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Organização

Arno Wehling
Gustavo S. Siqueira
Samuel Rodrigues Barbosa

ANAIS DOS GRUPOS DE TRABALHOS DO

IX
CONGRESSO
BRASILEIRO
DE HISTÓRIA
DO DIREITO

RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Rio de Janeiro
2018
Organizadores
Arno Wehling
Gustavo S. Siqueira
Samuel Rodrigues Barbosa

ANAIS DOS GRUPOS DE TRABALHOS DO

RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Rio de Janeiro

2018
Organização e recebimento dos textos: Taísa Regina Rodrigues
Arte da capa, formatação, layout e editoração gráfica: Leandro S. Lima

C749

Congresso Brasileiro de Hitória do Direito (9.: 2017: Rio de Janeiro, RJ)


[Anais do] IX Congresso Congresso Brasileiro de Hitória do Direito:
Rupturas, Crises e Direito [recurso eletrônico]/ Arno Wehling, Gustavo S.
Siqueira, Samuel Rodrigues Barbosa. – Dados eletrônicos – Rio de Janeiro:
IBHD, 2018.
429 p. il.:
ISBN: 978-85-67300-01-6

Formato: PDF
Requesitos do sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web

1. Direito - Brasil - História - Congressos I. Wehling, Arno. II. Siqueira,


Gustavo S. III. Barbosa, Samuel Rodrigues. IV. Títulos.

CDD 340.098

Ficha catalográfica elaborada por: Thaís Sant’Anna CRB/7: 6088


IX Congresso Brasileiro de História do Direito
De 04 a 06 de setembro de 2017
Rupturas, Crises e Direito

COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO

Corrdenação acadêmica
Arno Wehling
Christian Lynch
Gustavo S. Siqueira
Ricardo Fonseca
Samuel Rodrigues Barbosa

Comissão executiva
Arno Wehling (IHGB/ABL)
Christian Lynch (UERJ)
Gabriel Melgaço (UERJ)
Gustavo S. Siqueira (UERJ)
Julia de Souza Rodrigues (UERJ)
Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR)
Samuel Rodrigues Barbosa (USP)
Taísa Regina Rodrigues (UERJ)

DIRETORIA DO IBHD (2017-2019)

Diretor Presidente
Samuel Rodrigues Barbosa
Diretor Vice-Presidente de Assuntos Institucionais
Arno Wheling
Diretor Vice-Presidente de Assuntos Acadêmicos
Ricardo Marcelo Fonseca
Secretário Geral
Gustavo S. Siqueira
Tesoureiro
Christian Edward Cyril Lynch
Conselho fiscal
Juliana Neuenschwander
Luis Fernando Lopes Pereira

Realização

INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Apoio
SUMÁRIO

Apresentação 9
Arno Wehling
Gustavo Siqueira
Samuel Rodrigues Barbosa

• HISTÓRIA SOCIAL DO DIREITO: CONTINUIDADES E RUPTURAS


O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO: COMENTÁRIOS SOBRE
CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE 13
Paulo Henrique Rodrigues Pereira

A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS


CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO REINADO BRASILEIRO:
OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO
EM 1826, 1829 E 1830 33
Vivian Chieregati Costa

• HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA CRIMINAL


BRASILEIRA (CRIME, PROCESSO E PENAS)
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA 59
João Luiz de Araujo Ribeiro

A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS A PARTIR DAS


ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL 83
Manuela Abath Valença
Fernanda Lima da Silva
Marília Montenegro Pessoa de Mello

PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL


PENAL BRASILEIRA (1930-1945) 95
Gabrielle Stricker do Valle

OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO


PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO 119
Débora Tomé de Sousa

JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES


DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC DURANTE A DITADURA
MILITAR (1964-1969) 139
Rodrigo Alessandro Sartoti
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO
PENAL DO BRASIL IMPÉRIO 161
Danler Garcia Silva

O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO


NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858) 185
Afonso Roberto Mendes Belarmino
Antonio de Holanda Cavalcante Segundo

OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL


CONSTITUINTE DE 1890 E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA,
LOMBROSO E GAROFALO 199
Delmiro Ximenes de Farias

• CULTURA JURÍDICA E DIÁSPORA AFRICANA II


GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA
NO INÍCIO DO SÉCULO XX 225
Bruna Portella de Novaes

ECONOMIA POLÍTICA E ESCRAVIDÃO NA ACADEMIA DE DIREITO


DE PERNAMBUCO 239
Guilherme Ricken

• HISTÓRIA CONSTITUCIONAL
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL 257
Brenner Toledo Rocha

TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA? 271


Wingler Alves Pereira

PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO


DO BRASIL (1824): BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES 289
Cláudio Alcântara Meireles Júnior

EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE


COMPETÊNCIAS NA EDUCAÇÃO DURANTE
A CONSTITUINTE DE 1933-1934 313
Laila Maia Galvão
José Arthur Castillo de Macedo
• DIREITO E EXPANSÃO DA ESTATALIDADE
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7
DE NOVEMBRO DE 1831: MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA
NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 331
Txapuã Menezes Magalhães

O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:


UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA? 353
Liliam Ferraresi Brighente

• DIREITO E JUSTIÇA NA AMÉRICA PORTUGUESA


JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777) 377
Bárbara Alves Benevides

• HISTÓRIA DO DIREITO DO TRABALHO


REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO
CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO 405
Rafael Lamera Giesta Cabral
APRESENTAÇÃO

Acostumadas às certezas, continuidades e teleologias, as pesquisas em


Direito, especialmente no Brasil, pouco pensam em temas complexos como as
Incertezas, rupturas, crises e mudanças de paradigma. O IX Congresso Brasileiro
de História do Direito, realizado entre os dias 04 e 06 de Setembro de 2017,
trouxe ao debate esses temas pouco discutidos.

Organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universi-


dade do Estado do Rio de Janeiro [UERJ], pelo Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro [IHGB] e pelo Instituto Brasileiro de História do Direito [IBHD], o
Congresso teve como tema “Rupturas, Crises e Direito?”. Colocamos aos pes-
quisadores as seguintes questões: quais as formas os direitos assumem nas
rupturas políticas? Como os direitos e seus intérpretes reagem aos processos
de mudança ou manutenção? O direito altera ou conserva uma socieda-
de?

Diversas foram as respostas, os pontos de vista, os enfoques. Esta


publicação é fruto das pesquisas apresentadas nos Grupos de Trabalho do
Congresso e reflete a intensificação dos diálogos que estão sendo desenvol-
vidos na História do Direito.

O que une todos os textos é a preocupação com as fontes e os


problemas históricos e uma análise dos direitos frente a processos de rupturas,
crises e descontinuidades. Esperamos que a obra possa contribuir para o debate.

Boa leitura,
Arno Wehling
Gustavo Siqueira
Samuel Rodrigues Barbosa
Grupo de Trabalho

HISTÓRIA SOCIAL DO DIREITO:


CONTINUIDADES E RUPTURAS
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:


COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ
GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

PAULO HENRIQUE RODRIGUES PEREIRA


Faculdade de Direito do Largo de São Francisco-USP

Resumo
A constituição de uma instituição presente e efetiva como a escravidão não
poderia ter se dado sem uma ampla articulação do sistema jurídico, destinada
justamente a resguardá-la no campo da legalidade. Sendo objeto, portanto, de
disputa dos atores que performam os sentidos possíveis do direito na direção
da construção dos conceitos essenciais para a continuidade, ou encerramento,
do sistema escravista, uma análise sobre a prática do direito pode revelar muito
das tensões e estratégias da sua consolidação. Dessa forma, a avaliação dos
processos do abolicionista Luiz Gama é oportunidade essencial para avaliar esse
jogo de sentidos e disputa de espaços semânticos, bem como compreender
parte do cotidiano desse tema na vida institucional imperial. Esse breve trabalho,
analisando cerca de 30 processos do abolicionista, em sua maioria ações de
liberdade, pretende demonstrar (i) parte das situações violações e situações
fáticas mais constantes nas suas peças e processos, bem como (ii) demonstrar
os aspectos mais centrais da sua argumentação jurídica.

A escravidão foi tema central da vida imperial brasileira, tendo recebido


especial tratamento dos mais variados campos dos saberes sociais. O tema foi
objeto de diversas abordagens pelo pensamento nacional, que enfrentou suas
dimensões pelas perspectivas da sua estruturação econômica, da luta emanci-
patória dos grupos oprimidos, e mesmo da leitura política dos acontecimentos
que marcaram sua trajetória na vida nacional.1 Nessas chaves de acesso ao tema,
bastante atenção tem sido conferida, sobretudo nas últimas décadas, às relações
das instituições jurídicas com a questão da servidão, em um comprometimento
intelectual de uma importante geração de historiadores e historiadores do Direito
que têm buscado superar uma primeira interpretação salvífica e progressiva do
Direito, e da formação da legalidade.2
1 Muitas obras poderiam ser mencionadas para apresentar as fases historiográficas da escravidão. Para ficar
em apenas uma referência, o trabalho de Tâmis Parron. (PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império
do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011).
2 Aqui também seriam muitas as possibilidades de referência. Para dar uma avaliação metodológica poderia
ser citado o trabalho do professor José Reinaldo de Lima Lopes (LIMA LOPES, José Reinaldo. As Palavras e a
Lei: Direito, Ordem e Justiça na História do Pensamento Jurídico Moderno. São Paulo: Edesp, 2004). Tratando dos
mecanismos legais relacionados à escravidão, pode-se mencionar o trabalho de Beatriz Mamigomian (MAMI-
GONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2017), Lenine Nequete, nos seus trabalhos sobre a lei de 71 (Escravos e Magistrados no 2º Reinado. Aplicação
da lei 2.040 de 28 de setembro de 1871. Brasília: Fundação Petrônio Portella, 1988) e sobre a jurisprudência

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

Tal abordagem tem permitido uma visão mais complexa dos mecanismos
que permitiram o funcionamento da engrenagem escravocrata em um Estado
constituído sob instituições jurídicas formais. Nesse quadro, o Direito deixa de
apresentar-se apenas na dimensão de instrumento da emancipação do escravi-
zado, e passa a figurar em uma intrincada teia de representações institucionais,
constituindo-se como campo de disputa de discursos e atores, que o performam
nas mais diversas perspectivas, em um arco de sentidos bastante amplo variado
da busca de manutenção e encerramento da escravidão.

No começo da segunda metade do século XIX, o sistema que sustentava


de pé a escravidão já se revelava complexo e exigia grande articulação jurídica
dos setores produtivos. Tratados internacionais, o Brasil já havia assinado dois: o
de 1818 e 1826, ambos proibindo o tráfico intercontinental. Quando o segundo
fora assinado, os escravistas alegaram que não se deveria cumprir o primeiro,
por ter sido firmado antes da Independência, comprometendo, assim, apenas
Portugal. Celebrado o segundo, o subterfúgio que o escravismo encontrou foi
outro: a divisão dos poderes exigia que um assunto de soberania nacional fosse
necessariamente tratado pelo Parlamento. Assinado pelo rei certo, dessa vez o
vício era de poderes: apenas o Legislativo poderia proibir o tráfico negreiro.

Veio então a lei de 1831, proibindo o que o Brasil já havia proibido duas
vezes: o comércio intercontinental de escravizados. A turbulência da regência
permitiu mais uma ginástica argumentativa, segundo a qual a lei não teria eficácia
prática: os escravistas diziam que a norma caíra em desuso. Como durante o
império, sistema judicial e político se entrelaçavam mais do que a independência
dos poderes deveria tolerar, a terceira proibição também não foi o bastante. Em
1850, o Estado brasileiro proibia pela quarta vez o dito comércio, desta vez sob
os canhões dos navios ingleses aportados nos portos nacionais.

Com a Lei do Ventre Livre, de setembro de 1871, a legislação passou a


prever a possibilidade de o escravo se alforriar por preço justo, além de uma série
de outras regras que, em teoria, deveriam facilitar o processo de manumissão.
Mais uma vez, a escravidão encontrava-se legalmente emparedada, embora nunca
tivesse estado tão consolidada. É essa contradição que permite perceber que já
nessa época a escravidão apenas poderia se manter com um arcabouço bastante
considerável de fraudes, conluios oficiais e distorções legais de toda a natureza.

Com o comércio proibido há décadas e a inovação da lei do ventre livre,


a escravidão estava posta em vias da ilegalidade. Ocorre que esse era o jogo do
escravismo no Brasil: lidando com essa dualidade, oscilava entre o endurecimento

geral sobre o tema (O escravo na jurisprudência brasileira: Magistratura e ideologia no 2º Reinado. Porto Alegre,
RS: Diretoria da Revista de Jurisprudência e outros impressos do Tribunal de Justiça, 1988) e Sidney Chaloub (A
força da escravidão. Ilegalidade e Costume no Brasil oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012).

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

institucional, no campo da legalidade, e a articulação de um sistema pró-escravidão,


na prática. Assim, o país se equilibrava dando sinais de que resolveria a questão
do cativeiro – como requerido pelo imperador na fala do trono de 1871 –, ao
mesmo tempo que a aplicação desse arcabouço institucional que se formava
para conter a escravidão, de fato, não encontrava meios de se firmar, existir na
realidade concreta.

A estratégia dos emperrados não poderia se desenhar sem o Direito: a


operação escravista na segunda metade do século XIX deveria exigir, necessaria-
mente, uma forte articulação dos usos e das práticas legais. Sem a performance
do Direito em uma determinada direção, o escravismo já não era mais possível,
e sustentável. Evidentemente, tais interpretações não poderiam se dar sem dis-
puta, e sem um tensionamento dos sentidos dessas práticas legais pelos atores
de ambos os lados.

Este artigo pretenderá, muito brevemente, demonstrar parte dessa disputa


institucional, através da análise de discussões judiciais. Para tanto, foram seleciona-
dos casos conduzidos pelo advogado abolicionista Luiz Gama, cuja a anotação da
importância biográfica é desnecessária.3 Através dos casos concretos patrocinados
por Gama, será possível compreender a organização ideológica das suas ações de
liberdade, detalhando os argumentos, as normas e os preceitos utilizados no seu
patrocínio judicial. Com isso, é apresentada uma tela de discursos possíveis do
abolicionismo, no seu viés do ativismo judicial. Além disso, na análise das discus-
sões processuais mostram-se práticas daquela sociedade, revelando-se costumes
institucionalmente estabelecidos, as interpretações mais comuns da formação do
Direito, e a sua apropriação pelos grupos de interesse organizados e articulados.

A análise dos casos pode revelar uma visão do Direito pela representação,
através da agência de Luiz Gama, de uma narrativa discursiva das instituições
jurídicas disponíveis, pela composição das suas diversas fontes e arcabouços
necessários aos argumentos formadores das suas petições de liberdade. Essa nar-
rativa é ordenada, inteligível, e hierarquiza bens na direção de formação de um
sentido jurídico. É a formação de uma noção de Direito. O Avesso, nesse jogo
de palavras, é o que se revela na contraface dos casos empenhados por Gama:
analisar o seu discurso jurídico é uma possibilidade de acessar práticas sociais
daquela sociedade, e sugerir uma abordagem da observação do Direito como
linguagem representativa de uma outra agência, em sentido contrário àquela
3 Para compreensão mais completa da biografia e da obra de Gama, alguns autores podem ser mencionados.
Além dos que serão mencionados em notas específicas nesse trabalho, importante anotar os trabalhos de Lígia
Fonseca Ferreira (FERREIRA, Lígia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama. São Paulo: Ed. Imprensa Oficial, 2011),
Elciene Azevedo (AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São
Paulo. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2010), Sid Mennucci (MENNUCCI, SID. O percurso do abolicionismo no Brasil
(Luiz Gama). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938), Luiz Carlos Santos (SANTOS, Luiz Carlos. Retratos
do Brasil Negro: Luiz Gama. São Paulo: Selo Negro Edições, 2010) e Nelson Câmara (CÂMARA, Nelson. O
advogado dos escravos: Luiz Gama. São Paulo: Ed. Lettera.doc, 2010).

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

postulada pelo advogado,4 escondida no factual que ele buscava alterar nos seus
processos judicias, havia também uma performance sobre o direito.

Para o cumprimento desse breve programa, o presente artigo trará, em


primeiro lugar, (i) rápidas percepções metodológicas sobre o tema; para depois, (ii)
demonstrando os casos analisados e suas peculiaridades; (iii) organizar o discurso
jurídico performado por Gama, revelando os usos, invocações, hierarquias e argu-
mentos mais constantes no seu discurso jurídico. Por fim, (iv) serão desenhadas
algumas considerações finais.

I – Considerações metodológicas: Discurso jurídico e ação

Analisar os casos de Gama é, antes de tudo, compreender a formulação


de seu discurso jurídico. Mais do que isso, é promover uma percepção de um
discurso jurídico real, validado na prática do cotidiano dos usos do Direito, in-
dependente de um discurso oficial do Direito, praticado nas academias e nos
círculos oficiais daquela sociedade novecentista.

Os discursos, como atos de fala, revelam-se como elementos de uma


determinada ação. A retórica dos atores políticos e jurídicos constitui a formula-
ção de um princípio de prática social, que estabelece sequências argumentativas,
revela arcabouços da formação ideológica do vocabulário utilizado, e permite a
reprodução dos patamares estabelecidos, bem como dos chamados lances que
buscam estabelecer novas formas de articulação e compreensão de um deter-
minado conteúdo linguístico.5

Esse estatuto estabelece importantes ressalvas sobre o exercício da his-


toriografia das ideias, no sentido de fixar a necessidade de se estabelecer o jogo
dos discursos como aquele que só pode ser compreendido no seu contexto
linguístico. Embora tal percepção tenha em si mesmo conteúdo problemático
face a impossibilidade real da reconstituição desse ambiente virtual de debates,
a sua colocação como parâmetro revela elementos essenciais da prática do his-
toriador, do seu ofício.6

O exercício tradicional da história das ideias pelo estabelecimento de


um ciclo contínuo de supostos diálogos entre grandes autores, aqueles que se
apresentaram como os mais destacados de suas gerações, traz diversos problemas
conceituais para a reconstituição desse contexto afirmado acima. Isso porque, em
primeiro lugar, é muito comum que tais autores, ápices de determinadas culturas,
4 Gama será tratado por advogado nesse artigo, porque, em verdade, esse é o nome correto para expressar
a sua atividade. Além do fato da expressão comumente usada a seu respeito, rábula, ter tom pejorativo, a
Ordem dos Advogados do Brasil concedeu-lhe, postumamente, o título de advogado.
5 J. G. A. POCOCK. Linguagens do ideário político. São Paulo: Edusp, 2013.p. 45.
6 J. G. A. POCOCK. Ob. Cit. p. 38.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

não representassem o entendimento predominante nas sociedades em que fize-


ram parte, ou mesmo o estágio dos debates sociais verificados por ocasião de
um determinado tema. Em segundo lugar, a colocação desse grande debate ao
longo dos séculos, pondo a conversar autores localizados em contextos linguísticos
completamente diferentes, permite a colocação de sentidos de fala absolutamente
inapropriados para a língua em que tal ação foi proferida.

Assim, o risco do desenvolvimento dessa história intelectual é de revelar


como sujeitos expoentes de uma época atores que seguramente não a represen-
tavam, conferindo-lhe sentidos linguísticos que eles não possuíam. Compreender
uma época, ou os discursos de uma época, é fundamentalmente decifrar o seu
vocabulário, revelado no uso cotidiano e recorrente da língua, e não nos seus
lances especiais.7

A complexidade dessa tarefa exige decifrar os chamados “atores menores”,


praticantes de uma língua comum, utilizada e praticada com naturalidade em uma
determinada comunidade intelectual, organizando uma leitura que não pode ser
vertical. Nesse sentido, a compreensão da fala se dá no desnudar de um conjunto
de convenções e sentidos compartilhados, em relação aos quais se pode estabe-
lecer as balizas comuns dessa determinada comunidade que se pretende analisar.

Recriado – com todas as imperfeições já alertadas acerca dessa tentativa


– o ambiente linguístico do debate analisado, pode-se ter mais clareza sobre a
performance dos conceitos utilizados, e como os autores o utilizam na determi-
nação dos seus propósitos. Dessa forma, mesmo os lances mais ousados – dos
atores maiores, expoentes de suas gerações – podem ser reinterpretados com
mais clareza, face a sedimentação dos elementos fundadores do discurso comum
a que eles se puderem inserir.8

É por isso que no campo do Direito, tais fundamentos levam a compre-


ensão de que a análise das instituições tradicionais da prática jurídica – tais quais
a lei, a doutrina consagrada, e mesmo a jurisprudência dos tribunais superiores
– podem levar a compreensão incompleta ou equivocada do uso dos sentidos
possíveis de um determinado discurso em um momento destacado do tempo.
Dessa forma, para além do estruturalismo da constituição dos fundamentos de
um fato bruto jurídico, do qual a norma é o exemplo perfeito, é necessário
compreender a dinâmica institucional da prática dos atores envolvidos. É impor-
tante entender como cada um desses atores moldou, dentro de um repertório
linguístico comum, conceitos destinados a objetivos práticos. O ator jurídico age
politicamente quando fala, e performa conceitos de acordo com essa vontade ativa.

7 J. G. A. POCOCK. Ob. Cit. p. 33.


8 J. G. A. POCOCK. Ob. Cit. p. 33.

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

Todo autor, propulsor de um discurso jurídico, está fazendo algo como


agente quando enuncia um texto. Assim, é importante compreender o seu papel
no debate e considerar que existe uma grande variedade de discursos possíveis
que o debate jurídico pode originar para além, inclusive, do discurso dos atores
jurídicos propriamente. O locus da prática dos conceitos nucleares do direito se
dará em ambientes muito mais amplos dos que aqueles que são tradicionalmente
reconhecidos como ambientes próprios da técnica jurídica. Assim, uma melhor
identificação da linguagem provedora de sentido no debate jurídico se dará pela
tentativa de reunião de um bom conjunto dessas diversas performances, buscando
uma visão mais completa da experiência do Direito.

Analisando-se o panorama dos debates acerca dessas questões, o conjunto


dessas performances gera uma luta semântica, cuja compreensão exige a fixação
das perguntas essenciais que um exercício histórico deve responder: (i) quem
eram os atores que dialogavam? (ii) os seus discursos visavam responder a quem?
Contra quem os atores falavam? (iii) qual a formação linguística (status) que aquela
ideia possuía na época em que foi dita? (iv) quais interpretações dessa fala eram
passíveis de entendimento para a comunidade de falantes daquele momento?
Qual era a língua em curso para aqueles atores?

Gama é evidentemente um ator maior, fato relevado pela sua importân-


cia na historiografia do tema. Entretanto, ao escolher o cotidiano judicial para o
desenvolvimento de sua agência, o advogado participa de uma língua comum
e cotidiana, reveladora dos sentidos daquela prática, dialogando com advogados
comuns, e buscando jurisdição na compreensão de magistrados e autoridades
inseridos em uma comunidade bem demarcada. Além disso, as suas petições
revelam uma linguagem social praticada do escravismo pelas ocorrências mais
presentes naquela sociedade, capazes de revelar violações contínuas e sistemáticas
às noções jurídicas que, em uma análise teórica dos campos da lei ou da doutrina,
poderiam ser vistas como preservadas.

II – Casos Analisados: ocorrências sistemáticas e práticas reiteradas.

Esse trabalho analisou 27 processos judiciais sustentados por Luiz Gama,


dos quais 12 autos foram consultados no Arquivo do Tribunal de Justiça de São
Paulo,9 e o restante extraído de bibliografia especializada. Os processos que não
foram consultados diretamente na fonte judicial foram escolhidos por terem cons-
tado em obras sobre Gama que trataram especialmente das suas modulações no
debate jurídico, ou seja, em trabalhos cujo autor tenha ressaltado, e apresentado,
as fontes da argumentação utilizadas pelo advogado em processos judiciais.10
9 Foram consultados diretamente no Tribunal de Justiça de São Paulo, os casos identificados da seguinte forma:
Pardo Estevam, Luiza e filhos, José e Felippe, Caetano Preto, Braz e Outros, Luiz, menino, Ex-praça Francisco,
Ignácia e outros, Basílio, Apolonia, Roza e Manoel.
10 Os demais casos foram extraídos da disponibilização em inteiro teor das petições de Gama constantes da

18
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Desse total de quase trinta processos, 21 referiam-se a ações de liberdade,


o que as destacam como fontes de observação mais privilegiadas para as questões
centrais desse artigo. Embora não tenha sido possível identificar as datas de algumas
das petições analisadas,11 nos casos mapeados foi possível perceber que as petições
de Gama foram protocoladas entre os anos de 1870 e 1880, especialmente em
um intervalo mediado entre 1870 e 1882, ano da morte de Gama. Apenas dois
casos foram conduzidos antes da promulgação da lei do Ventre Livre.

A análise dos processos de Gama permite que se perceba padrões de


violação dos direitos dos escravizados, sendo bastante comum a aparição de situ-
ações reiteradas nas descrições factuais trazidas pelo advogado nos processos. Essa
percepção das ocorrências mais comumente apresentadas por Gama, combinada
com a análise dos argumentos jurídicos mais utilizados nas suas peças – conforme
descrito no próximo item do presente artigo – pode revelar parte dos discursos
possíveis do escravismo, além de seus usos e apropriações do direito nas práticas
adotadas pelos seus atores comuns.

Evidentemente, os casos mais comuns são os de pessoas reduzidas ar-


bitrariamente à escravidão: mulheres e homens que, gozando de condição de
livre ou liberto, acabaram por ser escravizados ou re-escravizados. Nesse campo,
é possível observar três situações bastante bem demarcadas: (i) a do africano
livre; a (ii) a de mulheres e homens livres sem proprietário que os reivindicassem,
sob os quais se operou uma presunção de escravidão relegando-os à sorte da
aparição de um suposto dono; e (iii) a de escravizados libertos, sequestrados ou
frustrados pelos seus antigos possuidores.

O primeiro caso trata de uma ampla gama de situações, bastante ana-


lisada pela historiografia,12 envolvendo pessoas que tenham sido “importadas”
em território nacional após as proibições do tráfico intercontinental de escravos.
Conforme se verá no próximo item, a legislação brasileira sobre o tema conferiu,
grosso modo, um status de liberdade para todos aqueles que tenham sido desem-
baraçados no Brasil após as proibições da importação de cativos.

Em casos como esses, o trabalho de Gama se desenhou pela tentativa de


demonstrar que o escravizado não era brasileiro nato, e que, assim não o sendo,
não teria idade suficiente para ter sido “importado” para território nacional antes
das proibições do tráfico. Esses eram os casos, por exemplo, de Luiza e seus
filhos, de José e Felippe e de Caetano. Interessante anotar que o advogado não
invoca a condição de livre apenas para aqueles que tenham entrado em território
obra de Nelson Câmara (CÂMARA, Nelson. O advogado dos escravos: Luiz Gama. Ob. cit.). Muitas informações
sobre tais casos foram completadas pelas obras citadas nesse trabalho, que traziam considerações específicas
sobre esses casos.
11 Dos 27 processos consultados, não foi possível identificar a data da petição em 06 casos.
12 MAMIGONIAN, Beatriz. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. Ob. cit.

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

nacional depois de novembro de 1831: mesmo em casos de escravizados mais


velhos, e que provavelmente tenham sido trazidos ao Brasil antes da promulgação
da lei, Gama já se utiliza do repertório dos tratados firmados com a Inglaterra
para alegar a liberdade dos cativos.

O juízo da alegação de liberdade, conforme tratado pela Lei e pelo Decreto


que a regulamentou, dava-se por uma avaliação de provas da nacionalidade e
idade do peticionário, que, de modo geral, relacionava-se com a sua capacidade
de falar o português, descrever minimamente a sua chegada no Brasil, e uma
tentativa de determinar o momento em que tenha ingressado. Em casos como
o de Caetano, embora não existisse nenhuma prova de que o escravizado tenha
sido importado legalmente antes da vigência da proibição do tráfico – nesse
caso, o advogado invoca o Tratado de 1815 – o juiz o manteve como cativo,
simplesmente por considerar o seu depoimento mentiroso.

A segunda constância na análise das situações observadas no caso de


escravização, ou re-escravização, é a de pessoas que tenham sido escravizadas
simplesmente por não terem proprietários ou possuidores aparentes. Nesse tipo de
ocorrência, as negras e negros são recolhidos à detenção sem condição revelada,
ou uma explicação mais bem formulada do ponto de vista jurídico. Opera-se em
relação a essas pessoas uma espécie de presunção de escravizado, operação na
qual o negro é preso porque presume-se que seja escravo fugido, e, portanto,
deverá ser restituído ao seu dono em algum momento que este o reivindique.

Em um caso de 1880, Luiz Gama impetra Habeas Corpus visando libertar


seis pacientes que se encontravam em custódia do Estado sob argumentação
de que deveriam ser restituídos aos seus legítimos proprietários. Nessa ação,
patrocinada para Ignácia e Outros, o advogado enfrenta a apreensão desses seis
pacientes demonstrando que nos próprios documentos oficiais da detenção, não
havia nenhuma ocorrência registrada que motivasse a restrição de liberdade. Sem
nenhum crime alegado, os pacientes de Gama encontravam-se presos por um
período de tempo variável entre 2 e 9 anos, a depender da condição específica
de cada um.

A Lei do Ventre Livre buscou criar condições mais favoráveis aos detentos
em situações dessa natureza, mas chama a atenção que nesse caso especifico
Gama se socorre do judiciário quase dez anos depois da sua promulgação, ainda
enfrentando o conhecido problema do “escravo abandonado”. Provavelmente, o
arco argumentativo que sustentou a sua prisão foi o entendimento de que não
eram “escravos abandonados” e sim escravos fugidos, e que, portanto, deveriam
ser restituídos aos seus donos.

20
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Gama argumenta que diversos anúncios buscando os supostos proprie-


tários já haviam sido realizados, de modo que ainda que tais pacientes fossem
considerados escravos, a ausência de reivindicação deveria ser ato suficiente para
a sua liberdade. Interessante notar a cadeia de presunções construída no sentido
da prisão dos cidadãos representados por Gama: em primeiro lugar, presume-se
a sua condição de escravo, ao invés de um status de liberdade que sequer é
questionado ou reclamado por qualquer particular. Depois, em sendo escravos,
presume-se que são fugidos, e não abandonados, o que permite a sua detenção e
alocação – pelo menos em parte do grupo – nos serviços de trabalhos forçados.

Ainda nesse primeiro grupo destacado na análise desse artigo – o de


pessoas livres, ou libertas, reduzidas à escravidão – encontra-se um grupo mais
heterogêneo, que é o das pessoas que tendo sido libertadas em condições di-
versas, foram frustradas na fruição dessa liberdade por seus proprietários originais,
ou terceiros que busquem, sobre eles, exercer direitos de posse. Nesses casos, é
possível identificar duas situações mais comuns: a de escravizados libertos que
sejam objeto de tentativa de sequestro por terceiros, que buscam honrar alguma
obrigação firmada com o proprietário original do cativo; e a de pessoas livres que,
por alguma circunstância, foram reduzidas à escravidão por particulares.

Exemplo do primeiro caso, é a famosa situação do menino Luiz. Criança


libertada por seu proprietário, foi objeto de hipoteca de terceiro que buscava o
cumprimento de uma obrigação inadimplida do seu antigo possuidor. Recolhido
à cadeia, Luiz foi depositado até que a questão fosse julgada, sob o absurdo argu-
mento de que não havia concordância entre o exequente e o executado. Veja-se:
deixando de levar em consideração a alforria do menino, a autoridade passou a
questão para o plano de uma suposta divergência entre credor e devedor, em
uma relação na qual Luiz sequer era parte.

Parecido com a situação de Luiz, o caso de Braz e outros detidos, no


qual, alforriados, foram apreendidos por terem sido entendidos como parte de
uma fazenda hipotecada, sob argumento de que seriam acessórios de um bem
principal. O juiz entendeu que não tinha competência para tratar de uma alforria,
que deveria ser constituída em ação autônoma, e que portanto – novamente – a
presunção de escravidão deveria ser mantida para os detentos, até posterior análise.

Os conflitos de pessoas libertas, novamente reduzidas à escravidão, também


se organizavam em situações em que a sua liberdade é simplesmente ignorada
pelo próprio proprietário ou por seu dependente. Nessas hipóteses, uma liberdade
já concedida é simplesmente negligenciada, não havendo possibilidade de fruição
prática dessa liberdade porque o escravizado está inserido em algum contexto
social que não lhe permite reivindicar esse direito – escravos de fazenda, sem

21
O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

conhecimento da possibilidade de reclamação, etc - ou uma previsão de liberdade


testamentária, por exemplo, é descumprida pelos herdeiros do proprietário original.

Juntamente com esse grande grupo reunido acima nas três hipóteses mais
comuns mencionadas – casos de pessoas livres e libertas reduzidas à escravidão
– é possível enquadrar mais duas aparições constantes nos casos de Gama: (i) os
escravizados após a Lei do Ventre Livre que buscam comprar sua própria alforria,
utilizando-se do instituto do “preço justo”; e (ii) situações nas quais o escravizado
já deveria ter obtido sua liberdade, mas não o conseguiu pelo descumprimento
de uma promessa, ou pela ocorrência de alguma fraude que tenha violado subs-
tancialmente sua legítima expectativa de direito de manumissão.

No primeiro caso, pode-se encontrar um número bastante considerável


de situações nas quais o escravizado, sabendo do valor da sua compra, ou do
preço médio de um escravo em sua condição, reúne dinheiro para pagar sua
própria alforria. Como se verá a seguir, a Lei do Ventre Livre facultou a manu-
missão forçada nas hipóteses de pagamento do próprio valor por preço justo, de
modo que a demanda por esse procedimento se revelou bastante impactante
nos anos de 1870 e 1880: na análise dos processos destacados nesse trabalho,
os casos de definição de preço para compra da própria liberdade seguramente
significam aqueles em que Gama mais atuou judicialmente.

Evidentemente que o socorro ao judiciário nessas situações deu-se pela


perspectiva do escravizado ter tido o seu direito frustrado, nos casos em que
provavelmente o senhor negou-se a vendê-lo em condições adequadas. Dessa
forma, os conflitos que chegavam ao Judiciário se referiam basicamente a casos
em que o proprietário simplesmente se nega a vender o escravizado, ou, sabendo
que tal negativa não se fazia mais possível depois da promulgação da Lei de 1871,
definia um preço exorbitante que, na prática, impedia a libertação.

O fechamento perfeito dessa operação envolvia uma necessária formu-


lação fraudulenta das informações de compra do escravo e do registro da sua
matrícula. À medida que a mesma lei obrigava os proprietários a registrarem os
dados de seus escravizados, a burla ao sistema previsto necessitava de uma cadeia
de fraudes que podiam oscilar de uma simples omissão ou mudança no valor de
compra daquele escravizado que pretendia se libertar, até mesmo a operações
de troca de nomes de escravos afim de confundir as autoridades sobre os seus
dados específicos.

Todo esse sistema de fraudes nos registros deve ser lido com a lembrança
de que já nessa época não era mais facultado aos senhores a importação de
escravizados, de modo que, com bastante frequência, os registros eram dolosa-
mente negligentes quanto às informações de aquisição, seu preço e data, bem

22
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

como dados pessoais do escravizado como idade, nacionalidade, seus antigos


proprietários, etc.

O caso de João Carpinteiro é emblemático: em 1880, Luiz Gama impe-


tra habeas corpus buscando livrar João, preso em uma cadeia em Pirassununga.
O preso é africano, o que é forte indicativo – considerando o momento da
petição do advogado – que a sua situação inicial de escravização já se fazia
irregular. Dificilmente, João teria chegado ao Brasil antes do início da série de
normas destinada a acabar com o tráfico intercontinental. De qualquer forma, o
paciente, tendo cumprido as suas obrigações como cativo, oferece o valor de um
conto de réis ao seu senhor para a manumissão nos termos da Lei do Ventre
Livre. Enganando-o, o Senhor simula sua alforria, e depois eleva o valor da sua
liberdade para um conto e seiscentos mil réis, obrigando-o a serviços forçados
em troca de um pequeno valor, que, em tese, deveria se destinar ao pagamento
da citada diferença.

Toda essa cadeia de abusos se dá com a presença pormenorizada do


Judiciário. Isso porque desde a primeira alforria de João – desrespeitada pelo seu
senhor – a máquina jurisdicional é chamada à questão: instado a obter da Justiça
um arbitramento do valor, o escravizado obtém a sua primeira alforria baseada
no fato de que o seu proprietário não o havia registrado nas matrículas oficiais
obrigatórias. Além de não cumprir a ordem legal, o seu senhor o mantém preso às
condições iniciais de servidão, inclusive, burlando sua documentação para passá-lo
por um outro de seus escravos de nome Messias, este devidamente matriculado.
Instada novamente a se manifestar, a Justiça recolheu João à prisão, até que a
situação fosse resolvida. Nesse caso, Gama obteve a ordem de liberdade.

Os debates sobre o valor da liberdade do escravizado dominam boa


parte das ações de liberdade que se organizam pela previsão da lei de 1871.
A estipulação de preços exorbitantes mascarava o real valor da propriedade, e
escondia, sob um argumento de liberdade de mercado na valoração dos “bens
privados”, modelos sistemáticos de impedimentos de acesso desses direitos aos
milhares de escravizados que poderiam pagar a sua própria alforria.

Acompanham esses conflitos, uma outra série bastante parecida de novas


violações por parte dos senhores, em relação às quais Gama também advogou:
casos em que o senhor descumpria um acordo com o escravizado, e não adimplia
o seu dever de libertá-lo. Esses “negócios jurídicos” visando a liberdade podiam
ser unilaterais, como promessas simples de manumissão, ou poderiam envolver
obrigações de ambas as partes, casos nos quais os escravizados, por vezes, cum-
priam suas parcelas no acordo por muitos anos, sendo frustrados quanto ao
recebimento do seu direito de liberdade nos termos pactuados. Essa também
era uma previsão da Lei do Ventre Livre.

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

Casos como o de Jacinta, levado a juízo por Gama em 1871, eram muito
comuns: a escravizada tendo acordado com o seu senhor o pagamento de uma
determinada quantia ao longo do tempo pela sua liberdade, adimpliu fielmente o
valor pactuado, sem, entretanto, obter sua alforria quando do termo combinado.
Ou o caso de Apolônia, dada em casamento pelo seu senhor na presença de
testemunhas. Naquele caso, o descumprimento de uma obrigação contratual.
Nesse caso, o descumprimento de uma promessa. Em ambos, a utilização de
violações de direitos estabelecidos para a manutenção da escravidão.

Naturalmente, as aparições mais frequentes, conforme mencionado acima,


não relatam todos os casos enfrentados pelo advogado. São, entretanto, um im-
portante caminho para a compreensão de como se organizavam as noções de
escravidão e legalidade, na prática das instituições jurídicas e sociais.

III – Discurso jurídico: o repertório conceitual de Gama

Gama era um homem culto, e detinha um reportório jurídico bastante


vasto. Sua capacidade retórica, no exercício da defesa de seus representados,
era claramente modulada de acordo com as dificuldades específicas do caso
enfrentado: nas situações mais expressas de violação à lei, ele se articulava com
firmeza na modelagem do direito positivo imperial, e quando necessário, do antigo
regime colonial; quando os casos recebidos não apresentavam solução fácil no
direito positivo, o advogado buscava, sem grande constrangimento, os tratados
internacionais, bem como os princípios gerais do Direito clássico, notadamente
do Direito Romano; quando nem mesmo tais fundamentos jurídicos o ajudavam
na construção da sua narrativa processual, era comum vê-lo articular noções do
Direito Natural, e até mesmo nas regras de moralidade mais geral.

Assim, Gama compunha um discurso jurídico como aquele que frequen-


temente se praticava no século XIX, hábil em articular princípios gerais do Direito
e da moralidade de um lado, e regras positivas específicas de outro, em verdade
separando pouco tais fontes entre sí.

É bastante visível o fato de que Gama adaptava a argumentação jurídica


para cada caso concreto, modulando o diploma legal que ele usaria, de acordo
com a sua força perante o juízo frente os fatos que seriam apresentados. De
qualquer forma, os dispositivos legais mais alegados eram as previsões das Leis
de 1831 e 1871.

A lei de 7 de novembro de 1831 estipulou logo em seu artigo 1° que


“todos os escravos, que entrarem no território ou portos do Brazil, vindos de
fóra, ficam livres”, inclusive criminalizando aqueles que “importassem” os referidos
“escravos” como criminosos da conduta de reduzir homem livre à escravidão.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Oferecendo até recompensa para aqueles que denunciassem a prática, a lei de


1831 afirmava categoricamente a liberdade de todo e qualquer pessoa que tenha
embarcado no Brasil sob a perspectiva da escravização, a partir daquela data.

O Decreto que regulamentou a referida norma – Decreto de 12 de abril


de 1832 – obrigou que toda a embarcação que aportasse em território nacional
deveria sofrer vistoria de autoridade administrativa, e criava um procedimento
de apuração para a constatação de eventual utilização da embarcação para o
proibido tráfico negreiro. Diz o decreto, no seu artigo 4º, que
Se na visita encontrar pretos, procederá na fórma do artigo segundo da
referida Carta de Lei, declarando-se no termo os nomes, naturalidades,
physionomias, e qualquer signal caracteristico de cada um, pelo qual possa
ser reconhecido na visita da sahida.

Ao invés de promover-lhes a liberdade, conforme consequência expressa-


mente prevista na lei, o decreto conferiu outra solução para os casos de apreensão
no seu artigo 5º, dizendo que
Sendo encontrados, ou a apprehendidos alguns pretos, que estiverem
nas circumstancias da Lei, sejam elles escravos, ou libertos, serão imme-
diatamente postos em deposito; obrigados os importadores a depositar
a quantia, que se julgar necessaria para a reexportação dos mesmos, e
quando o recuzem, proceder-se-ha a embargos nos bens.

Embora postas em depósitos, as pessoas traficadas após 1831 não pode-


riam ser mais cativos privados.

No final do Decreto, o Ministro da Justiça Feijó consignou:


Art. 9. Constando ao Intendente Geral da Policia, ou a qualquer Juiz de
Paz, ou Criminal, que alguem comprou ou vendeu preto boçal, o mandará
vir à sua presença, examinará se entende a lingua brazileira; se está no
Brazil antes de ter cessado o trafico da escravatura, procurando por meo
de interprete certificar-se de quando veio d’Africa, em que barco, onde
desembarcou, por que lugares passou, em poder de quantas pessoas
tem estado, etc. Verificando-se ter vindo depois da cessação do trafico,
o fará depositar, e procederá na fórma da Lei, e em todos os casos, serão
ouvidas summariamente, sem delongas superfluas as partes interessadas.
Art. 10. Em qualquer tempo, em que o preto requerer a qualquer Juiz de
Paz, ou Criminal, que veio para o Brazil depois da extincção do trafico,
o Juiz o interrogará sobre todas as circumstancias, que possam esclarecer
o facto, e officialmente procederá a todas as diligencias necessarias para
certificar-se delle: obrigando o senhor a desfazer as duvidas, que suscita-
rem-se a tal respeito. Havendo presumpções vehementes de ser o preto
livre, o mandará depositar, e procederá nos mais termos da Lei.

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

Interessante anotar que mesmo se considerando que os casos analisados


foram todos mediados entre os anos de 1870 e 1880, Gama ainda podia en-
contrar material nos diplomas de 1831 e 1832, face à sequência de dezenas de
anos de continuidade da prática do tráfico negreiro. A possibilidade prevista no
artigo 10º do Decreto, combinada com os termos do 1º artigo da lei de 1831,
foi arma importante nas mãos do advogado. Os casos, alguns já citados nesse
artigo, de Luiza e seus filhos, de José e Felippe e do escravo fugido Jacinto, foram
fundamentalmente arguidos sob a perspectiva de que, em se tratando de estran-
geiros embarcadas no Brasil após a citada lei, tratavam-se, portanto, de pessoas
integralmente livres, irregularmente postas em cativeiro.

Em outro caso, o de Caetano, o advogado se utiliza de uma argumentação


bastante parecida, alegando que se tratava de homem livre – e não liberto –
justamente por ter ingressado no Brasil após a proibição do tráfico. Nesse habeas
corpus, entretanto, provavelmente por conta da idade e da data da importação do
paciente, não há a invocação da lei de 1831, e sim dos Tratados de 1815 e 1818.

Nos argumentos buscados no campo do Direito positivo, a segunda grande


aparição – na verdade, trata-se da base legal mais invocada por Gama nos casos
analisados – é a da Lei do Ventre Livre, de 1871. Embora a referida lei tenha
sido conhecida pela liberdade concedida aos filhos de escravas – condicionada
à prestação de serviços por tempo determinado até a idade de 21 anos, ou
alternativamente ao recebimento de uma indenização estatal –, o diploma esti-
pulou também uma série de regras, largamente utilizada nas ações de liberdade.

Vários dispositivos do diploma poderiam ser mencionados. Destacam-se


para a formulação dos argumentos de Gama, a possibilidade de compra da pró-
pria alforria, o tratamento dado ao chamado “escravo abandonado”, e as regras
atinentes à necessidade de matricula do escravizado.

Permitiu, o artigo 4º da lei,


ao escravo a formação de um peculio com o que lhe provier de doações,
legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver
do seu trabalho e economias. O Governo providenciará nos regulamentos
sobre a collocação e segurança do mesmo peculio.

Depois, especificou o parágrafo 2º do mesmo artigo que


O escravo que, por meio de seu peculio, obtiver meios para indemnização
de seu valor, tem direito a alforria. Se a indemnização não fôr fixada por
accôrdo, o será por arbitramento. Nas vendas judiciaes ou nos inventarios
o preço da alforria será o da avaliação.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Nas modalidades de alforria, o artigo também permitiu a criação de um


sistema no qual o escravizado se obrigava à prestação de serviços por um deter-
minado tempo de serviço. Encerrado o referido período, cumprida a obrigação
– ainda que parcialmente – operava-se a liberdade do cativo. Além disso, o artigo
6º da lei regulamentou as situações de liberdade, em processo sumário, e, nesse
campo, organizou a situação dos “escravos das heranças vagas” e “os escravos
abandonados por seus senhores”. Mudando o entendimento comum até aquela
data, a Lei do Ventre Livre conferiu liberdade aos tais “escravos abandonados”.

Entretanto, talvez a mais impactante disposição da lei tenha sido a do


seu artigo 8°, que ordenou a criação de uma matrícula geral de todos os es-
cravos do Império, com declaração detalhada de seus dados pessoais. Como
consequência para os senhores que não registrassem os seus escravizados, a lei
disse que “os escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem
dados á matricula, até um anno depois do encerramento desta, serão por este
facto considerados libertos”.

Evidentemente, a matrícula causava embaraços aos proprietários: primeiro,


porque como já visto por conta dos diplomas promulgados na primeira metade
do século XIX acerca do tráfico negreiro, a origem de muitos dos escravizados
no Brasil era flagrantemente irregular. Além disso, a matrícula criava obrigações
fiscais, seguramente indesejadas por boa parcela dos senhores.

Ainda no ano de 1871, em dezembro, o Decreto 4.835 regulamentou


a lei, criando o sistema de matrículas, organizando as informações, distribuindo
competências entre as autoridades imperiais, e impondo penas aqueles que des-
cumprissem a lei.

O advogado se utilizou fartamente desse repertório. Obrigou proprietários


a alforriarem escravizados que detinham dinheiro suficiente para arcar com o valor
justo do pagamento de sua indenização, como nos casos de Estevam, Basílio, Roza,
Luzia, Polidora e João Carpinteiro; impôs pedidos de liberdade aos escravizados
presos sob suspeita de que fossem fugidos, alegando que nos casos em que não
haviam donos a reclamá-los deveriam ser reconhecidos como escravos abandona-
dos: foram esses os casos dos grupos julgados nos processos de Ignácia, Leandro
e Francisco – em um desses casos, inclusive, alegou a prescrição do direito de
reivindicar um escravo pelo prazo de cinco anos previsto em Alvará de 1862. Em
casos como o de Apolonia, pediu a liberdade de escravos em relação aos quais
os proprietários não conseguiam apresentar a matrícula regular.

Como dito, entretanto, além de ser bom leitor do direito positivo, o


advogado sabia muito bem articulá-lo com outras fontes do Direito, bem como

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O DIREITO E O AVESSO DO ESCRAVISMO:
COMENTÁRIOS SOBRE CASOS ESCOLHIDOS DE LUIZ GAMA E AS AÇÕES DE LIBERDADE

organizar uma linha retórica totalmente desvencilhada dos diplomas legais quando
a situação assim exigia.

É o caso de Manoel, por exemplo. Nessa ação, de 1872, Gama se utiliza


de dispositivos da Lei do Ventre Livre que impediam a separação de cônjuges, em
casos de alienação, além da legislação esparsa que impunha regras humanitárias
às condições dos escravizados, e desenvolve tese baseada no Direito Romano
para defender que Manoel seria homem livre por ter se casado com mulher
livre. Nesse caso, importa mencionar que o advogado não se ampara em regra
de Direito positivo, pois não havia previsão expressa nesse sentido na legislação
brasileira. Ele desenha uma solução buscando sentidos legais disponíveis em
raciocínios levemente correlatos ao tema, para buscar, na tradição romana, uma
solução para o caso de Manoel.

Em alguns casos, Gama invocou princípios gerais do Direito Privado,


como o da obrigação do cumprimento dos pactos privados – quando buscava
o cumprimento de uma promessa de alforria feita na presença de testemunhas -,
e da impossibilidade de presunção de fraudes – em situações nas quais os juízes
atentavam que a alforria, reivindicada pelo escravizado, era produto de uma fraude.
Até mesmo princípios de cunho processual foram usados por Gama, como no
caso da ação do menor Luiz, no qual o advogado alegou que a alforria deveria
ocorrer em ação própria, se fosse o caso, e jamais poderia ser objeto de análise
incidental do juízo. Alegou costumes beneditinos, direito natural de proteção
à vida, e a moralidade geral em diversos outros casos, como em situação na
qual defendeu a fuga de um casal de escravos pelo fato de o senhor assediar
a esposa do casal.

Em suma, os argumentos jurídicos de Gama, oscilando dos princípios gerais


ao direito positivo, buscavam compor discursos e montar sentidos possíveis, de
acordo com as condições e necessidades dos casos específicos.

IV – Conclusões

Um leitor desavisado da história do direito brasileiro, ao analisar a legislação


que regulamentou a prática da escravidão, embora ressalvasse a tardia libertação
dos escravizados, poderia achar que o direito progredia, ao longo do século XIX,
para a melhoria das condições dos cativos, e para a concessão de uma dignidade,
que se demorava, ao menos era crescente. A leitura dos diplomas legais havidos
a partir da independência do Brasil poderia sugerir que a vida da negra e do
negro importado para a escravidão começava a sofrer modificações consideráveis
em sentido de uma cessação, ao menos gradual, da barbárie da instituição que
tanto sustentou a vida brasileira.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Essa não seria uma leitura correta. Os casos de Gama demonstram que a
escravidão se sustentava em uma bem articulada cadeia de ilegalidade, técnicas
jurídicas e criação de procedimentos administrativos destinados justamente a
compor soluções, na prática do direito, que anulassem as saídas legais apresentadas
nos diplomas nacionais. O leitor do texto legal, talvez achasse um país buscando
a civilidade definitiva. Alguém, entretanto, que se debruçasse sobre a prática das
instituições reais daquela sociedade imperial, dificilmente teria essa mesma opinião.

Muitos os indícios expostos nesse breve artigo que poderiam demonstrar


tal argumento. O descumprimento sistemático da lei de 1831 já é bom exemplo.
Como visto nos casos concretos, considerando a assertividade do texto legal, o
edifício escravista era mantido, muitas vezes em delicado conluio entre autorida-
des policiais e judiciário, que empenhavam a necessidade de novas necessidades
probatórias, invertiam os ônus da prova, aplicavam presunções inexistentes na
lei, em benefício dos senhores. A exigência de que o reclamante por liberdade
provasse a data de sua entrada no Brasil, a presunção da legalidade da posse do
senhor, ainda que sem apresentação de título que a justificasse, e as considera-
ções – bastante presentes – de que o escravo que não falasse bem o português,
dito escravo boçal, poderia estar enganando as autoridades, são fatos comuns e
presentes nos casos analisados.

A lei de 1831 tornou-se, ao longo do tempo, o exemplo vivo desse me-


canismo de funcionamento do direito real, em contraposição ao direito oficial
previsto no diploma. Os exemplos dessa operação, entretanto, seriam muitos: os
casos de Gama denunciam, para ficar em apenas mais um exemplo, o tratamen-
to absolutamente comum nas atividades da administração imperial de tratar a
mulher e o homem negro como supostos escravos, retendo-os, ainda que não
houvesse nenhuma reclamação de posse a seu respeito. Presos sem denúncia de
nenhum crime, sem reclamação de nenhum dono, sem nenhum tipo de viola-
ção ocorrida, negros e negras tinham contra si a operação de uma espécie de
presunção de escravidão, não prevista em lei, regulamento ou qualquer princípio
do direito que se sustentasse.

A análise, portanto, da prática do direito pode revelar uma série de senti-


dos atribuídos no seu uso, que no limite foram formadores definitivos do modo
como se operou o sistema legal naquele momento. A performance dos atores
sobre os atos legais revela possibilidades de compreensão daquela sociedade,
apontando caminhos institucionais e cotidianos para a compreensão da longeva
sobrevivência da escravidão.

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32
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO


DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDA-
DÃOS NO PRIMEIRO REINADO BRASILEIRO: OS DE-
BATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO
EM 1826, 1829 E 1830

VIVIAN CHIEREGATI COSTA


Doutoranda (CNPq)
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo – FFLCH-USP
Resumo
Entre julho de 1824 e outubro de 1829, dez decretos emitidos pelo
Executivo brasileiro fundaram-se no dispositivo regulado pelo parágrafo (§)
35 do artigo 179 da Constituição de 1824 para lidar com circunstâncias con-
sideradas atentatórias à segurança nacional. O dispositivo constitucional em
questão admitia, nos casos de rebelião, invasão de inimigos e perigo iminente
da pátria, a dispensa das formalidades que garantiam a liberdade individual
dos cidadãos brasileiros. Abertos os trabalhos do Legislativo nacional, quando
seis destes decretos já haviam sido emitidos, poucos dias se passaram até que
a questão entrasse na pauta dos representantes, ocupando-os, com maior ou
menor ênfase, em diferentes conjunturas do Primeiro Reinado. Partindo, fun-
damentalmente, dos registros dos Anais do Parlamento Brasileiro, pretende-se
recuperar os debates político-jurídicos travados pelos representantes do país
nos anos 1826, 1829 e 1830 em torno do dispositivo regulado pelo §35 do art.
179 da Carta de 1824. Na análise deste debates, atenção especial será dada à
tentativa dos parlamentares brasileiros de compreender o dispositivo em ques-
tão, em especial seus limites e consequências, explorando, assim, as diferentes
interpretações do §35 por eles sustentadas e os compromissos plasmados em
torno do dispositivo ao longo do Primeiro Reinado. A análise de tais debates
e de suas modificações é reveladora não apenas das inúmeras incertezas e
indefinições a cercar a aplicação do §35 do art. 179 no Império do Brasil, mas
também dos diversos usos políticos do texto constitucional empreendidos pelos
parlamentares do Primeiro Reinado.

Entre julho de 1824 e outubro de 1829, o governo brasileiro recorreu à


dispensa das formalidades que garantiam a liberdade individual dos cidadãos na
repressão empreendida a ao menos cinco agitações políticas ocorridas no país.
Nem por isso parecia haver clareza entre os representantes nacionais, ao final
do Primeiro Reinado, acerca da correta aplicação desta medida extraordinária de
proteção da ordem pública, prevista pelo parágrafo (§) 35 do artigo 179 da Carta
de 1824. Pelo contrário, nas diferentes conjunturas em que o recurso ao §35 deu
origem a debates no Primeiro Reinado, uma série de dúvidas foi levantada no

33
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

tocante à sua aplicação e seus limites, com um significativo senso de gravidade


ante a utilização da medida a marcar os diferentes posicionamentos assumidos
pelos representantes do país.

Localizado no Título VIII da Constituição de 1824, dedicado à “Garantia


dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros”, o §35 do artigo 1791 fixava
os casos específicos em que algumas das formalidades que garantiam a liberdade
individual dos cidadãos podiam ser dispensadas, por tempo determinado, no país.
Nesse sentido, se o parágrafo anterior do mesmo artigo estabelecia que nenhum
poder poderia suspender a Constituição no que dizia respeito aos direitos indivi-
duais, o §35 abria exceção aos casos de rebelião e invasão de inimigos, quando a
segurança do Estado exigisse a tomada de semelhante providência.

A efetivação de tal medida cabia ao Poder Legislativo, por meio de um


ato especial. Não se achando reunida a Assembleia, contudo, e correndo o país
perigo iminente, o Governo ficava autorizado a exercer a providência como medida
provisória e indispensável, a ser interrompida assim que finda sua necessidade.
Reunida a Assembleia, dizia ainda o parágrafo, cabia ao Executivo remeter aos
representantes uma relação motivada das prisões e outras medidas de prevenção
tomadas no interregno, sendo as autoridades que as tivessem mandado proceder
plenamente responsáveis por tais deliberações e pelos abusos eventualmente
praticados em seu decurso.

O modo específico de se proceder ante o dispositivo e as implicações


do recurso ao §35, no entanto, não eram auto evidentes, em especial porque,
textualmente, o parágrafo não falava em “direitos civis e políticos” dos cidadãos,
mas sim, como vimos, na possível suspensão de uma parcela das “formalidades
que garantiam a liberdade individual”, sem qualquer referência precisa ao que
conformava, afinal, tais formalidades.

Sendo assim, nas diferentes conjunturas de aplicação deste dispositivo no


Primeiro Reinado, recorreu-se à dispensa de diferentes garantias previstas pelo ar-
tigo 179, tais como o direito de ir e vir, a liberdade de imprensa, a inviolabilidade
do lar, a proibição de prisões sem culpa formada e da formação de comissões
especiais, dentre outras, quando não se declarou simplesmente, e em completo
desacordo com o texto constitucional, a suspensão de “todas as formalidades”,
por tempo indeterminado.

Haja vista a abertura textual do parágrafo e a seriedade das medidas por


ele previstas, não é de se estranhar que diferentes compreensões sobre sua apli-
cação tenham gerado debates calorosos na Assembleia brasileira, marcados, como
1 Composto por 35 parágrafos, o artigo 179 do Titulo VIII era integralmente dedicado à garantia da inviola-
bilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos, “que tem por base a liberdade, a segurança individual e a
propriedade”.

34
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

não poderia deixar de ser, por interesses políticos conjunturais e por diferentes
interpretações de fundo acerca do texto constitucional.

Tendo em vista este cenário e partindo, fundamentalmente, dos registros


dos Anais do Parlamento Brasileiro, pretende-se recuperar os debates político-jurí-
dicos travados pelos representantes do país nos anos 1826, 1829 e 1830, em torno
do dispositivo regulado pelo §35 do art. 179 da Carta de 1824. Na análise deste
debates, atenção especial será dada à tentativa dos parlamentares brasileiros de
compreender o dispositivo em questão, em especial seus limites e consequências,
explorando, assim, as diferentes interpretações do §35 por eles sustentadas e os
compromissos plasmados em torno do dispositivo ao longo do Primeiro Reinado.

Entre 1824 e 1826, ano de abertura do Legislativo brasileiro, o poder


Executivo do país recorreu ao §35 do art. 179 em ao menos três ocasiões: a
Confederação do Equador (PE e CE), a Revolta dos Periquitos (BA) e a Guerra
Cisplatina (RS e província Cisplatina). Nos decretos aprovados nestes três contextos,
previu-se, para além da criação de comissões militares nas províncias envolvidas
(desobrigadas de seguirem as formalidades ordinárias dos processos crime), a sus-
pensão, no caso da Confederação do Equador, do §8º do art. 179 (concernente à
proibição de prisões sem culpa formada), “até que cesse a necessidade urgente de
tal medida”; a dispensa das “formalidades ordinárias nos processos crime [...] pelo
tempo necessário à punição de tão horrível atentado”, no caso da Revolta dos
Periquitos; até chegar, no contexto da Guerra Cisplatina, à admissão da suspensão
de “todas as formalidades, que garantem a liberdade individual”.

Um recurso tão constante ao dispositivo previamente à abertura da


Assembleia, certamente atraiu a atenção dos representantes nacionais quando
de sua reunião. Tanto assim que, em maio de 1826, mal iniciados os trabalhos
da Câmara baixa, os deputados debatiam sobre a necessidade de se cobrar do
governo os esclarecimentos devidos em razão da aplicação do §35, discorrendo
ainda sobre a legitimidade, ou não, da formação de comissões militares no país.

Ao longo de 1826, as dúvidas e inquietações ante o §35 do art. 179


tangenciaram os debates travados sobre dois projetos de lei apresentados à
Casa pela comissão de leis regulamentares (respectivamente, o projeto de lei de
responsabilidade dos Ministros e Conselheiros de Estado e o de abolição dos
foros privilegiados) e foram alvo de dois pedidos de esclarecimentos ao Governo.

No que tange aos pedidos de esclarecimento, o primeiro deles, discutido


pelos deputados entre 20 e 30 de maio de 1826, materializou-se em demanda
aos ministros da Justiça e da Guerra – então, respectivamente, o visconde de

35
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Caravelas (José Joaquim Carneiro de Campos) e o barão de Lages (João Vieira de


Carvalho) –, acerca da manutenção, ou não, no país, das comissões militares que
se haviam mandado criar, nos anos anteriores, para o julgamento dos rebeldes de
algumas províncias. Já o segundo, debatido entre 22 de maio e 17 de junho do
mesmo ano, e afinal não aprovado, buscara constranger o governo a esclarecer,
por suas diferentes pastas ministeriais, se haviam sido violadas no país as garantias
individuais dos cidadãos, “ou em razão da suspensão delas, ou sem suspensão”.

Em ambos os casos, a discussão sobre os pedidos deu origem a debates


acalorados na Câmara baixa, nos quais, recorrendo a distintas interpretações
do §35, os representantes questionaram os limites inerentes à sua aplicação e
vigência, as instâncias responsáveis por sua criação e extinção, e o modo como
as comissões militares pré existentes ou ainda vigentes no país relacionavam-se
à medida de suspensão das garantias.

Em todos as circunstâncias de criação de comissões militares para o


julgamento de rebeldes no país,2 tal medida esteve atrelada à aplicação do §35
do art. 179, gerando nos representantes nacionais uma série de dúvidas quanto
à autorização que a dispensa de uma parcela das formalidades dava, ou não,
à criação de semelhantes tribunais. Para parte significativa dos deputados a se
manifestar, era consensual a censura à criação de comissões militares no país, não
apenas por considerarem-nas instrumentos odiosos de cerceamento às liberdades
dos cidadãos, como por compreenderem haver desacordo entre estes tribunais e
as previsões do §35 e do artigo 179 como um todo. De acordo com Bernardo
Pereira de Vasconcelos (MG), por exemplo:
Se o governo pode suspender as formalidades, deve contudo fazer pro-
cessar os culpados nos juízos estabelecidos. A constituição declara expres-
samente que ninguém será julgado por uma lei posterior ao delito, nem
por um tribunal desconhecido nas leis, nem por meio de um processo,
em que não é ouvido o réu. [...] Ainda mesmo a autoridade, que dá a
constituição para se levantarem as formalidades, não é tão ampla, que
fique a arbítrio dos ministros o fazê-lo, quando e como quiserem. (Anais
do Parlamento Brasileiro-Câmara dos Deputados, sessão de 22 de maio
de 1826)

Havia, no entanto, deputados que, como José Clemente Pereira (RJ), de-
fendiam a prerrogativa do governo de, nos casos de aplicação do §35, dispensar
as garantias que considerasse necessárias à preservação da ordem, ainda que tal

2 Na definição de Adriana Barreto de Souza e Angela Moreira Domingues da Silva, na qualidade de tribunal
de exceção, “a comissão militar era um dispositivo acionado para dar ares de julgamento à ação do Estado
na repressão a movimentos contestatórios”. Em acordo com as autoras, tais tribunais eram presididos pelo co-
mandante das forças de repressão atuantes nos locais de sua criação e deviam ser integrados unicamente por
militares, “sem contar com a presença de sequer um juiz togado”. Sem direito a defesa, os réus julgados por
comissões militares eram processados de forma sumária e verbal e, nos casos de incursão na pena de morte,
quase sempre executados prontamente, sem direito à clemência imperial (SOUZA; SILVA, 2016, p. 369).

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

implicasse a suspensão dos §§ 11 e 17 do art. 179 – em acordo com os quais


ficavam proibidos, respectivamente, o sentenciamento senão por autoridade com-
petente, em virtude de lei anterior e na forma por ela prescrita (§11), e a criação
de comissões especiais, nas causas cíveis ou criminais (§17) – e, consequentemente,
a criação de comissões militares. Nas palavras deste deputado, portanto:
Também não é este o lugar de ventilar a questão, se as comissões militares
são boas ou más; o governo está autorizado para dar as providências
necessárias e suspender as formalidades, quando o julgar preciso: o que
nos compete é saber se foram bem ou mal aplicadas essas providências.
(APB-CD, sessão de 22 de maio de 1826)

Para além de discutirem a constitucionalidade, ou não, das ditas comissões,


os debates levantados pelos pedidos de esclarecimento revelam o desconhecimen-
to que parte significativa dos representantes possuía acerca dos tribunais militares
efetivamente criados no país entre 1824 e 1825. Foi ao longo destas discussões,
portanto, que parte dos deputados foi tomando conhecimento da existência, para
além das comissões criadas em Pernambuco e no Ceará para o julgamento dos
rebeldes confederados (das quais resultou a condenação à morte de ao menos
20 homens), da comissão militar criada na província da Bahia, em 1824, e ainda
daquelas formadas em 1825, e ainda vigentes, nas províncias Cisplatina e do Rio
Grande do Sul.3

Para vários deles, portanto, ainda que houvesse motivos para a criação
de comissões militares no país, ou seja, ainda que fosse aceitável sua existência no
Império, era absolutamente necessário que o governo prestasse contas à nação
não apenas dos motivos de sua criação, mas também, e talvez especialmente,
das causas de sua manutenção, assumindo a responsabilidade inerente a tais
atos. Na fala dos deputados a se manifestarem na ocasião, fica patente, ainda, a
noção de que, sem a prestação de contas dos ministros acerca das comissões
militares e de outras medidas empreendidas previamente à abertura da Casa
legislativa, dificultava-se, e muito, o desenvolvimento dos trabalhos da Câmara e
o cumprimento do papel dos deputados de “sentinelas da liberdade e guardas
das garantias individuais”.

É nesse sentido que, à medida em que vão sendo informados sobre as


diferentes conjunturas de aplicação do §35 previamente à abertura da Assem-
bleia,4 os deputados vão ficando cada vez mais incomodados com a extensão do
3 Ofícios dos ministros da Justiça e da Guerra lidos, respectivamente, nas sessões de 30 de maio e 9 de junho
de 1826.
4 Dentre tais esclarecimentos, destaque seja dado ao ofício do Ministro da Justiça, lido na Casa aos 15 de
junho de 1826, justificando “as medidas extraordinárias que o governo, firmado na suprema lei da salvação da
pátria, e autorizado pelo citado §35 do art. 179, empregou na dura necessidade de aniquilar” uma rebelião
[Confederação do Equador] cujos autores haviam tornado “incompatível a guarda dos seus direitos individuais
com a conservação, e defesa dos cidadãos pacíficos das demais províncias do Império”, que eles buscavam
envolver em sua causa e arrastar à subversão. Anais do Parlamento Brasileiro – Câmara dos Deputados (APB-

37
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

recurso a tal medida e com sua ignorância ante a questão, ansiando por receber
do governo esclarecimentos sobre a efetiva constitucionalidade do recurso a tal
dispositivo, acompanhado de uma relação das “disposições e outras medidas de
prevenção tomadas a este respeito”.

Nas primeiras ocasiões, portanto, em que debates sobre a suspensão das


garantias constitucionais e a formação de comissões militares tomavam corpo no
país, via-se, para além da seriedade com que os deputados encaravam a questão,
o amplo espectro de dúvidas a circundá-la e, consequentemente, a pautar sua
atuação.

Também no contexto de discussão dos projetos de lei de responsabilida-


de dos Ministros e Conselheiros de Estado e de abolição dos foros privilegiados,
podemos entrever o posicionamento confuso dos representantes do país ante o
§35 do art. 179. No primeiro caso, as avaliações sobre o dispositivo vêm à tona
quando da discussão do artigo 3º do projeto, especificamente dedicado à defi-
nição do crime de abuso de poder. Mais especificamente, o tema da suspensão
de garantias é mobilizado pelos deputados no interior de uma discussão acerca
das diferenças existentes entre discricionariedade e arbítrio no cumprimento das
funções ministeriais.

Para parte dos deputados, o recurso ao §35 do art. 179 conformava


exemplo privilegiado de situação na qual dose significativa de discricionariedade
era admitida aos ministros, ainda que tal não significasse impunidade diante dos
possíveis arbítrios praticados. Na compreensão de Vasconcelos:
Tal é o caso da suspensão do habeas corpus.
Se o ministro usa deste poder extraordinário, como convém, e exige a
segurança do estado, tem praticado o que deve; mas se usa mal desta
faculdade, isto é, de uma maneira exorbitante, e fora dos casos de extrema
necessidade, usa mal, por outra, abusa do poder, e é por consequência
responsável. (APB-CD, sessão de 21 de junho de 1826)

Para outros deputados, por sua vez, falar em discricionariedade e arbítrio,


em um texto legal, era demasiadamente arriscado, podendo abrir as portas a
excessos e abusos por parte dos ministros. Na opinião de José Lino Coutinho
(BA), por exemplo, toda lei devia possuir limites precisos, devendo-se acusar,
por abuso de poder, o ministro que saísse fora de tais limites. Em suas palavras:
O artigo da constituição, que confere o poder de suspender as formali-
dades, é limitado e muito limitado.
Por ele só poderá ser preso sem culpa formada o perturbador e o rebel-
de: se o ministro de estado, excedendo estes limites, passar a deportar
os cidadãos, e a privá-los das suas inauferíveis garantias constitucionais,
CD), sessão de 15 de junho de 1826, p. 144.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sujeitando-os à barbaridade de comissões militares, altamente proibidas,


e condenadas pela nossa constituição, será um delinquente, um déspota,
um inimigo da nação, e do sistema, que ela tem abraçado: é portanto
responsável, não por ter abusado do poder, mas como um traidor.
Torno a dizer que não há, nem pode haver leis discricionárias. (APB-CD,
sessão de 21 de junho de 1826)

Discutindo, em última instância, os limites das leis, não é de se estranhar


que os deputados tenham recorrido, em suas tentativas de compreender a dis-
cricionariedade da atuação dos ministros, ao exemplo da suspensão das garantias
constitucionais dos cidadãos, trazendo à tona, uma vez mais, as dificuldades e
desconfortos gerados por esta questão, localizada na complexa intersecção entre
o direito e a política.

Nas discussões travadas, por sua vez, em torno do projeto de lei de abo-
lição dos juízos privilegiados, o posicionamento dos representantes, em especial
dos senadores nacionais, ante o §35, se deu de forma bastante mais concreta. E
isso porque a parte final do artigo 1º da primeira versão deste projeto (posterior-
mente convertida em art. 2º), tratava especificamente da proibição de comissões
militares no país.

Uma vez que o projeto de lei de abolição dos juízos privilegiados visava,
justamente, à regulamentação das previsões presentes no §17 do art. 179 da
Constituição5 – por diversas vezes mobilizado pelos deputados que advogavam
a expressa proibição constitucional à criação de comissões militares no país –,
não é de se estranhar que os debates esbarrassem nesta questão.

Iniciada a discussão deste ponto específico do projeto na Câmara baixa


– de acordo com cujo texto: “Tem cessado igualmente os juízos de comissões
especiais, tanto nas causas civis como nas criminais; nem se criarão de novo, ain-
da no caso da suspensão das garantias individuais.” –, deputados como Nicolau
Pereira de Campos Vergueiro (SP) e Lino Coutinho reivindicaram a necessidade
de tal prescrição ante a manutenção da criação de comissões militares no país, a
despeito de expressa proibição constitucional a semelhantes tribunais. Na opinião
de Vergueiro, por exemplo, ainda que o §17 do art. 179 não deixasse dúvidas
quanto a tal impedimento, fato era que tais comissões continuavam a existir, “e
de mais a mais criaram-se novas”. “À vista deste abuso”, questionava o deputado,
“por que se não há de fazer uma explicação a ver, se se previne o mal?” (sessão
de 27 de julho de 1826).

5 Em acordo com o §17 do art. 179: “À exceção das Causas, que por sua natureza pertencem a Juízos parti-
culares, na conformidade das Leis, não haverá Foro privilegiado, nem Comissões especiais nas Causas cíveis ou
criminais”.

39
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Reiterando posicionamento previamente assumido na Casa no tocante às


comissões militares, Lino Coutinho defendia, por sua vez, que mais do que aprovar
a sentença final do art. 1º do projeto, se dissesse por muitas vezes e escrevesse
“com letras bem grandes”, que não poderia haver comissões militares e que todas
as que até então haviam existido no país, eram nulas por direito constitucional:
[...] finalmente, que se não podem criar comissões especiais, sejam elas de
qualquer classe, e que o artigo da constituição que permite a suspensão
das formalidades, não dá direito para se criarem essas pestíferas comissões
de reprovada memória. (APB-CD, sessão de 27 de julho de 1826)

A questão acabou aprovada pelos deputados, sem grandes debates, na


mesma sessão em que tivera início, aos 27 de julho de 1826. Algum tempo depois,
a proibição à formação de comissões especiais no país, ainda quando suspensas
as garantias individuais, passou a conformar o art. 2º de um reformulado projeto
de abolição dos juízos privilegiados, apresentado à Câmara baixa em 30 de maio
de 1827. Aprovado na Casa aos 26 de setembro do mesmo ano, o projeto seguiu
para o Senado, onde foi debatido ao longo dos dias 9 e 10 junho de 1828.

Neste debate, os senadores a se manifestar acabaram divididos em dois


grupos compostos, de um lado, por aqueles que acreditavam que a criação de
comissões especiais estava sim entre o rol de medidas possibilitadas pela aplicação
do §35 do art. 179 e, de outro, pelos que defendiam que a suspensão das garantias
constitucionais tinha por objeto unicamente a segurança dos réus, especialmente
no que concernia à sua prisão, e nunca a seu julgamento.

Manifestando-se na ocasião, o senador José Inácio Borges (PE) defende-


ria a constitucionalidade da criação de comissões militares no país, afirmando
por mais de uma vez que, em momento algum, o §35 proibia a formação de
semelhantes tribunais e defendendo, como outros de seus colegas, que a prisão
dos delinquentes não conformava remédio suficiente ante as ameaças de uma
rebelião. Na opinião deste grupo de senadores, o §35 sequer existiria se tratasse
unicamente da prisão sem culpa formada, uma vez que já havia lei regulando
esta questão no país6 e que os males que o parágrafo buscava evitar eram de
maiores proporções.

Nas palavras do senador Borges:


Defendem alguns Ilustres Senadores que esse parágrafo se permite a
suspensão das garantias pelo que diz respeito à prisão, mas não ao
julgamento. Eu não vejo isso expresso em nenhuma parte do referido
parágrafo: o que ele diz é que “se dispensem por tempo determinado
algumas das formalidades que garantem a liberdade do Cidadão”; logo
6 Lei de 30 de agosto de 1828. Declarava os casos em que, no Império, poder-se-ia proceder à prisão sem
culpa formada. Coleção de Leis do Império do Brasil de 1828. Parte Primeira. Rio de Janeiro: Typographia Nacional,
1878; p. 29-31.

