da propriedade privada seja
individual, a forma em que se exercitará este direito não pode se sobrepor aos interesses da
coletividade.

4. O DIREITO DE PROPRIEDADE NAS CONSTITUIÇÕES QUE


ANTECEDERAM A CONSTITUIÇÃO DE 1988

No Brasil o direito de propriedade foi normatizado pela primeira vez na outorga da


Constituição Imperial de 1824, dando a propriedade um caráter pleno admitindo como única
exceção a desapropriação hoje conhecida como utilidade pública ou necessidade pública,
onde de acordo com o art. 179 da mencionada carta, aponta que:

Art. 179. A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros,
que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida
pela Constituição do Império pela maneira seguinte:

(...)

XXII – É garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem


público legalmente verificado exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão
será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá
lugar esta única exceção, e dará as regras para determinar a indenização.

Observa-se assim, que na primeira Constituição, o direito a propriedade era de uso


absoluto, sendo limitado somente em face do surgimento de eventual necessidade do Império
de dar outra destinação a propriedade individual. Entretanto, inexistia qualquer limitação
frente aos anseios da coletividade.

Com o advento da Constituição Republicana de 1891, não trouxe nenhuma alteração


ao que era anteriormente disposto sobre a propriedade privada trazendo maior transformação
a organização dos entes federativos, elevando o município a ente federativo autônomo.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Contudo a Carta Magna de 1891 colocou a propriedade privada como garantia constitucional
no art. 72 ao dispor que:

Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no país a


inviolabilidade dos direitos concernentes a liberdade, à segurança individual e a
propriedade nos termos seguintes:

(...)

§ 17. O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salvo a


desapropriação por necessidade, ou utilidade pública, mediante indenização
prévia.

Embora a Constituição de 1981 tenha nascido do processo de ruptura entre o sistema


de estado, causando a cisão entre o Brasil Império e o Brasil da República velha, a novel
Constituição, no que diz respeito ao tratamento dado ao exercício da propriedade privada,
manteve praticamente o mesmo tratamento no que diz respeito ao seu uso individual, estando
limitado somente pela eventual necessidade do Estado de dar destinação diferente a
propriedade em razão de necessidade ou utilidade pública, desde que com prévia
indenização.

Ainda sob a égide desta da Constituição de 1891 e durante a República Velha, foi
promulgado em 1916 o Código Civil brasileiro. Este elencou em seu artigo 524 que “A lei
assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens e de reavê-los ao poder
de quem quer que injustamente possua”.

A revolução de 1930, pois fim a política do “café com leite”, levando Getúlio Vargas
ao poder, sendo promulgada a Constituição de 1934, fruto da Revolução Constitucionalista
de 1932. A Constituição de 1934 trouxe como grande novidade uma expressão que além de
garantir o direito de propriedade a vinculava ao bem-estar social. Assim dispondo no seu art.
113:

Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país


a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

17 – É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o


interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por
necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa
indenização. Em caso de perigo eminente, como guerra ou comoção intestina,
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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117

poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem


público o exija, ressalvado o direito a indenização ulterior.

A presente Carta, diferente das duas anteriores, atribuiu uma nova dimensão a
propriedade direcionando o uso da mesma ao interesse social ou coletivo. Contudo, antes
que o novel instituto presente na Constituição de 1934 pudesse se firmar ouve outro golpe
para que Getúlio Vargas continuasse no poder, a para legitimar o chamado “Estado Novo”,
foi outorgada uma nova carta, a Constituição de 1937, que por sua vez omitiu qualquer
expressão que significasse uma funcionalização social da propriedade. Tendo o art. 122
afirmando que:

Art. 122. A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país


o direito à liberdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 14 – O direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou


utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e seus limites
serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício.

Apesar da omissão quanto à vinculação da propriedade ao interesse social, a Carta


de 1937 reconheceu à necessidade de fixar em lei o seu conteúdo e os limites a propriedade.
Há exemplo dos vários diplomas legais que foram editados sob a égide das cartas de 1934 e
1937 com o escopo de limitar o uso da propriedade como foi o caso do Decreto nº 24.150 de
20-04-1934 que visava proteger o fundo de comércio na locação predial para o comércio,
tendo sido também durante a vigência da Constituição de 1937 editado o Decreto – lei nº
3.365 de 21-06-1941, para disciplinar as desapropriações sendo uma norma de natureza
material e processual para regular o novel instituto e o Código de Águas do Brasil que foi
editado em 1934, pelo decreto nº 24.643 interferindo na propriedade privada como previsto
no Código Civil de 1916 onde determinou, classificou e regulamentou o regime hídrico
nacional.

Com o fim da Ditadura Vargas em 1945, deu-se início novamente a abertura do


processo democrático no Brasil, e com ela uma nova Constituição. A Constituição de 1946
vinculou novamente a propriedade ao atendimento do interesse coletivo, de acordo com o
que havia sido disposto na Constituição de 1934, que assim dispôs no seu art. 141:
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no


país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

§ 16. É garantido direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por


necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como ou comoção intestina,
as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim exigir
o bem público, ficando, todavia, assegurando o direito à indenização ulterior.

E mais a frente no art. 147, que trata da ordem Econômica e Social, continha a
seguinte disposição: “uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social”. Com o
retorno do novel instituto, garantia-se constitucionalmente a função social da propriedade.

Foi durante a égide da Constituição de 1946 que foi o Decreto-Lei nº 271, de 28-02-
1967, dispondo sobre loteamento urbano, responsabilidade do loteador, concessão de uso e
espaço aéreo. Estabelece no art. 7º que o instituto da concessão de uso é como um direito
real “de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo
ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização,
industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social”.

O referido diploma é mais uma limitação ao uso da propriedade, onde o Estado


regulamenta sobre o loteamento urbano para obter o melhor aproveitamento do bem imóvel
visando o bem-estar tanto do proprietário como da coletividade em geral.

Já na década de sessenta, o Brasil passou pelo período mais conturbado de sua


história política, pelo fato do golpe militar que derrubou o governo de João Goulart sob o
pretexto de evitar a ascensão do comunismo no Brasil. Com o novo regime foi promulgado
uma nova Constituição, a Constituição de 1967 que dispôs sobre o direito de propriedade na
Declaração de Direitos no art. 150:

Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no


país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida e à liberdade, à segurança e
à propriedade nos termos seguintes:

[...]

§ 22. É garantido direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por


necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 157, VI, § 1º. Em caso de
perigo iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedade
particular, assegurando ao proprietário o direito à indenização ulterior.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Logo em seguida o art. 157 da Constituição Federal de 1967, diz que: “A ordem
econômica tem por fim realizar a justiça social com base nos seguintes princípios: [...] III –
função social da propriedade.” Essa nova Constituição trouxe desde sua promulgação a
desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária, com indenização em títulos,
algo até então inexistente nos outros textos constitucionais.

É importante comentar sobre a emenda nº 1 à Constituição de 1967, modificou a


Constituição anterior quase que por completo, tanto que para a maioria dos doutrinadores
constitucionalistas é considerada uma nova Constituição. Na mudança o referido diploma
disciplinou o direito de propriedade no art. 153 que assim dispôs:

Art. 153. A constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no


país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e
à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 22. É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por
necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa
indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 161, facultando-se ao
expropriado aceitar o pagamento em título da dívida pública, com cláusula de
exata correção monetária. Em caso de perigo público iminente, as autoridades
competentes poderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário
indenização ulterior.

No art. 160, a Constituição dispõe: “A ordem econômica e social tem por fim realizar
o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios: [...] III –
função social da propriedade”.

Sobre a relevância que teve a emenda nº 1 de 1969 ao direito de propriedade, destaca-


se aqui as palavras do professor Luciano de Sousa Godoy (1999, p. 57), onde afirma que:

A importância deste fato está em vincular, como princípio constitucional, a


garantia do direito de propriedade à função social que lhe é inerente e, assim, servir
de sustentáculo a todo o sistema jurídico, especialmente ao direito privado.
Orlando Gomes, em trecho de sua obra, muito oportunamente, destaca observação
de Menger, para o qual o Estado deixara de ser amigo desinteressado, protetor do
proprietário, para se tornar companheiro incomodo que, em tom autoritário,
pretende dominar e usufruir a propriedade, co-participando tanto na substância
econômica, como na jurídica, dessa associação forçada.

É interessante observar que, embora a nova Constituição tenha nascido de uma nova
ruptura política, com o intuito de legitimar, mais uma vez, um estado de exceção, o
tratamento deferido ao exercício do direito a propriedade manteve o espírito da Carta de
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1946, tendo até ampliado o mesmo, o que nos leva a concluir que a necessidade de se conferir
uma função social a propriedade é algo que se sobrepõe a espécie de governo.

O papel da função social da propriedade passa a ser reconhecida também por


governos autoritários, pois ficou claro que o uso ilimitado da propriedade ao bel prazer do
proprietário vai de encontro ao interesse coletivo e, portanto, confronta-se com a supremacia
do interesse público.

5. O DIREITO DE PROPRIEDADE APÓS A PROMULGAÇÃO DA


CONSTITUIÇÃO DE 1988

Foi com a Constituição Federal 1988 que o Brasil reencontrou o caminho da


democracia. Em nossa atual Constituição o direito de propriedade foi consagrado em dois
momentos distintos, no primeiro a propriedade é vista como garantia individual, como
estatuído no art. 5º, inciso XXII da seguinte forma:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
[...]
XXII – é garantido o direito de propriedade.

O presente inciso seguiu a orientação da maioria das Constituições anteriores,


inspiradas outrora na Declaração de Direitos de 1789, art. 17. Em outro momento, a
propriedade é consagrada na Constituição de 1988 como princípio da ordem econômica, art.
170, inciso II, da seguinte forma:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na


livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
II – propriedade privada;

Inovadoramente, a Constituição Federal deu ênfase à questão urbana, dedicando um


capítulo exclusivamente à política urbana (Capítulo II – DA POLITICA URBANA. Art.182
e art. 183). Demonstrando assim que o legislador constitucional originário preocupou-se com
a ordenação urbana dos municípios devido ao crescimento das cidades de forma acelerada,
e também, por ser a ordenação urbana uma das formas de implementação dos direitos e
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garantias fundamentais e dos direitos sociais, por estarem intimamente ligados ao bem-estar
social que é por sua vez alcançado com o desenvolvimento urbano do município.

Apesar de nossa Constituição ter adotado como regime econômico o capitalista, é de


se destacar que a mesma segue a doutrina atual que considera superada o conceito de
propriedade absoluta, ao adotar também no mesmo diploma legal no art. 5º, inciso XXIII,
do capítulo das garantias individuais e também no referido art. 170, no item III, que rege
como princípio da ordem econômica, o da função social da propriedade, deve o uso e o gozo
da mesma não apenas satisfazer o titular, mas também a toda a coletividade.

Sobre o tema, mais uma vez Luciano de Souza Godoy (1999, p. 62) ao dissertar sobre
a função social da propriedade privada em nossa atual carta, aduz que: “direito de
propriedade somente pode ser concebido, e assim garantido pela ordem constitucional, se
utilizado com vistas no cumprimento da função social que lhe é inerente”.

A Constituição Federal de 1988, disciplina em dois momentos distintos a Política


Urbana e a Política Agrária. No art. 182, disciplina a Política Urbana, dispondo sobre os
meios legais disponíveis a Administração Aública, para a implementação, ou melhor,
promoção do desenvolvimento urbano: entre eles o imposto territorial urbano progressivo,
parcelamento ou edificação compulsório e a desapropriação com pagamento mediante títulos
A desapropriação por interesse social para fins de reforma urbana ficou a cargo da aprovação
de infraconstitucional da Lei nº 10.257 de 10-07-2001.

Quanto à Política Agrária a mesma foi disciplinada nos arts. 184 a 191, concedendo,
para a efetivação do poder público das medidas promocionais, os seguintes instrumentos:
política agrícola e desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária,
recepcionando o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504 de 30 de novembro de 1964.

Durante a vigência da atual Carta, já entrou em vigor, diversos diplomas legais, que
visam regulamentar o uso da propriedade privada, buscando limitar a autonomia do titular
para que a mesma cumpra a sua função social. Pode-se citar como exemplo: a Lei nº 8.
009/90 e a Lei de Registro Públicos, no art. 260, que regulam o instituto da
impenhorabilidade do bem de família, a Lei Federal nº 6.938/81 que trata da legislação
ambiental entre outras.
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Deve-se citar também que sob a luz da Constituição Federal de 1988, entrou em vigor
o novo Código Civil Brasileiro, que estatue o conceito de propriedade e cita as suas
limitações no art. 1.228:

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o


direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
§ 2o São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou
utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem.
§ 3o O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição,
em caso de perigo público iminente.
§ 4o O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco
anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em
conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse
social e econômico relevante.
§ 5o No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao
proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel
em nome dos possuidores.

O novel código traz o conceito de propriedade com as suas limitações nos incisos
seguintes, da mesma forma que garante o direito de ação para recuperar o bem de quem
injustamente o possua como procura adequar o seu uso para o bem-estar de toda a sociedade,
prevendo assim a função social da propriedade, o usucapião, a proibição do abuso de direito
e a desapropriação com o pagamento de uma indenização justa.

Sobre a intromissão cada vez maior do Estado na propriedade privada, direcionando


seu uso e gozo para o bem-estar social, Caio Mario da Silva Pereira apud Luciano de Souza
Godoy (1999, p. 64), aduz que:

Na verdade, crescem os processos expropriatórios, sujeitando a coisa à utilidade


pública e aproximando-a do interesse social. Condiciona-se o uso da propriedade
predial a uma conciliação entre as faculdades do dono e o interesse do maior
número; reduz-se a liberdade de utilização e disposição de certos bens; sujeita-se
a comercialidade de algumas utilidades a severa regulamentação; proibi-se o
comercio de determinadas substancias no interesse da saúde pública; obriga-se o
dono a destruir alguns bens em certas condições. De certo modo os legisladores e
os aplicadores da lei em todo o mundo, segundo afirma Trabucchi, mostram-se
propensos a atenuar a rigidez do direito de propriedade.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

123

Por tudo isso, pode-se dizer que a propriedade deve servir ao proprietário e a própria
sociedade de forma indireta através do correto uso do titular. Neste sentido, as palavras de
Mário Saab Neto (s./d., p. 1) corroboram este pensamento ao entabular que “a propriedade
privada não tem natureza de privilegio excludente, muito pelo contrário, sua função, no
contexto universal da existência, é de dar uso, fruição individual, aos bens de destinação
universal”.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Todos os textos constitucionais foram sendo construídos como uma evolução jurídica
e social. Quanto ao direito de propriedade isso não foi diferente, pois as alterações
legislativas tendencionaram a tornar este direito fundamental em algo a ser usufruído pela
coletividade e também porque era o seu real detentor. O direito a propriedade não poderia
ser visto e exercido como algo absoluto e sem limites ao seu exercício

Para que a propriedade ganhasse este contorno social ela deveria ser exercida com
base na sua função social, a qual demanda do seu detentor abrir mão de algumas
peculiaridades conforme o caso. Assim, não bastava, tão somente, atribuir à propriedade
uma função social, era indispensável dar meios legais para que esta característica fosse de
fato observada. Logo, uma das maneiras de se efetivar a função social da propriedade
passava pelo viés da constitucionalização da mesma.

No entanto, conforme se observa no breve apanhado histórico sobre o tratamento


deferido ao exercício da propriedade privada em cada uma das sete Constituições que
vigeram no Brasil, é notório o fato de já ter sido dado ao direito fundamental à propriedade
caráter absoluto, havendo raríssimas limitações impostas ao uso da propriedade seja nas
Constituições anteriores, seja nas principais legislações civilistas.

Neste limiar, o que se observa é que nas constituições que precederam a Carta Magna
de 1988, o caráter absoluto dado ao uso da propriedade privada e isso não era capaz de
mitigar as desigualdades sociais, pelo contrário, apenas os agravava quando não era fonte
principal da desigualdade.

Deste modo, passados 32 anos após a promulgação de nossa Constituição Cidadã de


1988, têm-se engrossado as fileiras de certos setores da sociedade civil que fazem coro em
favor da mitigação da função social da propriedade, ou seja, diminuindo as limitações
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

124

impostas atualmente ao uso da propriedade privada. Esta posição contraria toda uma
evolução histórica de socialização da propriedade privada, além do mais, vai contra
disposições constitucionais. Sendo assim, esta linha de raciocínio deve ser rechaçada, pois
sua adoção simboliza um retrocesso histórico, social e constitucional latente.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição política do Império do Brazil (de 25 de março de 1824). Constituição Política
do Império do Brasil, elaborada por um Conselho de Estado e outorgada pelo Imperador D.
Pedro I, em 25.03.1824. Rio de Janeiro, 22 de abril de 1824.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). Rio
de Janeiro, 24 de fevereiro de 1891.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº
3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro,
1º de janeiro de 1916.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Rio de
Janeiro, 16 de julho de 1934.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 10 de novembro de 1937. Rio de Janeiro, 10
de novembro de 1937.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946. Rio de Janeiro, 18
de setembro de 1946.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília, 24 de janeiro de 1967.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Emenda
Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Edita o novo texto da Constituição Federal
de 24 de janeiro de 1967. Brasília, 17 de outubro de 1969.

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.


Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 5 de outubro de 1988.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

125

_______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. DF: Brasília, 10 de janeiro de
2002.

GIL, A. C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 4º ed., São Paulo: Atlas, 1994.

GODOY, Luciano de Souza. Direito agrário constitucional: o regime da propriedade. 2º Ed.


São Paulo-SP. Atlas, 1999.

NETO, Maria Saab. A propriedade privada (s./d.). Disponível


em:http://www.direitonet.com.br/%20artigos/exibir/2392/A-propiedade-privada. Acesso:
mar. 2009.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 8º Ed. São Paulo. Atlas, 2008.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

126

O ESTATUTO DA CIDADE E OS INSTRUMENTOS DE PRESERVAÇÃO


PATRIMONIAL: O CASO DO ENGENHO BENINCÁ EM PASSO FUNDO
– RS

João Telmo de Oliveira Filho (autor)1


Greice Barrufaldi Rampanelli (coautora)2

Resumo: O presente artigo pretende apresentar e discutir alguns dos instrumentos de


preservação abordados pela legislação brasileira, sobretudo pelo Estatuto da Cidade (Lei
10.257/2001) evidenciando a importância da preservação de prédios e áreas de interesse
arquitetônico e como estudo de caso analisar o processo que resultou na demolição do
“Engenho Benincá” na região central da cidade de Passo Fundo – RS. Inicia com
considerações sobre a evolução da legislação e da jurisprudência acerca da preservação do
patrimônio histórico e cultural e depois segue com a descrição histórica, arquitetônica e
urbanística do imóvel e por fim relata os fatos envolvidos na tentativa de manutenção do
bem e evitar a sua demolição.

Palavras chave: Estatuto da Cidade. Patrimônio Arquitetônico; Legislação municipal;

1. INTRODUÇÃO

O Engenho Benincá, edifício erguido na antiga área industrial de Passo Fundo foi
demolido em 2020. Mesmo não tendo sido reconhecido pelo governo municipal como um
bem de importância patrimonial, o prédio fazia conjunto com outros exemplares
arquitetônicos de caráter industrial em área próxima a antiga Estação Ferroviária de Passo
Fundo.

Em 2020, verificando-se o forte risco de perda da edificação, foi elaborado Parecer


Técnico, reconhecido e assinado por instituições e profissionais da área da Arquitetura e do
Urbanismo. Contudo, o processo foi arquivado em 2021 sob a justificativa de que o bem não
estava inserido no inventário do patrimônio arquitetônico da cidade e que o seu alto nível de
deterioração estava avançado.

1
Mestre e doutor em Planejamento urbano e regional (Propur-Ufrgs), pós doutor em Direito do Urbanismo,
do Território e do Ambiente (Universidade de Coimbra - Portugal) Professor da Universidade Federal
de Santa Maria.
2
Mestre em Engenharia Civil e Ambiental, Especialista em Cultura Material e Arqueologia, Professora
da Universidade de Passo Fundo.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

127

Considerando esse contexto, o presente artigo pretende discutir os instrumentos de


preservação abordados pela legislação brasileira, sobretudo pelo Estatuto da Cidade,
evidenciando a importância da preservação do Engenho Benincá e as lacunas existentes na
gestão do patrimônio cultural de Passo Fundo. Foram verificadas algumas questões
problemáticas nesse sentido: O prédio tratado aqui possuía inegável importância histórica,
cultural e arquitetônica, ou seja, seria essencial que fosse contemplado em inventário, o que
não ocorreu. Considerando a base legal que determina as ações sobre o patrimônio, fica clara
a não aplicação de inúmeros instrumentos de preservação sobre o Engenho Benincá,
evidenciando a necessidade de Passo Fundo avançar neste campo.

O Estatuto da Cidade como lei nacional de desenvolvimento urbano descreve entre suas
diretrizes a preservação patrimonial e possibilita através de instrumentos como a Outorga
Onerosa do Direito de Construir estabelecer mecanismos de proteção e recursos aos
proprietários de imóveis. Esse artigo propõe, a partir do estudo de caso, discutir a
necessidade de efetivação destes instrumentos de preservação.

2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO


ARQUITETÔNICO

Inicia-se essa abordagem citando Pedro Vaz (2019), quando este afirma que:

O conceito de património materializa-se inicialmente na esfera jurídica,


referindo-se ao conjunto de bens propriedade de uma determinada pessoa
ou colectividade. Esta perspectiva é válida para o contexto arquitectónico
e cultural, que corresponde ao conjunto de bens pertença de uma população,
região ou país, cuja importância pode ser local ou planetária, e que
ultrapassa largamente a sua tradução em montante monetário.

O valor dado a um determinado bem, material e/ou imaterial, ocorre quando há o


entendimento da sua importância, e esta pode ser de caráter histórico, cultural, estético, entre
outros e, portanto, deve ser preservado no sentido de dar continuidade à transmissão do seu
significado para as gerações futuras.

Considerando a arquitetura um bem cultural material, esta torna-se inevitavelmente


um resultado sócio cultural:

Por cultura material poderíamos entender aquele segmento do meio físico


que é socialmente apropriado pelo homem . Por apropriação social convém
pressupor que o homem intervém, modela, dá forma a elementos do meio
físico, segundo propósitos e normas culturais. Essa ação, portanto, não é
aleatória, casual, individual, mas se alinha conforme padrões, entre os quais
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

128

se incluem os objetivos e projetos. Assim, o conceito pode tanto abranger


artefatos, estruturas, modificações da paisagem, como coisas animadas
(uma sebe, um animal doméstico), e, também, o próprio corpo, na medida
em que ele é passível desse tipo de manipulação (deformações, mutilações,
sinalações) ou, ainda, os seus arranjos espaciais (um desfile militar, uma
cerimônia litúrgica). (MENESES, 1983. p. 112)

Nesse sentido, Pereira (2017, p.49) defende que

...boa parte dos aspectos sociais – se não todos eles – está representada ou
materializada em objetos ou na arquitetura. O campo ideacional encontra
neles uma forma de a sociedade exprimir-se e permitir que gerações futuras
tenham acesso às formas de pensamentos de grupos anteriores a nós.

Ao falar da transmissão das culturas passadas para as gerações futura, fala-se também
sobre a questão da identidade, sendo este aspecto fundamental de toda e qualquer sociedade
na garantia do protagonismo das pessoas. Jorge (2000, Pag. 20) reforça essa ideia:

“Património sempre teve a ver com identidade, com valores não materiais,
simbólicos, e com a memória dos indivíduos e dos grupos. Sem memória
não há pessoa, não há projecto, não há sentido de comunidade – só
máquinas delirantes e egoístas, monstros em que tememos transformar-
nos”.

Sendo assim, fica clara a necessidade da preservação do patrimônio em toda e


qualquer sociedade. O problema é não só a existência de legislação comprometida com a
preservação, mas, mais que isso, a gestão eficaz dos bens de interesse patrimonial.

O caso do chamado antigo Engenho Benincá, localizado no bairro Rodrigues,


próximo ao centro de Passo Fundo é um reflexo dessa situação. Pertence à uma zona da
cidade onde encontram-se vários outros edifícios do mesmo período de construção e estilo
arquitetônico.

A falta de atenção dada ao prédio provocou um processo de degradação gradual,


sendo objeto de incêndio intencional no momento da discussão de sua preservação
(conforme laudo realizado) consequente tanto das ações naturais do tempo, quanto de ações
humanas intencionais.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

129

3. PATRIMÔNIO HISTÓRICO E A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO E


JURISPRUDÊNCIA DE PROTEÇÃO DE BENS HISTÓRICOS E CULTURAIS

Por meio do Decreto/Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 foi criado e


regulamentado o processo de tombamento de bens históricos e culturais a nível nacional no
Brasil, definindo o tombamento como instrumento de proteção legal e criando o órgão
responsável pela constituição e preservação do patrimônio nacional: o Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN). (BRASIL, 1937)

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reforça a importância da


proteção de bens de interesse patrimonial, em seu artigo 5º, inciso LXXIII informando que
todo e qualquer cidadão é parte responsável pela preservação do patrimônio histórico e
cultural.
No artigo 24, inciso VII, quando trata das competências dos entes federados, a
Constituição Federal descreve que é responsabilidade União, Estados e Distrito Federal
legislar concorrentemente sobre a proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico,
turístico e paisagístico. No artigo 30, inciso IX, diz que cabe aos “Municípios promover a
proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora
federal e estadual” (BRASIL, 1988).
O artigo 215 da Constituição Federal estabelece que o Estado deve proporcionar e
incentivar o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e a
valorização e a difusão das manifestações culturais, o que inclui, no inciso I, a “defesa e
valorização do patrimônio cultural brasileiro” (BRASIL, 1988).
O artigo 216 trata especificamente os bens que constituem patrimônio cultural
brasileiro:

Constituição Federal de 1988

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material


e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

130

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às


manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
§ 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá
o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância,
tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação. (BRASIL, 1988).

O parágrafo primeiro do artigo 216 da Constituição Federal aponta respectivamente


que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, “promoverá e protegerá o
patrimônio cultural brasileiro”, por meio de “inventários, registros, vigilância, tombamento
e desapropriação e de “outras formas de acautelamento e preservação”. (BRASIL, 1988).
(grifei)
Os parágrafos 2º, 3 e 4º do artigo 216 dizem que “cabem à administração pública, na
forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua
consulta a quantos dela necessitem”; que a produção e o conhecimento de bens e valores
culturais devem receber incentivos e, por fim, que “os danos e ameaças ao patrimônio
cultural serão punidos, na forma da lei” (BRASIL, 1988).
O Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257, de 10 de Julho de 2001, “estabelece diretrizes
gerais da política urbana e dá outras providências” atendendo os artigos 182 e 183 da
Constituição Federal.
No seu artigo segundo define como objetivo da política urbana orientar o andamento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana o que inclui a “proteção, preservação
e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural,
histórico, artístico, paisagístico e arqueológico”. (grifei)

Lei 10.257/2001 - Estatuto da Cidade


Art. 2º
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e
construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e
arqueológico;

Em vários outros dispositivos, o Estatuto da Cidade trata da questão patrimonial: No


artigo 37 quando trata do Estudo de Impacto de Vizinhança prevê a obrigatoriedade de
relatório desenvolvido para prever as implicações de um dado empreendimento a ser
construído sobre a vida da população que reside nas proximidades bem como sobre a
paisagem urbana e o patrimônio natural e cultural. (grifei)
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

131

Estabelece também diretrizes e instrumentos direcionados para proteção ambiental e


do patrimônio histórico e cultural, visando “garantir a justa distribuição dos ônus e
benefícios decorrentes do processo de urbanização do território de expansão urbana e a
recuperação para a coletividade da valorização imobiliária resultante da ação do poder
público” (BRASIL, 2001).
O artigo 35 do Estatuto da Cidade descreve a Transferência do Direito de Construir
como um dos principais instrumentos da política urbana que objetiva incentivar a
preservação do patrimônio: Este instrumento deve ser aplicado através de Lei municipal, a
partir de previsão no plano diretor municipal e permite que:

Lei 10.257/2001 - Estatuto da Cidade


Art. 35. Lei municipal, baseada no plano diretor, poderá autorizar o proprietário
de imóvel urbano, privado ou público, a exercer em outro local, ou alienar,
mediante escritura pública, o direito de construir previsto no plano diretor ou em
legislação urbanística dele decorrente, quando o referido imóvel for considerado
necessário para fins de:
(...)
II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico,
ambiental, paisagístico, social ou cultural;

A partir da efetivação deste instrumento por lei municipal o proprietário de um


imóvel tombado ou de interesse patrimonial tem a possibilidade de aplicar o potencial
construtivo que incide sobre sua propriedade em outro lote, ou de vendê-lo a outro
proprietário. Com isso, proprietários de imóveis tombados inseridos em zonas com potencial
construtivo muito acima do que é utilizado podem transferir essa diferença, o que funciona
como incentivo para que os proprietários preservem seus bens patrimoniais. Verifica-se a
possibilidade de compatibilizar a preservação do imóvel com a venda ou troca de
índices urbanísticos pelos proprietários. (grifei)
No Estado do Rio Grande do Sul a Lei nº 7.231, de 18 de dezembro de 1978, que
dispõe sobre o patrimônio cultural do Estado, garante promover “a celebração de convênios
com a União e os Municípios objetivando ações comuns no que tange a preservação e
valorização dos seus bens patrimoniais. ” (RIO GRANDE DO SUL, 1978)
O Decreto nº 31.049, de 12 de janeiro de 1983 determina a gestão do patrimônio ao
Sistema Estadual de Preservação do Patrimônio Cultura e define a promoção e o incentivo
de parcerias entre Estado e Municípios, sobretudo na realização de inventários de bens do
patrimônio cultural rio-grandense, como uma das atribuições do Sistema. Estabelece no
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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artigo terceiro os bens do patrimônio cultural do estado do Rio Grande do Sul: (RIO
GRANDE DO SUL, 1983)

Decreto nº 31.049, de 12 de janeiro de 1983


Art. 3º
(...)
I - os acervos bibliográfico, documental, artístico, administrativo,
jornalístico, notarial e eclesiástico, ligados significativamente à formação
histórica, social cultural e administrativa do Estado;
II - os objetos culturais marcantes da vida pregressa da gente rio-
grandense, de suas etnias, culturas e miscigenações e de seus costumes,
trabalhos, artes, ferramentas, utensílios, indumentária e armamento;
III - os bens representativos de atividades pioneiras no desenvolvimento
dos setores primário, secundário e terciário do Estado, e no de sua infra-
estrutura material, social e administrativa;
IV - as obras artísticas de autores rio-grandenses ou aqui produzidas,
representativas das diversas fases artístico-culturais mercantes para o
Estado;
V - as manifestações folclóricas, em todos os seus aspectos;
VI - as peças de valor paleontológico, arqueológico e antropológico;
VII - as áreas de relevante significação histórica, arqueológica ou
paleontológica;
VIII - as reservas biológicas, os parques, as florestas naturais, a flora e a
fauna nativas;
IX - as construções urbanas, suburbanas e rurais, de expressivo
significado histórico, arquitetônico ou técnico;
X - os monumentos naturais, os sítios e as paisagens de feição notável, e
que, por suas características, devam merecer resguardo por motivos
preservacionistas, educacionais, científicos ou de lazer públicos.

Como visto a preservação de bem de interesse arquitetônico é protegido pela


legislação constitucional e infraconstitucional brasileira. Cumpre ressaltar que não é
necessário para a proteção de um determinado bem que este esteja tombado ou inventariado.
Como exemplo disso, temos os seguintes casos julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. PORTO ALEGRE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.


IMÓVEL PARTICULAR. VALOR HISTÓRICO E CULTURAL. AUSÊNCIA
DE LEI MUNICIPAL QUE INCLUA O BEM ENTRE O PATRIMÔNIO
CULTURAL A SER PROTEGIDO. POSSIBILIDADE DE O PODER
JUDICIÁRIO DETERMINAR A PRESERVAÇÃO DO IMÓVEL. Perigo de
colapso. Interesse público caracterizado. O Poder Público, mesmo ausente Lei
Municipal que estabeleça a preservação do imóvel constante da listagem de valor
histórico cultural, pode determinar ao proprietário sua conservação. Além do valor
artístico, histórico ou cultural que importem na sua preservação, cumpre atentar
para a conservação estrutural, sob pena de se causarem danos à integridade e vida
de pessoas. AGRAVO MINiSTERIAL PROVIDO. LIMINAR CONFIRMADA.
(Agravo de Instrumento, Nº 599327285, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Vasco Della Giustina, Julgado em: 19-04- 2000).
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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No mesmo sentido, aponta-se a ação de tutela cautelar, com pedido liminar, em face
do município de Pelotas na suspensão do Alvará de Demolição do imóvel da família Kraft,
situado na Rua Antônio dos Anjos, nº 631. No caso, havia fortes indícios de que o bem em
questão possuía valor histórico, o que impede, quanto aos seus proprietários, a demolição,
bem como impõe ao Município de Pelotas a obrigação da adoção das providências
necessárias para declaração do valor histórico-cultural do imóvel, como estabelece o artigo
216, § 1º, da Constituição Federal, segundo o qual cabe ao Poder Público a proteção do
patrimônio cultural por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e outras formas de acautelamento e preservação.

Também partes relevantes do acórdão nº 70071040190 (Nº CNJ: 0314213-


69.2016.8.21.7000) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em Ação Civil
Pública contra o Município de Vacaria, na preservação da Catedral Nossa Senhora da
Oliveira.

Muito embora a legislação na Lei dos Crimes Ambientais tipifique como crime
contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural: destruir, inutilizar ou deteriorar: bem
especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial (Lei 9.605/1998, art.
61, I), a jurisprudência tem decidido que não somente o tombamento arquitetônico é
considerado como instrumento de proteção patrimonial conforme acórdão nº
70071040190 (Nº CNJ: 0314213-69.2016.8.21.7000) do Tribunal de Justiça do Estado do
Rio Grande do Sul. (grifei)

Os valores determinados em relação aos índices construtivos, a definição de zonas


de valor histórico, a transferência do direito de construir, por exemplo, são alguns dos demais
instrumentos de proteção patrimonial que o poder público pode e deve aplicar. Desta forma,
a obrigação de manter e preservar prédio incluído ou não no tombamento é tanto do poder
público como do proprietário. (grifei)

4. O CASO DO ENGENHO BENINCÁ EM PASSO FUNDO/RS

A edificação chamada de Engenho Benincá (conhecida na região por Madeireira) era


um estabelecimento de produção de produtos de madeira e que gerou renda muitos anos para
a família, construído no início do século XX. O engenho ocupava a quadra completa, com
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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diversos pavilhões espalhados no lote. Construído em local estratégico, com acesso direto,
no desvio, aos vagões da linha férrea, de modo a permitir o embarque direto da madeira.

A madeireira chegou a ser a mais importante da região, inclusive com o


desenvolvimento do bairro adjacente, a Vila Rodrigues. Ao longo dos anos, a empresa foi
administrada por três gerações da família, porém as gerações subsequentes tomaram outros
rumos profissionais. (TEDESCO; SANDER, 2005).

Em 2011 o engenho encerrou as atividades e se manteve sem uso, apenas fechado


para conservação de equipamentos, até ser demolido em 2020.

Os mesmos autores apresentam informações adquirias através de entrevista com um


familiar dos fundadores da antiga madeireira que reforçam sua importância na história da
cidade: ‘As madeireiras de Passo Fundo normalmente se localizavam próxima à estrada de
ferro. A Vila Rodrigues era o espaço certo [...]. A madeira foi fundamental para Passo
Fundo.’ (Entrevista com Sérgio Lângaro, apud TEDESCO; SANDER, 2005. P.179)

O edifício apresentava elementos da arquitetura industrial dos séculos XVIII e XIX


como formas simples, planta retangular, erguidas em tijolos ou pedras, com cobertura em
duas águas, sustentada por tesouras de madeira bem como esquadrias retangulares também
em madeira. Na sua face mais longa, o edifício apresentava repetição de elementos
estruturais que ficavam evidentes na fachada, criando um ritmo intensificado pela disposição
das esquadrias entre cada um dos intervalos estruturais. As Figuras 06, 07 e 08 ilustram essas
questões. O Imóvel ficava localizado entre as ruas 7 de setembro, Dr. Vergueiro e Rio
Branco, Bairro Rodrigues, em Passo Fundo. (Parecer Técnico, 2020)

A Figura 05 mostra a localização do antigo Engenho Benincá, marcado em vermelho,


em relação aos demais edifícios industriais tombados.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Figura 1– Localização do imóvel e dos bens tombados no entorno

Fonte: Imagem de Satélite Google Earth.