40
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

não trata destas nem daquelas. (Anais do Senado do Império do Brasil,


sessão de 9 de junho de 1828)

De mesma opinião era o marquês de Queluz (João Severiano Maciel da


Costa, senador pela província da Paraíba do Norte), para quem não cabia que
se passasse a regular, agora, as faculdades até então “ilimitadas” que tinham o
Executivo e o Legislativo de determinar as garantias a serem levantadas para a
salvação do Estado. Para além disso, na opinião do senador, ainda ante a diver-
gência de opinião de seus colegas, cabia analisar o modo como o Ministério e o
Conselho de Estado haviam julgado a questão até momento, devendo-se admitir,
então, a não exclusão da criação de comissões militares do rol de prerrogativas
previstas pelo §35.

Já na opinião do marquês de Paranaguá (Francisco Villela Barbosa, sena-


dor pelo Rio de Janeiro), ainda quando criadas as comissões militares, nunca se
teria no país, haja vista a lei de responsabilidade e a própria formulação do §35,
uma situação de total arbítrio, devendo-se defender a medida como necessária
à salvação da pátria em circunstância excepcionais:
Em casos extraordinários, de nada valem providências ordinárias. Podem
ocorrer circunstâncias em que seja necessária esta medida. [...] A salvação da
Pátria é o mais atendível de todos os objetos: tudo se lhe deve sacrificar,
sendo necessário, quanto mais essas garantias, estando tão sabiamente
providenciado na Constituição contra os abusos que nisso pode haver.
(Anais do Senado do Império do Brasil, sessão de 10 de junho de 1828)

Do outro lado da contenda, por sua vez, defendia-se não apenas a limi-
tação das medidas de prevenção possibilitadas pela aplicação do §35, mas, mais
do que isso, a inutilidade da formação de comissões militares para o controle
de rebeliões, e a necessária manutenção das fórmulas legais dos processos, ainda
quando do julgamento de “rebeldes, traidores ou malvados”. Respondendo à par-
cela de seus colegas para quem impor limites ao §35 era estimular a impunidade
no país, especialmente a “homens revoltosos e conspiradores”, perpetradores dos
piores crimes, Luis José de Oliveira Mendes, o futuro barão de Monte Santo
(senador pela província do Piauí), foi enfático ao afirmar a proibição, no país, de
qualquer sentenciamento senão por autoridade competente, defendendo ainda
que “quanto maior é o crime, maiores meios se devem dar ao Cidadão para sua
defesa” (Anais do Senado do Império do Brasil, sessão de 9 de junho de 1828).

Também o marquês de Caravelas posicionou-se no debate, em explícita


tentativa de conciliação. Na opinião do senador, todo o debate sobre o artigo
2º podia ser reduzido às diferentes inteligências que se dava, na Câmara vitalícia,
ao §35 da Constituição:

41
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Uns dos Nobres Senadores sustentam que a disposição deste parágrafo


é somente para se prender sem culpa formada; [...] outros sustentam
que para isso não era necessário esse parágrafo “e” que o adjetivo –
algumas – que vem na Constituição, torna indefinidas as formalidades
que se podem dispensar. (Anais do Senado do Império do Brasil, sessão
de 9 de junho de 1828)

No seu entendimento, no entanto, a primeira opinião era a mais plausível,


não se podendo duvidar que quando o texto constitucional falava em liberdade,
fazia-o com referência à prisão. À “objeção fundada no artigo indefinido – al-
gumas”, o senador respondia que a existência de tal expressão devia-se a serem
mais de uma as formalidades a que se referia o parágrafo, todas elas, no entanto,
concernentes à prisão.
As formalidades relativas à segurança pessoal do Cidadão não são uni-
camente o não poder ser preso sem culpa formada; são também o não
poder ser preso em sua casa, de noite nunca, e de dia só com ordem
por escrito de Autoridade legitima; fazer o juiz constar o réu dentro de
certo prazo, por uma nota por ele assinada, e motivo da prisão, o nome
do seu acusador e os das testemunhas, etc. (Anais do Senado do Império
do Brasil, sessão de 9 de junho de 1828).

Na opinião de Caravelas, enfim, eram estas as formalidades a que se


referia o §35, e nunca aquelas concernentes “ao processo e julgamento do caso”.
No entendimento do senador, um dos principais responsáveis pela elaboração do
texto constitucional (LYNCH, 2007, pp.86-142): “Se a Constituição neste parágrafo
tivesse em vista as Comissões Militares, haveria feito expressa menção delas”.

Finalizada a discussão, ficou aprovado o art. 2º do projeto de lei de


abolição dos juízos privilegiados, fixando-se, assim, a proibição da formação de
comissões especiais no Império, ainda quando suspensas as garantias individuais
dos cidadãos. Retornando à Câmara baixa em agosto de 1828, o projeto seria
devidamente aprovado aos 22 do mesmo mês e encaminhado, então, à sanção
imperial.

Os debates analisados até aqui, seja no tocante aos pedidos de esclare-


cimentos ao Governo quanto à suspensão das garantias constitucionais, seja no
que tangia à formação de comissões militares e aos limites impostos à aplicação
do §35 do art. 179, mostram como, a pouco e pouco, prevaleceu na Assembleia
uma compreensão específica deste dispositivo, em acordo com a qual as garantias
constitucionais passíveis de dispensa não incluíam aquelas relativas às formalidades
do processo. Mais do que isso, a regulamentação que se buscava dar à aplicação
do §35 do art. 179, pautava-se pela necessária prestação de contas ao Legislati-
vo – nos casos em que partisse do Governo a iniciativa da suspensão – e pela
responsabilização das autoridades que, no decurso da medida, incorressem em
abuso de poder.

42
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Se tal não significava, necessariamente, que uma única interpretação do


texto constitucional e, mais especificamente, do §35 do art. 179, tivesse se articu-
lado, haja vista, em última instância, as múltiplas indefinições que se mantinham
sobre o dispositivo e a complexidade de seu entendimento e aplicação, tudo
parecia indicar que um consenso havia sido alcançado no tocante à questão. Mais
que isso, os debates travados sobre o tema entre os representantes do país e a
seriedade por eles demonstrada no tratamento da questão, demonstravam que,
por meio de sua vigilância constante sobre os atos do governo, os legisladores
buscavam impor limites à aplicação do §35, plasmando uma compreensão sobre
o dispositivo que, a pouco e pouco, se evidenciaria na legislação nacional.

Mal iniciado o ano de 1829, no entanto, e o aparente compromisso


de deputados e senadores em torno do §35 seria frustrado em duas frentes
praticamente simultâneas. Por um lado, os decretos de suspensão das garantias
constitucionais e de criação de uma comissão militar na província de Pernambuco,
passados pelo Executivo brasileiro em 27 de fevereiro de 1829 para o julgamento
dos envolvidos na sublevação de Afogados. Por outro, a recusa do imperador
Pedro I em sancionar o projeto de lei de abolição dos foros privilegiados, tal
como desenhado pelo Legislativo nacional.

Os representantes brasileiros, no entanto, também desta vez não ficariam


em silêncio, e seu ruído teria início já na reunião extraordinária da Câmara dos
deputados, convocada para abril de 1829.

Aos 3 de abril de 1829, Antonio Francisco de Paula e Holanda Cavalcanti


de Albuquerque (doravante Holanda Cavalcanti, eleito pela província de Pernam-
buco) cobrou do governo explicações pela suspensão das garantias e criação de
uma comissão militar em Pernambuco, nos meses que antecederam a abertura
dos trabalhos legislativos. Diversos deputados fizeram coro ao posicionamento
de Holanda Cavalcanti, mostrando que, ainda que desconhecessem detalhes dos
acontecimentos pernambucanos, bem como as medidas especificamente tomadas
pelo governo, sabiam da aplicação do §35, deixando clara sua intenção de cobrar
os esclarecimentos constitucionalmente previstos à Assembleia naqueles casos.

O recurso à suspensão das garantias constitucionais em Pernambuco, por


conta do levante de Afogados, bem como a criação de uma comissão militar
com carta branca para executar imediatamente sentenças capitais aos envolvidos
na sublevação, oficializados por três decretos aprovados pelo Executivo em 27
de fevereiro de 1829, configuraram os primeiros casos de recurso ao §35 pelo
governo desde a reunião do Legislativo nacional, em 1826. Se, como vimos acima,
medidas semelhantes já haviam sido empreendidas no Império (entre 1824 e
1825) e profusamente debatidas pelos representantes do país, esta era a primeira
vez em que o dispositivo era aplicado no intervalo dos trabalhos parlamentares.

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A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Nesta conjuntura específica, os decretos do Executivo assumiram tom


mais grave que os anteriores para os deputados. Por um lado, confrontavam di-
retamente a interpretação plasmada pelos representantes no tocante aos limites
da aplicação do §35 – materializada na redação do artigo 2º do projeto de lei
de abolição dos foros pessoais e expressa em diversas discussões previamente
travadas na Câmara. Por outro, os representantes desconfiavam que as prerro-
gativas necessárias à tomada de semelhante medida, pelo Executivo, tal como
estabelecido pelo texto constitucional – “perigo iminente da pátria” –, não haviam
se apresentado em Pernambuco, o que gerava, de sua parte, a suspeita de que
o governo agira de forma furtiva e inconstitucional.

Para além das particularidades diretamente relacionadas aos aconteci-


mentos de Pernambuco e ao teor específico dos decretos de 27 de fevereiro, as
medidas empreendidas pelo governo para lidar com a sublevação de Afogados
tiveram o agravante de se concretizar em um período de extrema tensão entre os
poderes Legislativo e Executivo, marcado por grande belicosidade dos deputados
e por uma disposição imediata, de sua parte, para a acusação do ministério.7

Se ao longo da sessão extraordinária – a despeito da insistência de diversos


deputados quanto à obrigatoriedade de os ministros prestarem contas à Assembleia,
independentemente do status de sua reunião, se extraordinária ou não8 – nada
ficou resolvido sobre o tema; abertos os trabalhos ordinários do Legislativo, em
maio de 1829, Vasconcelos enviou rapidamente à mesa requerimento exigindo
o cumprimento dos requisitos presentes no §35 do art. 179, “a fim de que esta
Câmara chegue a um perfeito conhecimento das medidas tomadas sobre os
acontecimentos políticos da província de Pernambuco, e a execução que têm
tido” (APB-CD, sessão de 6 de maio de 1829).

Acontece que, ante a reação extrema dos representantes aos decretos de


fevereiro de 1829, ainda na sessão extraordinária, o governo rapidamente decreta-
ra, aos 27 de abril daquele ano, o cancelamento das medidas empreendidas em
Pernambuco9, fato que os representantes só viriam a descobrir, passadas algumas
7 Desde a sessão extraordinária, diversos deputados falavam na acusação do ministério como principal recurso
contra o arbítrio do governo. Holanda Cavalcanti chegou, inclusive, a apresentar uma denúncia por crime de
responsabilidade contra os ministros da justiça e da guerra do país, aos 24 de abril de 1829. BARMAN, 1988,
pp. 130-159; RIBEIRO; PEREIRA, 2011, pp. 137-173; PEREIRA, 2010, pp. 113-223.
8 Nas palavras de Holanda Cavalcanti, logo aos 3 de abril de 1829: “A constituição diz, que correndo a pátria
perigo iminente poderá o governo, se a assembleia não estiver a esse tempo reunida, suspender algumas das
garantias individuais do cidadão, o governo fez essa suspensão; logo, a pátria está em perigo iminente. E como
de nada nos informa o governo? Eu digo senhores, que nada devemos nem podemos fazer sem que o governo
nos dê conta deste seu procedimento”.
9 Também a consulta de Pedro I ao Conselho de Estado, no mesmo 27 de abril de 1829, acerca da correta
interpretação do art. 101, §5, da Constituição (em acordo com o qual o imperador exercia o Poder Moderador,
“Prorrogando ou adiando a Assembleia Geral, e dissolvendo a Câmara dos Deputados, nos casos, em que o
exigir a salvação do Estado; convocando imediatamente outra, que a substitua”) leva a crer sua intenção de adiar
a abertura dos trabalhos regulares da Assembleia legislativa, ou mesmo dissolver a Casa, muito provavelmente
em razão do clima de extrema animosidade ali instalado (RECHDAN, 2016, p. 295-299).

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sessões, por meio dos esclarecimentos prestados à Casa pelos Ministros da Justiça
e da Guerra, justificando sua atuação naquela província.

De acordo com os ofícios enviados por Lucio Soares Teixeira de Gouveia


(ministro da Justiça) e Joaquim de Oliveira Álvares (ministro da Guerra), as me-
didas empreendidas em Pernambuco, já canceladas, legitimavam-se pelo fato de
ter-se ali “proclamado o sistema republicano de governo e abolido a monarquia
constitucional”, bem como pela inserção da revolta de Afogados no interior de
uma longa cadeia de acontecimentos desestabilizadores da ordem, transcorridos
em Pernambuco e nas províncias adjacentes havia algum tempo.

Em parecer sobre o assunto apresentado em finais de maio de 1829, a


comissão de constituição da Câmara reconheceu a legalidade da aplicação do §35
pelo ministro da Justiça, haja vista, em suas palavras, os reais perigos apresentados
à integridade do império e estabilidade do regime pela “rebelião” pernambucana,
acusando, no entanto, as medidas autorizadas pelo ministro da Guerra, de de-
sacordo com a previsão constitucional. Em acordo com a comissão, os decretos
assinados por Oliveira Álvares ultrapassavam os limites inerentes à aplicação do
§35, dentre os quais, especificamente, a proibição de formação de comissões
especiais para o julgamento dos cidadãos (COSTA, 2017, p. 7).

Aprovado o parecer da comissão de constituição, acirrados debates teriam


lugar na Câmara baixa entre os meses de junho e julho de 1829. Por um lado, um
grupo de deputados debateria calorosamente a absolvição de Teixeira de Gouveia,
mobilizando uma série de argumentos favoráveis e contrários ao posicionamento
assumido pela comissão ante a atuação do ministro da Justiça. Por outro, seguindo
os trâmites da lei de responsabilidade, uma nova avaliação do parecer resultaria
na abertura de denúncia formal, por crime de responsabilidade, contra Oliveira
Álvares, desdobrando-se na defesa do ministro da Guerra e no desenrolar de
amplos debates até a decisão por sua inocência, em meados de julho de 1829.

Tais debates conformaram mais uma oportunidade em que leituras do


§35 do art. 179 foram intensamente mobilizadas pelos representantes do país.
Sua análise revela, nesse sentido, a presença das mais distintas interpretações
deste dispositivo, fundadas em leituras dissonantes sobre o texto constitucional
e interesses políticos específicos, em especial no tocante à acusação, ou não, do
ministério de Pedro I.

Uma vez mais, vemos aparecer nas falas dos deputados, distintas interpreta-
ções acerca dos limites do §35, das “formalidades” passíveis, ou não, de suspensão,
das circunstâncias especificamente necessárias à sua aplicação, do status legal ou
extraordinário da medida e, consequentemente, da possibilidade ou efetividade
da admissão ou proibição de sua aplicação no país.

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A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Assim como em 1826, portanto, os representantes brasileiros seguiam


disputando, em 1829, quais dentre as garantias previstas pelo artigo 179 eram
passíveis de suspensão quando do recurso ao §35. Mobilizavam, para tanto, a
partir de diferentes perspectivas, o texto dos decretos emitidos em 27 de fevereiro
de 1829, em acordo com os quais, mandava-se “suspender provisoriamente na
mesma Província [Pernambuco], as referidas formalidades, a fim de que se possa
proceder, sem elas, contra quaisquer indivíduos complicados naquela rebelião,
até que cesse a necessidade urgente desta medida”, prevendo ainda a criação
de comissões militares “em a qual serão verbal, e sumariamente processados os
cabeças, e os que forem apanhados com as armas na mão”, e especificando que
as sentenças passadas por essa comissão fossem “imediatamente executadas, sem
que primeiramente subam à minha Imperial presença”.

Para os acusadores do ministério, uma vez que as garantias passíveis de


suspensão estavam limitadas às formalidades concernentes à liberdade e segurança
dos réus – restringindo-se, assim, à prisão sem culpa formada e a outras medidas
relativas à prisão dos envolvidos em movimentos de contestação à ordem –, o
ministério era culpado por ultrapassar esses limites, aprovando medidas que, em
desacordo com o §35, permitiam a suspensão de todas as formalidades garanti-
doras da liberdade individual dos cidadãos e por tempo indeterminado.

Já o argumento dos defensores do ministério repousava numa leitura em


acordo com a qual a medida regulada pelo §35 estendia-se a todas as garantias
previstas pelo artigo 179, uma vez que, no seu entendimento, havendo a neces-
sidade de expansão extraordinária da lei, os únicos direitos que seguiam em vigor
eram aqueles que poderiam garantir a salvação da pátria. Para estes representantes,
portanto, o texto dos decretos de fevereiro não se encontrava em desacordo com
a Constituição, uma vez que, para além da inexistência dos limites advogados por
seus opositores na contenda, a fórmula “até que cesse a necessidade urgente desta
medida” fixava limites temporais precisos à vigência do dispositivo.

Para além deste ponto específico, também a “qualidade” do movimento


transcorrido em Pernambuco foi bastante disputada pelos representantes do país.
Se, para uns, o ocorrido naquela província não passara, quando muito, de uma
sedição, bastante distante de apresentar perigo iminente ao país; para outros,
tratara-se indubitavelmente de uma rebelião, tendo o governo agido, acima de
tudo, para evitar um mal maior. Afinal, perguntavam-se ambos os lados, havia
“perigo iminente da pátria” unicamente quando instaurada uma rebelião, ou desde
que houvesse a possibilidade de se configurar tal quadro? As opiniões sobre este
ponto não poderiam ser mais distintas, dando origem a leituras absolutamente
opostas sobre a legalidade da aplicação do §35 em Pernambuco.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Outra tônica dos debates de 1829 referia-se à própria necessidade, ou


não, de previsão constitucional de medidas extraordinárias e ao modo como se
poderia/deveria regulamentar uma questão como esta. Para parte dos deputa-
dos, a previsão de uma medida como a suspensão das garantias constitucionais
dos cidadãos só poderia ser extraordinária – e, portanto, nunca figurar em um
texto legal –, como eram extraordinários os fatos que levavam a ela. Para outros,
por sua vez, era necessário que se aprovasse leis claras no sentido de impedir
ou permitir a criação, por exemplo, de comissões militares no país, podendo-se
unicamente a partir de tal medida julgar da legalidade, ou não, de sua efetivação.

Nos debates travados sobre a acusação de Oliveira Álvares, inclusive, foi


este o argumento mais fartamente mobilizado por seus defensores, para quem,
na ausência de leis claras impedindo a criação de comissões militares no país, e
haja vista a não acusação dos ministros responsáveis pela criação de tribunais
semelhantes no Império em 1824 e 1825, não restava justa a condenação do
atual ministro da Guerra. Sublinhando seu ponto, os defensores de Oliveira Álvares
recorreram ainda aos debates travados na Assembleia, entre 1826 e 1828, em torno
do artigo 2º do projeto de lei de abolição dos juízos privilegiados, afirmando que,
se a proibição constitucional das comissões militares fosse tão óbvia como agora
queriam fazer crer os acusadores do ministério, não teria havido motivos para que,
àquela altura, a questão fosse tão amplamente debatida na Casa.

A despeito da vitória conquistada no episódio, o governo de Pedro I saiu


enfraquecido da contenda. Poucos dias após sua absolvição, Oliveira Álvares deixou
o ministério da Guerra, substituído por Clemente Pereira. Para além disso, a abertura
da denúncia e a divulgação do repúdio da classe política ante os desmandos do
governo, fortaleceram os opositores do imperador, dando esteio ao enfrentamento
aberto contra o governo instaurado desde o início da segunda legislatura, que,
vale enfatizar, sofrera ampla renovação, compondo-se majoritariamente agora por
políticos de oposição ao imperador (RECHDAN, 2016, pp. 366-389).10

Sublinhe-se ainda que, a despeito da absolvição de Oliveira Álvares, as


graves consequências geradas pelos decretos de fevereiro de 1829, em especial
aquele assinado pelo ministro da Guerra, prevendo a criação de comissão militar
em Pernambuco, parecem ter confirmado a interpretação dos deputados, ensaiada
em ocasiões anteriores, acerca da não inclusão dos tribunais de exceção dentre as
medidas autorizadas pela aplicação do §35 do art. 179. Assim sendo, nas próximas
10 Algum tempo mais tarde, em sessão da Câmara dos deputados de 18 de maio de 1830, Lino Coutinho
faria menção explícita aos ganhos que a acusação contra o ministro da Guerra teria trazido ao sistema re-
presentativo nacional, a despeito da absolvição de Oliveira Álvares. Discutindo, nesse sentido, a ampliação das
galerias da Câmara baixa, o deputado afirmaria: “A questão, Sr. presidente, da acusação do ministro da guerra
foi uma das que mais influiu sobre a liberdade do Brasil: a concorrência dos cidadãos brasileiros para verem
esta questão decidida, observando a maneira com que a maior parte dos deputados se portaram aqui à frente
do poder, desenvolveu uma opinião pública que é o que nos tem salvado de não estarmos debaixo do jugo
do despotismo.”

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A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

ocasiões em que recorreram a este dispositivo, ainda no Primeiro Reinado e pela


história imperial adentro, o Executivo e o Legislativo brasileiro prescindiram da
criação de semelhantes tribunais. Mais que isso, o impacto dos debates de junho
e julho de 1829 parece ter influenciado o posicionamento do Governo quando
da próxima ocasião de aplicação do §35, resultando em maiores cuidados ante
o recurso ao dispositivo.

Foi justamente a legislatura renovada de 1830 a responsável por analisar,


assim, os efeitos do novo decreto de suspensão das garantias constitucionais dos
cidadãos aprovado pelo Executivo brasileiro, em 31 de outubro de 1829, para
lidar com as primeiras movimentações daquela que, alguns anos mais tarde, ficaria
conhecida como a Revolta de Pinto Madeira, transcorrida no interior do Ceará.

De cariz absolutista, as agitações que deram origem ao decreto de outu-


bro vinham sendo comunicadas ao governo brasileiro – na pessoa do ministro
dos negócios do Império do Brasil, José Clemente Pereira –, pelas autoridades
cearenses, desde fins de agosto de 1829. Por meio de tais comunicações, dava-se
parte ao Governo da existência de quatro mil homens armados, no interior da
província, sob a chefia do coronel Pinto Madeira, com intuitos de “extinguir o
sistema adotado, e jurado, de um governo constitucional representativo, e instaurar
a monarquia pura, e simples”.

Reunido para discutir a matéria unicamente aos 28 de outubro de 1829,


e confrontado com a possibilidade de uma guerra civil no interior daquela pro-
víncia, o Conselho de Estado deliberou com cautela acerca das medidas a serem
empreendidas no Ceará. Claramente impactados pelas acusações recentes a que
os decretos de fevereiro de 1829 haviam dado azo, os conselheiros a se manifes-
tar sobre a questão chamaram a atenção à proibição da suspensão integral das
formalidades que garantiam a liberdade individual dos cidadãos, questionaram-se
sobre a conveniência da aplicação da medida previamente à confirmação de
uma rebelião nos locais destacados e defenderam que, no possível julgamento
dos envolvidos na sublevação, se procedesse em acordo com os meios ordinários
de justiça.

Por meio do decreto aprovado em 31 de outubro, o Governo decidiu,


enfim, pelo recurso ao §35, estabelecendo a suspensão provisória, na província
do Ceará, pelo tempo de seis meses, “se antes se não tiver conseguido o resta-
belecimento da ordem e a perfeita tranquilidade dela”, dos parágrafos 4º, 6º, 7º,
8º, 9º e 10º do artigo 179, da Carta de 1824. Parece ter havido, assim, da parte
do Executivo – em especial se compararmos o teor deste decreto ao daqueles
que o precederam –, uma tentativa de fixar e, desta forma, limitar, as garantias
dispensadas pela aplicação do §35, bem como estabelecer um limite temporal

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

preciso à vigência do decreto, buscando, desta maneira, evitar acusações seme-


lhantes às recebidas pelos responsáveis pelos decretos de fevereiro.

Também desta vez, no entanto, as “formalidades” dispensadas pelo Execu-


tivo infringiam a compreensão geral sobre o §35 defendida pelos representantes
do país, uma vez que o decreto de 31 de outubro elencava, dentre as garantias
a serem suspensas, a liberdade de expressão e de imprensa (§4º do art. 179), a
liberdade de ir e vir (§6), a inviolabilidade do lar (§7º), a proibição de prisão sem
culpa formada (§8º), o direito à fiança (§9º) e a proibição de prisões senão por
ordem escrita de autoridade competente (§10º).

Nesse sentido, ainda que os debates travados sobre este decreto nas sessões
parlamentares de 1830, não tenham esmiuçado seu conteúdo (como fizeram os
deputados, em 1829, sobre os decretos de fevereiro) privilegiando, como veremos
à frente, outros aspectos da questão, não passou batido para os representantes
a extensão das garantias dispensadas pelo documento e seu desacordo com os
compromissos firmados na Casa, até então, em torno à aplicação do §35.

Vasconcelos foi o primeiro deputado a se manifestar nesse sentido, quando


de uma discussão, ainda nas sessões preparatórias de abril, acerca da validação
do diploma de deputado de Teixeira de Gouveia. Avaliando, neste contexto, a
atuação do antigo ministro da Justiça do país, Vasconcelos taxou-o de “assassino
das garantias brasileiras”, lembrando que o ministro “as suspendera todas em
Pernambuco” e, ciente do erro cometido, fora “emendar a mão” no decreto pas-
sado para o Ceará. Este, por sua vez, na opinião de Vasconcelos, “para além dos
milhares de erros e crimes que encerra”, possuía o grande defeito de suspender
a liberdade de imprensa e de expressão naquela província pelo espaço de seis
meses, emudecendo e encerrando todos os cearenses, por aquele período, em
completa “nulidade política” (APB-CD, sessão de 29 de abril de 1830).

Na Fala do Trono enunciada pelo imperador aos 3 de maio de 1830, o


ocorrido no Ceará foi mencionado unicamente nos seguintes termos: “O meu
ministro e secretários dos negócios da justiça, na forma que a constituição manda,
vos fará saber os motivos que obrigaram o governo a suspender temporariamente
algumas das garantias individuais na província do Ceará”.11

Aos 7 de maio, os Anais da Câmara registraram a leitura de ofício do


ministro da Justiça, remetendo à Casa a cópia do decreto de 31 de outubro,
bem como de documentos e outras medidas tomadas para lidar com a ameaça
de proclamação absolutista no interior do Ceará. Os documentos entregues pelo
ministro foram remetidos à comissão de guarda da constituição, cujo parecer sobre
11 O ministério da justiça, a esta altura, era encabeçado pelo visconde de Alcântara (João Inácio da Cunha).
Lembrando que o ministério anterior de Pedro I, alvo de tantos descontentamentos e acusações, fora integral-
mente substituído pelo imperador aos 4 de dezembro de 1829.

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A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

o assunto foi lido na sessão de 17 de maio. Nele, os membros da comissão de-


claravam, de saída, seu desacordo com as medidas empreendidas pelo ministério,
afirmando não poder deixar de reconhecer que, ainda diante de situação supos-
tamente atentatória à segurança constitucional do país, as deliberações tomadas
pelo governo não haviam sido presididas por “circunspecta e sisuda reflexão”, haja
vista a natureza específica das medidas empreendidas.

Nesse sentido, ainda reconhecendo os riscos oferecidos pela situação, em


acordo com os membros da comissão:
[...] nada disto deveria influir o governo, para se arrogar a atribuição de
privar aos cearenses de direitos tão sagrados como indestrutíveis, sem se
lembrar que no §35 do art. 179, apenas se lhe concede suspender algumas
das formalidades que garantem a liberdade, e nunca direitos essenciais,
que formam os princípios vitais da constituição.
A comissão não pode jamais descobrir a razão porque se deva chamar
formalidade, o direito de comunicar os pensamentos; de sair para fora do
império, guardados os regulamentos policiais; de ter em sua casa de noite
um asilo inviolável; de ser admitida a fiança nos casos da lei, que não
é de certo nos casos de rebelião; e de não ser preso senão por ordem
escrita de autoridade legítima. Entretanto o decreto de 31 de outubro do
ano passado privou aos cearenses de todos estes direitos, chamando-os
formalidades!!! E para que fim? A comissão não o descobre. (APB-CD,
sessão de 17 de maio de 1830)

Mais à frente, o parecer sublinhava ainda a restrição das medidas de pre-


venção autorizadas pelo §35 à possibilidade de prisão sem culpa formada. Ante
este quadro, os membros da comissão afirmavam que as medidas de que deveria
ter lançado mão o governo na prevenção à rebelião que ameaçava as províncias
do norte, seriam: a suspensão do coronel Pinto Madeira e sua remoção daquele
lugar juntamente a seus comparsas; a conservação do presidente da província do
Ceará, que grande barreira vinha fazendo aos “anarquistas da província”; e a inteira
dissolução da sociedade secreta conhecida como Coluna do Trono, estabelecida
em Pernambuco e ramificada pelo sertão cearense.

Apesar de reconhecer, por fim, que o ministro havia abusado das limitadas
faculdades proporcionadas pelo §35 (“suspendendo direitos que jamais se podem
reputar formalidades”) e que não havia empreendido as medidas necessárias à
interrupção do mal em curso, os membros da comissão afirmavam que, tendo
em vista a urgência de outros assuntos a povoarem a pauta da Casa, reservavam
para tempo conveniente a acusação do ministro prevaricador, optando em, por
ora, seguir a marcha dos negócios que a Câmara tinha sob os olhos.

O parecer, ao que tudo indica, nunca foi debatido pela Casa, mas seu
conteúdo é suficientemente significativo do modo como, ainda em 1830, o

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

recurso ao §35 seguia instigando os parlamentares do país e defrontando-os, a


cada episódio de sua aplicação, com as complexidades inerentes a este dispositivo
extraordinário de proteção da ordem pública.

É digno de se observar, nesse sentido, que, a despeito das diversas ocasiões


em que os parlamentares debateram a aplicação do §35 no país e plasmaram uma
compreensão (ainda que permeada de dúvidas) acerca dos limites inerentes à sua
utilização, o Governo do Império seguia recorrendo ao dispositivo nos intervalos
das reuniões legislativas e buscando alargar, de uma forma ou de outra, as prer-
rogativas disponíveis à repressão aos movimentos de contestação à ordem. Em
todas essas ocasiões, no entanto, com diferentes tons a depender da conjuntura
política nacional, parte dos representantes do país parece ter se prontificado na
defesa da Constituição e dos direitos dos cidadãos, reivindicando a imposição de
limites à atuação e aos desmandos do Governo.

Diferentemente de 1829, em 1830, como o próprio parecer acima anali-


sado deixa ver, a acusação do ministério parecia não conformar prioridade aos
deputados da oposição. Até porque, a esta altura, os ministros responsáveis pelos
decretos de 1829 já não ocupavam mais seus cargos no Executivo. Nesse sentido,
deputados antes fervorosamente partidários da abertura de denúncias, por crime
de responsabilidade, contra homens como Teixeira de Gouveia e Oliveira Álvares,
passaram a defender, tanto no tocante aos decretos de outubro de 1829, quan-
to no que respeitava a outras questões descobertas ao longo de 1830, antes a
exposição pública dos crimes do ministério anterior, que a acusação formal de
seus membros12.

Tal não significava, no entanto, que homens como Vasconcelos, Lino


Coutinho, Custódio Dias, Holanda Cavalcanti e Ernesto Ferreira França deixariam
passar em branco os “crimes do ministério transato”, como não cansavam de
falar. Na nova conjuntura política nacional, em que formavam maioria na Câmara
baixa, os representantes da oposição parecem ter apostado, se não na acusação
dos ex-ministros, na invalidação de seus diplomas de deputados, já que alguns
deles haviam sido eleitos para a segunda legislatura.

12 Nas sessões de 21 e 30 de junho de 1830, por exemplo, os deputados vêm confirmada pelo governo uma
desconfiança que haviam revelado possuir em diferentes momentos dos debates daquele ano, qual fosse, a de
que o Executivo brasileiro havia tornado extensivos a diversas províncias do Império, ainda que unicamente de
forma preventiva, os decretos de suspensão das garantias e de criação de uma comissão militar em Pernambuco,
em fevereiro de 1829. A revelação de tal medida, realizada por meio de ofícios comprobatórios assinados pelos
ministros da Justiça e da Guerra, foi recebida pelos deputados como prova absoluta das mentiras e traições do
ministério anterior. Nesta conjuntura, no entanto, diferentemente do ocorrido entre maio e julho de 1829, os
deputados da oposição não bradaram pela acusação dos ex-ministros, mas antes pela máxima publicidade da
descoberta – pedindo a publicação dos ofícios nos principais periódicos do país –, com vistas especialmente
à comprovação, diante dos eleitores nacionais, de sua correta atuação no ano anterior em oposição àquele
ministério.

51
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Desde a abertura dos trabalhos parlamentares de 1830, portanto, a va-


lidação dos diplomas de homens como Teixeira de Gouveia, Oliveira Álvares e
Clemente Pereira, esteve na pauta dos representantes nacionais, dando azo a
fartas discussões acerca da viabilidade de se aceitar, ou não, na “Casa do povo”,
homens que haviam provado, por mais de uma vez, sua inimizade à causa nacional
e à Constituição do país. Nas sessões preparatórias de abril de 1830, chegou-se
a demandar do Governo as felicitações pretensamente enviadas ao imperador
por diferentes Câmaras municipais do país pela demissão do ministério anterior,
afirmando-se que tais felicitações seriam prova suficiente da impossibilidade de
seus titulares ocuparem, agora, cargos junto à representação nacional.

Foram ainda debatidas, nestas como nas sessões regulares de 1830, as


prerrogativas de que dispunham os deputados para invalidar o diploma de co-
legas cuja eleição transcorrera dentro da normalidade (ou seja, em acordo com
os preceitos constitucionais e as Instruções eleitorais de 1824), com alguns dos
representantes questionando tal procedimento e cobrando da deputação que, em
casos como os de Clemente Pereira e Oliveira Álvares, acusados de contrariedade
ao regime representativo e tentativa de instalação de um governo absolutista no
país, se procedesse, antes, via acusação formal por crime de responsabilidade, que
por meio da invalidação de seus diplomas legais de deputados.

Para os representantes favoráveis à invalidação, por sua vez, proceder à


acusação formal dos ex-ministros resultaria, necessariamente, em perda de tempo.
Por um lado, por possuir a Câmara questões muito mais urgentes a resolver, por
outro, por serem de conhecimento público as estratégias tramadas pelo Governo
para a não acusação de seus ministros, tal como transcorrido no julgamento do
ex-ministro da Guerra, Oliveira Álvares, em 1829. O episódio do julgamento do
ex-ministro é, assim, recuperado por diversas vezes pelos deputados ao longo de
1830, com múltiplas referências ao modo como o imperador, seus ministros e os
militares do país, atuaram e tramaram no sentido de impedir sua acusação. A
cada vez em que abordaram a questão, os deputados da oposição lamentaram
o ocorrido e se mostraram indignados ante a impunidade em que ficaram os
ministros responsáveis pelos decretos pernambucanos de fevereiro de 1829.

A validação dos diplomas de Oliveira Álvares e Clemente Pereira, como


as discussões acima referidas deixam ver, começou a ser avaliada ainda em abril
de 1830, decidindo-se, no primeiro caso, pelo adiamento da matéria até a aber-
tura das sessões ordinárias da Câmara, haja vista a complexidade da questão. Já
o caso de Clemente Pereira chegou a ser avaliado pela comissão de poderes da
Casa ainda em sessão extraordinária, determinando-se, em parecer emitido aos
2 de maio de 1830, que, a despeito da certeza que possuíam seus membros
quanto aos crimes perpetrados pelo ex-ministro, julgavam legítimo seu diploma
por inexistência de provas concretas contra ele.

52
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Para esta decisão, a comissão havia avaliado uma série de documentos


concernentes aos acontecimentos que deram origem ao decreto de 31 de outubro
de 1829, aprovado para a província do Ceará. Tomando conhecimento de seu
teor, os deputados logo começaram a inquirir a comissão sobre a atuação de
Clemente Pereira e a questionar a efetiva ausência de provas contra ele. Afinal,
ainda que o ex-ministro não tivesse deixado documentos explícitos comprovan-
do sua simpatia e incentivo à causa absolutista no país, seu imobilismo ante os
comunicados enviados pelo presidente do Ceará eram prova suficiente, para os
deputados da oposição, de que Clemente Pereira optara por não impedir Pinto
Madeira na perseguição de seus intentos.

Em acordo com os registros dos Anais:


O Sr. Secretario leu os ofícios do presidente do Ceará e documentos
que acompanhavam o parecer da comissão. (Não vieram com a ata).
O Sr. Vasconcelos – Não há resposta do ministério a esses ofícios?
O Sr. Carneiro da Cunha – Não há mais ofícios do Sr. Clemente Pereira
em resposta, há um dirigido ao ministro da justiça acerca deste negócio
para que por aquela repartição tomasse as providencias que julgasse
convenientes.
O Sr. Paula Souza – E não aparece oficio desse mesmo senhor para a
repartição da guerra?
O Sr. Carneiro da Cunha – Não; porque ele mesmo era o ministro da
guerra nesse tempo.
O Sr. Paula Souza – E não aparece oficio dele em que suspendesse a
esse homem do seu posto?
Os Srs. da Comissão – Não.
O Sr. Vasconcelos – E não houve resposta do governo senão ao oficio
de 25 de Agosto?
O Sr. Barreto – Há só o oficio do Sr. Clemente Pereira que era ministro
do império dirigido ao ministro da justiça e outro do atual ministro do
império [marquês de Caravelas], para não por em pratica o decreto
de suspensão das garantias e aprovando as medidas preventivas que o
presidente da província tinha adotado.

Para além, portanto, de não ter respondido ao presidente do Ceará quan-


do das primeiras informações enviadas sobre os acontecimentos transcorridos
no interior da província, de não ter atuado na qualidade de ministro da guerra
– enviando, por exemplo, tropas ao interior daquela província – e de não ter
imediatamente suspendido Pinto Madeira de seu posto, os documentos sob análise
dos deputados demonstravam que os decretos de 31 de outubro não haviam
sequer sido executados, tendo-se considerado suficientes ao apaziguamento da
sublevação, as medidas de prevenção empreendidas pelo presidente da província.

53
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
REINADO BRASILEIRO: OS DEBATES SOBRE O §35 DO ART. 179 DA CONSTITUIÇÃO EM 1826, 1829 E 1830

Ainda que esta discussão específica não tenha tido prosseguimento na


Câmara, a gritante diferença de atuação do Governo ante a movimentação repu-
blicana de Pernambuco, em fevereiro de 1829, e a ameaça absolutista no sertão
do Ceará, marcaria os discursos de diversos deputados engajados na comprovação
do absolutismo do antigo ministério e, especialmente, do ex-ministro do Império,
fornecendo-lhes elementos para reafirmarem a incapacidade de Clemente Pereira
de sentar-se ao lado dos demais representantes da nação.

Os debates sobre a admissibilidade dos diplomas de Clemente Pereira e


Oliveira Álvares desenrolam-se entre os dias 14 de maio e 2 de junho de 1830
decidindo-se, afinal, pela inclusão de ambos dentre o rol de representantes do
país. Ao longo destes debates, a questão da suspensão das garantias constitucionais
foi recuperada por diversas vezes, em especial pelos opositores dos ministros, que
mobilizaram-na para abordar tanto os crimes cometidos por Oliveira Álvares no
início do ano anterior em Pernambuco, quanto a falta de atuação de Clemente
Pereira ante os distúrbios absolutistas do interior do Ceará.

Ainda em 1830, portanto, a questão ganhava importância na Casa dos


representantes, os quais, a despeito das manobras do governo e de suas aplica-
ções duvidosas do §35, seguiam defendendo, com tons variados a depender da
conjuntura em questão, os limites que acreditavam inerentes à aplicação deste
dispositivo e, em linhas gerais, a preservação das garantias constitucionais dos
cidadãos do país.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

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55
A COMPREENSÃO PARLAMENTAR DA SUSPENSÃO DAS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DOS CIDADÃOS NO PRIMEIRO
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Anais do Parlamento Brasileiro – Câmara dos Deputados (APB-CD)
Disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.

56
Grupo de Trabalho

HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA CRIMINAL


BRASILEIRA (CRIME, PROCESSO E PENAS)
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO


DURANTE A REGÊNCIA

JOÃO LUIZ DE ARAUJO RIBEIRO


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ

Resumo
O artigo, apresentado no IX Congresso Brasileiro de História do Direito,
tendo como base as pesquisas que realizei, no tempo de meu doutoramento,
em jornais da Corte, especialmente nos resumos das sessões do júri, e na cor-
respondência de Eusébio de Queiroz, chefe de polícia e juiz da primeira vara,
com os juízes de paz, traça panorama do tribunal do júri da corte imperial
entre 1833 e 1841.
Na primeira parte do trabalho, acompanhamos Eusébio de Queiroz Matoso
Câmara, suas dúvidas e seu entusiasmo com a nova instituição. Na segunda
parte apresentamos os resultados das pesquisas nas fontes mencionadas, tra-
zendo as estatísticas relativas ao julgamento dos principais crimes contra as
coisas – furto, furto de escravos, roubo e estelionato – e contra as pessoas
– ferimentos simples, ferimentos graves, tentativa de homicídio e homicídio,
tanto do júri de acusação como do júri de sentença.


Segunda feira, 19 do corrente reuniram-se no Paço da Câmara Municipal
os 60 cidadãos, que haviam sido sorteados para comporem os Conselhos do Jury
de Acusação e o de Sentença, na forma do Código do Processo; e cheias as
formalidades prescriptas na Lei, começaram logo os seus trabalhos em presença
de um grande concurso de espectadores, reinando o mais profundo respeito, e
a melhor ordem no andamento de tão augustas funções.

19 de agosto de 1833, dia de grandes esperanças, de muita expectativa.


O tribunal dos jurados representava, então, a liberdade diante do despotismo, do
arbítrio, do obscurantismo, de tudo, enfim, que caracterizaria, segundo o pensa-
mento liberal e iluminista de fins do setecentos e início dos oitocentos, o antigo
regime, em particular o antigo sistema penal, com suas torturas, seu segredo, seus
suplícios, suas inquisições.1
Pode dizer-se que neste dia a Liberdade recebeu uma nova indispensável
garantia, que há muito lhe faltava, e por isso a Justiça não era nem pronta,
nem bem administrada. Um cidadão julgado pelos seus pares, depois de

1 Sobre a ruptura representada pelo júri: ACTES DU COLLOQUE D’ORLEANS – La Révolution et l’ordre
juridique privé – Rationalité ou scandale? – PUF, 1986; CARBASSE, Jean-Marie – Histoire du droit pénal et de la
justice criminelle – PUF, 2000; CLAVERO, Bartolomé – “Crédito del jurado y credenciales del constitucionalismo”,
in: Happy Constitution. Editorial Trotta, 1997.

59
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

acusado e defendido em toda publicidade, é um espetáculo digno de um


povo Livre; mas ele desgraçadamente faltava ao Brasil.
Esta Instituição deve merecer o maior respeito dos Brasileiros Liberais,
porque os arranca de uma dependência filha do feroz despotismo, em
que a arbitrariedade tinha toda a influência, e o réu não achava outro
recurso do que chorar sobre seus ferros, esquecido em sua desgraça, e
até mesmo sem se atrever a queixar-se para não indispor o seu Juiz, que
em tal caso é o seu opressor.

Mas o juiz de direito da primeira vara e chefe de polícia, Eusébio de


Queiroz Matoso Câmara, estava ciente dos desafios que o novo trazia, e que a
experiência do júri era um aprendizado, para magistrados e cidadãos, e para os
legisladores que se encarregariam de melhorar a máquina recém-criada:
Apesar de que as luzes dos Srs. Juiz de Direito e Promotor encaminhem
bem desde seu princípio esta tão útil e respeitável Instituição, todavia não
duvidamos que ela encontre muitos daqueles tropeços, que são próprios
dos novos estabelecimentos. Mas como tanto esses Magistrados, como os
beneméritos cidadãos juízes, se mostram empenhados em sustentar as
fórmulas garantidoras da inocência, sem falta de justo e pronto castigo do
crime para bem da Sociedade, acreditamos que em breve se vencerão as
dificuldades aparecendo as preciosas vantagens, que todos os países livres
colhem de tão salutar Instituição, além de que a prática amestra, e a pu-
blicidade é forte motivo para circunscrever-se qualquer na órbita de suas
obrigações, temos demais, que a experiência irá mostrando o que devem
os legisladores reformar nos Códigos para que o sistema dos julgamentos
para Jurados no crime possa marchar desembaraçado, e produzir os bens
que são fáceis de se perceberem.

Ao fim, ressalta o papel pedagógico da função de julgar:


A instrução difunde-se cada vez mais pela Imprensa; o estudo das Leis
vai-se tornando geral, as funções de Jurados convidam ao estudo os que
capricham em cumprir bem com os seus deveres; d’aqui os costumes se
amelhorarão, tanto pelos conhecimentos, como pela certeza de que os crimes
serão infalivelmente e prontamente punidos. A inauguração do respeitável
Tribunal do Jury, em nossas circunstâncias, é por tanto motivo bem digno
para nos felicitarmos todos os amigos da Pátria e da Liberdade, e o dia
19 de agosto de 1833 ficará célebre nas páginas da nossa história, porque
nele começara o Jury a julgar dos crimes, como recomenda a Constituição.2

Grandes esperanças.3

2 Correio Oficial, 23 de agosto de 1833 – Artigos não oficiais.


3 O Jornal do Comércio de 19 de maio de 1835 anunciava três livros para a instrução dos jurados: Exame
sobre o jury, Guia dos Jurados e Código dos Jurados, o primeiro custava 2$000 réis, os outros dois 1$000.

60
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

As Sessões Diárias

O primeiro problema com o qual a nova instituição do júri defrontou-


se está relacionado a uma das críticas que se fazia à Justiça do Antigo Regime.
Embora a Justiça Civil não conhecesse a pena de prisão, os réus, sobretudo os
pobres, os que não possuíam o privilégio da Homenagem, ou condições de obter
Cartas de Seguro, poderiam penar anos e anos em prisão preventiva, antes que
seu caso fosse definitivamente julgado.
E muitas vezes os criminosos gemiam mais anos na prisão antes do
Julgamento, do que seriam os da sua sentença, que antes da Instituição
do Jury, se diferia demais em mais, sem que o exemplo do castigo
aproveitasse, ou a reparação do ...(?)... manifestasse o respeito, em que
se deve ter tida a humanidade. A prova de tão graves inconvenientes
acha-se palpável, nas três primeiras sentenças já publicadas nesta sessão
do Jury. No dia 19 foi condenado a 4 anos de galés um preso desde
1827 (Firmino), no dia 20 a 6 anos outro preso desde 1828 (Valentim);
e no dia 21 foi absolvido outro (Francisco da Mota), que gemera preso
desde março de 1829.

Nem este último padecera confundido com os criminosos se o Jury fos-


se já estabelecido; nem os dois condenados teriam de sofrer o dobro da pena,
incorrida por seus crimes.

Noticiando o fim da primeira sessão judiciária, o Correio Oficial alinhou


entre as dificuldades que os primeiros jurados enfrentaram:
a irregularidade dos processos, cujas pessoas pareciam mais confundir
as questões, do que encaminhar o juízo dos Julgadores, podendo daqui
tirar-se uma consequência bem desfavorável à antiga praxe, e é, que
sempre que o réu era miserável, e a Justiça autora, os escrivães nem se
apressavam, nem se esmeravam em instruir convenientemente os seus
processos. Deus queira que uma pronta indispensável reforma lhe chegue
por casa, para não se verem mais tanto esquecimentos dos pobres réus,
que nenhuma utilidade podem colher de fazerem anos e anos em prisão,
sem ser por sentença, e que pro quo semelhante aos de que já tratamos
em um dos números anteriores.4

Como deveriam ser julgados os pronunciados antes da entrada em vigor


do Código do Processo, estivessem ou não presos. Seriam julgados pelo júri? Se-
riam julgados pelo primeiro conselho, ou apenas pelo segundo? A resolução do
poder legislativo, de 22 de agosto de 1833, permitiu que o réu optasse entre ser
julgado pelo juiz de direito ou pelo júri de sentença. Note-se que não permitiu
uma nova pronúncia, nem mesmo que a antiga fosse sustentada, ou não, por
um júri de acusação. Pouco menos de dois anos depois, o Juiz de Paz Cabeça

4 Correio Oficial, 23 de agosto de 1833 – Eusébio de Queiroz – Relatório da Primeira Sessão do Júri.

61
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

do Termo pode comunicar que havia apenas dois processos para o Segundo
Conselho de réus pronunciados antes de 05 de dezembro de 1832. 5

Se antes o problema situava-se em torno dos processos anteriores ao Có-
digo, e a culpa bem podia ser atribuída às mazelas do Antigo Regime, agora não
mais. Os crimes não deixavam de ocorrer. Novas pronúncias e novas acusações
exigiam novos julgamentos. Um descompasso crescente poderia ocorrer entre as
três instâncias. As pronúncias dos juízes de paz dos distritos poderiam não chegar
ao Juiz de Paz da Cabeça do Termo (encarregado de apresentá-las ao júri)6, o
primeiro conselho poderia não dar conta das pronúncias dos juízes de paz, as
acusações do primeiro conselho poderiam acumular-se7 e o segundo conselho,
por sua vez, poderia não dar conta do volume de processos que a ele chegasse.

Tudo dependia da disposição – da disponibilidade e boa vontade – dos


homens encarregados de julgar. Para o bom funcionamento do tribunal do júri
dependia-se da disposição dos jurados em cumprirem suas obrigações. O com-
parecimento dos 60 de há muito já não era esperado. O número de presentes
a cada dia situava-se entre 48 e 51, não mais. O Código do Processo, talvez
prevendo dificuldades, estipulara uma regra e, a seguir, a exceção. A regra era a
do artigo 314, para o júri abrir as suas sessões era necessário estarem presentes
48 jurados; a exceção era a do artigo 320, não se obtendo esse número, nem
mesmo pela maneira indicada no artigo 3158, bastaria a presença de dois terços
dos 60. O aviso de 9 de maio de 1834 reiterou estas disposições.

Em 22 de julho de 1834, após a sexta e última sessão do primeiro ano


judiciário, o resultado era a seguinte: “Os processos para o Jury de acusação chega-
ram à Junho do corrente ano; os de julgação chegaram à Junho do ano próximo”.
O Primeiro Conselho quase já estava em dia, isto é, a examinar pronúncias do
mesmo mês de sua reunião, e o Segundo julgando acusações do ano anterior.

5 IJ 6 – 170 – Ofício de 21 de março de 1835.


6 Em ofício de 21 de março de 1835 (Códice 324 – v.1 – fls.126v/12), Eusébio de Queiroz, respondendo a
queixas arrolou as “razões de preterição de processos antigos”:
1) As preterições involuntárias, decorrentes das dificuldades de preparação (notificação das testemunhas que
morassem longe, por exemplo), “supondo boa fé do escrivão, pois se supor prevaricação não faltam meios para
preterir processos dos miseráveis que não têm como reclamar”;
2) Os escrivães de outros Juízes demorariam por interesse em ganhar com fianças e certidões;
3) O promotor a quem iam os processos com vista, para oferecer libelo, sendo muito pressionados, demorariam,
dando lugar a preterições.
A fim de evitar tais inconvenientes, enviou circular aos Juízes de Paz, para que, em observância do Código de
Processo Criminal, cinco dias após a pronúncia, enviassem os processos à Cabeça do Termo; e recomendou
por duas vezes ao Juiz de Paz da Cabeça que publicasse mensalmente a relação de processos existentes no
cartório; e ao Promotor recomendou brevidade.
7 Ver Códice 324 – v. 2 – fl. 185 – Sobre a demora do processo ir do primeiro ao segundo conselho (1841).
8 Relativo à convocação de novos jurados.

62
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Para uma instituição que há menos de um ano tinha que lidar com processos
das décadas anteriores, o resultado, permita-nos avaliar, era excelente.

Mas diminuir o número de jurados necessários para abrir a sessão diária


não bastava. Se as condições pressupostas no Código do Processo adviessem
todas de uma só vez, para que a sessão judiciária fosse completa, isto é, para que
um processo na mesma sessão passasse tanto pelo primeiro como o segundo
conselho, seria necessária a presença de 59 dos 60 convocados. Vinte e três para
compor o júri de acusação, doze para cada processo do júri de sentença (sendo
que quem no primeiro conselho tratara de tal ou qual processo, não poderia
participar do júri de sentença do mesmo), e cada parte, em relação ao segundo
conselho, tinha o direito de recusar até doze jurados. Naturalmente, trata-se de
uma situação hipotética rara, mas com o júri trabalhando apenas com 48 ou
40 jurados, o amplo poder de recusação de jurados e a eventual incapacitação
dos mesmos (seja por terem servido no primeiro conselho, seja por se darem de
suspeitos – ainda que não recusados, seja pela proibição de parentes – ascen-
dentes, descendentes, irmãos, cunhados – servirem no mesmo conselho) poderia
trazer grandes dificuldades.

E elas logo surgiram, provocadas pela revisão que o Supremo Tribunal de


Justiça estava a fazer na prática seguida por Eusébio e “pela quase totalidade dos
juízes de direito” e pela Relação da Corte. A questão era a seguinte: para sortear
o segundo conselho era necessário que houvesse na urna 48 cédulas? Para os
juízes de direito e relações, não. Uma vez sorteado o primeiro conselho, fazia-se
o sorteio do segundo com 25 cédulas, na esperança de que não mais do que
treze jurados fossem recusados. O Supremo pensava diferente, era preciso que
a urna contivesse 48 cédulas para que se pudesse proceder ao sorteio, isto seria
uma formalidade essencial. Para Eusébio, ainda que estivessem presentes os 60
jurados, fazendo-se o sorteio do primeiro conselho, restariam 37, sendo a solução
de recolher novamente à urna os primeiros 23 sorteados pura ficção, já que, uma
vez novamente sorteados, estariam impedidos de participarem do conselho de
sentença de um processo que por ventura tivessem julgado no conselho de acu-
sação. Para Eusébio, da inteligência do Supremo resultava não poderem trabalhar
os dois conselhos no mesmo dia.

Podemos pensar que, tivesse Eusébio ficado quieto, não tivesse ventilado
a questão, as coisas continuariam a funcionar como estavam: os diversos juízes
e as relações cada qual com a sua prática, e o STJ revendo-a, nos poucos casos
que a ele chegavam, pois custava caro (e ainda custa) chegar ao Supremo. Mas
vendo que a concessão de revistas causa grave prejuízo às partes, peço
a V. Ex. se digne tomar em consideração esta matéria, que me parece
merecedora de atenção pelos seus efeitos, pois que estando as Cadeias
sobrecarregadas de presos, que esperam seu julgamento, e sendo já tão

63
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

poucos os feitos que se expediam apesar da prática até aqui seguida


de trabalharem simultaneamente os dois conselhos, muito mais limitado
será o seu número, se prevalecer a inteligência do Supremo Tribunal, e
a prática a ela análoga.9

Eusébio fora infeliz em sua consulta. O governo no dia seguinte pediu


que o STJ informasse sobre a inteligência do artigo 259 e logo decidiu, por aviso
de 13 de fevereiro de 1835, a favor dessa mesma inteligência. Porém, para evitar
a possibilidade de o primeiro e o segundo conselhos não trabalharem simulta-
neamente, no mesmo dia, expediu o Aviso de 17 de março de 1835.10
Representando diversos presos da cadeia, assinados no requerimento
incluso, sobre a demora que tem havido em seus julgamento, ordena a
Regência em nome do Imperador que Vm., conciliando a inteligência do
Código que ultimamente se mandou seguir, com a celeridade necessária
dos processos, faça trabalhar conjunta e simultaneamente no dia dois
conselhos, o que sem dúvida Vm. poderá conseguir procurando reunir
pelo menos 52 jurados, e tirando primeiro o segundo conselho.

A medida não agradou a Eusébio; em resposta, ponderou que “a pro-


vidência nele determinada quase nada aumentará o expediente do Júri, pois é
raríssimo poder começar uma sessão com 52 jurados, e neste que acabei nunca
isso se verificou”. Parecia a Eusébio que “o único meio de fazer trabalhar simulta-
neamente os dois conselhos segundo a inteligência do Código que ultimamente
se mandou seguir, é trabalhar cada Juiz de direito com duas urnas de Jurados,
isto é com cento e vinte jurados”.11

Eusébio não ficara satisfeito com o desfecho da questão. Meses depois


insistiria, aproveitando-se de decisão da Relação da Bahia, que designada pela
STJ para julgar novamente uma causa,12 o fizera consagrando a antiga prática,
condenada pelo Supremo. Afirmando que ele e o juiz de direito da segunda
vara “julgamos que nos devíamos sujeitar à inteligência do Tribunal Supremo”,
adotada pelo governo,13 retoma algumas considerações jurídicas sobre os artigos
que tratavam da questão, dizendo concordar com o Supremo, de que quanto
mais cédulas mais isento seria o júri, mais garantido contra a corrupção e as
solicitações, mas procura mostrar que sua opinião não tolhia a boa formação do
9 Correio Oficial, 13 de janeiro de 1835. O ofício de Eusébio é de 7 de janeiro, cf. o jornal, mas consta como
de 04 no Códice 324.
10 Não localizei este aviso nem no Correio Oficial (anos 30), nem na Colecção de Leis, Decretos e Decisões
(publicada posteriormente), mas seu conteúdo está expresso em outras fontes, como veremos.
11 IJ1 – 170 – Ofício de 22 de março de 1835 (ao Ministro da Justiça).
12 Uma vez concedida a Revista, o Supremo designava uma das Relações (naturalmente excluída aquela de
onde viera o processo, caso tivesse vindo da segunda instância) para julgar novamente o processo. Não raras
vezes a Relação julgava contra os fundamentos da revista, o que causava certo constrangimento e até mesmo
sérios problemas relacionados à hierarquia das instâncias judiciais.
13 Cabe lembrar que o poder prescritivo dos Avisos que interpretavam as leis era limitado, não poderiam ter
a força das leis ou dos decretos legislativos, apenas poderiam orientar os juízes. Ao longo de todo o II Reinado
veremos magistrados das diversas instâncias decidindo diferentemente do que prescrevia tal ou qual aviso.

64
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

conselho, e figurando a hipótese de uma sessão com 40 jurados, passa a comparar,


através de todos os cálculos matemáticos possíveis, as vantagens e desvantagens
de cada prática. O principal problema é que a inteligência do Supremo em muito
dificultava o funcionamento dos dois conselhos no mesmo dia, pouco adiantando
o Aviso de 17 de março de 1835, permitindo que se sorteasse antes o segundo
conselho, o qual, além de ir de encontro à expressa disposição do artigo 238, era
improfícuo, pois dificilmente reuniam-se mais de 52 jurados:
A todos essas razões acresce a grande vantagem na expedição dos pro-
cessos, pois antigamente julgavam-se no Jury duas vezes mais processos,
que agora, e eu me abalanço a afirmar que com esta prática jamais
conseguiremos por-nos em dia com os Feitos que existem.

O Governo, por aviso de 16 de novembro, reafirmou o seu entendimen-


to da questão, de acordo com a inteligência do Supremo Tribunal. E quase três
anos depois...

Eusébio não se cansa de manifestar seu entusiasmo com o Júri da Corte.
Em 28 de setembro de 1838, com satisfação comunicava que o Juiz de Paz da
Cabeça do Termo lhe informara que existiam apenas 20 processos de réus pre-
sos, e daí concluía que em breve estariam em dia. Arrematava: “Se se atentar ao
grande número de processos que existiam amontoados, e aos tropeços, com que
foi necessário lutar, deve-se reconhecer que muito tem trabalhado o Jury desta
Corte”. Cerca de um mês depois, informaria que os processos de réus presos esta-
vam em dia, tanto em primeiro como em segundo conselho. E no mês seguinte,
insistiria com o Ministro da Justiça para que visse que, pelas datas das pronúncias,
“os processos julgados são bastante modernos, donde se constata que estamos
perfeitamente em dia, e o motivo de não terem-se apresentado mais, é por não
havê-los na cabeça do termo”. No ano seguinte, o chefe de polícia demonstrou
ao Ministro da Justiça a diminuição dos crimes na Corte.14

Tabela 1: Crimes no Rio de Janeiro – 1836-1838

1836 1837 1838


Crimes contra segurança individual 90 88 49
HOMICÍDIO 26 24 13
Crimes contra propriedade,
55 96 31
Incluindo Uso de Instrumentos para roubar
Roubo
“Talvez de todos os crimes o que mais insulta a civilização 14
19 06
por isso que ataca ao mesmo tempo a pessoa e a proprie- (+ 6 Tentativas)
dade”.

14 Códice 324 – v. 3 – fls. 16v/17; 25/25v (23-10-1838); 35v/36 (20-11-1838); 149/151 (30-01-1839).

65
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA


Expondo as causas do bom sucesso, arrolaria:

1) A descoberta dos salteadores da Carqueirada e apreensão da grande


quadrilha;

2) O recrutamento;

3) A repressão à mendicidade;

4) A deportação de estrangeiros

5) A Segurança dos presos;

6) A rapidez da justiça;

7) O zelo dos juízes de paz.

No item seis, “Rapidez e Justiça nos Julgados” destacou a atuação do tri-


bunal do júri. Os processos na cabeça do termo contavam-se a centenas, alguns
pendentes de 1808. Portanto, “só a força de trabalho e de trabalho insano se podia
vencer estas dificuldades”. Orgulhoso, salientou que
como juiz de direito empreguei todos os meus esforços para por os
trabalhos do Jury em dia ao menos quanto aos processos de presos e
felizmente esta importante vantagem está conseguida. Favorecido pela
importantíssima decisão que V. Ex, tão sabiamente deu em Aviso de 17
de março de 1835, consegui só no semestre de 20 de junho a 20 de
dezembro fazer passar pelo Conselho de Sentença 92 processos, com-
preendendo 139 réus, e pelo Conselho de Acusação, 271 processos, com
463 réus, o que soma 363 processos com 602 réus.15

De fato, o trabalho fora imenso, se considerarmos que 602 pessoas cor-


responderiam a cerca de 0,4 % da população da corte, estimada então em 137
mil almas. Depois de cinco anos e meio, a situação era bastante confortável. Em
abril de 1839, Eusébio comunicou que, estando em dia tanto os processos de
réus presos como de afiançados, deixara de ter conselho de sentença por dois
dias durante a última sessão judiciária.

15 Códice 324 – v.3 – fl. 68.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Tabela 2: Número de Processos – Júris de Acusação e Sentença – 1833 – 1841

PERÍODO PROCESSOS ACUSAÇÃO SENTENÇA


Agosto 1833 – Março 1838 526 360
Julho 1838 – Junho 1839 449 114
Agosto 1839 – Janeiro 1841 448 10

Total 1423 584



No primeiro período, os juízes de direito deram preferência, como de-
terminava o Código do Processo, aos acusados presos, de crimes inafiançáveis,
o que explica a diferença para os dois períodos seguintes da proporção entre
acusação e sentença.

É significativo que a variação anual dos processos no Júri de Sentença


não pareça ser muito grande entre o segundo e o terceiro períodos aqui consi-
derados. (1838-1841), ao passo que nitidamente houve uma inflação de processos
no Júri de Acusação, sem que ela atingisse o Júri de Sentença, ou seja, grande
parte das acusações não foi sustentada pelo primeiro conselho. Podemos supor
duas razões para tanto.

Primeiramente, como o próprio Eusébio justificou, tratam-se de processos


de réus afiançados, de crimes leves, de autoria particular, e que a Justiça não assu-
mia caso o autor não comparecesse. O júri tenderia a não sustentar a pronúncia.
E mesmo os réus presos, acusados de ferimentos ou outros crimes menores (mas
não contra a propriedade) também seriam beneficiados por certa indulgência por
parte dos jurados, pois muitas vezes o tempo de prisão preventiva ultrapassaria
o tempo do mínimo e do médio das penas.

Em segundo lugar, e servindo de explicação para a primeira razão, não


poderíamos supor que a instituição do júri ia se afirmando junto à população,
esta adquiria confiança no tribunal e assim passava mais e mais a demandá-lo,
a procurar a Justiça, a fazer acusações contra os possíveis criminosos? Natural-
mente, para que tais acusações chegassem ao tribunal, dever-se-ia contar com a
colaboração dos juízes de paz, ressaltada por Eusébio:
Em sétimo lugar eu atribuo a diminuição dos crimes à coadjuvação
enérgica e eficaz de alguns Juizes de Paz que não se deixando iscar dos
defeitos a que outros se têm entregado souberam cumprir com uma
exatidão superior a todo elogio seus espinhosos deveres.

67
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

Os réus

Nos relatórios de Eusébio salta os olhos a preocupação com a naturali-


dade dos réus. A conclusão a que invariavelmente chega é a de que os índices
de criminalidade seriam menores não fosse a grande quantidade de estrangeiros:
Este cálculo dá a conhecer, que os crimes entre nós são cometidos pela
maior parte por estrangeiros, porque entre todos os criminosos enume-
rados acham-se quarenta e nove nacionais e setenta e seis estrangeiros.
Este mesmo resultado se colige das informações que demos, relativamente
às sessões judiciárias de Janeiro e Março do corrente ano.

Ainda que na sessão seguinte a diferença diminuísse, a presença estrangeira


é novamente destacada:
Resulta da Estatística apresentada, que não falando nos criminosos políti-
cos, e naqueles, cuja Pátria se não conhece, o número dos delinqüentes
estrangeiros é igual ao dos naturais do país, em cuja classe entram os
indivíduos em grande parte da última ordem social.

Entre os estrangeiros, os africanos – africanos livres, e, eventualmente,


algum embarcadiço de navios que fizessem o trato d’ África. No início de 1834
a Corte contava com 5.163 estrangeiros, assim distribuídos:

Tabela 3: Estrangeiros no Rio de Janeiro – 183416

Com Passaporte Sem Passaporte Com Matrícula Total %


Portugueses 522 2.654 279 3455 74,8
Franceses 299 329 628 13,6
Ingleses 217 211 428 9,2
Africanos 108 108 2,3
Total 1038 3302 279 4619

Em 1838, com a ajuda dos juízes de paz e inspetores de quarteirão, Eusébio
organizou um Mapa da População da Corte, corrigindo dados do anterior, de 1834.

16 IJ 6 – 169 – Ofício de 8 de fevereiro de 1834.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Tabela 4: População da Corte – 1834-183817

População da Corte 1834 1838


Freguesias da Cidade 97.162
Freguesias de Fora 39.916
Livres 54.250
Escravos 43.349
TOTAL DE ALMAS 97.599 137.078

Quanto aos estrangeiros, agora perfaziam 9.590 almas. Nos primeiros anos
do júri da capital do Império, veremos sua presença relativamente estável, sofrendo
uma ligeira inflação quando aqui aportavam quadrilhas de ladrões e moedeiros
falsos portugueses. Uma razão talvez possa ser creditada ao maior controle de
sua entrada, ao maior rigor na exigência de passaporte. Embora se vedasse a
prisão do estrangeiro que não levasse passaporte, dele poder-se-ia exigir que
o apresentasse depois, sob pena de deportação. Não é improvável que muitos
estrangeiros propensos ao crime já fossem criminosos em seu país de origem,
portanto a exigência de passaporte, ainda que de difícil controle, poderia inibir a
vinda deste tipo de gente para cá. A isto deveríamos combinar a própria atividade
policial e judiciária: a entrada de novos ou virtuais criminosos estrangeiros seria
menor do que a prisão e condenação de seus semelhantes.

Em março de 1835, anunciado o resultado do trabalho de seis meses, o


chefe de polícia arrolava, dentre 297 criminosos desta Corte, “que se descobrem”,
51 sem ofício. Quase 10% eram marinheiros (28), e dentre 262 de procedência
conhecida, tínhamos 33 portugueses e 51 da Costa d’África. Considerando os anos
de 1838, 1839 e 1840, mais da metade é composta por estrangeiros:

Tabela 5: Réus julgados - Júri de Sentença – Julho 1838 – Novembro 184018

1838 1839 1840 Total %


II° semestre
Brasileiros 47 57 49 153 47
Portugueses 39 32 32 103 31,5
Africanos 19 18 07 44 13,5
Outras Naturalidades 06 14 06 26 8
Total 111 121 94 326

17 Códice 324 – v. 2 – fls 17- e 171v.


18 Nas tabelas seguintes, relativas aos anos de 1838, 1839, 1840, apenas são computados os dados das sessões
presididas pelo juiz de direito da primeira vara, e chefe de polícia, Eusébio de Queiroz, consignados no Códice
324. Ficam faltantes os dados das sessões presididas pelo juiz de direito da segunda vara, Vaz Vieira. Mas, ao
que parece, Eusébio presidiu quase todas as sessões nesse período. Temos dados para 13 sessões ordinárias,
dentre as 15 previstas. Acrescentem-se 3 sessões extraordinárias.

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O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

Em sua larga maioria são os criminosos homens solteiros. Entre 318


réus julgados pelo Júri de Sentença, entre julho de 1838 e novembro de 1840,
encontramos 217 solteiros, 85 casados e 16 viúvos. Os crimes contra as pessoas
são majoritariamente individuais; já nos crimes contra a propriedade, cúmplices
aparecem com mais frequência:

Tabela 6: Júri Sentença – Agosto 1833 – Junho 1839

Processos Crimes Individuais Coletivos Coletivos Total %


(02 pessoas) (mais de 02)

Homicídio* 48 04 04 56 17
Ferimentos Graves e Simples 47 04** 01 52 15, 7
Tentativa Homicídio 14 02 16 4,8
Total contra pessoas 109 08 07 124 37,5

Furto Escravos*** 52 26 07 85 25,7


Roubo**** 40 14 10 64 19,3
Furto 30 07 02 39 11,8
Estelionato 15 02 01 18 5,5
Total Contra Propriedade 137 49 20 206 62,5
Total Geral 246 57 27 330
74,5 % 17,3 % 8,2 %
* Não computei processos em que apenas os cúmplices foram julgados; três, entre 1833 e 1842.
** Duas duplas de marinheiros do Reino Unido e de marinheiros norte-americanos cometeram ferimentos
graves; duas duplas, ferimentos simples, uma com a participação de um preto forro.
*** Inclui 05 estelionatos envolvendo venda fraudulenta de escravo alheio, e tentativa de furto de escravos.
**** Inclui tentativa e uso de instrumento para roubar.

Nas tabelas seguintes, computei a presença das diversas categorias sociais
e étnicas de réus nos processos crimes julgados pelo júri da Corte. Cabe advertir,
especifica-se não a quantidade de réus, e sim a quantidade de processos em que
réus de tal ou qual categoria aparecem. Como não diferenciamos processos com
apenas um réu dos processos coletivos, os números referentes aos homens livres
ficam, desta forma, diminuídos, pois computamos apenas uma vez (na rubrica
pretos ou escravos) os processos em que aparecem um homem livre e um es-
cravo, ou um homem livre e um forro; e na rubrica escravos, quando aparecem
pretos livres e escravos. Mas pouco contam ao fim das contas. Cabe advertir
que a categoria Homens Livres é bastante imprecisa no que diz respeito à cor,
representando apenas os réus estrangeiros e os brasileiros sobre os quais não há
indicação de cor (pardo, crioulo, cabra, preto), nem condição social (escravo ou
forro). Portanto, entre esses homens livres haveria pardos e pretos, cabras e crioulos,
que não foram identificados como tais. Porque: (1) o resumo que serviu de fonte

70
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

para tal ou qual réu não oferece dados relativos à naturalidade, procedência, ou
condição social (livre, forro, ou escravo); (2) há poucos casos em que se identifica
o réu como homem branco, em alguns casos sendo este estrangeiro; (3) quando
no resumo aparecia apenas o nome próprio seguido de procedência africana ou
cor, considerei o réu escravo. Exemplos: Antônio, angola, ou Pedro, crioulo.

Tabela 7: Júri de Acusação – Agosto 1833 –Março 1838- CRIMES CONTRA PROPRIEDADE

Réus Homens Livres Pretos Livres e Escravos* Nº Proces- %


Forros sos
Furto de Escravos 56 08 05 69 34,3
Roubo 30 09 03 42 20,9
Furto 38 08 03 49 24,4
Estelionato 38 03** 41 20,4
Total 162 25 14 201
80,6 % 12,4 7%
* Não computamos sob a rubrica – escravo – um processo em que aparece um escravo acompanhado de
um preto e um “branco”, tampouco dois em que não há indicação de que o africano seja escravo ou forro.
computei-o na rubrica – preto livre -. as indicações sobre os réus no júri de acusação são mui incompletas.
** Três processos de acusados escravos; em um deles aparecem dois escravos e um preto mina.

Tabela 8: Júri de Sentença – Agosto 1833 – Junho 1839- CRIMES CONTRA PROPRIEDADE

Réus Homens Livres Pretos Livres e Escra- N º Proces- %


Forros vos sos
Furto de Escravos 56 20 09 85 42
Roubo 45 11 08 64 30
Furto 27 08 04 39 19
Estelionato 18 18 9
Total 146 39 21 206
71 % 19 % 10 %

Tabela 9: Júri de Acusação – Agosto 1833 –Março 1838 – CRIMES CONTRA PESSOAS

Réus Homens Livres Pretos Livres e Escravos N º Processos %


Forros
Homicídio 31 03 06 40 31
Tentativa Homi- 6 02 08 6,2
cídio
Ferimentos 64 05 12 81 62,8
Simples e Graves
Total 101 08 20 129
78,3 % 6,2 % 15,5 %

71
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

Tabela 10: Júri Sentença – Agosto 1833 –Março 1838 – CRIMES CONTRA PESSOAS

Réus Homens Pretos Livres e Escra- N º Processos %


Livres Forros vos
Homicídio 31 05 13 49 42
Tentativa Homi- 12 04* 16 13,6
cídio
Ferimentos Graves 10 04 05 19 16,2
Ferimento Simples 29 01 03 33 28,2
Total 82 10 25 117
70 % 8, 5 % 21,5 %
* Uma tentativa cometida por dois escravos e um preto mina liberto, também acusados de roubo. O preto
mina foi condenado pelo roubo, um escravo condenado pelo roubo e pela tentativa; e um escravo absolvido.


Os julgamentos do Primeiro Conselho ou Júri de Acusação

Em relação ao Primeiro Conselho, os dois juízes de direito da Corte seguiam


práticas distintas. Eusébio, juiz de direito da Primeira Vara e Chefe da Polícia, pro-
vavelmente inspirado no Grand Jury inglês, sorteava, no início da sessão judiciária,
um primeiro conselho que serviria por toda a sessão. Já Vaz Vieira, da Segunda
Vara, a cada dia sorteava o primeiro conselho. O aviso de 12 de abril de 1834,
com o intuito de uniformizar os procedimentos, adotou a praxe de Vaz Vieira.

Salta aos olhos o rigor com que, ao menos nos cinco primeiros anos, o
Primeiro Conselho de Jurados cumpriu sua tarefa. Tudo levava a isto. Das decisões
do júri de acusação, tomadas por maioria absoluta de votos, ao que parece não
havia apelação. O Código não especificava se a apelação da parte era apenas da
sentença do segundo conselho ou se também da decisão do primeiro conselho.
O governo preferiu deixar a questão para o poder legislativo, que, ao que parece,
nada decidiu. A questão ficava então a critério da Relação, que poderia conhecer
ou não. De qualquer modo, o recurso de apelação era custoso, dificilmente va-
leria à pena gastar tantos esforços apenas para não ser acusado, ou apenas para
acusar alguém. Em nenhum dos processos sobre os quais temos informações
encontramos apelação da decisão do primeiro conselho.