Elaborado pelos autores

Sua maior face acompanhava o comprimento do lote, que ficava de frente para a via,
se destacando na paisagem, especialmente por ter sido erguido em uma bela alvenaria
aparente, distinguindo-se dos prédios do entorno. (Parecer Técnico, 2020)
É evidente a relação deste exemplar com os demais do mesmo período, ou seja, havia
uma importância, além de arquitetônica e histórica, de conjunto, com valor estético que
deveria ser preservada e poderia ser explorada cultural e economicamente. (Parecer Técnico,
2020)
A Figura 06 mostra o prédio do antigo Engenho Benincá, já em estado de
deterioração.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

136

Figura 2 – Detalhe da fachada em tijolo aparente, com a marcação dos pilares e a


repetição dos elementos de esquadrias

Foto: Sandra Barzotto Floss

Figura 3 – Detalhe da estrutura de sustentação em madeira da cobertura

Foto: Sandra Barzotto Floss

Figura 4- Prédio e sua situação em relação à via


Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

137

Foto: Greice Barrufaldi Rampanelli

Muito próximo do local tratado aqui, está o prédio da antiga estação férrea, como se
verifica na Figura 5. O espaço foi, há pouco tempo, revitalizado, recebeu novos usos e
dinamizou significativamente aquele espaço urbano social e economicamente. Foi realizado
um trabalho de modernização das instalações para que os novos usos pudessem ocorrer
adequadamente e, ainda assim, foi possível manter as características do imóvel que o tornam
tão importante para a história da cidade. (Parecer Técnico, 2020)

O caso dos prédios do Moinho e do Silo (2 e 3 na Figura 4) também reforça a


possibilidade de compatibilizar antigo e novo. Ambos funcionam como estabelecimento de
cultura e lazer, movimentando no turno da noite a região e, da mesma forma que na antiga
estação, as instalações novas foram inseridas sem comprometer a linguagem da edificação.
(Parecer Técnico, 2020)

Fica clara a possibilidade de aproveitar o valor patrimonial do antigo Engenho


Benincá, ampliando as atividades culturais e sociais que se estabelecem no eixo da atual
Avenida Sete de Setembro, mantendo aquele importante exemplar histórico. Cumpre
ressaltar a importância do conjunto arquitetônico como um todo, do qual fazia parte o antigo
engenho. (Parecer Técnico, 2020)

A apresentação das legislações relacionadas à temática do patrimônio apresentadas


anteriormente, comprova que é possível compatibilizar o patrimônio arquitetônico com o
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

138

desenvolvimento econômico da cidade, gerando inclusive recursos financeiros para os


proprietários e a preservação de bens de interesse comum da sociedade.

Em 2020, em razão da eminente possibilidade de demolição do imóvel, foi


encaminhada denúncia ao Ministério Público do Estado do RS, Promotoria de Justiça
Especializada de Passo Fundo que deu início ao Procedimento nº 00820.001.190/2020.
Ao mesmo tempo, diante de informações sobre o início da demolição foi
encaminhada denúncia ao Conselho de Arquitetura e Urbanismo – CAURS, à Comissão de
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS e elaborado e encaminhado parecer
com assinatura de dezenas de profissionais à promotoria. Também foi oficiado para a
Secretaria Municipal de Obras a solicitação da não autorização da demolição no local
enquanto estivesse sendo analisado pelo Ministério Público se o bem possuía valor histórico.
A Secretaria informou que a demolição foi embargada,
Cumpre ressaltar a importância da manifestação do CAURS encaminhada no
processo:

“uma vez que foi caracterizado dano irreversível ao patrimônio, afigura-se


necessária a compensação da permanência da sua memória na sociedade de Passo
Fundo através de medidas como: Promoção da importância de preservação do
patrimônio por meio de instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade
(Lei nº 10.257/2001); a aplicação dos dispositivos de proteção previstos no Plano
Diretor Municipal e Código de Obras de Passo Fundo; e existência de profissional
arquiteto e urbanista no quadro do Município habilitado a avaliar e emitir
pareceres relacionados à preservação de edificações de interesse cultural e
artístico.” (MINISTÉRIO PÚBLICO-RS, 2021)

Mesmo com todos estes movimentos, foi decidida a promoção de arquivamento do


procedimento na data de 24/09/2021, com a afirmação de que “o prédio não estava incluído
na listagem de bens a serem protegidos em face e de que a edificação estava muito
deteriorada”. (MINISTÉRIO PÚBLICO-RS, 2021)

Entretanto, considerando que o bem foi alvo de incêndio, foram solicitadas


informações à Delegacia de Polícia, que encaminhou laudo pericial a respeito das
circunstâncias do sinistro com a conclusão da perícia, que apontou o incêndio na edificação
como intencional e encaminhada cópia integral do feito para a Promotoria de Justiça
Criminal, para exame e eventuais providências. Também tramita expediente no Ministério
Público do Trabalho (MINISTÉRIO PÚBLICO-RS, 2021)
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

139

5. CONCLUSÕES

Em relação à questão urbana é indiscutível e facilmente constatável a perda de


qualidade de nossos ambientes, bairros e cidades. É o caso de Passo Fundo, e de tantos outros
conjuntos urbanos substituídos ou envoltos por arquiteturas de péssima solução, sem
nenhuma relação com o lugar ou com a identidade local em edificações homogeneizadas ou
padronizadas.

Como visto, a preservação do patrimônio pode se dar através do processo de


tombamento, inventários, decisões judiciais e/ou por outros mecanismos, como por meio de
instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), como a
outorga onerosa do direito de construir.

Por fim, cabe ainda destacar o inquestionável valor como referência cultural,
comprovado através de documento assinado por profissionais e da manifestação de entidades
como o CAU e OABRS contrários a demolição da edificação. De qualquer maneira, a
movimentação não foi suficiente para impedir a demolição do imóvel.

Ressalta-se que o poder público municipal, neste caso, não tomou as medidas
necessárias de acautelamento e proteção, considerando que o edifício de análise não foi
incluído no inventário do patrimônio arquitetônico de Passo Fundo, tampouco define no
plano diretor municipal as áreas e prédios de interesse histórico e cultural do município,
comprometendo todo o sistema de proteção.

Cumpre destacar também a necessidade de proteção do bem discutido aqui em razão


do princípio jurídico da precaução, uma vez que havia manifestação e parecer técnico
assinado por dezenas de profissionais e manifestação de entidades solicitando a sua
preservação, uma vez que apresentava características arquitetônicas importantes e se
encontrava em área que abriga outros prédios de interesse histórico.

De todo exposto, é importante discutir a necessidade de efetivar os instrumentos de


preservação disponíveis no Estatuto da Cidade, a necessidade de ampliar as formas de
proteção, bem como considerar a participação e a opinião da comunidade nestes processos.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

140

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Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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143

UTOPIAS, INSTRUMENTOS E TERRITÓRIO NO DIREITO URBANO


— 20 ANOS DE ESTATUTO DA CIDADE

Jorge Guilherme Francisconi1

Resumo: A inserção de território e da ideologia no indefinido ramo do direito urbano ou


urbanístico emoldura a narrativa e avaliação de conferências, que a OAB/RS promoveu para
comemorar "20 anos do Estatuto da Cidade”, a partir de uma vivência acadêmica e prática
profissional (pública e privada) que remonta à década de 1960. Itens específicos de palestras
proferidas pelo jurista Fernando Alves Correia sobre o direito urbano português; Vanêsca
Buzelato Prestes sobre “Corrupção Urbanística e o Estatuto da Cidade" — tema de sua
dissertação de doutorado; e Victor Carvalho Pinto sobre "Passado, Presente e Futuro do
Estatuto da Cidade — o impacto de PL nº 775/83 no Estatuto da Cidade; instrumentos para
governança urbana e Código de Urbanismo. As análises apontam para o impacto da ruptura
ideológica de 1980; objetivos e instrumento do direito urbano cuja origem remonta ao ideal
da cidade organizada e aprazível preconizada pelo urbanismo e "urban planning” mediante
a ordenação do território — como adotado no período desenvolvimentista (1964 / 1984). A
ruptura dos ano 80 coloca a utopia do “direito à cidade” na Constituição Federal de 1988 e
torna-se hegemônica na teoria e no uso do direito urbano na gestão e governança urbana,
enquanto o terri-tório permanece tangenciado. O Estatuto da Cidade correspondeu ao novo
ideal e, decorridos 20 anos de sua aprovação, carece de mudanças para melhor atender novas
demandas e exigências da urbanização. A imprecisão e limitações do direito urbano
brasileiro é um desafio frequentemente apontado e para cujo encaminhamento o ensaio
oferece alternativas.

Palavras chave: Planejamento Urbano, Estatuto da Cidade, Direito Urbano e Urbanistico


Instrumentos Urbanísticos, Lícito e ilícito urbano.

As conferências e palestras que OABs estaduais promoveram no 20º aniversário do


Estatuto da Cidade legaram um conjunto de sugestões, críticas e propostas de
aperfeiçoamento, de novas ideias e novos conceitos. Um acervo riquíssimo que, se bem
usado, permitirá aperfeiçoar o direito urbanístico2 que sustenta a gestão e a governança
urbana no país — mas isso depende de iniciativa da OAB/BR.

1
Arquiteto FAU/UFRGS (1966), Mestre em Planejamento Regional e PhD em Ciências Sociais pela Syracuse
University (1972), criador/ coordenador PROPUR / UFRGS, Coordenador do texto e execução da PNDU do
II PND. Dirigiu entidades federais (EBTU, DENATRAN) e lecionou na UFRGS, UFSM, Universidade de
Paris XII, CNAM, FGV, UnB. Consultor BIRD e BID. Membro INSPER, IHG DF E ICOMOS CO.
2
Direito Urbanistico e Direito Urbano são sinônimos neste texto. A advogada Claudia Dutra entende que "O
direito urbanístico é o que temos consagrado na CF, e é uma disciplina com suas especificidades” e "que direito
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Cada conferência estadual que assisti adotou um rumo próprio. Alguns exaltaram o
Estatuto da Cidade, outros avaliaram temas transversais, outros entenderam que a "lei não
pegou” e/ou que seus instrumentos foram pouco usados. Em alguns estados houve palestras
que ofereceram visões aprofundadas sobre o direito urbano, com novos conceitos e
importantes proposições. Como ocorreu no Congresso de Direito Urbanistico da OAB/RS,
onde Fernando Alves Correia tratou da evolução e do cenário atual do direito urbano
português enquanto utopias e conceitos jurídicos eram analisados por Vanêsca Buzelato
Prestes, em palestra sobre "Corrupção Urbanística e o Estatuto da Cidade" e Victor Carvalho
Pinto avaliava instrumentos do direito urbano ao tratar do "Passado, Presente e Futuro do
Estatuto da Cidade." Fábio Scorel Vanin também tratou do conceito de Grandes Projetos
Urbanos (GPU) — outra proposta inovadora.

Os palestrantes abordaram temas importantes segundo os cânones, conceitos e ritos


adotados no Direito Urbano e os assisti com o olhar de quem, desde os anos 60, dedica-se
ao urbanismo e ao planejamento urbano, em universidades e no poder executivo federal. Seja
como fundador, professor e coordenador de Programas de Pós Graduação; seja como
formulador e gestor de políticas urbanas e de atividades setoriais urbanas e regionais.
Acompanho o direito urbano desde os anos 70, quando apoiei Hely Lopes Meirelles e Eurico
Andrade de Azevedo na redação de minutas de projetos de lei aprovadas, em 1976, na
Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana (CNPU). Minutas que
resultaram na Lei do Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº6.766/79) e no Anteprojeto de Lei
de Desenvolvimento Urbano, publicado pelo jornal Estado de São Paulo em maio de 1977 e
embrião do Projeto de Lei Nacional de Desenvolvimento Urbano (PL nº775/83) da Câmara
dos Deputados.3

Como “outsider" que acompanha a evolução e os novos rumos do direito urbano,


apreciei a solidez dos conceitos expostos por Fernando Alves Correia, fui provocado pela
instigante fala de Vanêsca Prestes sobre licito/ilícito, corrupção urbanística; direito urbano
e direito político, o direito à cidade e de planejamento urbano sustentável definido por

urbano é toda a normatividade de demais disciplinas que incidem nas áreas urbanas.” No documento adoto os
conceitos de "stricto sensu" e "lacto sensu", respectivamente.
3
ver MEIRELLES, Hely Lopes. O Direito de Construir. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 1979.
Escreve Hely: "Esse anteprojeto de lei foi elaborado por nós e pelo Prof. Eurico de Andrade Azevedo, sob
orientação do Secretário da CNPU, urbanista Jorge Guilherme Franciscone (sic), após exame de todos os
subsídios apresentados pelos demais integrantes da mesma Comissão, técnicos de órgãos oficiais e de
Prefeituras." p.101. Claudia Dutra coordenou a área jurídica da Secretaria Executiva da CNPU.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

145

tridimensional metáfora, de cilindro contendo balões com "feixes de leis". Na palestra de


Vitor Carvalho Pinto vislumbrei roteiro para aprimorar nosso direito urbanístico. Desde sua
descrição das origens de instrumentos do Estatuto da Cidade e avaliação do atual estado da
arte até suas propostas para aprimorar o direito urbano — com destaque para Código de
Urbanismo inspirado naqueles de países ibéricos, saxões e França.

Os apontamentos abaixo tratam de temas que atraíram a atenção e suscitaram


dúvidas, ou que reavivaram preocupações antigas, como integrar o “meta-direito urbano"4
com normas urbanísticas vinculadas à territorialidade e promover a multidisciplinaridade na
gestão e planejamento urbano. Escutei novos conceitos, como ilicitude e corrupção
urbanística, e novos instrumentos para o nosso direito urbano. O texto promove um encontro
de passado e presente na construção do futuro. Com pontos e contrapontos que têm, como
objetivo, fomentar um direito urbano sustentado por marcos jurídicos sólidos, consistentes,
claramente definidos e efetivos. Porque só assim será possível promover a efetiva
qualificação da gestão, governança e qualidade de vida em cidades e metrópoles.

*** ***
A territorialidade é aqui destacada porque o território é componente inerente e
essencial à questão urbana. Tanto no saber como na prática urbanística. O território é o
“locus" de usos, ocupações, transformações, direitos e da práxis no solo, no solo-criado e no
sub-solo urbano. Apesar disso, perdeu importância depois que houve uma ruptura nos
fundamentos do direito urbanístico que acompanhou a redemocratização do país, nos anos
80 Até então, o direito urbanístico era aquele “ramo do direito que estuda o conjunto de
legislações reguladores da atividade urbanística, isto é, aquelas destinadas a ordenar os
espaços habitáveis.” Como destacou Claudia Dutra, coordenadora jurídica da SE / CNPU,
"havia uma clara estratégia de desenvolvimento territorial e urbano para a qual a atualização
da legislação urbanística era peça fundamental."

A partir do Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU) e da Constituição


Federal de 1988,5 o direito urbano passou a enfocar "menos na ordenação do território e mais

4
“Metadireito urbano" porque orientado para aspectos abstratos e conceituais do direito urbano, em contraponto ao
direito aplicado e pedestre adotado na gestão, governança e na práxis urbana.
5 FERNANDES, Edésio.A Nova Ordem Jurídico-Urbanística no Brasil. Revista Magister de Direito Imobiliário,

Ambiental e Urbanistico. nº2, pp.5 - 26. Ver Anais do V Congresso Brasileiro de Direito Urbanistico. Manaus 2008. O
Direito Urbanístico nos 20 anos da Constituição Brasileira de 1988 - Balanço e Perspectivas.. Organizado por Nelson
Saule Junior et al. Porto Alegre, Magister. 2009
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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no fruto das relações sociais que devem ser juridicamente reguladas, isto é, na ‘regulação da
produção social do espaço urbano.'”6 Linha de pensamento que tornou-se dominante e
alterou profundamente os marcos teóricos, prioridades e práticas do planejamento urbano e
territorial, a partir dos anos 80.

Os fundamentos de uma ruptura e o impacto na ordem existente estão presentes nas


palestras da OAB/RS. O primeiro conferencista descreve a integração harmônica com novos
conceitos que foi alcançada em Portugal; a segunda introduz novos conceitos e imagem tri-
dimensional dos "feixes de leis” de ramos do direito que sustentam a produção social no
"espaço" urbano; o terceiro avalia a presença de conceitos e instrumentos criados para gestão
e governança de "espaços habitáveis" depois da ruptura de 80 e aponta para demandas atuais
que estão exigindo um novo direito urbano.

As narrativas de cada um, sobre questões do direito urbano, produziram um conjunto


de pontos e contrapontos altamente enriquecedor e onde vale destacar a importância do
território, em suas diferentes escalas bidimensionais e cartesianas (bairro, cidade, metrópole,
região) no direito urbano “lato sensu”. Aquele que orienta e sustenta a gestão, o planejamento
e a governança urbana a partir da integração de saberes e práticas da ciência política,
urbanismo, demografia, geografia, economia, planejamento, sociologia, administração
pública.
*** *** *** ***
O Jurista português Fernando Alves Correia, unanimemente saudado como maior
autoridade do direito urbanístico lusitano, tratou da evolução do direito urbanístico e o uso
de novos conceitos e instrumentos em Portugal desde sua integração na União Europeia,
com a consequente adoção dos princípios europeus de sustentabilidade em suas avaliações
ambientais. O que resultou na adoção de objetivos da UE para sustentabilidade urbana em
sua legislação urbanística.

Com isso, a sustentabilidade urbana tornou-se conceito chave na implementação da


sustentabilidade maior, visto que afeta aspectos sociais, ambientais, culturais, territoriais,
econômicos, além de medidas quanto à poluição sonora — aos municípios cabendo fazer
plantas e fiscalizar níveis de ruídos. Além de medidas para reduzir as causas das alterações

6 MEDAUAR, Odete. Caracteres do Direito Urbanístico. Revista dos Direitos Difusos, Rio de Janeiro, Instituto
Brasileiro de Advocacia Pública. (IBAP), agosto 2000, in Direito urbanístico, pt.wIkipedia.org.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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climáticas, com adesão ao plano nacional de energia e clima estabelecido pelo governo
português. Dentre outros.

Quanto a sustentabilidade urbana "per se", destacou a importância de combater a


degradação física das cidades mediante a promoção de mescla social, com planos diretores
que adotem zoneamentos plurifuncionais e zoneamento de inclusão em territórios urbanos.
Também apontou para necessidade de "travar o alastramento das cidades” e preservar "áreas
rústicas" — meta sustentável adotada em muitos países europeus. Para atender as escalas
internas das cidades, a norma nacional portuguesa estabelece categorias de planos urbanos
segundo a escala territorial da área urbana planejada, distinguindo o plano diretor do plano
de urbanização do plano de pormenor.

Fernando Alves Correia apontou a importância de planos que promovam a qualidade


das cidades, com oferta de acesso e mobilidade com inovação. Destacou a importância da
participação para que o "cidadão não seja mais o objeto”, mas que fique "face a face" com
os setores público e privado porque "todos têm direito." Os modos de participação
envolvendo "da ascultação à concertação", e podendo ser preventivos (antes do plano) ou
sobre o plano, cabendo ao cidadão o direito de "consagrar sua opinião" para assim
influenciar a ação do setor público.

Quanto a reabilitação urbana — tema atualíssimo para que haja a revitalização das
áreas centrais de grandes cidades, a preservação do valor econômico de bens imobiliários e
a preservação do patrimônio histórico cultural — lembrou como seu uso foi essencial na
recuperação de áreas degradadas em Lisboa e em o Porto, no suporte ao turismo e nas
atividades econômicas locais. Destacou a importância da segurança, do desenho e da
morfologia na reabilitação urbana e de a comunidade ser os "olhos das ruas”. Os PDUs sendo
instrumentos que utilizam o direito urbanístico para incentivar e promover a valorização do
patrimônio cultural.

Como exemplo de como os princípios do direito urbanístico devem estar presentes


no planejamento urbanístico, o jurista Alves Correia destacou a "importância do
planejamento não discriminar o uso do território" e adotar "procedimentos igualitários" visto
que esta igualdade é imanente ao plano e transcende ao plano. E ressaltou que Planos podem
estabelecer diferenciações que outorguem direitos sobre o que pode ser feito, mas evitando
sempre tipologias que promovam "desigualdades não igualitárias.”
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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O Jurista Fernando Alves Correia tratou de complexas questões do direito urbanístico


e indicou caminhos para nosso direito urbano quando retratou a solidez, amplitude e
maturidade do direito urbano português, onde o conceito e uso de cada instrumento
urbanístico está amparado por normas jurídico administrativas precisas e transparentes.
*** *** *** ***
O lícito e o ilícito como forma e manifestação de corrupção urbanística, a partir do
direito urbanístico,7 foi o instigante tema da Doutora Vanêsca Buzelato Prestes8 que, em sua
douta exposição, apresentou inovadores conceitos teóricos, distinguiu o direito público do
direito político, tratou do Estatuto da Cidade e avaliou o direito à cidade, o direito
constitucional e o "feixe de direitos" que apoia o desenvolvimento urbano sustentável.9

O conceito de corrupção foi definido a partir da teoria de sistemas, onde a corrupção


em sistemas — como o religioso, moral, científico, jurídico, político — é definida a partir
de dicotomias próprias. No sistema jurídico, a corrupção é definida pelo "lícito versus
ilícito”; no sistema científico pelo "falso versus verdadeiro” e no sistema da moral pela
dualidade entre “bem e mal”.10 O lícito ou ilícito urbano dependendo da observância do
"tratamento jurídico" em cidades, onde o "descumprimento ou infringência do que foi
definido como lícito/ilícito” irá promover a corrosão de o "sistema do direito urbanístico.”

*** ***
Ao escolher o tema da licitude e da corrupção urbanística “lato sensu”, Vanêsca
Prestes recupera uma preocupação central de juristas, gestores e urbanistas do século
passado. Como Hely Lopes Meirelles, que na minuta do projeto de lei para o parcelamento
do solo urbano incluiu penalidades claramente explicitadas para ilicitudes em cada
atividade.11 Como magistrado, professor, Promotor e Secretário Estadual de Justiça, Hely

7
Outras formas de expressão da corrupção urbanística sendo "Corrosão do Sistema da Cidade“, "Corrosão dos Sistemas
que operam na Cidade (ex: direitos e política; economia e direito)”e temas que não são vistos como corrupção,
mas que existem — "o espaço que não se vê.”
8
Agradeço à conferencista pela leitura e correções de versão preliminar. Indico abaixo as transcrições de seu
e-mail e destaco citações de transparências e transcrições de sua conferência . O texto é de minha inteira
responsabilidade.
9
Outras formas de expressão da corrupção urbanística sendo "Corrosão do Sistema da Cidade“, "Corrosão dos
Sistemas que operam na Cidade (ex: direitos e política; economia e direito)”.
10
Há inúmeras áreas do saber cientifico que tratam da dinâmica, da gestão e da governança do território urbano
e por isso integram a ciência urbanística e regional. A validade do conhecimento, em cada uma destas áreas da
ciência, depende de hipóteses, estudos e aferições cientificas para que se estabeleça o que é falso e aquilo que
é verdadeiro.
11
Projeto de Lei do Senado nº18 / 1977, que “Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e dá outras
providências”.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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entendia que as leis são inócuas sem a clara indicação de procedimentos administrativos e
de penalidades para procedimentos ilícitos — seu tratamento ao conceito de lícito/ilícito
sendo diferente daquele adotado pela Prof. Vanêsca.

A conferencia apresentou os resultados alcançados em recente dissertação de


doutorado, o que justifica natureza acadêmica dos conceitos adotados, como o "ceteris
paribus” pelo qual “tudo o mais permanece constante”, e a natureza “ex-post” das
avaliações, que permite ignorar o “ex-ante” (o que aconteceu antes). Mas há também
distorções não sustentáveis de fatos do passado.

Na avaliação de questões seminais e conceitos básicos do direito urbanístico, a Prof.


Vanêsca adota o revisionismo histórico do Movimento da Reforma Urbana (MRU) quando
adota a Constituição Federal de 1988 (CF 88)como gênese do direito urbanístico. Razão pela
qual sua narrativa histórica ignora origem e evolução do direito urbano no Brasil12 bem como
os marcos normativos para gestão e planejamento urbano que forma sancionados a partir da
Constituição de 1969. Este tema foi esquecido pela Prof. Vanêsca e analisado pelo Doutor
Victor Carvalho Pinto.

*** *** ***


A corrupção urbanística depende, sustenta a conferencista, da "qualificação jurídica
atual do sistema jurídico cidades” que a Constituição brasileira estabeleceu quando passou
a tratar a política urbana em capitulo da Ordem Econômica e não mais como tema do sistema
da Política”. Desta forma a Constituição estabeleceu "uma disciplina constitucional13 que
faz nascer um direito à cidade, e é este "direito à cidade, por sua vez, que produziu um

12
Na origem e gênese de códigos e leis urbanas estão acampamentos militares e cidades planejadas, normas de convivência
e "códigos de postura", normas e leis de ordenamento territorial e edilício, planos de embelezamento, de saneamento e de
infra-estrutura viária urbana. Bom exemplo sendo a "Recopilación de Leyes de las Indias" de 1680 — modelo de código
urbanístico. Nos dias de hoje, a Wikipedia define Direito Urbanístico como aquele “ramo do direito que estuda o conjunto
de legislações reguladores da atividade urbanística, isto é, aquelas destinadas a ordenar o s espaços habitáveis.” Mas logo
muda de rumo e adota o entendimento do MNRU: “Apesar disso, o enfoque está menos na ordenação do território e mais
no fruto das relações sociais que devem ser juridicamente reguladas, isto é, na ‘regulação da produção social do espaço
urbano.” Fato correlato foi a Emenda Constitucional nº 19/1977, que alterava "a redação da alínea e, item XVII do artigo
8º da CF, atribuindo competência à União para legislar sobre normas gerais de desenvolvimento urbano." Emenda apoiada
pelo Executivo, aprovada em Comissão e que não chegou a Plenário.
13
O entendimento da conferencista é que o direito urbanístico, como disciplina constitucional, tem sua gênese na CF 88.
O que coloca no limbo e no esquecimento o direito urbano que sustentou leis de planos diretores urbanos implantados a
partir do século XVIII, bem como leis estaduais e federais, e normas jurídico-administrativas que atenderam preceitos
constitucionais do século passado, que "tratavam do ordenamento dos espaços habitáveis." Ou seja: havia um direito urbano
naquela época. Desta forma, a conferencista segue o pensamento dominante, em Seminários de OABs e IABs, no atual
"estado da arte” do direito urbano. Observe-se que, em eventos comemorativos do Estatuto da Cidade, a maioria dos
expositores considerou que o direito urbanístico brasileiro surgiu a partir da Constituição, nos anos 80. O entendimento foi
corrigido na palestra de Victor Carvalho Pinto (abaixo), que recolocou a questão do território urbanizado como foco da
teoria e da prática da gestão, da governança e do planejamento urbano.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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processo de diferenciação funcional que separou a dimensão política da dimensão jurídica”.


Duas dimensões que não existiam no sistema que precedeu a CF 88 e que teriam surgido
como fruto de processo evolutivo de sistemas ao longo do tempo. Desta forma os “temas
tratados no sistema anterior como possibilidades passam a ser direitos consagrados e
passíveis de serem exigidos“ enquanto a criação da democracia social (ou estado
democrático de direito) encerrou o período autoritário e levou à "qualificação evolutiva" do
direito urbanístico.14

Neste novo momento político, a “corrupção urbanística” resulta da "corrosão de


sistema (que) ocorre quando deixamos de observá-lo e isto se dá porque há um espaço que
não se vê, um espaço naturalizado, no qual não ocorreram as necessárias diferenciações.” O
que implicaria no surgimento do conceito de licito/ilícito e da corrupção urbanística como
produto inerente e dependente do direito urbanístico pós-CF 88, segundo os princípios e
entendimentos que adota.

A "dimensão jurídica do direito à cidade"15 que adota corresponde a utopia criada


por Henry Lefvebre (pensador francês) que orienta o MNRU. Um direito que "nasce das
ruas e é conquistado na luta política” e que está na base de "o que temos a partir da
Constituição Federal (CF 88).” A utopia do direito à cidade sendo "a confluência do feixe
de direitos protegidos pela Constituição, integrados pela política urbana, meio ambiente,
moradia, gestão democrática.” Feixe de direitos alcançado graças às contribuições do
MNRU, ainda que "na Constituição não foram incorporadas vários artigos que o movimento
de reforma urbana propunha a época!”

Após afirmar que sem os atuais princípios constitucionais "não poderiam fazer a
Reforma Urbana, pois esta faz parte, integra o sistema da politica”, Vanêsca Prestes lembra
que "Os princípios de direito urbanístico decorrem da análise jurídica da Dimensão
Constitucional do Direito,” e que “o direito urbanístico é baseado nos fundamentos
constitucionais que tem como objetivo a construção de um meio urbano sustentável.” E é a
partir da sustentabilidade urbana que a Prof. Vanêsca estabelece seu mais criativo e
desafiante conceito.

14
FRANCISCONI, Jorge Guilherme. Quando e como renascem as políticas urbanas. São Paulo. Ensaios INSPER,
2021 https://www.insper.edu.br/wp-content/uploads/2021/03/ensaio_jorge_guilherme_francisconi__032021.pdf
15
Segundo Lucia Bogus e Luis Cesar de Q. Ribeiro, do Observatório das Metropoles do RJ, “No Brasil, essa utopia urbana
está traduzida nos princípios da função social da cidade e da propriedade, da descentralização das politicas urbanas e na
gestão democrática participativa.”
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

151

*** ***
A conferencista entende que as duas dimensões (direito urbanístico e direito à cidade)
não existiam no sistema que precedeu a CF 88 e que surgiram fruto de processo evolutivo
de sistemas ao longo do tempo.

Na medida em que permanece em elevado patamar da teoria do direito urbano e dá


prioridade à sustentabilidade urbana e a contribuição do MNRU, a palestrante não analisa o
reducionismo à dimensão social dos artigos 182 e 183 da CF 88, assim como ignora a
importância das dimensões econômicas, urbanas, ambientais e de governança para alcançar
o direito à cidade. As cinco dimensões são fundamentais na dinâmica urbana no solo, no
sub-solo e no solo criado e igualmente sujeitas a atos lícitos e atos ilícitos. As quatro
dimensões acrescidas sendo tão inerentes e essenciais à condição urbana como a função
social — que a atual legislação urbana privilegia a partir de dispositivo constitucional
baseado no "direito à cidade.” O qual corresponde aos "feixes de direito” integrados pela
política urbana" (sic).

Quanto ao lícito/ilícito, qualquer decisão, quanto a um ou outro, depende da


existência de marco jurídico sólido e interdisciplinar que, entende-se aqui, precisa abranger
aos múltiplos fatores e atividades que ocorrem nas cidades e que ultrapassa o conceito
adotado de direito urbanístico. Um "novo direito urbano" (direito urbano “lato sensu”)
corresponde à integração de “varas”, de cada “feixe de leis" vinculado ao território urbano.
Como ocorre naqueles que tratam de aspectos tributários, ambientais, econômicos,
arqueológicos, de segurança, de recuperação urbana, e outros.

Isso porque, sem as varetas dos feixes de leis que são exigidas pela gestão e
governança do território urbano municipal e metropolitano, a utopia do direito à cidade não
será alcançada.
A questão extrapola, é bem verdade, o tema central da conferencista, mas sustenta os
conceitos que adota e constitui uma questão fundamental para estabelecer um direito urbano
“lato sensu” para gestão e para governança urbana e, por extensão, que demarque a fronteira
do lícito/ilícito e da corrupção urbanística de forma ampla, transparente e integral.
*** *** ***
Voltando à conferência, a Prof. Vanêsca expôs o conceito de ”Espaços corruptivos”
como produtos do entendimento que "corrupção/não corrupção são facetas de uma mesma
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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moeda, a corrupção é dos sistemas e não das pessoas, motivo pelo qual precisamos enxergar
os espaços abertos/propícios para incidir.”16 Isso porque o "ilícito se transforma em lícito”
devido às "fragilidades contumazes que facilitam e oportunizam espaços corruptivos” de
nosso sistema jurídico. Como exemplo cita:
"Excesso de discricionariedade administrativa, enorme espaço para concentrações
administrativas, a falta de controle dos processos urbanísticos, a carência de
publicidade das regras, a falta de publicidade dos instrumentos e das possibilidades
existentes, o enorme número de legislações e a precária informação destas."
Por isso há ”práticas que possibilitam a adoção de intervenções personalíssimas,
muito vez casuísticas, que atentam contra o princípio da impessoalidade,” mas sem avaliar
se o casuísmo é necessário ou não, se é a única forma de resolver problemas criados por
normas administrativas conflitantes ou por conflitos do próprio direito urbano com outros
ramos do direito que afetam o uso do território. E conclui lembrando o procedimento de
"criar dificuldades para vender facilidades."
Para reduzir espaços corruptivos e vencer fragilidades sugere a adoção de práticas
inovadoras tal como descritas pelo Jurista Fernando Correia, quando tratou da adequação do
direito urbanístico português ao desenvolvimento sustentável exigido pela União Europeia
(UE). E aponta para possível criação de normas de desenvolvimento urbano sustentável para
evitar casuísmos, por exemplo, no processo participativo, em núcleos habitacionais de
interesse social, na expansão urbana, na preservação de sítios históricos. Temas importantes
que não avançam porque, destaca a conferencista, não dispomos de estudos com a qualidade
exigida para orientar a elaboração de marcos jurídicos e normas administrativas de
qualidade. E conclui lembrando o limitado impacto de planos diretores como componente
inerente ao direito plural da sustentabilidade urbana, na ocupação do território urbano.
*** ***
A palestra trata do licito/ilícito e da corrupção urbanística, mas licito/ilícito é tema
mais amplo porque produzido por inúmeras causas. As fragilidades contumazes, por
exemplo, acontecem por inúmeras razões e muito dos ilícitos que ocorrem se devem:
• A falta de normas jurídico-administrativas para cada instrumento urbanístico da
legislação vigente. Essa ausência de normas complementares mais precisas, com
definição de procedimentos, responde pelo escasso uso de instrumentos que o

16
PRESTES, V., e-mail, op.cit.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Estatuto da Cidade oferece. Assim como responde pelo múltiplo e heterodoxo


entendimento conferido ao uso do "nome" de instrumentos do direito urbano. Um
exemplo sendo o planejamento participativo, adotado em Portugal e no Brasil e
citado pelos conferencistas, como Fernando Alves Correia quando destaca a
“importância da participação” no planejamento para que o "cidadão não seja mais o
objeto” e fique "face a face" com os setores público e privado. Como acima indicado.
Mas para que isso aconteça, o processo participativo português adota normas e
procedimentos bem definidos, com cada reivindicação ao poder público sendo
sustentada por arrazoados bem fundamentados. No Brasil, como descrito na
literatura17 e como sabem todos com experiência em processos participativos
presenciais, as assembleias com frequência assumem caráter populista, por vezes
anárquico, onde cada um verbaliza e exige que sua reivindicação seja aceita. O que,
em tempos de COVID 19, fomenta forte rejeição à presença virtual que novas
tecnologias propiciam e que fortalece a participação da população e apresentação
democrática de propostas e reivindicações.
• O cipoal administrativo observado na gestão e na governança urbana é fragilidade
contumaz produzida pelos atuais marcos jurídicos. Primo: porque os inúmeros ramos
do direito que afetam cidades não foram integrados e compatibilizados. Segundo,
porque não há normas complementares de qualidade e, por último, porque não há
marcos legais atualizados que viabilizem a inovação, eficiência e eficácia oferecida
por bons gestores urbanos, pelo setor privado e pela população, para promover justiça
social, incentivar a economia, fortalecer o meio ambiente e aperfeiçoar a qualidade
de serviços urbanos essenciais.
A precariedade do sistema jurídico administrativo que incide sobre o território
urbano e "rústico" dificulta a definição das ilicitudes e limita a adoção de medidas
administrativas e punições. Esta deficiência fortalece as ilicitudes urbanas e deveria ser uma
prioridade de direito urbanístico “lato sensu”. Desde normas de desapropriação à
modernização de relações e parcerias público / privadas para atender novos padrões de
demandas, incluindo-se aí novas práticas e novas tecnologias, as quais exigem regras claras
e transparentes. Esta iniciativa é necessária para vencer a caducidade e dar mais flexibilidade

17
SANTOS JUNIOR, Orlando Alves e MONTANDON, Daniel T., org., Os Planos Diretores MUNICIPAIS Pós-
Estatuto da Cidade: balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro. Letra Capital, Observatório das Cidades.
IPPUR/UFRJ, 2011.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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executiva a marcos jurídico-administrativos, em muitos casos buscando inspiração nas “soft-


laws” do direito saxônico — as quais correspondem, a grosso modo, às normas da ABNT
sobre o conteúdo de Planos Diretores ou aos conceitos e perímetros de regiões
metropolitanas e aglomerados urbanos definidos pelo IBGE.

O impacto dos espaços corruptivos devidos à falta de normas e legislação qualificada


torna-se mais visível a partir de estudos comparativos com outros países. Como acima
lembrado, em situações em que o sentido de um conceito muda de sentido a cada instante,
ou quando comparado com o adotado em outros países. Isso ocorre com inúmeros conceitos
e instrumentos jurídicos citados no Estatuto da Cidade e não faz sentido usar a mesma
palavra como sinônimo quando as condições são diferentes, ou quando estamos aquém da
maturidade e qualidade, por exemplo, do direito ibérico ou colombiano. Tanto na teoria
como na prática.