Como o nome o diz, o júri de acusação apenas acusava, não determi-


nava a culpa do indiciado. Isto justificava que proferisse seu julgamento apenas
analisando o processo de formação de culpa, sem ter necessidade de ouvir o
pronunciado ou o acusador. Mas o júri de acusação, como dizia Blackstone a
propósito do Grand Jury inglês deveria estar “thoroughly persuaded of the truth
of an indictment, so far as the evidence goes; and not to rest satisfied merely eith
remote probalilities”.19 Mas nos cinco primeiros anos do júri no Brasil, podemos

19 Citado por J. M. Beattie (1986).

72
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

perceber um certo receio do primeiro conselho em não sustentar a pronúncia,


um receio em “absolver” os acusados, talvez se contentando com remotas pos-
sibilidades para sustentar a acusação. Medo de errar. Sustentando erradamente
a pronúncia, o júri de sentença poderia corrigir o erro, absolvendo o réu. Não
sustentando a pronúncia no primeiro júri, não haveria mais o que fazer. Em um
dos três únicos casos de homicídio, entre 1833 e 1838, em que o júri de acusa-
ção não reconheceu criminalidade, o de João Manoel Ribeiro, o fez “depois de
conferência de mais de duas horas”.

Exemplo de rigor, que bem serve para os anos seguintes, é o da última


sessão do primeiro ano judiciário:
Está finalizada a Sexta e última Sessão dos Jurados no primeiro Ano
Judiciário. Em primeiro conselho, foram decididos quarenta processos, e
foram julgados 109 culpados. Destes foram 17 julgados sem criminalidade.
Em segundo conselho tomou-se conhecimento de dezessete processos, e
foram julgados dezenove delinqüentes, dos quais foram sete absolvidos.20

Entre agosto de 1833 e março de 1838, apenas em 14% dos processos


submetidos ao júri de acusação os réus foram considerados sem criminalidade.

Tabela 11: Júri de Acusação – Agosto 1833 –Março 1838 – RESULTADO

Com Criminalidade % Sem criminalidade Total


Homicídio 36 92 % 03 39
Ferimentos Graves e Simples 63 80 % 16 79
Tentativa Homicídio 07 100 % 07
Total contra pessoas 106 85 % 19 15 % 125

Furto de Escravos 66 96 % 03 69
Roubo 34 82,5 % 07 41
Furto 35 78 % 10 45
Estelionato 33 85 % 06 39
Total contra Propriedade 168 86,5 % 26 13,5 % 194
Total 274 86 % 45 14 % 319

1) De 01 processo de homicídio não sabemos o resultado.

2) De 02 processos de ferimentos não sabemos o resultado.

3) De 01 processo de tentativa de homicídio não sabemos o resultado.

4) De 01 processo de roubo não sabemos o resultado.


20 Correio Oficial, 22 de julho de 1834.

73
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

5) De 04 processos de furto não sabemos o resultado.

6) De 02 processos de estelionato não sabemos o resultado.

Mas, a partir do quinto ano, haverá atenuação deste rigor, o que se


deve principalmente ao grande número de réus de crimes menores, afiançáveis.
Referindo-se aos dados relativos ao ano de 1839, Eusébio comentou as decisões
do júri de acusação: “Apenas aparente número excessivo réus soltos ou absolvidos,
mas maior parte antigos, paralisados em diversos cartórios”.21

Tabela 12: Júri de Acusação – Julho 1838 – Novembro 1840

Ano Processos Réus Presos Afiançados Com Sem


ou Ausentes Criminalidade Criminalidade

1838 231* 402 71 331 255 147 36,5 %


II° semestre
1839 472 741 106 635 473 251(268?)** 34 %
1840 311 441 74 367 314 127 29 %

Total 1014 1584 251 1333 1042 525 (542?) 33 %


* No “Balanço de 1839”, Eusébio consigna 251 “absolvidos”, isto é, sem criminalidade, e comenta acerca desse
grande número de réus “soltos ou absolvidos”: “soltos” seriam aqueles processos lançados que não foram sequer
ao júri de acusação. Assim, por dedução, teríamos 17 processos lançados, fechando a conta.
** A prática dominante no Júri da Corte era a de o júri de acusação decidir por maioria de votos, cf. o artigo
270 do código de processo criminal, o qual, referindo-se ao júri de sentença, apenas insinua o modo de proceder
do primeiro conselho: “e o que for julgado pela maioria absoluta de votos, será escrito e publicado, como no
Júri de acusação” (Códice 324, fls. 89 e 89v).


Os julgamentos do Segundo Conselho ou Júri de Sentença

Comentando o grande número de absolvições ocorridas na sessão de


março de 1839, que “poderia fazer crer que o Jury n’esta sessão se deixara dominar
do espírito que em alguns pontos do Império tem acarretado a impunidade”,
Eusébio justificou-a, porque nesta sessão “entraram processos de réus afiançados,
e nesses processos a pequena gravidade dos delitos, a antiguidade das pronúncias
e outras algumas considerações fazem sempre que o Jury seja um pouco mais
indulgente mesmo sem ser injusto”.

Afora isto, um dos processos, de ajuntamento ilícito, com 11 réus, parecia


ser muito irregular, “e mais perto da intriga do que outra coisa”. Em conclusão

21 No “Balanço do segundo semestre de 1838 (Códice 324), Eusébio consigna 271 processos e 463 réus. Porém,
como não apresenta os dados relativos a condenações e absolvições, optei por utilizar os números, menores,
obtidos nos resumos das sessões no mesmo código.

74
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Eusébio afirma que “as decisões do Jury foram em minha opinião quase sempre
justas, e sempre ditadas pela consciência como tive ocasião de perceber”.

Comentando a sessão de novembro do mesmo ano também observaria


que,
para não fazer espécie o grande número de absolvidos que aparecem,
quando aliás este Jury, foi dos que mais se distinguiu pelo espírito de
justiça e retidão, devo declarar que a maior parte de tais processos são
de 1833, e por crimes de pouca entidade.

Fazendo o balanço de 1839, comentaria:


O Amor da verdade me obriga nesta ocasião a declarar que em geral os
jurados manifestaram o maior desejo possível de acertar e fazer justiça,
sendo certo, que mesmo quando alguma vez apareceu decisão escandalosa
e injusta (porque também disso tivemos exemplo) os outros jurados, ou
recusados, ou não chamados pela sorte, nunca deixaram de dar as mais
vivas demonstrações de despeito, e reprovação.

Tabela 13: Resultado Processos de Homicídio –- Agosto 1833 – Janeiro 1842

PENAS Morte Galés 20 anos Açoites entre 12 e Condenação Absolvição Total


Perpétuas Galés + Ferro 02 anos de
pescoço prisão

Escravos 05 09 01 03 01* 19 90,5 % 02 21


Homens livres 07 15 01 13 36 97,3 % 01 37
Pretos livres e 02 02 04 66.6 % 02 06
forros
Total 12 26 02 03 16 59 05 64
% 20,3 40,1 3,4 5,1 27,1 92,2 7,8 %
* Ao que parece a pena não foi convertida em açoites, porque o escravo foi abandonado pelo senhor; o
resumo da sessão apresenta-o como ex-escravo.


1) Não computei quatro processos cujos réus foram condenados, porém
não sabemos a qual pena. Três de homens e mulheres livres, um de preto forro.

2) Considerei apenas uma pena por processo, a maior pena, não com-
putando os co-réus sentenciados a penas menores. Dentre os homens livres
sentenciados à morte estão os quatro réus da Carqueirada e três do Patacho D.
Clara. Já um sentenciado à morte, Guimarães, também recebera, antes, por outro
crime, a pena de galés perpétuas, computada, tendo o co-réu recebido a de 20
anos de prisão com trabalho, não computada, bem como a absolvição de outro
co-réu no crime capital. Nos três restantes, os sentenciados à morte tiveram a
sorte melhorada no júri de Niterói.

75
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

3) Não incluo os julgamentos de três réus que, por protesto, vieram de


Niterói mais os julgamentos de um escravo de Campos, e um de Saquarema. Os
homens livres tiveram a sorte melhorada. Dois condenados à morte na capital
fluminense, na Corte tiveram as penas minoradas; o terceiro, antes condenado à
prisão, na Corte foi absolvido. O júri da Corte manteve a pena dos escravos: 14
anos de prisão para o de Saquarema, que matara um parceiro; morte para o de
Campos, que matara o senhor.

5) Conforme se vê, a taxa de condenação de homicidas no período


regencial é altíssima. Dentre os escravos condenados, 26,3 % o foram à pena de
morte, e 19,4 % dos homens livres. No segundo reinado nenhum homem livre
seria condenado à morte em definitivo, isto é, todos os homens livres condena-
dos à morte no primeiro julgamento tiveram suas penas reduzidas no segundo.

6) Dentre os escravos condenados, 47,3 % o foram a galés perpétuas, e


41,6 % dos homens livres.

Tabela 14: Resultado Processos de Ferimentos Graves - Agosto 1833 – Junho 1839

Penas Morte Açoites Prisão Condenação Absolvição Total


+ Ferro
pescoço
Escravos 03 02 05 100 % 05
Homens livres 06 07 70% 03 10
Pretos livres e forros 02 02 50% 02 04
Total 03 01 08 14 05 19
74 % 26 %

1) Todos os escravos processados por ferimentos graves cometeram o
crime contra agentes de produção: senhores e feitores. De um sabemos apenas
que, acusado de ferimento grave e tentativa de homicídio, foi condenado pela
tentativa e por ferimento simples, provavelmente a açoites.

2) A pena de morte para o crime de ferimentos graves era pena extra-


ordinária, cominada para os escravos incursos no artigo 1° da Lei de 10 de julho
de 1835.

3) Também é bastante alta a taxa de condenação para o crime de fe-


rimentos graves.

76
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Tabela 15: Resultado Processos de Ferimentos Simples - Agosto 1833 – Junho 1839

Penas Açoites Prisão Condenação Absolvição Total


+ Ferro
pescoço
Escravos 01 01 02 66,6 % 01 03
Homens livres 11 13 48,1% 14 27
Pretos livres e forros 01 01 100% 01
Total 01 11 16 15 31
51,6 % 48,4 %

Tabela 16: Resultado Processos de Tentativa de Homicídio - Agosto 1833 – Junho 1839

Penas Galés Açoites Prisão Condenação Absolvição Total


+ Ferro
pescoço
Escravos 01 01 25 % 03 04
Homens Livres 01 04 05 41,6 % 07 12
Total 01 01 03 06 10 16
37,7 % 62,3 %

A alta taxa de absolvição da tentativa de homicídio pode ser explicada por
dois fatores genéricos: nem sempre causou ferimento ou mesmo qualquer ferimen-
to; era preciso provar a intenção de matar e sua companheira: a premeditação.

Tabela 17: Resultado Processos de Furto de Escravos - Agosto 1833 – Junho 1839

Penas Galés Açoites Prisão Condenação Absolvição Total


+ Ferro
pescoço
Escravos 01 05 06 66,6 % 03 09
Homens livres 11 26 40* 78,5% 11 51
Pretos livres e 01 14 15 79% 15
forros
Total 13 05 40 61* 18 79
77 % %
* De seis processos não foi possível conhecer o resultado, cinco de homens livres e um de preto forro. De três
sabemos apenas que houve condenação.


1) Sendo, como seria de se esperar em uma sociedade escravista, o furto
de escravos o principal crime contra a propriedade, o decreto n° 138 de 15 de
outubro de 1837 equiparou o delito de furto de escravos ao roubo: “Ficam ex-
tensivas ao delito de furto de escravos as penas e mais disposições Legislativas

77
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

estabelecidas para o roubo”. A partir de então assistimos com freqüência a con-


denação à pena de galés. Duas pretas forras, uma absolvida, outra condenada a
06 meses de prisão com trabalho.

2) O crime de furto de escravos é aquele em que a presença de pretos


livres e forros é mais significativa. Também é significativa a proporção de crimes
coletivos, porque muitas vezes o furto de escravo requeria cúmplices que transpor-
tariam, esconderiam ou comprariam o escravo furtado, ou roubado (caso houvesse
violência, se o escravo não cooperasse ou, como se dizia, não se deixasse seduzir).

3) Em junho de 1839, Eusébio salientava o papel dos pretos minas “’ar-


rendados”, portanto africanos livres, que, gozando de “plena liberdade”, praticavam
pequenos furtos e seduziam escravos para serem roubados. Sugeria que se os
deportassem para a África. Em setembro emitiria os passaportes de Alexandre e
Salvador, que deveriam ir para Benguela.22

Tabela 18: Resultado Processos de Roubo - Agosto 1833 – Junho 1839

PENAS Galés Prisão Condenação Absolvição Total


Escravos 04 01 07 87,5 % 01 08
Homens Livres 18 15 35 77,7 % 10 45
Pretos livres e forros 04 05 09 81,8 % 02 11
Total 26 21 51 13 64
80 % 20 %

1) As penas para o crime de roubo eram as de galés, mas para a ten-
tativa e a cumplicidade aplicava-se, em geral, a pena de prisão, bem como para
os réus acusados de roubo mas, desclassificado o crime, condenados por furto
ou uso de instrumentos para roubar. De cinco condenações, duas de escravos,
não sabemos a pena.

2) Em um roubo, de 6.000$, temos como réus um escravo fugido, conde-


nado à revelia, e sua amásia, mulher livre. Por tentativa de roubo temos uma forra.

3) Incluí um réu absolvido da tentativa de roubo e da falsidade, mas


condenado por uso de nome suposto, no mínimo, a 08 meses de galés, conforme
o artigo 302, que rezava: “Penas, mesmas se réu obtivesse por violência”.

22 Códice 324, v. 3, fls. 91 e 96..

78
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Tabela 19: Resultado Processos de Furto - Agosto 1833 – Junho 1839

PENAS Açoites Prisão Condenação Absolvição Total


+ Ferro pescoço
Escravos 02 02 100 % 02
Homens Livres 16 16 64% 09 25
Pretos livres e 04 04 50% 04 08
Forros
Total 02 20 22 13 35
63 % 37 %

1) De quatro processos não se conhece o resultado do julgamento, dois
de escravos, dois de homens livres.

2) (*) Entre as absolvições, incluí três acusações consideradas peremptas,


por não ter o autor comparecido e não ser caso de a Justiça assumir. Em uma
delas temos como rés três mulheres, possivelmente irmãs. Encontramos ainda,
julgada na mesma sessão, setembro de 1839, uma outra mulher absolvida.

3) Aos números de furto podemos acrescentar 13 condenações à prisão


por estelionato, e 5 absolvições, entre agosto de 1833 e julho de 1839, todos
homens livres.

Tabela 20: Resultado Processos Júri Sentença - Agosto 1833 – Junho 1839

Crimes Condenação Absolvição Total


Homicídio 51 91 % 05 9% 56
Ferimentos Graves 14 74 % 05 26 % 19
Ferimentos Simples 16 52 % 15 48 % 31
Tentativa de Homicídio 06 37,5 % 10 62,5 % 16
Total contra pessoas 87 71 % 35 29 % 122

Furto de escravos 61 77 % 18 23 % 79
Furto 22 63 % 13 37 % 35
Roubo 51 80 % 13 20 % 64
Total contra Propriedade 134 75% 44 25 % 178

Total Geral 221 74 % 79 26% 300



Conclusão

A história do júri no império apresenta duas fases bem distintas. Na


primeira, de 1832 a 1841, sob a égide do Código do Processo Criminal de 1832,

79
O JÚRI DA CORTE DO RIO DE JANEIRO DURANTE A REGÊNCIA

“são aptos para serem Jurados todos os cidadãos, que podem ser Eleitores, sendo
de reconhecido bom senso e probidade”. Poderiam ser eleitores os cidadãos que
tivessem 200 mil réis de renda anual. Outrossim, nessa fase o tribunal do júri era
dividido segundo o modelo clássico inglês – um júri de acusação ou primeiro
conselho, e um júri de sentença, ou segundo conselho. Na segunda fase, entre
1842 e 1889, já sob as regras da Reforma do Código do Processo Criminal, rea-
lizada em 1841, o júri se elitiza:
São aptos para Jurados os cidadãos que puderem ser Eleitores (...) contanto
que esses cidadãos saibam ler e escrever, e tenham de rendimento anual
por bens de raiz, ou Emprego Publico, quatrocentos mil reis, nos Termos
das Cidades do Rio de Janeiro, Bahia, Recife e S. Luiz do Maranhão: tre-
zentos mil réis nos Termos das outras Cidades do Império; e duzentos
em todos os mais Termos. Quando o rendimento provier do comércio
ou indústria, deverão ter o duplo.

Sobretudo devido a exigência de se saber ler e escrever, criou-se assim


um júri de notáveis, para utilizarmos a expressão francesa. Além disto, foi supri-
mido o júri de acusação; o júri agora se assemelha mais ao modelo do Código
de instrução criminal francês da era napoleônica.

Em nossas pesquisas sobre o júri da corte do Rio de Janeiro no segundo


reinado, apenas quantificamos os julgamentos para os crimes de homicídio. Se
excetuarmos os homicídios perpetrados por escravos em seus senhores e feito-
res, julgados pela lei de 10 de junho de 1835, o júri de notáveis foi bem mais
benevolente do que o júri mais popular do período regencial. Tanto para réus
escravos como para réus livres, o júri da corte no segundo reinado, no período
entre 1842 e 1885 apresenta uma taxa de condenação de 66%; já o júri mais
popular da regência condenou 91% dos réus (90,5% para réus escravos, 97,5%
dos homens livres).

Pesquisas futuras poderão dizer se para outros crimes, em especial furtos


e roubos, também veremos tal diferença.

Referências bibliográficas
ACTES DU COLLOQUE D’ORLEANS. La Révolution et l’ordre juridique privé –
Rationalité ou scandale? – PUF, 1986.
BEATTIE, J. M. Crime and the Courts in England (1660-1800) – Princeton Uni-
versity Press, 1986.
CARBASSE, Jean-Marie. Histoire du droit pénal et de la justice criminelle – PUF, 2000.
CLAVERO, Bartolomé. Crédito del jurado y credenciales del constitucionalismo, in
Happy Constitution. Editorial Trotta, 1997.

80
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não têm razão. A lei de 10 de
junho de 1835. Os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889),
Editora Renovar, 2005.
RIBEIRO, João Luiz. A violência homicida diante do tribunal do júri da Corte. (1830
-1886). Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em História Social). Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
Fontes
O Código do Processo Criminal de 1832 determinava a convocação de 6 Sessões
Ordinárias do Tribunal de Jurados a cada Ano Judiciário. Cada sessão ordinária
compunha-se de até 15 Sessões Diárias.
Como fonte principal, utilizamos os Resumos das Sessões do Tribunal do Júri da
Corte, publicados nos jornais, os quais abarcam todas as sessões diárias de cada
sessão ordinária. Já os resumos do Códice 324 ou dos maços da Série IJ6 são
sintéticos, tomando as sessões ordinárias (ou extraordinárias) em bloco.
Ao contrário dos resumos das sessões ordinárias, posteriores ao segundo semestre
de 1842, regularmente publicados nos jornais diários, desta data até 1889, a publi-
cação, nos jornais, dos resumos entre agosto de 1833 e 1841 é bastante irregular.
De 1833 a 1835, foram publicados no Correio Oficial. De 1836 a 1839, no Jornal do
Comércio. Todavia, talvez por falta de espaço, no Jornal do Comércio, a publicação
dos resumos interrompe-se sempre que são publicados os anais parlamentares
(de abril-maio a setembro-outubro). E, em 1840 e 1841, nada! Apenas um que
outro julgamento considerado de especial importância merece notícia, resumo
ou mesmo transcrição parcial.
Felizmente o Códice 324 e a Série IJ6, do Arquivo Nacional, trazem resumos de
algumas sessões, com duas limitações: embora encontremos números globais
acerca dos crimes julgados em ambos os conselhos, discriminam-se apenas os
réus-crimes que chegaram ao júri de sentença; e temos somente os resumos feitos
pelo juiz de direito da Primeira Vara Criminal, o qual alternava a presidência do
Tribunal de Jurados com o Juiz de Direito da Segunda Vara.
Tais fontes nos permitiram informações sobre aproximadamente 50% dos julga-
mentos.

81
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS


A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL
DO DISTRITO FEDERAL

MANUELA ABATH VALENÇA


Doutoranda em Direito pela Universidade de Brasília.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
Professora da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco.
E-mail: manuelaabath@gmail.com

FERNANDA LIMA DA SILVA


Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília.
Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
E-mail: ffernanda.slima@gmail.com

MARÍLIA MONTENEGRO PESSOA DE MELLO


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Fundadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
Professora da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade Federal de Pernambuco.
E-mail: marilia_montenegro@yahoo.com.br

Resumo
O presente trabalho tem como intento discutir a criminalização de mu-
lheres no início do século XX, a partir do levantamento de dados constantes
do Boletim Policial do Distrito Federal do ano de 1907. Num contexto de
urbanização, discute como elementos de gênero e raça inscreviam-se na re-
presentação e na atuação da polícia de um Recife oitocentista. O debate está
colocado no contexto do início da República, período ainda profundamente
influenciado pelo regime escravista recém abolido e o pacto social por ele
engendrado. Este contexto dialoga, ainda, com outro, de menor escala: o
da urbanização. A cidade surge enquanto ambiente de confluências e é lida,
aqui, enquanto um território racializado e generificado. E é neste território que
ocorrem as disputas, ora tematizadas, entre mulheres negras e forças policiais.

Introdução

No campo da criminologia crítica é comum pensarmos que o controle


público historicamente voltou-se aos homens. Nossas narrativas acadêmicas, o
senso comum do campo, por assim dizer, compreendem que o controle público
destinou-se às mulheres apenas de forma subsidiária. Elas estariam, de acordo com
esta leitura, submetidas primeiramente ao controle privado exercido por figuras
masculinas como pais, maridos.

83
A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS
A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL

De fato, uma incursão estatística nos índices de criminalidade de todo o


século XIX e início do século XX, tendem a nos apresentar uma discrepância muito
grande entre a criminalidade masculina e a feminina. Os crimes e contravenções
praticados por mulheres, no mais das vezes, assumem cifras substancialmente
inferiores se comparadas às cifras da criminalidade masculina. Ocorre que dados
numéricos descontextualizados não podem encerrar os termos do debate.

Entendemos que é preciso situar a partir de que realidade falamos. No


presente trabalho, discutimos criminalidade urbana (a despeito das muitas contra-
dições em torno da definição do que era urbano e do que era rural até o início
do século XX). Propomo-nos a analisar, mais concretamente, o Boletim Policial
do Distrito Federal, os dados estatísticos do período de 1907 a 1917 constantes
deste documento. Logo, temos como pano de fundo o Rio de Janeiro do início
do século XX.

Gestão racializada do espaço público nas cidades atlânticas

Ao analisar algumas cidades brasileiras, principalmente as capitais litorâneas


mais antigas, como Recife, Salvador e Rio de Janeiro, a partir de fins do século
XIX, historiografia nos apresenta à representação de cidades negras (FARIAS et all,
2006). Estas cidades apresentavam um fluxo significativo de homens e mulheres
escravizados, o que tinha relação direta também com sua condição atlântica e
portuária. Mesmo quando o regime escravista já havia entrado em declínio, a
presença negra era forte, fosse ela analisada a partir da contribuição de escravi-
zados ou de forros e livres. É observando essas cidades, a africanização de seus
costumes e sua territorialização, que parte da historiografia vai falar na emergência
de uma onda negra (AZEVEDO, 1987; CHALHOUB, 1988).

Nessas cidades, de movimentação relativamente intensa para os padrões


da época, o ambiente público era de certa mistura: comerciantes portugueses,
trabalhadores liberais, brancos empobrecidos, negros libertos, livres ou escravizados
circulando a mando dos senhores, realizando pequenos serviços, buscando seu
sustento ou fugir de seus senhores. Nas “maltas urbanas”, nem sempre era fácil
distinguir a priori a condição dos passantes, se livres ou escravizados. Conforme
discutido por Chalhoub (1988; 1990), essa cidade pode se apresentar fazendo
as vezes de cidade-esconderijo, na medida em que pode viabilizar fugas. Nesse
sentido, os escravizados do ambiente urbano teriam possibilidades de escape ao
regime escravista não disponíveis aos escravizados do ambiente rural. Ter esse
quadro em mente não nos autoriza, no entanto, a colocar a escravidão urbana
como mais branda que a rural, na qual as relações de casa grande e senzala
eram traço marcante.

84
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Podemos dizer que a constituição do meio urbano engendrou formas


próprias de controle. A existência de um ambiente público fez ressaltar a ina-
dequação e a impossiblidade do transplante direto dos mecanismos de controle
próprios dos engenhos e das grandes propriedades rurais, marcados pela gestão do
senhor instrumentalizada através de seus feitores e de suas milícias. Aos espaços
públicos precisava corresponder um controle público. O surgimento das polícias
é, em grande medida, uma resposta a esta demanda.

É neste sentido que podemos entender o surgimento da Guarda Real de


Polícia, por exemplo, criada já em 1809. Esta instituição voltava-se, basicamente,
à organização da cidade a partir de um corpo policial militarizado, ostensivo e
com atuação em tempo integral. Ao longo de todo o século XIX, e também
durante o início do século XX, diferentes províncias e municípios brasileiros
experimentaram a criação de diferentes modelos de polícia. O importante, aqui,
não é pensar nos modelos policiais em si, mas no significado desta instituição:
nas diferentes cidades, as polícias ocupavam-se, basicamente, da regulação e
ordenação do espaço urbano.

A polícia não reprimia apenas as condutas descritas no Código Penal,


fossem os tempos imperiais ou republicanos, mas efetuava verdadeiro controle
administrativo e moral (DUARTE, 1998; MAIA, 2007, 2001). Essas demandas, na
realidade, costumavam vir de modo imbrincado, a exemplo dos tipos de vadiagem
e mendicância, que, apesar de legalmente tipificados, traduziam uma forma de
gestão moralizadora do espaço público.

Outro importante instrumento de controle, de cuja observância também


podiam se ocupar as forças policiais, rram as posturas municipais. Municípios de
maior porte costumavam apresentar tais legislações, responsáveis pela organização
administrativa. No bojo das posturas, podemos encontrar temas os mais distintos,
da organização dos mercados públicos às regras dos cemitérios. O importante é
perceber como nelas se expressavam as demandas de controle.

Analisando as posturas municipais de Salvador, Nilo Batista cita diversos


dispositivos que proibiam, dentre outras, condutas como a de “deambulação de
escravos”, realização de “lundus, batuques e algazarras” (BATISTA, 2016, p. 36).
As sanções cominadas em cada postura variavam entre multa, açoites e prisão.
Em Recife e na região Metropolitana, Clarissa Nunes Maia (2007), por sua vez,
demonstra que as posturas voltavam-se, preferencialmente, à proibição de reunião
de “pessoas de cor”, de realização de festas, de batuques, de venda de bebidas
alcoólicas a negros.

Marcadamente, tais legislações esboçavam a preocupação que a elite


brasileira nutria em relação aos negros e às negras, livres ou não. Por meio delas,

85
A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS
A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL

não apenas as manifestações culturais de matriz africana estavam submetidas à


perseguição policial como se buscava impedir que a cidade se tornasse um espa-
ço de contato entre homens e mulheres negros escravizados ou livres, evitando,
assim, reuniões, possíveis motins, fugas ou outras formas de resistência (DUARTE,
1998, pp. 243-248; MAIA, 2007, p. 81).

Esta preocupação com a manutenção da ordem e com o controle par-


ticularmente das populações negras tem estreita relação com a imagem destas
cidades enquanto novas Áfricas, nas quais uma malta enegrecida tinha um nível
perigoso de mobilidade. Como observado por parte da historiografia, este medo
de negros (AZEVEDO, 1987; CHALHOUB, 1988) também dialogava com o cenário
de convulsão social vivido ao longo do século XIX, no qual escravizados assassi-
navam senhores crueis, buscavam legalmente os meios para garantir a escravidão,
recusavam reconhecer dever de obediência a seus senhores (FARIAS et all, 2015).

Esta “onda negra”, no entanto, embora se traduzisse nos atos individuais


acima citados, também se expressou em insurgências coletivas. Como se sabe,
ao longo de todo o século XIX, variadas foram as rebeliões populares que ques-
tionaram o status quo vigente e exercerem pressões no sentido da constituição
de um pacto social verdadeiramente inclusivo (MOURA, 1988). Nas cidades
atlânticas, esse cenário era agravado pelas possibilidades de diálogo entre seus
habitantes e os marinheiros, que traziam informações da África e também de
outras partes do mundo. Após a Revolução Haitiana, o medo das elites de um
levante de inspiração internacional foi tão grande que “haitianismo” chegou a se
tornar uma conduta tipificada.

Ao pintar este cenário, o que pretendemos é destacar como as agências


dos povos negros e os medos das elites e classes médias, postas em atrito, desa-
guaram numa demanda de controle e vigilância que se expressou numa atitude
de suspeição generalizada sobre os negros (FARIAS et all, 2006). A despeito das
muitas contradições das instituições de controle – como a insubordinação e a
desordem no seio das próprias polícias – as cidades eram o ambiente onde se
buscava manter fechado o cerco sobre a cidade negra. E isto se fazia, como já
mencionado, não só através de demandas de cunho estritamente criminal, como
também administrativo, sanitário, etc.

Pode-se imaginar que esta gestão racialmente diferenciada do espaço


público foi privilégio do período imperial. Uma análise cuidadosa das posturas
durante o período republicano, no entanto, nos conduz a diagnóstico diverso.
Tematizando o trabalho de rua numa Salvador pós-abolição, Bruna Novaes (2017)
destaca o papel das posturas no controle à circulação dos indesejáveis. Para ela,
as posturas soteropolitanas visam conter as expressões de uma cidade africanizada
que não condizem com os ideais civilizatórios das elites e classes médias. Ainda

86
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

que não se encontrem mais referências expressas aos negros e aos escravizados,
por exemplo, existe uma gestão racializada do espaço urbano sob a interdição ao
trabalho de vendedores e vendedoras de rua, de lavadeiras, no controle sanitário
dos gêneros alimentícios vendidos.

A cidade das mulheres

Recuperando a história da escravidão negra nos EUA, Angela Davis (2016)


confronta a imagem das negras escravizadas enquanto trabalhadoras sobretudo
domésticas com uma realidade de trabalho braçal muito equiparado ao dos
homens escravizados, presente dentro dos lares brancos, mas também nas minas
e nas lavouras, por exemplo. Davis observa que a ideologia da feminilidade do
século XIX, segundo a qual às mulheres cabia o recato, o recolhimento ao espaço
doméstico, a maternidade e o cuidado da família, não era aplicada às mulheres
negras. Estas não apenas precisavam lutar pela manutenção precária de suas fa-
mílias, desagragadas pelos senhores, como estavam submetidas à violência sexual
dos homens brancos e ao trabalho exaustivo.
Proporcionalmente, as mulheres negras sempre trabalharam mais fora de
casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocu-
pa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido
durante os primeiros anos da escravidão. (DAVIS, 2016, p. 17)

O cenário traçado por Davis para os EUA não deve ser lido como uma
particularidade, em muito as experiências da diáspora africana se assemelham
(GILROY, 2012; HALL, 2013). Os trabalhos historiográficos acerca dos fluxos urbanos
no Brasil oitocentista vêm demonstrando que as cidades brasileiras neste período
eram palco de intensa movimentação feminina. Trabalhadoras negras, livres, forras
ou escravizadas, circulavam com maior ou menor liberdade em busca de meios
de sobrevivência. Eram lavadeiras, vendeiras, boceteiras que encontravam na rua
seu ambiente de trabalho.
A conhecida reclusão feminina dos tempos patriarcais, notada por viajantes
europeus, não é uma condição que se deva atribuir às mulheres escravas,
forras e livres pobres. A presença destas no meio urbano se dava, sobre-
tudo, como um imperativo da busca pela sobrevivência, e pela condição
básica de exercício de seus ofícios; essas circunstâncias conferiam a estas
mulheres uma presença mais intensa pelas ruas da cidade, uma presença
que está basicamente – mas não totalmente – vinculada à atividade do
trabalho. Exercendo ofícios chamados na época de ‘portas a fora’, essas
mulheres tinham uma mobilidade espacial e um conhecimento dos “peri-
gos” da rua muito maior do que suas senhoras e patroas. Elas acabavam
se apropriando, por assim dizer, de uma maior quantidade de espaços da
cidade, ao mesmo tempo em que lhes atribuíam significados e qualidades
próprios com seus gestos diários de “mulheres de rua”: gritos, risos, falas
“obscenas”, movimentos do caminhar e da linguagem. (SILVA, 2011, p. 62)

87
A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS
A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL

Tematizando o trabalho de rua na cidade de Salvador, Bruna Novaes (2017)


observa que, para os atores que dele tiram seu sustento, a rua era ambiente de
sociabilidade, de desenvolvimento de formas de vida que muitas vezes se con-
trapunham àquelas estabelecidas pelas elites. Maciel Silva (2011), tematizando,
por sua vez, a vida e o trabalho de domésticas e vendedoras no Recife, discute
como a presença das mulheres nas ruas têm uma face de exposição, quase de
um “perigo”, mas também pode encerrar possibilidades de liberdade em meio ao
regime escravista vigente. Isso porque a rua pode significar escape ao controle
senhorial, suas normas de comportamento, de religiosidade e de sexualidade. Pode
também, por essas mesmas razões apontadas, possibilitar estreitamento de laços
entre sujeitos postos em condições socialmente próximas. Ou seja: a rua surge,
a um só tempo, como espaço de perigo, trabalho e liberdade.

As cidades brasileiras do século XIX eram um ambiente razoavelmente


movimentado. Numa cidade portuária, como o Recife, este movimento devia ser
ainda mais intenso, vez que aos jornaleiros, vendedores, quitandeiras e lavadeiras,
somavam-se figuras como a de marinheiros, nacionais e estrangeiros. O controle
de moralidade, tão forte – a despeito de suas muitas contradições – nos lares
senhoriais, era afrouxado pelas “maltas urbanas”. Prostitutas faziam ponto, as praças
da polícia montavam ronda, escravos fugidos buscavam esconderijo na multidão,
bêbados e “alienados” circulavam pelas ruas. A historiografia da época registra
o ambiente urbano como prenhe de conflitos, brigas, risos, gritaria, batuques,
dizeres obscenos, danças e cantos imorais (FARIAS, 2006; SILVA, 2011; NOVAES,
2017; MAIA, 2011).

Neste meio, circulavam muitas mulheres negras, livres, forras ou escraviza-


das. A rua, como mencionado, para estas mulheres podia adquirir os contornos
de um respiro do controle doméstico senhorial, uma estratégia de sobrevivência,
mas, ainda, um espaço de confronto, perigo e resistência constantes. No seio de
uma sociedade patriarcal, elas encaravam as contradições do meio urbano.

Maciel Silva (2011) observa a negativadade da imagem socialmente cons-


truída acerca de vendeiras e lavadeiras. As primeiras, com seus pregões e sua
gritaria característica, circulavam por toda a cidade, inclusive em seus espaços
mais estigmatizados e em horários considerados inapropriados (“incompetentes”,
no dizer da época) para mulheres. Já as lavadeiras eram conhecidas por sua liber-
tinagem, expressa em seu linguajar, nas “roupas exíguas” que usavam, no falatório
e na risadagem características das fontes e rios que ocupavam com suas trouxas.

O mesmo autor (SILVA, 2011) observa ainda que, muitas vezes, o espaço
da rua era a estratégia de sobrevivência disponível também às mulheres bran-
cas pobres. É provável que, a partir do fim do século XIX, as cidades de porte
relativamente grande passassem por um período de empobrecimento. Se isso

88
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

impactava as classes médias e as elites, que já não tinham mais condições, por
exemplo, de sustentar um corpo largo de escravizados e empregados domésticos,
é provável que o impacto da alta dos preços fosse ainda maior nos setores mais
pobres. Daí que, conforme coloca o autor, algumas mulheres brancas passassem
aos serviços “portas a fora”. Tal escolha, no entanto, refletia uma falta de outras
opções. A rua era vista como o espaço de desonra e imoralidade. As mulheres
brancas, em particular, não gostariam de estar associadas a esse ambiente de
desordens e optavam, quando possível, por serviços “portas adentro”.

A partir deste cenário, podem ser compreendidos alguns discursos acerca


do comportamento e da honra da mulher negra. Como pontua Angela Davis:
A julgar pela crescente ideologia da feminilidade do século XIX, que en-
fatizava o papel das mulheres como mães protetoras, parceiras e donas
de casa amáveis para seus maridos, as mulheres negras eram praticamente
anomalias (DAVIS, 2016, p. 18).

Construiu-se uma representação social destas mulheres enquanto agressivas,


lascivas, desleixadas, afeitas à imoralidades e desordens de todo tipo (GONZALEZ,
1983; NASCIMENTO, 2002). Esta leitura foi, inclusive, chancelada pelo saber cientí-
fico da época, particularmente o positivismo criminológico, que buscou relacionar
imoralidade, sexualidade desenfreada e propensão ao crime (FRANKLIN, 2017).

Os fluxos destas mulheres nos põem frente à territorialização de uma


cidade negra, modificada e ressignificada cotidianamente a partir das experiências
concretas de vida. É bem verdade que havia um projeto de cidade e sociedade
pautado pelas elites e classes médias pautado por uma moralidade e uma ordem
que não eram compartilhadas pelos sujeitos de que ora tratamos. A cidade, en-
tão, torna-se a um só tempo palco e objeto de embate entre essas personagens,
ambiente de tensionamento constante.

As mulheres frente ao controle policial

Iniciamos esse trabalho observando que as narrativas, particularmente no


âmbito da criminologia, acerca do controle exercido sobre as mulheres entendem
que sua esfera de atuação se dava em âmbito privado, a partir das relações fa-
miliares. A discussão que realizamos até aqui pretende demostrar as limitações
dessa visão.

Em primeiro lugar, queremos chamar atenção para a necessidade de situar


de que mulheres se está tratando. As feministas negras têm observado que de-
baixo do termo “mulheres” se tem homogeneizado experiências as mais diversas
e, com isto, (re)produzido o apagamento de sujeitos históricos, principalmente
de mulheres não-brancas (GONZALEZ, 1983). É importante, então, recuperar a

89
A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS
A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL

experiência das mulheres negras, num esforço, a um só tempo, de contraposição


à tendência universalizante e de deslocamento do papel do racismo na estrutu-
ração do nosso controle criminal da periferia para o centro de nossas análises
(FLAUZINA, 2006, p. 35).

A leitura segundo a qual o controle público destinava-se aos homens


porque as mulheres estariam recolhidas aos lares é enviesada porque ignora as
diferenças que marcam as relações e o controle social sobre mulheres negras e
brancas, principalmente as mulheres brancas das elites e classes médias. De fato,
a vida das mulheres negras em países marcados, como o Brasil, pelo escravismo,
desenrolava-se em grande medida no espaço público, pois eram mulheres que
não apenas tinham obrigações dentro dos lares – principalmente dos lares bran-
cos, quando escravizadas – mas ainda na rua, trabalhando em condições muito
semelhantes a dos homens negros (DAVIS, 1983). A abolição do regime escravista
não alterou esse cenário porque não provocou ruptura substancial no pacto social
vigente: os sujeitos que ocupavam o espaço público em busca de meios, quase
sempre precários, de sobrevivência, não se alteraram.

Nesse sentido, observará Naila Franklin acerca das relações entre negras
ganhadeiras e autoridades policiais em fins do império:
[...] atividades realizadas pelas ganhadeiras, apesar de importantes para a
distribuição de bens essenciais à vida urbana, preocupava as autoridades.
Elas faziam seu trabalho de maneira itinerante ou fixavam-se em pontos
estratégicos da cidade, servindo de elementos de integração entre uma
população considerada perigosa pelas elites (FRANKLIN, 2017, p. 75).

Em incursão nos dados constantes do Boletim Policial do Distrito Federal,


podemos perceber, ao menos em parte, como se dava a relação destas mulheres
com as forças policiais.

Das 254 mulheres que foram recolhidas pela polícia à Casa de Correção
em 1907, 238 estavam recolhidas pela prática de contravenções. Dessas, 200 era
por acusação de vadiagem, representando 84% do total. A criminalização feminina
era possível, portanto, em razão do tipo de vadiagem. Este tipo, de resto vago
e ambíguo, muitas vezes englobava condutas lidas como imorais, sexualmente
reprováveis, distantes, em suma, dos padrões civilizados esperados. Importa pen-
sar, também, que a representação acerda das condutas dessas mulheres não se
descolava da representação que se tinha das próprias mulheres. Nesse sentido,
estar na rua, ocupar o espaço pode ser lido de formas distintas a depender de
que sujeito se trata. O tipo de vadiagem talvez expresse, como poucos outros,
essa leitura diferencial do agir e existir.
A gestão de usos do espaço é diferencial porque atribui valorações distintas
a distintos usos do espaço. Atentar-se sobre esse aspecto da estratégia

90
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

estatal é desnudar uma ideia corrente – e presente no momento con-


temporâneo – de que a questão por trás do trabalho de rua é assegurar
o respeito ao espaço público, combatendo qualquer apropriação privada
do mesmo. (NOVAES, 2017, p. 120.)

De acordo com os dados referentes ao primeiro trimestre de 1907:


Brasileira Estrangeira Branca Mestiça Preta
Sociedade secreta 1 1
Mendicidade 1 2
Embriaguez 7 1 6
Embriaguez e vadiagem 14 1 4 4 4
Vadiagem 189 11 33 74 93
Vagabundas reincidentes 5 1 2 2 2
Capoeiragem 2 2
Sem motivo especificado 3 3 3 1 2
Tabela 1. Fonte: Boletim Policial do Distrito Federal – Ano 1, Volume 1, Ano 1907. (Elaboração própria)

Alfabetizada Analfabeta Solteira Casada Viuva


Sociedade secreta 1 1
Mendicidade 2 2
Embriaguez 7 4 3
Embriaguez e vadiagem 2 10 5 7
Vadiagem 27 173 130 25 35
Vagabundas reincidentes 6 6 3 1 2
Capoeiragem 2 2 2
Sem motivo especificado 5 6 4 1 1
Tabela 2. Fonte: Boletim Policial do Distrito Federal – Ano 1, Volume 1, Ano 1907. (Elaboração própria)

Até 15 de 16 De 21 De 26 De 31 De 36 De 41 De 46 Maior
anos a 20 a 25 a 30 a 35 a 40 a 45 a 50 de 51
Sociedade secreta 1

Mendicidade

Embriaguez 1 2 2 1 1

Embriaguez e vadiagem 3 3 1 1 1 2

Vadiagem 7 45 52 36 16 15 6 6 15

Vagabundas reincidentes 2 1 1 1 1

Capoeiragem 1 1

Sem motivo especificado 2 2 1 1


Tabela 3. Fonte: Boletim Policial do Distrito Federal – Ano 1, Volume 1, Ano 1907. (Elaboração própria)

91
A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS
A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL

Descendo ao perfil das detidas, temos que 46,5% são pretas, 37% “mula-
tas” e 16,5%, brancas. Esse perfil é condizente com a imagem das mulheres que
circulam, cotidianamente, pelas ruas da cidade, mulheres negras, em sua ampla
maioria. Analisando os dados constantes do Boletim, temos, ainda, que a ampla
maioria dessas mulheres é analfabeta, o que nos põe de frente à sua condição
social, nos possibilita algumas inferências acerca das limitações encontradas por
elas no lido para prover seu sustento.

Também sabemos que a maior parte dessas mulheres era jovem ou re-
lativamente jovem e solteira. Poucas são as mulheres casadas que encontramos
detidas por vadiagem. Essa informação é importante se refletirmos acerca da
imagem de negras enquanto lascivas e imorais. Ter o status de solteira não quer
dizer que elas não tivessem famílias, mas que provavelmente viviam “amasiadas”,
em uniões não formalizadas e malvistas pela sociedade da época.

É interessante, ainda, observarmos o texto que abre o Boletim Policial. Nele,


o chefe de polícia, Alfredo Pinto Vieira de Mello – mais tarde conhecido pela
lei que permitiu aos delegados instaurar processo em caso de contravenções –
expõe o que pensa ser os desafios e o futuro da polícia. Dentre eles, o chefe de
polícia menciona justamente a vadiagem. Em seu discurso, muito marcado pelo
saber criminológico da época, ele fala da necessidade de aliar uma atitude firme
e não leniente com a criminalidade a trabalhos no sentido de regenerar indiví-
duos incivilizados. No caso dos indivíduos vadios, essa regeneração viria através
do trabalho compulsório, com o qual neles se incutiria uma ética do trabalho.

O que se observa, considerando que junto à vadiagem vinha o discurso


de necessidade de combate ao alcoolismo, é que, a despeito da eliminação da
referência direta e explícita à questão racial, a racialização deste controle está
expressa no direcionamento a certos sujeitos. Os indivíduos sociamente lidos
como incivilizados, imorais e pouco afeitos ao trabalho eram justamente homens
e mulheres negros. Desde os primórdios do período colonial fora esta, afinal, a
construção discursiva do domínio branco. Eliminar a referência expressas ao termo
racial, nesse sentido, não significa eliminar a prática racializadora.

Conclusões

Ao longo deste trabalho, quisemos discutir um pouco sobre a criminalização


de mulheres negras no início do século. A importância do debate reside no seu
potencial para desestabilizar um senso comum acadêmico calcado na ideia de que
alguns sujeitos constituem-se como universais e, que por isso mesmo, contribui
para a invisibilização dos sujeitos que ocupam o pólo oposto, o de subalterni-
dade. As experiências das mulheres negras, em particular, tendem a ser diluídas
na imagem das mucamas e das mães-pretas, ignorando-se as diversas posições

92
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sociais ocupadas por elas. Aqui, propomos observar uma face da experiência das
negras que ocupavam o espaço público nas cidades.

Propomos uma leitura de como as representações de raça e gênero se


manifestavam na forma diferencial de controle dos fluxos das mulheres pelo meio
público. Ao longo deste texto, quisemos colocar, ainda que rapidamente, o cenário
de um espaço público que se constituiu povoado por mulheres negras, que não
apenas o ocupavam, mas disputavam-no e, nesse movimento, geravam demandas
reativas de controle. Este cenário precisa ser lido, também, pela influência que
sofre a partir da instabilidade política e social característica do fim do século XIX
e início do século XX, momento em que o fim do regime escravista, as ondas
negras expressas numa cidade (e também num campo) insurreta e africanizada, e
o surgimento e institucionalização das polícia são elementos históricos importantes.

Esse texto não pretende, é evidente, esgotar nenhuma discussão. Ao


contrário, entendo que tudo está por amanhecer. Insistimos na importância
desta agenda de pesquisa: pela constituição de uma memória social que faça
jus aos diferentes sujeitos que disputaram as dinâmicas urbanas e os padrões de
sociabilidade e moralidade, pelo desvelamento dos vieses existentes nos discursos
homogeneizantes.

Agendas de pesquisa e elementos desestabilizadores postos, é preciso


seguir, mais atentos a como as histórias podem ser lidas e recontadas.

Referências bibliográficas
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93
A CRIMINALIZAÇÃO DE MULHERES NEGRAS
A PARTIR DAS ESTATÍSTICAS DO BOLETIM POLICIAL DO DISTRITO FEDERAL

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94
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PRO-


CESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)1

GABRIELLE STRICKER DO VALLE2


Universidade Federal do Paraná

Resumo
O objetivo deste trabalho é privilegiar as considerações de método
historiográfico, que tem impacto direto sobre a própria historiografia.
No caso, o objeto da investigação é a cultura jurídica processual penal
nos anos 1930 a 1945. Entre as fontes utilizadas, estão os volumes da
Revista Forense, que alterou sua própria sede a partir da perspectiva de
unificação do direito processual, e da Archivo Judiciario, revista igualmente
tradicional. As dificuldades para reconstruir e analisar o período exigiram
uma série de ferramentas, como a própria noção de cultura jurídica e a
de juristas-legisladores e intelectuais. Partindo de uma concepção cultural,
é impossível desprezar o próprio meio de circulação (prioritariamente
revistas) e o contexto político e social no qual o processo penal estava,
aquela época, inserido.

Considerações iniciais

Os processualistas penais críticos costumam afirmar que o Código de Pro-


cesso Penal de 1941 foi fundado sobre os pressupostos do(a) sistema, mentalidade
ou cultura inquisitória.3 Com algumas variações, as três ideias não abandonam a
mesma noção de continuidade na história do direito4. No caso do uso do ter-
1 Este artigo visa apresentar os resultados parciais da pesquisa realizada para minha dissertação de mestrado
na Universidade Federal do Paraná, sob orientação da Profa. Dra. Clara Maria Roman Borges e do Prof. Dr. Luís
Fernando Lopes Pereira e a ser defendida até março de 2018.
2 Bacharela e mestranda em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Paraná. Formato para citação: STRICKER, G. V. E-mail: strickergv@gmail.com.
3 Apesar do cuidado tomado pelos historiadores em distinguir sistema, mentalidade e cultura, o uso entre
as três expressões não tem rigor conceitual entre os processualistas penais críticos. Jacinto Nelson de Miranda
Coutinho, o exemplo mais significativo, costuma enfatizar a posição dos sistemas e princípios, mas não faz
distinção com relação à mentalidade ou cultura. No primeiro caso, cf. COUTINHO, J. N. de M. Introdução aos
princípios gerais do processo penal brasileiro. In.: Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, a. 30, n. 30,
1998, pp. 163-198; ___. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In.: Revista de
Informação Legislativa, Brasília, a. 46, n. 183, jul./set., 2009, pp. 103-115. Já no decorrer da seguinte entrevista, faz
referência à cultura inquisitória: COUTINHO, J. N. de M. Não adianta punir os ricos para equilibrar a balança.
Consultor Jurídico, 10/01/10. Por fim, percebe-se que o mesmo autor também se utiliza da noção de mentalidade,
cf. COUTINHO, J. N. de M.; PAULA, L. C. de; SILVA, M. A. N. da. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no
Brasil: o Sistema Acusatório e a Reforma do CPP no Brasil e na América Latina. v. 3. Empório do Direito: [s. l.],
2017; ___. Mentalidade Inquisitória e Processo Penal no Brasil: Anais do Congresso Internacional “Diálogos sobre
processo penal entre Brasil e Itália”. 2 v. Empório do Direito: [s. l.], 2016 e 2017. Mesmo nesses três volumes –
dos quais dois estão esgotados –, os exemplos de indistinção nos próprios sumários são fartos, mais frequentes
as menções à sistema e mentalidade do que cultura.
4 Nesse sentido, cf. GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 24-25: “A esta altura poder-se-ia perguntar se o que emerge

95
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

mo cultura, dois exemplos servem de amostragem para tematizar a perspectiva


historiográfica. Os dois artigos são recentes e de autores experientes, ou seja, são
opiniões bem-acabadas sobre o tema e que têm repercussão no atual meio jurídico.

O primeiro é de Aury Lopes Jr., segundo o qual é mais difícil mudar “as
práticas judiciárias e a cultura inquisitória” do que a lei. Para ele, a “inspiração” na
matriz fascista do Código Rocco é provada na Exposição de Motivos do Código
de Processo Penal. Além disso, o Código tem uma estrutura na qual o juiz bus-
ca a prova de ofício, sinal de uma estrutura inquisitória.5 Essa perspectiva é tão
amplamente aceita que normalmente dispensa maiores explicações.

O segundo exemplo é de Salah Hassan Khaled Jr., que tem formação


em Direito e em História. O autor justifica o estudo do espaço cultural (não o
normativo, nem o epistemológico) do processo penal porque é nele que se pode
observar a “ruptura autoritária”. Enquanto na cultura inquisitória, o juiz produz a
verdade em segredo, no momento, o processo penal atende a demandas pu-
nitivas, em uma “verdadeira dialética da arbitrariedade”6. A Operação Lava Jato
dos discursos de Menocchio não é mais uma ‘mentalidade’ do que uma ‘cultura’. Apesar das aparências, não se
trata de uma distinção fútil. O que tem caracterizado os estudos de história das mentalidades é a insistência nos
elementos inertes, obscuros, inconscientes de uma determinada visão de mundo. As sobrevivências, os arcaísmos,
a afetividade, a irracionalidade delimitam o campo específico da história das mentalidades, distinguindo-a com
muita clareza de disciplinas paralelas e hoje consolidadas, como a história das ideias ou a história da cultura
(que, no entanto, para alguns estudiosos engloba as duas anteriores). Inscrever o caso de Menocchio no âmbito
exclusivo da história das mentalidades significaria, portanto, colocar em segundo plano o fortíssimo componente
racional (não necessariamente identificável à nossa racionalidade) da sua visão de mundo. Todavia, o argumento
decisivo é outro: a conotação terminantemente interclassista da história das mentalidades. [...] Nesse sentido, na
maior parte das vezes, o adjetivo coletiva acrescentando a ‘mentalidade’ é pleonástico. Ora, não queremos engar
a legitimidade de investigações desse tipo, porém o risco de chegar a extrapolações indevidas é muito grande.
Até mesmo um dos maiores historiadores desse século, Lucien Febvre, caiu numa armadilha desse gênero. [...]
Graças à noção interclassista de ‘mentalidade coletiva’, os resultados de uma investigação conduzida sobre um
pequeno estrato da sociedade francesa composto por indivíduos cultos são tacitamente ampliados até abarcar
completamente um século inteiro. É o retorno da tradicional história das ideias. [...]”.
5 Para fazer justiça às palavras do autor: “O mais difícil não é mudar a lei, mas as práticas judiciárias e a cul-
tura, especialmente a inquisitória, ainda tão arraigada no modo de agir dos atores judiciários. O processo penal
brasileiro, assumidamente inspirado na matriz fascista do Código de Rocco (basta ler a Exposição de Motivos
do atual CPP), estruturou a figura do juiz-ator, ativo na busca da prova, inclusive de ofício (marca indelével
de uma estrutura inquisitória, como cansou de advertir Jacinto Coutinho), presidente supremo da audiência e
praticamente o gestor da produção da prova testemunhal.” Cf. LOPES JR., A. Será que finalmente cumprirão o
art. 212 do CPP? Agora temos a palavra do pai-tribunal. In.: Consultor Jurídico, 17/11/17.
6 “Pensar o processo penal como fenômeno essencialmente cultural é o desafio proposto nestas linhas iniciais.
Logicamente, isso não significa que a dimensão normativa e epistemológica seja desconsiderada por completo.
Mas a intenção consiste em explorar a dimensão de significado no âmbito do processo e a própria reconstrução
mediada e/ou a exponenciação de significado a que são submetidas as complexas situações jurídicas processuais,
enquanto discursos exportáveis do processo para consumo externo. [...] A ruptura autoritária não é da ordem
da epistemologia ou da normatividade. É da ordem da cultura: da tradição inquisitória que permite a deriva,
que dá margem para o golpe de cena que transforma o processo em monólogo autoritário, reinventado como
discurso vociferado para o grande público na sociedade do espetáculo.
É da cultura inquisitória que a verdade seja produzida em segredo, enquanto o juiz manipula a prova. O pro-
cesso inquisitório não tem predileção pela transparência, assim como despreza o contraditório. Mas na atual
quadra histórica, ele abandona o fetiche pelo oculto para se transformar em um mecanismo de assujeitamento
e violência simbólica, que simultaneamente satisfaz e cria expectativas no público que é seu consumidor, em
uma verdadeira dialética da arbitrariedade.” Cf. KHALED JR., S. H. Processo penal como fenômeno cultural:
primeiras linhas subversivas. Justificando, 29/11/17. O autor inseriu algumas notas, as quais foram retiradas para

96
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

seria o caso paradigmático da tensão entre “tradição autoritária” e “conformidade


constitucional” do processo.7

Ambos criticam uma “tradição” ou uma “inspiração explícita”, de caráter


autoritário, fascista ou inquisitório. Essa perspectiva, se não limita, subestima gra-
vemente a atuação dos sujeitos na história e no presente. O problema fica ainda
mais evidente quando constatamos o papel central dos juristas na política cotidiana
em múltiplos espaços e o uso de estratégias defensivas para ocultar esse papel8.
Colocar o sujeito novamente na história é promover a liberdade do presente em
relação ao passado9. Só assim é possível dar a justa responsabilidade àqueles que
já ocuparam alguma posição de poder, notavelmente em períodos autoritários. A
inexistência de atas de debates do Código de 1941 escalona o desafio, mas não
é motivo suficiente para que não se realizar uma pesquisa historiográfica. Existem
ainda fontes indiretas que permitem a análise – intrinsecamente ligadas à atividade
manter o essencial da publicação.
7 “[...] Hoje é impossível compreender o processo sem levar em conta essa dimensão, sob risco de o estudo se
dar somente no plano da abstração, enquanto deve contemplar outras dimensões de construção de significado
como a criminalização da advocacia e os mecanismos subjetivos típicos da economia moral de ilegalidades da
qual participam os agentes de um complexo jurídico-midiático como a Operação Lava Jato. O encadeamento
narrativo entre as duas dimensões da Operação demoniza e dramatiza, construindo no imaginário público um
relato que poderia ser definido de modo provocativo como ficção: vale não só aquilo que supostamente se
fez mas o potencial que uma dada conduta ou pessoa tem para enriquecer a macronarrativa da corrupção.
[...]”. Cf. KHALED JR., S. H. Processo penal como fenômeno cultural: primeiras linhas subversivas. Justificando,
29/11/17. A mesma precaução acima, com relação às notas autorais, foi tomada.
8 Cf. HESPANHA, 2003, pp. 23-24: “Uma última estratégia legitimadora nos usos da história do direito segue
um caminho diferente. O que nesta está em jogo já não é a legitimação directa do direito, mas a da corporação
dos juristas que o suportam, nomeadamente dos juristas acadêmicos.
Na verdade, os juristas têm uma intervenção diária na adjudicação social de faculdades ou de bens. Isto confere-
lhes um papel central na política quotidiana, embora com o inerente preço de uma exposição permanente à
crítica social. Uma estratégia de defesa deste grupo é a de desdramatizar (‘eufemizar’, Bordieu, 1986) a natureza
política de cada decisão jurídica e, por isso, o seu carácter ‘político’ (‘arbitrário’, no sentido de que depende de
escolhas de quem decide e não de leis ou princípios imperativos). Ora, uma forma de ‘despolitizar’ (‘despon-
tencializar, ‘eufemizar’) a intervenção dos juristas é apresentar o veredicto jurídico como uma opção puramente
técnica ou científica, distanciada dos conflitos judiciais subjacentes.
Esta operação de neutralização política da decisão jurídica tornar-se-á mais fácil se se construir uma imagem
dos juristas como académicos distantes e neutrais, cujas preocupações são meramente teóricas, abstractas e
eruditas. Uma história jurídica formalista, erudita, alheia às questões sociais, políticas e ideológicas e apenas
ocupada de eras remotas, promove seguramente uma imagem das Faculdades de Direito como templos da
ciência, onde seriam formadas tais criaturas incorpóreas.”
9 Precaução constante em HESPANHA, A. M. Cultura jurídica europeia: Síntese de Um Milénio. 3ª ed. Mem
Martins: Forum da História, 2003, pp. 21-22, 31. Nesta última página, em especial:
“Estabelecida esta ideia – com a crítica que ela traz implícita à ideia de progresso linear, de genealogia e de
influência –, o presente deixa de ser o apogeu do passado, o último estádio de uma evolução que podia ser
de há muito prevista. Pelo contrário, o presente não é senão mais um arranjo aleatório, dos muitos que a
bricolage dos elementos herdados podia ter produzido.
Contudo, a ideia de descontinuidade, se nos dá uma perspectiva sobre o presente, também influencia o nosso
modo de observar o passado, Este deixa de ser um percursos do presente, um ensaiador das soluções que
vieram a ter um completo desenvolvimento no presente. E, com isto, deixa de ter que ser lido na perspectiva
do que veio depois. O passado é libertado do presente. A sua lógica e as suas categorias ganham espessura e
autonomia. A sua diferença emerge majestosamente. Esta emergência da diferença, dessa estranha experiência
que nos vem do passado, reforça decisivamente o olhar distanciado e crítico sobre os nossos dias (ou, no caso,
sobre o direito positivo), treinando-nos, além disso, para ver coisas diferentes na aparente monotonia do nosso
tempo.” (grifo nosso).

97
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

desses sujeitos históricos. Alguns foram juízes, promotores, advogados, professores


de Direito e editores de revistas especializadas. E todos, em algum momento, foram
juristas-legisladores – como designou Diego Nunes ao citar Barbara S. Feinberg.10

Por esses motivos, optou-se por tomar jurista como o intelectual da cultura
jurídica. Assim já o fizeram Antonio Manuel Hespanha, ao tratar do controle de
jurisdicionalidade português do século XIX;11 Ricardo Marcelo Fonseca, com os
juristas brasileiros do século XIX;12 Airton Seelaender, ao estudar a relação entre
juristas e ditaduras e, mais particularmente, Francisco Campos.13 Não seria possível,
ainda, se furtar à leitura das pesquisas desenvolvidas tanto por Ricardo Sontag – em
particular, sobre a tecnicização da legislação penal de 1940 e o antibacharelismo14
–, como por Mariana de Moraes Silveira – ao propor uma história intelectual
das reformas legislativas de 1930 a 1940 por meio das revistas jurídicas15 –, que
também tomaram os juristas como intelectuais, mas não pretenderam priorizar
o processo penal.

Por fim, a historiografia brasileira do período Vargas não é desprezável,


em especial os apontamentos de Monica Pimenta Velloso16, Angela de Castro

10 Cf. NUNES, D. Processo Legislativo para além do Parlamento em Estados Autoritários: uma análise comparada
entre os Códigos Penais Italiano de 1930 e Brasileiro de 1940. In.: Revista Sequência (Florianópolis), n. 74, dez.
2016, pp. 153-180.
11 HESPANHA, A. M. “Um poder um pouco mais que simbólico: juristas e legisladores em luta pelo poder
de dizer o direito”. In.: FONSECA, Ricardo Marcelo; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. História do direito em
perspectiva. 1ª ed. Curitiba: Juruá, 2009. pp. 149-199.
12 FONSECA, R. M. “Os juristas e a cultura jurídica brasileira na segunda metade do Século XIX”. In.: Quaderni
Fiorentini: per la storia del pensiero giuridico moderno. vol. 35. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2006. p. 339-371.
Ver também OLIVEIRA, S. R. M. de. Juristas ao final do Império brasileiro (1873-1889): perfis, discursos e modelos
a partir do estudo da revista O Direito. Data da defesa: 31/08/15. 329 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal
do Paraná, Faculdade de Direito. Curitiba, agosto de 2015 (pdf).
13 SEELAENDER, A. C. L. “Francisco Campos (1891-1968) – Uma Releitura”. In.: FONSECA, Ricardo Marcelo
(org.). As formas do direito: ordem, razão e decisão (experiências jurídicas antes e depois da modernidade).
Curitiba: Juruá, 2013. p. 491-525; ___. “Juristas e Ditaduras: uma leitura brasileira”. In.: FONSECA, Ricardo Marcelo;
SEELANDER, Airton Cerqueira Leite (org.) História do direito em perspectiva. Curitiba: Juruá, 2009. p. 415-432.
14 SONTAG, R. “Triatoma baccalaureatus: sobre a crise do bacharelismo na Primeira República”. In.: Espaço Jurídico,
v. 9, p. 67-78, 2008; ___. Código e técnica. A reforma penal brasileira de 1940, tecnicização da legislação e atitude
técnica diante da lei em Nelson Hungria. Data da defesa: 16/11/2009. 163 f. Dissertação (Mestrado) – Univer-
sidade Federal de Santa Catarina. Pós-graduação Stricto Sensu em Direito, Programa de Mestrado. Florianópolis,
2009a (pdf); ___. “’A eloquência farfalhante da tribuna do júri’: o tribunal popular e a lei em Nelson Hungria”.
In.: HISTÓRIA, São Paulo, n. 28, v. 2, 2009b, p. 267-302; ___. “’O Farol do Bom Senso’: júri e ciência do direito
penal em Roberto Lyra”. In.: Sequência, Florianópolis, n. 68, p. 213-237, jun. 2014a; ___. “Unidade Legislativa Penal
Brasileira e a Escola Positiva Italiana: Sobre um Debate em Torno do Código Penal de 1890”. In.: Revista Justiça
& História, v. 11, p. 89-124, 2014b; ___. “’Verbalismo de jornal’: ensino do Direito Penal, ciência e lei em Roberto
Lyra”. In.: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 25, p. 299-332, 2017.
15 SILVEIRA, M. de M. “Direito, ciência do social: o lugar dos juristas nos debates do Brasil dos anos 1930 e
1940”. In.: Estudos Históricos. Vol. 29, nº 58. Rio de Janeiro, maio-agosto/2016. p. 411-460; ___. Revistas em tempos
de reformas: pensamento jurídico, legislação e política nas páginas dos periódicos de direito (1936-1943). Data da
defesa: 04/12/13. 394 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas. Belo Horizonte, dezembro de 2013 (pdf).
16 VELLOSO, M. P. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In.: FERREIRA, J.; DELGADO, L. de A.
N. (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 8ª. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

98
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Gomes e Patrícia dos Santos Hansen17. As autoras forneceram o vínculo entre a


política cultural varguista – encampada por agentes intelectuais e do Estado –
e a revalorização da identidade nacional. Essas investigações, nas quais cultura e
intelectuais tem sentido amplo, não se direcionaram em nenhum momento aos
juristas. Como não se pode assumir a obviedade da operação pela qual juristas
são também intelectuais, assume-se o ônus, sugerido por Gomes18 e por Silveira19,
de identificar as particularidades cabíveis aos juristas e à cultura jurídica como
alvo de uma política cultural.

Todas essas ferramentas metodológicas tem a virtude de permitir a análise


das relações de poder entre juristas, o Estado e a cultura – bem como a crítica
ao autoritarismo – sem recorrer a grandes esquemas explicativos a-históricos. No
caso de estudo, vê-se que a transição brasileira do Império à República e, depois,
da “República Velha” ao Estado Novo, é marcada tanto pela discussão do poder
de dizer o direito, como pela crítica ao bacharelismo e pelo retorno dos juristas
ao cenário político. Isso diz muito respeito às subcomissões legislativas e, em par-
ticular, à organização das Justiças, à unidade do processo e à própria formulação
de um código e do Código de Processo Penal.

O esforço para desfazer mitos exige ainda mais do que colocar o sujeito
na História. Como aponta Hespanha, os juristas e historiadores do direito tendem
a acreditar que este “constitui uma antiga tradição agregativa”, somando ou aper-
feiçoando institutos20. Ao contrário do que normalmente se pensa, não é disso que
se trata uma história cultural ou sociocultural21 do institucional e do normativo22.

17 GOMES, A. de C. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996; GOMES,
A. de C.; HANSEN, P. dos S. Apresentação. In.: ___; ___ (orgs.). Intelectuais Mediadores: práticas culturais e ação
política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. pp. 7-37.
18 “Compreender a lógica de qualificação do suplemento é não só preencher a categoria ‘historiador’ com
atributos que a aproximam das características mais gerais de um ‘intelectual’, como distinguir nela especificidades
capazes de recortar um lugar próprio, que vai se construindo e afirmando como um ofício no período coberto
pela própria seleção realizada.” Cf. GOMES, A. de C. História e Historiadores. Rio de Janeiro: Editora Fundação
Getúlio Vargas, 1996, p. 37.
19 SILVEIRA, 2013, pp. 34-35.
20 HESPANHA, 2003.
21 As fronteiras entre a história cultural e a história social se diminuíram, sendo possível assumir um gênero
híbrido, na qual a predominância entre uma e outra se dará pelo método. Segundo Peter Burke, o próprio
Clifford Geertz já admitia o perigo de uma análise cultural distante das “’superfícies duras da vida’”, como a
política e a economia. O próprio Burke reconhece que a definição de cultura é inclusiva e que talvez seja o
momento de ultrapassar a virada cultural, ao passo que os historiadores culturalistas também se preocupam
em reconfigurar suas abordagens. Nesse sentido, cf. BURKE, P. O que é História Cultural? 2ª. ed. rev. e amp. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, pp. 147-148.
22 “Como disciplina história, a história jurídica e institucional está hoje a recuperar o ostracismo a que tinha
sido condenada pela primeira geração da École des Annales. A evolução da teoria e metodologia da história
institucional – que implicou um redesenho do seu objecto [...] desempenhou aqui um papel muito importante.
Contudo, também os historiadores gerais estão hoje, passada a vaga do economicismo que dominou até os
anos ’70, cada vez mais conscientes da centralidade e omnipresença do poder e da política.” Cf. HESPANHA,
A. M. Cultura jurídica europeia: Síntese de Um Milénio. 3ª ed. Mem Martins: Forum da História, 2003, pp. 32.

99
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

Hespanha aponta que a tradição, presente no direito, é “um fator de


construção do Direito atual”, porque é constantemente relida e atualizada. O
conteúdo dessa tradição, contudo, importa menos que a “disponibilização de uma
grande parte da utensilagem social e intelectual com que se produzem novos
valores e novas normas (ou seja, à la Foucault, como fornecedor de componentes
dos ‘dispositivos’ da criação actual do saber jurídico).”23. Já os sentidos e valores
(como um todo e em especial aqueles que compõem as normas) têm natureza
relacional e adquirem novos significados em diferentes contextos. Por esse preciso
motivo, Hespanha afirma que se formam sistemas jurídicos sincrônicos, fechados,
e que podem até conviver com seus contemporâneos, mas não se comunicam
diretamente com seus precedentes24. Colocar o objeto da história do direito
em seu passado é atentar, também, para essas operações de ressignificação do
próprio direito.

Não é possível garantir uma explicação geral para o presente do pro-


cesso penal por meio desses procedimentos, mas eles permitem perguntas mais
concretas acerca do papel dos juristas e do direito na sociedade, para as quais
não é possível responder com dicotomias simples, como inquisitório e acusatório.
Estabelecer o percurso histórico-cultural do Processo – de seu ‘“campo jurídico’”25,
“das ‘práticas dos juristas’” e dos “’dispositivos do direito’”26 – é o primeiro passo
para qualquer pretensão crítica.

1. História Cultural do Direito e Juristas no Brasil do século XX

As definições de cultura e de cultura jurídica são de primeira importância


para a nova história do direito, com influência notável da antropologia e demais
ciências humanas. Devido à abertura pragmática desses conceitos, é impossível
discuti-las sem referência direta ao método.

Hespanha, por exemplo, não reduz a um conceito o que é uma história


crítica e cultural do direito, mas provê três orientações inescapáveis para faze-la27.
A primeira é que os poderes periféricos, quotidianamente exercidos, conferem
natureza contextual (e não absoluta) ao direito. A segunda é que o direito não
só regula a sociedade, mas que a própria produção do direito se trata de um
processo social. Por fim, que a história (em geral e a do direito) não se desenvolve
linear e progressivamente, mas de forma descontínua.

23 Cf. HESPANHA, 2003, p. 31.


24 HESPANHA, 2003, p. 30.
25 BORDIEU apud HESPANHA, 2003, p. 29.
26 FOUCAULT apud HESPANHA, 2003, p. 29.
27 Cf. HESPANHA, 2003, pp. 24-31.

100
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Há, também, outras duas perspectivas ricas e complementares para dar


espessura ao fenômeno cultural do direito: a de Luís Fernando Lopes Pereira,
que prefere os personagens fronteiriços para evidenciar as tensões dos discursos
jurídicos e dar voz aos grupos subalternizados e; a de Ricardo Marcelo Fonseca,
que tem preferência pela circulação de conjuntos de significados na produção
do direito e na aceitação entre os pares na Academia. Como ambos se valem
das considerações de Clifford Geertz28 29, nenhuma perda ocorre no que tange
ao cerne do conceito de cultura jurídica: o direito consiste em um saber local; a
historiografia do direito é uma atribuição hermenêutica de sentido30 e; a cultura
jurídica é um “fato histórico antropológico”, que circula nas instituições e não está
deslocada das condições concretas de seu tempo31.

Vê-se que a diferença conceitual entre os dois autores se dá pelas fon-


tes, como se usassem diferentes lentes de aumento, mas são complementares,
porque a cultura circula em toda a sociedade. Devido ao recorte do objeto e
à precariedade da historiografia do processo penal brasileiro, escolhe-se aplicar
o conceito de Fonseca. Essa escolha não ignora a contribuição bakhtiniana de
Pereira, buscando inseri-la sempre que possível, com ênfase para a polifonia e a
dialogicidade contidas em qualquer enunciado e realidade linguística, como são
também as fontes da história do direito32. Em nenhum dos dois casos é aceitável

28 “A primeira [premissa de ordem metodológica] diz respeito ao modo como aqui se emprega o termo
cultura: ele é aqui tomado, na trilha de Geertz, não como algo que está à busca de leis e caracteres imutáveis,
mas é algo que, na atividade interpretativa, deve ter buscado seu significado. A cultura está sempre imersa
em um contexto que pode ser descrito de uma forma inteligível. A partir daí é importante indicar que a
reconstrução da ideia de uma cultura do direito não significa, portanto, a busca da ‘melhor cultura jurídica’, no
sentido de um uso competente das reflexões dos juristas mais autorizados na Europa ou nos Estados Unidos
(seja lá como isso puder ser avaliado), mas sim o conjunto de significados (standards doutrinários, padrões
de interpretação, marcos de autoridade doutrinária nacionais e estrangeiras, influências e usos particulares de
concepções jusfilosóficas) que efetivamente circulavam na produção do direito e eram aceitos nesta época no
Brasil.”, cf. FONSECA, 2006, p. 340.
29 “Mas, mais que isso, nessa obra [Local Knowledge] o autor [Geertz] dialoga especificamente com o Direito,
encarando tal fenômeno também como elemento passível de interpretação posto que pautado em formas
simbólicas próprias que dialogam com outras. Assim, o direito seria mais uma maneira de imaginar o mundo
em meio a outras, como a arte, o senso comum etc. Só que o direito seria uma representação normativa,
fundamentada em uma forma própria de imaginar como deveriam ser as coisas (a lei) e como elas são (o fato),
a partir do que se constrói um ‘sentido de justiça’ que é sempre específico, ‘local’, em dependência de como se
relacionam fato e lei nos diferentes contextos culturais. Afinal, ‘direito, tenho dito [...] é saber local; não apenas
em termos de lugar, tempo, classe, e variedade de discussões, mas também de acento [...] é esse complexo de
caracterizações e imagens, histórias sobre eventos moldados em imaginações sobre princípios, que eu tenho
chamado de sensibilidade legal’. Desta forma, o ‘Direito é religado às outras grandes formações culturais da vida
humana – moral, arte, tecnologia, ciência, religiões, a divisão do trabalho, história. [...] Como outras instituições
de longa permanência – religião, arte, ciência, o estado, a família – o Direito está em processo de aprendizado
para sobreviver sem as certezas lançadas fora’.
Assim, compartilha das angústias destas, em um mundo em que o dissenso é maior que o consenso e que
culturas e sentidos de justiça vários convivem lado a lado, configurando o que Geertz chama de ‘pluralismo
jurídico’.”. Cf. PEREIRA, L. F. L. “A circularidade da cultura jurídica: notas sobre o conceito e o método”. In.: FON-
SECA, R. M. Nova história brasileira do direito: ferramentas e artesanias. Curitiba: Juruá, 2012, p. 46.
30 Cf. PEREIRA, 2012, pp. 36-37.
31 FONSECA, 2006, p. 340 e ss.
32 PEREIRA, 2012, n. 43.

101
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

aquela literatura jurídica que compõe um rol celebrativo de biografias ilustres de


certos juristas33. Dessacralizar as imagens reluzentes desses juristas é um compro-
misso inicial e necessário, qualquer que seja o ramo da história do direito ou a
vertente historiográfica adotada.

Dessa forma, assume-se a perspectiva foucauldiana de Fonseca, que toma


a cultura jurídica como constituinte de uma “configuração discursiva (cheia de
mecanismos de controle, de seleção, de organização, como também de proced-
imentos de interdição e de estabelecimentos de privilégios) que só pode ser
compreendida dentro de um tempo-espaço determinado”.34 Ainda, “a cultura
jurídica é aquilo que circula, funciona e produz efeitos dentro de um determinado
contexto histórico social”, sendo necessário desvelar “as razões de poder presentes
na eleição de suas posições e nas relações de legitimação”.35

Para traçar a possibilidade de uma cultura jurídica brasileira, Fonseca


retorna ao século XIX, momento de sua formação36. Ele explica que mesmo a
independência política não implicou abandono do direito português, mas nota
que a tradição jurídica europeia é trabalhada e adaptada com novas soluções
e alternativas, a partir do tensionamento que o contexto brasileiro provocou. A
criação dos cursos jurídicos de São Paulo e Olinda permitiria, a partir de meados
do século, a formação nacional de professores majoritariamente brasileiros. A esse
ponto, a existência de uma cultura jurídica própria do Brasil é inegável, o que
reputa em críticas certeiras de Fonseca a certas interpretações sobre o bacharelismo
liberal brasileiro (em especial a de Adorno). No limite, essas interpretações levam
a crer que os bacharéis exerciam múltiplas atividades desvinculadas da formação
jurídica, sendo esta precária e voltada para a política.

Fonseca, todavia, atenta não só para as escolhas teóricas dos juristas, como
para a articulação feita por eles entre a vida acadêmica e a vida pública com
os saberes das “’humanidades’”. Repensar essas condições é essencial não só para
combater essa concepção fundada no direito como mera atividade científica e
desvinculada da história nacional, mas também por dois motivos adicionais para
os fins que se propõe. Primeiro, porque, como será apontado, a visão antibacha-
relista é um tema recorrente já nos anos 30 e uma postura consciente e crítica
é essencial. Segundo – e mais importante –, porque o autor quer conhecer o
“modo de ser do jurista enquanto intelectual”,37 premissa essencial deste trabalho.

33 Como se vê em obras tais como RUFINO, A. G., PENTEADO, J. de C. Grandes juristas brasileiros. São Paulo:
Martins Fontes, 2003. A oposição a esse gênero literário é feita por Fonseca (2006, p. 341) e Pereira (2012, p.
49). No mesmo sentido de Pereira e Fonseca, GOMES e HANSEN, 2016, p. 13.
34 FONSECA, 2006, p. 341.
35 FONSECA, 2006, p. 341.
36 FONSECA, 2006, p. 343-349.
37 FONSECA, 2006, p. 350.

102
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Para isso, o autor indica uma contrapartida do historiador. Precisa, em


primeiro lugar, respeitar a “dinâmica interna”, a “espessura” e o “modo como
o saber do Direito historicamente circula”, o que permite avaliar a sua função
e seus efeitos concretos no âmbito cultural. Isso porque o papel do direito é
mais que técnico38, instrumental ou ideológico39. Em seguida, deve-se verificar
como o direito dialoga com componentes culturais diversos – como, em suas
transformações, ele os elabora e reelabora. Por fim, pode-se abordar como este
saber “estabelece sua relação com as estruturas sociais, econômicas e políticas
do período histórico estudado.” 40. Embora o contexto e o foco sejam distintos,
a mesma atitude é válida nesse caso, desde que os juristas sejam historicizados
no recorte pretendido.

Nesse sentido, Hespanha41 percebeu, com perspicácia, que é necessário


vincular os aspectos histórico-dogmáticos à luta política dos juristas pelo poder
de dizer o direito nas sociedades em que vigora o primado da legalidade. Se o
vínculo entre o exercício de poder político e o ato de dizer o direito precede a
criação do Estado-nação42, o momento de inflexão entre juristas e legisladores é
38 Um exemplo concreto é o de Afrânio Silva Jardim, que encarou um paradoxo na coordenação do tomo
sobre Direito Processual Penal na edição comemorativa de 100 anos da Revista Forense. Ele considera que esta
disciplina jurídica não era sistemática até que o Código de 1941 entrasse em vigor e lamenta a ausência de mais
trabalhos dos “nossos mestres” José Frederico Marques (1912-1993), Hélio Tornaghi (1915-2004) e Fernando da
Costa Tourinho (1926-). Esses mestres não eram ainda bacharéis no auge do período de circulação da Forense.
A preconcepção de direito processual penal de Jardim, galgada numa suposta técnica cada vez mais evoluída,
ignora os juristas que, aquela época, eram centrais e que procuravam estabelecer a espessura de seu próprio
Direito: “Na verdade, antes desta época, os trabalhos não separavam bem o Direito Penal do Processual Penal.
Não se tinha clara a separação do direito material do direito instrumental. Ao depois, vem a fase procedimen-
talista, pouco dotada de rigor conceitual e sistemático. Nesta fase, que antecede a dogmática processual penal,
abundam os trabalhos sobre o Tribunal do Júri, questões de competência, hoje superadas, nulidades processuais
e ação penal. Tivemos de escolher alguns daqueles textos que nos pareceram de maior interesse para o leitor
de agora.
Por tudo isso, como é fácil perceber, poucos são os trabalhos de Direito Processual Penal publicados antes da
vigência do atual código, até porque a diversidade dos códigos estaduais talvez desestimulasse a elaboração
de trabalhos de cunho mais geral e sistemático.” (JARDIM, A. S. Revista forense comemorativa: 100 anos, t. 7.
Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. XX.)
39 FONSECA, 2006, p. 371.
40 FONSECA, 2006, p. 371.
41 HESPANHA, 2009, p. 150.
42 No mesmo sentido, Pietro Costa, que aponta uma linha fraturada da “imagem da soberania na cultura
político-jurídica europeia, desde o mundo antigo até o século XX”, ressalta o exercício da jurisdição pelos
juristas, teólogos e filósofos, uma das formas de representação da soberania medieval. Disso se extrai que, se o
Estado de Direito é muito mais recente que os discursos sobre o Direito, o papel dos juristas é fundamental no
fenômeno cultural jurídico. Cf. COSTA, P. “A soberania na cultura político-jurídica medieval: imagens e teorias”. In.:
___. Soberania, Representação e Democracia: ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p.
102. Sobre a iurisdictio: “[...]. Que poder e julgar se implicam reciprocamente é, por outro lado, uma convenção
sugerida não apenas pelo imaginário religioso, mas também pela visão global da ordem [medieval]: uma ordem
já dada, sustentada por normas consuetudinárias, longe de ser identificada com a vontade de legislar do soberano.
O soberano exercita então o seu poder não tanto criando quanto ‘dizendo’, declarando, o direito: o direito já
existe, é uma forma o ser, e o monarca é chamado a proclamá-lo, a reafirmá-lo prestando a justiça, exercitando
o papel (ao mesmo tempo sacro e jurídico) do juiz justo. O rei-juiz é a expressão e a vida de comunicação de
uma imagem sacra da soberania. [...].”. (Id., Ibid., pp. 106, grifo nosso). Já o Estado de Direito é caracterizado pelo
“absolutismo do poder, monopólio das fontes de direito, burocracia, unidade de comando sobre o território
[...]” (Id., Ibid., p. 100).

103
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

localizado justamente quando a lei se torna a principal fonte de direito. Naquelas


sociedades, Hespanha inclui as de matriz liberal ou as de matiz legalista-democrática,
motivo pelo qual essa observação é válida também no século XX.43

Essa mudança obrigou os juristas “a uma partilha indesejada, apesar da


decisiva participação que têm em qualquer dos dois modelos de ordem jurídica”,
vez que tinham “função de participantes privilegiados do novo espaço público”,
“como ‘Kronjuristen’44 ou como membros dos parlamentos”45. Como essa luta
não é uniforme, é preciso conhecer as interações entre os subgrupos dos juristas,
distinguindo tempo e espaço46. No embate entre eles, pode prevalecer a doutrina,
acompanhada de seus princípios gerais e um método controlado, ou a prática,
construída pelo casuísmo.

Silveira, embora não tenha pretendido uma análise jurídico-cultural47, re-


alizou análises e interpretações relevantes acerca do contexto social e político
entre 1936 e 1943. A autora apontou as contradições da atuação política dos
juristas (que oscilam do antiliberalismo à denúncia dos excessos do Estado)48 e a
centralidade da “’concepção social do direito’” nas principais revistas jurídicas do
período49, o que as insere no espaço público da reforma legislativa de Vargas50.
Em sua pesquisa, Silveira localiza discursos antiliberais e antiparlamentaristas, ao
passo que os bacharéis procuravam revigorar o direito em meio a demais saberes
concorrentes51, tanto por meio da reforma do ensino jurídico como pela adoção
da concepção social do direito.

Essa “visão de mundo” foi capaz de congregar muitos juristas, simultanea-


mente críticos ao liberalismo e ao socialismo, pela defesa dos interesses coletivos
face aos individuais; pela relativização de direitos antes absolutos; pela crítica do
uso de modelos jurídicos estrangeiros e; consequentemente, pela necessidade de
promover reformas legais que fossem adequadas à “realidade nacional”.52 Vargas

43 HESPANHA, 2009, p. 150.


44 Algo como “jurista da Coroa”, “da Corte” ou “jurista consagrado”, “jurisconsulto”. Trata-se de uma alusão
à obra do russo Waldemar Gurian, que caracteriza Carl Schmitt como “Kronjurist des Dritten Reiches” – o
jurisconsulto consagrado do Terceiro Reich. Menção ao termo presente também em SEELAENDER, 2009.
45 HESPANHA, 2009, p. 150.
46 HESPANHA, 2009, p. 150.
47 “Embora conscientes do risco de obscurecer nuances importantes da teoria jurídica (o que foi, até certo
ponto, uma imposição causada por limites de nosso percurso formativo) que essa escolha implica, acreditamos
ser ela válida e pertinente à leitura aqui proposta, na medida em que permite trazer para o cerne de nossas
discussões o papel público dos juristas no Brasil, tema bastante explorado para o século XIX, mas em relação
ao qual há ainda muito a desvendar ao longo do novecentos.”, cf. SILVEIRA, 2013, p. 37.
48 SILVEIRA, 2013, pp. 39-42.
49 SILVEIRA, 2013, p. 44, n. 61.
50 SILVEIRA, 2013, p. 42.
51 SILVEIRA, 2016, p. 451.
52 Cf. SILVEIRA, 2016, p. 453 e n. 7.

104
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

se valeu, em particular, da Comissão Legislativa,53 composta subcomissões e com


a finalidade patriótica de renovar o direito nacional. Como já relataram Nunes
e Sontag, o fechamento do Congresso em 1937 concretizou a usurpação da
atividade legislativa em prol da técnica reivindicada pelos juristas.54

Foi a partir dos integrantes dessas subcomissões que essa pesquisa se


organizou, motivo pelo qual foi possível chegar a fontes sensivelmente diversas
das pesquisas realizadas até então, como publicações em jornais do período,
publicações encontradas por meio de um ou outro parentesco relevante, eventos
jurídicos nacionais e projetos de código de processo penal. Para conhecer o es-
paço doutrinário de transição entre o estudo do “processo criminal” e do “direito
judiciário” para o “direito processual penal”, coletou-se duas revistas jurídicas, a
Revista Forense, de 1930 a 1945 – já abordada, como a Revista dos Tribunais, por
Silveira em um período mais breve – e a Archivo Judiciario,55 de 1927 a 1936.56

A relevância da Forense é conhecida devido à transferência da sede da


revista de Belo Horizonte para o Rio de Janeiro em 1936, prevendo a uniformização
do direito processual, e ao envolvimento de Pedro Baptista Martins na codificação
unitária de processo civil de 193957. Já a Archivo se mostrou relevante por ter sido
fundada por Edgard Costa58 em 1927, no Rio de Janeiro, e circular quinzenalmente
com a edição do Jornal do Commercio. Além disso, conta com diversas publi-
cações dos juristas que participaram das reformas legislativas de processo penal
entre 1930 e 1934. Sua relevância é tal que alguns de seus artigos doutrinários
53 Que respondia à Controladoria-Geral da República e frente a qual estiveram, por exemplo, Levi Carneiro
(1930-1932), Carlos Maximiliano (1932-1933), Francisco Campos (1934), Anníbal Freire (1938-1940) e Orozimbo
Nonato (1940-1941). O Decreto 22.386, de 24 de janeiro de 1933, de Vargas, no entanto, limitou sutilmente a
publicidade dos atos do cargo.
54 NUNES, 2016, pp. 164-170; SONTAG, 2009a.
55 Sempre que possível e constante nas fontes, serão adotadas as grafias originais dos nomes próprios e das
publicações. Na transcrição de fontes no corpo do texto, a grafia será atualizada para facilitar a compreensão,
com a pontuação original. Preferivelmente, o trecho original da fonte estará em nota de rodapé.
56 A Biblioteca Digital do Supremo Tribunal Federal está em processo de implementação de um novo siste-
ma no final desse ano, motivo pelo qual nem todos os volumes estiveram disponíveis dentro desse período,
tampouco após 1936 (nº 37 a 76). Os volumes faltantes são os nº. 11, 18, 19, 29, 33, 34.
57 Cf. SILVEIRA, 2013, pp. 34-46, 81-82, 237-239; SIQUEIRA, Gustavo. ‘Justiça rápida e barata para todo o Brasil’,
um ‘Código para acabar com as chicanas do Direito’: o Código de Processo Civil de 1939 e alguns discursos
sobre o Judiciário. In.: Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, a. 11, v. 18, n. 2, mai/ago, 2017. pp.
245-260.
58 Edgar Costa (1887-1970) nasceu em Vassouras (RJ), fez os estudos preparatórios na Capital e ingressou na
Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro em 1905. No mesmo ano, tornou-se funcionário
auxiliar do Gabinete de Identificação e Estatística da Polícia e, dois anos depois, assumiu a direção. “Durante
sua gestão instituiu o registro civil de identificação e a expedição de documentos de identidade, tendo sido
o portador da carteira de identidade nº 1.” (cf. COSTA, Edgard. In.: PAULA, C. J. de; LATTMAN-WELTMAN, F.
(Orgs.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. 3ª ed. Rio de Janeiro: CPDOC-FGV, 2010). O ano da fundação
da Archivo Judiciario é o mesmo em que se tornou Presidente do Tribunal do Júri, instalado no novo Palácio
da Justiça. Sua carreira como magistrado é extensa e sua aproximação com o Estado Novo é notável. Mesmo
assim, Edgard Costa continuaria nas esferas mais altas do Judiciário, culminando com sua nomeação a ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) por José Linhares, logo após a deposição de Vargas. Ocuparia, então, a
cadeira do ministro Antonio Bento de Faria, que tinha participado da tentativa de codificação de Vicente Ráo.
Para mais, ver verbete “COSTA, Edgard” em PAULA, LATTMAN-WELTMAN, 2010.

105
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

coincidem com as da Forense, mas em boa parte são originais. Antes de chegar ao
processo penal, é preciso uma incursão para compreender as revistas como veículo
da cultura jurídica e a ação dos juristas como intelectuais mediadores do direito.

2. Intelectuais mediadores e revistas

Seelaender se destacou nas reflexões iniciais deste trabalho por colocar em


perspectiva os casos em que os professores, nas faculdades de direito brasileiras,
foram coniventes com as ditaduras. Por reconhecer o fenômeno estrangeiro da
colaboração dos juristas com regimes autoritários,59 o autor aponta também a
existência de “coortes de sociabilização”,60 que blindam os intelectuais de críticas
na academia.

O autor pondera que, se de um lado “[...] a tecnicização do direito, o peso


do positivismo e o ethos profissional do acadêmico tendem a afastar o professor
de direito da polêmica sobre os temas mais candentes da esfera política”, pode
sobrar coragem para atacar conceitos vagos,61 ignorando temas mais pertinentes
aos regimes, como “[o] funcionalismo, [o] poder constituinte ou [o] locus do ato
institucional no ordenamento”, que passariam desapercebidos fora da faculdade
de direito62. Ouvir o “silêncio” nas fontes da história do direito permite indicar os
assuntos mais cáusticos e os momentos de maior tensão política.

Mas nem só de silêncio vivem os juristas em períodos autoritários, motivo


pelo qual o autor não intentou discutir a culpa de um ou outro ator político e,
sim, analisar a trajetória e o pensamento dos juristas pró-ditaduras. Sua atitude
é de compreensão da “base ideológica” desse outro que emerge e que normal-
mente permeia os conceitos, temas e teorias doutrinárias que se ergueram contra
o pensamento liberal63. Nesse sentido, é pertinente distinguir os graus de com-
prometimento e colaboração que envolvem diferentes posturas, como: redação
de leis, códigos, obras de propaganda, participação de comissões, naturalização
instrumentos legais do regime, conformismo, e “’juramentos de fidelidade’” força-
dos para conservar a posição na academia ou evitar sanções64. Isso sem ignorar,

59 “Schreibtischtäter”, cf. RÜTHERS apud SEELAENDER, 2009, p. 415.


60 Cf. RÜTHERS apud SEELAENDER, 2009, p. 416. As “coortes de sociabilização” blindam os intelectuais cola-
boracionistas de críticas (segundo Seelaender, tanto em nome da proteção pessoal de seus mentores, como
de todo o “pedigree acadêmico” em jogo).
61 “Em nossas faculdades, a coragem que sobra para atacar o ‘Neoliberalismo’, o ‘Estatismo’ ou a ‘Globalização’
– criaturas etéreas que não podem influenciar a composição de bancas – falta para analisar criticamente obras
difíceis de conciliar com a concepção usual do que seja democracia. Já estaria o Largo S. Francisco preparado,
hoje, para aceitar uma tese sobre o pensamento corporativista-autoritário de antigos docentes seus? Ou sobre
o apoio de alguns de seus professores ao regime pós-64, tanto em cargos elevados quanto em seus textos
doutrinários?”, cf. SEELAENDER, 2009, p. 419.
62 SEELAENDER, 2009, p. 419.
63 SEELAENDER, 2009, p. 420.
64 SEELAENDER, 2009, p. 418.

106
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

naturalmente, as ponderações já realizadas por Silveira acerca das contradições


que aqueles juristas enfrentavam em um cenário político complexo65.

No Brasil dos anos 40, Gomes conta que se viveu um momento es-
tratégico de transição entre a ação de militantes defensores nacionalistas e o
apoio das massas a “programas nacionalistas”.66 Ainda que o ideal de “identidade
nacional” já existisse pelo menos desde os anos do pós-Primeira Guerra, é com
Vargas que o Estado exerce um mecenato somente comparável ao do Segundo
Império67. Justo por isso, esse foi o momento propício para a emergência do
nacionalismo no Brasil, o que exigiu a implementação do governo, composto de
uma “máquina de agentes operantes” e que necessita de “identificação e lealdade
da ‘população do país’”68. A política cultural estadonovista se desenvolveu com a
massificação bem-sucedida das ideias do regime (“engenharia social ideológica”69).
Um dos exemplos mais notáveis foi a articulação entre o Ministério de Educação
de Gustavo Capanema e o Departamento de Imprensa e Propaganda, percebida
por Velloso70.

Entre esses agentes operantes, estavam os intelectuais – os quais, para


Gomes, são restritivamente considerados “produtor[es] de bens simbólicos en-
volvido[s] direta ou indiretamente na arena política.”71 Um outro conceito mais
amplo é oferecido pela obra organizada por Hansen e Gomes, cujo objeto são
os intelectuais mediadores72, enfatizando o processo de circulação cultural. Eles
integram um “’pequeno mundo’” de “especialistas no processo de criação e
transmissão cultural, que despertam a atenção dos envolvidos com o ‘círculo do

65 SILVEIRA, 2013, pp. 39-42.


66 “As nações e os nacionalismos ‘modernos’ são, nessa perspectiva, sofisticadas construções políticas estatais,
para as quais concorrem de forma fundamental os componentes culturais. Isso porque a própria ‘estratégia
operacional’ de produção da nação é construir uma ‘área de igualdade’ para além das diversidades de um
Estado pensado territorialmente. O ‘tamanho do grupo’, como variável sociológica, é certamente um elemento
complicador nessa operação, uma vez que exige a formulação de elementos integradores (internamente) e
diferenciadores (externamente), isto é, com capacidade de contraste em relação a outras comunidades nacionais.
A língua falada e escrita avulta em tais componentes, sendo definida e vivenciada como a verdadeira fronteira
‘natural’ de uma nação. Consciência étnica, tradições religiosas e também um passado histórico comum – todos
resultantes de cuidadosos investimentos de políticas públicas – constituem outros fatores culturais essenciais
para a formação de nacionalidades”, cf. GOMES, 1996, p. 18.
67 GOMES, 1996, p. 20-21.
68 GOMES, 1996, p. 19.
69 GOMES, 1996, p. 19.
70 VELLOSO, M. P. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In.: FERREIRA, J.; DELGADO, L. de A.
N. (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 8ª. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, pp. 147-179.
71 GOMES, 1996, p. 39.
72 “O primeiro deles [dos dois esclarecimentos] é o de que reconhecemos que as práticas de mediação cultural
podem ser exercidas por um conjunto diversificado de atores, cuja presença e importância nas várias sociedades
e culturas têm grande relevância, porém, nem sempre reconhecimento. [...] Tais mediadores, de enorme relevância
na construção de identidades culturais de indivíduos e comunidades, geralmente não são identificados e não
se identificam como intelectuais.”, cf. GOMES; HANSEN, 2016, p. 9.

107
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

poder político’ por suas capacidades de interpretar a realidade social e produzir


‘visões de mundo’.”73.

Os intelectuais mediadores podem ser criadores e transmissores ou ape-


nas transmissores – caso em que, normalmente, são tomados pejorativamente
como vulgarizadores de uma tradição mais culta74. Essas concepções abrangentes
de intelectuais e cultura, com ênfase para o processo comunicativo e a relação
direta ou indireta com a intervenção estatal, permitem a caracterização dos
juristas nessa categoria, sem a menor necessidade de localizá-los numa divisão
hierárquica entre “alta” e “baixa” cultura.

A partir desse pequeno mundo, Gomes também se utiliza das noções


de geração, de redes de sociabilidade e de tradições intelectuais. A primeira, que
poderia sofrer diversas ressalvas, é adequada à vertente cultural: não só o seu
“tempo ‘exterior’” (de “movimentos de conjuntura e eventos da história de um
país, região ou grupo local”, descartado o critério de idade), mas também seu
“tempo ‘interior’”, que é a forma como tais eventos adquirem sentido para aquela
geração e constrói sua identidade em oposição a outras gerações.75

A noção de sociabilidade, por outro lado, é útil porque o meio intelectual


pode ser mapeado de duas formas. A primeira é subjetiva e desvela, do plano
simbólico, a marca da afetividade, competição e cumplicidade; enquanto a se-
gunda, objetiva, busca as relações no âmbito organizacional, sejam institucionais e
formais ou voluntárias. É nesses espaços que se dão os intercâmbios sociais. Cada
geração pode eleger um meio preferível (universidades, revistas, jornais, associações
intelectuais) para produzir e circular ideias, como nos ensina Gomes76. Por fim, as
tradições intelectuais são os “vínculos [...] de aliança, disputa, filiação e ruptura de
orientações intelectuais”, que “não são contínuas no tempo”, mas “tem seus temas,
procedimentos, referências organizacionais e simbólicas e suas figuras-chave.”77

Partindo do pressuposto de que houve, de fato, uma política jurídico-cul-


tural78 e que a categoria de intelectuais mediadores corresponde mesmo àqueles

73 “Pequeno mundo intelectual” é expressão de Sarte, devidamente citado por GOMES, 1996, p. 39.
74 Esse tipo de consideração normalmente é tecida por quem não considera a espessura da produção intelec-
tual em questão, como parece ocorrer com os juristas que se dedicaram ao processo penal antes do Código
de 1941, cf. n. 37.
75 “Falar de gerações é falar não só de relações entre pares, como de relações de filiação e negação entre
experiências geracionais. Ambas as coordenadas – sincrônica e diacrônica – constituem a noção e permitem
a tomada de consciência de uma temporalidade própria.”, cf. GOMES, 1996, p. 41.
76 GOMES, 1996, p. 41.
77 GOMES, 1996, pp. 42-43.
78 Silveira, privilegiando o uso das fontes (em particular discursos de Getúlio Vargas, Francisco Campos e A
Paisagem Legal do Estado Novo, de Gil Duarte), permite concluir que o direito – em especial, os códigos de
processo – também era alvo de uma política cultural identitária específica e anti-estrangeirista, cf. 2013, p. 193-
201; 262-265.

108
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

que falam somente a seus pares79, os juristas se apresentam como intelectuais. Eles
podem ter trajetórias intelectuais (em especial os professores de faculdades de
direito, mas não somente), e organizam redes de sociabilidade, que, por sua vez,
que podem ou não distinguir gerações. Como particularidade, é possível elencar
que são, por vezes, agentes do próprio Estado (não raro, magistrados)80 e, por-
tanto, considerados capazes de levar a cabo sua tarefa legislativa ou de participar
do espaço de discussão. Embora não haja uma pretensão de traçar uma geração
ou uma tradição intelectual, as redes de sociabilidade parecem particularmente
relevantes devido à própria natureza das fontes elegidas.

A existência recente de casas editoriais no Brasil àquela época, forçou uma


consulta mais intensa a anais de congressos jurídicos e publicações de revistas
jurídicas do que a livros autorais – utilizados em caso de grande pertinência. As
primeiras fontes são mais vantajosas porque circulavam, se não quinzenalmente
(como a Archivo) ao menos trimensalmente (como a Forense), de modo que a
comunicação se processava de forma mais ágil.

Os cuidados com a mediação cultural serão observados, em especial no


que tange aos deslocamentos, às transferências, hibridizações e referências a au-
tores estrangeiros e nacionais81. Assim como Gomes e Hansen, não se endossará
a visão de “ideias são ‘estruturas mentais’, que podem ser reificadas, ganhando
‘vida própria’ e tornando-se a-históricas. A figura do intelectual, como sujeito
pensante e agente, ganha centralidade e concretude.”82. E ganha nas páginas das
revistas, em especial, que são obras que exigem uma negociação entre criador(es)
e instituições ou práticas da sociedade, como anotou Gisele Martins Venâncio
sobre a historiografia brasileira83.

Gomes faz a ressalva de que não se deve concluir, desse engajamento


suposto dos agentes da burocracia estatal, que tenha havido “um simplista e

79 GOMES; HANSEN, 2016, p. 21.


80 “Essa maneira de entender e trabalhar com os intelectuais mediadores traz implicações. Uma delas é atentar
que ele pode perfeitamente acumular diversas funções e posições ao longo de sua trajetória profissional.”, cf.
GOMES; HANSEN, 2016, p. 22.
81 “Os mediadores, sejam indivíduos ou grupos, estão integrados em redes que se constituem em espaços
propícios ao surgimento de novas maneiras de pensar e sentir. Assim, se a categoria de vanguarda tem um forte
vínculo com a inovação, na lógica da interpretação que aqui defendemos, a categoria de mediação, ao ‘inventar’
um produto híbrido, resultado dos processos de trocas culturais, também produz algo novo, que igualmente traz
impactos político-sociais. Porém, enquanto a ação da vanguarda quer produzir uma ruptura com paradigmas
(estéticos, científicos etc.), provocando, com frequência, estranhamento, surpresa e até indignação – o que resulta
na necessidade de um tempo de aprendizagem por parte do público –, para a compreensão e apreciação
do novo produto cultural, os caminhos da ‘inovação’ mediadora são outros. Isso ocorre porque eles resultam
dos objetivos políticos que orientam as práticas mediadoras, distantes da experimentação vanguardista, já que
orientados pelo estabelecimento de ‘comunidades de sentidos’ entre códigos culturais.”, cf, GOMES; HANSEN,
2016, p. 33.
82 GOMES; HANSEN, 2016, p. 12.
83 VENÂNCIO, G. M. “Prefiguração da paisagem historiográfica: revistas, coleções e mediação”. In.: GOMES, A.
de C.; HANSEN, P. dos S. Intelectuais Mediadores.

109
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

maquiavélico exercício de ‘manipulação das massas’”84. O papel legitimador dos


intelectuais era desejado, mas não podia ser arbitrário. Era preciso levar em conta
identidades já existentes, a fim de transformar “diversidade social e intelectual” em
“homogeneidade política”, com áreas significativas de “unidade cultural”85. É preciso
identificar, no campo jurídico, se há apelos à tradição que endossem esse papel
legitimador ou se a modernização autoritária, intrínseca à concepção social do
direito, conseguiu de fato revolucionar o direito processual penal.

Além disso, como observou Gomes, o uso do termo “intelectual” exige


não apenas um substrato comum entre os intelectuais, como o reconhecimento
das particularidades de cada área. Em seu caso, destacou o papel dos historiado-
res na construção de um passado que projeta o futuro da nação, reconhecendo
ainda que sociólogos, médicos, engenheiros e demais categorias contribuíram,
cada qual a sua forma86. Há razões suficientes para se incluir explicitamente os
juristas nesse rol de intelectuais.

Desde a criação dos cursos jurídicos brasileiros, os bacharéis tiveram


papel privilegiado na política nacional, mas sofreram com o achaque antiliberal
à Constituição de 1891 e a valorização de outras categorias profissionais “verda-
deiramente técnicas”. A oportunidade para retomar esse espaço foi dada justa-
mente por Vargas, ao convidar diversos juristas, de posicionamentos ideológicos
e carreiras mais ou menos variadas87, para a sua reforma legislativa. Relativamente
à reforma processual penal, vê-se uma série de nomes, muitos dos quais poucos
conhecidos atualmente:
TABELA 1 – JURISTAS DA REFORMA PROCESSUAL PENAL (1931-1941)

Comissão Legislativa, sob o comando de Levy Milcíades de Sá Freire (presidente)


Carneiro (Controlador-Geral da República) – 13ª Astolpho Vieira de Rezende
Subcomissão Legislativa de “Processo Penal do Cândido Luiz Maria de Oliveira Filho
Distrito Federal e da Justiça Federal, inclusive
Nomeados pelo Decreto nº 21.894
processo policial” (1931-1933), que entregou
(30/09/1932):
um anteprojeto em 23/12/1931, com prazo de
Edgard Costa
60 dias para envio de sugestões.
Vicente Piragibe
Nelson Hungria
Após a Assembleia Nacional Constituinte de Antonio Bento de Faria
1933-1934, o art. 11 das disposições transitó-
rias determina o estabelecimento de uma nova Plínio Casado
comissão para unificação do direito processual. Luiz Barbosa da Gama Cerqueira
Em 15/08/1935, Vicente Ráo, Ministro da
Justiça (1934-1937), assina a exposição de
motivos.*

84 Assim como fez Hobsbawm, citado pela autora, e outros autores não citados. Cf. GOMES, 1996, p. 21.
85 GOMES, 1996, p. 21.
86 GOMES, 1996, p. 10.
87 SILVEIRA, 2013, pp. 253-266.

110
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Com a Constituição de 1937 e a usurpação Nelson Hungria


da União sobre a competência legislativa (art, Narcélio de Queiroz
16, inc. XVI), Francisco Campos, Ministro da Antonio Vieira Braga
Justiça (1937-1942), incumbe uma Comissão
Candido Mendes de Almeida (até 1939)
Revisora do Código Penal, a ser escrito por
Alcântara Machado, enquanto ela mesma es- Segunda fase (1940-1941):
creveria o Código de Processo Penal. Devido ao Florêncio de Abreu
atrito entre Hungria e Machado, os trabalhos do Roberto Lyra
Código Penal foram priorizados pela Comissão. Revisão:
Os trabalhos do Código de Processo Penal se Abgar Renault
dariam nos primeiros meses de 1938 e, então,
de 1940 a 1941.
* Seus trabalhos teriam tido por fonte de inspiração o anteprojeto de 1931-2 e se deram entre julho de 1934 e
julho de 1935. A exposição de motivos é assinada em 15 de agosto de 1935. Enviado pelo Presidente em 1936
para a Câmara dos Deputados, a discussão do projeto teria sido interrompida com o fechamento do Congresso
em 10 novembro de 1937. Esse projeto pode ter influenciado o Código promulgado em 1941, dúvida que o
próprio Vicente Raó levanta na epígrafe de sua exposição (BRASIL, 1935).
Fonte: Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1934; Decretos nº 19.459 (06/12/1930), 19.684 (10/02/1931),
19.829 (06/04/1931), 20.264 (30/07/1931), 21.211 (28/03/1932), 21.894 (30/09/1932) e parcialmente modificada
(vê-se acima, nas primeiras linhas da segunda coluna) de SILVEIRA (2013).

Considerar a produção desses juristas passa por considerar suas trajetórias


intelectuais e políticas e seus movimentos de adesão ou recuo ao governo Vargas.
Boa parte das informações prosopográficas está disponível no Dicionário Histórico-
Biográfico Brasileiro, enquanto Silveira, Sontag e Nunes já ofeceram interpretações
(sobre o pensamento jurídico, o contexto político e intelectual e o processo
legislativo) com as quais é possível trabalhar. A especificidade desse trabalho se
dará, justamente, na análise mais estreita e profunda que as fontes mapeadas
permitirem sobre a dogmática processual penal e sua interligação com questões
de fundo, como a geografia. Seguindo as orientações de Hespanha e Fonseca
acerca da genealogia do poder, como também as de Clara Maria Roman Borges88
acerca da microfísica do poder no processo penal, segue-se às formulações do
que, àquela época, integraram dispositivos de poder no processo penal.

3. Dispositivos do Processo Penal

“Um motim de quartéis, o despeito89 de um general90, em cuja carreira


tanto se fizera sentir a munificência91, bastaram”, escreveu Cândido de Oliveira,

88 BORGES, C. M. R. Jurisdição e normalização: uma análise foucaultiana da jurisdição penal. 211 f. Tese (Dou-
torado). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2005.
89 Despeito, segundo o Michaelis online: “sm. 1 Desgosto causado por ofensa leve ou desfeita; pesar, melindre;
2 Ressentimento, mesclado de inveja, pela preferência dada a outrem”. Disponível em: http://michaelis.uol.com.
br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/despeito/. Acesso em 30/11/17.
90 Trata-se certamente do marechal Manuel Deodoro da Fonseca (1827-1892), militar considerado proclamador
da República e que assumiu o Governo Provisório de 1889 a 1891, quando renunciou.
91 Munificência, segundo o Michaelis online: “sf. Ato ou qualidade de munificente; generosidade, liberalidade,
magnanimidade.”. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/mu-
nific%C3%AAncia/. Acesso em 30/11/17.

111
PARA UMA HISTÓRIA DA CULTURA JURÍDICA PROCESSUAL PENAL BRASILEIRA (1930-1945)

“para que se desse a eversão92, sinistra, cujos efeitos todos hoje miseravelmente
sofremos”. O autor da sétima parte da Década Republicana não economizou
argumentos na obra monarquista. Sob o título de A Justiça, Cândido93 divide o
texto em 16 títulos, incluindo a conclusão. Cada minúcia da administração da
justiça, sob o regime da primeira década da república e o precedente, foi abordada.

No momento da publicação, em 1899, já tinham transcorridos dez anos


desde que exercera o cargo de Ministro da Justiça e integrado os altos quadros
do Partido Liberal. Sua crítica mordaz não deixa esquecer que ele foi deposto,
detido e exilado pelas forças republicanas. Nos tópicos explorados por Cândido,
ele deixa entrever que considerava a competência legislativa do processo um
modelo viciado e ineficiente juridica e financeiramente, um “plagiato” da descen-
tralização norte-americana.

Cândido de Oliveira Filho, por sua vez, seria o primeiro jurista a defender,
dentro da subcomissão de processo penal, a unidade processual, já na primeira
reunião da 13ª Subcomissão, em 06 de maio de 1931,94 mas seria minoria na in-
tepretação do Decreto que os determinou realizar um código de processo penal
para a Justiça Federal e um para o Distrito Federal. Diversas outras dinâmicas
internas da 13ª Subcomissão aparecem em uma breve consulta aos jornais e a
pesquisa se estenderá ainda nesse sentido.

A unidade processual é um fato conhecido dentro da historiografia jurídi-


ca95, mas pouco explorado em seu significado contextual. Gomes, que estudou o
discurso historiográfico dos anos 40, observou a “forte conotação cartográfica” da
ceoncepção de nação brasileira como “território”, marcando não só as fronteiras,
mas também a complementariedade entre o discurso histórico e o geográfico.

92 Eversão, segundo o Michaelis online: “sf. 1 ANAT Reviramento de uma parte do corpo para fora (como a
pálpebra ou o pé); 2 Grande destruição; aniquilamento, desmoronamento.”. Disponível em: http://michaelis.uol.
com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/evers%C3%A3o/. Acesso em 30/11/17.
93 Cândido de Oliveira (1845-1919) nasceu em Ouro Preto. Tornou-se bacharel aos 20 anos, na Faculdade
do Largo de São Francisco, em São Paulo. Editou o jornal “7 de Setembro” e teria obtido destaque como
líder estudantil. Entre 1865 e 1871, teria sido procurador fiscal interino, procurador público da comarca e juiz
municipal. Elegeu-se, em seguida, vereador e vice-presidente da Câmara Municipal. Foi deputado provincial por
catorze vezes e deputado geral nas legislaturas de 1878 a 1886 (OLIVEIRA NETO, Cândido; In.: PAULA; LATT-
MAN-WELTMAN; FGV, 2010). Nomeado, então, senador vitalício, teria supostamente apresentado o projeto de
lei abolicionista à Princesa Isabel, em 13 de maio de 1888. Foi Ministro da Guerra e da Justiça – o último em
1889 (PAULA; LATTMAN-WELTMAN. FGV, 2010). Com a proclamação da República, foi deposto e exilado, só
retorno ao Rio de Janeiro em 1891, quando voltou a exercer a advocacia. Em 1896, atuaria na clandestinidade
contra a imprensa do governo federal. Em 1899, participaria da coletânea de monarquistas críticos, a Década
Republicana, que critica a República sob todos os aspectos (eleições, saúde pública, municipalidade etc), cf.
OLIVEIRA, Cândido de. In.: Década Republicana. v. II, 2ª ed. rev. e atual. Brasília: UnB, 1986. (Coleção Temas
Brasileiros, 59). pp. 7-89. Em 1900 seria professor de Legislação Comparada na Faculdade Livre de Direito do
Rio de Janeiro, obtendo o doutorado em 1901. Foi eleito diretor da faculdade, falecendo antes do terceiro ou
quarto biênio de seu mandato.
94 Jornal do Brasil, 07/05/1931.
95 Como em SILVEIRA, 2013; NUNES, 2016; SONTAG, 2014B.

112
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Segundo ela, “a unidade é a própria saga de nossa história: ela é o objetivo do


Estado; ela é a glória do ‘ser’ brasileiro”.96

A autora relembra a sugestão de Foucault, para o qual “a ideia de terri-


tório estará remetida, antes de tudo, a uma noção jurídico-política: como ‘aquilo
que é controlado por um certo tipo de poder’, seja em nível nacional, regional
ou local”.97 Essas noções são de primeira ordem para analisar o que aconteceu
durante as tentativas de codificação do processo penal. Afinal, jurisdição nada
mais é que o poder de julgar sobre um dado território.

A criação da Justiça Federal por Campos Salles em 1890 e a sua extinção


em 1937 é também um tema que diz respeito à unidade processual e normalmente
a acompanha, a “unidade da magistratura”. Esse tema é de suma importância, pois
se trata de um espaço de confronto direto entre a República e o Estado Novo
e que se trata de uma centralização de poder pelos Estados. Outras questões,
como a doutrina dos periódicos sobre o “livre convencimento motivado”, o poder
probatório do juiz e as questões de competência e organização judiciária serão
exploradas conforme forem constatadas nas fontes.

Considerações finais

Nesse breve percurso, imposto pelas limitações do formato, foi possível


oxigenar minimamente as desgastadas narrativas e disputas entre sistemas inquisi-
tório e acusatório. Afinal, mesmo esse discurso crítico possui historicidade própria
e seus locais de disputa. Reconhecer o papel dos agentes intelectuais na cultura,
assim como dos juristas na cultura jurídica, é identificar, indiretamente, quais foram
os elementos mais ou menos determinantes nesse processo legislativo conturbado
e cheio de rupturas. Tivemos, nesse período, mais do que exposições de motivo
e, também, mais “home[ns] de ação e de pensamento” 98 do que Getúlio Vargas
ou Francisco Campos. Há muito a fazer por uma concepção crítica do processo
penal, a começar pelo seu passado.

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96 GOMES, 1996, pp. 24-25.


97 GOMES, 1996, p. 24.
98 VELLOSO, M. P. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo. In.: FERREIRA, J.; DELGADO, L. de A.
N. (orgs.). O tempo do nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo. 8ª. ed. Rio
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117
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS


E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO
CRIMINAL DO IMPÉRIO

DÉBORA TOMÉ DE SOUSA


Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará.

Resumo
A temática abordada no presente trabalho é relevante para se analisar
como foi a passagem da legislação portuguesa para o primeiro código criminal
brasileiro, bem como para demonstrar as principais modificações nas tipificações
e nas penalidades aplicadas. A problemática do estudo é entender como eram
tipificados os crimes sexuais e quais as penalidades a eles aplicadas durante a
vigência das Ordenações Filipinas e do Código Criminal do Império. Para isso,
utilizou-se como metodologia um estudo descritivo-analítico, por meio de
pesquisa bibliográfica, com a leitura de artigos e livros, bem como o recurso
às fontes principais, quais sejam as Ordenações Filipinas e o Código Criminal,
tal pesquisa tem por finalidade o interesse intelectual e o despertar para co-
nhecimento de institutos penais do período colonial até o início do império.
Concluiu-se que o Código Imperial reduziu consideravelmente as tipificações
sexuais, havendo, ainda, uma tentativa de separar tais condutas do caráter
religioso que possuíam nas Ordenações. Além disso, as penalidades foram
abrandadas em relação à lei geral portuguesa, bem como o Código de 1830
retirou as normas que distinguiam as penalidades em razão do status social
do acusado, pautando na equidade entre as pessoas. Portanto, a transição
das Ordenações Filipinas para o Código Imperial foi marcada por diversas
mudanças substanciais, de cunho material e formal, sendo este o primeiro
código nacional, realizado por juristas brasileiros, visando regular as condutas
da sociedade brasileira.

Introdução

O presente trabalho abordará a temática dos crimes sexuais, com enfoque


nas Ordenações Filipinas e no primeiro Código Criminal do Império, publicado
em 1830. Tal assunto é importante para se entender como as práticas sexuais
eram abordadas no período, bem como para demonstrar que houve modificações
relevantes nas tipificações e nas penalidades aplicadas, tendo como ponto de
partida a legislação da Colônia, que obedecia às leis gerais do reino e como ponto
final o Brasil imperial, que produz suas leis, de acordo com sua realidade local.

As Ordenações Filipinas eram divididas em cinco livros, sendo o Livro V


aquele que tratava acerca do direito penal e processual penal. Tal disposição era
a lei oficial da colônia, fazendo parte do direito comum, já que as Ordenações

119
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

do reino eram as leis régias. O Livro V foi revogado pelo Código Criminal de
1830, o qual era inspirado nas normas régias e na Constituição Imperial de 1824.

A problemática do estudo é entender como eram tipificados os crimes


sexuais e quais as penalidades a eles aplicadas durante a vigência das Ordenações
Filipinas e do Código Criminal do Império. Para isso, utilizou-se como metodo-
logia um estudo descritivo-analítico, por meio de pesquisa bibliográfica, com a
leitura de artigos e livros, bem como o recurso às fontes principais, quais sejam
as Ordenações Filipinas e o Código Criminal, tal pesquisa tem por finalidade o
interesse intelectual e o despertar para conhecimento de institutos penais do
período colonial até o início do império.

Desta feita, o primeiro tópico descreverá as circunstâncias sociais e jurídicas


do Brasil durante a vigência das Ordenações Filipinas, apresentando características
relevantes de tal lei geral portuguesa, bem como apresentará o desenvolvimento
e pontos relevantes do Código Criminal de 1830.

O segundo tópico exporá os Títulos das Ordenações Filipinas que trata-


vam sobre crimes sexuais, com suas respectivas penas aplicadas e comentários
pertinentes acerca deles. Por fim, no terceiro tópico será descrito os tipos penais
que correspondem aos crimes sexuais dispostos no Código Criminal Imperial,
ressaltando as penalidades aplicadas para cada delito, com acréscimos que forem
pertinentes ao entendimento do leitor.

Após perpassar por este trajeto, verificou-se que o Código Imperial reduziu
consideravelmente as tipificações sexuais, havendo, ainda, uma tentativa de separar
tais condutas do caráter religioso que possuíam nas Ordenações.

Além disso, as penalidades foram abrandadas em relação à lei geral por-


tuguesa, bem como o Código de 1830 retirou as normas que distinguiam as
penalidades em razão do status social do acusado, pautando na equidade entre
as pessoas. Portanto, a transição das Ordenações Filipinas para o Código Imperial
foi marcada por diversas mudanças substanciais, de cunho material e formal, sendo
este o primeiro código nacional, realizado por juristas brasileiros, visando regular
as condutas da sociedade brasileira.

Breves considerações acerca das Ordenações Filipinas e do Código Criminal


de 1830

O período colonial brasileiro foi marcado pela existência do direito comum,


que era o direito régio, emanado da coroa portuguesa formado tanto pelas leis
gerais do reino, denominadas Ordenações do Reino, e pelas normas de direito

120
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

canônico, como pelas leis particulares editadas especificamente para o Brasil,


embora em quantidade insuficiente (HESPANHA, 2006, p. 96).

Além da ordem jurídica do direito comum, também estavam presentes


no território brasileiro os sistemas jurídicos formados a partir dos costumes locais,
bem como das práticas dos juízos, das decisões dos casos concretos, em especial,
nas capitanias hereditárias com as decisões dos ouvidores (CABRAL, 2015, p.
114). Estas últimas foram de especial relevância, tendo em vista que a distância
entre a metrópole e a colônia, a ausência da presença real e do direito régio em
todas as localidades do território dominado e a insuficiência de leis específicas
para determinados casos propiciaram a criação de um direito próprio do Brasil,
que, por vezes, era aplicado em detrimento do próprio direito régio, em razão
do princípio da especialidade (HESPANHA, 2006, p. 96, 101 e 102). Por tudo isso,
os autores António M. Hespanha e Gustavo C. Machado Cabral (2015, p. 97)
defendem haver um direito colonial brasileiro.

Neste sentido, explica António M. Hespanha (2006, p. 114) “a situação


americana prestava-se a esta invocação do poder genético das comunidades locais,
ecológica e humanamente tão distanciadas da metrópole para geraram um direito
próprio, eventualmente contrário ao do reino”. Desta feita, com a solidificação
desse direito próprio, com a mudança de mentalidade dos que habitavam no
Brasil, ampliação das relações econômicas e políticas, influência da Revolução
Francesa, dos ideais iluministas e liberais, da Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão e, principalmente, com a Declaração da Independência em 1822, que
culminou com a outorga da Carta Imperial de 1824, fez-se necessária a criação
de um Código Criminal do Império, que observasse a realidade brasileira e com
a finalidade de substituir as Ordenações Filipinas.

A lei geral portuguesa, ou melhor, as Ordenações Filipinas foram resulta-


do de uma reforma das Ordenações Manuelinas (1521), juntamente com as leis
extravagantes, realizada por D. Felipe II da Espanha, durante o reinado espanhol,
mas que só passaram a ser verdadeiramente obedecidas após a sua impressão
já no reinado de D. Felipe III (CARVALHIDO, 2003 p. XIII). Ela teve vigência no
Brasil a partir de 1603 e alguns de seus dispositivos perduraram até 1916, ano
da publicação do Código Civil, contudo, no âmbito criminal tal regramento foi
revogado pelo Código Criminal de 1830.

As Ordenações Filipinas não alteraram substancialmente as normas ante-


riores, quais sejam Ordenações Afonsinas e Manuelinas, embora tenha recompi-
lado tais normas e atualizando leis esparsas, tendo como fontes o direito régio,
o direito romano e o direito canônico. Além disso, elas eram formatadas como
casos concretos reduzidos a escrito, ou seja, dispunha sobre o que se deveria
fazer caso algum fato descrito em um de seus títulos ocorresse. Neste contexto,

121
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

caracterizou-se o direito penal adotado nas Ordenações Filipinas como algo híbrido,
que misturava política e religião, que não separava crime de pecado e que não
imputava penas de acordo com a gravidade da culpa, sendo estas sinônimas de
terror e crueldade (CARVALHIDO, 2003 p. XIII e XIV).

As normas das Ordenações Filipinas estavam divididas como já dito, de


acordo com sua área de proteção, em cinco livros: o primeiro tratava acerca do
direito administrativo e organização judiciário, já o segundo dispunha sobre o
direito dos eclesiásticos, do rei, dos fidalgos e dos estrangeiros, o terceiro abordava
processo civil, o quarto livro expôs normas de direito civil e comercial e por fim,
o quinto livro versava sobre direito penal e processo penal, parte deste último
será objeto de mais detalhamento neste estudo.

Vale lembrar que a tipificação de crimes sexuais pelo Estado era uma
forma dele disciplinar as pessoas, formar uma moral comum, barrar a promis-
cuidade, regular os instintos humanos e acima de tudo, manter os preceitos da
Igreja Católica como o casamento, o qual representava a preservação da família
e de sua descendência, e a castidade. Chrysolito Gusmão apresenta uma defini-
ção sociológica de crime sexual, que seria “o conjunto de fatos que ofendem a
liberdade sexual ou individual, que lesam e põem em perigo, pela sua anorma-
lidade, os fins da função sexual ou que tendam à destruição do indivíduo ou
da espécie” (1954, p. 85). Verifica-se, portanto, que a intenção de normatizar tais
condutas não era a proteção da dignidade sexual das mulheres ou dos homens,
mas manter a ordem moral e social, patriarcal, sob o poder do rei e da religião.

Diante do que foi dito, verifica-se que para se entenderem as caracterís-


ticas do direito próprio brasileiro devem se ater aos preceitos e dispositivos das
Ordenações Filipinas, as quais foram por longo período a fonte principal do direito
oficial na Colônia, vigorando, algumas de suas partes, após o governo do império.

Ademais, ressalta-se importante elaboração do direito canônico no Brasil,


qual seja a criação das Primeiras Constituições do Arcebispado da Bahia, que
foram realizadas após o sínodo de Salvador para obedecer às normas resultan-
tes do Concílio de Trento, com influência, também, das Ordenações do Reino
(CABRAL, 2016, p. 315), sendo “importantíssima fonte para conhecer as normas
específicas de justiça na província eclesiástica do Brasil” (CABRAL, 2015, p. 102).
Assim sendo, para bem regularem os indivíduos tais normas de cunho religioso
observaram as especificidades da comunidade e os problemas locais para melhor
resolvê-los, inclusive, tratou acerca dos crimes sexuais na perspectiva teológica e
influenciou as normas de direito régio e local (CABRAL, 2016, p. 321).

Quanto ao Código Criminal de 1830, percebe-se que ele foi a primeira lei a
revogar parte das Ordenações Filipinas, especificamente seu Livro V, bem como a

122
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

primeira elaborada de acordo com as realidades e especificidades do Brasil colônia.


Ele foi sancionado por D. Pedro I, em 16 de dezembro de 1830, sendo decorrente
do projeto elaborado pelo jurista e deputado Bernardo Pereira de Vasconcellos,
que foi modificado e aprovado pela comissão mista, conforme parecer:
A comissão das duas câmaras encarregadas de examinar os dois projetos
do código criminal, oferecidos pelos Srs. Vasconcellos e Clemente Pereira,
tomou por padrão da sua discussão o 1º, como havia indicado a primeira
comissão da câmara dos deputados, tendo sempre à vista e na devida
consideração o 2º, e empregando em negócio de tanta importância todo
o seu desvelo compatível com o trabalho ordinário das câmaras, fazendo
alterações que lhes pareceram conveniente e avaliando em mais o dano da
demora que o das imperfeições [...] A comissão desejou suprimir a pena
de morte, cuja utilidade raríssimas vezes compensa o horror causado na
sua aplicação, principalmente no meio de um povo de costumes doces,
qual o brasileiro: porém o estado atual da nossa população em que a
educação primária não pode ser geral deixa ver hipóteses em que seria
indispensável [...] Nós não temos código criminal, não merecendo este
nome o acervo de leis desconexas, ditadas em tempos remotos, sem o
conhecimento dos verdadeiros princípios e influídas pela supertição e por
grosseiros prejuízos, igualando às do Draco em barbaridade e excedendo-as
na qualificação absurda dos crimes, irrogando penas a fatos a que a razão
nega existência, e a outros que estão fora dos limites do poder social:
elas têm também o vício de distinguir as pessoas dos delinquentes e de
estender penas aos inocentes. Ao contrário o projeto oferecido é baseado
no art. 169 § 2º da constituição do império: “Nenhuma lei será estabelecida
sem utilidade pública” (BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS, online).

Desta feita, observa-se que era necessária e urgente a criação do código


criminal para adequar as leis penais à realidade do Brasil, considerando os princípios
constitucionais e a utilidade pública, sendo frisada a importância da retirada da
pena de morte e de outras penas cruéis, que não surtiam o efeito devido e que
passavam da pessoa do delinquente, além de fazer distinção entre os indivíduos.

O citado Código sofreu diversas influências das leis gerais portuguesas,


apesar de ter sido publicado após a Carta Imperial de 1824, a qual previu em
seu artigo 179, XVIII “organizar-se-há quanto antes um Codigo Civil, e Criminal,
fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade.” (NOGUEIRA, 2012, p. 86). Por-
tanto, o Código Criminal do Império foi uma exigência da própria Constituição,
que o tratou como garantia de direito, devendo suas normas serem pautadas
na justiça e equidade, além de ter tido influências da Revolução Francesa e dos
movimentos iluministas - humanista (CARVALHIDO, 2003 p. XV), seguindo um
modelo liberal.

Verifica-se, ainda, que o referido Código Criminal vigorou no Brasil até ser
substituído pelo Código Penal de 1890. Como será abordado nos tópicos seguintes,
o Código do Império abrandou as penas e retirou a tipificação de determinados

123
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

delitos em relação ao que era previsto nas Ordenações Filipinas, bem como reuniu
em seu Título II “Dos crimes contra a segurança individual”, Capítulo II “Dos crimes
contra a segurança da honra”, os tipos penais de crimes sexuais, que nas referidas
Ordenações estavam descritos em diversos Títulos (BRASIL, online).

Os crimes sexuais no Livro V das Ordenações Filipinas

As Ordenações Filipinas trataram acerca do direito penal e processual


penal em seu Livro V. Para fins deste estudo, se analisou apenas os Títulos que se
referiam aos crimes sexuais, tendo em vista ser este o objeto do presente trabalho.
Primeiramente, deve-se considerar que na época a religião oficial do reino português
era a católica, então, a Colônia também seguia a mesma religião. Deste modo,
alguns crimes trazidos pelas Ordenações eram, também, considerados pecados ou
crimes contra a ordem religiosa, tais como a sodomia e a bigamia, podendo os
acusados serem julgados tanto na justiça eclesial como pelo direito régio.

Além de religiosa, a sociedade era escravocrata, machista e alicerçada


na família. Portanto, as mulheres não eram “sujeitos” de direitos, na realidade, os
crimes sexuais, em regra, as tinham como “sujeitos passivos” e os homens como
sujeitos ativos, sendo as penas variadas de acordo com a qualidade da pessoa do
delinquente. As tipificações visavam proteger a família e sua honra, por meio da
“defesa da moralidade das relações sexuais” (HESPANHA, 2015, §2265).

Ressalta-se que a expressão “dormir”, muito utilizada nos Títulos que ver-
savam sobre crimes sexuais, equivale a ter conjunção carnal, relação sexual, ou
intenção de coito sexual. Os delitos sexuais tinham como fundamento o fato das
práticas sexuais somente serem permitidas após o sacramento do matrimônio,
bem como a preservação da moral familiar, consequentemente, da descendência
(linhagem).

As Ordenações Filipinas descreviam os crimes sexuais nos Títulos XIII aos


XXXIII, assim sendo, verifica-se que ela tinha a pretensão de tipificar o máximo
de condutas possíveis para que não houvesse “transgressões inesperadas” (AR-
CANJO, 2015, p. 23).

Neste contexto, o primeiro título que tratou acerca dos crimes sexuais
foi o Título XIII “Dos que commettem peccado de sodomia e com alimarias”, o
qual tipificava o crime de sodomia praticado por qualquer pessoa, homem ou
mulher, e por pessoa de qualquer qualidade, seja fidalgo ou não. A sodomia não
era somente a prática de ato sexual anal com pessoa do mesmo sexo, que geral-
mente ocorria entre homens (ARCANJO, 2015, p. 29), revelando a intolerância aos
atos homossexuais, que iam contra a natureza humana, nos moldes divinos, mas
também englobava as condutas de ejaculação que não visavam a reprodução. De

124
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

acordo com Antoni M. Hespanha, era o crime sexual mais grave, “considerado
como uma ofensa a Deus e à natureza, mais torpe do que o adultério ou do
que o incesto com a própria mãe” (2015, §2266). Portanto, diante da gravidade
a penalidade aplicada também era cruel, além disso, ela passava da pessoa do
delinquente e afetando seus descentes até segundo grau.

Por sua vez, as alimárias eram as práticas sexuais envolvendo animais, sen-
do consideradas como tipos de sodomia. Verifica-se que tais delitos implicavam
punição bastante cruel e grave, haja vista que o acusado deveria ser queimado
até virar pó, para que seu corpo e memória desaparecessem, bem como seus
bens eram confiscados pela Coroa e os descendentes seriam tidos como infames,
desonrados (PORTUGAL, online). Tal crime era equiparado aos de Lesa Magestade,
que eram os crimes contra o Rei, ou melhor, traição contra a Coroa.

Por sua vez, o Título XIV “Do infiel que dorme com alguma christã, e do
christão que dorme com infiel”, neste título ele trata da conjunção carnal entre infiel,
quem não segue as leis de Cristo como os Mouro ou Judeu, e um(a) cristã(o),
é relevante para a consumação do tipo que fosse realizado por vontade e que
ambos soubessem da condição de infiel, que recaía sobre um deles (PORTUGAL,
online). A pena, nesse caso, era de morte para os envolvidos. Havia exceções
para a aplicação da punição, a primeira era quando a mulher tinha sido forçada
a praticar o ato sexual, assim, ela não sofria nenhuma pena e a segunda era
quando a parte cristã envolvida desconhecia o caráter de infiel da outra, sendo
a pena do cristão extinta, deste modo, somente aquele que sabia da infidelidade
ou deveria saber era apenado. Percebe-se que este crime tinha como um de
seus objetivos preservar a religião católica e sua continuidade pelos descentes,
evitando a perda de fieis.

Já o Título XV “Do que entra em Mosteiro, ou tira Freira, ou dorme com


ella, ou a recolhe em casa” dizia respeito aos crimes que atentavam contra o poder
eclesiástico, posto que as freiras eram ligadas aos mosteiros e ao rei, dependiam
de licença para saírem do mosteiro, bem como para se hospedarem na casa das
pessoas. Desta feita, tinha-se a tipificação de crime cometido por homens, que
entravam no mosteiro de freiras com a intenção de fazer algo ilícito, atentando
contra a honestidade do local. Caso se provasse o fato, o acusado deveria pagar
cem cruzados para o mosteiro e sofria pena de morte natural (PORTUGAL, online).

Além do crime anterior, o título previa outro delito praticado por homens,
qual seja de retirar freira do mosteiro ou de induzi-la a sair de lá para com ele
se encontrar. Neste caso, se o condenado fosse pião, ou seja, sem qualidade, era
punido com a morte, todavia, se fosse homem de maior qualidade pagava cem
cruzados para o mosteiro e era degredado para sempre para o Brasil. Por fim, o
último crime disposto pelo citado título era o de dormir, ou seja, ter conjunção

125
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

carnal com freira fora do mosteiro, não havendo o homem a retirado de lá, assim
sendo, ele seria condenado a pagar cinquenta cruzados para o mosteiro e seria
degredado por dois anos para a África, além disso, se fosse pião era açoitado
publicamente com baraço e pregão.

A seu turno, o Título XVI “Do que dorme com a mulher, que anda no
Paço, ou entra em casa de alguma pessoa para dormir com mulher virgem ou
viúva honesta ou scrava branca de guarda” trazia hipóteses de crimes que tinham
como sujeito ativo homens e sujeito passivo mulheres. O primeiro crime descrito
era o de ter conjunção carnal com mulher que anda no Paço, ou seja, na casa
nobre, em que reside o imperador ou sua família, tais como as casas do Rei, da
Rainha ou do Príncipe, a pena imputada ao acusado era de perda da sua fazenda,
sendo metade para a câmara e metade para os cativos (PORTUGAL, online).

O segundo crime era o de entrar na casa de outra pessoa para ter con-
junção carnal com mulher livre, que não era escrava, seja com consentimento
dela ou mediante violência, se o dono da casa fosse senhor de linhagem ou
cavalheiro e o acusado fosse pião, este seria açoitado e degredado por cinco anos
para o Brasil, com baraço e pregão, mas se o acusado fosse senhor de linhagem,
indivíduo que não pode ser penalizado com açoite, ele era degredado com um
pregão na audiência, que era pena inferior a andar com baraço e pregão, por
cinco anos para a África, por fim, se o acusado fosse pessoa de maior qualidade
haveria pena de degredo, que era aplicada de acordo com a qualidade da pessoa
(PORTUGAL, online).

O terceiro crime tratava acerca da conjunção carnal com mulher virgem,


ou viúva de qualidade, honesta, ele se encaixa no delito previsto no Título XXIII,
todavia, as penas impostas eram as já referidas, sendo observadas as diferenças
e qualidades das pessoas do acusado e dono da casa. O quarto e último crime
sexual, previsto no título em comento, era o de ter conjunção carnal com escrava
branca de guarda, que estava dentro de casa, neste caso, a pena era a mesma
dos fatos anteriores, não importava se ele tivesse dormido ou não com a mulher.

Além de tipificar os crimes e lhes atribuir penas, o título previu uma


hipótese de extinção das penas do acusado, qual seja, se este se casasse com a
mulher com a qual tinha se relacionado sexualmente, mas para isto era necessária
a vontade da mulher e do dono da casa violada (PORTUGAL, online). Observa-se,
portanto, que as tipificações narradas visavam proteger tanto a inviolabilidade de
domicílio como a honra da família, com a possibilidade de extinção da punibi-
lidade com o casamento.

O Título XVII “Dos que dormem com suas parentas, e alfins” tratava dos
relacionamentos sexuais interfamiliares, que também eram moralmente reprovados,

126
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sendo comumente denominado de incesto. As tipificações deste título visavam


proteger a integridade e descendência da família, bem como de suas relações.
Tal título criminalizava diversas condutas praticadas pelos homens, embora as
Ordenações estipulassem penas tanto para o homem quanto para a mulher. O
primeiro crime previsto era o de ter conjunção carnal com qualquer descendente
ou ascendente, sendo-lhes impostos a pena de serem queimados até virarem pó.
De modo parecido, previa o crime de ter relação sexual com irmã, nora, madrasta,
mesmo que viúvas, ou com enteada, mesmo que a mãe fosse falecida, ou com
a sogra, mesmo que a filha já estivesse morta. Nestes casos, os envolvidos eram
punidos com a morte natural. Também era crime ter relação sexual com tia, pri-
ma, ou qualquer parenta de segundo grau, este grau era aferido de acordo com
o direito canônico, a pena aqui era diferente para os envolvidos, sendo para o
homem de degredo por dez anos para a África e para a mulher de cinco anos
para o Brasil. Por sua vez, no caso de envolvimento com parentes de até quarto
grau a pena dos homens variava segundo a diferença e qualidade das pessoas e
a das mulheres era de degredado por cinco anos para a Castro-Marim.

Além disso, era crime a relação sexual entre homem e sua cunhada, va-
riando as penalidades de acordo com o grau de afinidade entre os envolvidos.
Ressalta-se que este título previu hipótese de extinção da pena para a mulher,
quando ela era menor de treze anos ou maior se prestasse queixa contra o acu-
sado perante a justiça (PORTUGAL, online), portanto, observa-se a proteção das
mulheres menores e um estímulo para as maiores denunciarem os seus parentes
criminosos, que atentavam contra a moral da família.

Por sua vez, o Título XVIII “Do que dorme per força com qualquer mulher,
ou trova della, ou a leva per sua vontade” versava acerca do estupro, que era o
ato de ter conjunção carnal com mulher, por meio da utilização da violência física
ou ameaça, também era considerado estupro a relação sexual com mulher virgem
menor, contudo, este crime estava descrito em Título próprio (HESPANHA, 2015,
§2278). Para a tipificação do crime não importava se a mulher era prostituta ou
escrava, se fosse contra a sua vontade estava caracterizado o delito. Neste caso,
a pena do acusado era de morte e quem lhe ajudasse, favorecesse ou aconse-
lhasse na prática do ato violento sofreria a mesma penalidade. De acordo com
o referido título, nem o consentimento posterior da mulher, nem o casamento
com ela impediam a aplicação da pena, em virtude da gravidade relacionada à
violência (PORTUGAL, online).

Além do crime citado, o título previa como crime tomar mulher pelo braço,
com a finalidade ter conjunção carnal ou não com ela, se tivesse relação sexual a
pena seria que o homem merecesse, segundo as disposições de direito, mas se
a intenção fosse apenas tomar a mulher a pena era de prisão por até trinta dias,
bem como pecuniária de mil reis, que era dada a quem denunciasse o crime .

127
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

Por fim, descrevia como delito o induzimento de mulher virgem ou


honesta, que não fosse casada, por meio de dádivas, afagos ou promessas para
retirá-la de sua casa ou de onde ela estivesse, levando-a ou fugindo com ela ou
a induzindo para ir a determinado lugar. Neste caso, a pena seria de morte se o
condenado fosse de condição menor que o pai da moça ou de mesma linhagem
e se ele fosse de fidalgo ou de linhagem superior ao pai da mulher seria riscado
dos livros do reino e degredado para África por tempo determinado pela decisão.

Observa-se, ademais, que o Título XIX “Do homem que casa com duas
mulheres e da mulher que casa com dous maridos” criminalizava a bigamia praticada
por homem ou mulher, já que a ordem jurídica era monogâmica, nos termos do
que dispunha os preceitos da religião católica, isto mostra novamente a ligação
entre o Estado e a Igreja. Além disso, reforçava a instituição familiar como pilar
da sociedade. Este delito era bastante comum entre os homens, tendo em vista
que muitos deles tinham família em Portugal e se casavam novamente quando
vinham passar uma temporada no Brasil, mantendo, deste modo, duas esposas.
Neste contexto, o crime ocorria quando um homem casado, que não tinha o seu
primeiro matrimonio invalidado pela justiça eclesial, se casava com outra mulher,
a pena imposta era de morte, bem como era determinado que ele pagasse com
seus bens os prejuízos que as mulheres sofressem. A mulher também poderia
praticar o citado crime e de igual modo incorria na mesma pena quando se
casava com dois maridos.

O Título XX “Do official del-Rey que dorme com mulher que perante elle
requer” tratava sobre a conjunção carnal entre os oficiais do reino, tais como
desembargador, oficial de justiça, entre outros, e prostitutas ou mulheres que
se “oferecessem” para eles. No caso, a pena imposta era de perda do ofício e
degrado para África por um ano se fosse o acusado leigo, já se ele fosse clérigo
perdia o que tinha no reino e o ofício, podendo ser condenados a outras penas,
caso merecessem (PORTUGAL, online). Quanto ao clérigo, também poderia sofrer
penalidades impostas pelas Primeiras Constituições do Arcebispado da Bahia.

Por sua vez o Título XXI “Dos que dormem com mulheres órfãs, ou
menores, que stão a seu cargo” abordava, dentre os diversos tipos descritos, o
crime cometido por juízes ou servidores responsáveis pelas órfãs. Aquele que
tivesse com órfã de sua jurisdição relação sexual era penalizado com degredo
por dez anos para a África, bem como lhes pagaria o casamento e o que ela
merecesse em dobro (PORTUGAL, online). Além disso, era crime a prática de
conjunção carnal envolvendo tutor, curador ou pessoa responsável por órfã ou
menor de vinte e cinco anos, e mulher menor ou órfã, sendo esta considerada
virgem, neste caso, o homem deveria pagar à órfã ou menor o casamento em
dobro, ser preso e degredado por oito anos para a África, caso ele não tivesse
como pagar o casamento em dobro, deveria ser degredado para sempre para o

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Brasil e se viesse a ter como pagar, pagaria um casamento singelo. Verifica-se que
este crime objetivava proteger a moral das famílias das mulheres virgens, órfãs e
menores, já elas não tinha pai, mãe ou avó para lhes cuidar, o responsável por
tal cuidado não poderia se aproveitar desta facilidade para violar a referida moral.

Já o Título XXII “Do que casa com mulher virgem, ou viúva que stiver em
poder de seu pai, mai, avô, ou senhor, sem sua vontade” tipificava como crime
o fato do homem casar com mulher virgem ou viúva honesta de até vinte e
cinco anos, que morasse com seu pai, mãe ou avô, sem o consentimento de
cada uma dessas pessoas, uma vez que eles detinham poder sobre a mulher
virgem ou viúva honesta e eram ofendidos com a prática do crime. Para tal crime
era imposta penalidade tanto para o homem como para as testemunhas, que
presenciassem o casamento, a pena era de perda da fazenda em favor de quem
tinha poder sobre a mulher e degredo por um ano para a África, caso o pai,
mãe ou avô da mulher não aceitasse a fazenda, esta era dividida metade para a
câmara e metade para os cativos (PORTUGAL, online). Se o homem que casou
fosse pessoa notoriamente conhecida e ficasse comprovado que a mulher casou
melhor com ele do que com quem seu pai, mãe ou avô pudessem arranjar para
ela se casar, ficaria extinta a pena dele e das testemunhas.

O Título XXIII “Do que dorme com mulher virgem, ou viúva honesta per
sua vontade” dispunha do crime de estupro, tratado também dentro do Título
XVIII, o qual remete para este, o que os diferencia é que o tratado no presente
Título, especificamente, punia a prática de relação sexual contra a vontade da
mulher virgem ou viúva honesta de até vinte e cinco anos, já aquele não fazia
distinção quanto à mulher. Segundo o Título, se o homem quisesse casar com
a mulher e ela aceitasse, as irregularidades e as penalidades impostas seriam
suprimidas. Todavia, se o homem ou a mulher não quisessem o casamento, ele
era condenado a pagar o casamento dela na quantia que o juiz arbitrasse, sendo
considerada sua qualidade, a fazenda e a condição de seu pai (PORTUGAL, online).
Caso ele não tivesse bens, deveria ser açoitado com baraço e pregão pela vila e
degredado para a África por tempo determinado pela decisão e se o homem
fosse fidalgo, que não podia sofrer pena de açoite, deveria ser degredado para
a África pelo tempo que a decisão determinasse. Além disso, caso o homem
viesse a ter bens durante a vida da mulher seria obrigado a pagar a ela metade
da condenação que era imposta.

A seu turno o Título XXIV “Do que casa, ou dorme com parenta, criada,
ou scrava branca daquelle, com quem vive” criminalizava a conduta do homem
que casava, sem licença do seu senhor ou senhora, com filha, mãe, tia parenta ou
afim, até quarto grau, nos termos do direito canônico, daquele ou daquela com
quem vivia, ou seja, do senhor ou senhora, bem como era crime ter conjunção
carnal com uma das mulheres acima citadas ou com criada, que servisse dentro

129
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

de casa. Para os crimes narrados a pena imposta era de morte natural. O Título
também previa o crime de ter relação sexual com escrava branca, que servisse
dentro da casa, neste caso, a pena era de degredo para o Brasil para sempre,
contudo, se o homem casasse ou dormisse com criada do seu senhor, que tra-
balhasse fora de casa, a penalidade era de degredo por dez anos para o Brasil.

O Título XXV “Do que dorme com mulher casada” tratava acerca do
adultério, da infidelidade matrimonial, segundo Antonio M. Hespanha “o adultério
era considerado como uma violação da lei conjugal, ou seja, da exclusividade que
a mulher deveria ao marido quanto às relações sexuais” (2015, §2270). Os objeti-
vos deste Título eram a proteger o interesse familiar, para não gerar dúvidas em
relação à paternidade e preservar os preceitos religiosos, pautados na castidade e
na linhagem. Desta feita, o homem que se relacionasse sexualmente com mulher
casada ou que fosse considerada casada praticava crime. Assim sendo, ele seria
condenado a pena de morte e a mesma pena era imputada à mulher adultera,
todavia, se ela comprovasse que foi forçada a praticar o ato sexual não seria
penalizada. Caso o marido traído sofresse algum prejuízo ou dano o homem
adultero deveria lhe restituir.

Por sua vez, o Título XXVI “Do que dorme com mulher casada de feito, e
não de direito, ou que está em fama de casada” criminalizava a conduta do homem
que tinha conjunção carnal com mulher casada de fato e não de direito, ou seja,
que convivia maritalmente, embora não tivesse contraído matrimonio nos moldes
da religião católica e dos regramentos do Estado, devido a algum impedimento
como parentesco entre marido e mulher, desde modo, o casamento putativo era
equiparado ao de direito (PORTUGAL, online). Neste caso, a pena aplicada era
de morte. Também era crime se o homem tivesse relação sexual com mulher
que não era casada de fato, nem de direito, mas que tivesse “fama” de casada,
posto que pretendia se casar com determinado homem. Para este fato a pena
aplicada ao homem era inferior a de morte, devendo ser arbitrada pelo juiz, mas
não poderia ser inferior a dez anos de degredo para a África, já para a mulher
a pena era de degredo por cinco anos para Castro-Marim.

Já o Título XXVII “Que nenhum homem Cortesão, ou que costume andar


na Corte, traga nella barregão” afirmava que cometia crime o cortesão, homem
que frequentava a corte, que tinha ou mantinha mulher manceba, em amásia
ou concubinato, mesmo que ele ou ela fossem solteiros. A penalidade aplicada
era variável de acordo com a qualidade do homem, se ele fosse cavaleiro ou de
maior qualidade pagaria vinte cruzados, se fosse seudeiro pagaria dez cruzados
e se fosse de menor qualidade cinco cruzados, além de ser degredado por um
ano fora da Corte. As mulheres tidas como mancebas eram degredadas por um
ano fora da Corte e deviam pagar dois mil reis, bem como se fossem pescadoras,
padeiras, ou trabalhassem com ofícios semelhantes, não poderiam mais trabalhar

130
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

na Corte ou em Lisboa, contudo, caso elas se casassem antes de serem presas


as penas eram relevadas.