Para estabelecer um direito urbanístico maduro e consistente é necessário integrar


conceitos abstratos que orientam o direito urbano (metadireito) em instrumentos e práticas
administrativas utilizadas para sua concretização. O atual distanciamento incentiva a
ilicitude urbana e a incerteza quanto a aplicação prática daquilo que o direito urbanístico
oferece, e permite que a "inteligentzia" se manténha alheia às demandas e dificuldades da
gestão, governança e de carências da cidadania.

A ilicitude também é reforçada pelo fato de que cada estado, município, entidade ou
cidadão aplica as normas legais na forma que melhor lhe convém. Como ocorreu com
estados na questão metropolitana e como acontece quando quando os municípios adotam
conceitos e normas como melhor lhes parece. Uma autonomia que cria uma colcha de
retalhos na gestão e planejamento do território nacional. Na prática, temos hoje cerca de
5.700 "repúblicas urbanas”, cada uma com suas normas urbano-territoriais, enquanto que
ilicitudes só serão reduzidas quando o direito urbanístico for homogeneizado e qualificado.
Para tanto sendo necessário incluir “soft-laws" que estabeleçam, por exemplo, o padrão
cartográfico nacional para planos diretores, tributação, meio ambiente e tudo mais. Ou para
estabelecer o conteúdo e procedimentos para elaboração, aprovação e implantação de planos
urbanos, com procedimentos diferenciados segundo a escala territorial e experiências no país
e no exterior.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Em resumo, para combater o processo corruptivo “lato sensu” é necessário dispor de


direito urbanístico dotado de marco jurídico “lato sensu.” O qual integre diferentes áreas da
ciência urbanística e estabeleça as normas administrativas e procedimentos de gestão,
governança e participação que permitam decisões rápidas, eficazes e transparentes. Por
enquanto não temos marcos jurídicos sólidos para territórios urbanizados. O que há são leis
urbanas “stricto sensu”, cada uma delas tratando de um setor especifico de atividade no solo,
sub-solo e solo criado.
*** *** ***
Quanto ao Estatuto da Cidade (EC), os conceitos de "pré-Estatuto" e “pós-Estatuto”
que Vanêsca Prestes adotou na conferencia sintetizam a importância que confere ao Estatuto
como marco temporal do direito urbanístico e como
“Conjunto normativo que trouxe conceito jurídico de cidade sustentável, "rompeu
com o paradigma urbano/rural (planos diretores também legislam sobre a área
rural”, respeitadas as competências constitucionais do direito agrário), criou
instrumentos urbanísticos, disciplinou os instrumentos para regularização fundiária,
estabeleceu procedimentos de planos diretores.” (destaque nosso)
Lembra também que o Estatuto da Cidade exige planejamento participativo e
estabelece
"o direito às cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.
O direito às cidades sustentáveis envolvendo direitos de cada uma das atividades
citadas, com cada atividade adotando um ramo especifico da teoria de direito, o que tornaria
necessário integrar a pluralidade de direitos inerentes à cidade sustentável. O que implicaria
em ampliar o marco teórico do direito urbanístico para inclusão de áreas do direito puro e
aplicado, até consolidar o conceito jurídico de cidade sustentável.

O tratamento jurídico da cidade sustentável seria, portanto, mais do que o direito


urbanístico “stricto sensu” visto que o “tratamento jurídico das cidades precisa ser
compreendido e reafirmado pois engloba um conceito complexo, um feixe de direitos que
precisam coexistir." Em outras palavras, o tratamento jurídico de cidades não corresponderia
apenas ao direito urbanístico, mas sim a um "feixe de direitos” dotados de um conceito
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

156

integrador que permitisse definir o marco jurídico regulatório para áreas de territórios urbano
e de expansão urbana.

*** ***
A importância que Vanêsca Prestes atribui ao Estatuto da Cidade, como marco do
direito urbano brasileiro, é indiscutível, ao contrário de seus comentários sobre o passado e
sobre aspectos de nosso direito urbanístico. Como quando observa que o EC
• "rompeu com o paradigma urbano/rural (planos diretores também legislam sobre a
área rural, respeitadas as competências constitucionais do direito agrário)”— mas
Hely Lopes Meirelles escreveu que “O 'Plano Diretor' ou 'Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado' (PDUI), como modernamente se diz, é o complexo de
normas legais e diretrizes técnicas para o desenvolvimento global e constante do
Município, sob os aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela
comunidade local." Definição que corresponde às práticas adotadas por IBAM e
SERFHAU, por Prefeituras e por empresas de consultoria durante as década dos 60
aos 80.18
• "criou instrumentos urbanísticos” — mas a grande maioria dos instrumentos do EC
foi copiada do PL 775/83, que, na época, tramitava na Câmara Federal. Victor
Carvalho Pinto tratou desse tema em sua conferencia (ver abaixo) e Roberto Bassul
descreve o fato em sua dissertação de doutorado.19 Vale destacar que o EC
transcreveu, a grosso modo, a maioria destes instrumentos, mas não há normas legais
para seu uso.
• disciplinou os instrumentos para regularização fundiária — mas ainda carecemos de
marco jurídico que corresponda à magnitude do problema da regularização fundiária
. Apesar dos esforços administrativos do Ministério das Cidades e programas do BID.
• estabeleceu procedimentos mínimos para planos diretores, mas sem definir objetivos
e o conteúdo mínimo dos planos. O que resultou em planos diretores urbanos pré-EC
serem idênticos aos planos diretores urbanos pós-EC.
Decorridos 20 anos do Estatuto da Cidade e 40 anos do Movimento da Reforma
Urbana, o impacto do direito à cidade no marco jurídico urbano, assim como na gestão,

18
MEIRELLES, H.L., op. cit., ps. 101, 102. Ver Direito Municipal Brasileiro, do mesmo autor. e FERRARI, Celson.
Curso de Planejamento Municipal Integrado - Urbanismo. São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1977.
19
BASSUL, Roberto. Estatuto da Cidade- Quem ganhou? Quem perdeu? Brasília. Senado Federal, 2005
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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cidadania e governança urbana, ainda não foi devidamente avaliado. Há opiniões favoráveis,
outros acham que a lei "não colou" e outros entendem que pouco mudou com o EC.
Dentre os aspectos mais comentados, pelos que utilizam o EC, está a falta de normas
legais complementares da União, de Estados, IBGE e da Associação Brasileira de Normas
Técnicas (ABNT) quanto ao uso dos instrumentos; a falta de segurança jurídica para
aplicação das normas vigentes na elaboração e implantação de planos diretores de
ordenamento urbano e, em especial, no uso do planejamento participativo. Outros apontam
demandas e instrumentos não previstos no EC para atender novas demandas (reparcelamento
do solo, "retrofit" urbano e edilício), assim como a necessidade de atualizar normas legais
que caducaram, como a lei de desapropriações. Por último há também aqueles que apontam
para a quantidade de direitos que a CF 88 e várias leis garantem ao cidadão, mas sem indicar
a quem cabe o provimento do serviço.
# # #
A metáfora-paradigma da Prof. Vanêsca Prestes, para coexistência de diferentes
áreas do direito, corresponde a mais criativo e instigante momento de sua conferência. O
ponto de partida são os balões que englobam "feixes de direitos” da sustentabilidade urbana
e que estão abrigados dentro de um cilindro. Cada balão corresponderia a um direito
constitucional — meio-ambiente, moradia, patrimônio cultural (material e imaterial),
acessibilidade, mobilidade, gestão democrática, propriedade, saneamento básico, dentre
outros.
Sua metáfora tridimensional para coexistência de "feixes de leis” e "feixes de
direitos” (conceitos usados como sinônimos) foi de como se
“estivéssemos diante de um cilindro dentro do qual há vários balões. Estes balões
representam os direitos hoje protegidos e não podem furar, precisam viver em
equilíbrio, pois a função da cilindro é garantir a coexistência de todos, sendo uma
especie de proteção a corrosão destes."
O entendimento sendo de que, se mantidos os balões no cilindro, os "temas
protegidos pela sociedade (estariam livres) das mudanças ocasionais e de composição das
maiorias, característicos do sistema da politica.” Isso porque cabe "proteger o espaço do
direito frente decisões politicas e evitar que o espaço do direito seja substituído por decisões
da politica.” Tudo para combater o lícito / ilícito, visto que quando “o espaço do direito
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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rompe com seus códigos e adota decisões assumindo posição política, estamos diante da
corrosão, da corrupção do sistema.”
*** ***
Observe-se que, na medida em que cada balão abriga o "feixe de direitos" de uma
atividade inerente à “cidade sustentável”, em cada “feixe de direitos" estarão definidos os
objetivos, diretrizes e conceitos de competência de cada atividade da sustentabilidade. Mas
será necessário acrescentar ”feixes de leis" relativos a gestão e governança urbana bem como
para adequação no território.

Cada “feixe de leis” corresponde ao direito urbano “stricto sensu" porque trata de
uma atividade específica. Em cada feixe de leis haverá, portanto, um certo número de "varas"
que correspondem as aspectos mais abstratos deste ramo do direito e haverá "varas" que
tratam de aspectos práticos da atividade quando aplicada no território municipal. Isso porque
cada "feixe de leis" trata de tópicos abstratos e de tópicos vinculados à prática e aplicação
daquele ramo do direito, com o feixe de cada balão correspondendo a uma atividade do
desenvolvimento urbano sustentável, como meio-ambiente, moradia, patrimônio cultural
(material e imaterial), acessibilidade, mobilidade, gestão democrática, propriedade,
saneamento básico). Além dos balões com "feixes de lei" para saúde, educação, tributos,
cultura, segurança, uso do solo, tecnologias, energia e morfologia.

Em contraponto a harmônica metáfora tridimensional caberia observar que:


• os "feixes de leis" com direitos constitucionais, quando utilizados em atividades-fim
do direito urbanístico (gestão, governança e planejamento do território urbano)
precisam ser compatibilizados, de forma consistente, para uso em território
bidimensional.
• o direito urbanístico “lato sensu” vai além dos "feixes de leis" exigidos pela
sustentabilidade e precisa incluir o direito tributário e orçamentário, o direito
administrativo, as normas do processo participativo, o direito de uso e ocupação do
solo (LUOS) e normas legais que afetam planos diretores municipais e
metropolitanos.
• há novas demandas da sociedade, novas expectativas e exigências vindos do mundo
global (Habitat, ONU) e de novas tecnologias que surgem a todo momento e alteram,
de forma mais ou menos impactante, as condições de vida e a dinâmica urbana.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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• o "cipoal administrativo" vigente, quando fruto do uso isolado de "feixes de lei”,


promove a insegurança jurídica e incentiva a ilicitude e a corrupção urbanística.
O desafio que a Vanêsca Prestes nos lança está em como conciliar a tri-
dimensionalidade do direito urbano sustentado (cilindro, balões e "feixes de lei”) com a bi-
dimensionalidade do território onde esta legislação será aplicada.

A metáfora que corresponde à aplicação de direito urbanístico "latu sensu” seria a de


"amálgamas jurídicos” criados para atender as especificidades de cada área do território
urbano. O amálgama, similar a uma capa abstrata de "asfalto jurídico", consolidaria normas
legais que incidem sobre aquele território ou zona urbana especifica. O amálgama de cada
zona urbana seria produzido a partir da integração de "varas" (itens) retiradas de cada feixe
e que tratam das condições naturais e do uso desejado para aquele pedaço especifico de
território que é espaço bi-dimensional cartesiano.20

Os preceitos de cada ramo do direito precisam ser integrados e harmonizados para


aplicação no território. O direito urbano "stricto sensu" de cada "feixe de direitos” no espaço
tridimensional precisa ser mesclado em direito urbano "lato sensu" bidimensional para uso
no território. O que corresponde a compatibilizar o conteúdo de diferentes áreas do direito
“stricto sensu" sobre aquele território especifico. Um problema que não foi plenamente
resolvido em planos diretores elaborados a partir do IBAM e do SERFHAU, no século
passado, e que permanece no PDUI exigido pelo Estatuto das Metrópoles.

Este desafio não pode ser ignorado porque a territorialização do direito urbanístico é
condição "sine qua non" para promover a implantação ("enforcement") de normas urbanas
destinadas a melhorar as condições de vida da população mediante implantação do ideário
social, econômico, cultural, ambiental e urbano de nossos dias. Bem como por ser essencial
para combater a corrupção urbana e o licito / ilícito que observamos nas atividades
multifuncionais de cidades e metrópoles. Onde infraestrutura e práxis urbana têm nas
atividades econômicas, sociais e ambientais seu tripé de sustentação.

20
O território é um espaço cartesiano bidimensional quanto a usos e funções. O somatório de pontos cartesianos (x,y)
determina a dimensão do território dedicado às cada uma das diferentes funções urbanas (habitação, meio ambiente,
serviços, etc).Aos eixos cartesianos horizontais podem ser acrescidos eixos cartesianos verticais que definiriam fatias
("slices") verticais sobre linhas traçadas no território. Poderiam servir para mostrar o skyline de cada cidade, bairro, rua,
parque. Eixos cartesianos verticais que permitem planejar e/ou avaliar a morfologias e as funções da urbanização vertical
em diferentes áreas da cidade.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

160

Comparando com o passado, a Constituição estabelece hoje a dominância dos valores


sociais e tangencia o econômico e o social. Antes, o desenvolvimentismo foi a grande utopia
e o direito econômico era mais relevante que o direito urbanístico na avaliação de projetos
urbanos. Como ocorreu no julgamento do projeto de Lucio Costa para a Barra da Tijuca,
cuja morfologia foi deturpada por decisão judicial que privilegiou o direito econômico e
alterou morfologia e funcionalidade urbanística de projeto aprovado em lei municipal. Hoje
assistimos a dominância do social frente ao urbano e ambiental.
*** *** *** ***
O tema da conferência de Victor Carvalho Pinto na OAB/RS foi “Passado, Presente
e Futuro do Estatuto da Cidade” e sua opção dar prioridade ao passado e o futuro. Lembrou
sua relação pessoal com o tema visto que o Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano (PL
775/83)21 que inspirou o EC surgiu quando era estudante. Depois participou do Fórum
Nacional Movimento da Reforma Urbana, apoiou trabalhos da Constituinte e fez a defesa
("advocacy planning") do Estatuto da Cidade (EC). No Senado Federal, onde trabalha há 19
anos, atua no aperfeiçoamento das leis e não em sua aplicação. É essa prática profissional
que orienta sua avaliação sobre o futuro do EC.22

Na gênese do EC destaca o projeto de lei PL 775/83, cuja origem remonta à minuta


de projeto de lei elaborado no âmbito da Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e
Política Urbana (CNPU) criada em 1974, a partir da iniciativa de Hely Lopes Meirelles,
Jorge Guilherme Francisconi e Claudia Dutra — 47 anos atrás23. Vale lembrar que a primeira
minuta foi aprovada pela CNPU em 197624, depois divulgada e debatida até ser finalmente
revisada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU) para envio, em
1983, ao Congresso Nacional, com pareceres dos Juristas Hely Lopes Meirelles e Miguel
Reale — 38 anos atrás. O texto foi retirado da pauta da Câmara dos Deputados pelo
Executivo Federal, em 1995,25 mas o PL 775/83 influenciou a Constituição Federal de 1988,

21
O Projeto de Lei dispunha “sobre os objetivos e a promoção do desenvolvimento urbano e dá outras providências."
22
Responsável solitário pelo texto, agradeço ao palestrante pela leitura e correções de versão preliminar.
23
A CNPU, no transcorrer de 1976 / 1978, elaborou e aprovou dois projetos de lei: a minuta da futura Lei nº. 6.766/79,
que trata do parcelamento do solo urbano, e o "anteprojeto da Lei de Desenvolvimento Urbano", publicada no jornal O
Estado de São Paulo em 24 / 05 / 1977, depois transformado no PL 775/83. Ver
https://www.jorgefrancisconi.com.br/2021/09/o-anteprojeto-da-lei-de-desenvolvimento_8.html
24
A minuta de minuta do projeto ide lei que trata do sistema nacional de planejamento e do desenvolvimento urbano foi
aprovada pelos membros da CNPU em reunião realizada em Curitiba, em julho de 1976.
25
O Projeto de Lei do Estatuto da Cidade surgiu no Senado Federal em 1989. Projeto de Lei nº181 de 1989 — “Estabelece
diretrizes gerais da Politica Urbana e dá outras providências."
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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vários de seus itens foram transcritos no Estatuto da Cidade (EC) e, nas décadas seguintes á
sua apresentação, tornou-se objeto de dissertações e teses, de mestrado e doutorado, no
âmbito do direito, arquitetura e geografia.

Dentre tópicos da PL 775/83 que foram incorporados ao projeto de lei e constam no


EC, Victor Carvalho Pinto lembrou itens do artigo que define Diretrizes (Art. 2º) e
instrumentos jurídicos como:26 (i) parcelamento, edificação e utilização compulsórios
(PEUC), o que permitiu que poucos municípios legislassem sobre seu uso, mas sem chegar
à desapropriação; (ii) o direito de preempção, uma alternativa à desapropriação e criação de
Banco de Terras por municípios e estados, não há exemplos a citar; (iii) a transferência do
direito de construir (TDC), adotado em inúmeras cidades grandes; (iv) o direito de superfície,
conceito que consta no Código Civil; (v) as diretrizes de regularização fundiária, que
permanecem insuficientes e foram complementadas pela Leis 11.977/2009 e 13.465/2017;
(vi) o direito de o ministério público e associações comunitárias questionarem o
cumprimento da lei, que tem sido escassamente adotado, e (vii) o planejamento
metropolitano, que é mencionado no EC e objeto do Estatuto da Cidade, mas que não
avançou no país. Alguns instrumentos indicados no PL 775/83 e previstos na legislação
vigente tem sido utilizados em algumas poucas grandes cidades, como São Paulo, Curitiba,
Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, como o Usucapião coletivo, Legitimação fundiária,
Outorga onerosa de alteração de uso, Outorga onerosa do direito de construir, além dos
exemplos de Operações consorciadas em Sao Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba; de Estudos
de impacto ambiental (EIV) vários municípios, ao que somam-se exemplos depressivos de
uso de novos instrumentos.

O PL 775/83, lembrou Carvalho Pinto, também inspirou a edificação compulsória e


inserção da questão metropolitano na CF 88, além de, lembro eu, oferecer proposta sobre
responsabilidades e papel da União, de estados e de municípios no desenvolvimento urbano,
incluir a habitação como serviço comum de interesse metropolitano e proibir "urbanização
que limite o livre e franco acesso às praias e ao mar."