O Título XXVIII “Dos barregueiros casados e de suas barregãs” criminalizava


a conduta do homem casado que tinha ou mantinha barregã, que era a mu-
lher manceba ou amante, para tal fato era imposta a pena de degredo de três
anos para a África, bem como pagamento de quarentena no valor de todos os
seus bens, com exceção daqueles que pertenciam a sua mulher, caso o homem
cometesse o crime pela segunda vez, a quarentena dobrava e pela terceira vez
a quarentena triplicava, sendo o valor mínimo da quarentena de três mil reis.
Em relação à mulher manceba, que era tida ou mantida por homem casado,
a penalidade imposta a ela era de açoite pela vila com baraço e pregão e de
degredo por um ano para Castro-Marim, bem como deveria pagar a metade da
quarentena devida pelo homem casado, se ela fosse condenada pela segunda vez
a quarentena era dobrada e pela terceira vez a quarentena era o triplo, sendo o
valor mínimo da quarentena de dois mil reis, além disso, em todos os casos a
quarentena era combinada com as outras penas impostas.

Por sua vez, o Título XXIX “Das barregãs que fogem aquelles, com quem
vivem e lhes levão o seu” afirmava que se a mulher manceba roubasse ou furtasse
algo do barregão casado, este não pode fazer nada em face dela, todavia, sua
esposa poderia ajuizar uma ação de natureza civil contra a amante para que ela
devolvesse o que tomou do barregão, bem como qualquer presente que tenha
recebido dele.

Já o Título XXX “Das barregãs dos Clerigos, e de outros Religiosos” tratava


acerca do crime cometido pelas mulheres, que eram barregãs, mancebas de clé-
rigos, frades, ou de qualquer outro religioso, assim, sendo comprovado que ele
a tinha e a mantinha fora de sua casa, ou se eles fossem vistos juntos entrando
na casa dele ou dela, sete ou oito vezes, dentro de pelo menos seis meses, a
mulher era condenada a pagar dois mil reis e ao degredo por um ano fora da
cidade ou vila, em que era manceba. Caso cometesse o fato típico pela segunda
vez, a pena pecuniária era mesma, mas devia ser degredada para fora do bispado
por um ano e se fosse provado que cometeu o delito pela terceira vez, ela seria
publicamente açoitada e degredada por tempo determinado na decisão,por fim,
se praticasse novamente a pena era de degredo para sempre para o Brasil. O
referido crime visava a proteção da idoneidade da igreja, principalmente, de seus
representantes, os clérigos, os quais faziam votos de castidade.

O Título XXXI “Que o Frade, que for achado com alguma mulher, logo seja
entregue a seu Superior” afirmava que não poderia ser preso clérigo ou frade por
se relacionar, ter ou manter barregã, salvo em caso de ordem do seu superior.
Se fosse achado frade com a mulher fora do mosteiro, ele devia ser entregue

131
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

para o seu superior, mas não seria preso. Portanto, verifica-se que tais indivíduos
estavam sob a proteção da Igreja e por isso deviam ser submetidas aos seus
superiores, não prevendo o Estado punição direta para eles, da mesma forma
que no Título antecedente.

Já o Título XXXII “Dos alcoviteiros, e dos que em suas cazas consentem


a mulheres fazerem mal de seus corpos” criminalizava a conduta do lenocínio,
ou do favorecimento à prostituição, assim sendo, era penalizado o homem ou a
mulher que alcovitava, ou seja, permitia, consentia que mulher casada fizesse mal
uso de seu corpo em sua casa, seja esse uso com fins lucrativos ou não, sendo
condenado à pena de morte e perdia todos os bens. Todavia, se a mulher alcovi-
tada fosse freira de mosteiro, a pena imposta era de açoite, degredo para sempre
para o Brasil e perda dos bens. Por sua vez, se a mulher fosse virgem ou viúva
honesta, a condenação era de açoite, degredo para sempre fora da vila e perda
dos bens. Neste contexto, se a pessoa alcovitada fosse filha ou irmã daquele ou
daquela que facilita a prostituição, ou quem a explora lhe desse comida, ou lhe
fosse tomador de serviços, o alcoviteiro era penalizado com a morte e perdia os
bens, bem como se a pessoa alcovitasse parenta de até quarto grau, de acordo
com o direito canônico, seria degredada para sempre para o Brasil.

Além disso, se fosse alcovitada criada ou moça, que estivesse na casa


do senhor e sob sua guarda, a pena era de degredo de dez anos para o Brasil,
se a mulher alcovitada fosse cristã e o homem infiel, a pena seria de morte e
de perda dos bens. Se o pai ou mãe desse consentimento para filha, que não
fosse virgem, ter conjunção carnal com qualquer homem, sofria pena de açoite
com baraço e pregão pela vila, era degredada para o Brasil e perdia os bens,
se a pessoa condenada fosse de qualidade que não permitisse o açoite, apenas
incidiria a pena de degredo.

Por fim, o último título que tratava acerca dos crimes sexuais era o Título
XXXIII “Dos ruffiães e mulheres solteiras”, ele afirmava que nenhuma pessoa poderia
ter ou manter manceba para receber serviços dela ou para lhe prestar. Quem
desobedecesse tal norma era condenado ao açoite público, sendo o homem
degredado para a África e a mulher para Couto de Castro-Marim, bem como
ambos teriam que pagar mil reis para quem tivesse os acusado assim sendo, o
Estado bonificava quem delatou o delinquente, além de estimular a vigilância de
uns sobre outros.

Os crimes sexuais no Código Criminal de 1830

O Código Criminal do Império, como já dito no primeiro tópico deste


estudo, revogou as disposições do Livro V das Ordenações Filipinas, consequen-
temente, alterou os tipos penais relacionados aos crimes sexuais, bem como as

132
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

penas a eles aplicadas. O Código de 1830, em seu Título II “dos crimes contra a
segurança individual”, Capítulo II “dos crimes contra a segurança da honra”, previu
somente os crimes de estupro e de rapto como crimes sexuais, que tinha como
bem a ser protegido a segurança da honra, principalmente, a moral ou reputação
da família, ainda, não se entendia como necessária a proteção da dignidade sexual
das mulheres ou dos homens.

Neste contexto, os artigos 219 aos 225 do Código Criminal tratavam acerca
do crime de estupro, que era a prática de ato sexual sem o consentimento da
mulher, mediante violência ou ameaça, bem como de suas modalidades e penas.
O artigo 219 descrevia o crime de “deflorar mulher virgem, menor de dezessete
anos”, sendo assim, o homem que tivesse conjunção carnal com mulher virgem
cometia crime. Deflorar correspondia ao ato sexual de rompimento do hímen
feminino, tal ato era grave, posto que a virgindade da mulher era protegida pela
sociedade e pela religião católica, que pregava a castidade absoluta como um direito
divino, que só poderia ser rompido com o casamento (GUSMÃO, 1954, p. 83).

O homem que deflorava era penalizado com desterro para fora da


comarca, que residisse a mulher deflorada, pelo período de um a três anos e,
ainda, ele deveria dar um dote a ela. O artigo previa como hipótese de extinção
da pena a consumação do casamento entre o homem e a mulher deflorada, já
que se entendia que para reparar o mal causado deveria haver o casamento ou
o pagamento do dote, dessa forma, se resguardava a moral familiar da mulher,
a sua possibilidade de casar (TINÔCO, 2003, p. 401).

Por sua vez, o artigo 220 tipificava o crime de estupro praticado por quem
detinha ou poder ou a guarda da mulher deflorada. Desta feita, especificou-se o
sujeito ativo, que era o homem que tinha o dever estatal de proteger a honra e
a moral da mulher, mas agia de forma contrária, sendo enquadrada a conduta do
incesto. Neste caso, a pena era mais grave do que a prevista no artigo anterior,
qual seja, de desterro para fora da província que morava a mulher deflorada, por
dois a seis anos e ele teria que dar um dote a ela.

Em sentido semelhante ao do artigo 220, o artigo 221 criminalizou o


estupro praticado por homem parente da mulher deflorada, sendo essa relação
sexual parental de grau que não se permitia o casamento entre eles. O homem
era condenado a pena de degredo para a província mais remota da qual residisse
a mulher deflorada, pelo prazo dois a seis anos, além disso, tinha que dar um
dote a ela.

O artigo 222 descrevia o crime de estupro, propriamente dito, que era o


de “ter copula carnal por meio de violência, ou ameaças, com qualquer mulher
honesta” (BRASIL, online), de acordo com Gusmão o estupro era caracterizado

133
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

fundamentalmente pela violência (1954, p. 96), seja ela física ou moral, a violência
não era presumida, portanto, devia ser comprovada por exame pericial ou qual-
quer outra que fosse convincente. Neste caso, a mulher deveria ser honesta, não
poderia ser prostituta, manceba ou praticar qualquer ato que desabonasse sua
conduta honesta, contudo, a mulher não necessariamente deveria ser virgem. A
pena imposta era de prisão de três a doze anos e pecuniária de dote. O artigo,
ainda, previa que se o crime de estupro fosse praticado contra mulher prostituta,
o homem sofria pena mais branda, qual seja, de prisão por prazo de um mês a
dois anos. Não havia a previsão de pena pecuniária, por se entender que a mulher
prostituta não tinha perdido a possibilidade de bom casamento.

Por sua vez o artigo 223 previa como crime a prática de qualquer ato
sexual para satisfação da lascívia do homem, assim, era crime o ato libidinoso
pessoalmente ofensivo, que causasse dor ou qualquer mal corpóreo à mulher, não
sendo necessária a cópula carnal, tal ato era punido com prisão de um a seis
meses e multa, correspondente à metade do tempo, além das penas impostas
as ofensas praticadas pelo réu.

A seu turno o artigo 224 descrevia como crime a sedução de mulher


honesta, menor de dezessete anos, com a finalidade de ter com ela conjunção
carnal, o presente artigo não falou acerca de defloração, posto que já tinha pre-
visão anterior. Verifica-se, portanto, a proteção à honra da mulher considerada
menor e honesta, sendo o homem penalizado com o desterro para fora da
comarca em que residia a ofendida, pelo prazo de um a três anos, além disso,
tinha que pagar o dote.

Por fim, o artigo 225 previa uma hipótese de extinção da pena, que
se dava pelo casamento entre o réu e a mulher ofendida, contudo, somente
incidiria nos casos dos três artigos antecedentes. Ressalta-se que o casamento
deveria ser realizado, não bastava a intenção do réu de se casar, além disso, para
a concretização do casamento a mulher deveria concordar, bem como seu pai,
tutor, curador ou juiz responsável pela jurisdição (2003, p. 407).

Já nos artigos 226 aos 228 estavam previstos os crimes de rapto. O rapto
era definido como “uma espécie de sequestro, ocorrendo quando se tirava a
moça tida como honrada, à força ou por engano, da casa de seu pai, sua mãe ou
qualquer outra pessoa por ela responsável” (ARCANJO, 2015, p. 40), assim sendo,
o crime tinha a finalidade de praticar ato libidinoso com a mulher raptada. Neste
contexto, o artigo 226 previa o crime sexual de raptar qualquer mulher de sua
casa, ou de onde ela estivesse, mediante violência, para a prática de qualquer ato
libidinoso, inclusive, conjunção carnal. A pena aplicada ao réu era de prisão de
dois a dez anos com trabalho e ele, ainda, pagaria dote à ofendida.

134
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Por sua vez, o artigo 227 descrevia o crime de raptar mulher virgem ou
assim reputada, que fosse menor de dezessete anos, da casa de seu pai, tutor,
curador, ou responsável que detenha poder sobre ela, utilizando-se de afagos e
promessas para fins libidinosos. Segundo Gusmão, a promessa de casamento era
um dos modos mais comuns de sedução, por meio dela as mulheres permitiam
que os homens praticassem com ela atos libidinosos, na esperança da consumação
do casamento em um momento futuro próximo, fato que nem sempre ocorria
(1954, p. 214). Este tipo penal especificava que a mulher deveria ser virgem ou
assim considerada, além do critério da menoridade, o homem que incorresse na
prática desse crime deveria ser preso pelo prazo de um a três anos, bem como
pagaria dote à mulher.

Verifica-se, outrossim, que o artigo 228 previa que nos casos de rapto
se houvesse o casamento entre o réu e a mulher ofendida as penas não seriam
aplicadas, na realidade, o casamento fazia cessar o crime e como consequência a
punição do autor (TINÔCO, 2003, p. 410). Portanto, o Código Criminal possibilitou
que a maioria dos tipos penais fosse abrangida pela extinção de punibilidade pelo
casamento, reforçando que seu interesse era a proteção da honra familiar e da
mulher, que deveria ser virgem para que conseguisse se casar, assim sendo, se o
réu com ela se casassem não haveria motivo para a penalização.

Ressalta-se, também, que o Código Imperial retirou do rol de crimes se-


xuais os crimes que envolviam o casamento como o adultério e a poligamia, os
quais eram tratados no mesmo título dos crimes sexuais, mas no Capítulo III “dos
crimes contra a segurança do estado civil e doméstico”. Além disso, não foram
previstos crimes sexuais envolvendo especificamente freiras ou frades.

Conclusão

Concluiu-se com o presente trabalho que as Ordenações Filipinas apre-


sentavam um rol extenso de crimes sexuais, os quais tinha grande influência reli-
giosa, tipificando delitos que abrangiam representantes do clero e freiras, além de
confundir crime com pecado. Quanto ao Código Criminal, percebeu-se que este
foi mais objetivo e conciso, criminalizando duas condutas principais, quais sejam,
o estupro e o rapto, e seus desdobramentos, sem haver especificação a crimes
sexuais que iam contra a ordem religiosa e sem mencionar aqueles que faziam
parte da Igreja, todavia, isto não quer dizer que não houve influência religiosa na
elaboração de suas normas.

Diante da análise das penas aplicadas aos crimes sexuais, comprovou-se


que as leis gerais portuguesas tinham como finalidade reprimir a prática dos crimes
por meio de punições severas, intimidadoras, humilhantes e cruéis, sendo a pena
de morte natural ou por queimada aplicada a diversos fatos típicos, enquanto

135
OS CRIMES SEXUAIS NAS ORDENAÇÕES FILIPINAS E A TRANSIÇÃO PARA O CÓDIGO CRIMINAL DO IMPÉRIO

que, o Código de 1830 privilegiou a pena privativa da liberdade, ou seja, a prisão


e penas mais brandas, não sendo prevista a pena de morte para tais crimes, além
de pena pecuniária do dote, que tinha como finalidade reparar o mal causado,
se não houvesse o casamento. Ressalta-se que em ambas as legislações previam o
casamento como forma extinção de alguns delitos sexuais e da respectiva pena,
fato que comprova que a moral e a honra da instituição familiar, formada pelo
matrimonio, eram os bens juridicamente tutelados.

Verificou-se, também, que o Código Criminal suprimiu as penalidades in-


famantes, que passavam do condenado para seus descendentes, caso que ocorria
nas Ordenações Filipinas, uma vez que aquele foi inspirado na Revolução Francesa
e no iluminismo, os quais valorizavam o humanismo e a liberdade. Ademais, as
Ordenações Filipinas tinham variações das penas aplicadas ao mesmo crime a
depender da qualidade da pessoa que o praticava, fato que não ocorreu no
Código Imperial, que se pautava na equidade e igualdade entre as pessoas, não
fazendo distinção por qualidade ou linhagem dos indivíduos. Portanto, a transi-
ção das Ordenações Filipinas para o Código Imperial foi marcada por diversas
mudanças substanciais, de cunho material e formal, sendo este o primeiro código
nacional, realizado por juristas brasileiros, visando regular as condutas da própria
sociedade brasileira.

Ademais, é importante afirmar que o presente estudo não esgotou e nem


pretendeu explorar totalmente a temática dos crimes sexuais nas Ordenações
Filipinas e no Código Criminal de 1830, assim sendo, algumas temáticas que so-
mente foram tangenciadas abrem a possibilidade para novos trabalhos, havendo
bastante conteúdo e documentos a serem analisados, com a finalidade de se
entender a história do direito penal brasileiro no império e suas implicações,
bem como avanços.

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137
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS


PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

RODRIGO ALESSANDRO SARTOTI1


Universidade Federal de Santa Catarina

Resumo
A presente pesquisa investiga a atuação dos professores da Faculdade de
Direito da UFSC durante a primeira fase de ditadura militar iniciada no Brasil
em 1964, procurando responder se houve apoio ou resistência por parte do
corpo docente da instituição. O período histórico analisado vai de 1964 à
1968, ano em que a Faculdade de Direito da UFSC deixa de existir a passa a
integrar um novo centro de ensino da UFSC. No desenvolvimento da pesquisa,
foram utilizadas fontes documentais – principalmente do Arquivo Central da
UFSC e dos arquivos do Serviço Nacional de Inteligência sob curadoria do
Arquivo Nacional.

1. Introdução

Nenhuma ditadura sobrevive sem justificativa jurídica ou, ao menos, uma


tentativa de legitimação pelo direito. Seja como base ou mesmo na negação do
próprio direito e na absoluta ausência da lei, a questão jurídica estará sempre
no âmago de um regime ditatorial, funcionando capilarmente por todos os apa-
ratos estatais. As experiências políticas do século XX demonstraram claramente
esta íntima relação entre o direito e os regimes de exceção, bastando lembrar,
por exemplo, que o III Reich de Adolf Hitler teve sustentáculo político e base
jusfilosófica nos escritos e a atuação política do jurista Carl Schmitt e com a
contribuição científica das faculdades de direito alemãs (SEELAENDER, 2009, p.
415-432). No caso brasileiro, não faltaram professores de direito e juízes para
produzir um pensamento jurídico legitimador do estado de exceção implantado
pelos militares com o Golpe de Estado deflagrado em 1964.

O Ato Institucional que deu origem à Ditadura Militar2 no Brasil em


1 Doutorando em Direito na UFSC, na área de Teoria, Filosofia e História do Direito. Mestre e bacharel em
Direito pela UFSC. Membro do Núcleo de Pesquisa em Teoria e Filosofia do Direito. Advogado.
2 Recentemente, um setor entre os historiadores e defensores de direitos humanos passou a adotar o termo
“Ditadura Civil-Militar”, termo este também utilizado pela Comissão Nacional da Verdade. Há um debate his-
toriográfico acerca do termo a ser usado, chegando alguns a falar em “Ditadura Civil-Militar-Empresarial”. No
entanto, neste artigo, será utilizado o termo “Ditadura Militar” para se referir ao período histórico iniciado no
Brasil com o Golpe de Estado de 1964. Entende-se que, apesar do forte apoio popular ao Golpe e da inegá-
vel participação de importantes setores do empresariado brasileiro nas conspirações que culminaram com a
deposição do Presidente João Goulart, o Regime Ditatorial foi eminentemente militar. Durante o período, os
militares ocuparam os principais cargos do aparato estatal em nível Federal, principalmente a Presidência da

139
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

19643 – posteriormente chamado Ato Institucional n. 1, o AI-1 – foi idealizado pelo


jurista mineiro Francisco Luís da Silva Campos, antigo professor da Faculdade de
Direito da Universidade de Minas Gerais e precursor da doutrina da Carl Schmitt
no Brasil, e redigido com coautoria de Carlos Medeiros Silva, advogado mineiro
membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB em
1964. Carlos Medeiros Silva, conhecido como o “Robespierre mineiro”, também foi
o mentor intelectual da Carta Constitucional de 1967. Ainda em 1963, durante
a conspiração contra o governo do presidente João Goulart, o professor Vicente
Rao, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e antigo ministro da
justiça de Getúlio Vargas, redigiu um projeto de Ato Institucional, no qual listava
as medidas de emergência do futuro governo militar. Já o Ato Institucional n.
5 – o AI-5, que implantou definitivamente um estado de exceção no Brasil, foi
redigido por Luís Antônio da Gama e Silva, professor da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo e Ministro da Justiça do General Costa e Silva.

Na advocacia, igualmente, não faltaram apoiadores do Golpe Militar. Em


7 de abril de 1964, o Pleno do Conselho Federal da OAB se reuniu e votou a
favor de uma moção de apoio ao Golpe que derrubou o Presidente João Gou-
lart4. A sessão foi presidida por Carlos Povina Cavalcanti que, em 1968, passou
a integrar a Comissão Geral de Investigações (criada pelo art. 7º, §1º do AI-1 e
art. 8º do AI-5), que cassou sumariamente direitos e garantias constitucionais de
várias pessoas consideradas subversivas. Já o ex-presidente da OAB e conselheiro
vitalício Nehemias Gueiros foi o responsável pelo texto final do Ato Institucional
n. 2 – AI-2, que acabou com o pluripartidarismo, com as eleições diretas e au-
mentava os poderes da Ditadura Militar para fechar o Congresso.

Os exemplos de juristas5 legitimadores do Golpe e da Ditadura Militar são


muitos e a atuação destes vai além da redação dos Atos Institucionais. Alfredo
Buzaid, professor da Faculdade de Direito da USP, por exemplo, foi ministro da

República, e a Doutrina de Segurança Nacional – desenvolvida pela Escola Superior de Guerra – imperou como
diretriz política em várias ações do Regime. Compreende-se, ainda, que qualquer regime autoritário necessitará
de apoio na sociedade civil, seja em maior ou menor escala, inclusive de setores do empresariado. Sobre a
participação da sociedade civil no Golpe, principalmente o empresariado, ver: DREIFUSS, René Armand. 1964:
a conquista do estado – ação política, poder e golpe de classe. Trad. de Else Ribeiro Pires Vieira et al. 4. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986.
3 Há, também, uma discussão historiográfica acerca da data final da Ditadura. Por muito tempo, a data de
15 de janeiro de 1985, quando Tancredo Neves foi eleito indiretamente Presidente da República pelo Colégio
Eleitoral, foi utilizada como o marco final da Ditadura Militar. Alguns consideram a posse do civil José Sarney,
ocorrida em 15 de março de 1985 como a data final. Outros afirmam que 08 de maio de 1985, data da
aprovação da Emeda Constitucional n. 25, é termo final do Regime. Por fim, há quem afirme que a Ditadura
somente terminou em 05 de outubro de 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa
do Brasil, que colocou fim à Carta Constitucional de 1967.
4 Sobre a atuação da OAB no Golpe, ver: MATTOS, Marco Aurélio Vanucchi Leme de. Contra as reformas
e o comunismo: a atuação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no governo Goulart. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, vol. 25 n. 49, jan./jun. 2012.
5 Nesta pesquisa, compreendem-se na categoria “juristas” os professores de Direito, advogados, juízes, promo-
tores e procuradores de justiça.

140
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

justiça do General Emílio Garrastazu Médici, coordenador e autor de uma série


de projetos de leis da Ditadura, bem como autor do chamado “livro da verdade”6,
no qual relatava à Comissão Interamericana de Direitos Humanos a inexistência
de torturas e presos políticos no Brasil.

Nas faculdades de direito espalhadas pelo Brasil, professores de direito


constitucional escreveram livros e artigos e ministraram aulas para justificar o
AI-5 e a ausência de promulgação da Carta Constitucional de 1967 e da Emenda
Constitucional de 19697. Em que pese o estado ilegal implantado em 1964, vários
juristas e instituições de ensino jurídico deram suas contribuições intelectuais
para legitimar a Ditadura, fosse garantindo as bases dos Atos Institucionais, fosse
justificando a ausência de direitos e garantias fundamentais em processos judiciais
e administrativos movidos contra os opositores do Regime, ou, ainda, ocultando
torturas, desaparecimentos e mortes.

Considerando, portanto, a íntima relação entre direito e ditadura(s) e, con-


sequentemente, entre faculdade de direito e ditadura(s), revela-se extremamente
fértil este campo de investigação e discussão. E, conforme adverte Seelaender,
trata-se não apenas de obter maiores conhecimentos historiográficos sobre a
Ditadura Militar no Brasil, mas, sobretudo, “de estimular o abandono, pelas facul-
dades de direito, de sua última atitude de conivência com a Ditadura: o silêncio
sobre opções políticas passadas” (2009, p. 415).

Desde o fim da ditadura militar, tem sido visto um enorme silêncio das
faculdades de direito sobre este período aliado a uma quase total ausência de
reflexão sobre o pensamento jurídico produzido. Sobre isso, Seelaender questiona
o que está por trás de todo este silêncio e tenta responder argumentando que
A falta de discussão sobre a resistência ou colaboração com as ditaduras
tende a se acentuar no meio jurídico, no qual a ascensão a posições de
destaque e mesmo o êxito na advocacia tendem a ser mais fáceis para
quem sabe manter canais abertos, não provoca antipatias, impede vetos
informais e evita a fama de ‘criador de caso’. (SEELAENDER, 2009, p. 416)

Nas faculdades de direito, ainda hoje, falta coragem “para analisar critica-
mente obras difíceis de conciliar com a concepção usual do que seja democracia”
(SEELAENDER, 2009, p. 419). E o questionamento que Seelaender (Ibidem) faz sobre
a Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), pode ser estendido à Ilha
de Santa Catarina: hoje, já estaria a Faculdade de Direito da UFSC preparada para
aceitar uma pesquisa sobre o pensamento autoritário de docentes do pós-1964?

6 Sobre este livro, ver o artigo “Brasil: a transição inconclusa”, do pesquisador Carlos Fico, In: ARAÚJO, M. P.;
FICO, C.; GRIN, M. (orgs.) Violência na história: memória, trauma e reparação. Rio de Janeiro: Ponteiro, 2012.
7 Neste sentido, uma das obras mais emblemáticas é o livro “Democracia possível” de Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, no qual o autor tenta justificar juridicamente o Golpe Militar de 1964 e desenha o que pode
ser compreendido como um conceito paradoxal de democracia autoritária.

141
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

Ou uma pesquisa sobre o apoio ou a resistência de professores e estudantes de


direito ao golpe e à ditadura militar?

Diante de tanto silêncio, a tarefa intelectual que se coloca como urgente


ao historiador do direito é iniciar uma pesquisa nas faculdades de ireito – espe-
cialmente na Faculdade de Direito da UFSC – e investigar o pensamento jurídico
produzido durante o Regime Ditatorial pós-1964, bem como identificar condutas
e opções políticas tomadas por docentes e discentes no período.

Para uma compreensão crítica do direito hoje, é imprescindível conhecer


detalhadamente o passado de suas instituições. Neste sentido, mostra-se de vital
importância a investigação sobre a História tanto das faculdades de direito, quanto
dos centros acadêmicos de direito durante a ditadura militar, vez que nossa ca-
pacidade de não refletir sobre o passado recente faz com que a ditadura militar
e toda a sua violência ainda se mantenham vivos no Brasil, principalmente no
âmbito jurídico (SAFATLE, V.; TELES, E., 2010, p. 10).

Neste sentido, o presente artigo busca compreender o passado da Facul-


dade de Direito da UFSC durante a ditadura militar a partir do ponto de vista
do corpo discente da instituição, investigando como se portaram os estudantes
da Faculdade diante do golpe militar de 1964 e, assim, apesentar elementos que
possam colaborar no entendimento da formação do pensamento jurídico atual
na mesma instituição.

2. A Faculdade de Direito da UFSC na conjuntura do Golpe Militar de 1964

Por ser o primeiro curso de direito do Estado e berço intelectual de


pessoas que ocuparam importantes cargos no meio jurídico e político estaduais,
a Faculdade de Direito da UFSC8 possuía, já na década de 1960, lugar de des-
8 O Curso de Direito da UFSC nasceu com a denominação “Faculdade de Direito de Santa Catarina”, uma
entidade privada, conforme estatuto no Livro n. 05, fls. 08-09 do Cartório do 1º Registro Civil de Pessoas Jurí-
dicas de Florianópolis. Em 1934, por força do Decreto Estadual n. 452, passou a ser uma entidade de utilidade
pública. No ano seguinte, por força da Lei Estadual n. 19, a Faculdade passou a ser administrada pelo Governo
Estadual, tornando-se pública. Foi equiparada aos estabelecimentos federais de ensino em 1937, com o Decreto
Federal n. 2.098. Todavia, por conta da proibição de cumulação de cargos públicos prevista na Constituição de
1937 (a maioria do corpo docente da Faculdade era formado por juízes e promotores), o Decreto Estadual n.
120 de 1938 transformou a Faculdade novamente em entidade privada. A Faculdade foi federalizada em 1956
pela Lei Federal n. 3.038, acabando com a possibilidade de a Faculdade de Direito integrar o projeto de criação
da Universidade de Santa Catarina (a “USC” - entidade estadual de ensino), encabeçado pela UDN (União
Democrática Nacional) e pelo professor e desembargador Henrique da Silva Fontes. Finalmente, em 1960, a
Lei Federal n. 3.849, em seu art. 2º, criou a Universidade de Santa Catarina (“USC”, de caráter federal), que,
nos termos do art. 5º, seria composta pelas Faculdades de Direito, Medicina, Farmácia, Odontologia, Filosofia,
Ciências Econômicas, Engenharia Industrial e Serviço Social, todas já sediadas e em atividades em Florianópolis.
A mesma lei previa que a Faculdade de Direito de Santa Catarina passaria a ser denominada como “Faculdade
de Direito”. Conforme se verá ao logo do presente artigo científico, a Reforma Universitária da Ditadura mudou
a configuração da UFSC, de modo que a Faculdade passou a ser denominada como “Curso de Direito da
UFSC”, inicialmente integrante do Centro Socioeconômico e, posteriormente, do Centro de Ciências Jurídicas.
Neste artigo, será utilizada apenas a denominação “Faculdade de Direito da UFSC” para se referir à instituição e
ao Curso de maneira indistinta. Sobre os primórdios da Faculdade de Direito da UFSC, ver: BARBOSA, Renato.

142
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

taque na formação do pensamento jurídico de Santa Catarina, bem como nas


disputas políticas locais. Por conta de sua importância estadual, a Faculdade de
Direito da UFSC se tornou fundamental para a legitimação do Regime Militar
em Santa Catarina.

A Faculdade de Direito nasceu no dia 11 de fevereiro de 1932 no antigo


Instituto Politécnico, como projeto capitaneado pelo professor José Arthur Boiteux
(BARBOSA, 1982, p. 29. Nos primeiros anos, a Faculdade funcionou no prédio
localizado na esquina da Praça XV de Novembro com a Rua Felipe Schmidt
e, quatro anos depois, foi transferida para o prédio localizado na Rua Esteves
Junior n. 11, também no Centro de Florianópolis, onde hoje funciona a Escola
Básica Henrique Stodieck (Idem, p. 35). Em 1960, a Faculdade passou a integrar
o projeto que originou a Universidade de Santa Catarina, logo depois renomeada
como Universidade Federal de Santa Catarina (BACKES, 2010, p. 143-170). Então,
do ano de 1935 ao ano de 1980, a Faculdade de Direito funcionou no Centro
de Florianópolis.

No início da década de 1960, o quadro docente da Faculdade era formado


basicamente por advogados, promotores e juízes de carreira, sendo praticamente
inexistente a figura do professor de dedicação exclusiva à academia. Neste contex-
to, também era comum o envolvimento de professores da Faculdade na política
institucional e partidária, tanto no âmbito da incipiente Universidade, quanto na
política municipal e estadual, fazendo com que a Faculdade vivesse as disputas
políticas dos principais partidos daquele contexto pré-Golpe.

O nascimento da Universidade já é marcado por uma disputa entre dois


professores da Faculdade de Direito: de um lado o professor e desembargador
aposentado Henrique da Silva Fontes, ligado à União Democrática Nacional –
UDN, e, do outro lado, o professor João David Ferreira Lima, ligado ao antigo
Partido Social Democrático – PSD. Ambos os professores estavam diretamente
envolvidos nas tratativas de viabilização da Universidade no final dos anos de
1950, envolvendo o projeto de uma universidade estadual daquele e uma uni-
versidade federal deste.

O professor Ferreira Lima desejava que o corpo físico da Universidade


continuasse e se desenvolvesse no Centro de Florianópolis, mas, o professor
Henrique Fontes havia idealizado uma cidade universitária e desejava que esta
fosse construída na antiga Fazenda Assis Brasil, no bairro da Trindade, onde já
se localizava a Faculdade de Filosofia de Santa Catarina. Após a instalação da
Universidade em 18 de dezembro de 1960, os debates entre as propostas dos
dois professores da Faculdade de Direito começaram a ser travados no âmbito
Cofre aberto... reminiscências da faculdade de direito e outros assuntos. Florianópolis: Imprensa Universitária da
UFSC, 1982.

143
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

do Conselho Universitário, sendo vitoriosa, em apertada votação, a proposta do


professore Henrique Fontes. Entretanto, o professor Ferreira Lima foi escolhido
em 1961 como o primeiro Reitor da Universidade, permanecendo neste cargo
até 1972 (RODRIGUES, 2010, p. 17-35).

O início da década de 1960 também foi marcado por uma forte agita-
ção do movimento estudantil em Florianópolis, com considerável protagonismo
e influência dos estudantes de Direito. O Centro Acadêmico XI de Fevereiro –
CAXIF, órgão representativo dos estudantes da Faculdade de Direito, fundado em
02 de setembro de 1932 –, juntamente com a União Catarinense dos Estudantes
– UCE, fundada em 1949 –, desempenhavam grande influência no movimento
estudantil e na opinião pública da Capital. Estas duas entidades também estavam
inseridas no debate nacional do movimento estudantil através da União Nacional
dos Estudantes – UNE. Neste contexto, no ano de 1961 e indo ao encontro da
UNE, o CAXIF apoiou a Campanha da Legalidade pela garantia da posse do
Vice-Presidente da República João Goulart (MORETTI, 1984, p. 79-80), conforme
comprovam também os arquivos da época.

O arquivo do CAXIF encontrado no Arquivo Central da UFSC também


traz documentos que demonstram o apoio da entidade às reformas de base
defendidas pelo Presidente João Goulart e pelo Partido Trabalhista Brasileiro –
PTB, demonstrando novamente uma consonância entre o movimento estudantil
da Faculdade e a UNE.

Nos primeiros anos da década de 1960, a Congregação9 elegeu o professor


e juiz trabalhista Henrique Stodieck como diretor da Faculdade de Direito. Stodie-
ck era professor catedrático de Direito do Trabalho e ligado ao PTB, sendo sua
gestão marcada por novas agitações do movimento estudantil na recém-criada
Universidade de Santa Catarina. Como o CAXIF possuía ligação com a UNE e
esta, por sua vez, defendia as reformas de base do PTB e de João Goulart, o
apoio do diretor Stodieck ao CAXIF foi quase inevitável. Esta relação política
amistosa levou o CAXIF, inclusive, a inaugurar na sede da antiga Faculdade de
Direito uma biblioteca que levava o nome do então diretor Stodieck (FOLHA
ACADÊMICA, 1964, p. 01).

Nesta altura, Ferreira Lima já era o Reitor da Universidade, mas seus opo-
nentes eram outros. Refletindo uma disputa política estadual, Ferreira Lima (PSD)
encontrou oposição no novo diretor da Faculdade, Henrique Stodieck (PTB)10.

9 A Congregação era o órgão deliberativo máximo da Faculdade de Direito. Com a reestruturação feita pela
Ditadura Militar, este órgão se transformou no Conselho da Unidade.
10 Reinaldo Lindolfo Lohn (2014, p. 20-23) lembra que, no início da década de 1960, PSD e PTB dividiam o
governo do Estado. Os pessedistas representados pelo governador Celso Ramos e os petebistas pelo vice-go-
vernador Armindo Doutel de Andrade. No entanto, as tensões políticas durante o governo de João Goulart
acabaram refletindo no Estado, de modo que PSD e PTB romperam. O fim da aliança representou também

144
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Esta disputa encontrou um de seus momentos mais tensos no ano de 1963,


quando o CAXIF e a UCE editaram um dossiê sobre supostas irregularidades e
ilegalidades na gestão Ferreira Lima. O dossiê foi enviado ao Ministério da Edu-
cação e Cultura – MEC e o então ministro Paulo de Tarso Santos determinou
a investigação das denúncias apresentadas pelos estudantes. Uma comitiva do
MEC veio à Universidade em outubro de 1963 para apurar os fatos, ocasião na
qual foi designada uma comissão que elaborou relatório com explicações sobre
as acusações que foi remetido a Brasília no início de 1964. O CAXIF chegou a
afixar na entrada da Faculdade de Direito uma faixa com os dizeres “Queremos
intervenção federal na USC”. Não foram localizados documentos que demonstrem
o desfecho do processo em Brasília11.

Em janeiro de 1964, a Faculdade de Direito foi novamente palco de outro


episódio que demonstra a influência da UNE e do trabalhismo sobre o CAXIF.
Naquela ocasião, foi realizado na Faculdade de Direito um seminário político da
UNE e da Liga Operária-Estudantil, cujos palestrantes foram Leonel Brizola e o
padre Alípio de Freitas12.

O movimento estudantil da UFSC, neste período pré-Golpe, também


possuía uma grande influência da esquerda católica, que, por sua vez, integrava
a base de apoio do Presidente João Goulart (MORETTI, 1984, p. 73-76).

Como a UFSC, em sua maioria de Faculdades, ficava no centro da cidade


no início dos anos de 1960, os estudantes tinham um alcance importante na
opinião pública da cidade. Basta observar os vários jornais estudantis que circu-
lavam por Florianópolis nesta época: “Folha Acadêmica” (CAXIF), “A Reforma”
(UCE) e “Mensageiro” (Colégio Dias Velho), com tiragens mensais de mais de 2
mil exemplares cada13.

Com a deflagração do Golpe em 31 de março de 1964, logo de início,


os Militares se preocuparam com um rápido controle do movimento estudantil.
Exemplo disso é o incêndio da sede da UNE no aterro do Flamengo no Rio de

o fim da possível candidatura de Doutel de Andrade ao Senado, que dividiria chapa com Attílio Fontana.
Os pessedistas, na eleição de 1962, uniram-se à UDN e colocaram o nome de Antônio Carlos Konder Reis
ao lado de Fontana na chapa para o Senado. Doutel de Andrade se elegeu deputado federal e, em 1964, foi
cassado pela Ditadura. Para mais detalhes sobre o cenário político do Estado de Santa Catarina na conjuntura
do Golpe de 1964, ver LOHN, R. L. Relações políticas e ditadura: do consórcio autoritário à transição controlada.
In: BRANCHER, A.; LOHN, R. L. Histórias na ditadura: Santa Catarina 1964-1985. Florianópolis: UFSC, 2014.
11 As informações sobre este processo estão no Arquivo Central da UFSC, Parecer n. 44/64, processo CFE
719/63 – 60/64, na caixa referente à Câmara de Ensino Superior.
12 Este episódio foi relatado no Ofício n. 863/64, de 15 de maio de 1964, enviado pelo Reitor João David
Ferreira Lima ao Presidente da Comissão de Inquérito Professor Vitor Lima – Arquivo Central da UFSC, caixa
referente à Reitoria.
13 A presente pesquisa utilizou jornais que integram o acervo da Biblioteca Pública de Santa Catarina, todos
devidamente referenciados ao final deste artigo. O acervo completo pode ser consultado em < http://heme-
roteca.ciasc.sc.gov.br/>

145
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

Janeiro e a primeira invasão do Exército ao campus da Universidade de Brasília


– UnB em 09 de abril de 1964, universidade na qual estava sendo implantado
o projeto piloto de reforma universitária concebido por Darcy Ribeiro e Anísio
Teixeira, este último Reitor da UnB quando do Golpe14.

Na Faculdade de Direito da UFSC, nos primeiros dias após o Golpe, o


diretor Stodieck determinou a suspensão das aulas por tempo indeterminado.
Entre os estudantes, o Golpe foi recebido com apoio e resistência. O CAXIF re-
digiu duas notas de repúdio15, nas quais classificava a movimentação dos militares
como golpe e defendia o projeto das reformas de base de João Goulart. Nestes
dois documentos constam os nomes do então presidente e secretário do CAXIF,
Eduardo L. Mussi e Luiz A. Müller, todavia, não estão subscritos e não há registros
de sua efetiva divulgação. O CAXIF assim se posicionava:
NOTA OFICIAL.
O Centro Acadêmico XI de Fevereiro, da Faculdade de Direito, face aos
acontecimentos que culminaram com a presente crise nacional, vem
tomar a seguinte posição:
I – Contra o golpe de direita;
II – Contra as agitações de Magalhães Pinto, Carlos Lacerda e Ademar
de Barros;
III – Contra a supressão das conquistas do povo, no campo social, po-
lítico e econômico;
IV – A favor do Presidente da República;
V – A favor do povo ordeiro, mas espoliado pelos grupos que ora
querem dar o golpe;
VI – Contra a morosidade do legislativo em aprovar a mensagem pre-
sidencial;
VII – Pela manutenção das liberdades democráticas.

No outro documento também datado de 31 de março e supostamente


subscrito por Mussi e Muller, o CAXIF assim se manifesta:
O Centro Acadêmico XI de Fevereiro, frente aos acontecimentos que estão
convulsionando o país, declara-se contra o golpe de direita.
Somos democratas e, por isso, queremos a democracia. Não a liberal
democracia, cujas normas já não consultam as necessidades do homem
de hoje. Mas a social democracia de que muito se fala e ainda não foi
concretizada em nossa pátria.

14 Sobre este assunto, ver: Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade. Brasília: UnB, 2015,
p. 59-60.
15 No Arquivo Central da UFSC há dois documentos mimeografados: uma “Nota Oficial” e um texto intitulado
“Brasil, sempre. Democracia também”, ambos datados de 31 de março de 1964.

146
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Queremos reformas, Reformas que humanizam a vida no Brasil.


Não admitimos o reacionarismo. O individualismo cruel que não com-
preende o pão na mesa do brasileiro pobre.
Os erros dos insensíveis à realidade nacional estão preparando a avalanche
irreversível das vontades populares. E nós, os estudantes da Faculdade de
Direito de S. Catarina, vamos às ruas para advertir consciências políticas,
a fim de impedir que essa avalanche estoure, rompendo os diques da
calma até aqui mantidas e esmagando até o regime que desejamos vigente.
Não somos contra os ricos. Apenas queremos os pobres menos pobres.
Não somos contra as liberdades democráticas. Que seria de nós sem
a liberdade de pensar e de dizer? Não somos a favor de outros países
e prejuízo do nosso, porque no nosso é nosso e os outros não o são.
Brasil, sempre. Democracia, também. Democracia em favor do povo,
sem os mêdos que, nesta altura da nossa evolução, reduzem os maus
compatriotas ao silêncio que avilta a pessoa humana. Nada admitiremos
contra o POVO, pois o povo é o Brasil e nós somos Brasileiros.

De outro lado, porém, 120 estudantes de Direito lançaram um “Manifesto


à Juventude da Universidade de Santa Catarina e ao Povo Catarinense”, publicado
na primeira página do jornal “O Estado” em 10 de abril de 1964. No texto, os
estudantes de Direito comemoram o golpe nos seguintes termos, ipisis litteris:
Os estudantes da Faculdade de Direito desta Universidade, que não
podiam, por circunstâncias conhecidas do povo brasileiro, manifestar-se
dentro dos princípios democráticos e de acôrdo com a própria Consti-
tuição do País, antes dos últimos acontecimentos que abalaram a Nação,
lançam à Juventude e ao Povo Catarinense êste manifesto cujo teor é
válido, em sua decisão, para o presente e para o futuro.
Acaba de ser extinta no Brasil a mola propulsora do comunismo in-
ternacional. Não foi fácil a vitória. Mais difícil será a sua consolidação.
Interêsses pessoais de alguns, interesses políticos de outros, vaidades aqui
e alhures não faltarão para macular os desígnios gloriosos das Fôrças
Armadas do Brasil.
Ao longo da História podemos contemplar na ruina das civilizações o
enfraquecimento dos grupos sociais, a divisão das famílias, a liderança do
individualismo, o ódio, a inveja, a ambição, a desconfiança, o egoismo, a
indiferença – e em consequência disso tudo o desabar dos impérios, o
extinguir-se das culturas e o desaparecimento das civilizações. Essa tem
sido a origem remota dos grandes cataclismas. Foi o destino da Grécia
e de Roma. É a lição triste da sua História.
No estudo das realidades nacionais e universais do nosso tempo, não basta
falar em idéias. Não basta falar em ideais. Não basta falar em cultura. Não
basta falar em Democracia. Não basta falar em nacionalismo. Não basta
falar em Civilização. É necessário saber o que significa cada uma dessas
coisas. As idéias e os ideais para nós se conjugam nas clareiras abertas
do Cristianismo. Os gregos e os romanos, nos momentos culminantes de

147
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

sua história, foram povos cultos mas nem sempre civilizados. Porque só
o Cristianismo civiliza os povos. E sómente à luz de seus princípios, nas
tradições de cada povo, se conceitua a verdadeira Democracia.
Ao sôpro de idéias extravagantes, oriundas de nações abaladas pela guerra,
temos recebido da Europa e de outros pontos do mundo nações erradas
e até criminosas sôbre nós e a nossa própria civilização. É o caso, por
exemplo, do nacionalismo, bandeira hoje desfraldada até mesmo por
aqueles que negam a Nação e sua própria Pátria.
Nós, estudantes de Direito, temos, acima de todos, o dever de empu-
nhar o lema da Lei, da Ordem e da Liberdade humana, contra tôdas as
tiranias negadoras do homem e da Civilização. Temos de ter a convicção
inabalável do direito e da justiça.
Não faltemos, pois, ao nosso Destino. Não faltemos à nossa Missão. Seria
um crime de lesa-Pátria.
Florianópolis, 06 de abril de 1964.” (O ESTADO, 10 abr. 1964, p. 01)

Nas fontes consultadas não foram localizados os nomes dos 120 estudantes
de direito que subscreveram o Manifesto, assim como não há registros da efetiva
divulgação dos outros dois textos supostamente escritos em nome do CAXIF.

3. Operação Limpeza: A Comissão de Inquérito inicia a caça aos comunistas


na Rua Esteves Júnior n. 11

Em maio de 1964, por força do Ato Institucional n. 1 – AI-1, foram insta-


ladas comissões de investigação sumária em todas as universidades e órgãos do
Poder Executivo, cujo objetivo era identificar os considerados “subversivos” para
eventuais exonerações e monitoramento. Era o início do “expurgo” da “revolução”.
As investigações estavam previstas no artigo 7º daquele Ato Institucional:
Art. 7º – Ficam suspensas, por seis (6) meses, as garantias constitucionais
ou legais de vitaliciedade e estabilidade.
§ 1º – Mediante investigação sumária, no prazo fixado neste artigo, os
titulares dessas garantias poderão ser demitidos ou dispensados, ou ainda,
com vencimentos e as vantagens proporcionais ao tempo de serviço,
postos em disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou
reformados, mediante atos do Comando Supremo da Revolução até a
posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto
presidencial ou, em se tratando de servidores estaduais, por decreto do
governo do Estado, desde que tenham tentado contra a segurança do
Pais, o regime democrático e a probidade da administração pública, sem
prejuízo das sanções penais a que estejam sujeitos.

Os trabalhos das comissões de investigações nas universidades foram regu-


lamentados pela Portaria n. 259, baixada pelo Ministro da Educação, Flávio Suplicy
de Lacerda, em 19 de abril de 1964, apenas quatro dias depois de sua posse no
MEC. A Portaria 259 determinava às universidades a instauração de inquéritos

148
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

administrativos, de modo que os reitores foram comunicados via telegrama em 22


de abril, devendo estes concluir os trabalhos em trinta dias (MOTTA, 2014, p. 51).

De acordo com Rodrigo Patto Sá Motta, a Portaria do MEC não era


muito detalhista no que dizia respeito ao funcionamento das comissões, sendo
que coube aos dirigentes de cada comissão local definir os parâmetros. A própria
denominação variou por entre as universidades. Na UFRGS foi denominada “Co-
missão Especial de Investigação Sumária”, na UFMG foi designada como “Comissão
de Sindicância”. Motta também afirma que os expurgos nas universidades e demais
órgãos públicos não respeitaram o direito de defesa e a presunção de inocência
dos indiciados, restando comuns casos de afastamentos por simples “presunção
de serem subversivos ou corruptos” (MOTTA, 2014, p. 51).

Os alvos das comissões nas universidades eram as pessoas com alguma


vinculação às organizações de esquerda, em especial o PCB, o PTB e a Ação
Popular. O objetivo era afastar das universidades principalmente os professores
que partilhassem de algum valor da esquerda ou mesmo uma ideologia mais
progressista (MOTTA, 2014, p. 56). Para Motta, instaurou-se um verdadeiro clima
de “caça às bruxas” e de exceção à medida que os procedimentos iam sendo
conduzidos nas universidades (MOTTA, 2014, p. 51). Era o expurgo da pretensa
“revolução salvadora”.

Na UFSC, após a “sugestão” do Ministro Suplicy de Lacerda, a comissão foi


instalada em 02 de maio de 1964 pelo reitor em exercício Luiz Osvaldo D’Acam-
pora, sendo nomeado como presidente o desembargador e professor Vitor Lima,
que era da Faculdade de Economia e da Faculdade de Direito, juntamente com
os professores Ernesto Bruno Cossi, da Escola de Engenharia Industrial, e Antônio
Moniz de Aragão, da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Serviço Social16.
Ficou designada como “Comissão de Inquérito”.

De acordo com Bandeira Vargas, os nomes dos professores para a com-


posição da Comissão de Inquérito da UFSC foram escolhidos pelo Almirante
Murillo Vasco do Valle Silva, do 5º Distrito Naval, na época detentor da maior
patente militar em Santa Catarina (VARGAS, 2016, p. 32).

Algumas semanas antes do início dos trabalhos da Comissão, o CUN


deliberou pela instauração de uma Comissão que investigaria a FEUSC – Fede-
ração dos Estudantes da Universidade de Santa Catarina, órgão representativo
dos estudantes da Universidade, por suas atividades consideradas subversivas. A
entidade, que futuramente seria substituída pelo Diretório Central dos Estudantes
– DCE nos termos da Lei Suplicy, era então presidida pelo estudante de direito
Francisco Mastella, que se encontrava preso desde o golpe, e o vice-presidente
16 Esta Comissão foi instaurada pela Portaria n. 0079/64, do Gabinete do Reitor.

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JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

era o estudante Walmir José Antônio da Silva, também da Faculdade de Direito.


Após o golpe, o reitor Ferreira Lima queria cassar sumariamente toda a direção
da entidade estudantil, mas, após debates na sessão do CUN e com a intervenção
do professor de direito Waldemiro Cascaes, que considerava extrema a sugestão
do reitor, os estudantes não foram cassados. Por sugestão de Cascaes, criou-se,
então, uma Comissão para investigar a FEUSC, garantindo aos estudantes o direito
ao contraditório e defesa17.

Essa Comissão do CUN restou presidida pelo professor Miguel Manganelli


Orofino, da Faculdade de Odontologia, e contou com a participação do professor
Bruno Ernesto Cossi, da Escola de Engenharia Industrial, e do professor e ex-diretor
da Faculdade de Direito Abelardo Assumpção Rupp. Garantido por maioria o
direito de defesa ao estudante Walmir José Antônio da Silva em 48 horas, este
abriu mão da defesa após a Comissão apresentar parecer pelo seu afastamento.
Para Bandeira Vargas, esta Comissão foi o ensaio para a “caça às bruxas” na UFSC
sob o comando de Vitor Lima (VARGAS, 2016, p. 31).

Já a Comissão de Inquérito do Ato Institucional, por sua vez, iniciou os


trabalhos no dia 5 de maio de 1964, em uma sala do antigo Palácio da Reitoria,
que ficava localizado na Rua Bocaiúva, no centro de Florianópolis. De início, a
Comissão expediu uma série de ofícios aos diretores das faculdades e às au-
toridades militares da cidade, solicitando a remessa de informações acerca de
atividades subversivas.

A Faculdade de Direito e seus dois últimos diretores – Henrique Sto-


dieck e Waldemiro Cascaes – estiveram no centro das atenções da Comissão
de Inquérito da UFSC. Para alguns professores, incluindo o reitor Ferreira Lima,
e para as autoridades militares, a Faculdade de Direito era a “mais contaminada
pelo esquerdismo reformista revolucionário”, sendo que a causa de tal fato era
atribuída aos professores Stodieck e Cascaes, que estariam resistindo ao expurgo
da “revolução” e acobertando estudantes subversivos. Para os militares, sob a
batuta de Stodieck, a ordem dominante na Faculdade de Direito era “agitação
e mais agitação”.18

A ficha conceito19 de Stodieck o classificava como “esquerdista” e estimu-


lador de ações subversivas dos estudantes mesmo antes da “revolução”, possuindo
grande influência sobre os estudantes e professores progressistas, tendo sido o
responsável direto por incitar o CAXIF e a UCE a pedirem intervenção do MEC na

17 Arquivo Central da UFSC, Livro de Atas do CUN;


18 Informações presentes na Ficha Conceito de Henrique Stodiek, documento confidencial. Arquivo Nacional,
Fundo SNI, referência ARJ ACE 18001-68.
19 Uma espécie de resumo individual feito pelas autoridades policiais militares sobre as atividades políticas de
alguma pessoa.

150
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

UFSC em 1963. Segundo os organismos de segurança, Stodieck havia transformado


a Faculdade num verdadeiro “palco de conferências de agentes da subversão”:
Houve até incidentes em determinada solenidade, da qual fez parte da
mesa, que presidiu os trabalhos, o Sr. VIDALVINO DA ROSA, comunista e
líder sindical, como integrante da Frente Operário Estudantil. Nessa ocasião
um dos professores retirou-se em sinal de protesto. Comandaram greves
contra o que pudesse dar motivo a essa medida extrema ou contra o
que a UNE determinasse. É bem verdade que houve resistência a algumas
determinações da UNE, mas, simultaneamente, isso pouco acontecia.
Promoveram comícios, passeatas e conferências de líderes esquerdistas,
quase sempre no Salão Nobre da Faculdade de Direito, sob a compla-
cência dos Diretores e Vice-Diretores, Professores HENRIQUE STODIECK
e WALDEMIRO CASCAES (fls. 18). A Faculdade de Direito era, entre as
demais, a mais contaminada pelo esquerdismo reformista revolucionário,
Aliás, em grande parte, cabe a responsabilidade à atual direção, que, até
agora, resistiu ao expurgo da Revolução.20

O clima “subversivo” da Faculdade e o consentimento de seus diretores


não passariam em branco pela Comissão presidida pelo desembargador Vitor
Lima. Além dos diretores da Faculdade de Direito, outro professor de direito seria
um dos alvos principais da Comissão. Era o professor José do Patrocínio Gallotti,
desembargador aposentado e professor livre-docente de teoria geral do direito
na Faculdade de Direito. O professor Gallotti, que vinha lecionando na Faculdade
de Ciências Econômicas, era tido pelos órgãos de segurança como “o comunista
mais antigo e mais atuante do Estado”21 e, desde o golpe, estava detido no 14º
Batalhão de Caçadores22. Rogério Queiroz lembra que a presença do professor
Gallotti nas reuniões e manifestações pública da UCE era uma constante23.

Para viabilizar o trabalho da Comissão no pouco tempo dado pelo MEC,


os membros resolveram dividir os trabalhos por Faculdade e casos mais graves,
cada um com um processo individual e um relator específico. Deste modo, o
professor Gallotti foi investigado através do Processo n. 01/1964, cujo relator era
o professor Antônio Moniz de Aragão, e a Faculdade de Direito seria investigada
no Processo n. 02/1964, de relatoria do professor Ernesto Bruno Cossi24.

O movimento estudantil também estava no centro das atenções da


Comissão. No dia 20 de maio, a Comissão enviou ofício ao reitor Ferreira Lima
solicitando informações sobre os presidentes da FEUSC, da UCE e do CAXIF,
que eram, respectivamente, os estudantes de direito Francisco Mastella, Rogério

20 Arquivo Nacional, Fundo SNI, referência ARJ ACE 18001-68.


21 Arquivo Nacional. Fundo SNI, referência AC ACE SEC 1840-69
22 Arquivo Central da UFSC. Fundo Procuradoria, pasta Sindicância, Ofício n. 56/1964.
23 Depoimento à Comissão Estadual da Verdade, Memória e Justiça da Assembleia Legislativa de Santa Catarina,
Relatório Final.
24 Arquivo Central da UFSC. Fundo Procuradoria, pasta Sindicância.

151
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

de Queiroz e Eduardo Luiz Mussi, todos ainda presos naquela ocasião, acusados
de subversão e ligações diretas com a UNE. Além destes, estavam presos os
estudantes de direito Luiz Henrique da Silveira e Carlos Adauto Vieira25, detidos
após o golpe sob as mesmas acusações que os colegas.

De acordo com os documentos da Comissão de Inquérito, outros profes-


sores e estudantes da Faculdade de Direito foram investigados. Entre os professores,
estavam Aldo Ávila da Luz, que lecionava direito civil, o assistente dessa mesma
cadeira, professor Dalmo Bastos Silva, além do professor Telmo Ribeiro, que lecio-
nava direito constitucional. Nos arquivos do SNI, o professor Telmo era descrito
como um membro destacado do PTB de Florianópolis, tendo participado da Liga
da Emancipação Nacional em 1954, bem como do Comitê de Santa Catarina da
Campanha Pró-Reformas de Base em 1963, juntamente com o então deputado
estadual Evilásio Nery Caon26.

Além dos estudantes presos, também foram investigados na Faculdade


de Direito os estudantes Ivo Eckert e Orestes Vidal Guerreiro. O professor Aldo
já havia passado alguns dias na prisão após o golpe por conta de sua atuação
como juiz, conforme recorda seu genro Ernani Bayer, ex-aluno da Faculdade de
Direito e posteriormente reitor da UFSC (VARGAS, 2016, p. 57).

A Comissão de Inquérito contou com o apoio do reitor João David Fer-


reira Lima, que prestou informações sobre o professor Stodieck, seu desafeto27.
Em 15 de maio, o reitor enviou à Comissão o Ofício n. 863/1964, no qual relatava
as atividades subversivas das quais tinha conhecimento. O relatório é bastante
econômico sobre a maioria das Faculdades da Universidade, mas, com relação à
Faculdade de Direito, é rico em detalhes e informações.

Sobre os possíveis atos de subversão nas Faculdades, dizia o reitor no ofício


que “com exceção do Diretor da Faculdade de Direito, que constituirá um capítulo
especial da nossa exposição, contra os demais nada sabe esta Reitoria”. Em sua
explanação sobre o professor Stodieck, Ferreira Lima começava afirmando que o
diretor da Faculdade de Direito teria faltado com a verdade em um ofício enviado
à Comissão, no qual dava explicações acerca de uma solenidade de Formatura:
Afirma o Diretor que na solenidade de colação de grau da turma de
Bacharelandos de 1963, ‘no discurso então promovido nada encontrei
que poderia ser denominado subversivo’.

25 Arquivo Nacional. Fundo SNI, referências BR DFANBSB AAJ IPM 0020 e AC ACE 81987-75-002.
26 Arquivo Nacional. Fundo SNI, referência AC ACE 96304-65.
27 No Arquivo Central da UFSC há o Relatório n. 08 da Comissão de Inquérito, datado de 19 de maio de 1964,
na parte do arquivo referente ao Gabinete do Reitor. Este relatório detalha as atividades do diretor Henrique
Stodieck e dos estudantes do CAXIF no período pré-Golpe.

152
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Não é, absolutamente, verdadeira a afirmação. O discurso do acadêmico


orador da turma foi de caráter subversivo, tanto que a Professôra Cecília
Colombina Moniz de Aragão, que tinha assento no Doutoral, retirou-se
do recinto e, segundo fomos informados, por não concordar com os
termos o discurso.

E o reitor continuava com a delação do seu desafeto, frisando a sua


complacência com a subversão entre os estudantes da Faculdade:
É público e notório que os órgãos estudantis FEUSC, UCE e Diretório
da Faculdade de Direito [CAXIF], cujos presidentes foram ou ainda estão
presos pelas autoridades militares, mantinham íntima ligação com a UNE,
acompanhando e aprovando a política subversiva daquele órgão estudantil.
E tanto foi assim que, em Florianópolis, foi realizado um Congresso da
UNE e, aqui estiveram, proferindo conferências os Srs. Leonel Brizola e
Pe. Alípio, sendo que o citado congresso, conforme confirmou o próprio
Diretor, foi realizado na Faculdade de Direito. Parece-nos de toda conve-
niência que essa Comissão solicita ou consiga o temário de tal congresso.

Mencionava, também, a posição favorável de Stodieck à representação


estudantil na proporção de 1/3 nos colegiados, pauta que vinha sendo defendida
pela UNE:
Na campanha nacional de participação de 1/3 dos estudantes em todos
os órgãos de deliberação coletiva, quer da Universidade, quer das Faculda-
des, o Diretor colocava-se imediatamente ao lado dos estudantes. Assim,
a Faculdade de Direito deu logo aquela participação aos estudantes na
sua Congregação.

Ferreira Lima também usou do Ofício para “relembrar” o episódio da


tentativa de intervenção na Universidade, no qual os acadêmicos da UCE e
do CAXIF acionaram o MEC com denúncias contra a Reitoria no ano anterior,
1963. Para Ferreira Lima, era clara a ingerência direta do professor Stodieck com
a participação dos acadêmicos Francisco Mastella e Otávio Ferrari Filho.

Relatava no Ofício:
[...] os mesmos acadêmicos da UCE e do Diretório da Faculdade de Direito
e, em seguida, da UNE, enviaram denúncia contra a Reitoria ao Presidente
da República, Ministro da Educação e Cultura e Conselho Federal de
Educação, pedindo intervenção na Universidade e nomeação de Reitor
pro-tempore. Estes pedidos foram feitos subrepticiamente e deles só
tivemos conhecimento quando baixados em diligência para informações
e quando aqui esteve, a mando do então Ministro Júlio Sambaquy, o
Consultor Jurídico do MEC, Sr. Álvaro Alvarez Campos. Este permaneceu
vários dias nesta capital, sempre em contato com os estudantes daqui
e os do Congresso da UNE que se realizava, e, não mantendo nenhum
entendimento oficial conosco a quem, apenas encaminhou um ofício,

153
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

repetindo os mesmos tópicos e mais um da denúncia formulada pelos


estudantes.

Para o professor Ferreira Lima, o pedido de intervenção estava dentro de


um esquema maior de subversão da ordem, “quebra de autoridade e inversão dos
princípios dominantes”. Do relatório constou, ainda, a permissão de Stodieck para
que fosse pendurada na fachada da Faculdade de Direito a faixa com os dizeres
“Queremos intervenção na USC”, além da suspensão das aulas na Faculdade, por
ordem de Stodieck, logo após o “movimento revolucionário”.

O Ofício também mencionava um fato curioso: “Finalmente, é de estranhar


que o Diretor não saiba que o acadêmico Luiz Carlos Mussi foi preso por ordem
das autoridades em plena aula, na Faculdade de Direito”. Muito provavelmente,
o reitor se referia ao presidente do CAXIF, Eduardo Luiz Mussi, ou ao secretário
da entidade, Alexandre Luiz Müller, ambos presos depois do golpe.

Ao se referir aos demais professores da Faculdade de Direito, Ferreira Lima


citava o professor José do Patrocínio Gallotti, que estava preso, e os professores
Aldo Ávila da Luz e seu assistente Dalmo Bastos Silva. Sobre os estudantes, o reitor
apenas reiterava as atividades do CAXIF consideradas subversivas, sugerindo que a
Comissão investigasse tais atividades mais a fundo através dos jornais estudantis.

Em que pesem as denúncias listadas pelo reitor e a sucessiva investigação


aos professores da Faculdade de Direito, nada ocorreu após a Comissão lavrar
parecer conclusivo sobre as atividades subversiva da Faculdade, sob relatoria do
professor Ernesto Bruno Cossi. Foram feitas apenas sugestões à Reitoria, visto que
a Comissão entendeu não ser sua competência a aplicação de quaisquer tipos
de sanções aos investigados, sugerindo tão somente que a Reitoria e o Ministério
da Educação avaliassem o que deveria ser feito a partir do parecer conclusivo.

Entretanto, o fim da Comissão não significaria o fim do embate entre


Ferreira Lima e Stodieck, muito menos que a Faculdade de Direito – seus alunos
e professores – deixaria de ter atenções especiais das autoridades militares. Muito
pelo contrário.

Diferentemente do que ocorrera no parecer referente aos professores da


Faculdade de Direito, a Comissão não teve o mesmo entendimento com relação
ao professor Gallotti, livre-docente de teoria geral do direito. Para este professor,
àquele tempo lecionando também na Faculdade de Ciências Econômicas, o
relator Moniz de Aragão não mediu palavras para confirmar as acusações pelas
suas “atividades subversivas”.

O relator do Processo n. 01/1964 da Comissão de Investigação da UFSC,


professor Moniz de Aragão, começava seu parecer citando a ficha policial do

154
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

professor Gallotti na Delegacia de Ordem Política e Social de Santa Catarina


– DOPS, na qual constava que “descrever todas a atividades do prontuariado
seria coisa impossível”, devido ao elevado número de atividades consideradas
subversivas28. Para o relator, as atividades de Gallotti eram defesas das “teses e
posições esquerdistas” em sala de aula ou a atuação como membro de um dos
“muitos disfarces do Partido Comunista”. Moniz de Aragão listava as atividades
“subversivas” do professor Gallotti, começando pela atuação como organizador
do Encontro Nacional em Solidariedade a Cuba, em 1961, na Capital. Acusava-o
de publicar no jornal “A Gazeta”, em 11 de setembro de 1963, um “convite ao
povo e às autoridades para ato público contra o Acordo militar Brasil-Estados
Unidos”. Segundo o relatório conclusivo, “em junho de 1964, membro do diretório
estadual provisório da Liga de emancipação nacional. A esta altura, dizemos, é
conveniente recordar o princípio pregado por Lenine do que ‘o nacionalismo é
a fase inicial de penetração do comunismo’”.

O relator também recordava de uma das conferências proferidas pelo


professor Gallotti na Faculdade de Direto, sobre materialismo histórico, na qual
teria ficado clara a sua posição doutrinária favorável ao marxismo, fato confirmado
pelo próprio Gallotti em sua defesa escrita perante a Comissão. Para deixar ainda
mais evidente a posição intelectual do professor Gallotti, lembrava o relator que,
em 29 de junho de 1957, ao fazer o concurso para professor da Faculdade de
Direito, teria o candidato se declarado como um “socialista-marxista”, fato este
também confirmado por Gallotti em sua defesa, tendo afirmado que não se
tratava se qualquer tipo de ilegalidade ou descumprimento de preceito legal.

Gallotti também era acusado de estar presente em todas as atividades


comunistas da cidade, inclusive “todos os movimentos estudantis e reuniões de
caráter ideológico comunista”, tendo frequentado reuniões políticas da UCE e
da Frente Operária Estudantil Popular. A evidência da participação e influência
direta do professor Gallotti na suposta “subversão” do movimento de Florianópolis
estava, também, segundo o relator, num presente que o professor havia dado ao
estudante de direito Carlos Adauto Vieira. Tratava-se de um livro de Frederich
Engels, de uma coleção sobre marxismo. O Relatório chega a transcrever a dedi-
catória do professor ao aluno: “Para o amigo Adauto de cuja inteligência, caráter
e capacidade de luta, muito espera o nosso grande povo, com um abraço de
José do Patrocínio Gallotti”.

Interessante observar na defesa escrita que o professor Gallotti, em mo-


mento algum, tentava esconder ou negar sua posição ideológica. Pelo contrário,
diante da Comissão se reafirmou como um marxista. Todavia, a defesa e a
desconstrução dos depoimentos dos delatores de Gallotti não foram suficientes

28 Arquivo Central da UFSC. Sindicância, Relatório Final do Processo n. 01/1964.

155
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

para a Comissão, a partir da indicação do relator Moniz de Aragão, sugerir a


exoneração do cargo de professor:
ISTO POSTO, considerando que o professor JOSÉ DO PATROCÍNIO
GALLOTTI é socialista-marxista confesso, considerando que pronunciou
conferências políticas na sede da União Catarinense de Estudantes, con-
siderando que em duas teses de concurso defendeu doutrinas maxis-
tas, considerando que profere suas aulas ‘também à luz do marxismo’
considerando que assinou pedido para a volta à legalidade do partido
comunista brasileiro, considerando sua intimidade com comunistas con-
fessor em manifestações públicas, considerando o seu comparecimento à
reunião da Frente de Mobilização Popular, na UCE, onde compareceram
estudantes e indivíduos provadamente comunistas, considerando tudo
quanto consta destes autos e que se relaciona com a intensa atividade
marxista do professor Gallotti, seja ostensiva, seja disfarçada,
CONCLUÍMOS,
1º) que o professor JOSÉ DO PATROCÍNIO GALOTTI não pode continuar
no exercício da cátedra já que, por seus atos e atitudes, feriu os princípios
do Ato Institucional. [...] 2º) que, por suas atividades, incorreu nos atos
e sanções previstos na Lei de Segurança nacional. Tendo em vista o que
se conclui no item 2º, deve ser encaminhada cópia dos presentes autos
ao Sr. Cel. Comandante do 14º Batalhão de Caçadores, que, com o seu
alto critério, determinará as providencias cabíveis.
Florianópolis, 9 de junho de 1964.
Antonio Moniz de Aragão, Pres. e Relator.

O Parecer foi seguido pelos membros suplentes da Comissão, professor


João Makowiecky, da Faculdade de Ciências Econômicas, e professor Gustavo
Zimmer, da Faculdade de Medicina. A Comissão sugeria ao reitor a avaliação do
caso do professor Gallotti para verificar a possibilidade de efetiva exoneração.

O professor Gallotti não foi exonerado do seu cargo na UFSC. No entan-


to, foi submetido a um IPM, juntamente com seu filho, o estudante de direito
Paulo Fragoso Gallotti, preso logo após o golpe (VARGAS, 2016, p. 40). O IPM
do professor Gallotti acabou virando denúncia oferecida pela Procuradoria à 5ª
Auditoria Militar em Curitiba29. No processo constam os nomes dos delatores de
Gallotti. O professor Nereu do Vale Pereira estava entre aqueles que depuseram
e assinaram documentos acusando Gallotti, juntamente com Darcy Brasiliano dos
Santos, que assinou documento afirmando que o professor Gallotti fazia “prega-
ção comunista”, fugindo totalmente do conteúdo das aulas e descontentando
os alunos. Nereu havia liderado o grupo que incendiou livros da Livraria Anita
Garibaldi após o golpe.

29 Supremo Tribunal Federal, Habeas Corpus n. 42.756, de Curitiba, impetrante Fernando José Caldeira Bastos,
paciente José do Patrocínio Gallotti.

156
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Depois de ficar preso praticamente por três meses, Gallotti foi solto e
passou a responder o processo militar em liberdade. O Habeas Corpus que ga-
rantiu a liberdade foi impetrado, curiosamente, pelo professor da Faculdade de
Direito e advogado Fernando José Caldeira Bastos perante o STF, que entendeu
não configurar qualquer tipo de infração penal a acusação de ser um marxista
confesso30. Ex-aluno da Faculdade de Direito, Caldeira Bastos seria eleito deputado
estadual pela Arena em 1967 e reeleito em 1971. Também ocupou cargos de
secretário de estado nos governos de Antônio Carlos Konder Reis (1975-1979)
e Jorge Bornhausen (1979-1982), ambos também da Arena31.

No Arquivo Central da UFSC não consta cópia do relatório final do Pro-


cesso n. 03/1964, referente à Faculdade de Direito. Há tão somente o Relatório
Geral da Comissão e o Relatório Final do Processo n. 01/1964, que investigou o
Professor Gallotti.

O Relatório Geral da Comissão de Investigação da UFSC foi lavrado no


dia 18 de junho de 1964, na Sala das Sessões da Reitoria. Foram indiciados seis
professores32 e dois funcionários depois de ouvidas 98 testemunhas e com a
colaboração da maioria dos diretores das faculdades, do Reitor e das autoridades
militares.

Faziam os membros da Comissão, no Relatório Geral, um “apelo” ao reitor


Ferreira Lima:
Fica, no entretanto, o apêlo ao Magnífico Reitor, para que conhecendo,
pelos mencionados relatórios parciais, a exata da vida Universitária Ca-
tarinense, possa determinar providências que facultam à nossa Universi-
dade sua integração no verdadeiro espírito universitário, qual o voltado,
exclusivamente, a assuntos de natureza técnica-científica.

A Comissão encerrava suas atividades na UFSC e concluía a primeira etapa


da “operação limpeza”, que tomou conta da maioria das universidades públicas
do país, garantindo um dos primeiros intentos dos militares: neutralizar um dos
locais de maior incidência das ideias de esquerda (MOTTA, 2014, p. 61). As
comissões espalhadas pelo país indiciaram, perseguiram e cassaram professores e
estudantes, garantindo o “expurgo da revolução”. Entretanto, não foi o suficiente,
inclusive na UFSC.

3. Considerações finais

A partir da presente pesquisa histórica, encontrou-se um cenário bastante


peculiar na Faculdade de Direito da UFSC em 1964 durante a instalação e de-
30 Idem.
31 CÂMARA DOS DEPUTADOS. Deputados brasileiros. Repertório (1983-1987).
32 Não há no Arquivo Central da UFSC os nomes de todos os indiciados.

157
JURISTAS E DITADURA: A ATUAÇÃO POLÍTICA DOS PROFESSORES DA FACULDADE DE DIREITO DA UFSC
DURANTE A DITADURA MILITAR (1964-1969)

senvolvimentos dos trabalhos da Comissão de Inquérito. Como diziam os órgãos


de segurança, a Faculdade de Direito da UFSC era “a mais contaminada pelo
comunismo” ou, ainda, era a “Faculdade que zombava da ‘Revolução’ de 64”.33

Viu-se que, no corpo docente, houve forte resistência ao golpe, inclusive


institucionalmente, vez que o diretor Henrique Stodieck suspendeu as aulas da
Faculdade por uma semana em sinal de repúdio ao golpe de estado e, juntamen-
te com o professor Waldemiro Cascaes, permitiu que continuassem ocorrendo
debates e conferências organizadas pelos estudantes no âmbito da Faculdade.

Entre os estudantes, igualmente houve resistência. Congregados através do


Centro Acadêmico XI de Fevereiro, o corpo discente logo se colocou contra o
golpe, lançando manifestos e tomando as ruas em várias ocasiões. Os estudan-
tes membros do CAXIF, além disso, participaram ativamente das manifestações
públicas contra a ditadura nas ruas de Florianópolis, além de tomarem parte nos
congressos clandestinos organizados pela UNE.

A resistência teve como consequência imediata a perseguição política


e os professores de direito entusiastas do novo regime se valeram da legislação
de exceção (o Ato Institucional n. 1) e da Comissão de Inquérito para perseguir
seus desafetos políticos dentro da Universidade e da Faculdade. Estudantes e
professores de direito foram presos, responderam a inquéritos administrativos
sumários e foram indiciados em inquéritos militares.

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33 Arquivo Nacional. Fundo SNI, referências APA ACE 11305 85 e ACT ACE 3134-82.

158
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

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Arquivo Nacional (acervo do SNI).
Hemeroteca da Biblioteca Pública de Santa Catarina.
Site de Portarias da UFSC.

159
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE


IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

DANLER GARCIA SILVA


Universidade Federal de Uberlândia

Resumo
O escopo desta pesquisa é o exame concernente a natureza jurídica dos
delitos de abuso de liberdade de imprensa no Direito Penal do Brasil Império,
que se desvela, por sua vez, uma temática significativa em virtude da ausência
de estudos jurídico-dogmáticos que averiguam esta circunstância singular. A
partir da investigação realizada à fontes históricas e literaturas atuais, estudos
clássicos e hodiernos, vale dizer, doutrinas, anais da assembleia constituinte
do Império, revista jurisprudencial do quartel estudado, bem como trabalhos
de distintas áreas do conhecimento para além do jurídico, é passível de se
examinar uma condição específica da organização político-jurídica brasileira.
Por conseguinte, partindo da premissa de que o Código Criminal do Império,
sancionado em 1830, estava subdivido em quatro partes – Dos Crimes e das
Penas, Dos Crimes Públicos, Dos Crimes Particulares e Dos Crimes Policiais –,
constata-se a disparidade de autores do período no que concerne a conceituação
dos delitos de abuso de liberdade de imprensa, qualificando-os como crime
ordinário, crime político, crime particular, bem como sui generis.

Introdução

A história do Brasil e a história da imprensa brasileira estão entrelaçadas e


possuem uma relação de contiguidade, uma vez que a historicidade da imprensa
pátria está concatenada à democracia nacional e à cidadania, não sendo passível
de estudá-la historicamente sem atrelá-la à historicidade política, econômica, social
e cultural do país.

Previamente à independência brasileira, o governo português, instalado no


país por razões de invasão de tropas napoleônicas à Península Ibérica, promoveu
a fundação de prelos e tipografias em terras nacionais, concebendo a circulação
do primeiro jornal de língua portuguesa no continente americano, o jornal Ga-
zeta do Rio de Janeiro (MELO, 2003, p. 31). Por consequência, uma vez originada
uma tipografia nacional, produziu-se não somente o jornal Gazeta, mas toda a
documentação governamental, bem como diversos textos populares; contudo, a
censura, atrelada ao controle governamental, era uma máxima e garantiu a centra-
lização da produção e circulação dos impressos brasileiros desde a conjunção da
tipografia nacional até o ápice da independência do país (OLIVEIRA, 2011, p. 132).

161
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

A independência, por sua vez, incitou vigorosamente a produção im-


pressos, concebendo o progresso e a otimização da imprensa, bem como sua
utilização como dispositivo político. Por conseguinte, partindo-se do pressuposto
da influência que a imprensa detém sobre a sociedade civil, intervindo em sujeitos
e mobilizando grupos, a historicidade brasileira assevera a instrumentalização da
imprensa como condição de difusão de ideais, tornando-se, outrossim, um aparato
ideológico (OLIVEIRA, 2011, p. 133).

Ora, por ser fonte de conhecimento e compartilhar convicções, por muito


tempo a legislação brasileira assegurava a vedação de escritos contra o Imperador
e sua família, a Constituição, a forma de governo estabelecida, a religião oficial do
Império e a moral e os bons costumes do período. Os impressos deveriam ser
assinados pelo redator e as provas tipográficas deveriam ser submetidas ao pro-
curador da Coroa, sendo a liberdade de imprensa, constitucionalmente garantida,
reputada uma ilusão (PIERANTI; MARTINS, 2006, p. 4).

Por conseguinte, a imprensa se evidencia por ser um dispositivo de trans-


fusão de informações e ideais, não sendo indiferente aos episódios e incidentes
da ordem social ou permanecendo à margem da realidade ao qual está atrelada.
Outrossim, por ser mediadora da opinião pública, difundindo assertivas que versam
sobre a vida política, econômica e social, a imprensa se assegura como um meio
de controle de interesses que serve, também, para ingerir-se na ordem social.

Seja como fonte ou objeto de pesquisa, a imprensa tem se desnudado uma


relevante ferramenta e personagem para o estudo do investigador. Isto posto, este
trabalho detém o escopo de examinar a disparidade de concepções concernente
aos delitos de abuso de liberdade de imprensa no Direito Penal do Brasil Império.
Ora, qual seria a natureza jurídica dos delitos de abuso de liberdade de imprensa?
Estes delitos, por sua vez, deter-se-iam tão somente uma única condição? Qual
é a conjuntura histórica e o contexto político-social em que estes delitos foram
emanados e permaneceram incorporados? Esta pesquisa, por seu turno, possui
o intento de aclarar estas problemáticas.

Por intermédio do elenco de autores que aludem os delitos de imprensa


em suas obras, bem como os abusos da liberdade de expressão e comunicação, é
possível de se examinar um debate acerca da natureza jurídica deste delito. Ora,
uma vez que os princípios dos delitos de imprensa estão devidamente prescritos
na Parte Primeira do Código (arts. 7º a 9º), as espécies deste crime estão tipifica-
das ao longo de todo o texto, vale dizer, Parte Segunda, Terceira e Quarta. Por
consequência, autores e personagens os qualificam como crime ordinário, crime
político, crime particular, ou até mesmo sui generis.

162
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Por conseguinte, assevera-se a originalidade desta pesquisa por examinar


esta problemática por intermédio de uma metodologia histórico-jurídica, uma vez
que, os trabalhos hodiernos que aludem sobre os delitos de imprensa, precipu-
amente no período proposto, vale dizer, Brasil Império, o realizam tão somente
sob uma perspectiva histórica. As pesquisas e conclusões de Nunes (2010) e
Costa (2013), por exemplo, ainda que de fato possuam valiosa relevância para a
pesquisa aqui ofertada, não atrelam este objeto de investigação, isto é, delitos de
abuso de liberdade de imprensa e seus desdobramentos e pormenores, sob uma
perspectiva também dogmático-jurídica, mas não mais que histórica.

Partindo desta crítica, esta pesquisa se revela relevante, ademais, pelo fato
de examinar uma condição específica da organização político-jurídico brasileira
e, por meio de uma investigação histórico-jurídica, possui-se o intento de revelar
a dialética constituída neste momento, que se valeu de uma dogmática e teoria
divergentes. Ao se investigar o âmago deste quartel, tem-se o escopo de explorar
e compreender a natureza deste delito, bem como a concepção do período
acerca da natureza do mesmo.

Isto posto, a metodologia desta pesquisa se amparou em investigações


à fontes históricas atreladas à literaturas atuais e interdisciplinares. Recorreu-se à
doutrinas jurídicas, anais da assembleia constituinte do Império; outrossim, no
que versa à literatura, empreendeu-se investigação à estudos de diversas áreas do
conhecimento para além do jurídico, concebendo a investigação de trabalhos que
versam as asserções da liberdade de imprensa. O exame empreendido concernente
a temática referida, em obras clássicas e hodiernas, tornam-se relevantes por suscitar
um forte mecanismo de problematizações sobre a condição nacional supracitada.

Como fontes históricas, as obras clássicas de Alves Júnior (1864), Barroso


(1866), Bueno (1857), Pessoa (1877), Ramos Junior (1875), bem como Souza
([1872] 2003), concatenadas às literaturas hodiernas de Nunes (2010), Costa (2013)
e Zaffaroni (2003) são alicerces medulares para esta pesquisa.

Outrossim, no que concerne a legislação, possui-se como pilar o Código


Criminal do Brasil Império (1830) e seus respectivos artigos que aludem sobre os
delitos de abuso de imprensa abrangidos por todas as quatro partes do Código
– Dos Crimes e das Penas, Dos Crimes Públicos, Dos Crimes Particulares e Dos
Crimes Policiais –, bem como a Lei de 20 de setembro de 1830 – Sobre o abuso
da liberdade de imprensa.

1. Os delitos de Imprensa no Direito Penal Imperial

Neste segmento da pesquisa, dar-se-á procedência sobre a discussão, re-


sultados e pormenores logrados por meio de três blocos específicos, tais quais, a

163
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

conjuntura histórica e o código criminal do Brasil Império, o debate constitucional


e os anais da assembleia constituinte concernente aos delitos de abuso de liber-
dade de imprensa, bem como o debate jurídico-penal dogmático concernente
aos delitos de abuso de liberdade de imprensa.

1.1 Conjuntura histórica e o Código Criminal do Brasil Império

Neste fragmento da pesquisa se detém como escopo desvelar a conjun-


tura histórica e o contexto político-social do Brasil Império e seus pormenores,
vale dizer, detém-se como fito discutir a Independência, a Constituição Imperial
de 1824, o Código Criminal do Brasil Império e seus reflexos no que concerne
aos delitos de abuso de liberdade de imprensa.

Possuindo como procedência as Ordenações Manuelinas, bem como de-


tendo resquícios das Ordenações Afonsinas, as Ordenações Filipinas, promulgadas
por Filipe II (III, da Espanha) e ratificadas por D. João IV, integraram-se à cultura
jurídica brasileira integralmente. Vigendo no Brasil até a promulgação do Código
Penal de 1830, o Livro V das Ordenações Filipinas, que versava sobre o Direito
Penal e Processual Penal, constituiu um dos pilares do Direito Penal português e,
consequentemente, também à cultura penal brasileira. Nas ordenações, a salva-
guarda da utilização da pena de morte era uma constante e o rigor do controle
exercido por meio do terror era uma máxima.

Em 1822 o Brasil torna-se independente; por conseguinte, nos dois primeiros


anos após a Independência, o debate político convergia-se na problemática da
elaboração e ratificação de uma Constituição essencialmente brasileira. Embora
a ideia da formação e institucionalização de uma assembleia constituinte, encar-
regada de engendrar a Constituição, já estivesse outrora presente mesmo antes
da Independência do Brasil, a Constituinte somente se concretizou efetivamente
no Rio de Janeiro em maio de 1823. Por conseguinte, assevera Eduardo Romero
de Oliveira (2005, p. 59):
As reuniões da Assembleia durante o ano de 1823 formularão os termos
jurídicos da nova sociedade civil e dos poderes políticos, inclusive a au-
toridade do Imperador. Foi preciso admitir a liberdade política dentro do
novo governo, mas também coordená-la com o princípio de um poder
supremo, depositado na pessoa do monarca.

Os membros da assembleia constituinte possuíam um posicionamento


liberal, defendendo uma forma de governo monárquico-constitucional, determi-
nando limites ao poder do Imperador, bem como tutelando direitos individuais.
Por consequência, manifestou-se discórdias entre os membros da assembleia e
Dom Pedro I no que tange às atribuições de cada Poder. Os tempos eram de
incerteza política. Todavia, ressalva-se a relevância da imprensa neste contexto,

164
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

visto que se desnudava como uma prestigiosa ferramenta de ordem política. Não
sem razão, Andréa Slemian (2007, p. 44, Grifo meu) assevera:
Deve-se notar que os trabalhos da Assembléia aconteciam em meio a uma
forte politização dos espaços públicos. Tal fenômeno não se circunscrevia
apenas à Corte, mas se estendia a outras localidades, em especial as que
haviam vivido intensamente a experiência de adesão às Cortes e instalação
das Juntas de Governo. Nesse sentido, destaca-se o papel da imprensa
que, a despeito das perseguições aos escritos mais radicais, revelava-se uma
das principais armas do jogo político então em andamento. Grande parte
dos publicistas acompanhavam passo a passo os trabalhos constituintes,
emitiam opiniões e mobilizavam a sociedade.

Com a dissolução da assembleia constituinte por Dom Pedro I por razões


de desavenças políticas, o Imperador foi responsável por conceber um Conselho
de Estado responsável por realizar um novo projeto de Constituição. Isto posto,
Dom Pedro I outorgou a Constituição Imperial em 25 de março de 1824, não
sendo esta referendada pelo Poder Legislativo. Todavia, a Constituição não divergia
drasticamente das propostas dos membros da assembleia. A Constituição Impe-
rial foi a primeira e única a viger durante o Império, bem como a mais longa a
vigorar dentre a as sete que o Brasil possui.

Uma vez que a Constituição do Império foi outorgada, vale dizer, emanada
“de cima para baixo”, sendo imposta pelo Imperador ao povo, ressalva-se que
aplicava-se tão somente aos homens brancos e mestiços que detinham direitos
da vida política. Os escravos encontravam-se excluídos dos dispositivos jurídicos.

A Constituição Imperial, cuja redação final permaneceu a cargo de José


J. Carneiro de Campos, organizou os poderes, determinando atribuições e justi-
ficando um governo monárquico, constitucional e hereditário; assegurou direitos
individuais, liberdades públicas, como a liberdade de religião – embora a religião
oficial permanecia a Católica – e a liberdade de manifestação e pensamento,
bem como aboliu a tortura e as penas cruéis. Por fim, estabeleceu-se o Poder
Moderador1, que atuaria como Poder intervencionista aos demais poderes, assegu-
rando a salvaguarda do Estado em hipóteses de ameaça à ordem público-política.

1 De acordo com Boris Fausto (1995, p. 152), “o Poder Moderador provinha de uma idéia do escritor francês
Benjamin Constant, cujos livros eram lidos por Dom Pedro e por muitos políticos da época. Benjamin Cons-
tant defendia a separação entre o Poder Executivo, cujas atribuições caberiam aos ministros do rei, e o poder
propriamente imperial, chamado de neutro ou moderador. O rei não interviria na política e na administração
do dia-a-dia e teria o papel de moderar as disputas mais sérias e gerais, interpretando “a vontade e o interesse
nacional”. No Brasil, o Poder Moderador não foi tão claramente separado do Executivo. Disso resultou uma
concentração de atribuições nas mãos do imperador. Pelos princípios constitucionais, a pessoa do imperador
foi considerada inviolável e sagrada, não estando sujeita a responsabilidade alguma. Cabia a ele, entre outros
pontos, a nomeação dos senadores, a faculdade de dissolver a Câmara e convocar eleições para renová-la e o
direito de sancionais, isto é, aprovar ou vetar, as decisões da Câmara e do Senado”.

165
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

Por consequência, evidencia-se que em seu artigo 179, Título 8º (Das Dis-
posições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros), a
Constituição reiterava princípios liberais, precipuamente em seu inciso II, quando
assegurava que nenhuma lei deveria ser decretada sem utilidade pública; e em seu
inciso III, quando se certificava da importância da irretroatividade da lei, no qual
se asseverou como um dos princípios do Direito liberal e humanista. O artigo
179, inciso XVIII, atestava ser imprescindível a organização de um novo Código
Civil e um novo Código Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e equidade.

A instabilidade política vivenciada pelo país posteriormente à Indepen-


dência resultou no debate e na necessidade de se estipular um novo Código
Criminal, essencialmente brasileiro, bem como adequado à insurgente realidade.
Não sem razão, Vivian Chieregati Costa (2011, p. 5) certifica-se de que:
A partir tanto das novas concepções de divisão de poderes, pacto social,
soberania etc., então em voga, quanto da recente situação política viven-
ciada pelo país, também a justiça penal seria repensada e reorganizada
consoante novos parâmetros. Para os primeiros legisladores brasileiros, a
antiga legislação penal já não fazia sentido e tinha que ser substituída.

Em 3 de junho de 1826, o projeto de Código Criminal pertencente ao


deputado José Clemente Pereira foi apresentado à Câmara. Em 4 de maio de
1827, o projeto do deputado Bernardo Pereira de Vasconcelos também foi apre-
sentado; em 16 de maio de 1827, o deputado José Clemente Pereira, mais uma
vez, apresentou seu projeto de Código, nesta ocasião modificado e adaptado em
conformidade com o parecer da Comissão de Legislação e Justiça Civil e Criminal.

Embora a conciliação entre os dois projetos de código criminal tenha


sido discutida, em 1829 a comissão responsável por perquirir os dois projetos
apresentados pelos deputados José Clemente Pereira e Bernardo Pereira de Vas-
concelos decidiu-se por este último. Isto posto, Eugenio Raúl Zaffaroni (2003, p.
428) certifica-se de que:
É um equívoco recorrente na historiografia jurídica brasileira tomar o
código imperial de 1830 como produto da conciliação de dois projetos,
o de José Clemente Pereira e o de Bernardo Pereira de Vasconcelos.
Na verdade, Clemente Pereira apresentou à assembleia legislativa apenas
algumas bases para o futuro código, na sessão de 3 de junho de 1826.
[...] Entre setembro e dezembro de 1826, Bernardo Pereira de Vasconcelos
redige seu projeto de código penal em Ouro Preto, aonde se recolhera
para recuperar a saúde.

A comissão mista do Senado e da Câmara, incumbida de examinar os


projetos de código criminal, a partir do projeto de Vasconcelos estipulou inúmeras
alterações. O Código Criminal do Império do Brasil, alterando-se por intermédio
de debates e idas e vindas à assembleia legislativa do quartel, foi deferido em

166
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

outubro de 1830 na Câmara e em novembro no Senado, bem como sancionado


pelo imperador em 16 de dezembro de 1830, revogando o Livro V das Orde-
nações Filipinas (1603) no que concerne o Direito Penal – codificação criminal
e processual criminal portuguesa que permaneceu vigorando no Brasil mesmo
após sua Independência2.

O Livro V das Ordenações Filipinas foi reputado como uma legislação des-
conexa, bárbara e draconiana. Inovador, o Código Criminal do Império simbolizou
o rompimento concernente às penalidades suplicantes da legislação portuguesa
– penas de morte, esquartejamentos, torturas, açoites etc. – por dar primazia à
pena privativa de liberdade – encarceramento. “A aplicação generalizada da pena
de prisão, a partir do século XIX, foi fruto do ideário iluminista, dado o caráter
igualitário da penalidade de confiscar um direito comum, a liberdade, de todos
os que haviam sido elevados à categoria de cidadãos” (SALLA, 2006, p. 46).

No Código, as penalidades previstas encontravam-se em ordem crescente


de intensidade – perda e suspensão do emprego, multas, desterro, degredo, bani-
mento, prisão simples, prisão com trabalho, galés e condenação à morte (KOERNER,
2006, p. 208). A pena de morte foi drasticamente reduzida, sendo utilizada tão
unicamente aos casos de homicídio, latrocínio e insurreição de escravos3.

O Código abarcava quatro partes, vale dizer, Dos Crimes, e das Penas; Dos
Crimes Públicos; Dos Crimes Particulares e Dos Crimes Policiais, sendo cada parte
composta por títulos, capítulos e seções.

Todavia, considerado por diversos como detentor de índole liberal, visto


que não poderia destoar do liberalismo da Constituição de 1824, bem como
“inspirado nos princípios da Revolução Francesa e no direito clássico então em
voga na Europa” (GRINBERG, 2002, p. 145), “definitivamente, as promessas liberais
não poderiam cumprir-se numa sociedade escravista” (ZAFFARONI, 2003, p. 426).
Por consequência, revela-se o fracasso do discurso jurídico liberal brasileiro.

Ademais, outra incongruência encontrada no Código refere-se ao fato de


que o mesmo tornou-se prestigiado por suas investidas em criar um aglomerado
de princípios entrelaçados entre si que justificassem e circunscrevesse limites à
autoridade estatal, extirpando os resquícios do regime absolutista da Colônia, as
punições exacerbadas e o poder autoritário do Estado sobre os sujeitos, justificado
pelo princípio de que o rei era a encarnação da vontade divina. Contudo, estes
intentos não foram totalmente realizados, uma vez que regalias e desigualdades
2 Relevante se faz atestar que o Livro V das Ordenações Filipinas permaneceu a vigorar no Brasil mesmo após
a vigência do Código Criminal de 1830, uma vez que aquele detinha dispositivos no que tange ao Processo
Criminal. O Código de Processo Criminal brasileiro, por sua vez, é de 1832.
3 A extirpação da pena de morte aos crimes políticos é um fato relevante, visto que, à época, fugia às
concepções de crime lesa-majestade, nos quais eram punidos, precisamente, com pena capital.

167
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

permaneceram: delitos contra a honra – calúnia, injúria e ofensas sexuais – eram


instituídos com maior gravidade dependendo do sexo da vítima, bem como se
pertencente à família imperial ou caso fosse funcionário público (GRINBERG,
2002, p. 145).

O Código Criminal Imperial detinha indubitável originalidade no que tange


às matérias as quais versou, promovendo significativo impacto na Europa, uma
vez que vários profissionais e especialistas se dedicaram em conhecê-lo. Traduzido
ao vernáculo francês por Victor Foucher, o Código influenciou diretamente o
código penal espanhol de 1848, e, por conseguinte, indiretamente, muitas legisla-
ções latino-americanas, como o código argentino de 1868 e o paraguaio de 1880
(ZAFFARONI, 2003, p. 436; GRINBERG, 2002, p. 145). Ora, o Código Criminal do
Brasil Império foi um dos maiores códigos criminais latino-americano a possuir
notabilidade, bem como considerado um dos melhores promulgados no século XIX.

Por sua vez, um dos primeiros e primordiais intentos da câmara instalada


em 1826 para aludir sobre o Código Criminal do Império foi discutir uma lei
específica sobre os abusos da liberdade de imprensa. Embora o elaborador do
Código Criminal, Bernardo Pereira de Vasconcelos, era antagonista aos projetos
que ponderavam os abusos da liberdade de imprensa, uma legislação que regu-
lava tal tratativa foi aprovada na Câmara e enviada ao Senado nacional, o que,
por sua vez, retornou à Câmara com penas mais amenas. Em agosto de 1830 foi
aprovada e em 20 de setembro do mesmo ano ocorreu a sanção imperial da lei
que aludia sobre os abusos de liberdade de imprensa.

Todavia, o Código Criminal, promulgado em 16 de dezembro de 1830,


revogou a lei de 20 de setembro que se ocupava dos delitos de abuso de liberdade
de imprensa. Contudo, certifica-se de que grande parte dos artigos referentes aos
crimes de abuso de liberdade de imprensa do Código Criminal foram legislados sem
grande discrepância à lei de 20 de setembro, como é presumível de se apreender
aos casos de utilização da imprensa contra a Constituição, o sistema monárquico-
constitucional de governo, aos cultos ou à moral pública etc. (NUNES, 2010, p.
95). Por consequência, uma vez que o Código Criminal do Império estipulou as
tratativas que aludem sobre os abusos de liberdade de imprensa, estes estavam
regulamentados entre os crimes públicos, particulares e policiais. Não sem razão,
Costa (2013, p. 99) assevera que:
Passado pouquíssimo tempo de sua aprovação, foi promulgado, aos 16
de dezembro de 1830, o Código Criminal do Império do Brasil, que
englobou a competência relativa à questão do abuso da liberdade de
imprensa. Regulados entre os crimes públicos, particulares e policiais do
diploma penal imperial, os delitos relacionados ao abuso da liberdade de
imprensa foram ainda mais liberalizados pelo Código de 1830.

168
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Outrossim, salienta-se a originalidade do Código no que aborda os cri-


térios de autoria e participação nos delitos de abuso de liberdade de imprensa.
Zaffaroni (2003, p. 437) atesta que:
Também cabe mencionar a invenção da responsabilidade sucessiva nos
crimes de imprensa (arts. 7º e 8º), antes da lei belga que receberia as honras
do (falso) pioneirismo. Aqui a criatividade consistia em, homenageando o
valor liberal da imprensa, abrir parênteses na disciplina geral da co-autoria
e participação, para que apenas um responsável fosse reconhecido (autor
do escrito, impressor, gravador, litógrafo, editor, vendedor), preservando-se
a estrutura do jornal.

Isto posto, relevante foi encontrar, na Revista O Direito, um acontecimento


que versava sobre delitos de liberdade de imprensa, especificamente a relação de
responsabilidade, autoria e coautoria que a legislação do Império foi original em
assegurar. Por consequência, a Revista (1873, p. 384-385) assegura que:
O fim da lei é revestir de garantias a promettida liberdade de imprensa,
e ao mesmo tempo tornar certa a punição, evitando a evasiva e o jogo
que se daria entre todos quantos cooperassem para a publicação elo
artigo injurioso. Apprehendido o responsavel, nas condições que estabelece,
exclue a lei a autoria, porque já conhece o criminoso e tem firmado a
consequente responsabilidade, definindo o crime e comminando a pena
respectiva. [...] E tanto a responsabilidade de um faz desapparecer a de
outro, que, se assim não fôra, serião todos os classificados no artigo co-réos
ou complices, porque todos mais ou menos directamente concorrem para
que o crime se commetta. [...] É na obrigação que assenta o crime e não
no acto material da escripta ou assignatura do autor, que não se obrigou.

Este fragmento assevera, além do prestígio do Código Criminal do Império


em assegurar a liberdade de imprensa, a originalidade do mesmo em instituir este
novo preceito de responsabilidade aos crimes de abuso de liberdade de imprensa,
visto que tão unicamente um único responsável seria respaldado como tal. Desta
forma, preservar-se-ia não somente a estrutura do jornal, mas, também, o princípio
constitucionalmente garantido de comunicar os pensamentos, por palavras, escritos,
e publicá-los pela Imprensa, sem dependência de censura.

Por esta discussão, certifica-se a conjuntura histórica e contexto político-


social relevante e alvoroçado em que o país se localizava após todos os por-
menores provenientes da Independência, vale dizer, desde o fim do Livro V das
Ordenações Filipinas, até a promulgação do Código Criminal do Brasil Império e
seus desdobramentos no que tange aos delitos de abuso de liberdade de imprensa.
Isto posto, deduz-se o cariz político que este delito exerceu perante toda esta
problemática, bem como conjunção político-social em que o país se encontrara.

169
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

1.2. O debate constitucional e os anais da assembleia constituinte concer-


nente aos delitos de abuso de liberdade de imprensa

Neste fragmento da pesquisa se detém como escopo desvelar o debate


presente na doutrina constitucional, bem como no parlamento brasileiro da
assembleia constituinte do Brasil Império e seus desdobramentos e prelações
específicas no que tange os delitos de abuso de liberdade de imprensa.

A liberdade de imprensa estava constitucionalmente prescrita no artigo


179, parágrafo IV, da Constituição Política do Império do Brasil, quando se asse-
gurava que todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos,
e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam
de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos,
e pela fórma, que a Lei determinar.

O jurista Pimenta Bueno, em sua doutrina que versava o Direito Consti-


tucional e exame da Constituição do Império, além das reflexões e predileções
concernente à importância da liberdade de imprensa e comunicação, assegura ser
relevante distinguir imprensa literária, ou industrial, e imprensa política, visto que
possuem características díspares e especiais (BUENO, 1857, p. 395).

Para o autor, a imprensa literária ou industrial evidencia-se pelo prestígio


em promover a civilização, prosperando as faculdades humanas, bem como o
conhecimento, o trabalho, a indústria e a riqueza. Esta categoria de imprensa deve
ser amplamente franqueada e, desde que não se atrele a questões políticas do
país, deve pertencer ao sujeito em decorrência de sua natureza humana (BUENO,
1857, p. 395-396). A imprensa política, por sua vez, evidencia-se por ser a sentinela
da liberdade, retificando os abusos e o despotismo, bem como salvaguardando
os direitos individuais e coletivos. Esta categoria de imprensa esclarece inquirições
e convicções pertinentes à razão pública, transmutando a face da esfera política
(BUENO, 1857, p. 396).

Por sua vez, para Bueno, a imprensa detém uma natureza jurídico-política,
visto que possui como pilar o dever do cidadão de integrar e intervir no gover-
no de seu país e ordem político-social. Como atesta o próprio autor (BUENO,
1857, p. 396):
A imprensa politica é tambem assaz preciosa; não é menos do que o
direito que tem e deve ter o cidadão de participar, de intervir no gover-
no de seu paiz, de expôr publicaniente o que pensa sobre os grandes
interesses da sociedade de que elle é membro activo. É um direito antes
politico do que natural ou individual, como reconhece o art. 7º do código
criminal, que só dispensa a qualidade de cidadão activo quando se trata
de defesa própria, que é por si muito recomendável.

170
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Por intermédio de suas inclinações, o autor certifica-se em atribuir à


imprensa, bem como aos abusos de liberdade de comunicação, uma natureza
política, por assegurar a imprensa, também, como dispositivo de transformação
política de uma determinada ordem social.
E antes um direito politico do que natural ou individual [...]. E a faculdade
legitima que o cidadão activo tem de apresentar por escripto aos poderes
publicos suas opiniões, suas idéas, interesses que partilha e seus votos
sobre os negocios sociaes de legislação ou da administração do Estado;
é um direito quasi semelhante ao da liberdade da imprensa politica, uma
especie de intervenção no governo do paiz, não tanto em proveito seu
particular, como no interesse geral (BUENO, 1857, p. 434).

Ora, como é passível de se apreender, ao proferir uma comparação entre o


direito de petição e o direito de liberdade de imprensa, Bueno qualifica-os como
um direito político, por se atrelarem às hipóteses de intervenção ao governo de
um país; não em provento particular, mas tão somente geral.

Por sua vez, no que tange ao debate da assembleia constituinte de 1823,


na primeira página de seus anais assegura-se a magnitude e notoriedade da li-
berdade de imprensa e opinião.
Nos paizes regidos pelo systema constitucional a opinião é o principal
elemento de força em que devem estribar-se os Poderes do Estado, e
aquelles a quem são confiadas as redeas da alta governação, para que
bem as possão manejar hão de inspirar-se nos sentimentos da nação, hão
de ir receber nas fontes populares a agua lustral que vigore e fortifique a
promulgação dos grandes actos publicos. Expondo esses actos ao chrisol
da publicidade, e provocando sobre elles as apreciações da imprensa, e
da tribuna, imprime-se-lhes afinal o cunho de uma resolução geralmente
aceita e á qual não faltou a sancção do paiz (BRASIL, Vol. 1, 1823, p. 1).

A discussão introdutória da assembleia constituinte, no que tange à


liberdade de imprensa, versava sobre a indispensabilidade de se produzir uma
legislação brasileira concernente à sua regulamentação, uma vez que a legislação até
então existente era portuguesa e aplicada tão somente em situações específicas4.
Por conseguinte, algumas propostas surgiram com o escopo de regulamentar a
ausência de legislação dos delitos de abuso de liberdade de imprensa5.

4 Não sem razão, o deputado Duarte Silva testificava que “entre nós não há lei que regule geralmente a
liberdade da imprensa: há simplesmente um decreto de S. M. Imperial que manda provisoriamente que em
certos casos que aponta, sejão taes delictos julgados por jurados, executando-se naquela parte somente a lei
da liberdade da imprensa promulgada pelas côrtes de Lisboa; logo o que nos regula nesta matéria é uma parte
de uma lei estrangeira, aprovada unicamente para casos especificados”. DUARTE SILVA, Deputado. BRASIL. Vol.
1, 1823, p. 105.
5 O projeto do deputado Augusto Xavier de Carvalho consistia em:
“A assembléa geral, constituinte, a legislativa do Imperio do Brazil decreta:
1º São declaradas em pleno vigor todas as leis que existem, e que permittirão a liberdade da imprensa, rectifi-
cando-se permitido a todo o cidadão falar, escrever e imprimir, sem necessidade de alguma censura.
2º Aquelle que abusar d’esta preciosa liberdade, responderá pelo abuso nos casos, e pela fórma que as leis

171
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

Na sessão de 6 de outubro de 1823 elaborou-se um projeto de lei sobre a


liberdade de imprensa (BRASIL. Vol. 6, 1823, p. 32). Este se revelava relevante, visto
que, em seus incisos, se regulamentava especificamente as hipóteses da suposta
natureza jurídica dos delitos de abuso de liberdade de imprensa.

Ora, do inciso 5º ao inciso 13, a suposta natureza jurídica dos delitos


de liberdade de imprensa se desnuda explicitamente, aludindo sobre a utilização
da imprensa contra a religião oficial do Império – Católica Romana – e contra
Deus (5º), incitar povos a rebelião (6º), atacar a forma de governo adotada pela
nação – monárquico-constitucional – (7º), injuriar a assembleia nacional ou o chefe
do poder executivo (8º), incitar povos a desobediência às leis ou às autoridades
constituídas (9º), contra à moral cristã e os bons costumes (10), imputar fatos
criminosos a empregados públicos em razão de seu ofício (11), contra sujeitos
particulares ou empregados, mas não em razão de seus ofícios (12), bem como
injuriar qualquer pessoa (13).

Nestas hipóteses, certifica-se da designação do delito de abuso de liberdade


de imprensa como crime público, notadamente nos incisos 6°, 7º, 8º e 9º – at-
estando-se como crimes públicos aqueles que produzem algum perigo ordinário
a todos os membros do Estado, ou a um número indefinido de sujeitos não
designados (ALVES JÚNIOR, 1864, p. 48-49)6.

Ademais, certifica-se da designação do delito de abuso de liberdade de


imprensa como crime policial – hodiernamente denominado contravenção penal
–, notadamente nos incisos 5º e 10 – atestando-se como crimes policiais aqueles
que vão contra a religião, a moral e os bons costumes da ordem social, vale dizer,
hipóteses em que o tipo penal incrimina perigos que podem ocorrer, e não pelo
mal que de fato possuem (COSTA, 2013, p. 207). Por fim, certifica-se a designação
do delito de abuso de liberdade de imprensa como crime particular, notadamente
nos incisos 11, 12 e 13 – atestando-se como crimes particulares aqueles que prej-
udicam um ou mais sujeitos de maneira designada (ALVES JÚNIOR, 1864, p. 48)7.

tem estabelecido.
3º Ficão derrogadas quaesquer leis, ordens, ou portarias que directa ou indirectamente se opponhão ao presente
decreto, ou á liberdade concedida. Paço da assembléa 24 de Mdio de 1823. – Deputado Augusto Xavier de
Carvalho”. BRASIL. Vol. 1, 1823, p. 106.
6 Sobre esta temática, o jurista Fernando Nery (1937, p. 107-108), em sua obra intitulada Lições de Direito
Criminal, assegura a distinção entre delitos públicos e privados. Para o autor, “as infrações á lei penal dividem-
se em públicas e privadas. Certo, toda infração – por mínima que fôr – é uma ofensa á ordem pública, mas
entende-se por infração pública e que é diretamente dirigida contra o interesse geral duma nação e em que
a lesão desse interesse acarreta também a do interesse individual, por exemplo: uma conspiração contra a
segurança do Estado; ao passo que a infração privada é a que diretamente se dirige contra os particulares e
na qual a lesão do interesse individual surge em primeiro plano, por exemplo: um furto”.
7 Relevante se faz assegurar que, hodiernamente, com a moderna teoria do bem jurídico, estas distinções
não são mais empregadas, bem como não se faz presente das codificações penais do século XX, que, quando
muito, apenas distinguem crime e contravenção penal.

172
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Na sessão de 8 de novembro de 1823 elaborou-se um novo projeto de


lei sobre a liberdade de imprensa8. Todavia, relevante se faz ressalvar a opinião
do deputado França concernente ao parágrafo 3º da referida proposta; este
parágrafo asseverava que em todo escrito impresso dever-se-ia estar estampado
o lugar e o ano da impressão, bem como o nome do impressor, sob risco de
condenação. Por consequência, o juízo do deputado revela uma conceituação
política do delito de abuso de liberdade de imprensa, ao asseverar “que a pena
imposta no artigo contra o comprador é mui política porque tende a constituir
um fiscal do abuso da liberdade de imprensa em cada cidadão9”.

Por esta discussão, certifica-se novamente o cariz político que os delitos


de abuso de liberdade de imprensa exerceram durante a discussão do parlamento
brasileiro da assembleia constituinte do Brasil Império, desvelando, por sua vez, seus
reflexos no que tange ao regime político proferido – monárquico-constitucional.

1.3. O debate jurídico-penal dogmático concernente aos delitos de abuso


de liberdade de imprensa

Neste fragmento da pesquisa se detém como escopo desvelar toda a


discussão jurídico-dogmática dos doutrinadores do Império no que tange a con-
ceituação dos delitos de abuso de liberdade de imprensa, vale dizer, a disparidade
de conceituações que perpassam a natureza jurídica ordinária, sui generis, privada
e público-política do delito.

O jurista, magistrado e político brasileiro Vicente Alves de Paula Pessoa


assevera que a matéria concernente aos julgamentos dos delitos de abuso de
liberdade de imprensa não compete ao Poder Executivo, mas tão somente a
Jurisprudência dos Tribunais (PESSOA, 1877, p. 51). Por conseguinte, o jurista
utiliza-se das prelações do político francês André Dupin, e reitera que “a justiça
distributiva não se exerce, se não com uma immensidade de distincções. Nas
accusações da imprensa, é necessario sobre tudo evitar a confusão dos diversos
gêneros” (PESSOA, 1877, p. 33). Por intermédio desta suposta confusão de gêneros,
Pessoa (1877, p. 467-468) atesta:
Segundo a Lei de 20 de Setembro de 1830, Arts. 66 e 67, a acção pu-
blica pelos crimes da imprensa, prescreveria em um anno, contado do
dia em que se fez publico o abuso, que daria lugar a denuncia. A acção
particular prescrevia em 3 annos, ainda quando tivesse havido qualquer
8 Art. 1.º Nenhuns escriptos de qualquer qualidade, volume, ou denominação, são sujeitos á censura, nem
antes, nem depois de impressos.
Art. 2. º É portanto livre a qualquer pessoa imprimir, publicar, vender e comprar os livros e escriptos de toda
a qualidade sem responsabilidade alguma, fora dos casos declarados nesta lei.
Art. 3. º Todo o escripto impresso no Império do Brazil terá estampado o lugar e anno da impressão, e o nome
do impressor; quem imprimir, publicar, ou vender algum escripto sem estes requisitos, será condenado em 50S, e
quem o comprar perderá os exemplares que tiver comprado, e o duplo do seu valor. BRASIL. Vol. 6, 1823, p. 218.
9 FRANÇA, Deputado. BRASIL. Vol. 6, 1823, p. 219.

173
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

acto que parecesse interromper a prescripção. Não tendo o Código de


Processo Criminal reproduzido taes disposições parece que devemos
considera-las revogadas, ficando o delito da imprensa sujeito as regras de
prescripção ordinaria, como se estabeleceu no Codigo do Processo, para
os delictos communs, com as alterações consignadas na Lei de 30 de
Dezembro de 1841.

Faz-se relevante certificar amiúde que o delito de imprensa está tipificado


na parte segunda do Código (Dos crimes publicos), bem como na parte terceira
(Dos crimes particulares). Logo, embora a assertiva de Pessoa aluda à prescrição,
relacionando-a ao Direito Processual Penal nesta situação, é passível de se inquirir
que, por meio da prescrição aos casos de delitos de imprensa, este tornar-se-ia, na
visão de Pessoa, um delito ordinário, como se averigua na citação acima disposta.

Isto posto, relevante se faz assegura que os delitos comuns “são os que
não interessam á segurança política do Estado, isto é, delitos que ofendem a
segurança privada, violando um direito cuja existência independe da sociedade
política” (NERY, 1937, p. 127).

Por consequência, para Braz Florentino Henriques de Souza, jurista e cate-


drático na Faculdade de Direito do Recife, embora “a faculdade de pensar é, sem
contradicção, o mais bello e o mais nobre attributo que o homem recebeo do
seu Creador” (SOUZA, [1872] 2003, p. 162), anuncia-se necessário que o poder
estatal intervenha à liberdade de expressão por meio de uma censura prévia e
um sistema de repressão judiciário; “um que pretende impedir os crimes preve-
nindo-os; outro que espera impedi-los punindo-os unicamente. Duas palavras os
exprimem – a polícia e justiça” (SOUZA, [1872] 2003, p. 169).

Para o autor, os abusos de liberdade de expressão por meio de palavras


possuem a mesma natureza dos abusos da liberdade de expressão por meio da
escrita, imprensa, gravura ou litografia, uma vez que todos provêm da mesma fonte,
que é o pensamento; tão somente se transmuta o instrumento de propagação.

Outrossim, para o jurista, os delitos de imprensa possuem uma natureza


peculiar e distinta dos demais delitos, visto que excedem a natureza dos crimes
ordinários, públicos ou particulares, sendo, portanto, um delito sui generis.
Não se poderia em verdade contestar que os delictos da imprensa, bem
como os da palavra, sejam de uma natureza especial e distincta, e que por
isso formem uma classe de infracções sui generis. Productos do pensamento,
[...] taes delictos só obram directamente sobre o pensamento, só levam a
perturbação á ordem moral; e desde então não se póde verificar n’elles
o prejuizo material, ou representar o corpo de delicto, como succede nas
infrações ordinárias (SOUZA, [1872] 2003, p. 174-175).

174
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Todavia, embora os delitos de abuso de liberdade de imprensa sejam


diverso dos delitos comuns, sendo, por conseguinte, delitos especiais, não estão
completamente avulsos do direito penal comum, uma vez que se situam sob
as mesmas condições dos delitos ordinários. Do mesmo modo que os delitos
comuns, os delitos de abuso de liberdade de imprensa, ainda que sejam delitos
especiais, requerem a lesão a um direito ou a violação de um dever exigível, bem
como importando um perigo ou dano real aos indivíduos e sociedade (SOUZA,
[1872] 2003, p. 175).

Por conseguinte, os delitos de abuso de liberdade de imprensa possuem,


além de sua natureza especial que os distingue, outro caráter próprio. Para Braz
Florentino, somente por meio da manifestação por palavras ou escritos é que o
pensamento pode ser objeto de lei, visto que unicamente assim podem ofender
outrem e ofertar perigos à ordem social (SOUZA, [1872] 2003, p. 176). As hipóteses
em que há segredo, confidência ou particularidade na liberdade de pronunciar
palavras ou escrita não necessita de ser configurada delito de abuso de liberdade
de expressão, visto que, justamente, não houve publicidade (SOUZA, [1872] 2003,
p. 176-177). Por consequência, Souza ([1872] 2003, p. 178) certifica-se de que:
Quanto ao manuscripto que a ninguém foi ainda communicado, não se
poderia de maneira alguma pretender que elle offerece materia sufficiente
para um processo criminal. [...] Só com o facto da manifestação, e sobre
tudo da manifestação publica é que póde nascer o perigo para os indi-
víduos ou a sociedade. [...] Com effeito, para que a communicação do
pensamento, para que os desvios da lingua sejam regularmente dignos
de fixar a attenção do legislador, é mister que [...] tenham adquirido
uma certa gravidade, não só pelo conhecimento que d’elles possa ter
um crescido numero de pessoas, mas também pela excitação que por
esse meio se quiz.

Isto posto, o Código Criminal não punia os abusos de liberdade de ex-


pressão senão quando havia manifestação e publicidade. É deste atributo especial
que provém o caráter específico que configura os delitos da palavra, da escrita
e da imprensa; é este o elemento constitutivo destes delitos, bem como aliado
à gravidade e abuso da liberdade de expressão. Esta é a razão porque, para o
autor, os delitos de calúnia e a injúria são exceções à regra, uma vez que ambos
podem ser cometidos e punidos independentemente de sua publicidade (SOUZA,
[1872] 2003, p. 178-179).

Por consequência, o autor certifica-se da necessidade de que, uma vez


que os delitos de abuso de liberdade de imprensa são delitos especiais, haver uma
legislação também especial para regulamentá-los. Tal é a lei de 20 de setembro de
1830, onde foram pioneiramente regimentados tais delitos. Contudo, os redatores
do Código Criminal estabeleceram que não haveria a necessidade de reger tais
delitos sob uma lei especial, uma vez que consideravam-no simples modos de

175
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

ação. Consequentemente, dispuseram a lei de 20 de setembro no Código Criminal,


deixando os delitos de imprensa sob o mesmo prisma dos delitos comuns, bem
como submetendo-os à todas suas regras, revogando a lei de 20 de setembro
por completo (SOUZA, [1872] 2003, p. 180-181).

Nos delitos de abuso de liberdade de imprensa, a circunstância da pu-


blicação, que é a circunstância criminosa, compõe-se de três atos distintos e
sucessivos, tais quais a redação, a impressão e a edição; cada um destes três são
provenientes de um agente diverso. Ora, o jurista considerava que imprescindível
se fazia que o legislador asseverasse qual dos três agentes – autor, impressor ou
editor – deveria ser considerado como exclusivamente criminoso e responsável
pelos abusos da liberdade de imprensa. E aqui novamente se assegura a natureza
sui generis dos delitos de imprensa, uma vez que há a presença da responsabi-
lidade sucessiva, que, abrindo um parênteses na disciplina geral dos critérios de
autoria e participação de direito penal, asseverara que tão somente um respon-
sável consagrar-se-ia criminoso. Não sem razão, Braz Florentino ([1872] 2003, p.
182-183) certifica-se de que:
N’estas circumstancias pois era necessário que o legislador, dominado
pelo desejo de favorecer a todo custo a expansão do direito individual, e
querendo ao mesmo tempo reprimir-lhe os abusos, tratasse antes de tudo
de determinar qual dos trez agentes (autor, impressor ou editor) se devia
considerar como exclusivamente criminoso e responsável nos abusos da
liberdade de communicar os pensamentos. E d’ahi as disposições verda-
deiramente especiaes, ou antes singulares, contidas nos cinco §§ do art. 7
do nosso Código; disposições que, reunidas á do art. 8, fazem dos delictos
da palavra, da escripta e da imprensa delictos de uma natureza mais que
especial, pois que lhe criam uma natureza verdadeiramente privilegiada.

Por sua vez, em sua obra intitulada “Questões Praticas de Direito Criminal”,
o jurista e político brasileiro José Liberato Barroso atesta sobre a importância da
Constituição do Império em assegurar a liberdade de comunicar o pensamento,
salvaguardando a obrigação de se responder pelos abusos cometidos. Outrossim, o
autor certifica-se de que a criminalidade dos atos de abuso de expressão consiste
em sua publicidade, visto que “qualquer indivíduo pôde conceber idéas crimino-
sas, confia-las ao papel, e encher folhas de proposições injuriosas contra alguém:
em quanto porem não der á publicidade, o que escreveu, não tem commettido
crime algum” (BARROSO, 1866, p. 71). Isto posto, o autor certifica-se de que:
Deve pois á imprensa conceder-se toda a liberdade da discussão, mas no
seu mesmo interesse, e para não trahir o fim da sua instituição importa
corrigir-lhe aos excessos, extremando bem os limites entre o abuso e
o uso do direito. Não deve equivocar-se com a liberdade da injuria, da
difamação, e da calumnia. O crime não é um direito (BARROSO, 1866,
p. 75, Grifo meu).

176
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Ora, em sua passagem acima citada, o jurista assegura que a liberdade


de imprensa não deve se ludibriar à injúria, difamação ou calúnia. Estes crimes,
por sua vez, possuem natureza particular, devidamente tipificados na Seção III
(Calumnia e injuria), Capítulo II (Dos crimes contra a segurança da honra), Titulo II
(Dos crimes contra a segurança individual), Parte terceira (Dos crimes particulares),
do Código Criminal de 1830.

Em páginas anteriores, Liberato Barroso ainda certificava-se de que:


A calumnia e a difamação pela imprensa é uma especulação, com que
alguns miseráveis tem conseguido os seus fins. [...] E no meio dessa ba-
chanal torpe da imprensa é notavel o procedimento da autoridade! Os
artigos 230, 231, 237, 239, 242, 244, 245 do Codigo Criminal, parece que se
achão reduzidos á lettra morta (BARROSO,1866, p. 55-56, Grifo meu).

Bem como asseverava que:


Por nossa vez pedimos a aquelles, que têm a nobre missão de julgar, que
facão da lei um estudo serio e reflectido, e opponhão um dique á essa
torrente de calumnias e difamação, que tudo desmoralisa, e ameaça o
paiz com males incalculáveis. Não bastante o despreso publico para os
libellistas e difamadores: a indifferença, com que se acolhe a calumnia torpe,
estampada nas paginas de um jornal, é um mal immenso, porque no meio
delia tudo se confunde, e tudo se desmoraliza (BARROSO, 1866, p. 67).

Por se situarem tipificados na Parte Terceira do Código (Dos crimes particu-


lares), bem como conceber os abusos de liberdade de expressão concatenando-os
à calúnia e injúria, Liberato Barroso aufere aos delitos de abuso de liberdade de
imprensa uma índole particular.

Por consequência, o autor faz uso de um exemplo em que o Jornal do


Comércio de 2 de janeiro publicou uma nota injuriosa contra um cidadão da
Província do Norte, datada à 15 de novembro de 1864. Isto posto, Liberato Bar-
roso assegura que “a offensa á reputação e ao caracter moral do individuo é um
delicto, e a sua punição uma necessidade de ordem publica” (BARROSO, 1866, p.
68). Com isso, certifica-se, mais uma vez, o cunho essencialmente particular que
o autor atribui aos delitos de abuso de liberdade de imprensa.

Ainda concernente à conceituação privada, Antonio De Paula Ramos Ju-


nior, em sua obra intitulada “Commentario ao codigo criminal brasileiro”, ao realizar
suas predileções sobre a ameaça, esta tipificada nos artigos 207 e 208 do Código
Criminal de 1830 – Seção V (Ameaças), Capítulo I (Dos crimes contra a segurança
da pessoa e vida), Título II (Dos crimes contra a segurança individual), Parte terceira
(Dos crimes particulares) – assegura sobre a possibilidade desta ameaça sobrevir
por intermédio da imprensa, uma vez que, para o autor, a publicidade por meio

177
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

da imprensa era reputada como juridicamente legal para o Império e todo o seu
sistema jurídico. Para o jurista (RAMOS JUNIOR, 1875, p. 186):
Nem se diga que é impossivel o crime de ameaça por meio da imprensa,
porquanto não só a expressão – escripto – de que se serve o art. 207
evidentemente comprehende esta hypothèse, como ainda porque a publi-
cidade da imprensa é, no systema geral de nossa legislação, a publicidade
que podemos chamar legal. Cumpre porém observar que neste caso, a
responsabilidade se deverá regular pelo disposto no art. 7.°, como tam-
bém não poderá de nenhum modo deixar de ser attendida a do art. 8.°.

Por conseguinte, ao atrelar o uso da imprensa à ameaça que um cidadão


possa padecer individualmente, atesta-se que, para o autor, os delitos de abuso
de liberdade imprensa podem ser delitos contra a segurança individual, e, por
consequência, considerados delitos particulares.

Por outro lado, no que tange à conceituação público-política dos delitos


de abuso de liberdade de imprensa, a indispensabilidade de se criar uma lei que
versava sobre estes delitos era uma prioridade estabelecida desde a criação da
Assembleia Geral em 1826. Por conseguinte, os delitos de abuso de liberdade de
imprensa foram atrelados ao regime político e ordem pública estabelecida, vale
dizer, monarquia constitucional representativa10. Isto posto, uma vez que a liber-
dade de imprensa estava concatenada à esta conjuntura, assegura-se a natureza
público-política desde os debates iniciais da Assembleia.

Concernente aos delitos políticos, o jurista Fernando Nery assegura que,


no que tange às infrações públicas, existem determinadas que pertencem a
uma ordem distinta, uma vez que possuem caracteres que destoam das outras
infrações: estes são os delitos políticos. “Sob o ponto de vista absoluto, o crime
político é – segundo R. von Ihering – a ofensa ás condições existenciais do Estado”
(NERY, 1937, p. 108).
Delitos políticos são os actos que, do mesmo lance, ofendem diretamente
a segurança política de um Estado e, indiretamente, o cidadão. Já vimos
que o crime político só se refere á ordem política e social de uma socie-
dade, e pois, deixam de pertencer a este grupo todos os demais delitos
que ofendam as pessôas em sua integridade física: uma conspiração para
mudar a fórma de governo de um Estado é um crime político, mas o
atentado contra o chefe desse Estado é um crime de direito comum
(NERY, 1937, p. 127).

10 Vivian Costa (2013, p. 97) certifica-se de que “a discussão de uma lei sobre os abusos da liberdade de
imprensa havia sido uma prioridade dos deputados brasileiro desde a abertura da Assembleia Geral, em 1826.
[...] Naquele momento, a liberdade de imprensa foi identificada, pelos deputados, com a consolidação do regime
constitucional-representativo do país, e a liberdade de expressão pública defendida em oposição à instauração
de qualquer tipo de censura prévia aos impressos”.

178
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Outrossim, assegura-se que o julgamento dos delitos de abuso de liberdade


de imprensa eram empreendidos tão somente pelo Tribunal do Júri, em virtude
da inevitabilidade de que o julgamento dos delitos de imprensa, uma vez delitos
políticos, não estivessem atrelados a agentes do governo, perpetuando a caracte-
rística popular da decisão. Não sem razão, Tassia Nunes (2010, p. 163) atesta que
“desde 1822, os crimes de imprensa eram julgados pelo júri, uma garantia liberal
de que os crimes políticos (ou de opinião) não seriam considerados por juízes
de carreira, muito frequentemente funcionários fiéis ao governo”.

Por conseguinte, para o jurista Thomaz Alves Júnior (1864, p. 180), a liber-
dade de expressão “é um direito natural do homem, que só póde ser limitado
ou destruído pelo poder de governos despoticos, que temem que a discussão,
que é a hygiene do pensamento [...] Negar o direito de liberdade do pensamento
é negar instrucção, moralidade, e verdadeira e conscienciosa religião do povo”.

Thomaz Alves Júnior alega que o artigo 90 do Código Criminal, pertencente


ao Título I (Dos crimes contra a existencia politica do Imperio) da Parte Segunda
(Dos crimes públicos), é a primeira espécie do gênero “delito de imprensa”. No
que tange este artigo, Alvez Júnior, em sua obra intitulada “Annotações theoricas
e praticas ao Código Criminal”, certifica-se de que:
Comprehende-se facilmente a justiça com que procedeu o legislador
incriminando a provocação aos crimes já definidos, porque no interesse
da segurança, ordem e independência do paiz encontra-se a justificação do
procedimento do legislador, desde que há perigo eminente e risco com a
provocação desses crimes (ALVES JUNIOR, 1864, p. 205).

O autor assevera que a incriminação por intermédio deste delito é jus-


tificada, uma vez que colocaria em cominação a segurança do Império, bem
como a ordem e a independência deste. Por conseguinte, o autor assegura
que os delitos de abuso de liberdade de imprensa, no que tange ao artigo 90,
possuem uma natureza política, em razão da comparação do artigo 90 com os
artigos 107 (conspiração) e 110 (rebelião), essencialmente considerados, por ele,
crimes políticos.
Os crimes definidos, cuja provocação impressa, não impressa ou oral
constitue a incriminação do art. 90, são sempre os que têm por base ou
uma conspiração (art. 107) ou uma rebelião (art. 110). Se a provocação
surte effeito dá lugar pelo menos ou a uma conspiração ou a uma rebelião,
é certo que o responsavel segundo o art. 90 passava a sê-lo ou do art.
107 ou do art. 110, por outra se tornava rebelde ou conspirador [...] A
pena applicada não merece a approvação da sciencia, não só pela sua
natureza em si, como pelo que se deduz da comparação com a penalidade
dos arts. 107 e 110. É sempre a fatal e condemnada applicação da pena
repressiva a crimes meramente politicos (ALVES JUNIOR, 1864, p. 208-209).

179
OS DELITOS DE ABUSO DE LIBERDADE DE IMPRENSA NO DIREITO PENAL DO BRASIL IMPÉRIO

Isto posto, é passível de se presumir que o autor aufere aos delitos de


abuso de liberdade de imprensa uma conceituação público-política.

Por esta discussão, certifica-se a divergência de conceituações devidamente


investigadas dos autores que aludem os delitos de abuso do liberdade de imprensa
em suas obras de Direito Penal no Império do Brasil.

Considerações finais

Percorrendo a conjuntura histórica e contexto político-social relevante e


alvoroçado em que o país se localizava após todos os pormenores provenientes
da Independência, vale dizer, desde o fim do Livro V das Ordenações Filipinas,
até a promulgação do Código Criminal do Brasil Império e seus desdobramentos
no que tange aos delitos de abuso de liberdade de imprensa, deduz-se o cariz
político que este delito exerceu perante toda esta problemática, bem como con-
junção político-social em que o país se encontrara. Por conseguinte, certifica-se
novamente o cariz político que os delitos de abuso de liberdade de imprensa
exerceram durante a discussão do parlamento brasileiro da assembleia constituinte
do Brasil Império, desvelando, por sua vez, seus reflexos no que tange ao regime
político proferido – monárquico-constitucional –, bem como a divergência de
conceituações devidamente investigadas dos autores que aludem os delitos de
abuso do liberdade de imprensa em suas obras de Direito Penal e Constitucional
no Brasil Império.

De outro modo, perpassando o exame da conjuntura histórica e seus


dispositivos ao qual a discussão proposta está circunscrita – Código Criminal do
Brasil Império, anais da Assembleia Constituinte de 1823 –, bem como empreen-
dendo o exame do debate jurídico-dogmático com o escopo de se obter uma
suposta conceituação da natureza jurídica do delito de abuso de liberdade de
imprensa, revela-se árduo asseverar uma única e tão somente própria natureza
jurídica do delito.

Vicente Alves de Paula Pessoa (1877) assegura uma natureza ordinária, Braz
Florentino Henriques de Souza ([1872] 2003) assegura uma natureza sui generis,
José Liberato Barroso (1866), bem como Antonio de Paula Ramos Junior (1875)
asseveram uma natureza privada, Thomaz Alves Júnior (1864), assim como José
Antonio Pimenta Bueno (1857) asseveram uma natureza política.

Contudo, ainda que exista discrepância entre as prelações dos autores que
aludem o delito proposto, acredita-se em uma conceituação pública – política
– do mesmo. Uma vez que a Independência do Brasil acabara de transcorrer,
as transmutações proferidas posteriormente ao acontecimento – elaboração de
uma Constituição pátria, bem como a inevitabilidade de Códigos também pátrios

180
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

– locomovem-se rumo a ânsia de auferir salvaguarda ao Império, vale dizer, cons-


tituir instituições que propunham segurança ao Imperador e ao regime político
proferido – monárquico-constitucional.

Ora, esta circunstância, atrelada às considerações e transformações histó-


ricas vigentes no estágio, coincidem presumir a relevância da repressão do delito
face à ordem política vigente.

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183
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO


AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

AFONSO ROBERTO MENDES BELARMINO


Mestrando em Ordem Jurídica Constitucional no Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Ceará (PPGD-UFC)

ANTONIO DE HOLANDA CAVALCANTE SEGUNDO


Doutorando em Ordem Jurídica Constitucional no Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade Federal do Ceará (PPGD-UFC)

Resumo
O presente trabalho tem por escopo analisar o tratamento legal conferido
às vítimas de crimes no período do Brasil Império, especificamente de 1824
até 1858, com foco no Código Criminal do Império de 1830 e a legislação a
este correlata. Para tanto, traçar-se-á o contexto histórico-jurídico posterior à
proclamação da independência do Brasil. Em seguida, abordar-se-á o posicio-
namento da figura do ofendido para a Escola Clássica do Direito Penal. Por
fim, se analisará os principais dispositivos constitucionais e legais do período
que de alguma forma se relacionem com o tratamento da vítima de crimes.
Concluir-se-á que, a despeito de não mais ostentar posição privilegiada na re-
lação processual penal, a vítima seguiu como sujeito de direitos, especialmente
em relação àqueles consistentes na reparação do mal causado pela infração.

1. Considerações iniciais: o contexto pós-independência

O processo de independência do Brasil, materializado no dia sete de se-


tembro de 1822, representou uma separação paulatina da metrópole portuguesa
nos mais diversos segmentos. Especialmente no âmbito jurídico, verificou-se o
esforço de combinar a emancipação política com a construção de um sistema
igualmente independente, dotado de instituições próprias e distintas daquelas
estabelecidas pelas ordenações vigentes nos tempos coloniais.1

Tal transição, no entanto, não se iniciara apenas com “o grito do Ipiranga”,


considerando a abertura dos portos em 1808, a transferência da corte portuguesa,
a elevação da colônia ao grau de Reino Unido de Portugal e Algarves – pro-
cessos que tornavam o Brasil, paulatinamente, “a cabeça do Império”. Dignos de
nota, nesse contexto, são a Revolução Pernambucana de 1817 e a influência da
Inglaterra, ambos elementos significativos para a independência brasileira.

1 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 71.

185
O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

Não houve uma ruptura com as práticas sedimentadas ao longo de mais


de três séculos, muitas das quais tiveram continuidade no Brasil Império, mas, no
plano geral, desenvolvia-se uma organização político-judicial autônoma, tendo
como principais elementos normativos, inicialmente, a Constituição Imperial de
1824 e o Código Criminal de 1830. O ideário liberal ia pouco a pouco se infil-
trando na já porosa e decrépita estrutura colonial brasileira.

Nossa primeira constituição lançou as colunas da justiça e da equidade


que sustentariam o Código Criminal de 1830, podendo-se destacar as influências
da chamada Escola Clássica do Direito Penal e da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789). As vozes liberais que se ouviam naquele período
eram, assim, de certo modo, ecos da Revolução Francesa.

Neste ponto, importante a ressalva de Rafael Queiroz quanto ao “uso


simplificador da história”, que examina a evolução do nosso sistema penal e
costuma atribuir o desenvolvimento de seus institutos a fatores isolados, como
a economia e a “evolução das ideias filosóficas, que teria sido assimilada pelo
legislador brasileiro”2.

Não se pretende, com o presente artigo, portanto, explicar cabalmente a


posição ocupada pelo ofendido durante parte do Brasil Império por meio de um
cotejo simplista entre os influxos iluministas e os dispositivos do Código Criminal
de 1830, como se o direito penal fosse “uma criança conduzida pelas mãos da
filosofia política (iluminista, especificamente)”3.

Para Rafael Mafei Rabelo Queiroz4:


A consciência da complexidade do direito e da sociedade em que ele se
desenvolve proíbem que sua história seja tratada de maneira simplificada.
A reconstrução histórica do direito deve ter em mente que o seu passado
é tão rico quanto o seu presente, no mínimo.

De todo modo, ainda que não esgote as razões que conduziram ao es-
tado de coisas relativo ao ofendido no Brasil Império, o presente trabalho expõe
o tratamento legal que lhe foi destinado naquele recorte histórico (1824-1858),
aproximando-o ou distanciando-o das principais concepções de direito penal
desenvolvidas à época.

Além da análise da legislação criminal vigente à época, notadamente o


Código de 1830, o trabalho tem por base a obra de Braz de Sousa intitulada

2 QUEIROZ, Rafael Mafei Rabelo. A modernização do direito penal brasileiro: Sursis, Livramento Condicional e
outras reformas do sistema de penas clássico no Brasil, 1924-1940. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 40.
3 Idem, p. 41.
4 Ibidem, p. 41.

186
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

“Código Criminal do Império”5, que traz anotações de leis, decretos, avisos e


portarias publicados até o ano de 1858. Também se elencam e se relacionam
no mesmo livro, por meio de um apêndice, leis adicionais ao código que foram
promulgadas posteriormente, o que proporcionará o refinamento da investigação
de tal período, uma vez que traz a legislação criminal correlata publicada até 1858,
ano de publicação do livro, daí a justificativa para o recorte temporal promovido
no presente trabalho.

2. O ofendido para a escola clássica do Direito Penal: da Idade de Ouro


ao ostracismo

Inicialmente, registre-se que, em contextos históricos e legais mais recu-


ados no tempo, não se verificada uma “Idade de Ouro” da vítima em absoluto,
no sentido de ser esta protagonista dotada de “primazia absoluta”, “de modo
a supor a existência de uma resposta ao delito isolada do contexto social”. Em
verdade, o contexto social era deveras importante no âmbito do tratamento aos
delitos, sendo de elevada relevância “os laços sociais e comunitários rompidos ou
ameaçados pela prática do crime”.6

De todo modo, mesmo o período tido como representativo da vingança


privada apresentou nuances e um caráter deveras heterogêneo. Em tempos mais
remotos, verifica-se, muitas vezes, uma intensa desproporcionalidade entre uma
conduta tida como violadora e a reação a esta, o que ensejava “viciosas cadeias
de vingança”, isto é, uma sequência de ações e reações praticadas reciprocamente
entre grupos cujos parâmetros limitavam-se à força.7

Posteriormente, com o processo de sedentarização das populações huma-


nas, com a ampliação e o desenvolvimento dos meios de subsistência e acumulação
dos recursos, tornaram-se possíveis – e até mais recomendável do ponto de vista
da pacificação – as composições entre grupos e entre indivíduos. Paulatinamente,
a vingança privada ilimitada foi cedendo espaço para um “modelo baseado na
proporcionalidade da vingança em relação à ofensa produzida”8.

Sobre a ampla utilização da expressão “Idade de Ouro da vítima”, discorre


Ana Sofia Schmidt de Oliveira9:
5 “Código Criminal do Império”: annotado com as leis, decretos, avisos e portarias publicados desde a sua
data até o presente, e que explicação, revogação ou alteração algumas das suas disposições, ou com ellas tem
immediata connexão: acompanhado de um appendice contendo a integra das leis addicionaes ao mesmo
codigo, posteriormente promulgadas”.
6 OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimológico
e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 32.
7 CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de política criminal orientado para a vítima de crime. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 27.
8 Idem, p. 27.
9 OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimológico

187
O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

A validade da expressão Idade de Ouro, não obstante, sobrevive a tais


observações. Além de estar já arraigada na doutrina (motivo que, é claro,
não a justificaria por si só), evoca um período um período anterior à
publicização do direito penal, período em que se reconhecia a existência
de uma ofensa à comunidade na prática do delito, o que não implicava
a exclusão da vítima da solução do conflito. Esta exclusão, se inspirada
muitas vezes por motivos que transcendiam o interesse particular, não
deixava de atendê-lo. Portanto, a vítima específica, quando não ocupava
o papel mais importante (como é o caso do antigo direito germânico),
não chegava a ser desconsiderada, como o foi posteriormente.

Cumpre esclarecer, ainda, que a chamada Escola Clássica não constitui


um corpo doutrinário homogêneo e representativo de ideias liberais uniformes.
Para Zaffaroni e Pierangeli, a expressão “escola clássica” foi elucubrada por Enrico
Ferri, sendo denominação de uma escola de direito penal, “fundada por Beccaria,
integrada por todos os penalistas não positivistas e capitaneada por Carrara”. Tal
aglutinação seria indevida, dada a impossibilidade de se conceber uma escola ou
uma corrente de pensamento como “algo integrado por pensamento revolucio-
nário de cunho francês, idealista alemão, aristotélico-tomista, iluminista, kantiano
etc., sem contar com as sínteses pessoais de muitos dos autores que reúne”10.

Pode-se dizer que as fileiras que compunham a diversificada Escola Clás-


sica – a despeito de todas as suas contradições internas, dado o caráter artificial
de sua concepção – tinham como leitmotiv o contraponto à Escola Positivista,
cuja formulação organicista havida no século XIX era expressão de uma corren-
te de pensamento voltada a “interpretar o mundo unicamente com base na
experiência”11.

De todo modo, de acordo com o paradigma cujas bases se atribuem a


Beccaria, o delito não seria uma ofensa a uma pessoa individualmente considerada,
mas sim contra a sociedade, razão pela qual não se cuidaria da vítima de forma
diferenciada. O principal objetivo seria eliminar do direito penal as iniquidades,
as torturas e os castigos cruéis e desproporcionais. O direito penal deveria ser
expressão de segurança, em detrimento de um poder punitivo arbitrário, estabe-
lecendo-se a prevenção do crime como finalidade da pena12.

Nesse sentido, escreveu Beccaria13:

e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 32.
10 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 9. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 264.
11 Idem, p. 260.
12 OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimológico
e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 37.
13 BECARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 115.

188
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador


sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma
boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior
bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes
possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.

Em suma, com tal finalidade atribuída à pena, voltada à restauração de


uma suposta “ordem ideal maculada”, justifica-se o alheamento da vítima do palco
da persecução penal. Para os clássicos, segundo Ana Sofia Schmidt de Oliveira, o
crime “era visto como uma entidade jurídica” e o criminoso “era o homem que,
dotado de livre-arbítrio – atributo de todo ser humano –, escolheu agir mal
quando poderia ter agido bem”.14

Sobre o crescente distanciamento da vítima em relação à persecução


penal, discorre Ana Sofia Schmidt de Oliveira:15
Os motivos que fazem com que a vítima deixe de ter um papel central
na solução do conflito penal identificam-se, principalmente, com a as-
sunção, pelo Estado, do poder punitivo. O declínio da vítima no sistema
penal coincide com o nascimento do Estado e do direito penal como
instituição pública: o direito penal estatal surge exatamente com a neutra-
lização da vítima. O Estado assume o controle absoluto do jus puniendi,
convertendo-se no exclusivo detentor do monopólio da reação penal.

Passa-se, posteriormente, à consideração do crime como violação a um


direito subjetivo alheio. Não seria essencial, segundo Luiz Regis Prado, que a
conduta relevante para fins penais se dirigisse em desfavor de “uma coisa no
mundo real”. A proteção, na verdade, diz respeito à integração “de uma faculdade
jurídica ou uma atribuição externa e individual constitutivas de direito subjetivo”,
o que representaria a essência do fato punível, “sobre o qual se deve configurar
o conceito jurídico de delito”16.

E ainda segundo Luiz Regis Prado17:


A concepção material de delito como lesão de um direito subjetivo decorre
da teoria contratualista aplicada no âmbito penal. Esse posicionamento
– resultado da ideologia liberal-individualista dominante – apresenta-se
como um conteúdo sistemático funcional – conduta punível é aquela
lesiva a um direito subjetivo e liberal concreto-imanente – proteção
também do direito individual na esfera objetiva da liberdade pessoal. O
direito subjetivo emerge, desse modo, como o instrumento mais eficaz
para garantir tal liberdade. O delito é, assim, entendido como a conduta
que transgride um direito alheio, proibida pela lei penal, a qual tem por
finalidade a proteção dos direitos dos indivíduos e do Estado.
14 Idem, p. 37.
15 Ibidem, p. 33.
16 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e constituição. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 31.
17 Idem, p. 32.

189
O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

Ainda no contexto da aplicação da teoria contratualista à seara penal,


disserta Albin Eser:18
En lo que se refiere a este punto de partida individual, también Feuerbach
sigue plenamente vinculado a la posición de Kant24 en lo que se refiere a
este punto de partida individual. Tan sólo la formulación concreta recibe una
versión más jurídica, al entenderse el hecho de excederse de los límites de
la libertad jurídica como “lesión del Derecho” (injuria o lesión), mientras que
(sólo) aquella lesión del Derecho sometida a una Ley penal y que quiebra
el contrato sinalagmático entre el ciudadano y el Estado se considera un
“delito”25. Aunque de este modo el delito pasa a ser posible exclusivamente en
el Estado26, ello implica que el paradigma decisivo para la ulterior discusión
en el marco del injusto está configurado por una lesión de un derecho
subjetivo. Desde la perspectiva de la víctima, naturalmente, un concepto
de delito orientado en función de la lesión de un derecho subjetivo sería
el mejor de los fundamentos para no ser olvidada en el Derecho penal,
incluso auñque en la punición del asesinato, de las lesiones corporales, de
las injurias y del hurto o robo se trate también de obtener la protección de
la vida, de la integridad corporal, del honor o de la propiedad como tales.

Com a superação da ideia do delito como lesão a direito subjetivo, a


qual teve como maior expoente P. A. Feuerbach, o século XIX observou franco
desenvolvimento da teoria do bem-jurídico, notadamente em Birnbaum19. Sobre
tal período, disserta Winfried Hassemer, relacionando o tratamento destinado à
vítima com a teoria do bem-jurídico:20
El teórema del bien jurídico solo aparentemente reflexiona sobre la víctima,
incluso desde sus comienzos, cuando cifraba la esencia del delito en la lesion
de un derecho subjetivo (de la víctima) o en la lesión de un bien, ya referido
a personas o a cosas (23) . La materialización del concepto del delito se ha
producido, ciertamente, con el principio del bien jurídico, transformándolo
en sentido crítico. Naturalmente, esta materialización se ha establecido en
la base de los conceptos de daño y de lesión y es obligación de cualquier
legislador penal el presentar una “víctima” digna de protección si pretende
justificar la pena, aunque esa víctima pierda luego importancia y sea
más bien una construcción teórica que una realidad (antes, la víctima se
encontraba en el objeto de la acción, separada siempre del bien jurídico).
El pensamiento sobre el bien jurídico no se ocupa de la protección de la
víctima sino de la protección de la libertad frente al control jurídico-penal
ilegitimo. En esta concepción, la víctima es solo una condición que posibilita
la delimitación sistemática del “bien” o interés digno de protección. Vistas así
las cosas, no es de extrañar que en las amplias disertaciones que se vierten
sobre el bien jurídico no se encuentren análisis sobre la víctima.

18 ESER, Albin. Sobre la exaltación del bien jurídico a costa de la víctima. Bogotá: Universidad Externado de
Colombia, 1988. Tradução de Manuel Cancio Meliá, p. 17.
19 Ibidem, p. 33.
20 HASSEMER, Winfried. Consideraciones sobre la víctima del delito. Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales,
Madrid, n. 1, p. 241-259, 1990. Anual. Tradução de Rocio Cantarero Bandrés, p. 245-246.

190
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Verificou-se, assim, a chamada “marginalização da vítima”, na medida em


que esta se viu cada vez mais alheia à persecução penal.21 De um protagonismo
permeado por vinganças privadas, passou-se ao exercício do ius puniendi pelo
Estado, que arrecadava as multas penais e, portanto, lucrava com as persecuções
criminais, restando à vítima uma posição deveras subalterna.

3. O ofendido no Código Criminal de 1830 e na legislação correlata do


Brasil Império (1824-1858)

Iniciando a incursão no Código Criminal de 1830, mostra-se relevante a


análise de algumas das circunstâncias que orbitaram a efetivação dos dispositi-
vos relativos ao ofendido na legislação imperial brasileira. Costuma-se atribuir a
ascendência mais substancial do Código de 1830 ao projeto de Bernardo Pereira
de Vasconcelos, o que, consoante Vivian Costa, revela superficialidade na análise,
afinal, a partir de um exame mais apurado, cotejando-se os dispositivos presentes
no projeto e naqueles efetivamente constantes da legislação aprovada, as dife-
renças mostram-se muito mais acentuadas do que o usualmente manifestado.
Nesse sentido, aduz:22
Um estudo atento do conteúdo deste projeto revelou-nos, assim, não
apenas suas múltiplas diferenças em relação ao código finalmente aprovado,
mas também, e talvez principalmente, o fato de as alterações empreen-
didas sobre seu texto (especialmente entre 1829 e 1830) relacionarem-se
diretamente a uma proposta política articulada no interior do Parlamento
brasileiro – parcialmente efetivada com a aprovação do código penal –,
em muito distinta do projeto preconizado por Vasconcelos.

Já no tocante ao tratamento destinado ao ofendido pelo Código de


1830, podem-se invocar influências mais distantes, ainda que veiculadas por
meio do projeto de Vasconcelos, a exemplo dos influxos proporcionados pelo
Código Penal Francês de 1810. Conforme Vivian Costa, o artigo 30 – pelo qual
“a completa satisfação do offendido preferirá sempre ao pagamento das multas,
a que tambem ficarão hypothecados os bens dos delinquentes, na fórma do art.
27” – tem raízes no artigo 54 do diploma francês.23

Como visto, o desenvolvimento da teoria do bem jurídico tornou a ofensa


delitiva à pessoa da vítima meramente reflexa, considerando que o crime passava
a atingir um bem cuja proteção de natureza penal devia estar prevista em lei. A
violação, do ponto de vista do teórico, não mais se via como dirigida ao indi-
21 CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de política criminal orientado para a vítima de crime. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p. 57.
22 COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro: o Código Criminal de 1830 e
a positivação das leis no pós-Independência. 2013. 361 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Filosofia, Programa
de Pós-graduação Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2013, p. 219.
23 Idem, p. 259.

191
O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

víduo ofendido, o que proporcionou ao Estado o protagonismo da persecução


penal. No entanto, do ponto de vista legal, no âmbito do Brasil Império, não se
promoveu um alheamento em absoluto da figura do ofendido.

A legislação criminal do período, notadamente o Código Criminal de 1830,


foi erigida sob os ditames do artigo 179 da Constituição de 1824, especialmente
do inciso XVIII, que estabelecia as suas “sólidas bases” de justiça e equidade. No
título 8º da Constituição, previam-se as garantias dos direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros, cuja inviolabilidade tinha por base “a liberdade, a segurança
individual e a propriedade”, consoante o caput do mesmo artigo 179.

Considerando que a presença da vítima no palco da persecução criminal


passa necessariamente pelo momento das sanções e obrigações impostas ao réu
condenado, vale mencionar que, pelo inciso XX do artigo 179, nenhuma pena
deveria passar “da pessoa do delinquente”, vedando-se a confiscação de bens e a
transmissão da “infâmia” aos seus parentes, em qualquer grau que fosse. Também
no que concerne às penas, aboliram-se os açoites, a tortura e a marca de ferro
quente, bem como “todas as mais penas cruéis”, ainda que tenham sido mantidas
sanções eivadas de crueldade, como a morte por forca e as galés.24

Eis, em suma, os dispositivos constitucionais que, de alguma forma, po-


diam-se relacionar à figura do ofendido, que, como adiantado, tinha reservado o
Capítulo IV, da Seção III, do Código Criminal de 1830, intitulado “Da satisfação”.