Carvalho Pinto lembrou as “boas-ideias” do PL 775/83 que não foram nem


incorporadas ao EC nem utilizadas em novos projetos de lei, tais como: (i) Coeficiente de

26
Informações sobre uso de instrumentos do EC foram obtidas aleatoriamente. Não encontrei estudos qualificados do
tema.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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Aproveitamento (CA) = 1, que passaria a ser adotado em cidades sem planos diretores para
estimular o planejamento urbano; (ii) Medidas de salvaguarda visando suspender a análise
de projetos pelas prefeituras sempre que novo PDU fosse apresentado para, assim impedir o
protocolo de projetos em conflito com o novo PDU; (iii) Macrozoneamento que estabelece
e define cindo tipos de áreas especiais: de urbanização preferencial, de renovação urbana, de
urbanização restrita, de regularização fundiária e de integração regional; (iv) Cumprimento
obrigatório do PDU municipal pela União e pelos estados, um problema frequente visto que
nem mesmo as Prefeituras respeitam PDs; (v) Expansão urbana para 10 anos, com projeção
demográfica para definir a área a ser urbanizada; (vi) Licenciamento para edificação, o que
difere da exigência de autorização prevista na Lei 6.766/79 para parcelamento do solo, a
autorização permitindo ao poder público negar o parcelamento solicitado de forma
discricionária.

*** ***
Quanto ao Estatuto da Cidade (EC), seu entendimento é de que o Estatuto incorporou
itens que se somaram aos transcritos do PL 775/83, mas sempre orientados para o futuro e
ignorando o presente. Por conta deste enfoque, que chamou de“ desenvolvimentista”, o EC
”não incluiu nem excluiu o zoneamento”, ignora temas como o parcelamento do solo e
demandas urbanas quando excluiu conservação, reforma, reabilitação e regeneração urbana
da edificação e da cidade. Mais importante, o EC não tratou da desapropriação, que é hoje o
mais importante instrumento do setor público para "alterar a cidade existente” e que
permanece regido por decreto lei de 1941 (DL 3.365/41).

Questões igualmente ignoradas pelo EC são suas interfaces com normas de


patrimônio, meio ambiente, mobilidade, saneamento e outros, além de questões da prática
urbanística, como zoneamento; objetivos e conteúdo de plano diretor; reparcelamento, uso e
ocupação do solo urbano, códigos de obras e o poder de polícia. Sem esquecer a questão
metropolitana, acima mencionada.

Lembrando a metáfora da Doutora Vanêsca, sugeriu o Urbanismo como sendo o


cilindro recipiente de balões, cada um com seu "feixe de lei" e convivendo de forma
independente. Cada balão com uma atividade que, para uso no território urbano, precisará
ser integrada com outras. E destacou que "isso está mal resolvido.” A começar pela
zoneamento urbano, que não consta no EC e que, salvo no Rio Grande do Sul, não integra
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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leis de planos diretores. Fato que cria conflitos jurídicos, os quais estão sendo reforçados por
novas leis, como aquela que trata de situações de risco e que exige inscrição em Cadastro
Federal — que sequer existe.

Analisando o presente apontou para o limitado uso de instrumentos criados pelo EC


e, de olhos no futuro, destacou a necessidade de marcos jurídico regulatórios que tratem de
(i) reparcelamento do solo, tema ignorado e necessário para reconverter, por exemplo, áreas
industriais, áreas degradadas e de baixa renda, ou de uso intensivo; (ii) Código de Obras,
instrumento que, por suas características, é objeto de lei nacional em países onde o direito
urbano está consolidado, como Espanha, Portugal, França, e estados dos EEUU; (iii) Poder
de polícia quanto ao licenciamento, multas, demolições e outros; e (iv) Licenciamento
interdisciplinar para evitar os longos prazos observados na aprovação de projetos e para
integrar os inúmeros laudos setoriais exigidos em normas vigentes.

Victor Carvalho Pinto também destacou que a evolução de nosso direito urbanístico
exige Código de Urbanismo. Algo similar aos adotados em países ibéricos, França e países
saxônicos, aqui com outras denominações. Tema que nos remete ao Código de Urbanismo
ou Lei Geral de Urbanismo citados por Hely Lopes Meirelles,27 mas sobre o qual Carvalho
Pinto vai além porquanto sugere procedimentos e temas para o novo Código, com avaliação
de códigos similares, muitos em vigor desde a década de 1950. Sua proposta aponta para
importância de fortalecer o que chama de “tipificação de planos urbanísticos”, o que exigiria
uma normalização mediante regulamentos aprovados por entidades, como a ABNT quando
estabelece o conteúdo de planos diretores. Ou normas técnicas, como os do IBGE para
definir regiões metropolitanas e aglomerados urbanos.

O novo código brasileiro definiria princípios do direito urbanístico, como os citados


pelo jurista Fernando Alves Correa, diretrizes e instrumentos. Dentre os objetivos estaria a
(i) Obrigação de planejamento dotado de especificações sobre (a) Reservas de temas de
planos, com indicação do que deve ser tratado em cada plano e (b) Tipicidade dos planos e
vinculação situacional, com definição dos tipos de planos urbanos a serem utilizados. —
bom exemplo sendo Portugal, onde só há os três tipos de planos urbanos (diretor, de
urbanização, de pormenor) e onde nenhum outro tipo de plano urbano é aceito na gestão das
cidades; (ii) Definição da distribuição dos ônus de investimentos de interesse público; (iii)

27
MEIRELLES, H. L., op.cit, p.101
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Recuperação da valorização imobiliária de imóveis a partir de investimentos públicos; (iv)


Ponderação de interesses públicos e privados; (v) Memória vinculante para compatibilizar
estudos com o tempo de cada projeto e assim assegurar que os projetos estejam coerentes
com os estudos preparatórios.

Quanto a "institutos", Carvalho Pinto entende que o Código de Urbanismo deverá


tratar de (i) Tipificação de Plano, com definição do conteúdo material para que o plano seja
auto suficiente; (ii) Forma de Apresentação dos Planos, no entendimento que aos advogados
cabe elaborar texto com a forma jurídica exigida para preservar a tecnicidade do plano
urbanístico; (iii) Normas Cartográficas nacionais padronizadas, em seus aspectos gráficos e
conteúdo, com forma padrão de apresentação que sustente e garanta a tecnicidade do plano
urbano; (iv) Procedimento a ser adotado em consultas públicas, diferente dos procedimentos
a serem adotados em assembleias públicas; (v) Exigências para garantir a coerência de
projetos com o plano urbanístico.

As normas cartográficas oficiais citadas deverão adotar padrões que, em geoportais


e georeferenciamentos, atendam demandas de atividades tributárias, cartoriais, de
planejamento e de estudos, sem esquecer outras questões práticas. Para enfrentar a exigência
de PDUs serem publicados em diários oficiais (DOUs) que só utilizam o preto e o branco,
uma possível solução seria digitalizar e divulgar PDUs em redes de internet. Para isso sendo
necessário avaliar as condições práticas para implantar essa solução.

O Código de Urbanismo deveria estabelecer métodos que fortaleçam a execução dos


planos mediante gestão fundiária proativa, com provisões que suportem o reparcelamento
do solo previstos em planos sem expropriação, em que proprietários se organizam ou
suportam técnica e financeiramente a execução, ou em que há sociedades de propósito
específico a partir da qual o investidor goza do poder de expropriação. Para alcançar o uso
de instrumentos urbanísticos que fortaleçam a interatividade entre setor público e
proprietários cabe aprofundar estudos sobre métodos como o “land reajustment” previsto em
normas de Curitiba, similar ao “consórcio imobiliário” e nunca aplicado. Ou tratar da
aplicação de novos instrumentos, como a reabilitação urbana citada pelo Jurista Fernando
Alves Correa em sua aula magna, e da aceitação legal da terra como capital de empresas, o
que envolve técnicas e estudos bastante sofisticados.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Quanto a disciplina urbanística, foi indicada a inclusão de clausulas sobre o


licenciamento para parcelamento do solo, edificação, obra pública e atividades (alvará de
funcionamento), estudos de impacto de vizinhança (EIV), com indicação das punições que
cabe adotar para combater ilicitudes, tais como multa, embargo, interdição e demolição.
Por último, o conferencista tratou da implementação (“enforcement”) do Código de
Urbanismo, o qual, por sua natureza intergovernamental (União, Estados, Municípios),
deverá contar com a participação ativa dos estados — os quais têm ignorado a questão urbana
ainda que responsáveis pela segurança pública, policiamento, bombeiros, saúde e educação,
dentre outros. Os Estados deveriam integrar o sistema intergovernamental e compartilhar
responsabilidades a partir de Códigos Estaduais de Urbanismo dotados de tópicos
específicos que atendam às características e peculiaridades do respectivo estado. Só assim
haverá o compartilhamento de responsabilidades entre os três níveis de governo, aos quais
se soma o processo participativo. E lembrou que o estado gaúcho é o único que dispõem de
Lei Estadual de Desenvolvimento Urbano28, com estrutura e tópicos similares aos projetos
para leis nacionais de desenvolvimento urbano, dos anos 70 e 80.
*** ***
A Conferência do jurista Victor Carvalho Pinto recuperou a memória da evolução do
direito urbano; avaliou temas atuais ligados à teoria e a prática, e lançou propostas para o
futuro. Como contraponto ao qualificado enfoque conceitual e acadêmico de Vanêsca
Buzelato Prestes, Carvalho Pinto tratou da evolução das políticas públicas e do direito
urbanístico, desde os anos 70 até nossos dias, com criativo olhar para o futuro, quando trata
de temas com os quais, como bem sabe o leitor, tenho mais intimidade. Entendo que os
relatos, críticas e proposições de sua exposição são auto-explicativas, que a proposta para
que o direito urbanístico adote as “soft laws" do sistema saxônico é prática, oportuna e
necessária frente ao cipoal administrativo e quantidade de "leis que não colam”. Assim como
entender que sua descrição da gênese e evolução do Estatuto da Cidade corrige a narrativa
dominante atualmente adotada e divulgada.

Decorridos 40 anos do Movimento Nacional da Reforma Urbana e 20 anos de


Estatuto da Cidade, é hora de parar para pensar e repensar a instrumentação e a prática
jurídico-administrativa do direito urbano que sustenta a gestão e a governança urbana no

28
Lei 10.116/1994 RS, de Desenvolvimento Urbano. O anteprojeto da lei foi apresentado pelo economista e
ex-prefeito de Porto Alegre, ex-Deputado Guilherme Socias Villela.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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166

país. Cabe revisar leis que caducaram, aperfeiçoar outras e criar normas legais que
introduzam e/ou aperfeiçoem instrumentos que estão sendo exigidos do direito urbano.
Dentre esses, um Código de Urbanismo que defina bases conceituais, instrumentos
normativos, práticas técnico-administrativas e normas técnicas e processuais, dentre outros
tópicos que serão adotados na gestão, governança, estudos e pesquisas sobre a questão
urbana no país.

*** *** ***


A guisa de conclusão vale lembrar que a aula magna do jurista Fernando Alves de
Moraes indicou rumos para o direito urbanístico brasileiro e que as conferências dos doutores
Vanêsca Buzelato Prestes e Victor Carvalho Pinto indicaram questões e temas,
fundamentais, por vezes como ponto e contraponto, do complexo “amálgama" jurídico
exigido para consolidação do direito urbanístico "latu-sensu" que o país carece. O que,
imagino, tenha sido o objetivo da OAB/RS quando convidou tão qualificados palestrantes.

*** *** *** ***

Brasília, agosto de 2021

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168

SENADO FEDERAL Projeto de Lei nº18 / 1977, “Dispõe sobre o parcelamento do solo
urbano e dá outras providências”.
—- Projeto de Lei nº181 / 1989, “Estabelece diretrizes gerais da Politica
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WIKIPEDIA. Direito Urbanistico.


Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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169

ESTATUTO DA CIDADE 20 ANOS DEPOIS:


ENTRE AVANÇOS E DESENCANTOS
Marcelo Leão1

Resumo: Num Brasil cada vez mais urbano, o provimento de infraestrutura e de serviços
compõe o conjunto de benesses motivadoras da vida na cidade. Contudo, não é rara a
existência de áreas nas cidades brasileiras que apresentam condições precárias de uso e de
ocupação. O presente texto tece breves considerações e provocações sobre o papel do
Estatuto da Cidade enquanto indutor da reversão desse quadro, por meio promoção do direito
à cidade nele normatizado. São abordados alguns avanços decorrentes do advento do aludido
Estatuto e desencantos decorrentes de sua ineficácia parcial ou total. O escrito também
oferece provocações quanto aos rumos a seguir em prol de sua efetiva eficácia.

Palavras-chave: Política urbana. Direito à cidade. Estatuto da Cidade.

INTRODUÇÃO

Num Brasil cada vez mais urbano (IBGE, 2015)2 o provimento de infraestrutura e de
serviços compõe o conjunto de benesses motivadoras da vida na cidade. Contudo, não é rara
a existência de áreas, nas cidades brasileiras, que apresentam condições precárias de uso e
ocupação. A regra reinante é que tais áreas sejam ocupadas pelas classes sociais mais pobres,
além de carentes de: vias de circulação adequadamente dimensionadas e pavimentadas,
soluções para o escoamento de águas pluviais, esgotamento sanitário, abastecimento de água
potável, energia elétrica pública ou domiciliar, arborização urbana, e equipamentos urbanos
voltados ao entretenimento e ao lazer. Tampouco se verifica eficiência no provimento de
serviços – como os de transporte público, de educação, de assistência social e de saúde. Em
outras palavras, a presença do que conforma o mínimo necessário para uma vida digna, ao
menos no que guarde relação com infraestrutura e serviços urbanos, nas partes do território
da cidade em que vivem os mais pobres, é escassa. A isso, soma-se o fato que, na

1
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Urbanístico e Ambiental
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestrando em Urbanismo, História e Arquitetura da
Cidade pela Universidade Federal de Santa Catarina. Advogado atuante na área do direito urbanístico,
especialmente prestando assessoria a associações de municípios, municípios, movimentos sociais e
profissionais do planejamento urbano nos processos de formulação, revisão, execução e acompanhamento de
planos, programas e projetos relacionados com política urbana. Membro do Instituto Gentes de Direito.
Conselheiro Regional-Sul do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.
2 O último dado da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios sugere que 84,72% da população brasileira

vive em cidades.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

170

conformação das áreas ocupadas pela população urbana de mais baixa renda, impera, ainda,
a segregação socioespacial.

Seria demasiada pretensão esgotar, num breve ensaio, as causas que geram o contexto
brasileiro de segregação socioespacial a que se encontram submetidas classes mais pobres3.
No entanto, cabe aqui considerar uma afirmação de Ermínia Maricato:

É nas áreas rejeitadas pelo mercado imobiliário privado e nas áreas públicas,
situadas em regiões desvalorizadas, que a população trabalhadora pobre vai se
instalar: beira de córregos, encostas dos morros, terrenos sujeitos a enchentes ou
outros tipos de riscos, regiões poluídas, ou áreas de proteção ambiental (onde a
vigência de legislação de proteção e ausência de fiscalização definem a
desvalorização). (MARICATO, 2003, p. 154).

Somando a ocupação nas áreas mencionadas pela autora ao déficit de componentes


estruturais mínimos necessários para uma vida digna, é possível dizer que, nas cidades
brasileiras, os mais pobres tendem a viver em áreas mal localizadas e mais afastadas; ou em
áreas, ainda que mais centrais, também desvalorizadas e repletas de precariedades.

Desta forma, o que parece ser difícil de negar é que o contexto até agora mencionado
contribui para com a geração de cidades que dificilmente se sustentam, dado o passivo social,
urbanístico e ambiental que carregam consigo.

A BUSCA POR GARANTIAS LEGAIS EM PROL DA SUSTENTABILIDADE


URBANO-AMBIENTAL COM INCLUSÃO SOCIOESPACIAL

2.1 Primeira busca por garantias: o Capítulo da Política Urbana da Constituição

Diante da falta de iniciativa política4 para reverter o quadro de injustiça socioespacial


e de insustentabilidade urbana que significativamente ocorre no país, coletivos e
movimentos populares, junto com entidades acadêmicas e profissionais com atuação em
pautas relacionadas com a política urbana, apostaram na construção de garantias jurídicas de

3 Constituem fonte de extrema qualidade para entender esse contexto obras como Espaço Intra-urbano no
Brasil (VILLAÇA, 1988) e Segregação Silenciosa (SUGAI, 2015). As leituras são de grande valia à
compreensão de como a dinâmica socioespacial brasileira faz valer o domínio de uma classe dominante sobre
outras classes sociais – e estas, quanto mais pobres, mais são prejudicadas.
4 É possível sustentar a falta de iniciativa política pela conduta de agentes públicos a partir da pouca ou

nenhuma formulação de políticas públicas efetivamente comprometidas com a reversão da segregação e da


injustiça socioespaciais; e de agentes privados, quando priorizam realizar empreendimentos de habitação de
interesse social afastados de áreas mais centrais da cidade e com oferta inadequada de contrapartidas
urbanísticas quanto a equipamentos e espaços de fruição pública.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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status constitucional que fossem úteis à efetiva promoção de cidades mais justas e inclusivas.
Para tanto, tais grupos incidiram politicamente, durante a última Assembleia Nacional
Constituinte – ocorrida no segundo quartel do século XX –, de forma crítica e propositiva,
inclusive por meio da apresentação e da defesa de emendas que partiram de iniciativas
populares. De tal incidência, viria a resultar o capítulo da política urbana da Carta de 1988.
Porém, ao contrário do que buscava a emenda popular em questão5, a Carta resultou em
apenas dois artigos:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público


municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de
seus habitantes.
§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades
com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de
desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro.
§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo
urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado
aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão
previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos,
em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e
os juros legais.
Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta
[sic] metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição,
utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde
que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à
mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3º Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião. (BRASIL, 1988).