Além da análise da legislação criminal vigente à época, notadamente o


Código de 1830, toma-se por base a obra de Braz Florentino intitulada “Código
Criminal do Império”25, que traz anotações de leis, decretos, avisos e portarias
publicados até o ano de 1858. Também se elencam e se relacionam no mesmo
livro, por meio de um apêndice, leis adicionais ao código que foram promulgadas
posteriormente, o que proporcionará um recorte temporal a refinar a investigação
de tal período, uma vez que traz a legislação criminal correlata publicada até
1858, ano de publicação do livro.

Antes de se adentrar no tratamento do ofendido contido no mencionado


capítulo sobre a satisfação do dano, que de fato concentrava quase que a totalidade
das menções ao ofendido no Código Criminal de 1830, importante fazer menção
ao seu artigo 19 que dispunha que a “sensibilidade do offendido” influenciaria no
agravamento ou na atenuação do crime. Neste particular, parece que o Código
24 Art. 44. A pena de galés sujeitará os réos a andarem com calceta no pé, e corrente de ferro, juntos ou
separados, e a empregarem-se nos trabalhos publicos da provincia, onde tiver sido commettido o delicto, á
disposição do Governo.
25 Código Criminal do Império: annotado com as leis, decretos, avisos e portarias publicados desde a sua
data até o presente, e que explicação, revogação ou alteração algumas das suas disposições, ou com ellas tem
immediata connexão: acompanhado de um appendice contendo a integra das leis addicionaes ao mesmo
codigo, posteriormente promulgadas.

192
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Criminal de então já antecipava os modernos conceitos de vitimologia, hoje


insculpido no artigo 59 do Código Penal vigente. No qual o comportamento da
vítima deve ser levado em consideração para fixação das penas.

O espírito normativo que pautava as menções ao ofendido na persecução


criminal estava insculpido resumidamente no artigo 21, que determinava que o
delinquente deveria satisfazer o dano que causasse com o delito. Tal satisfação,
nos termos do artigo 22, deveria ser sempre a mais completa possível, devendo a
dúvida militar em favor do ofendido. Para tanto, devia-se avaliar “o mal” causado
à pessoa “em todas as suas partes e consequências”. A este respeito, Paula Pessôa26
traz excerto da Revista do Supremo Tribunal n. 7798, de 13 de maio de 1871:
Os bens do condemnado ficam legalmente hypothecados, para a satis-
fação do damno que causou com o delicto, emquanto não é o mesmo
damno satisfeito; não obstante haver cumprido a pena; pois cumprida
esta, expiado está o mal moral do delicto, isto é, a offensa feita á Lei e
á sociedade; e com a satisfação expira o mal material do mesmo felicto,
isto é, o damno causado ao offendido, a cuja satisfação estão sujeitos
aquelles mesmos, que não podem ser julgados criminosos, quando causam
damno, como do Art. 11 deste Codigo.

Percebe-se que o caráter reparatório da lei apresentava um caráter essen-


cialmente patrimonial, sendo a satisfação mais facilmente aplicável a crimes contra
o patrimônio, como o estelionato (artigo 263) ou o dano (artigo 266). Em caso
de furto, por exemplo, de acordo com o artigo 23, a restituição preferível seria da
própria coisa furtada, com a devida indenização por deterioração, sendo possível
também a satisfação com coisa equivalente na falta da res furtiva. Devia-se restituir
a coisa objeto do crime ainda que esta estivesse em poder de terceiro, ressalvan-
do-se o direito de indenização pelos bens do autor do fato delitivo (artigo 24).

Pelo artigo 25, também em caso de impossibilidade de restituição da


coisa em questão, procedia-se à avaliação desta tanto pelo seu preço ordinário
quanto pelo de “afeição”, desde que este não excedesse à soma daquele. Também
se computavam, em tais avaliações, não apenas os juros ordinários, mas também
os juros compostos, sendo considerados à proporção do dano causado e desde
a data do cometimento do crime.

Em caso de concurso de agentes, nos termos do artigo 27, todos deviam


promover a satisfação do dano, em solidariedade, com a possibilidade de hipoteca
dos seus bens desde o momento do delito.

Como ressalva ao disposto no inciso XX do artigo 179 da Constituição de


1824, que visava a impedir que a sanção recaísse além da pessoa do réu, o artigo
26 PESSÔA, V. A. de Paula. Código Criminal do Império do Brazil annotado: com leis, decretos, jurisprudência
dos Tribunaes do paiz e avisos do governo até o fim de 1876. Rio de Janeiro: Livraria Popular, 1877, p. 75.

193
O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

28 do Código Criminal previa duas hipóteses de obrigação de satisfação atribuídas


a pessoa diversa da do autor do delito, quais sejam, “o senhor pelo escravo até
o valor deste” (parágrafo primeiro) e “o que gratuitamente tiver participado dos
produtos do crime até a concorrente quantia” (parágrafo segundo).

Neste ponto, Braz Florentino, em suas anotações acerca do artigo 28,


menciona que foi levada ao conhecimento do “Governo” a seguinte dúvida: caso
um réu escravo fosse condenado às penas dos crimes previstos nos artigos 20127
e 25728, dentre outros, e estas, no lugar de prisão simples ou trabalho, fossem
comutadas em açoite, nos termos do artigo 60, as penas de multa deveriam sofrer
a mesma comutação ou deveriam ser realmente satisfeitas em dinheiro, com a
respectiva obrigação do senhor até o valor do escravo?29

Como solução, recorreu-se ao texto do artigo 60, o qual estabelecia


que, se o réu escravo incorresse em pena distinta da capital ou de galés, seria
condenado à pena de açoites e depois entregue ao seu senhor, que deveria
“trazê-lo com um ferro” pelo tempo e à forma que o juiz designasse. Nesse
caso, não se confundido a pena de multa com a capital ou a de galés, deveria
sofrer a mesma comutação, afinal ostentava a mesma natureza criminal. É dizer,
se a multa constituía pena – e não satisfação do dano causado –, não deveria
ir além do escravo condenado, sendo o seu senhor obrigado apenas à satisfação,
nos termos do artigo 28.

No mesmo sentido dispunha o artigo 29, que previa a obrigação de sa-


tisfazer o dano pelos “herdeiros dos delinquentes até o valor dos bens herdados”,
cabendo também aos herdeiros dos ofendidos o direito à satisfação.

Verificava-se, portanto, uma clara diferenciação entre pena e satisfação


do dano. À vítima cabia apenas a satisfação pelo dano sofrido em decorrência
do crime. Não havia ingerência do ofendido acerca da pena nem lhes cabia o
proveito destas, nem mesmo das de multa, que eram recolhidas aos cofres das
Câmaras Municipais (artigo 56). Já a satisfação pelo dano causado, como visto,
era devida ao ofendido e aos seus herdeiros.

Ainda quanto à relação entre pena e satisfação, previa o artigo 30 que a


completa satisfação do ofendido tinha precedência sobre o pagamento de multas,
cabendo ainda a hipoteca dos bens do autor do fato, nos termos do artigo 27,
que tratava da obrigação solidária entre os agentes em concurso.

27 Art. 201. Ferir ou cortar qualquer parte do corpo humano, ou fazer qualquer outra offensa physica, com
que se cause dôr ao offendido.
28 Art. 257. Tirar a cousa alheia contra a vontade de seu dono, para si, ou para outro.
29 SOUZA, Braz Florentino Henriques de. Código Criminal do Império do Brasil. Recife: Typographia Universal,
1858, p. 22.

194
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Para que se efetivasse a satisfação do ofendido, conforme o artigo 31,


era necessário o transito em julgado da condenação, salvo as seguintes situações:
1) ausência do falecido, podendo haver satisfação por meio de ação civil; 2)
falecimento do réu depois da pronúncia, subsistindo a satisfação por meio de
ação civil pelos herdeiros; e 3) quando o ofendido preferir a utilização da ação
civil contra o autor do fato. A respeito de tal dispositivo, colaciona-se anotação
de Antonio Tinôco:30
Si não foi intentada a acção criminal, póde-se por acção civil pedir a
indemnisação, questionando-se sobre o facto e quem seja seu autor.
Si foi intentada a acção criminal e a decisão foi de condemnação, re-
conhecido está o direito do offendido á indemnisação, e o offensor
não poderá negar ter sido autor do delicto, porque não se poderá mais
questionar sobre a existencia do facto e sua autoria.
Si a decisão fôr de absolvição, é preciso distinguir:
Si pela decisão criminal foi negado o facto, ou reconhecido não ter sido
o réo delle autor, não ha direito á indemnisação, e, por conseguinte, não
se poderá intentar acção civil, porque a decisão criminal constitue – cousa
julgada – e a acção civil importaria em fazer reviver um julgado, que
passou em ultima instancia no juizo criminal, destruindo as garantias e
effeitos juridicos da absolvição.
Si, porém, a decisão criminal reconheceu o facto e seu autor, mas não
teve lugar a condemnação por alguma circumstancia justificativa, que
dirimiu a criminalidade, ha lugar á indemnisação, e portanto, poderá ser
intentada a acção civil.

Com a Lei n. 261, de 3 de dezembro de 1841, que reformou significati-


vamente o Código de Processo Criminal do Império, mais especificamente com
seu artigo 68, a indenização em todos os casos deveria ser obtida por ação cível,
tendo sido revogado o artigo 31 do Código Criminal, assim como o §5º do artigo
269 do diploma processual, que previa como pergunta ao conselho de jurados do
Tribunal do Júri a indagação “Se ha lugar á indemnização?”. No entanto, estando
a existência do fato e a autoria decididas no âmbito do processo criminal, não
se poderia mais questionar tais pontos na aludida ação cível.

Encerrando o capítulo relativo à satisfação do ofendido, dispõe o artigo


32 que, se o autor não tivesse meios para satisfazer o dano causado, dentro do
prazo de oito dias, seria condenado à prisão com trabalho pelo tempo necessário
para auferir o valor com que pudesse realizar o pagamento. De todo modo, tal
condenação restaria sem efeito logo que o indivíduo – ou alguém em seu favor
– prestasse “fiança idônea ao pagamento em tempo razoável”, bem como se o
ofendido se desse por satisfeito.

30 TINÔCO, Antonio Luiz Ferreira. Código Criminal do Império do Brazil annotado. Brasília: Senado Federal, 2003,
p. 63-64.

195
O TRATAMENTO LEGAL DESTINADO AO OFENDIDO NO BRASIL IMPÉRIO (1824-1858)

Por fim, mencione-se a coexistência de dispositivos do Código Criminal


a prever a imprescritibilidade das penas (artigo 65); a obrigação de satisfazer ple-
namente o mal causado, mesmo se houvesse perdão ou minoração de sentença
pelo Poder Moderador (artigo 66); e que o perdão do ofendido, antes ou depois
da prolação da sentença, não eximia as penas relativas aos chamados “crimes
públicos”, bem como aquelas relativas aos “crimes particulares” em que tivesse
lugar “a acusação por parte da Justiça” (artigo 67).

Neste tocante, Vivian Costa afirma que “conviviam, portanto, nestes dispo-
sitivos, concepções extremamente modernas e outras mais antigas, do direito penal
coevo”, uma vez que “a absoluta independência reservada à Justiça na abertura
de processos públicos não condizia” “com a não admissão de prescritibilidade às
punições ou a aceitação de intervenção judicial pelo Poder Moderador”31.

A respeito do disposto no artigo 67 do Código Criminal, Antonio Ti-


nôco traz o Aviso n. 285, de 31 de Dezembro de 1853, segundo o qual, “no
32

caso de perdão concedido pela parte queixosa, não póde ser elle julgado válido
e effectivo senão por escriptura pública, ou sendo reduzido a termo nos autos,
assignado pela parte”. O mesmo Aviso ainda afirma que não basta “para esse fim
a intenção manifestada na petição, e aceita pelo juiz”.

4. Considerações conclusivas

No entanto, mesmo antes da publicização do direito penal, período em


relação ao qual usualmente se julga ter vigorado um verdadeiro ciclo indiscriminado
de vinganças ilimitadas, verificava-se a importância dos laços sociais a pautar os
costumes e as reações às condutas consideradas perniciosas. É dizer, mesmo na
chamada “Idade de Ouro” da vítima, uma espécie uma espécie de sentimento
comunitário superior era observado quando das medidas adotadas frente às
violações cometidas, o que foi se aperfeiçoando com o paulatino processo de
sedentarização, com o crescente desenvolvimento das técnicas de acumulação
de recursos.

No mesmo sentido, quanto à legislação criminal do Brasil Império, verifica-


se que, apesar de ter recebido influências iluministas tendentes à humanização
das penas, ainda as trazia com certo ranço de crueldade, a exemplo da forca e
das galés. Nesse período, com o desenvolvimento da teoria do bem jurídico, a
vítima, que protagonizava as vinganças decorrentes de delitos sofridos, passa a ser
neutralizada no âmbito da persecução penal ao longo do século XIX.
31 COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação do Estado-nacional brasileiro: o Código Criminal de 1830 e
a positivação das leis no pós-Independência. 2013. 361 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Filosofia, Programa
de Pós-graduação Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2013, p. 206.
32 Op. cit., p. 135-136.

196
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Contudo, o Código Criminal de 1830, assim como a legislação criminal


correlata, reservava diversos dispositivos em atenção ao ofendido, que fazia jus ao
completo ressarcimento, na medida do possível, pelo dano sofrido com o delito.

Assim, pode-se afirmar que, a despeito da paulatina neutralização da


vítima verificada com o desenvolvimento da teoria do bem jurídico e da Escola
Clássica do Direito Penal, contemplava-se, no Brasil Império, notadamente no
âmbito do Código Criminal de 1830, a figura da vítima como sujeito de direitos
no processo criminal.

Muito embora a chamada “Idade de Ouro” da vítima chegasse ao seu


ocaso naquela quadra do tempo para a doutrina que, ao menos sob os olhos de
hoje, figurava como a mais destacada, o Código de 1830 e a legislação correlata
revelam que os ofendidos ostentavam alguma importância na persecução criminal,
fazendo jus ao ressarcimento mais completo possível em decorrência do dano
sofrido com o delito, contando com diversos dispositivos legais nesse sentido.

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198
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO


CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890 E
AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E
GAROFALO

DELMIRO XIMENES DE FARIAS


Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
Especialista em Direito Penal pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR)

Resumo
A pena de morte sempre foi assunto articulado em várias épocas da
história da humanidade, existindo intensas discussões no século XIX, no qual
foi promulgada a Constituição brasileira de 1891, que trouxe oficialmente, pela
primeira vez, a abolição da pena de morte no país. Mas, na prática, desde
o reinado de Pedro II, havia um crescente desuso desta punição, muito por
conta do poder moderador do imperador, através da qual era concedida graça,
perdão ou comutação da pena de morte. No Congresso Nacional Constituinte
de 1890, ocorreram acirrados debates entre parlamentares, uns defendendo a
abolição da pena capital, e outros pretendendo sua manutenção. Entre estes,
o principal argumento era de que existiria a classe do criminoso nato o qual
não teria possibilidade de recuperação ou ressocialização, ideias semelhantes e
baseadas, por exemplo, em Lombroso e Garofalo. Dentre os argumentos a favor
da abolição da pena de morte, destacam-se as de que tal castigo não poderia
ter o condão de vingança, mas sim de prevenção de crimes, e, além disso, a
sociedade não teria o direito de retirar a vida de seus membros. Tais noções
aproximam-se daquelas trazidas por Beccaria. Para a elaboração deste trabalho,
utilizou-se obras dos citados autores e de comentadores, além daqueles que
tratam da pena capital durante a história do Brasil. Ainda, utilizou-se documentos
históricos, nitidamente os anais do Congresso Nacional Constituinte de 1890.

Introdução

A pena de morte para crimes comuns foi oficialmente abolida no Brasil,


pela primeira vez, na Constituição de 1891. Antes disso, na história do país ela
sempre teve previsão normativa. Por ser um castigo que ataca um dos bens ju-
rídicos considerados mais importantes pela maior parte da sociedade ocidental,
importante se faz tomar conhecimento das discussões e motivos que levaram
para tal decisão do Congresso Nacional Constituinte de 1890.

Raros são os trabalhos que visam colocar em pauta os discursos dos


senadores e deputados participantes da elaboração da primeira Constituição
da república. Encontra-se trabalhos que demonstram como era o tratamento

199
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

normativo da pena de morte no império e no regime seguinte. Outros que


apontam que a pena de morte, mesmo durante o governo de D. Pedro II, estava
em decadência. Pela ausência de escritos condensando as principais ideias dos
constituintes de 1890, o presente trabalho foi elaborado.

Desta forma, o principal objetivo deste escrito é apresentar os discursos


dos parlamentares do referido Congresso, fazendo uma ligação com alguns dos
principais autores do problema criminal entre os séculos XVIII e XIX, quais sejam,
Beccaria (1738-1794), Lombroso (1835-1909), e Raffaele Garofalo (1851-1934).

Assim, com esta finalidade, apresenta-se primeiro um contexto de como


era o tratamento normativo e a utilização da pena de morte no regime anterior
à Constituição de 1891. Na segunda parte, apresenta-se as ideias dos referidos
pensadores, os quais são as principais bases doutrinárias da discussão parlamentar
que envolveu a abolição da pena de morte. Na última parte, e mais extensa,
mostra-se a discussão parlamentar acerca da abolição da pena de morte na
primeira Constituição da República.

A pesquisa sobre os argumentos de cada congressista foi realizada através


de fonte primaria, qual seja, os anais do Congresso Nacional Constituinte, dividido
em três volumes. Em razão de sua extensão, foi necessária fazer pesquisa por
palavras-chaves no arquivo digital, como “pena”, “morte”, “capital”, “21” e “22”. Além
da busca por estas palavras chaves, foram utilizados os índices por sessão de cada
volume dos anais, os quais apontam votações e debates acerca do Título IV do
projeto de Constituição, no qual está inserido o artigo 72, que trata da declaração
de direitos. Também foi utilizado os índices temáticos dos anais de cada volume,
os quais indicam as páginas que se discutiram a pena de morte.

1. O contexto da pena de morte no regime anterior

A pena de morte, até a proclamação da república, sempre teve respal-


do jurídico sem interrupções através das Ordenações Afonsinas, Manuelinas e
Filipinas para punir, por exemplo, os crimes de lesa-majestade. Diferente do que
viria acontecer nos códigos criminais a partir da independência, as Ordenações
não conferiam, para cada crime, uma pena específica, deixando para o julgador
o papel de decidir pelo castigo mais adequado ao caso, apesar de, no Livro V,
fazer menções ao castigo por morte cruel (CABRAL, 2016, p. 31).

Com a outorga da Constituição de 1824, houve a abolição das penas


cruéis, no artigo 179, XIX. Ocorre que, o entendimento da época era de que a
pena capital, realizada através da forca, não se configurava cruel, sendo permitida
(TUCUNDUVA, 1976, p. 33). Em 1830, foi publicado o primeiro Código Criminal
brasileiro. Esta lei refletiu o entendimento da época, trazendo em seu bojo de

200
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sanções a pena capital para alguns crimes, como o homicídio em situações graves.
Além disso, este código mandava que fosse aplicada através da forca em praça
pública, e também que não se executará mulher grávida.

Entre outras particularidades sobre esta punição, ela não poderia ser re-
alizada em dias santos, de festa nacional ou domingos. Após a morte, o corpo
do condenado deveria ser entregue à família ou amigos. O carrasco deveria ser
alguém já condenado (TUCUNDUVA, loc. cit.). De acordo com o Código de
Processo Criminal do Império de 1832, em seu artigo 332, a pena de morte só
era cabível quando houvesse unanimidade entre jurados.

No império, durante a vigência das codificações citadas, a pena de morte


era suscetível à vários recursos, inclusive o protesto por novo júri. Também havia a
possibilidade de buscar o Imperador, para que ele conceda sua graça, perdoando
ou comutando a pena. Esta possibilidade era prevista na Constituição de 1824,
no artigo 101, VIII, em razão do Poder Moderador.

Apesar de este poder estar positivado através de meios temporais e huma-


nos, a graça do monarca tinha origem divina. Segundo António Manuel Hespanha
(2006, p. 106), o príncipe, o rei ou o imperador eram representantes de Deus no
mundo terreno e, através deles, a vontade desta divindade se manifestava. Mas,
segundo o mesmo autor (2006, p. 107), a graça do príncipe estava limitada em
relação à valores, e só era possível fazer uso para se alcançar equidade e justiça.

A pena de morte, no Brasil imperial, era rechaçada por alguns estudiosos,


como João Barbalho Uchoa Cavalcanti (1902, p. 327), o qual afirmava que a graça
imperial começou a ser bastante utilizada em razão de que os próprios costumes
da época passaram a não mais aceitar a pena capital por ser irreparável e ignorar
os princípios humanitários.

À época, Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente (1857, p. 418), en-


sinava, sobre as penas cruéis, que um forte sentimento de insegurança e medo
entraria na mente de qualquer pessoa, já que ninguém está isento de cometer
crimes, mesmo graves, em situações extremas ou por paixões exageradas. Por isso,
e também em razão de o criminoso fazer parte da sociedade e da raça humana,
as penas deveriam ser aplicadas com parcimônia, de modo civilizado próprio de
um Estado de Direito.

Segundo Marcos César Alvarez, Fernando Salla e Luiz Antônio Souza, a


pena de morte, entre outras, estava ultrapassada, pois não se prestavam para
corrigir a população e realizar a prevenção de crimes (2003, p. 17).

201
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

Então, D. Pedro II, que se pretendia uma pessoa justa, sem poder retirar
do ordenamento jurídico brasileiro a pena de morte, utilizou-se do seu Poder
Moderador para, cada vez mais, conceder sua graça aos condenados à pena
de morte. Assim, aos poucos, a pena capital foi sendo deixada de lado, até um
ponto que, na prática, ela deixou de ser utilizada.

O principal caso que fez com que o imperador passasse a ter esta postura
foi a condenação de Manuel Motta Coqueiro à forca. Tal julgamento entrou para
a história como um dos mais importantes exemplos de erro judiciário no país.
Motta Coqueiro era um abastado fazendeiro em Macaé, no estado do Rio de
Janeiro. Ele foi condenado à morte por assassinar uma família de colonos de sua
fazenda, da qual uma moça era sua amante. Foi o principal suspeito em razão
de depoimentos de sua própria escrava e por ter tido desentendimentos com
o patriarca da família (AGUIAR; MACIEL, 2016, p. 276).

Para evitar a morte, pediu socorro à graça do Imperador, que foi negado.
Motta Coqueiro, conhecido como a Fera de Macabú pela imprensa, acabou
sendo executado na forca no dia 06 de março de 1855. Após a execução do
condenado, descobriu-se que a verdadeira mandante do crime foi sua a esposa.

Mesmo assim, este não foi o último caso de pena de morte imposta
juridicamente durante o império. João Luiz Ribeiro (2005, p. 234) afirma que ainda
naquele ano de 1855, no dia 12 de maio, houve outra pena capital, que teve
como condenado o escravo Agostinho por ter assassinado seu senhor. Segundo
o mesmo autor, o mesmo castigo foi aplicado a Francisco Batista Ribeiro em
maio de 1857 na cidade de Caldas, Minas Gerais (RIBEIRO, 2005, p. 238). Nota-se,
então, que a pena de morte continuou em uso mesmo após o caso da Fera de
Macabú, apesar de que a tendência de comutação da punição foi aumentando.

Há ainda relato de Horácio de Almeida (1980, p. 80) de que um homem


livre foi condenado a esta sanção, Antônio José das Virgens, conhecido como Beiju,
em 08 de maio de 1861, em Areia na Paraíba. A última pessoa a ser executada
no Brasil pela Justiça Civil, através de sentença condenatória à pena de morte,
teria sido o escravo Francisco, na cidade de Pilar, em Alagoas, em 28 de abril de
1876 (RIBEIRO, 2005, p. 298).

Com a proclamação da república, o Código Penal de 1890 e a promul-


gação da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1891, a pena de morte
em tempos de paz foi abolida. As discussões parlamentares estavam pautadas na
não utilização prática da pena capital durante o império, na desumanidade e na
falta do caráter preventivo da sanção. Mas também haviam muitos argumentos
a favor da sua manutenção.

202
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Mas, antes de entrar nas discussões parlamentares acerca da pena de


morte no Congresso Nacional Constituinte de 1890, será feito uma rápida pas-
sagem sobre alguns dos principais autores que influenciaram de alguma forma
os debates, quais sejam, Beccaria (1738-1794) por um lado, além de Lombroso
(1835-1909) e Garofalo (1851-1934), por outro, os quais são os ícones das prin-
cipais escolas doutrinárias de questões penais que repercutiram nos debates da
constituinte de 1890.

2. As ideias de Beccaria, Lombroso e Garofalo

Cesare Beccaria, italiano, viveu entre 1738 e 1794 no contexto do Ilumi-


nismo, sendo bastante influenciado pelas ideias contratualista. Sua maior obra foi
Dos Delitos e das Penas, publicado a primeira vez em 1764.

Segundo Giovanni Tarello (1998, p. 465), Beccaria conjugava esta ideia con-
tratualista de Estado com uma teoria utilitarista. A partir da primeira, na qual as
pessoas cediam pequena parcela de sua liberdade para a formação de um Estado
que pudesse proteger a todos, respeitando, ao máximo possível, o direito de cada
indivíduo, o crime passa a ser uma agressão à sociedade, e também à soberania.
Desta forma, deveria haver uma reação que seria ligada a ideias utilitaristas, ou
seja, a reação ao crime deve estar próxima à fins práticos da vida terrena.

As penas se afastariam da ideia de vingança, sendo meios ou motivos


sensíveis para a defesa da sociedade (BECCARIA, 1765, p. 8-9): “Questi motivi
sensibili sono le Pene stabilite contro agl’infrattori delle Leggi”. Tais meios sensíveis só
poderiam ocorrer para um fim prático, que é coagir as pessoas a não cometerem
crimes, tendo um caráter preventivo. Tais sanções, em razão da teoria contratualista,
deveriam ser o suficiente para a finalidade descrita acima, sob pena de ofender
os direitos naturais do indivíduo, notando-se uma perspectiva humanitária. Assim,
em resumo, a pena deve ser útil, e se não for, é injusta (BECCARIA, 1765, p. 13):
l’a atrocità delle pene se non immediatamente opposta al ben pubblico,
ed al fine medesimo d’impedire i delitti, fosse solamente inutile, anche in
questo caso essa sarebbe non solo contraria a quelle virtù benefiche, [...]
ma lo sarebbe alla giustizia.

Com base nos fundamentos do poder de punir e o limite apontado, para


Beccaria, a pena de morte é inútil e ilegítima (TARELLO, 1998, p. 478), pois ela
não teria o condão de prevenir crimes e também pela razão de que o Estado
não teria este poder, já que a liberdade cedida por cada indivíduo não chegou
ao ponto de ceder a própria vida.

O italiano dizia que quanto mais pesadas as penas, menos efeito irá
surtir nos infratores, pois estes podem tentar fugir para evitar a sanção, inclusive

203
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

cometendo novos crime para tanto. Ainda, sabendo que já serão submetidos a
uma pena extremamente gravosa, não tem mais motivo para evitar novos crimes
(BECCARIA, 1765, p. 70).

Além disso, penas severas acabam por tirar a humanidade aos poucos da
população, pois as pessoas vão se acostumando com a selvageria, fazendo com
que suas condutas interpessoais fiquem cada vez mais primitivas. Ao contrário,
se o Estado não permite o tratamento desumano, aos poucos a população vai
ficando mais sensível a atos cruéis, diminuindo a incidência destas condutas no
próprio meio social (BECCARIA, 1765, p. 71).

Beccaria defende a pena de escravidão perpétua, como um constante


lembrete para os outros cidadãos (1765, p. 78). A morte é permanente, mas a
sua aplicação pelo Estado é rápida. Por este motivo, tal penalidade não possui a
capacidade de incutir medo, pois as pessoas são mais coagidas por uma punição
leve que perdura, por estar sempre a presenciando, do que um castigo sumário,
que requer que seja frequentemente aplicado. Assim, para a pena de morte
adquirir o caráter preventivo, seria necessário que crimes fossem cometidos com
frequência, o que seria um contrassenso à finalidade de evitá-los.

Cesare Beccaria também aponta mais dois argumentos, um de cunho


sentimental e outro lógico. O primeiro consistiria em que as pessoas, naturalmente,
em seu íntimo, não aceitam a pena de morte, pois sabem que a vida seria o mais
importante de todos os bens humanos, e também porque, quando se olha para
o carrasco, sempre se tem um sentimento de desprezo. A justificativa de cunho
lógico seria mais um contra-argumento a uma falácia de que, por ser a pena de
morte utilizada em várias nações por muito tempo, ela é a mais adequada. Uma
coisa não levaria a outra. Não é porque um erro é amplamente repetido que ele
se tornará um acerto (1765, p. 81-82).

No século seguinte, o XIX, surgiu a escola positivista da criminologia, uma


doutrina a qual se preocupava mais com a investigação científicas de fatos, que, no
caso, era o crime e o seu agente. O maior expoente foi Cesare Lombroso, médico
e filósofo nascido também na Itália em 1835 e morto em 1909. Foi influenciado
pelo positivismo de Augusto Comte e o evolucionismo de Darwin. Por isto, suas
pesquisas científicas se deram com base em características biológicas dos crimi-
nosos, para tentar explicar os motivos de suas condutas antissociais, o que levou
a elaboração de sua principal obra, O Homem Delinquente, publicado em 1876.

Lombroso, utilizando o método empírico-indutivo, relacionou característi-


cas fisionômicas aos criminosos, criando esta categoria de pessoas que poderiam
ser identificadas através de tais aspectos aparentes de seu corpo, como a quanti-
dade de cabelo, peso, altura, existência de rugas frontais, entre outros (SHECAIRA,

204
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

2013, p. 87-88). Além disso, relacionava também aspectos cranianos e cerebrais


para a identificação do delinquente. A epilepsia também era um indicador de
que o indivíduo seria um degenerado.

Haveria um tipo de criminoso que seria nato, ou seja, aquele que possui
características hereditárias que o impulsionam ao cometimento de condutas que
ofendem os bens mais importantes da sociedade. Este tipo de pessoa possuiria
uma genética diferente, derivando a ideia do atavismo, pela qual os seus porta-
dores seriam uma subespécie humana, degenerada, do tipo que não evoluiu, ou
seja, ainda primitivo.

Desta forma, o criminoso nato seria um selvagem, que teria todas as


condições genéticas para atuar de forma indisciplinada. Daí surge a ideia de um
determinismo biológico, pela qual a vida de uma pessoa teria uma grande influ-
ência de sua carga genética, que inclui a característica da delinquência. Assim, se
a pessoa com essas características já nasce delinquente, o crime não seria uma
categoria jurídica criada pelo homem, mas sim um “fenômeno biológico” (SHECAI-
RA, 2013, p. 88). Ainda, as tatuagens tinham uma ligação com a criminalidade,
já que a pessoa portadora do atavismo teria uma maior tolerância à dor, sendo
uma particularidade de homens selvagens ou primitivos (LOMBROSO, 2010, p. 28).

Os fatores externos ao indivíduo, como seu meio social, a forma como


foi criado pelos pais, sua carga cultural e o clima do local onde vive não são
determinantes para que o delinquente nato cometa os crimes. Estas circunstâncias
somente contribuem para que o atavismo se manifeste, ou seja, ativariam uma
característica inata do tipo criminoso.

De acordo com a introdução da tradução feita por Sebastião José Roque


da obra de Lombroso (2010, p. 8), este teria declarado ser a favor da pena de
morte em um pequeno livro de 1893 chamado “As mais recentes descobertas e
aplicações da psiquiatria e antropologia criminal”. O criminoso nato é irrecuperável,
ou seja, sua característica congênita do atavismo nunca poderia ser retirada de
seu corpo. Desta forma, não se pode deixar tal indivíduo no meio social. Deve
ele ser segregado de forma perpétua e, se mesmo assim ainda for uma ameaça
à sociedade, deve ser eliminado.

Na mesma linha de Lombroso, há que se falar de outro autor da escola


criminologia positivista, qual seja, o também italiano Raffaele Garofalo, que viveu
entre os anos de 1851 e 1934. Além de jurista, também chegou a altos cargos
no então reino da Itália no início do século XX. Sua maior obra, intitulada de
Criminologia do ano de 1885, expandiu ainda mais as ideias da referida escola.

205
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

De todas as suas ideias, é importante trazer os conceitos dos sentimentos


de probidade e o de piedade. Uma sociedade evoluída e não degenerada deveria
ter em seus membros a probidade e a piedade (ANITUA, 2008, p. 314). Haveria
países em que a maioria das pessoas não os teriam, sendo, então um Estado
degenerado. Mesmo assim, todas as sociedades apresentariam alguns membros
sem um desses sentimentos.

O sentimento de probidade seria aquele que faz com que o indivíduo


não viole a propriedade do outro, enquanto o de piedade evitaria com que a
integridade física e a saúde dos outros fossem ofendidas. Em relação àqueles que
não possuem o sentimento de probidade, não é preciso eliminá-los definitivamen-
te. Bastaria a deportação ou expulsão para que ele não seja mais um perigo à
sociedade. (GAROFALO, 1912, p. 273-275).

Mas em relação àqueles desprovidos de sentimento de piedade, ou seja,


que cometem atos contra à vida e à integridade física, não haveria castigo que
pudesse evitar que a reiteração dessas condutas (GAROFALO, 1912, p. 267-268).
Desta forma, nestes casos, Garofalo defende a pena de morte em razão da
impossibilidade de ressocialização. Nota-se que o autor tinha como base a ideia
do delinquente natural, isto é, aquele que traz dentro de si as características
hereditárias que determinam sua atuação criminosa durante a vida.

Os delinquentes deveriam ser excluídos da sociedade de alguma forma


e fazê-lo é levar a pessoa à morte, já que o homem não consegue sobreviver
sozinho. Além disso, colocar o delinquente em sociedades rudimentares não tem
o condão de excluí-lo da vida coletiva. Assim, a pena de morte é inevitável, já
que o criminoso ou morrerá sozinho, ou não será excluído do meio social. (GA-
ROFALO, 1912, p. 268).

Importante dizer também que o agente de uma infração penal não


deveria ser punido conforme a sua conduta, mas sim conforme a sua própria
periculosidade. Isto é, mede-se a pena não de acordo com o crime cometido,
mas conforme a vida pregressa e a possibilidade o agente voltar a cometer delitos.
(ANITUA, 2008, p. 314).

As ideias destes autores e de seus discípulos dão base ao debate no


Congresso Nacional Constituinte de 1890 quando o assunto é pena de morte.
Assim, no próximo tópico, serão apresentados os argumentos de cada parlamentar
acerca do tema que foram registrados nos anais de tal congresso.

206
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

3. Os debates no Congresso Nacional Constituinte de 1890 acerca da pena


de morte

Antes de tudo, vale esclarecer que as informações postas neste tópico são
retiradas dos anais do Congresso Nacional Constituinte de 1890. Por vezes, estes
documentos oficiais não indicam quem teria proferido uma afirmação ou outra,
e, por isto, aqui também não foi possível identificar tais falas. Este Congresso, que
culminou na promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do
Brasil no dia 24 de fevereiro de 1891, teve seu início oficial no dia 15 de novem-
bro de 1890, sob a presidência do senador por São Paulo, Prudente de Morais.

O texto do projeto da Constituição que chegou a ser distribuído aos


parlamentares em 21 de novembro de 1890, o qual seria objeto de debate, previa
em seu artigo 72, § 22, que a pena de morte ficaria abolida somente nos casos
de crimes políticos, mantendo-se para todos os outros casos.

Mas, em 10 de dezembro daquele ano, foi apresentado um parecer da


Comissão dos 21, o qual, constatando que a pena de morte, na prática, não estava
mais sendo utilizada, recomendava seguir um pensamento humanitário, abolindo
tal punição, ressalvada a possibilidade na legislação militar em tempos de guerra.

Durante o Congresso, propostas foram apresentadas para modificar o


dispositivo. Alguns queriam que a abolição da pena capital se desse de forma
irrestrita: deputados por Minas Gerais, José Carlos Ferreira Pires, Costa Machado,
Constantino Paletta, Francisco Veiga, Matta Machado; deputados pelo Rio de
Janeiro, Alcindo Guanabara e Oliveira Pinto; também Francisco dos Santos Perei-
ra (deputado pela Bahia), Tavares Bastos (senador por Alagoas), Menna Barreto
(deputado pelo Rio Grande do Sul).

Outros queriam a manutenção da redação original, afastando a pena so-


mente nos crimes políticos, como era a proposta do deputado por Pernambuco,
João Vieira de Araújo, e de Americo Lobo, senador por Minas Gerais. Ainda,
haviam aqueles, como Barbosa Lima, deputado pelo Ceará, que pretendiam que
se mantivesse a punição para qualquer caso.

Ao fim, com a promulgação da Constituição em 24 de fevereiro de


1891, no artigo 72, agora no § 21, ficou abolida a pena de morte, mas com a
ressalva de que seria permitida sua previsão na legislação militar para aplicação
em tempo de guerra.

É perceptível, através dos discursos, que a tese da abolição da pena de


morte nos crimes comuns tinha mais respaldo naquele Congresso (v. 2, p. 557).

207
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

Por este motivo, percebe-se que, para tentar reverter a situação, os discursos mais
longos eram de parlamentares que defendiam a sua manutenção.

A seguir, serão apresentados primeiro os discursos e ideias dos principais


parlamentares que eram contra a abolição da pena de morte para os crimes
comuns, quais sejam, os deputados Barbosa Lima e João Vieira de Araújo.

Após, serão apresentados os argumentos mais contundentes a favor da


abolição da pena de morte dos deputados José Cândido de Lacerda Coutinho
(Santa Catarina) e Inocêncio Serzedello Corrêa (Pará). Ao fim, serão apresentadas
falas mais breves de outros parlamentares, sejam a favor ou contra a abolição da
punição em questão.

3.1. O debate entre os deputados Barbosa Lima e Vicente Espírito Santo

O deputado pelo Ceará, Barbosa Lima, era a favor da manutenção da pena


de morte sem ressalvas, ou seja, as normas infraconstitucionais poderiam trazer
em seu bojo a pena de morte para qualquer tipo de crime, independentemente
de ser político ou militar.

Em seu discurso na 31ª sessão, do dia 13 de janeiro de 1891, o parlamentar


ironiza aqueles que defendem a abolição da pena capital, afirmando que estão
baseados numa doutrina que acredita que os homens são anjos, ou seja, os hu-
manitaristas seriam ingênuos, teriam uma visão romântica e um sentimentalismo
exagerado, pois acreditam que é possível fechar presídios criando escolas primárias
(v. 2, p. 510). Ele acha que a ideia da abolição da pena de morte é fruto somente
de um momento revolucionário onde tudo é questionável.

Critica tal doutrina também por serem progressistas demais, já que, apesar
de a sociedade ter se adaptado a novos valores morais, saindo, no passado, da
jus vitae ac necis do pátrio poder, passando por mutilações, torturas, até a pena
de morte sem suplício, alguns valores ainda não foram alcançados. Retirar o
rigor da pena com base nesse progresso seria não punir adequadamente, sendo
prejudicial à sociedade.

Nota-se uma influência das ideias de Lombroso e do darwinismo da


moral, quando ele fala que alguns indivíduos teriam uma característica hereditária
para o crime, e a eliminação dessas pessoas, evitando sua reprodução, causaria
uma diminuição de pessoas com esta tendência, e assim, os crimes diminuiriam.
Assim, mesmo com o progresso, ainda não se pode abolir a pena de morte, pois
ela é um mal necessário para tirar da sociedade essa característica genética da
delinquência (v. 2, p. 511).

208
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Segundo o deputado, a abolição da pena de morte seria uma forma de


desarmar a sociedade. Seria “não querer correr o risco de ferir um inocente para
que possa o criminoso trucidar muitos inocentes” (v. 2, p. 510).

Ele também censura a afirmação dos abolicionistas de que o Estado


não tem o direito de matar porque não pode dar a vida. Não há que se falar
em indivíduo, ou seja, considerar a pessoa como alguém isolado do mundo.
As pessoas sempre estão em sociedade (nação, tribo, família), e esta é que dá
condições para o desenvolvimento do indivíduo. Dessa forma, a pessoa tem
uma dívida inestimável com a sociedade, podendo esta cobrá-la, eliminando o
indivíduo caso cometa crimes graves.

Um outro parlamentar, não identificado nos anais, afirma que tal visão
de Barbosa Lima não se coaduna com a escola italiana da criminologia moderna,
pela qual a repressão criminal se presta para prevenir o cometimento de crimes,
e a pena de morte tem este potencial, muito menos se a sua hereditariedade
determina que ele cometa infrações penais.

Para Barbosa Lima, haveria utilidade da pena de morte para a sociedade,


pois eliminaria os monstros. Para ele, a prisão não é suficiente para evitar crimes
futuros, já que o criminoso está determinado geneticamente a fugir e reincidir.
Se a lei não der a pena adequada para o caso, inclusive a de morte, a própria
sociedade o fará, através da lei de Lynch, ou seja, linchamento.

Barbosa Lima também fala que, de fato, o medo do castigo pode evitar
o crime. Mas também diz que a pena humanista somente se presta para aqueles
que possuem potencial de correção. Ocorre que existem aqueles que, por sua
própria natureza, nunca serão recuperados, e, para eles, a única resposta é a pena
de morte. O parlamentar faz uma comparação com o purgatório e o inferno,
em que o primeiro está destinado aqueles que incidiram em pecados brandos e
são suscetíveis de recuperação. Já o inferno é destino direto para aqueles pecados
mais graves de pessoas monstruosas.

No dia seguinte, na 32ª sessão, o deputado afirma que a Comissão dos


21 apresentou parecer incoerente, já que, querendo abolir a pena de morte para
crimes comuns, a manteve na seara militar, em razão da hierarquia, disciplina e
lealdade à pátria. Então, se há a necessidade da pena de morte em determina-
da parte da sociedade, então porque não aceitar a pena de morte para crimes
contra a sociedade em geral? Para ele, as agressões à sociedade tendem a ser
mais temerários que falhas disciplinares na corporação militar.

Além disso, utilizando-se a ideia do erro judiciário e a irreversibilidade


da pena de morte para a abolir em relação aos civis, parece que a Comissão

209
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

dos 21 ignora que a mesma ideia se aplica para as forças armadas, podendo o
condenado da seara militar ser também inocente. Outro argumento que não se
sustentaria é que, se os abolicionistas defendem que o Estado não pode tirar
a vida de alguém, a pena capital não poderia acontecer em qualquer situação.
Haveria um contrassenso e, por isso, não deve haver a abolição da pena capital.

Sobre o arrependimento do condenado, Barbosa Lima acredita que isto


só acontecerá em casos de pessoas de boa índole que, em um momento fora
de si, cometeu um crime, ao qual não deveria ser aplicada a pena capital. Esta
sanção estaria reservada para casos excepcionais, em que a vida pregressa do
condenado demonstrasse que ele é um criminoso sem possibilidade de recupe-
ração e arrependimento.

Segundo o congressista, a má índole e o instinto monstruoso do réu


seriam facilmente averiguáveis nas próprias circunstâncias do crime, por exemplo,
quando cometido por motivo fútil, para roubar pequena monta de dinheiro,
com crueldade ou quando se percebe que não tem remorso pelo que fez. A
hereditariedade da delinquência seria uma característica da qual o seu portador
nunca poderá se livrar.

Em relação ao tema da fuga da prisão, o qual Barbosa Lima já afirmava


que ela seria inevitável em razão da situação carcerária do país, o deputado
por Pernambuco, Vicente Espírito Santo, questiona se o condenado deve pagar
com sua vida pela falta de competência dos agentes do Estado em manter um
presídio seguro.

Para o primeiro parlamentar, tal argumento não se justifica, já que, na


prática, o condenado irá reincidir de qualquer modo. Por causa da falta de
condições do sistema carcerário, abrir-se-á a possibilidade do condenado fugir e
voltar a matar? Para Barbosa Lima, sabendo-se da certeza da fuga, da fragilidade
das prisões, e do instinto assassino do condenado, a pena de morte é necessária.

Espírito Santo novamente questiona o orador, sobre a morte ser realmente


uma punição. Barbosa Lima, citando e reverenciando Garofalo, diz que, na Itália,
a pena de morte aplicada à dois condenados por latrocínio serviram para evitar
que este crime fosse novamente perpetrado por outras pessoas no dia e no local
da execução daquela pena. Então, o medo da morte se presta para evitar crimes.

O parlamentar também fala que, se a sociedade tem o direito de, através


da prisão, aplicar ao condenado o sofrimento que é viver longe da comunidade
e da família nas precárias condições carcerárias, dever-se-ia admitir a pena de
morte, que evitaria tais suplícios. A prisão, então, para Barbosa Lima, representaria
a morte civil do condenado. Desta forma, se não se admite a pena de morte

210
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

natural, também não seria possível a morte civil, mesmo sob o argumento de
que, depois de um certo tempo, o condenado voltaria à liberdade.

Neste aspecto do sofrimento que o condenado à prisão se submete,


o parlamentar afirma que não haverá indenização suficiente para compensar a
prisão ou a pena de galés de alguém que posteriormente foi reconhecido como
inocente, em casos de erro judiciário.

Ele ainda aponta que na Suíça tiveram que, através de plebiscito, reimplantar
a pena de morte em razão do grande aumento de crimes cruéis consequentes
da abolição da pena de morte em 1874. Assim, com base em supostas estatísti-
cas, defende que o abrandamento de penas causa o aumento da criminalidade.

Barbosa Lima questiona a utilidade da fixação da reclusão máxima em


trinta anos, que parece se sustentar em dois argumentos: a expectativa de di-
minuição de crimes e a recuperação do condenado. Ele discorda destes pontos
pois, primeiro, havendo a figura do delinquente nato, este nunca iria se recuperar.
Segundo, a pena de morte teria uma maior capacidade de diminuir os crimes.
Para ele, manter um criminoso deste tipo preso é correr o risco que ele, quando
solto, faça mais vítimas.

3.2. O discurso favorável à pena de morte do deputado João Vieira de Araújo

O deputado por Pernambuco, João Vieira de Araújo, era a favor da


manutenção da redação original do projeto, mantendo-se a pena de morte aos
crimes comuns, e abolindo somente nos crimes políticos.

Na 42ª sessão, em 28 de janeiro de 1891, o parlamentar afirma que as


modificações feitas no projeto da Constituição no sentido de abolir a pena de
morte para crimes comuns levam a uma fragilidade da segurança da sociedade,
deixando o homem honesto à mercê dos malfeitores. Seria muito mais recomen-
dável deixar tal assunto para a legislação ordinária, a qual iria, com mais atenção,
analisar a pertinência do abandono do castigo.

Além disso, a abolição da sanção capital seria um assunto ultrapassado,


não pelo sucesso da medida, mas, pelo contrário, pelo seu fracasso. Ele afirma,
que na América em geral a pena de morte existe, por exemplo, na Argentina. O
deputado pela Bahia, Aristides Cesar Spínola Zama, faz a ressalva que, no plano
fático, a pena de morte no Brasil já teria sido abolida desde o império de Pedro II.

João Vieira parece dizer que a adoção da abolição no Brasil é uma mera
imitação de medidas tomadas décadas antes em outras nações, como em alguns
ducados alemães (Oldenburgo, Anhalt e Nassau), e cantões suíços (Friburgo, Neuf-

211
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

Chatel). Estas ideias abolicionistas apareceram na Alemanha com a doutrina de


Carl Mittermaier e também surgem, normalmente, após períodos de revoluções
ou guerras, momentos em que há muitas mortes. O parlamentar diz que, na
Suíça, em 1868, a pena de morte foi reintroduzida no país, e, a partir de 1870,
há uma decadência do discurso abolicionista.

Para o deputado pernambucano, estes argumentos contra a pena de


morte não passam de filantropia, isto é, oferecer o direito e a oportunidade de
viver a pessoas que não merecem, às custas da sociedade.

Haveriam dois tipos de atividades humanas: normal e anormal. Na pri-


meira, o indivíduo atua de acordo com os interesses da sociedade, resumidas em
normas jurídicas ou padrões econômicos. Já na anormal, a pessoa não conduz
sua vida conforme seu papel dentro da sociedade, mas sim, prejudicando-a, e,
consequentemente, violando normas jurídicas e trazendo custos à comunidade.
Para esta última atividade, o Direito Penal e as ciências criminais são a categoria
de conhecimento adequada para tratá-las.

Assim, o deputado não vê outra alternativa senão a pena de morte para


aqueles que cometem assassinatos com alta gravidade, crueldade, mesquinhez, seja
para satisfazer um prazer mórbido ou para ter alguma vantagem econômica. Além
disso, não importa saber o número de condenados a esta sanção, mas sim que
este tipo de criminoso não pode continuar na sociedade, seja a quantidade que for.

Falar em recuperação do delinquente em razão da falta de moralidade e


adequação das cadeias para corrigir os criminosos não é adequado. E, pior, tanto
não se prestam para ressocializar o condenado, como também não conseguem
os manter isolados da sociedade, ou seja, existem grandes chances do apenado
fugir e cometer novos crimes.

O parlamentar, seguindo a linha da teoria do criminoso nato, também


afirma que não se pode deixar estes indivíduos vivos, pois, além de que cometerão
novos crimes, seus descendentes poderão nascer com as mesmas características.
Assim, o risco seria duplo. Para ele, todas as escolas criminológicas, mesmo que
não concordem sobre a origem da vontade de cometer infrações penais, admitem
que haverá criminosos que nunca poderão ser recuperados.

O deputado Spínola Zama, claramente contra a pena de morte, defende


que a segregação na prisão seria suficiente para tirar do meio social as pessoas
que não se adequam a ele. João Vieira reforça a possibilidade de o criminoso
matar os seus carcereiros, fugir e incidir em mais atitudes atrozes.

212
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Segundo ele, a sociedade teria sim o direito de tirar vidas a partir do


momento que o indivíduo prejudica os interesses básicos deste corpo social, como
quando retira a vida do homem inocente. Existiriam vidas com graus diferentes
de importância. A da pessoa dita honesta teria valor maior do que a de um
condenado. Então, este poderia ter sua vida eliminada por violar uma de maior
importância. Spínola Zama discorda afirmando que a sociedade já conta com
todos os recursos para prevenir ou reprimir um crime, não existindo necessidade
e nem o direito de tirar a vida do condenado.

Sobre a relegação, ou seja, a expulsão do criminoso para um local distante


de sua terra natal, de acordo com João Vieira de Araújo, não é suficiente. Assim
como na prisão, ele cometerá outros crimes.

Além de um caráter utilitarista da pena de morte, que consiste em retirar


permanentemente da comunidade alguém perigoso, diferente do que defendia
Beccaria, o parlamentar sustenta que também é preciso pensar na vítima, no
sentimento da sua família e da sociedade. Logo, a pena deve ser também utilizada
como forma de vingança do meio social, da família, contra o homicida cruel.

João Vieira é questionado sobre a possibilidade de erro judiciário, o


qual parecia ser recorrente na Justiça brasileira. Para ele, o alto índice de falhas
do judiciário não é verdadeiro, relatando que na Itália, em 1875, o presidente à
época do Senado fez uma investigação acerca o tema, encontrando um único
erro de julgamento datado de 1840. Ele faz a ressalva de que, apesar de defender
a pena de morte, acredita que tal sanção só pode ser aplicada quando houver
certeza do crime.

Para o congressista, as críticas à irreparabilidade da pena de morte não


devem ser vistas com maus olhos. Na verdade, não haveria castigo que, ao cons-
tatar a falha de julgamento, possa ser reparado. O tempo de sofrimento dentro
de uma prisão nunca poderia ser compensada. A irreparabilidade da submissão à
forca é uma característica positiva, pois significa a segurança de que o criminoso
nunca irá cometer outro delito grave.

Sobre a suposta diminuição da criminalidade através da pena de morte, é


apontado por algum congressista não identificado nos registros históricos que o
fato de a humanidade utilizar a pena de morte em quase toda a sua história não
significou uma redução dos delitos. João Vieira questiona que, provavelmente, a
quantidade de crimes seria maior se não houvesse esta sanção. Citando Lombroso,
deve-se agradecer à pena de morte e à justiça criminal por terem retirado da
sociedade uma grande quantidade de criminosos natos, evitando que o número
de delitos fosse mais elevado.

213
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

Propondo fundamentar esta ideia sobre o crescimento da delinquência,


apresenta uma fala proferida em 1885 de um Ministro da Justiça francês, o qual
afirma que a finalidade de ressocialização e intimidação das penas é ineficaz,
causando, inclusive, o aumento de novos crimes por pessoas já condenadas. Na
França, era utilizada a pena de relegação, que, para João Vieira, é pena mais cruel
que a de morte.

Também aponta as ideias de Azevedo Castello Branco, deputado português


e subdiretor de uma penitenciária em Lisboa, pelas quais se entende de que existe
um criminoso típico, aquele que, por questões orgânicas, sempre será antissocial
e sempre tenderá à prática de crimes com alto grau ofensivo. Então, os aspectos
preventivo e corretivo da pena, para este tipo de pessoa, não tem utilidade.

Antecipando-se ao argumento de que a Toscana teria abolido a pena


de morte e, ao mesmo tempo, estaria com a taxa de criminalidade estagnada
ou diminuindo, o deputado João Vieira aponta duas oposições: a) o período
seria muito curto para tirar conclusões; e b) que vários outros fatores poderiam
contribuir para a diminuição de delitos. Por outro lado, o deputado diz que se
houver a abolição da pena de morte e um aumento dos crimes, não será pos-
sível colocar esta como consequência daquela de forma absoluta. Será preciso
um estudo para identificar quais foram as causas da quantidade de crimes. Mas,
mesmo assim, presume-se que a causa é a falta da pena capital.

O parlamentar critica o argumento de Carl Mittermaier de que a abolição


da pena de morte não resultou no aumento da criminalidade na Suíça. Para o
deputado, houve sim um aumento de crimes hediondos e que, por isso, a sanção
foi restabelecida. Também diz que, na Bélgica, houve a supressão da punição, o
que resultou, por volta de 1843, em diversos incêndios e homicídios e, por isso,
a guilhotina teve que voltar a ser legal.

Ainda, tenta rebater o argumento de que a pena capital não intimida,


ideia da qual os abolicionistas dão como exemplo um acontecido na comuna
francesa de Zigliara, Córsega, no qual um idoso teria sido assassinado no mesmo
dia em que foi executado um criminoso. Para o parlamentar, o exemplo não é
adequado, pois o assassinato se deu em razão de o idoso ter sido injustamente
absolvido em outro julgamento.

Assim, de acordo com João Vieira, a inapropriada absolvição ou conde-


nação a uma pena que não seja a de morte pode causar revolta na vítima, na
sua família ou na população, dando margem ao linchamento. Logo, para evitar
que, em razão de vingança, um homem honesto cometa um crime, seria mais
adequado que a própria sociedade, através do Estado, retire a vida do condenado
de modo legítimo.

214
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

O deputado reconhece a complexidade do tema, já que envolve não só


questões práticas e de defesa da sociedade, mas também religiosas, sentimentais
e de consciência. Além disso, propõe uma mudança do método de executar a
pena, deixando de lado a espetacularização da forca em praça pública, passando
a adotar técnicas mais rápidas e menos sofridas, e de forma mais reservada, como
a injeção de produtos químicos letais ou a morte por eletrocussão.

Em outras críticas aos abolicionistas, ele afirma que alguns destes, em um


caso ou outro, aceitam a pena de morte, como no caso de piratas, marinheiros
motineiros, traidores e espiões. Os abolicionistas também admitiriam que a pena
de morte tem o condão de evitar o assassino motivado pela ganância.

O tribunal do júri, segundo o deputado, evita utilizar a pena capital. Assim,


no julgamento de criminosos natos, estes são condenados a outros castigos, e,
nas hipóteses de homicídio passional, por vingança, para defender a honra, o
júri absolve. Desta forma, existiria uma contradição, já que o “jury, que reflete os
sentimentos do publico a que pertence, absolve aquelles que assumem o papel
de carrasco, esse terrivel funccionario da sociedade, mas não quer que elle fun-
cione, que desempenhe o seu triste officio” (v. 3, p. 284), ou seja, a coletividade
aceita quem mata para fazer justiça, mas não quer institucionalizar esta prática.

Voltando à questão dos erros judiciários, o parlamentar defende que a


quantidade de falhas no sentido de absolver o culpado é muito superior ao nú-
mero de falhas para a condenar um inocente. Assim, os equívocos da justiça não
são tão preocupantes. A situação seria comparável com falhas em procedimentos
cirúrgicos, já que não se pode abolir as cirurgias mesmo sabendo da existência do
risco de errar. O deputado Spínola Zama questiona tal argumento, constatando
que as cirurgias se prestam para a manutenção da vida, e não para tirá-la de
um indivíduo. João Vieira contra-argumenta que a remoção, mesmo que às vezes
errada, de uma pessoa tem como finalidade a manutenção da vida da sociedade.

O orador também compara os erros judiciários com as guerras, no sentido


de que, em tempos antigos, matava-se muito mais por condenações equivocadas
do que com as guerras. Já as guerras do século XIX passaram a matar muito mais,
ao mesmo tempo que as regras de julgamento passaram a ser mais qualificadas,
diminuindo os erros. Assim, os abolicionistas, em contradição, aceitariam que as
pessoas honestas fossem praticamente destinadas à morte por serem recrutadas
para as guerras, mas não admitiriam a condenação à forca de pessoas extrema-
mente perigosas.

O deputado de Alagoas, Gabino Besouro, sustenta que os piores bandidos


não se intimidam pela pena de morte, sendo ela inútil. A cadeia e seus agouros
seriam mais efetivos no propósito de prevenir crimes. João Vieira retruca dizendo

215
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

que, se a pena de morte não intimida, nenhuma outra sanção teria essa capacidade.
Além disso, as regras costumeiras e não escritas que existem entre os próprios
bandidos preveem a morte como penalidade, as quais são, por isso, observadas.

Falando em crimes políticos, João Vieira de Araújo acredita que, ao con-


trário da graça, a anistia para crimes políticos deveria ser mantida na Constituição,
pois questões políticas tendem ser as mais complexas dentro de todas as relações
dentro de um Estado. Assim, por este mesmo motivo, não é adequada a pena
capital para os crimes políticos. Argumenta também que este tipo de infração é
motivado pela paixão e não por ter a pessoa uma característica criminosa. Esta
paixão seria a busca do melhor para a nação e para a sociedade, ou seja, os
crimes teriam motivações honrosas e altruísticas.

Para ele, quem condena como crime um ato político, em sua grande
maioria, são aqueles partidários de ideais contrárias. Desta forma, o deputado
insiste que a pena de morte seja aplicada somente aos crimes comuns, mas nunca
aos políticos. Nota-se, tanto no tocante à anistia, quanto ao crime político, uma
tendência do parlamentar em proteger a categoria a que faz parte.

3.3. A discordância de Lacerda Coutinho em favor da abolição para crimes


comuns

José Candido de Lacerda Coutinho, deputado por Santa Catarina, tinha


posição mais humanitária, sendo contra a pena de morte para crimes comuns. Na
32ª sessão, em 14 de janeiro de 1891, ele faz seu discurso de modo a discordar
e rebater alguns pontos trazidos pelo deputado Barbosa Lima.

Para ele, a ideia apresentada por este deputado de que a pena de prisão
não seria adequada para crimes mais graves, e que o criminoso iria fugir e rein-
cidir, motivo pelo qual ele deveria ser eliminado, é um argumento de exceção.
Na verdade, não existe a certeza de que o criminoso irá fugir da prisão, ou seja,
a fuga é uma exceção.

O parlamentar, citando uma ideia da obra de Gaetano Filangieri, pela qual


um assassino, homem culto e honesto, às vezes, vê-se em situação de vítima afirma
que esta mesma lógica não se aplica à sociedade em relação ao criminoso (v.3,
p. 539). A sociedade não teria um direito de tirar a vida. Aplicando-se a pena de
morte, estar-se-á agindo por vingança, já que nada há de se recuperar, ou seja,
a vítima não voltará à vida.

Mas, para João Vieira, que interrompe o discurso, a pena de morte se


presta para a segurança pública, já que todos os assassinos que possuem a
característica hereditária da monstruosidade devem ser extirpados da sociedade.

216
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Para Lacerda Coutinho, a segurança pode ser alcançada através da prisão. Para
este, o assassino contumaz e o incendiário, por exemplo, na verdade possuem
uma doença, uma patologia, e, por isso, deve-se mandá-los para os hospícios, e
não para a forca.

O parlamentar ainda aponta a possibilidade de que o criminoso possa


estar influenciado pela hipnose, a qual teria potencial de suprimir a vontade do
indivíduo em favor de outras. Assim, mesmo que improvável, pode acontecer
que um grave assassinato seja cometido em razão de hipnotismo, e, havendo
esta dúvida, a pena de morte não parece ser a mais recomendada.

Existe ainda o problema dos erros judiciários, que são constantes. Saben-
do-se que a justiça falha constantemente, não deveria ser permitido aplicar uma
pena tão radical e que não tem nenhuma possibilidade de reversão. Então, a pena
de morte deveria ser abolida também em razão de que, estando encarcerado, o
condenado pode apontar o erro da justiça a qualquer momento e ser colocado
em liberdade, recebendo alguma reparação pelo sofrimento passado injustamente.

3.4. O argumento de Inocêncio Serzedello Corrêa contra a manutenção da


pena capital

O deputado pelo Pará, Inocêncio Serzedello Corrêa, era também a favor


da abolição da pena de morte e crítico da escola positivista de Cesare Lombro-
so, e, por isso, na 40ª sessão, em 26 de janeiro de 1891, rebate as posições de
Barbosa Lima.

Serzedello apresenta escola criminológica de Alexandre Lacassagne, pela


qual afirma que não existe um criminoso nato, de cunho hereditário, com carac-
terísticas físicas que o diferenciam das outras pessoas. Na verdade, segundo esta
teoria, o criminoso é um resultado da própria sociedade e suas mazelas, que aca-
bam por proporcionar que pessoas sigam no caminho do crime, inclusive aqueles
mais graves. Assim, diz-se que as “sociedades tem os criminosos que merecem”
(v. 3, p. 135). O deputado Spínola Zama acredita que esta seja a melhor teoria.

Serzedello passa a tentar desconstruir as ideias da escola positivista. Enquan-


to esta pretende identificar os criminosos natos através de certas características
físicas, como o tamanho, volume e peso do cérebro, o deputado afirma que
tais características estão, na verdade, vinculadas à idade, estatura, raça e peso do
corpo humano, entre outros fatores. Tais características não teriam o condão de
serem determinantes para a constatação de um suposto criminoso nato. Desta
forma, não se pode aplicar uma pena tão grave como a capital com bases em
teorias científicas sem fundamento válido.

217
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

Barbosa Lima retruca, afirmando que de um jeito ou de outro os homi-


cidas aparecerão, e eles, por serem degenerados, devem ser eliminados da socie-
dade. Serzedello contesta, afirmando que, se é preciso afastar os “degenerados”,
é preciso eliminar também os leprosos, por exemplo. Tal afirmação foi rechaçada
por uma voz não identificada, o qual diz que os leprosos, vítimas da hanseníase,
chamados também de morféticos à época, não fazem mal a sociedade, então
não precisariam ser mortos.

3.5. Outros discursos

No dia 13 de dezembro de 1890, 7ª sessão, chegou no Congresso Na-


cional Constituinte uma representação do Apostolado Positivista do Brasil, a qual
propunha algumas modificações ao projeto. Queriam que fosse suprimido tanto
o § 21 como o § 22, afirmando que as penas de galé e a de morte não podem
ser abolidas, pois isso significaria um desarme da sociedade contra criminosos
incorrigíveis. Diz que a proposta humanista é uma falsa filantropia, e que são
teorias pseudocientíficas e subversivas, que tenta ver o criminoso com simpatia,
quando na verdade dever-se-ia prestar atenção na vítima.

Na 29ª sessão, em 10 de janeiro de 1891, o senador de Minas Gerais,


Americo Lobo Leite Pereira, se apresenta contra a abolição da pena de morte,
pois, com isto, o crime está sendo protegido. Diz que a punição é necessária para
a garantia da vida e da ordem. Para ele, com esta medida, os crimes aumentarão
drasticamente.

Já, no dia 17 de janeiro de 1891, 35ª sessão, Gabino Besouro, deputado


por Alagoas, rapidamente fala sobre a abolição da pena de morte, exaltando que
uma Constituição que tem essa disposição está de acordo com as ideias liberais,
e isto significa que o povo há de viver uma verdadeira democracia e liberdade.

Também contra a punição para crimes comuns, na 41ª sessão de 27 de


janeiro de 1891, o deputado de Minas Gerais, José da Costa Machado e Souza, diz
que a vida é o direito básico dos indivíduos, e, seguindo a tradição jusnaturalista,
os direitos dos cidadãos não são frutos da criação humana, mas sim inerentes
ao homem. Desta forma, o Estado ou a sociedade não podem retirar o direito
à vida de alguém, sendo, então, um direito indisponível.

Outro a favor da abolição da pena de morte é o deputado pela Bahia,


Francisco dos Santos Pereira, que, na 43ª sessão de 29 de janeiro de 1891, afirma
que se orgulha de ter tido sua emenda sobre a pena de morte aprovada na
primeira discussão sobre o Título IV do projeto da Constituição, a qual modifi-
cou o texto para que esta sanção seja abolida, ressalvada a legislação militar em
tempo de guerra.

218
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

No mesmo dia, um parlamentar não identificado nos registros intercede


com a afirmação de que a pena capital provavelmente voltará ao ordenamento
jurídico futuramente em razão de necessidade. Santos Pereira retruca, afirmando
que a finalidade das sanções penais é corrigir o condenado e a sociedade, ou seja,
prevenir que o indivíduo já punido não volte a reincidir, assim como intimidar
que outras pessoas façam o mesmo.

Santos Pereira ainda argumenta que a pena de morte não seria o su-
ficiente para trazer este caráter corretivo e preventivo, pois ela seria um alívio
para o condenado, que deixaria de passar pelas penúrias do cárcere. Também diz
que se existe a probabilidade de erro judiciário, ou seja, se um inocente pode
ser mandado à forca em razão de um mau julgamento, a pena de morte nunca
poderá ser aceita. É preferível a absolvição de culpados do que a condenação
de um inocente.

Conclusão

Foi visto neste trabalho que a pena de morte para crimes comuns tinha
respaldo jurídico até a primeira Constituição da república, em 1891, a qual, trouxe,
em seu artigo 72, § 21, a abolição desta punição, ressalvando a legislação militar
em tempos de guerra. Tal pena, durante o império, era aplicada somente por
unanimidade dos jurados, e através da forca.

Neste período, ela foi cada vez mais deixada de lado até o ponto que
deixou de ser praticada mesmo antes da referida Constituição. Isto se deu em
razão de que os costumes da época rechaçavam o referido castigo por sua
irreparabilidade e desumanidade, o que refletiu na atuação de D. Pedro II, que
passou a conceder sua graça cada vez mais, comutando penas de mortes em
outros castigos.

Assim, o projeto de Constituição analisado pela constituinte de 1890


passou a discutir a legitimidade da pena capital, e para se ter uma maior base
a respeito da discussão, foi preciso apresentar as ideias de Beccaria, Lombroso
e Garofalo. O primeiro com um viés mais humanitário e utilitarista no sentido
de que uma punição só poderia existir se pudesse prevenir crimes. A pena de
morte, então não se encaixaria nestas condições, sendo desnecessária e desuma-
na, além de ilegítima em razão da teoria do contrato social. Para Lombroso e
Garofalo, baseado nas teorias de Darwin, algumas pessoas poderiam nascer com
a característica hereditária do “instinto assassino”, ou seja, seria um delinquente
nato. Sendo assim, ele nunca poderia se recuperar, e sua linhagem deveria ser
extirpada da sociedade.

219
OS DEBATES SOBRE A PENA DE MORTE NO CONGRESSO NACIONAL CONSTITUINTE DE 1890
E AS PRINCIPAIS IDEIAS DE BECCARIA, LOMBROSO E GAROFALO

Com base nas ideias dos autores acima, houve intensas discussões acerca
da pena de morte no Congresso Nacional Constituinte. Pôde-se notar que alguns
parlamentares se baseavam nas ideias de Lombroso e Garofalo, e que, em casos
de exceção, nos crimes hediondos, cruéis e assassinatos por motivos fúteis, a pena
de morte deveria ser aplicada, em razão de o condenado não ter possibilidade
de recuperação ou arrependimento por conta de sua característica hereditária
que sempre determinará suas ações para o lado da “monstruosidade”. Além disso,
dentre vários argumentos apresentados, retirar a pena de morte seria uma forma
de desarmar a sociedade e dar margem para o aumento da criminalidade.

Dentre os que são a favor da abolição da pena de morte, o principal


argumento é a possibilidade do erro judiciário, ou seja, a constatação de que,
após a execução do condenado, ele era inocente. Além disso, a prevenção de
crimes pode ser suficientemente alcançada através da prisão. Ainda, entre outros
argumentos demonstrados, há a dúvida sobre a legitimidade da pena capital, ou
seja, a sociedade não pode tirar a vida de alguém, já que ela também não pode
dá-la, ideia próxima daquela de Beccaria, segundo a qual o cidadão não cedeu
ao Estado todos os seus direitos, mantendo-se no indivíduo aqueles que não
podem ser violados pela sociedade, como é o caso da vida.

Assim, conclui-se que, naquele Congresso para a elaboração da Constituição


de 1891, a abolição da pena de morte para os crimes comuns não era unanimidade
entre os parlamentares, pois foi apresentado longos e elaborados argumentos para
que tal pena se mantivesse no ordenamento jurídico pátrio, mesmo excluindo-se
nos casos dos crimes políticos. Constatou-se que os discursos a favor de tal castigo
estavam lastreados principalmente na escola que teve como maior representante
Cesare Lombroso, podendo se falar também em Raffaele Garofalo.

Mas, a maioria parlamentar era abolicionista, deixando somente a pena


de morte para os casos de guerra, de acordo com a legislação militar. Apesar
de que estes parlamentares não citassem expressamente o nome de Beccaria,
percebe-se que suas ideias já estavam difundidas nas mentes de vários pensadores
e dos congressistas.

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222
Grupo de Trabalho

CULTURA JURÍDICA E DIÁSPORA AFRICANA II


IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR


E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

BRUNA PORTELLA DE NOVAES


Universidade de Brasília / Universidade Federal da Bahia
(Mestra em Direito pela UnB, professora substituta da Faculdade de Direito da UFBA)

Resumo
Considerando as reflexões teórico-metodológicas da pesquisa de disserta-
ção da autora, buscou-se apresentar, neste artigo, algumas destas inquietações.
A pesquisa de referência gira em torno da gestão municipal do trabalho de
rua na cidade de Salvador/BA no início do século XX, tomada como referência
para compreender a gestão de uma cidade negra. Destacamos dois eixos de
exposição. O primeiro, no plano teórico, sobre a ideia de “cidade negra”, expres-
são utilizada principalmente pela historiografia dedicada ao tema da escravidão
urbana. O segundo, no plano metodológico, sobre o desafio do documento
público da gestão municipal, suas potenciais armadilhas e potencialidades para
uma pesquisa jurídica.

1. Introdução

Anterior aos resultados de uma investigação estão inúmeras inquietações


que acompanham o percurso de pesquisar. Da definição dos termos conceituais à
abordagem metodológica, são diversas as idas e vindas entre propostas e projetos,
cada qual guardando suas potencialidades analíticas. O presente trabalho tem por
objetivo apresentar algumas reflexões teórico-metodológicas de uma pesquisa
concluída, que teve por objeto o trabalho de rua e suas relações com o poder
público municipal na cidade de Salvador do início do século XX.

2. Aportes teóricos: trabalho de rua numa cidade negra

A investigação a que tomamos como referência se debruça sobre a cidade


de Salvador. A dimensão espacial é, pois, uma variável relevante e que necessitou de
um aporte teórico específico. Mais ainda se salientarmos as peculiaridades de um
urbano racializado e periférico, como é Salvador; mais do que realidade exotizada
no panfleto turístico, aqui se teceram intensas redes de negociação e resistência.

Alternativa teórica foi compreender Salvador enquanto uma “cidade negra”,


ou seja, uma experiência histórica de viver urbano entrelaçado por ressignificações
por parte da população negra. Em suma, um reescrever diaspórico do cotidiano
urbano1. Utilizo um marco teórico centrado na observação profunda do cotidiano

1 DUARTE et al, 2016.

225
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

das cidades negras atlânticas2. O Rio de Janeiro, espécie de cidade-irmã com tantas
outras especificidades que a interligam a Salvador, é também objeto de vasta bi-
bliografia; não pode ser desconsiderada, pois, como mais uma cidade negra, outra
experiência urbana em alguns aspectos tão próxima à realidade soteropolitana.

Em que pese o recorte temporal se concentre no início do século XX,


tornou-se inevitável retornar à história de uma cidade escravocrata. Não só pela
proximidade temporal com o fim do século XIX, mas pela permanência, na Bahia,
de um forte passado colonial. O referencial teórico sobre a cidade negra é, ele
próprio, bastante enraizado na historiografia da escravidão urbana.

Utilizou-se a ideia de “cidade negra” compreendida em duas acepções


complementares e não conflitantes. Em primeiro plano, a cidade negra enquanto
território negro, espaço urbano construído socialmente por um grupo relativamente
coeso de pessoas identificadas com a negritude, através de formas de sociabilidade
diversas; destacamos trabalho, religião, lazer e habitação. Num segundo momento,
avançamos para uma ideia que se situa muito mais no plano das relações sociais,
com base no que propôs Chalhoub3: cidade negra enquanto um processo de
resistência e progressiva libertação, nos momentos finais da escravidão no Brasil.
Pensá-la implica, além de enxergar as peculiaridades de um urbano construído
por e para a população negra, escrava e liberta, compreender as redes de relações
que se constroem e se inscrevem no espaço4.

A premissa para a compreensão da cidade negra – conceito no centro


do qual figura a população negra, como protagonista – é compreender libertos,
escravos e ex-escravos como sujeitos. As formas de desenvolver as suas próprias
narrativas não contam, certamente, com os meios mais tradicionais de fazer história.
Por vezes, é um povo que está aparentemente mudo nos documentos oficiais;
por vezes, se faz presente apenas como objeto de medo ou repulsa.

Contextualizada a cidade negra, enquanto território físico e simbólico,


busca-se compreender a gestão de Salvador a partir de uma dimensão privile-
giada: o trabalho de rua5. Esta é uma concepção que se define pelo espaço. São
trabalhadores urbanos, que diferem dos trabalhadores rurais pelas suas ocupações
laborais e formas de organização. O trabalho urbano dependerá da dinâmica da
cidade, que lentamente se mostra produtiva de forma autônoma ao campo6. Estas
atividades se realizam no ambiente doméstico, em estabelecimentos comerciais e
industriais, espaços delimitados que compõem o urbano. O trabalho de rua, por

2 FARIAS et al, 2006.


3 CHALHOUB, 2011.
4 Ibid.
5 REIS, 1993, 2000; COSTA, 1991.
6 COSTA, op. cit.

226
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sua vez, tem como marca distintiva o espaço da rua, metonímia para o espaço
público dos largos, praças, calçadas, fontes e cais. Pode-se dizer que o trabalhador
de rua é um tipo de trabalhador urbano, cujo traço de distinção é um tipo de
apropriação do espaço público para o seu trabalho.