O resultado da Constituinte ficou aquém do pleiteado pelos mencionados coletivos,


movimentos e entidades. A emenda apresentada buscava prever maiores e mais detalhadas

5 José Roberto Bassul narra que tal emenda apresentava duas dezenas de artigos, e que foi oficialmente
registrada como Emenda Popular nº 63, de 1987 (BASSUL, 2008, p. 10). A defesa oral da aludida emenda foi
feita por Ermínia Maricato.
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garantias, em prol de uma verdadeira reforma urbana no país. Contudo, em última análise, a
busca acabou resultando num contexto de demanda por regulamentações posteriores – o que
arriscou que o pouco que se havia avançado em termos legislativos caísse na, infelizmente
célebre, vala-comum da ineficácia normativa brasileira. Por outro lado, há que se considerar,
não só o acontecimento significativo para a história constitucional e para o direito urbanístico
brasileiros, representados pelo advento de um capítulo dedicado à política urbana num país
cada vez mais urbano; mas, sobretudo, o papel que os dois dispositivos acima reproduzidos,
passaram a desempenhar enquanto indutores à construção de um plexo normativo que viesse
a servir de ferramenta para a promoção de câmbios paradigmáticos na política urbana.6

2.2 Segunda busca por garantias: o Estatuto da Cidade e legislação correlata

O período mais recente da história da legislação urbanística brasileira evidenciou que


tanto a primeira década quanto a metade da segunda década dos anos 2000 foram marcadas
pela edição de normas urbanísticas que viriam, por fim, prestar apoio de ordem regulatória
ao capítulo da política urbana da Constituição.

Ainda que, no plano federal, isso tenha ocorrido mais de dez anos após a Constituinte,
a produção normativa de cunho urbanístico à época foi intensa, tendo gerado resultados
promissores em termos de garantias jurídicas. Destaca-se, nesta nova rodada legislativa, o
surgimento da Lei nº 10.257/2001, oficialmente denominada Estatuto da Cidade – marco
regulamentador da política urbana brasileira, publicado em 10 de julho de 2001, e que passou
a vigorar em 10 de outubro do mesmo ano.

José Roberto Bassul (2004) registra, detalhadamente, o processo legislativo que viria
a resultar no Estatuto da Cidade. Atesta em obra de sua autoria, uma importante referência
histórica7, que o processo não ocorreu da noite para o dia. Tampouco foi pautado por
consensos irrestritos, pois que se alongou por treze anos e foi marcado por intensa disputa.
Conforme sustentado pelo mesmo autor:

6 Ainda que seja fundamental cuidar para que não se promova a ideia ilusória, por vezes, anestesiante, da lei
como solução para todos os males da sociedade – debate longo e necessário, mas que não constitui objeto
central do presente texto –, o fato é que, enquanto a reserva legal for premissa fundamental aplicável aos
poderes públicos, as leis, bem como as demais normas jurídicas que delas venham a se desdobrar, serão
indispensáveis na condição de motivadoras da ação ou da omissão de agentes públicos. O planejamento, a
execução e a revisão de planos, de programas e de projetos de desenvolvimento urbano não escapam disso.
7 Trata-se do livro denominado Estatuto da Cidade: quem ganhou? quem perdeu?, leitura altamente

recomendável para compreender como se deu o processo legislativo do Estatuto ao longo de treze anos de
tramitação no Congresso Nacional.
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perspectivas - Volume VI

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Estavam claras as posições. De um lado, o conjunto de entidades e movimentos


que haviam construído o ideário da reforma urbana apoiava o Estatuto da Cidade
e cobrava sua aprovação pelo Congresso Nacional; de outro, as entidades
representativas do empresariado urbano, encorpadas por instituições de defesa da
propriedade privada como causa política, se opunham ao projeto de lei. (BASSUL,
2004, p. 104)

A delimitação em dois grandes grupos é de grande valia para avaliações destinadas


à compreensão da disputa e de eventuais incongruências e incompletudes em conteúdos da
lei resultante, tema que requer abordagem mais aprofundada – algo também inviável de ser
desenvolvido diante das singelas intenções deste ensaio. Todavia, o que aqui importa
mencionar é que o diploma legal resultante desse processo, além de cumprir, através de seu
art. 2º, a missão de fixar as diretrizes gerais requeridas pelo art. 182, caput, da Constituição
Federal, ainda trouxe avanços significativos ao prever, em seu art. 4º, um rol não taxativo de
instrumentos aplicáveis para os fins da política urbana. Assim, foram recepcionados
instrumentos já consolidados na legislação brasileira – pacificando o entendimento quanto à
aplicabilidade na condição de instrumentos de direito urbanístico – e, ao mesmo tempo,
previstos outros, até então inexistentes ou não adequados às finalidades da lei em comento.
Estes se encontram sistematizados por meio do art. 5º em diante.

O ESTATUTO DA CIDADE VINTE ANOS DEPOIS: O PAPEL DE JURISTAS EM


MEIO A AVANÇOS E DESENCANTOS

3.1 Sobre avanços

Autores de referência em matéria de direito urbanístico chamam atenção para a


juridicização do direito à cidade enquanto ponto positivo trazido pela Lei 10.257/2001.
Dentre tais opiniões, destaca-se a emitida por Betânia Alfonsin (2021), por ocasião de sua
participação em painel acadêmico virtual realizado no dia 22/07/2021.8 Pode-se, realmente,
dizer que a existência de um conceito normatizado de direito à cidade constitui avanço
paradigmático e que, destaque-se, prima pela integração de vários direitos – no caso

8Trata-se do painel Do Movimento da Reforma Urbana ao Estatuto da Cidade: A linha do tempo em 20 anos,
uma promoção de docentes e estudantes de direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Universidade
de Fortaleza (Unifor). A excelente fala da Profª Betânia Alfonsin pode ser assistida através do canal de Youtube
denominado Najuc UFC. O link da encontra-se disponível nas referências ao final deste texto. O painel conta,
ainda, com a não menos brilhante participação da Profª Lígia Melo, do Prof. Edésio Fernandes e do Prof.
Nelson Saule Jr. Recomenda-se, por isto, que se assista ao painel em sua integralidade. A parte do vídeo na
qual Betânia se refere especificamente à juridicização do direito à cidade no Brasil se inicia aos 52 minutos e
38 segundos.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

174

brasileiro, isso ocorre através da expressão “direito a cidades sustentáveis”, que, não à toa,
abre o rol das diretrizes gerais da política urbana previstas no art. 2º do Estatuto da Cidade,
da seguinte forma:

I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra


urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura [sic] urbana, ao
transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e
futuras gerações; (BRASIL, 2001, grifos do autor).

Então, vigora há vinte anos um entendimento legal do que significa o direito a cidade
sustentável – não só definido, como ainda consolidado na condição de diretriz geral de norma
urbanística infraconstitucional. Isso, a propósito, acaba por vincular ações e omissões,
públicas e privadas, relacionadas com política urbana, conforme muito bem enunciado por
Odete Medauar (2005):

No vernáculo, a palavra diretrizes denota o sentido de: linhas reguladoras;


instruções ou indicações para se realizar um plano ou uma ação; orientação; linhas
básicas; balizas; esquemas gerais. Ainda surge como sinônimo de diretivas.
Transposta para a fonte legislativa significa preceitos indicadores, preceitos que
fixam esquemas gerais, linhas básicas, balizas em determinadas matérias;
preceitos norteadores da efetivação de uma política. Tais prescrições
norteadoras dirigem-se, em tese, a outros legisladores, a administradores ou ao
intérprete em geral. (MEDAUAR, 2005, p. 17, grifo do autor).

Uma vez na condição de diretriz dirigida a quem quer que interprete e aplique a lei
conforme a atividade desempenhada, as expressões grifadas na transcrição acima do inciso
I do art. 2º do Estatuto da Cidade se apresentam enquanto componentes de um direito difuso
e coletivo, que busca o efetivo provimento do que há muito vem sendo deficitário para
grande parte da população brasileira – notadamente a mais pobre. É fundamental ressaltar
que não se está, aqui, sustentando que prover infraestrutura e serviços urbanos para os mais
pobres consagre a justiça social. Porém, proporcionar isso a quem é sistematicamente
vitimado pela injustiça socioespacial comporia o mínimo necessário enquanto ponto de
partida para uma vida digna numa cidade.

No campo jurídico e político, não é pouco importante a força que possui a


diretriz/definição mencionada, enquanto motivadora legal para, por exemplo:

 o cumprimento de obrigações atribuídas às administrações públicas no que toca ao


provimento, no espaço e no tempo, de infraestruturas e de serviços urbanos;
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

175

 o exercício de atribuições institucionais do Ministério Público no âmbito da política


urbana;
 as atividades de fiscalização dos tribunais de contas quanto à incorporação das
prioridades urbanísticas dos municípios aos ciclos orçamentários;
 a atuação da Defensoria Pública em favor da tutela e da implementação de direitos
para a população hipossuficiente;
 o proferimento de decisões judiciais em sede de conflitos urbanos;
 a promoção do alinhamento da atividade parlamentar, seja esta de ordem legislativa
ou fiscalizatória, com a imperiosa necessidade de observância de tal direito à cidade
sustentável normatizado, com seus respectivos componentes;
 o empoderamento do acompanhamento e do controle da população e de associações
representativas dos vários segmentos da comunidade, no âmbito de planos,
programas e projetos de desenvolvimento urbano – o que, aliás é garantido a partir
de outras duas diretrizes gerais do Estatuto da Cidade;9
 o questionamento e o rechaço de ações de agentes privados, em especial no que
concerne a empreendimentos imobiliários ofertados à cidade, que, de alguma forma,
prejudiquem ou obstem o amplo acesso da população às componentes do direito em
questão.
A juridicidade conferida ao direito à cidade no Brasil constitui, assim, um avanço
trazido pelo Estatuto da Cidade, na medida em que possibilita primar pela observância, de
forma integrada e complementar, das componentes que o delimitam, criando uma
interdependência entre elas – sob pena da cidade não se sustentar, tampouco ser justa e
inclusiva, tanto em termos físico-territoriais como ao longo do tempo.

Ganha sentido o alegado quando se observa os riscos trazidos pelo planejamento e


pela execução de planos, de programas e de projetos urbanos, quando trabalham com
componentes do direito à cidade de maneira isolada e sem uma necessária visão sistêmica.
É que uma obra de infraestrutura, um empreendimento ou uma oferta de um serviço urbano,

9 Art. 2º [...]: II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas
dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano; [...] XIII – audiência do Poder Público municipal e da população
interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente
negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população; [...]. (BRASIL,
2001).
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

176

seja público ou privado, que não considera a existência de diversas demandas de seu entorno
ou da população, traz consigo o risco de atender uma necessidade, mas prejudicando ou
dificultando a observância de diversas outras. Pode haver risco, por exemplo, nas intenções
de se promover a regularização fundiária restrita à oferta do título imobiliário numa área
carente de infraestrutura e de serviços urbanos; na oferta de habitação de interesse social que
se dá em áreas afastadas das mais centrais e de forma desconectada do transporte e da
mobilidade urbanos, assim dificultando a população de ter acesso a trabalho e ao lazer nos
diversos locais da cidade, inclusive os desfrutados pelos mais abastados; em projetos
ultimamente chamados de revitalização de centro urbano que não consideram possibilidades
de gentrificação ou de descaracterização da cultura local; num enclave urbano do tipo
condomínio fechado que cria grandes extensões de caminhada de uma esquina à outra, do
lado de fora do empreendimento, prejudicando a mobilidade e a segurança pública; na
previsão de uma zona especial de interesse social que não assegura melhorias nas condições
de moradia, de forma a combinar as necessárias qualificações das unidades habitacionais e
de seu entorno com a geração de emprego e renda, bem como com opções de lazer, tudo isso
articulado e sempre buscando a inclusão socioespacial da população beneficiária.

Ficaremos apenas com exemplos acima sugeridos – mas, o que se quer dizer, enfim,
é que há avanço na ordem jurídica brasileira quando, por meio do Estatuto da Cidade, se
acolhe um novo direito reunindo diversos outros, ainda que sejam direitos já previstos
isoladamente em outras normas – seja por meio dispositivos constitucionais ou de normas
específicas. O direito à cidade previsto no Estatuto da Cidade pode, então, induzir
especialmente as administrações públicas e o sistema de justiça a não mais lidar de forma
isolada em favor da implementação de diversos direitos que precisam ser articulados – dada
a ameaça de prejuízo ao objetivo primordial estabelecido para a política urbana brasileira,
que é ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana.10

O Estatuto da Cidade trouxe, ainda, avanços quanto ao planejamento e à gestão


urbanos. A partir dele, foi posto em xeque a prevalência da tecnocracia, e promovida a

10 Conforme art. 2º, caput/Estatuto da Cidade: “Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
[...].” (BRASIL, 2001).
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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participação e o protagonismo social na política urbana, o que requer um exercício contínuo


de combinação da dimensão comunitária com a técnica. Não que a dimensão técnica tenha
perdido a importância, até mesmo porque existem situações em que a prevalência desta pode
vir a ser imprescindível para a adoção de soluções mais adequadas à sustentabilidade da
cidade e à cidadania.11 Contudo, quanto à gestão democrática da política urbana, o que se
quer dizer é que, desde o advento do Estatuto da Cidade, da mesma forma que valores de
ordem moral e política não aceitam que se adentre numa residência de uma família e nela se
promovam intervenções sem a devida autorização de quem lá mora – ressalvadas as
situações admitidas em lei –, não mais se deve aceitar que, em sede de política urbana, se
promova intervenções sem o devido debate e sem deliberação em conjunto com quem vive
na cidade a cidade.12

Finalmente, vale destacar a reversão paradigmática significativa que o Estatuto da


Cidade induz, na medida em que este traz importantes instrumentos voltados ao
cumprimento da função social da propriedade urbana e à justa distribuição dos benefícios e
ônus decorrentes do processo de urbanização – sendo esta, inclusive, uma outra importante
diretriz geral.13

Tais instrumentos têm razão de existência, pois não basta a Constituição Federal
definir que a propriedade urbana terá cumprido a sua respectiva função social quando
observado o expresso no plano diretor do município14, uma vez que o Estado brasileiro – em

11 Pode haver situações nas quais a dimensão técnica tenha de ser priorizada frente a desejos da população,
desde que sempre em benefício desta. Em breve exemplo, chama-se atenção para o caso da ocupação em uma
área que submete a população a riscos de ordem hidrogeomorfológica. Por mais que impere a vontade da
população permanecer na área de risco, uma vez, após processo democrático-participativo, restando exaustiva
e definitivamente comprovada a impossibilidade técnica de permanência, não parece convir prevalecer a
vontade de quem queira residir no risco, inclusive de morte. Todavia, é importante ressaltar que, uma vez que
a técnica conclua pela impossibilidade de moradia num dado local, também a técnica deve trazer alternativas
de moradia em outro, inclusive no que diz respeito à oferta de soluções no sentido da viabilidade financeira, e
até mesmo política, das mesmas, sobretudo quando a comprovadamente inevitável remoção envolva população
de baixa renda.
12 Habitantes temporários de uma cidade também podem ter voz e vez em processos de tomada de decisão

quanto ao rumo da mesma. Um exemplo que torna possível perceber a legitimidade do habitante temporário é
o caso de comerciantes de feiras livres que moram em outros municípios de uma dada região metropolitana, e
que vêm empreender na cidade-sede desta. Imaginemos um projeto urbano que opta por desconsiderar a
legitimidade dos feirantes para opinar sobre o projeto e se lhes retira o espaço de trabalho. Impactos negativos
podem ocorrer de forma significativa na vida desses habitantes temporários, cabendo-lhes o direito de serem
ouvidos e de participar ativamente dos processos decisórios que podem vir a afetar a área da feira-livre.
13 Vide inciso IX do art. 2º do Estatuto da Cidade: “IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes

do processo de urbanização” (BRASIL, 2001).


14 Conforme parágrafo 2º do art. 182 da Constituição, “§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social

quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” (BRASIL,
1988).
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

178

especial o município, a quem cabe a responsabilidade pela execução da política urbana –


deve ter meios à disposição para fazer valer a regra constitucional, quando inobservada pelo
proprietário de imóvel urbano. É por tal motivo que meios são ofertados pelo Estatuto da
Cidade, partindo da diretriz indutora do adequado aproveitamento do imóvel15 e chegando a
ofertar uma série de instrumentos que devem ser utilizados, em sequência e integradamente,
quando tal aproveitamento não ocorre16.

Isso acontece da mesma forma com relação à justa distribuição dos benefícios e ônus
decorrentes do processo de urbanização. Em tal contexto, o art. 4º do Estatuto da Cidade
abre possibilidades de aplicações para buscar realizar a justa distribuição mencionada.
Diversos instrumentos previstos no dispositivo e que se desdobram em outros artigos da lei
são utilizáveis segundo o caso concreto17.

Independente da saída técnica para com a promoção de adequados aproveitamentos


imobiliários e da justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização, o que
vale é chamar a atenção para a oportunidade – inclusive para integrantes do mundo do direito
– de ampliar a visão da cidade para além do lote privado, deixando de tratar a propriedade
urbana sob um arcaico enfoque patrimonialista, algo inadequado se considerado as
necessidades da ordem pública e do interesse social que pautam a política urbana, bem como
a sustentabilidade urbana que deve orientar o desenvolvimento e a expansão das cidades
brasileiras. Nos dizeres de Edésio Fernandes (2002):

É preciso “arrancar” o tratamento jurídico do direito de propriedade imobiliária do


âmbito individualista do Direito Civil para colocá-lo no âmbito social do Direito
Urbanístico. (FERNANDES, 2002, p. 34).

A missão também está dada para a cena jurídica: o Brasil cada vez mais urbano pede
o reconhecimento de uma nova forma de lidar com interesses, por vezes conflituosos, nas
cidades brasileiras. Daí que, desde 2001, o Estatuto da Cidade traz a mensagem da

15 Referência à diretriz do art. 2º, inciso VI, alínea e: “Art. 2º [...] VI – ordenação e controle do uso do solo, de
forma a evitar: [...] e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não
utilização; [...].” (BRASIL, 2001).
16 Trata-se dos instrumentos parcelamento, de edificação e de utilização compulsórios (PEUC), do IPTU

progressivo no tempo e da desapropriação com pagamento em títulos. Estes se encontram previstos nos termos
dos arts. 5º a 8º do Estatuto da Cidade.
17 Destacam-se os três instrumentos referidos na nota anterior, além de outros que, uma vez adequadamente

interpretados e com objetivos expressamente previstos nas normas que o regulamentam em sede local, podem
fazer com que a cidade se beneficie de intervenções públicas ou privadas no espaço intraurbano. Neste caso,
podem ser considerados, sem esgotar a disponibilidade de outros instrumentos, as outorgas onerosas do direito
de construir e de alteração de uso (arts. 28 a 31), as operações urbanas consorciadas (arts. 32 a 34-A) e o Estudo
de Impacto de Vizinhança (arts. 36 a 38).
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Constituição Cidadã e induz a novas formas de planejamento e, sobretudo, à gestão


democrática e sustentabilidade das cidades. Na interpretação e aplicação do Estatuto, caberá
a juristas a reflexão se haverá cidade que se sustente sem provimento de infraestrutura e de
serviços urbanos para quem quer que viva na e a cidade – incluindo-se aí, as presentes e
futuras gerações; se haverá cidade que se sustente sem conferir tratamento privilegiado para
com a população mais pobre, a qual, em regra, sofre com a ausência das benesses que o
processo de urbanização poderia e deveria lhes proporcionar; se haverá cidade que se
sustente sem ampla reparação para com a população negra alijada nas periferias brasileiras,
ainda sofrendo as consequências de uma questionável abolição que não lhes garantiu terra,
teto, trabalho e justiça; se haverá cidade que se sustente caso todos os seus habitantes,
permanentes ou temporários, não tenham participação ativa no processo de produção e de
fruição do espaço urbano; se haverá cidade que se sustente caso prevaleça a ideia de que o
ter se sobrepõe ao ser.

Avanços da importante lei federal em comento podem, portanto, ser observados,


mesmo que ainda residam mais no plano formal do que na concretude. Entretanto, juristas
que atuaram no meio jurídico-urbanístico do século passado, sob o peso da ausência de
motivadores legais que induzissem o trato da questão urbana sob uma perspectiva mais
republicana que patrimonialista, poderão verificar o avanço representado pelo advento do
Estatuto da Cidade, pois, nas disputas pelo espaço urbano, sobretudos as travadas no âmbito
da administração pública e do sistema de justiça, faz significativa diferença dizer que todo e
qualquer povo, indistintamente, tem direito à cidade, ao invés de dizer que deveria ter direito
à cidade.

3.2 Sobre desencantos

Não obstante os avanços em termos formais, parece haver um sentimento em curso


na sociedade civil, segundo qual o Estatuto da Cidade não teria obtido êxito. Isso vai
ganhando sentido conforme se observa o quadro de crescente segregação e de caos urbano
em nossas cidades.

Talvez a situação de nossas urbes não fosse tão perversamente insustentável se o


Estatuto da Cidade tivesse atingido eficácia plena, e, com efeito:

 se a política urbana de nossas cidades fosse efetivamente orientada pela ordem


pública, e pelo interesse social, por ele estabelecida;
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

180

 se o objetivo de ordenar as funções sociais da cidade e da propriedade fossem, de


fato e não apenas de direito, a mola mestra da ação dos agentes públicos e privados
na produção e na gestão do espaço urbano, ao menos contendo os excessos de um
modo de produção que prioriza a propriedade e os interesses de mercado;
 se a execução da política urbana fosse vinculada às suas respectivas diretrizes gerais;
 se os planos diretores tivessem sido elaborados em real consonância com os ditames
do Estatuto, bem como respeitados enquanto instrumento básico da política urbana,18
e, nesta condição, jamais desconsiderados pelo próprio poder público local quando
em situações como obras e projetos urbanos, no licenciamento público de
empreendimentos imobiliários ou na aprovação de leis pela câmara municipal;
 se os ciclos orçamentários municipais incorporassem as diretrizes e prioridades do
planejamento urbano – o que, aliás, também é direito assegurado pelo Estatuto;19
 se a população, principalmente a que sofre com a segregação socioespacial, fosse
partícipe ativa da gestão urbana.
“A lei não pegou” – expressão utilizada em discursos de alguns que noutro tempo
muito acreditaram nela. Mas aceitar isso resignadamente seria o único caminho?

Não soa razoável o discurso da ineficácia, sem considerar que uma lei como o
Estatuto da Cidade, quando pega, mesmo que parcialmente, tira da zona de conforto grupos
de interesse que usualmente se beneficiam, sobretudo econômica e financeiramente, com
uma concepção de cidade que a trata enquanto mercadoria e não como espaço dinâmico,
produzido pela coletividade, e que, por isso, deve acolher a todas e a todos, indistintamente.

Repetindo o outrora considerado, em texto de opinião:

Seria, aliás, ingenuidade acreditar que haveria aceitação tranquila, ampla e


incondicional, dessa lei, sobretudo por parte de quem lucra com a retenção
especulativa e a acumulação financeira, especialmente a obtida por meio de
empreendimentos imobiliários. (LEÃO, 2021, p. 404)

18 Conforme o parágrafo primeiro do art. 182 da Constituição Federal: “§ 1º O plano diretor, aprovado pela
Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e de expansão urbana.” (BRASIL, 1988). No mesmo sentido, o art. 40,
caput/Estatuto da Cidade: “Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da
política de desenvolvimento e expansão urbana.” (BRASIL, 2001).
19 Conforme art. 40, § 1º/Estatuto da Cidade: “§ 1º O plano diretor é parte integrante do processo de

planejamento municipal, devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual


incorporar as diretrizes e as prioridades nele contidas.” (BRASIL, 2001).
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Quem enxerga a realidade sob a ótica patrimonialista dificilmente aceitará o Estatuto


da Cidade. Aqueles que tiverem poder político sobre esferas do poder instituído,
especialmente nas gestões municipais, e que primarem pela prevalência do interesse privado
sobre o público – sobrepondo, portanto, o interesse de lucro sobre o da cidadania – penderão
a atuar pela ineficácia da lei.

Mas, apesar dos desencantos e dificuldades de aplicação plena e eficaz, a lei segue
em pleno vigor – sendo que sua letra fria não será a panaceia para os males das cidades
brasileiras, estas: com trânsito cada vez mais congestionado; com transporte público caro e
retido no congestionamento do trânsito junto com os veículos privados, congestionamento
este causado, diga-se de passagem, por uma concepção rodoviarista que segue privilegiando
o automóvel individual sobre outros modais de transporte; com intensificação de avanços
sobre áreas ambientalmente protegidas, fenômeno urbano, aliás, cada vez mais causado por
segmentos sociais mais abastados e que buscam viver o contato com a natureza ou diante de
uma vista privilegiada para fugir do caos urbano; com um tratamento cada vez mais
perverso para com o povo pobre segregado nas periferias e que ocupam áreas inaptas para
tal não por opção, como muitas vezes é o caso dos mais abastados, senão por necessidade;
repletas de moradias precárias e insalubres para a população de baixa renda; com a
informalidade muitas vezes imperando na produção de seu território.

O que está acima exemplificado, e que infelizmente não resume suficientemente o


quadro trágico de nossas cidades, são situações que não convêm ser desconsideradas e que
contribuem para recrudescer a crença na ineficácia do Estatuto da Cidade. Porém, se o que
se busca é a reversão da tragédia urbana brasileira, de pouco adiantará demasiado foco na
ausência de repercussão positiva do Estatuto na cidade real, sem o reconhecimento de que a
lei é mero instrumento e que o sucesso dela dependerá, em boa monta, da mudança do olhar
da própria sociedade brasileira sobre o urbano. Tal mudança, a seu turno, pede o
reconhecimento da insustentabilidade do modo de produção ora reinante, o qual se mantém
inclusive através da manutenção desigualdades abissais nas cidades – estas, por sua vez,
materializadas através da segregação socioespacial e da negação do direito à cidade,
sobretudo para as classes sociais mais pobres. Mudado o olhar e reconhecida a importância
do direito à cidade para que se evite o colapso urbano, a lei será valorizada enquanto
importante instrumento para induzir mudanças que beneficiem o povo,
indiscriminadamente.
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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Ao que tudo indica, uma mudança de olhar como a acima referida pede que, no
campo político, a cidade siga sendo disputada sem pessimismos e incluindo, nesta disputa,
o empoderamento daqueles quem sofrem com a segregação e com a negação de direitos;
enquanto, no plano jurídico – que, convém observar, não está fora ou imune ao contexto
político – haja dedicação para com o enfrentamento de injustiças traduzidas na negação do
direito à cidade. Em ambos os contextos, a Advocacia é chamada à responsabilidade, em
especial a do ramo do direito urbanístico, para atuar, utilizando como instrumento, leis como
o Estatuto da Cidade, em ações que vão desde a advocacia preventiva até a atuação no campo
da litigância, sem ignorar a necessidade estratégica de incidência político-jurídica, inclusive
através das comissões de direito urbanístico da OAB.

As comissões de direito urbanístico precisam estar vigilantes e em sintonia com o


sentido e com a finalidade de normas fundamentais como o Estatuto da Cidade e, na remota
hipótese de ser possível focar em apenas um elemento imprescindível à efetivação dessa
importante lei federal, devem atuar insistentemente para que a dimensão democrático-
participativa da gestão urbana alcance, concreta e especialmente, os mais pobres. Neste
sentido, vale novamente a reprodução de palavras do eminente jurista Edésio Fernandes,
proferidas logo após a entrada em vigor do Estatuto da Cidade:

[...] é preciso “arrancar” o tratamento jurídico da gestão urbana do âmbito


restritivo do Direito Administrativo para colocá-lo no âmbito mais dinâmico do
Direito Urbanístico, de tal forma que o direito coletivo à gestão participativa das
cidades, também criado pela Constituição Federal de 1988, seja efetivado.
(FERNANDES, 2002, p. 34).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem grandes pretensões de esgotar ideias e opiniões, o presente ensaio tomou como
ponto de partida o fato de que no Brasil as benesses que motivam a vida na cidade são
negadas para um considerável contingente populacional urbano, principalmente o de baixa
renda, o qual mora mal e, em regra, sofre com os efeitos da segregação socioespacial. A vida
urbana para os pobres se dá em condições de precariedade e de carência de infraestrutura e
serviços urbanos – fato que contribui, sobremaneira, para a insustentabilidade social e
urbano-ambiental das cidades brasileiras.

Evidenciando o problema acima como ponto de partida, passou-se à menção a busca


por soluções que pudessem ser induzidas pela lei, para tanto registrando, de forma bastante
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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resumida, dois períodos da história da legislação urbanística brasileira que contaram com
expressiva incidência social e política, e que veio a resultar em dois importantes motivadores
legais – estes úteis enquanto instrumentos jurídico-políticos destinados à reversão da
insustentabilidade das cidades brasileiras que, sempre vale reforçar, atinge mais trágica e
diretamente os mais pobres. Mencionou-se, então o capítulo da política urbana da Carta de
1988 e, especialmente, o Estatuto da Cidade – que, por sua vez, veio a regulamentar o
capítulo constitucional mencionado e que, além de fixar as diretrizes gerais da política
urbana, ainda trouxe avanços significativos ao ofertar um rol não taxativo de instrumentos
aplicáveis para os fins da política urbana.

Em uma terceira parte do texto, se discorreu, num primeiro momento, sobre avanços
verificáveis vinte anos após a edição do Estatuto da Cidade, com destaque para a juricidade
conferida ao direito à cidade, pincipalmente por meio de uma diretriz/definição prevista no
inciso I do art. 2º da lei em comento. Chamou-se atenção para a importância da juricidade
do direito à cidade no Brasil, tendo em vista a força do dispositivo enquanto motivador legal.
Isso é útil para induzir ao cumprimento de obrigações por parte das administrações públicas,
quanto ao provimento de infraestruturas e serviços urbanos; para a atuação do Ministério
público da Defensoria Pública, Tribunais de Contas e do Poder Judiciário no âmbito da
política urbana; para a atuação parlamentar, legislativa ou fiscalizatória, em observância ao
direito à cidade; para o empoderamento do acompanhamento e do controle da política urbana
por parte da população e de associações representativas dos vários segmentos da
comunidade; e para o questionamento e o rechaço de ações de agentes privados que estejam
em dissonância com o direito à cidade previsto na lei brasileira.

Nesta parte do texto, ainda, se chamou atenção para avanço estratégico que o Estatuto
da Cidade trouxe para a ordem jurídica nacional, dado que este, ao promover um direito à
cidade normatizado, traz a possibilidade de induzir poderes instituídos a lidar de forma
sistêmica na implementação de diversos direitos que no meio urbano requerem integração e
complementaridade entre si, sob pena de prejuízo ao objetivo primordial do Estatuto de
ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.
Falou-se, ainda, da busca da superação do referencial tecnocrático que antes imperava no
planejamento e na gestão urbanos, o qual deve ser substituído por uma gestão democrático-
participativa que combine as dimensões técnica e comunitária. Finalmente, neste primeiro
momento da terceira parte do texto, considerou-se, como avanço decorrente da entrada em
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
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vigor do Estatuto, a significativa reversão paradigmática que a lei induz, dada a previsão de
importantes instrumentos voltados ao cumprimento da função social da propriedade urbana
e à justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização. A partir
daí, se chamou atenção para a oportunidade, inclusive para integrantes da comunidade
jurídica do país, de deixar de ver a cidade sob o ângulo do lote privado ou de seguir tratando
a propriedade urbana sob um arcaico enfoque patrimonialista – algo inadequado diante das
necessidades da ordem pública e do interesse social afeitas à política urbana –, e de notar
que a inclusão socioespacial com sustentabilidade urbano-ambiental deve orientar as cidades
brasileiras. Tudo isso foi mencionado como avanços decorrentes do Estatuto da Cidade,
ainda que estejam mais no plano formal que no concreto.

No segundo e último momento da terceira parte deste ensaio, se falou sobre


desencantos diante da eficácia – algumas vezes inexistente, outras insuficiente – do Estatuto
da Cidade, e de aspectos da realidade urbana que, ao mesmo tempo que justificam
desencantos, devem ser assimilados para se compreender que a lei sozinha não conduzirá a
soluções para o grave problemas das cidades brasileiras, pois ainda faz-se necessário disputar
a cidade com um status quo que não aceitará resignadamente que a lei possa retirá-lo da zona
de conforto. Tal disputa precisa ser travada sem pessimismos e buscando o empoderamento
daqueles quem sofrem com a segregação e com a negação de direitos. Também se buscou
mencionar a importância de que o meio jurídico se dedique ao enfrentamento de injustiças
que grassam na cidade, concedendo à advocacia a responsabilidade, sobretudo a do ramo do
direito urbanístico, de utilizar leis como o Estatuto da Cidade em ações de advocacia
preventiva e no campo da litigância, bem como de valorizar as comissões de direito
urbanístico da OAB enquanto meio de incidência político-jurídica.

Tudo o que foi sustentado nas três partes anteriores deste ensaio carregou consigo a
intenção de dizer que o Estatuto da Cidade, com suas diretrizes e instrumentos, representa
um avanço, pois possui força normativa e vinculante sobre qualquer agente público ou
privado que opere no contexto da política urbana – seja esta federal, estadual, distrital ou
municipal – e pode contribuir, enquanto motivador legal, para com a busca por reversão do
quadro dramático de segregação socioespacial brasileiro. Neste sentido, a lei há de ser vista
como fundamento para que o conjunto da cidadania persiga a efetiva observância aos seus
direitos, sobretudo no âmbito da Administração Pública, do Parlamento ou do Sistema de
Justiça. Obviamente, reduzir os avanços da questão urbana à mera previsão legal diminuiria
Direito Urbanístico e Planejamento Urbano. Vinte anos do Estatuto da Cidade: Balanço e
perspectivas - Volume VI

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sobremaneira o que celebrar. Mas, uma vez lançado o olhar sobre algumas conquistas pós-
Estatuto da Cidade, há como vê-las enquanto ganhos significativos.

Ilustrando em situações bem possíveis de serem verificadas no Brasil pós-Estatuto


da Cidade, verifica-se uma conquista significativa a cada vez que a população de um
município se mobiliza e exige participação, invocando o Estatuto em processos de
formulação, de implementação ou de revisão de planos, e em projetos de política urbana –
conseguindo enfraquecer a tecnocracia e o patrimonialismo que alijam a sociedade do
processo; ou quando o direito à participação, alinhado com as diretrizes gerais da política
urbana, é invocado em uma tramitação de matéria legislativa, e esta é suspensa para
realização de uma audiência pública; ou quando o Estatuto da Cidade ampara o Ministério
Público em inquéritos civis e ações civis públicas, objetivando a garantia de espaços de
participação num processo de plano diretor; ou quando um Ministério Público de Contas
passa a verificar se diretrizes e prioridades do plano diretor estão, de fato, incorporadas nas
peças orçamentárias. Ressalta-se, ainda, que, no plano do Poder Judiciário, se não fosse o
Estatuto da Cidade, não haveria motivador legal para precedentes judiciais em matéria
urbanística, mais alinhados com o Brasil urbano do Século XXI, da primeira à última
instância.

Ainda assim, se não houvesse o que celebrar, haveria (e há) o que se preservar, dada
a importância do Estatuto da Cidade para a política urbana do país. A lei é
imprescindivelmente válida, e vários de seus conteúdos decorrem de conquistas da sociedade
que incidiu no Congresso Nacional – sendo que somente isso já bastaria para justificar que
o Estatuto deve ser defendido, inclusive quanto a ameaças do porvir.

A prova da importância do Estatuto da Cidade também pode ser encontrada na reação


de setores mais alinhados com a cidade-mercado, que seguem buscando enfraquecimento da
lei, inclusive pelo desmonte espaços institucionais e de garantias de ordem constitucional.
Assim, não foi por acaso a extinção do Ministério das Cidades e do Conselho Nacional de
Cidades, como não é por acaso propostas draconianas de emendas constitucionais, como é o
caso da PEC-80, que, caso aprovada, em seu rebatimento no território urbano conduzirá ao
sepultamento da função social da propriedade.

Neste sentido, ganha força a necessidade de primar pela manutenção e pela


materialização das garantias do Estatuto da Cidade. Assim, defender quaisquer efeitos dele
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decorrentes que sejam de fato benéficos para a coletividade como um todo, sem distinção,
passa, também, por avançar em outras áreas, mais relacionadas com acompanhamento e com
o controle de resultados já obtidos com base nas garantias jurídicas que a lei oferta.

Já no que concerne ao enfrentamento das ameaças de desmonte, é de suma


importância o empenho da Advocacia em pleitos administrativos e judiciais que preservem
a gestão participativa enquanto importante bem jurídico a ser tutelado; bem como que
promovam a adequada aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade, com foco especial
na reversão do paradigma civilista que muitas vezes sombreia o Direito Urbanístico.

Junto com a atuação advocatícia em espaços dos poderes instituídos, torna-se mais
que imprescindível o fortalecimento e a criação de comissões de direito urbanístico em
seções e subseções da OAB, que devem ter, em suas agendas, a divulgação e o fortalecimento
do Estatuto da Cidade junto à população. Não há que se perder de vista que a conquista de
garantias na política urbana se deu num contexto de busca por uma concepção de cidade para
o povo, indistintamente, a qual vem sendo perseguida desde a Assembleia Constituinte dos
anos 1980 e que choca com interesses contrários a isso – mais alinhados com a ideia de que
a cidade pode até servir às pessoas, desde que não fira negócios. Combater isso é defender
direitos e garantias arduamente conquistados em 1988. A Advocacia não deve se omitir a
isso, pois também é guardiã de nossa Constituição.

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