Transporte e comércio são duas das variantes mais importantes do trabalho


de rua, considerando as necessidades de circulação de uma cidade comercial, caso
de Salvador do século XIX e início do século XX. A visão de Salvador era – e
ainda é – marcada pela divisão entre a cidade alta e cidade baixa. Aqueles que
se aproximam por mar, adentrando a Baía de Todos os Santos, percebem instan-
taneamente a íngreme subida que separa a cidade de Salvador em duas7. Cidade
comercial, porém, com parca infra-estrutura e constantes crises de abastecimento.
Para suprir suas necessidades, a mão de obra negra movimentava as ruas com
sua força de trabalho, levando mercadorias. Se, de um lado, o trabalho de rua
dependia da cidade, também a cidade dependia (e muito) do trabalho de rua.
É justamente a dependência da mão de obra negra que acentua a necessidade
da elite branca em modernizar transportes.
Figura I – Panorama de Salvador em cartão postal, cerca de 1915,
vista da Baía de Todos os Santos, com Mercado Modelo ao centro.

Fonte: disponível em <http://www.cidade-salvador.com/seculo20/inicio-seculo20.htm>

A geografia local das ladeiras permite conectar as duas cidades em uma,


fornecendo vias de ligação entre a parte alta e baixa. As ladeiras soteropolitanas
não se deixam percorrer com grande facilidade, e o carregamento de volumes,
como qualquer trabalho com esforço manual, parecia pouco digno para a bran-
quidade. Despender os seus próprios esforços para se locomover ladeira acima
era igualmente evitável, pelo uso das cadeirinhas de arruar, que transportavam
pessoas8. Ao final do século XIX, nos derradeiros momentos do regime escravista,
a atividade dos carregadores se concentrava nas cargas, viabilizando a circulação
do comércio urbano. Encontrava-se em franco declínio o transporte de pessoas
nas cadeirinhas de arruar, considerando que os meios de transporte de pessoas

7 NASCIMENTO, 1986.
8 GRAHAM, 2013; MATTOSO, 1978, COSTA, 1991.

227
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

se aprimoraram bastante com a construção de bondes e de um elevador ligando


a cidade alta à cidade baixa9.

A distribuição de alimentos sustentava-se da venda nas ruas e nos ar-


mazéns. Entre os dois espaços, havia um recorte claro de gênero e raça. Quem
coloria as ruas da cidade eram as mulheres negras – chamadas quituteiras,
quitandeiras, ganhadoras ou vendedeiras –, enquanto os armazéns eram em sua
maioria geridos por comerciantes portugueses10. Poderia haver especialização ou
não em determinado produto (leite, frutas, doces), e outros itens poderiam ser
simultaneamente comercializados (tecidos, sapatos e roupas, fitas), embora predo-
minasse o comércio de alimentos. A presença feminina era expressiva na venda
ambulante, com os cestos sendo levados à cabeça, nos tabuleiros estendidos nas
calçadas ou nas quitandas, que eram barracas erguidas nos largos11. A atividade
da vendagem exigia certas habilidades: tino para a negociação com clientes e
fornecedores, saber calcular as margens de lucro no momento da pechincha, e, ao
mesmo tempo, saber quando se livrar de uma mercadoria antes da deterioração.
Escravas, livres ou libertas, as habilidades de vendagem dessas mulheres vinham
de longe: herança de tradições da costa ocidental da África, em que era delas a
função de garantir a circulação de gêneros de primeira necessidade.12
Figuras II – “Negra (de origem angolana) no Nordeste do Brasil”

Fonte: Schomburg Center for Research in Black Culture, Jean Blackwell Hutson Research
and Reference Division, The New York Public Library13

9 REIS, 2000; PINHEIRO, 2011


10 GRAHAM, op. cit.
11 GRAHAM, op. cit.; SOARES, 1996; FARIAS et al, 2006
12 GRAHAM, op. cit.; SOARES, op. cit.; DIAS, 1984; FERREIRA FILHO, 1999.
13 A Negress (of Angola origin), Eastern Brazil (1910). Disponível em <http://digitalcollections.nypl.org/items/

228
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

As trabalhadoras de rua pareciam deter o monopólio da venda de diversos


gêneros de primeira necessidade, o que as tornava perigosamente indispensáveis
à cidade. Como essas mulheres negras, tão pouco valorizadas numa sociedade
patriarcal e racista, alcançaram um papel de destaque no funcionamento urbano?
Este papel é creditado às ligações entre essas trabalhadoras e outros negros, que
repassavam os produtos diretamente às vendedeiras. Habilidade necessária ao pe-
queno comércio era participar dessas redes de atravessamento. Eram muitas vezes
acusadas de cumplicidade com o contrabando e furto de alimentos, em aliança
com os negros aquilombados nas proximidades das cidades. Explicado de forma
mais direta, podemos dizer se tratar de uma “liga africana de cunho comercial”14,
unindo africanos fornecedores às mulheres vendedeiras nas pontas destas ligas.
O ajuntamento de negros e negras em redes de comunicação e troca de produtos
se transmutava em horror ao comércio local, que se queixava constantemente
da injusta competição no mercado de alimentos.15

Trabalhador e trabalhadora de rua, fazendo do espaço público seu lugar de


sociabilidades, diversão e ganho, se desdobram em ocupações diversas: vendedor
ambulante de miudezas e alimentos, quitandeira em festa popular, carregador de
volumes. Compartilham, em comum, uma intensa apropriação do espaço público,
e assim ressignificam a rua da cidade em espaço de trabalho, mas também de
sociabilidade. O trabalho de rua é, portanto, um dos vetores de construção da
cidade negra, a partir da ocupação dos cantos e esquinas com seus corpos e
vozes. São, também, representação visual de um passado escravocrata que, no
início do século XX, se buscava apagar a qualquer custo.

3. Gestão municipal: modernização entre projeto e práxis. O desafio do


documento

Nas duas primeiras décadas dos 1900, uma atmosfera de moderniza-


ção paira sobre os centros urbanos brasileiros, e desta não escapará Salvador16.
Os valores arquitetônicos e urbanísticos acompanham os ideais mais profundos
do higienismo e do projeto nacional pautado pelo branqueamento17. Não por
acaso, são os territórios negros os primeiros espaços a sofrerem diretamente as
contradições das expulsões motivadas pelo afã de modernizar a cidade18.

A escravidão parece um passado distante, pelo menos no plano discursivo.


Na realidade, a presença negra e africanizada ainda será constante nas ruas da

510d47df-8cea-a3d9-e040-e00a18064a99>. Acesso em 5 de fevereiro de 2017.


14 REIS, 1993, p. 16.
15 REIS, 1993; GRAHAM, 2013; SOARES, 1996; DIAS, 1984.
16 FERNANDES E GOMES, 1992; PINHEIRO, 2011.
17 HOFBAUER, 2006; JACINO, 2008.
18 ROLNIK, 1989.

229
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Bahia – e, por isso mesmo, geradora de diversas tensões. As formas de trabalho


enraizadas no cotidiano da cidade, caso do trabalho de rua, continuavam exis-
tindo independente da escravidão. Diversas formas de trabalho “irregular”, tais
qual o comércio de rua, se mantêm após a abolição19. As elites se movimentam
no sentido de necessitar cada vez menos destes trabalhos arcaicos, lembranças
ambulantes do passado. Os controles que cercavam essas atividades seguem numa
direção similar, embora com outras justificativas, desta vez pautadas no progresso.

Para abordar a modernização de Salvador, é necessário evidenciar algumas


das características de sua urbanização que tornam a comparação com as capitais
sudestinas uma tarefa a ser realizada com cautela. Salvador não era destino de
fluxo de imigração ou apresentava padrão de industrialização. Embora contasse
com uma economia em recuperação, ainda assim era a capital de um estado em
crise e com diminutos atrativos urbanos20. Imprensa e setores letrados21 poderiam
projetar um futuro repleto de “civilização”, com inspiração europeia – ou paulista
–, mas trabalhavam com um cotidiano provinciano.

Mesmo assim, embora fossem necessárias algumas traduções para a reali-


dade local, as ideias correntes duma nova ordem civilizada chegavam até a Bahia.
Também a proposta de modernização local passou pela emergência do saber
médico-sanitarista e pelo branqueamento como solução racial. Estes traços se
mostram visíveis tanto nas reformas urbanas de cunho urbanístico e arquitetônico
quanto nas tentativas de construir novas moralidades, em especial no que tange
ao espaço público da cidade.

As reformas urbanas do início do século XX, ocorridas sob a primeira


gestão do governador da Bahia J. J. Seabra, têm como finalidade concretizar os
princípios necessários para elevar o desenho urbanístico a todo o seu potencial
e progresso. Apresenta-se mais de uma versão para o projeto de reformas leva-
do a cabo por Seabra, mas todas têm como ponto em comum a abertura da
atual Avenida Sete de Setembro, entre a Praça Castro Alves e o Campo Grande,
uma obra de grande impacto paisagístico e “cartão-postal” das reformas gover-
namentais da época. A execução final é bem mais modesta do que projetou o
poder público da época, devido à escassez de recursos financeiros. Ainda assim,
são significativas as mudanças no traçado urbano: ruas são alargadas e a grande
Avenida Sete de Setembro é construída. Para tanto, igrejas, prédios públicos e
residências vão abaixo, no período de remodelação urbana de Salvador que mais
se assemelha ao “urbanismo demolidor” que teve seu modelo no Rio de Janeiro

19 VASCONCELOS, 1992.
20 PINHEIRO, 2011; ALBUQUERQUE, 1996; FERNANDES e GOMES, 1992
21 A imprensa, o governo e os intelectuais nem sempre tinham interesses e opiniões convergentes, muito pelo
contrário. Leite (1996) aborda os discursos civilizadores a partir destas contradições internas, e também de seus
consensos.

230
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

de Pereira Passos22. A reforma de Seabra se destaca, na história urbana de Salvador,


por apresentar um projeto relativamente coeso de cidade, no qual urbanismo e
civilização dos costumes andam juntos.23

Transformar Salvador numa cidade moderna significava torná-la higiênica,


fluida e bela, o que ia além de prover infraestrutura adequada. Havia uma população
que dominava a rua com seus vícios e transgressões. No plano jurídico da gestão
estatal, necessário também uma regulamentação que se especialize, tornando-se
mais sofisticada e menos adepta da pura e simples punição24. Isso, na tentativa
de avançar para um futuro nacional — e citadino — de progresso, que passava
pelo disciplinamento da mão-de-obra para os novos tempos25 e pelo contato com
os valores civilizatórios da branquidade. A ideia de civilizar a cidade se conecta
primeiro a uma mudança de costumes e hábitos da população.26 Civilizar, para
a imprensa da época, era um termo bastante orientado por valores de “ordem,
trabalho e estética”27. A conexão de civilização com a Europa também indica
um significado mais profundo, próximo ao branqueamento; civilizar é ascender
à proximidade de uma raça superior e mais evoluída.

Tomamos o processo de modernização da cidade como um embate de


perspectivas, que tem como objeto não só o desenho urbano, mas, principal-
mente, as formas de uso do espaço. Assim, o projeto de cidade moderna não
se delineou abstratamente, como mera tradução de projetos outros de cidade
europeia. Ele frequentemente foi enunciado como uma contraposição necessária
à cidade que de fato existia, eivada de vícios e de uma herança de tempos nada
modernos ou progressistas. Portanto, a modernização é uma perspectiva sobre
a cidade, mas não a única. Difícil, também, nominar como projeto uma série de
pontos de vista internamente conflituosos, uma vez que elites letradas, impren-
sa e poder público não conformavam um bloco com opiniões convergentes28.

22 A respeito da comparação entre Rio de Janeiro e Salvador, Pinheiro (2011) destaca que as reformas cariocas
foram tomadas como modelo urbano para diversas outras cidades brasileiras, e aí se inclui Salvador. As seme-
lhanças são sobretudo de ordem política: a forte cooperação entre poder público e iniciativa privada, a pouca
preocupação com habitações populares que eram demolidas para as intervenções públicas e o autoritarismo
com que se impunham as reformas. Quanto às consequências no desenho da cidade, especialmente no que
tange à espacialização da população negra, elas não contêm tantas semelhanças. A geografia do Rio de Janeiro
e a violência das reformas urbanas no Centro são fatores que levaram à ocupação dos morros. Por outro lado,
a geografia soteropolitana se estrutura na dualidade cidade alta e cidade baixa, e a reforma que aconteceu
no Centro da cidade não foi suficiente para transformá-lo completamente, restando em algumas áreas uma
ocupação precária por setores marginalizados.
23 PINHEIRO, 2011; LEITE, 1996.
24 FOUCAULT, 2008; PECHMAN, 2002.
25 AZEVEDO, 1987.
26 PECHMAN, op. cit.
27 LEITE, op. cit.
28 Leite (1996) traz um pouco da conflituosidade entre opinião pública e as reformas urbanas de Seabra. Da
mesma forma, o projeto civilizador de segmentos intelectuais baianos nem sempre encontrava respaldo na ação
pública, que parecia, aos olhos destes setores, excessivamente leniente aos setores populares.

231
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Necessário, portanto, delimitar um olhar específico. Nesta pesquisa, optou-se por


privilegiar o poder público municipal.

Para compreender as práticas do poder público municipal sobre os tra-


balhadores de rua – compreendendo-as como parte de uma gestão da cidade
negra – foi proposta uma metodologia de análise documental qualitativa29. O
objetivo foi compreender o documento em sua dimensão profunda, auxiliando
no entendimento qualitativo de um fenômeno social, adicionando a complexidade
da questão temporal.

O trabalho de referência partiu de uma proposta metodológica de com-


preender os documentos oficiais tendo em mente as suas limitações, enquanto
documentos feitos para serem lidos30. Assim, pretendeu-se problematizar as re-
presentações objetificadas e correlacionar os dados documentais oficiais com a
extensa bibliografia que compreende os processos políticos como interações de
poder entre sujeitos, com as complexidades que lhes são inerentes.

Buscou-se, portanto, compreender as estratégias estatais para gerir as


condutas inseridas no conceito empiricamente determinado de trabalho de rua31.
Essas formas de gestão, registradas em documentos oficiais e legislação municipal,
constituíram nossas fontes primordiais32. Qualificamos a pesquisa como documental,
uma vez que buscou seu material em informações pré-existentes, concentrando-se
em fontes escritas, oficiais e públicas33, considerando que a pergunta orientou-se
pela visão do poder estatal.

Por mais que seja um tipo de pesquisa que se baseia em documentos


pré-existentes e não na criação de dados empíricos novos, é possível trabalhar
nesse sentido à medida em que considera os documentos como fatos sociais34.
Em todo caso, o procedimento de coleta envolve menor interferência do pesqui-
sador do que em técnicas como entrevista e observação, uma vez que “embora
tagarela, o documento permanece surdo, e o pesquisador não pode dele exigir

29 FARGE, 2009; CELLARD, 2014.


30 FARGE, op. cit.
31 “Empiricamente determinado” uma vez que a ideia de trabalho de rua não se refere a um conceito teórico
fechado, mas uma reflexão sobre a experiência urbana – e, no caso deste trabalho, especificamente negra – no
Brasil.
32 Nos termos da história do direito, estaríamos aqui nos concentrando numa “história das fontes”, entenden-
do que normas técnicas e ordenamentos jurídicos administrativos também se integram a esse campo. Lopes
(2011) afirma que a história do direito se compõe pelo cruzamento da história social, atenta às nuances da
vida material e não só dos grandes acontecimentos nacionais, com o universo jurídico, composto da cultura
jurídica, das instituições ou das normas. Entretanto, considerando que o objetivo do trabalho é menos fazer uma
história do ordenamento e mais refletir sobre as estratégias e significações a partir do ordenamento, optamos
por definir a abordagem a partir da pesquisa qualitativa documental.
33 SAINT-GEORGES, 2011.
34 Ibid.

232
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

precisões suplementares”35. Não equivale dizer que a coleta de documentos não


envolve uma atitude ativa daquele que a promove. A atividade de selecionar
documentos e criticá-los quanto à pertinência para a pesquisa pede grande
envolvimento do pesquisador.

Farge36 fornece um arcabouço metodológico da pesquisa qualitativa do-


cumental, e o faz à medida em que relata sua interação com o arquivo. Trata-se
de pesquisa em documentos históricos, mas com contornos próprios da dinâmica
qualitativa. A diferença essencial deste tipo de investigação, em relação a outras
abordagens, é “acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social”37. A
partir de Farge38, o processo qualitativo de coleta de dados, análise inicial e seleção
da amostra realiza-se tendo em mente as peculiaridades do arquivo. Os perigos
do trânsito entre teoria e campo parecem compartilhados com as demais formas
de análise qualitativa. A autora alerta para a necessidade de se manter sempre
vigilante quanto ao envolvimento com a hipótese, evitando a possibilidade de
enxergar nos dados apenas o que interessa à confirmação da teoria.

A adoção de uma abordagem unicamente qualitativa não foi, contudo,


pacífica por toda a pesquisa. Deparamo-nos com dados primários cujo levanta-
mento e tratamento quantitativo pareceu bastante proveitoso.39 Contudo, reto-
mando a pergunta de pesquisa — felizmente, o ímã que nos puxa novamente aos
objetivos almejados — ficou evidente que a perspectiva adequada deveria ser a
qualitativa. Por mais que dados quantitativos sirvam como um reforço substancial
dos argumentos, eles não se mostraram essenciais ao trabalho, justificando a não
construção de uma pesquisa mista. Convém registrar que muitas pesquisas quali-
tativas não descartam a coleta de dados quantitativos, principalmente, nas etapas
em que os dados podem ser coadjuvantes na busca de compreender revelações
e ocultamentos que ocupam o centro de referências das análises e interpretações.

Conceituações de pesquisa qualitativa, oriundas da pesquisa social, pre-


cisaram ser repensadas para um desenho de pesquisa jurídica. Um ponto de
partida comum foi a análise preliminar dos documentos, que consiste em avaliar
a credibilidade dos mesmos, como aponta Cellard40. No que concerne aos tex-
tos jurídicos e administrativos, os autores frequentemente são porta-vozes para
instituições, e carregam em si os vieses de produzir uma versão “oficial” para a
realidade. Da mesma forma, quando pensamos na natureza do texto, é preciso
35 CELLARD, 2014, p. 296.
36 Farge, 2009.
37 CELLARD, op. cit. p. 295.
38 FARGE, op. cit.
39 Por exemplo, relatórios de órgãos estatais que descreviam as infrações de posturas municipais poderiam
ensejar um levantamento quantitativo de quais infrações eram mais perseguidas de acordo com cada mês/ano.
40 Este autor aponta que é preciso ter em mente o contexto, os autores, a confiabilidade, a lógica interna e
a natureza dos textos.

233
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

considerar que estrutura e liberdade da redação são muito distintas de outras


fontes. Como qualquer discurso legislativo, é enunciado com uma pretensão de
ser lido. É um texto pensado e revisado. Não se trata de um discurso aciden-
tal41, mas proposital. Isso pode conferir menor “espontaneidade” na enunciação,
mas ainda assim ali se veiculam ideias e representações que capturam algo de
genuíno. Cabe enxergar além do óbvio ao ler os discursos oficiais, considerando
os interesses políticos que movem a institucionalidade.

Das referências em estudos qualitativos42, incorporamos também as preo-


cupações com a confiabilidade da pesquisa. Destituídos do mito da neutralidade,
resta fornecer sempre transparência, metodicidade e fidelidade às evidências43.

A ampliação de fontes documentais para além da legislação pretendeu,


também, tematizar o jurídico além da legislação – e, também, além do legislativo
– para ampliar o entendimento até as instituições, a partir de pareceres, relatórios
da Guarda Municipal, comunicações entre órgãos administrativos. Tentativa de se
despir do afã moderno de enxergar na lei toda a expressão do direito, buscou-se
pensar na normatividade produzida pelo Estado, no início do século XX, como
a expressão de uma experiência jurídica com contornos não necessariamente
padronizados em torno da lei. A própria temática, vale notar, se volta a uma
experiência em torno da organização administrativa municipal, cercada da dis-
cricionariedade que o poder de polícia implica. Parte significativa da construção
normativa estará, então, no agente público, na forma como aplica uma norma
regulamentar.

3. Considerações finais

A construção de um objeto de pesquisa se constitui de percalços e


descobertas, desde o projeto até a efetiva execução, coleta de dados e análise.
Acreditando na potencialidade deste percurso, buscou-se compartilhar, neste artigo,
duas reflexões oriundas da pesquisa de mestrado da autora.

No eixo teórico, o uso da expressão “cidade negra” para a abordagem do


trabalho de rua, um objeto quase que necessariamente vinculado à dimensão
espacial. Falar de quitandeiras, carregadores e outros personagens da Salvador do
início do século XX é, certamente, abordar as suas relações constitutivas com a
cidade. A apropriação do espaço público levada a cabo por esses sujeitos é um
dos vetores constitutivos da cidade negra.

41 FARGE, 2009.
42 SAMPIERI et al, 2013; YIN, 2016; GIBBS, 2009.
43 SAMPIERI et al, op. cit.

234
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A presença de trabalhadores e trabalhadoras negras nas ruas de Salvador


é especialmente relevante, inclusive, pela capacidade de incomodar. Nesse sentido
é que nos voltamos, no bojo de uma pesquisa jurídica, aos contornos da gestão
estatal sobre tais sujeitos. De que forma os órgãos da administração municipal
exerciam seus controles sobre o trabalho de rua? Através de variados documentos
– além da legislação municipal – buscou-se adentrar nas estratégias do poder
público. Por vezes mero projeto a ser realizado, por vezes prática consolidada na
atuação de guardas e fiscais municipais, os documentos nos mostravam dimensões
do olhar estatal sobre a cidade negra.

A preocupação com o documento leva ao eixo metodológico, no qual


buscou-se abordar as dificuldades de manejar documentos feitos para serem
lidos – ou seja, discursos pouco acidentais. A partir das referências da pesquisa
qualitativa documental, foram compartilhadas as reflexões em torno da necessi-
dade de remodelar e repensar as técnicas da pesquisa social para o meio jurídico,
compreendendo as peculiaridades do campo. Mais do que respostas categóricas,
o objetivo do artigo foi apresentar espaços de inquietação que permearam a
pesquisa de dissertação da autora, assumindo as incompletudes de um objeto
em permanente construção.

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GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

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237
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

ECONOMIA POLÍTICA E ESCRAVIDÃO NA ACADEMIA


DE DIREITO DE PERNAMBUCO

GUILHERME RICKEN
Universidade de São Paulo

Resumo
O presente artigo tem por escopo averiguar a dualidade da escravidão,
na forma de sua presença e ausência, nos manuais didáticos publicados pelos
lentes de economia política da Academia de Direito de Pernambuco no período
imperial. São eles os professores Pedro Autran da Matta Albuquerque (autor de
Elementos de Economia Política, de 1844, e de Prelecções de Economia Política,
de 1860) e Lourenço Trigo de Loureiro (que escreveu Elementos de Economia
Política, de 1854). Assim, busca-se aclarar, ainda que de maneira muito modesta,
um dos capítulos da aclimatação do liberalismo clássico em um chão histórico
bastante diverso daquele em que foi concebido

1. Introdução

O estudo da economia política no Brasil possui uma longa trajetória. A


chegada da família real portuguesa foi logo seguida da promulgação do Decreto
de 23 de fevereiro de 1808, que criava na cidade do Rio de Janeiro uma cátedra
de ciência econômica. Seu ministrante deveria ser José da Silva Lisboa, o Visconde
de Cairu, então deputado e Secretário da Mesa da Inspeção da Agricultura e
Comércio da Cidade da Bahia, que, quatro anos antes, havia publicado uma obra
intitulada Princípios de Economia Política. No entanto, Lisboa logo foi indicado para
desempenhar os cargos de Desembargador da Mesa do Paço e de deputado à
Junta de Comércio. Ocupado em suas novas funções na burocracia governamental,
as aulas para as quais fora indicado jamais chegaram a ser ministradas.1

A criação da cátedra de economia política inseria-se em uma dupla


estratégia da monarquia portuguesa. De um lado, buscava-se cooptar letrados
brasileiros para o desempenho de funções no quadro burocrático. De outro,
esperava-se que esses letrados, ao serem incorporados ao serviço governamental,
formassem uma ponte entre a monarquia e os setores sociais dominantes na
colônia. A ciência, destarte, foi fomentada pelo Estado e a ele prestou seus ser-
viços, tendo em vista que era encarada não tanto como um saber investigativo
dos fenômenos econômicos, mas a partir de um sentido eminentemente prático,
voltado a fornecer os fundamentos da arte de governar.2

1 GREMAUD, 1997, p. 20.


2 ROCHA, 1996, p. 37-39.

239
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Considerando que a cátedra atribuída a Cairu nunca foi efetivamente


exercida, o ensino de economia política no Brasil só teve início com a criação
dos cursos jurídicos, em 1827. De acordo com Lei de 11 de agosto, a cadeira de
economia política seria regida no quinto ano do curso. O lente da disciplina teria
a responsabilidade de escolher o compêndio a ser utilizado na preparação das
aulas ou, não havendo nenhum, de elaborá-lo. Na prática, os primeiros docentes
empregaram os compêndios elencados nos Estatutos do Visconde da Cachoeira.3
No caso da economia política, isso significava estudar, basicamente, as obras de
Jean-Baptiste Say, Adam Smith, David Ricardo, Thomas Malthus, Jean de Sismondi
e William Godwin.

A despeito da presença de Sismondi e Godwin, autores recalcitrantes em


relação ao livre mercado e duvidosos da harmonia social que ele traria em seu
bojo, é notável o predomínio dos precursores da escola clássica de economia
política. Destarte, os estudantes de direito, futuros advogados e componentes da
máquina estatal, deveriam ter uma formação econômica voltada majoritariamente
ao pensamento então dominante na Europa, segundo o qual a prosperidade das
nações seria alcançada a partir das condutas individuais em um mercado autorregu-
lável, aliado, ainda, à teoria das vantagens comparativas no comércio internacional.

Dessa forma, o presente artigo busca aclarar, ainda que de maneira muito
modesta, um dos capítulos da aclimatação do liberalismo clássico em um chão
histórico bastante diverso daquele em que foi concebido. O transplante das
ideias europeias não se deu, por certo, de maneira automática e sem adaptações.
Afinal, os autores clássicos da economia política haviam elaborado sua produção
teórica em uma Europa que vivenciava a Revolução Industrial, na transição do
trabalho servil para o assalariado. Já no Brasil, os professores de economia iriam
se deparar com a escravidão, fator estranho às equações que lidavam somente
com o trabalho livre.

Assim, face a um modo de produção baseado não na eficácia, mas na


violência e na autoridade, o estudo da racionalização produtiva, bem como sua
modernização continuada, temas caros aos autores europeus, encontravam-se, no
Brasil, “fora do lugar”. Se, de um lado, no Brasil, graças à sua inserção no mercado
externo, havia a presença do raciocínio econômico burguês, voltado ao lucro,
além de a Independência ter sido realizada com base em ideias liberais francesas,
inglesas e norte-americanas, “[p]or outro lado, com igual fatalidade, este conjunto
ideológico iria chocar-se contra a escravidão e seus defensores, e o que é mais,
viver com eles”.4

3 ROBERTO, 2016, p. 39.


4 SCHWARTZ, 2000, p. 13.

240
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Isto posto, objetiva-se, aqui, averiguar a dualidade da escravidão, na forma


de sua presença e ausência, nos livros publicados pelos lentes de economia polí-
tica da Academia de Direito de Pernambuco durante o período imperial. Quatro
foram os catedráticos da academia recifense nesse ínterim: Pedro Autran da Matta
Albuquerque, Lourenço Trigo de Loureiro, Aprígio Justiniano da Silva Guimarães
e José Joaquim Tavares Belfort, tendo os dois primeiros, em meados do século
XIX, publicado obras voltadas à disseminação do conhecimento econômico, as
quais serão analisadas neste estudo.

2. Pedro autran da matta Albuquerque

A economia política, segundo Pedro Autran da Matta Albuquerque,5 “he


a Sciencia das leis, que regulão a producção, a accumulação, a distribuição e o
consumo dos objectos necessarios, uteis e agradaveis ao homem, e que ao mes-
mo tempo possuem hum valor de troca”,6 conforme exposto em seus Elementos
de Economia Política, de 1844. Ela teria por objeto exibir os meios pelos quais a
atividade humana poderia se tornar mais produtiva e determinar as circunstân-
cias mais favoráveis à acumulação da riqueza (os tais objetos necessários, úteis,
cômodos e agradáveis, necessários à cultura e ao aperfeiçoamento do espírito),
bem como as proporções em que ela se divide pelas diferentes classes sociais e
o modo de consumi-la mais vantajosamente.7

A importância da economia política adviria “da sua intima connexão com


os interesses do homem e da sociedade”.8 Para Albuquerque, se todos os esforços
humanos se dirigem à aquisição de bens para consumo, seria muito importante
conhecer o melhor modo de adquiri-los. Além disso, os preços das mercadorias,
os lucros dos agricultores e dos comerciantes, o emprego e o salário dos traba-
lhadores, a renda dos proprietários e os efeitos das leis e dos impostos sobre
a indústria eram fenômenos cognoscíveis a partir dos princípios da economia
política. Não por outra razão seria a economia a ciência “que diga mais respeito
às occupações e aos negocios diarios da especie humana”.9

Albuquerque frisa que as leis que regulam a produção e a distribuição


da riqueza são os mesmos em todos os países e sociedades. A segurança
da propriedade, sem a qual não haveria estabilidade no trabalho, a liberda-
5 Nascido na Bahia em 1° de fevereiro de 1805, formou-se em direito em Aix, na França, em 1827. Foi lente
de economia política na Academia de Direito de Pernambuco a partir de 1829, tendo também ministrado
outras disciplinas até sua jubilação, em 1870. Sua carreira incluiu a passagem pelo Instituto Comercial da Corte
(onde também lecionou economia política) e pela Escola Normal. Foi membro do Conselho do Imperador e
Comendador da Ordem da Rosa e Cavaleiro da Ordem de Cristo. Faleceu no Rio de Janeiro em 31 de outubro
de 1881. Cf. BLAKE, 1902, p. 21-23.
6 ALBUQUERQUE, 1844. p. 7.
7 Idem.
8 Idem.
9 Idem.

241
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

de de indústria, necessária à manifestação plena do talento e do engenho


humano, e a economia nas despesas públicas, conducente à acumulação da
riqueza nacional, não seriam atributos de uma única espécie de governo,
mas de aplicação possível tanto em Estados liberais quanto absolutistas.10
Não obstante a forma de governo, “sempre se adiantarão na carreira dos
melhoramentos os paizes, onde [...] se ha permittido a cada hum o gozo
pacifico dos productos do seu trabalho, a cultura do seu espirito, e a livre
communicação das suas idéas”.11

O fenômeno da produção, segundo Albuquerque, é sinônimo de


transformação, “fazer com o que existe outra coisa differente, não quanto á
substância, mas quanto á forma, e quanto á utilidade”.12 Para tanto, mister o
emprego de trabalho, mas não apenas físico: “operações ha, que exigirão a
concepção de hum plano, que muito custou ao espirito”.13 Há no trabalho,
portanto, uma dimensão intelectual, que atua em conjunto com o lado físico
do obreiro. O bom trabalho seria resultado do concurso dos esforços físicos
e intelectuais, concepção de difícil acoplamento a uma realidade em que a
mão de obra predominante era encarada apenas como uma ferramenta, sem
a capacidade de pensar sobre o próprio trabalho.

Ao tratar das condições indispensáveis para a produção da riqueza,


Albuquerque elenca, entre elas, a segurança da propriedade. Ele parte, assim,
da premissa de que o produto do trabalho do homem é propriedade sua,
e de ninguém mais. Nesse sentindo, a segurança da propriedade abrange-
ria, também, “o uso dos poderes, que a Natureza lhe deo [ao indivíduo],
quando esse uso não prejudica aos outros”.14 As faculdades do espírito e do
corpo, inerentes à condição humana, diriam respeito a cada um, não sendo
submissíveis ao arbítrio de outrem. Assim, “viola-se o direito de propriedade,
quando se faz algum regulamento para forçar os individuos a empregarem
de hum modo particular o seu trabalho, ou capital”.15 Afinal, “o trabalhador
tem o direito de ser livre no seu trabalho”.16

Outro elemento importante no processo produtivo era o crédito, em


cuja definição de Albuquerque era “a confiança, que se faz de alguem, para
fiar delle alguma mercadoria, ou emprestar-lhe algum dinheiro”.17 O crédito
é tratado por ele a partir de uma origem eminentemente privada: de um
10 Ibidem, p. 20-21.
11 Ibidem, p. 22.
12 Ibidem, p. 25.
13 Ibidem, p. 27.
14 Ibidem, p. 31.
15 Idem.
16 Ibidem, p. 55.
17 Ibidem, p. 78.

242
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

lado, um indivíduo deseja emprestar a outros parte de seu capital, com a


condição de receber um prêmio. De outro, sempre haveria pessoas dispostas
a tomar um empréstimo, seja para ampliar seus negócios, para especular
ou para pagar dívidas.18 Não há menção a quê corresponderia o capital do
emprestador, malgrado Albuquerque imponha à sua narrativa um pano de
fundo de sociedade industrial.

Por sua vez, a reflexão de Albuquerque sobre os salários leva-o a de-


fini-los como “a recompensa dos esforços dos trabalhadores”.19 Os salários de
mercado dependeriam das condições contratuais firmadas entre os obreiros e
seus empregadores, subordinando-se não à pura convenção, mas à proporção
entre a oferta e a demanda de trabalhadores. Já os salários necessários ou
naturais corresponderiam à soma indispensável à sobrevivência e reprodução
da força de trabalho.20 Onde os salários fossem altos os obreiros seriam “mais
activos, diligentes e expeditos”,21 pois, estimulados pelos mesmos sentimentos
e paixões dos outros homens, veriam ali a possibilidade de aumentar seu
padrão de vida, adquirindo mais produtos para sua comodidade.

Sua publicação seguinte, de 1859, com uma segunda edição em 1860,


intitulada Prelecções de Economia Politica, possuía um objetivo declarado:
facilitar o conhecimento da ciência econômica, sobretudo para os alunos
das academias de direito de Pernambuco e de São Paulo, que se viam
obrigados a estudá-la. Albuquerque buscou compendiar as principais lições
de economia da época, conectando os pensamentos de diferentes autores
e exprimindo-os à sua maneira. Seu esforço se destinava, portanto, a prover
as cátedras de economia política dos cursos jurídicos com um manual que
resumisse a doutrina econômica então em voga, nutrindo os estudantes
brasileiros com a economia política ensinada na Europa, especialmente na
Inglaterra e na França.22

A escravidão surge aqui abertamente. Para Albuquerque, ela constitui


a negação absoluta da liberdade no trabalho. Ela é o oposto do trabalho
livre, o qual se verifica “quando o indivíduo o pode escolher e exercer como
entende, não devendo receiar da autoridade restricção nenhuma que não fôr
exigida pela moral publica e pela justiça”.23 Albuquerque, aliás, em princípio,
dá ao trabalho livre a característica de direito inato do homem, pois, tendo
18 Ibidem, p. 78-79.
19 Ibidem, p. 279.
20 Ibidem, p. 280.
21 Ibidem, p. 293.
22 Albuquerque possuía forte influência de James Mill, cujos Elementos de Economia Política verteu para a língua
portuguesa. A penetração das ideias do economista inglês somou-se a influências de Adam Smith, David Ricardo
e Jean-Baptiste Say. Cf. GREMAUD, 2001. p. 55.
23 ALBUQUERQUE, 1860. p. 84.

243
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

o dever de autoconservação e de melhorar sua própria condição e sendo


dotado de razão para conhecer o que mais lhe convém, “priva-lo pois da
escolha e do livre exercicio do trabalho é attentar ao mesmo tempo contra
os direitos de sua intelligencia e da sua liberdade”.24

Não obstante a alegada incongruência entre a escravidão e a con-


dição natural do homem, Albuquerque não encontrou dificuldades para
justificá-la. Para ele, a “escravidão é um facto antiquissimo; remonta á origem
das sociedades, e as mesmas causas que então a produziram, renovaram-se
nas colonias dos povos modernos”.25 Tais causas residiriam, notadamente, na
escassez de trabalhadores – livres – para o cultivo da terra. Os possuidores
de terras, de modo a não deixá-las incultas, teriam recorrido à força para
reduzir determinados indivíduos ao cativeiro. Todavia, essa não era uma si-
tuação inexorável. A manutenção da escravidão só ocorreria enquanto suas
causas não fossem revertidas.26

A reversão dos germes da escravidão não era uma esperança idílica,


mas decorrente das conclusões apresentadas pela economia política, dado
que o trabalho compulsório seria menos produtivo do que o trabalho livre27
– tese que já havia sido proposta pelos precursores da economia política na
Europa no contexto de surgimento e consolidação do capitalismo. A escravi-
dão teria três efeitos sobre o homem: contrariar suas vocações, inutilizar sua
inteligência e tirar-lhe o maior trabalho possível. Assim, “quando a vocação é
contrariada, quando a intelligencia não intervem na execução, e o trabalho
é fatigante, não se deve esperar do obreiro grande poder productivo”.28

Segundo Albuquerque, estando a remuneração do serviço ao arbítrio


do senhor, podendo reduzi-la ao mínimo, tal injustiça tiraria do escravo a boa
vontade para trabalhar.29 Além disso, a perfeição do trabalho dependeria do
desenvolvimento da inteligência do obreiro. No entanto, “o embrutecimento é
condição essencial da escravidão, porque todo o saber do escravo é perigoso
para o senhor”.30 De um trabalhador bruto, somente um trabalho bruto se
poderia esperar. Por fim, o escravo tampouco seria capaz de utilizar toda a
sua força animal, pois, sendo homem, o temor do castigo poderia mover-lhe

24 Idem.
25 Ibidem, p. 87.
26 Ibidem, p. 88.
27 Tese que não se restringia ao campo da economia política, sendo identificada, também, em dissertações
produzidas no século XIX no âmbito do direito civil, conforme já estudado, e.g., em relação à Academia de
São Paulo. Cf. FERREIRA, 2016, p. 79-80.
28 ALBUQUERQUE, 1860. p. 84.
29 Ibidem, p. 85.
30 Idem.

244
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

a trabalhar, mas não incutir-lhe boa vontade, cuja ausência resultaria em um


trabalho “frouxo e máo”.31

Provado que o trabalho escravo é menos produtivo que o do homem


livre, Albuquerque lembra que tal dedução não é extensível à utilidade32 que
um e outro possam ter para o empresário. Ainda que o trabalho livre, em
qualquer circunstância, seja mais produtivo que o compulsório, este pode
eventualmente ser mais lucrativo e, por consequência, mais útil ao tomador
do serviço.33 Isso ocorre quando a escassez de trabalhadores livres faz com
que o preço corrente do trabalho livre absorva todo o lucro do empresário.
Nessas circunstâncias, sendo a escravidão uma possibilidade, o que importa
ao empresário saber “não é se os escravos produzem menos do que os
trabalhadores livres, mas se pode, com o producto do trabalho dos escravos,
salvar as despezas da producção e ter um lucro”.34

A escravidão, portanto, pode se mostrar necessária, afinal, “[c]oncebe-se


que em um paiz novo, onde ha muita terra a rotear e cultivar, seja mister
grande somma de trabalho combinado, isto é, grande numero de braços
que trabalhem simultaneamente”.35 A escravidão também pode ser desejável,
pois, em situações em que o preço corrente do trabalho compulsório é
inferior ao cobrado pelos obreiros livres, compreende-se que “os possuidores
de escravos possam enriquecer, como de facto teem enriquecido”.36 O que
seria inconcebível, tampouco comprovado pelos fatos, “é que o trabalho
do escravo seja mais productivo do que o do homem livre, e que as artes
possam fazer progresso onde a escravidão existe”.37

A despeito de certos momentos históricos terem evidenciado a ne-


cessidade e a vantajosidade da escravidão, ela estaria, de todo modo, fadada
ao desaparecimento. Enquanto a quantidade de trabalhadores livres foi se
ampliando, o preço corrente do trabalho livre se aproximou do seu preço de
custo, tornando a mão de obra escrava menos lucrativa. Nesse trilhar, uma
vez equilibrados os preços corrente e de custo do trabalho livre, ele deixaria
de ser tão somente mais produtivo do que o trabalho compulsório – o que
já era por essência – para se tornar, também, mais barato e mais lucrativo,
motivando a substituição dos escravos por trabalhadores assalariados.38

31 Ibidem, p. 86.
32 A utilidade “é a relação das cousas com as nossas necessidades”. Cf. ALBUQUERQUE, 1860. p. 113.
33 Ibidem, p. 87.
34 Ibidem, p. 86.
35 Ibidem, p. 87.
36 Idem.
37 Idem.
38 Ibidem, p. 88.

245
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Era fato consumado, para Albuquerque, que as despesas de produção


do trabalho compulsório superavam as do trabalho livre. No entanto, quando
a mão de obra é escassa e os trabalhadores negociam-na livremente, o preço
corrente do trabalho livre pode superar em demasia seu preço de custo.
Esse cenário muda quando a mão de obra livre passa a ser abundante, seja
em decorrência do aumento populacional, seja por conta de progresso tec-
nológico que aumente a produtividade do trabalho. Preço corrente e preço
de custo ficam, então, em nível idêntico. Assim, como o preço de custo do
trabalhador livre é menor que o do escravo, além de ser mais produtivo, o
emprego de mão de obra livre será mais vantajoso.39

Encurralada pelo devir anunciado pelos cientistas da economia política,


a escravidão se sustentava por força de condições materiais que, cedo ou
tarde, seriam superadas.40 A lógica econômica já o havia mostrado. Resta-
va, então, esperar que ocorressem no Brasil os mesmos fatores estruturais
observados na Europa. Dessa forma, o desenvolvimento populacional “que
augmentou o numero dos trabalhadores, e ao mesmo tempo os progressos
da industria que restringiram o numero dos obreiros em cada industria, foram
causa da abolição da escravidão no velho mundo, e estas mesmas causas a
farão desapparecer do novo”.41

Albuquerque reconhece, contudo, que o desaparecimento da escra-


vidão nem sempre é sucedido automaticamente pelo universo do trabalho
livre. Alguns territórios conviveram, assim, com o regime da servidão. Para
ele, “[a] unica differença entre o escravo e o servo é que aquelle se podia,
e se pode vender, e o outro não; que o primeiro era, e é obrigado a pres-
tar ao senhor todo o seu serviço, e o segundo alguns dias de trabalho em
proveito do senhorio da terra”.42 A servidão, tal qual a escravidão, tinha por
destino o desvanecimento. Na maior parte dos países, isso já havia ocorrido.
E naqueles em que ela subsistia, estaria provado que o trabalho dos servos
é pouco produtivo.43

3. Lourenço Trigo de Loureiro

Os Elementos de Economia Politica de Lourenço Trigo de Loureiro44


foram publicados em 1854, tendo por meta substituir os Elementos de Eco-
39 Ibidem, p. 89.
40 Não obstante, saliente-se que escravidão e capitalismo não são termos antitéticos, tampouco realidades
conflitantes. Não são desconhecidas, aliás, teorizações que compatibilizam a escravidão e o livre mercado, como
existia, e.g., no Sul dos Estados Unidos. Nesse sentido, vide BROPHY, 2016, p. 262-276.
41 ALBUQUERQUE, 1860. p. 89.
42 Ibidem, p. 89-90.
43 Ibidem, p. 90.
44 Nascido em Vizeu, Portugal, no Natal de 1793, iniciou seus estudos na Universidade de Coimbra. Porém,

246
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

nomia Politica de Pedro Autran da Matta Albuquerque, lançados em 1844,


como o compêndio oficial da cátedra de economia política na Academia
de Direito de Pernambuco. Tanto é que o livro se inicia com uma men-
sagem – um pedido, na verdade – ao conselheiro Luiz Pedreira do Couto
Ferraz, Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, em que,
em meio a críticas à obra de Albuquerque, afirma que não lhe foi possível
“deixar de combater do alto da Cadeira, ainda que muito a meu pezar, e
com o respeito devido a um Lente tão distincto por seu elevado talento,
e saber, algumas das doutrinas do compendio approvado”.45

Loureiro avisa aos leitores que buscou compor um livro elementar de


economia política, onde pudessem ser encontrados os princípios fundamen-
tais dessa ciência. Tal como fez Albuquerque em relação às Prelecções, não
escondeu o fato de que sua contribuição estaria não nas ideias propriamente
ditas, mas no modo que escolheu para organizá-las e expô-las. Assim, escreveu
Loureiro que “[p]ouco, ou nada me importa, que me accuzem de plagiato,
porque declaro francamente, que não fiz descobertas na sciencia, de que
trato; e que, pelo contrario, colhi em muitos dos bons autores, que tem
escripto sobre ella, a maxima parte das idéas, que este livro encerra [...]”.46

A economia política, assim, teria por objeto investigar “a origem,


a natureza, o emprego, e as consequencias do principio nutritivo da vida
social”,47 qual seja, o conjunto de leis constantes que regulam e mantém a
vida da sociedade enquanto corpo organizado. A economia política seria para
o Estado, então, o equivalente da economia doméstica para a família. Essa
abordagem de Loureiro em relação ao método adequado às investigações
da economia política difere, em essência, da proposta de Albuquerque. Ao
passo que este propunha uma abordagem empírica, Loureiro apostava em
verdades e princípios gerais de onde seriam deduzidas as conclusões próprias
da análise econômica.48

Quatro seriam as principais investigações a que se voltaria a ciência


econômica: acerca das leis que regulam a produção das riquezas; sobre as
leis segundo as quais as riquezas são distribuídas; quanto às leis que regem
as permutas de umas riquezas por outras; e em relação às leis que guiam

com a invasão francesa, veio para o Brasil e formou-se em direito em Olinda, em 1832. Foi lente de direito civil
e de economia política na Academia de Direito de Pernambuco a partir de 1833, tendo também ministrado
outras disciplinas ao longo de sua carreira, que se estendeu até 1870. Também lecionou gramática da língua
portuguesa e língua francesa. Foi membro do Conselho do Imperador e Oficial da Ordem da Rosa. Faleceu
em Pernambuco em 27 de novembro de 1870. Cf. BLAKE, 1899, p. 326.
45 LOUREIRO, 1854. p. VI.
46 Ibidem, p. X.
47 Ibidem, p. XI.
48 GREMAUD, 1997, p. 39-40.

247
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

o consumo.49 Tais leis do mercado favoreceriam a harmonia social, que,


construída na esfera doméstica a partir das interações atomísticas entre os
agentes econômicos, projetava-se, de maneira otimista, nas relações interna-
cionais. Autoridade e dominação corresponderiam a conexões do passado,
superadas por um concerto de nações em que as condutas individuais,
quando tomadas no conjunto, resultariam na prosperidade geral.

Ao tratar da organização do trabalho, Loureiro relata as vantagens da


liberdade de indústria e de associação, conseguindo desprezar, em sua análise,
a presença maciça de mão de obra escrava no sistema produtivo brasileiro.
Para ele, “[a] liberdade de industria é condição essencial para o augmento
da producção, e consequentemente para o augmento do bem-estar dos
indivíduos, e da prosperidade, e riqueza das nações”.50 Não obstante, uma
permanente vigilância deveria recair sobre os excessos do individualismo,
cujos abusos sobre a liberdade industrial causariam males à sociedade. Tal
cuidado não deveria, de forma alguma, resultar no sacrifício da liberdade,
“que aliás é innocente, e utilissima á humanidade, e condição essencial da
sua existencia, e bem-estar”.51

Loureiro, discorrendo sobre as vantagens do princípio associativo,


defende a necessidade de se “interessar particularmente os trabalhadores nas
vantagens, e desvantagens da associação industrial”.52 Para tanto, aos traba-
lhadores deveria ser oferecida, além do salário, seja mensal ou anualmente,
uma parte dos lucros do empresário, “o qual necessariamente ha de excitar
seu zelo”.53 Assim, os obreiros deveriam ser estimulados a trabalhar conjun-
tamente com os donos do capital, sendo ativos, diligentes e zelosos como
se eles próprios fossem os titulares do empreendimento, de modo a evitar
os danos acarretados pelo individualismo exacerbado.

A despeito do apego excessivo ao princípio da liberdade redundar em


individualismo pernicioso ao corpo social, a assunção geral das indústrias pelo
governo, em regime de monopólio, não seria a resposta correta, “porquanto
isso seria matar a liberdade em vez de corrigir os abusos, que o homem
póde fazer della, e que bem podem ser corrigidos em grande parte por
meio da associação voluntaria do trabalho com o capital”.54 A sugestão de
Loureiro passava ao largo de um aviltamento à liberdade de indústria e de
trabalho, concentrando-se na facilitação de educação primária e profissional à

49 LOUREIRO, 1854, p. XIII.


50 Ibidem, p. 106.
51 Ibidem, p. 107.
52 Ibidem, p. 108.
53 Idem.
54 Ibidem, p. 110.

248
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

população, habilitando-a ao desempenho dos trabalhos industriais sem que lhe


fosse obrigado passar por “longos tirocinios, verdadeira servidão temporaria”.55

Cuidando de explicar o fenômeno da produção, Loureiro a define


a partir de duas perspectivas complementares. Considerada como ação, a
produção é “essa serie de operações mechanicas, que tem por fim mudar o
estado das cousas, para as tornar uteis, ou augmentar-lhes a utilidade, que
ellas já tem”.56 Por sua vez, tomada como efeito ou resultado dessa série de
operações mecânicas, ela “é a quantidade, ou a somma dos objectos uteis,
que se obtiverão por meio dellas”.57 Como a ideia de produção conteria a
de ação, ela faria supor a presença de agentes. Três seriam os instrumentos
ou agentes da produção: a natureza, o trabalho e o capital.58

Nesse contexto, Loureiro compreendia o trabalho como “[o] complexo


das operações, por meio das quaes o homem produz, ou concorre para a
producção”.59 Como agente da produção, o trabalho seria mais poderoso e
produtivo do que o mais simples deles, a natureza, pois capaz de incorporar
valor e, por consequência, utilidade, aos elementos em seu estado bruto. No
entanto, o trabalho não deveria ser enxergado apenas como uma manifesta-
ção da força bruta do obreiro, direcionada à transformação dos elementos
naturais. O trabalho também possuía uma dimensão intelectual,60 da qual o
trabalho qualificado era inseparável.

Na exposição de Loureiro, o trabalho é dotado de um claro elemen-


to volitivo. Antes de realizar qualquer trabalho, deve o homem escolher os
meios pertinentes de execução, “para o que é mister conhecel-os e querel-os;
e para os conhecer, querer, e escolher, é mister saber, comparar, e julgar”.61
Conhecimento, vontade e ação, portanto, formariam a cadeia de manifestações
morais do homem, sendo que a última delas suporia as duas primeiras. O
conhecimento só seria ativo quando aplicado, e a aplicação só viria de quem
tivesse vontade de trabalhar. Daí adviria, para Loureiro, a conclusão de que
o conceito de trabalho não era redutível ao exercício das habilidades físicas
do homem, mas abarcava suas faculdades intelectuais e morais.62

Em decorrência disso, o aperfeiçoamento do trabalho demandaria


ações tanto no aspecto físico quanto intelectual do obreiro. Assim, “[o]
55 Idem.
56 Ibidem, p. 1.
57 Ibidem, p. 1.
58 Ibidem, p. 3.
59 Ibidem, p. 4.
60 Idem.
61 Ibidem, p. 5.
62 Ibidem, p. 5-6.

249
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

zelo, e actividade do obreiro dependem de certa força physica, e dos esti-


mulos, que o excitão, e fazem obrar, como são a intensidade das precizões,
que sente, e principalmente o desejo natural de melhorar a sua condição,
presente, e futura”.63 Para a manutenção da força física e da robustez, os
salários deveriam ser capazes de adquirir “alimentos substanciaes, e salubres,
ainda que grosseiros sejão”.64 Por sua vez, o desejo de melhorar sua própria
condição seria inato ao homem, tão intenso a ponto de nunca saciar-se,
constituindo a verdadeira “mola real da industria”.65

Interessante é a análise de Loureiro, também, acerca da liberdade


industrial. Para ele, as faculdades físicas, morais e intelectuais do homem são
dons naturais, “e que por isso mesmo devem ser respeitados religiosamente,
deixando-se-lhe o livre exercicio delles, uma vez que não offenda a moral,
segurança, e interesse publico”.66 Sem que o exercício dessas faculdades fosse
deixado livre, a capacidade produtiva do homem não tomaria os caminhos
mais úteis e vantajosos, pois ninguém, além dele mesmo, conheceria sua
vocação e seus interesses. Deixado livre, o trabalhador poderia melhor
contribuir com o sistema econômico e, por corolário, para a coesão social.

4. Conclusões

O escravo já foi tratado de diversas formas pela historiografia, desde


abordagens que o colocavam como o mais submisso dos objetos à disposição
de seu mestre até perspectivas que reconheciam seu papel como sujeito
ativo de sua própria realidade. Não passa despercebida, nesse aspecto, a
possibilidade de encará-lo como uma “presença ausente”,67 uma sombra em
evidência, constante na vida material do Brasil do século XIX, porém capaz
de desaparecer nas manifestações do campo intelectual. Nos inquéritos po-
liciais, a escravidão estava ali, reconhecível na violência excessiva, ainda que
nenhuma das partes envolvidas fosse escrava, mas homens livres.

E na economia política?

A escravidão foi um fato dominante na vida econômica brasileira no


período imperial, desde as charqueadas gaúchas até os engenhos açucareiros
nordestinos, passando pelos cafezais do Rio de Janeiro e de São Paulo. Não
obstante, conforme verificado neste artigo, à predominância de mão de obra
escrava não correspondeu, em igual medida, um reflexo no estudo e na

63 Ibidem, p. 15.
64 Ibidem, p. 16.
65 Idem.
66 Ibidem, p. 27.
67 Conforme inspirado em FRANCO, 1983.

250
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

exposição da ciência econômica. Na Academia de Direito de São Paulo isso


era manifesto, pois a adoção da obra de Henry Dunning MacLeod, autor
cujas reflexões voltavam-se sobretudo à moeda e ao sistema bancário, per-
mitia que não se falasse em escravidão – o pós-escravidão e a construção
do mercado de trabalho não eram preocupações ali palpáveis.

Na Academia de Pernambuco, no entanto, a situação era outra. Os


compêndios elaborados por Matta Albuquerque e Trigo de Loureiro abar-
cavam todas as áreas sensíveis do fenômeno econômico, estando aptos, em
tese, a inserir o elemento escravista em suas respectivas visões acerca da
economia política. Talvez fosse demais esperar que os lentes o fizessem nos
capítulos sobre o consumo, afinal, não sendo assalariados, os escravos não
possuíam dinheiro – sem falar no caráter autárquico das grandes fazendas
do Brasil imperial. Todavia, ao cuidarem da produção e do crédito, parece
pouco crível que conseguissem ignorar sua inserção em uma ordem escra-
vista – mas assim fizeram.

Ao tratarem da produção, tanto Albuquerque (nos Elementos de


Economia Política) quanto Loureiro punham, lado a lado, os elementos físicos
e psíquicos dos trabalhadores. O fazer produtivo demandaria a conjunção
de ambos. Estavam, portanto, teorizando sobre trabalhadores assalariados,
uma minoria no Brasil oitocentista. É o que se depreende, aliás, das con-
siderações dos autores sobre as flutuações do preço da mão de obra. No
entanto, em uma realidade escravista, qual seria o sentido de dizer que o
trabalhador deveria ser estimulado pelo empregador, pois isso acenderia
seu desejo natural de melhorar sua condição de vida? A vida permaneceria
rigorosamente a mesma, especialmente nas fazendas, que concentravam a
maior parte dos escravos.

Em relação ao crédito, Albuquerque (Elementos de Economia Política),


como se estivesse lidando com um país europeu em vias de industrialização,
traça um eixo de relações nitidamente privadas: um capitalista emprestando
a outro, para que este amplie seus negócios e aquele receba os juros corres-
pondentes. Aqui, algo fica no ar: no Brasil imperial, onde estavam investidos
os capitais? Em escravos, por certo, graças à insegurança jurídica em relação
à terra. Não é por outro motivo que, com o fim do comércio de escravos,
as elites agrárias propugnaram a transformação da terra em mercadoria, com
a criação de um mercado imobiliário legítimo.68 O escravo estava presente
na relação creditícia, mesmo que ausente de sua formulação teórica.

Postos à margem no primeiro livro de Albuquerque, bem como no de


Loureiro, os escravos aparecem, de forma explícita, nas Prelecções de Economia
68 HOLSTON, 2013, p. 186.

251
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Politica. Ao frisar a importância do trabalho livre, Albuquerque menciona as


críticas da economia clássica à escravidão: sua carestia, baixa produtividade
e a falta de motivação do escravo para o trabalho. A exemplo do Visconde
de Cairu,69 apresenta justificativas à existência da escravidão, que, em dadas
circunstâncias – como no Brasil –, seria mais barata que o trabalho livre.
Todavia, consoante ensinado pela economia política europeia, da qual Albu-
querque era tributário, o regime escravista seria superado inexoravelmente,
sendo substituído pelo trabalhador assalariado – com, no máximo, algum
interstício de trabalho servil.

Assim, a economia política ensinada na Academia de Direito de


Pernambuco, a despeito das influências confessas dos economistas clássicos
europeus, adaptou à periferia a ciência econômica produzida no centro
do sistema, conferindo-lhe, em alguma medida, ares de originalidade. Se
os argumentos clássicos contra a escravidão foram repetidos no Brasil, eles
foram acompanhados da defesa, ainda que acanhada, do regime econômico
então dominante. E mesmo onde, nas elucubrações dos lentes, a escravidão
estivesse aparentemente ausente, ela estava presente nas entrelinhas, pois
inseparável das ideias de propriedade, liberdade industrial, produção, crédito,
salário, capital e outras mais, conformando todo o fenômeno econômico.

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Typographia de Santos & Companhia, 1844.
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69 Para Cairu, a escravidão surge como uma possibilidade imposta por circunstâncias especiais, que inviabilizariam
o trabalho livre. Além disso, afirmava que, por conta da existência de escravos, o desenvolvimento industrial
seria inexequível no Brasil. Cf. ROCHA, 1996, p. 121-123.

252
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

BRAZIL. Lei de 11 de Agosto de 1827. Collecção das Leis do Imperio do Brazil


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253
GESTÃO DE UMA CIDADE NEGRA: SALVADOR E TRABALHO DE RUA NO INÍCIO DO SÉCULO XX

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254
Grupo de Trabalho

HISTÓRIA CONSTITUCIONAL
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA


HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA E O ACESSO
AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

BRENNER TOLEDO ROCHA


Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Resumo
O artigo volta-se a analisar a questão da tolerância religiosa sob uma pers-
pectiva de crítica histórica construtivista, partindo-se das teorias da libertação e
da teoria comunicativa em Habermas. Serão observadas as discrepâncias entre o
discurso universalista das liberdades religiosas na formação da transição para a
Idade Moderna e para a Idade Contemporânea em autores como John Locke e
Montesquieu, e a práxis histórica. Dessa experiência na construção do ideal de
liberdade e tolerância, será observada a diversidade religiosa e seu afastamento
dos espaços públicos, e na importância de restabelecê-las no locus discursivo, no
incentivo à tolerância. Por fim, mostrar-se-á a tentativa de organizar um comitê
para incentivar a diversidade no Brasil, a crítica quanto às aspirações de alguns
coletivos e porque é necessário retomar os canais de diálogo.

Considerações iniciais e metodológicas

Submersos em uma cultura hegemônica ocidental judaico-cristã, os con-


ceitos construídos em defesa das liberdades religiosas no processo constitucional,
em que pese abstratamente segreguem Estado de religião, ainda não se mostram
suficientes para eliminar as assimetrias e os status privilegiados de determinados
seguimentos. A tradição judaica e cristã (católicos e não católicos) influencia
no calendário, no ritmo de vida, e na estruturação de pensamento ocidental: à
hegemonia, toda proteção jurídica, reconhecida na qualidade cultural e religiosa;
aos seguimentos minoritários, a luta pelo reconhecimento.

Apesar de não se tratar de um estudo em História, mas na ciência jurí-


dica, é importante reconhecer, como método de trabalho inicial, a historicidade
da liberdade religiosa construída na transição para o Estado moderno liberal, o
destinatário das liberdades defendidas pelo liberalismo de John Locke. O caminho
de análise do pensamento jurídico será conforme as teorias filosóficas de libertação
latino-americanas e a filosofia comunicativa em Jürgen Habermas.

Na primeira seção, será abordada a formação da tolerância religiosa euro-


peia, da transição para a Idade Moderna, e a consolidação dos ideais burgueses
na Idade Contemporânea por meio das revoluções americana e francesa, com a

257
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

análise de dois autores clássicos que influenciaram esses movimentos: John Locke
e Montesquieu. Será observado o efeito da secularização após as revoluções bur-
guesas em contraposição ao quadro de diversidade religiosa no mundo.

Na segunda seção será realizado um resgate das críticas da teoria de


libertação, instrumento de reflexão entre a disparidade teórica dos Direitos Hu-
manos e a sua práxis. Mostrar-se-á a questão da tolerância no país e a incipiente
tentativa de regresso ao espaço público das discussões políticas, canal importante
que ainda não é aproveitado no país.

1. Pensamento hegemônico na construção do ideal de Liberdade Religiosa

Para compreender o complexo significado do laicismo moderno e das


liberdades religiosas hoje explicita e implicitamente amparados pelos movimentos
constitucionais modernos ocidentais, é preciso realizar um resgate histórico ao
surgimento das ideias de segregação entre Estado e Igreja. Esse regresso objetiva
compreender a dinâmica hermenêutica dos conceitos construídos hodiernamente
em Direitos Humanos, processo pelo qual Alejandro Rosillo Martínez1, ao reinter-
pretar as filosofias da libertação, descreve como um dinamismo de atualização
de possibilidades, dado a existência de uma estrutura aberta própria da existência
histórica humana2. A filosofia crítica assume a responsabilidade de desvendar
o falso, o injusto e o desigual em uma ideologia hegemônica em um sistema
social, e não de um esforço de meramente observar pelo decurso do tempo a
construção de um conceito3.

Sem delongas, a construção dos conceitos da liberdade religiosa remonta ao


período histórico da Modernidade, compreendido entre a queda de Constantinopla
em 1453 e a Revolução Francesa iniciada em 1789, demarcando um movimento
de formação dos Estados nacionais, uma transição gradual do domínio da Igreja
Católica na Europa durante a Idade Média feudalista para a sedimentação de
um sistema capitalista que exige a secularização do Estado contemporâneo. A
criação dos Estados nacionais é estigmatizada pelos ideais iluministas como antigo
regime, pela sua estrutura eclesiástica e que privilegiava a aristocracia da nobreza,
em detrimento da ascendente burguesia pós-mercantilista e recém-industrializada.

1 Martínez, Alejandro, 2008, passim.


2 Os movimentos históricos em Direitos Humanos não assumem caráter progressista, evolucionista, mas um
processo de libertação dos condicionamentos materiais, políticos e sociais. Reconstruir a realidade história é um
retorno da práxis histórica, “es el objeto último de la filosofia entendida como metafísica intramundana, no sólo
por su carácter englobante y totalizador, sino em cuanto manifestacíon suprema de realidade”. Ibid., p. 20.
3 Ibid., p. 33: “frente a la abstracción que realiza la ideologización, el método de la historización de los conceptos
busca la verificación histórica para mostrar si es verdad y em qué sentido lo es cualquier principio, formulación
o discurso abstracto, pues la puesta en práctica de cualquiera de ellos muestra lo que esconde o descubre, o las
insuficiencias de los métodos utilizados para lograr sus contenidos”.

258
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A revolução industrial consolida a posição econômica da burguesia, im-


pulsionada pelo mercantilismo oriundo da colonização. O movimento iluminista
surge como estandarte ideológico de liberdades aspiradas por essa classe insurgente:
igualdade e liberdade universais, porém atendem prioritariamente aos interesses
burgueses para alterarem o paradigma anterior de privilégios.

O historiador Marcos Lopes4 aponta que desde o final da Idade Média


sempre houve defensores da tolerância religiosa, porém em muito ultrapassados
pelos que defendiam a repressão às opiniões divergentes, como forma de não
contaminar o rebanho5. A mudança do domínio da Igreja Católica para o laicismo
estatal representa, na prática, a aceitação dos demais seguimentos cristãos nasci-
dos pela reforma protestante. “Em troca de lealdade, príncipes e reis concederam
certas garantias às minorias religiosas. O Edito de Nantes, de 1598, é o melhor
testemunho dessas tréguas forçadas”.6

A Paz de Vestefália, tratado assinado em 1648, é tida como o marco do


Direito internacional no reconhecimento da soberania dos Estados nações, estabe-
lecendo a não intromissão da Igreja Católica na escolha religiosa do Estado-nação.
É um tratado assinado por cristãos, o Imperador do Sacro-Império Romano, o Rei
da França e de seus aliados para reconhecerem as religiões protestantes7. Encerra
um período de guerras religiosas protestantes e católicas na Europa continental.

Na Europa insular, o liberal inglês John Locke, em 1667, escreve a Carta


acerca da Tolerância para tratar da distinção entre a sociedade civil e as sociedades
religiosas, amparado no contexto de disputas entre as Igrejas cristãs. É uma carta
de um cristão para os demais cristãos, construindo conceito de tolerância entre
as diversas denominações cristãs e abordagem inicial do laicismo, a importância
do governo civil não coagir a nenhuma religião. Argumenta que “cada igreja é
ortodoxa para consigo mesma e errônea e herege para as outras”, e seguindo
os valores pregados por Cristo, é dever o respeito mútuo entre os indivíduos na
seara religiosa8:

4 Lopes, Marcos A., 2007, p. 155-156.


5 Lopes (Ibid., p. 158) defende que Antônio Vieira foi um dos precursores, a seu modo, da tolerância: “Nos
círculos eclesiásticos da Europa Moderna o padre Antônio Vieira se destaca como precursor da tolerância
religiosa, e muitas décadas antes de John Locke ter escrito a sua conhecida Epístola. Nos primeiros tempos
da restauração da monarquia lusitana, nos idos dos anos 1640, Vieira combateu os métodos utilizados pela
inquisição portuguesa, além de escrever uma série de corajosas defesas dos judeus”.
6 Ibid., p. 156.
7 No Artigo XXVIII do Tratado de Vestefália de 1648: “That those of the Confession of Augsburg, and particularly
the Inhabitants of Oppenheim, shall be put in possession again of their Churches, and Ecclesiastical Estates, as
they were in the Year 1624. as also that all others of the said Confession of Augsburg, who shall demand it, shall
have the free Exercise of their Religion, as well in publick Churches at the appointed Hours, as in private in their
own Houses, or in others chosen for this purpose by their Ministers, or by those of their Neighbours, preaching the
Word of God”.
8 Locke, John, 1667, p. 3.

259
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

Segundo, nenhum indivíduo deve atacar ou prejudicar de qualquer maneira


a outrem nos seus bens civis porque professa outra religião ou forma
de culto. [...] Estas não são as funções da religião. Deve-se evitar toda
violência e injúria, seja ele cristão ou pagão. Além disso, não devemos
nos contentar com os simples critérios da justiça, é preciso juntar-lhes a
benevolência e a caridade. Isso prescreve o Evangelho, ordena a razão, e
exige de nós a natural amizade e o senso geral de humanidade.

O laicismo e a tolerância são soluções para as disputas internas de poder


e influência das comunidades cristãs. A liberdade religiosa interessa como forma
de proteger aos demais direitos fundamentais por Locke pregados: a vida e os
bens civis. Enquanto não houver perturbação da paz pública, defende, não haveria
porque o Estado interferir.

Montesquieu, por seu turno, analisa as relações entre religião e sistema


de governo, bem como com as leis, nos livros vigésimo quarto e quinto do
Espírito das Leis, obra publicada em 1748. A começar que desde o princípio da
quinta parte da obra ele observará sempre da ótica judaico-cristã9 – posta por
ele como religiões verdadeiras em função de seus valores morais – em oposição
às demais, às falsas religiões e ao ateísmo10. Opõe o cristianismo ao islamismo: a
primeira religião prega o amor e a monogamia, razão pela qual se distancia do
despotismo; a segunda dá-se mais com o “espírito destruidor”11. Ainda, defende o
cristianismo, os valores e a moral cristã como a certa, devendo as demais religiões
observá-las como garantia de um bom governo12.

A questão da tolerância em Montesquieu é contraditória: ao passo que


defende que o Estado deva tolerar várias religiões e fazê-las tolerarem-se mutu-
amente, também defende que
porque uma religião que pode tolerar as outras não pensa em sua
propagação, será uma lei civil muito boa a que determine que, quando
o Estado estiver satisfeito com a religião já estabelecida, não tolere o
estabelecimento de outra.13

9 Montesquieu, 1996, p. 495, no cap. XIII do livro XXV, assume sua orientação religiosa como a Judaica.
10 Ibid., p. 466-467: “A questão não é saber se seria melhor que um certo homem ou um certo povo não
tivesse religião do que abusasse daquela que tem, e sim saber qual é o mal menor, que se abuse algumas
vezes da religião ou que ela não exista entre os homens. Para diminuir o horror do ateísmo, ataca-se demais
a idolatria”. Mais a frente, na p. 485: “O homem piedoso e o ateu sempre falam de religião; um fala do que
ama, e o outro do que teme”.
11 Em várias oportunidades, Montesquieu maldiz a religião maometana: violenta, destruidora (atribuindo à
destruição da Pérsia no cap. XI do livro XXIV), a preguiça da alma e o dogma da predestinação maometana
no cap. XIV do livro XXIV.
12 Ibid., p. 471: “Num país onde se tem a infelicidade de ter uma religião que Deus não deu, é sempre ne-
cessário que ela esteja de acordo com a moral; porque a religião, mesmo falsa, é a melhor garantia que os
homens possam ter da probidade dos homens”.
13 Ibid., p. 493.

260
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Conclui que um Estado pode ou não admitir o estabelecimento de uma


religião, mas que ao aceita-la, deve tolerá-la.

Essa concepção levou-lhe muitas críticas à época, razão pela qual foi
necessário publicar uma Defesa do Espírito das Leis14. Na segunda parte, ao tratar
da tolerância, excetua a religião cristã do poder do Estado em não tolerar seu
estabelecimento: “se a religião cristã é o primeiro bem e as leis políticas e civis
o segundo, não existem leis políticas e civis num Estado que possam ou devam
impedir a entrada da religião cristã”15.

A obra política de Montesquieu influenciou as revoluções ocorridas no final


da Idade Moderna, sedimentando os ideais iluministas: a guerra de independência
estadunidense e a Revolução Francesa em 1789, esta última encerrando o período
histórico e introduzindo o mundo na Idade Contemporânea. As duas revoluções,
no aspecto político ocidental, na visão de Fábio Konder Comparato, representaram
a reinvenção da democracia, “fórmula encontrada pela burguesia para extinguir os
antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien régime – o clero e a
nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa”.16

A Declaração de Independência norte-americana, assinada em 04 de julho


de 1776, é a partir de Deus que os homens têm seus direitos naturais, e roga a
ele sua proteção. A Constituição estadunidense, promulgada em 17 de setembro
de 1787, em sua redação original, não trazia muitos direitos fundamentais, entre
eles não estava expressa a liberdade religiosa. A inclusão ocorre poucos anos de-
pois, com as reformas da The Bills of Rights dos Estados Unidos, em vigor desde
15 de dezembro de 179, que introduziram, pela Primeira Emenda, as liberdades
religiosas17, a de expressão e a de reunião.

Já a Revolução Francesa é um movimento de alta complexidade, vio-


lência e ruptura. É considerado o marco de uma nova era, que o historiador
Eric J. Hobsbawn, no ensaio Ecos da Marselhesa, a define como um conjunto
de acontecimentos extraordinários que fundamentaram o século XIX. “O século
XIX estudou, copiou, comparou-se com a Revolução Francesa; ou tentou evitá-

14 Interpretar Montesquieu requer também reconhecer seu tom irônico. Ao eleger certos valores que são
apregoados pela cristandade, como o amor ao próximo, aceita-a como de valor moral elevado; porém, para
responder aos críticos, distingue a Religião dos Céus e a da Terra, de forma a desmistificar a posição que os
idólatras constroem de Jesus Cristo como um príncipe-imperador, que deve conquistar aos demais Estados.
Portanto, se apenas os valores cristões forem postos, o seu triunfo é consequente. Termina assim questionando:
“Façamos justiça a nós mesmos: a maneira como nos conduzimos nas questões humanas é bastante pura para
que possamos pensar em usá-las para a conversão dos povos?” (Ibid., p. 736).
15 Ibid., p. 735.
16 Comparato, Fábio K., 2010, p. 63.
17 Estados Unidos Da América, 1791: “Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or
prohibiting the free exercise thereof”.

261
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

-la, ignorá-la, repeti-la ou ultrapassá-la”.18 É considerada uma das precursoras das


revoluções liberais burguesas, porém adverte o historiador que seria simplificar
demais o conflito: não nasce como um projeto de aspiração política burguesa,
em que pese o sedimenta.

O processo revolucionário pretendia alterar de forma tão profunda que


instituíram inclusive um calendário novo, o Calendário Revolucionário na Conven-
ção de 1792, perdurando até 1805, com o regresso do calendário gregoriano por
Napoleão Bonaparte. O Calendário Revolucionário seria ainda adotado durante
a Comuna de Paris de 1871.

Na seara religiosa, antes do século das revoluções, o historiador relembra


a existência de uma tendência dos senhores de classes mais abastadas da indife-
rença religiosa, senão o ateísmo não declarado, sendo raro o cristianismo franco.
Cumpriam os ritos como forma de demonstrar incentivo aos populares, como
expectativa de comportamento padrão a ser seguido. “If there was a flourishing
religion among the late eighteenth century elite, it was rationalist, illuminist and
anti-clerical Freemasonry”.19 Entretanto, a grande massa das cidades, pobres e
desinstruídos, ainda permaneciam devotos à cristandade.

Tanto a revolução americana quanto a revolução francesa formam prece-


dentes para secularização, necessários para as classes médias que impunham suas
necessidades aos movimentos de massa:20
With the American and French Revolutions major political and social trans-
formations were secularized. The issues of the Dutch and English Revolutions
of the sixteenth and seventeenth centuries had still been discussed and
fought out in the traditional language of Christianity, orthodox, schismatic
or heretical. In the ideologies of the American and French, for the first time
in European history, Christianity is irrelevant. The language, the symbolism,
the costume of 1789 are purely non-Christian, if we leave aside a few
popular-archaic efforts to create cults of saints and martyrs, analogous to
the old ones, out of dead Sansculotte heroes. [...] Bourgeois triumph thus
imbued the French Revolution with the agnostic or secular-moral ideology
of the eighteenth century enlightenment, and since the idiom of that revo-
lution became the general language of all subsequent social revolutionary
movements, it transmitted this secularism to them also.

A tendência era de secularização das estruturas, de afastamento das ques-


tões religiosas do espaço público: as duas revoluções serviram de moldes para
as demais seguintes, e afastar a discussão pública das religiões era instrumento
de garantia de sucesso das demandas, para penetrar a vontade das massas. Salvo
pequenas exceções, o laicismo das revoluções a partir do século XVIII contrasta
18 Hobsbawn, Eric. J., 1996a, p. 11.
19 Id., 1996b, p. 218.
20 Ibid., p. 200.

262
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

com as demandas populares dos séculos anteriores, em que o posicionamento


religioso estava ao centro do palco das disputas.

Essa secularização dos espaços públicos, porém, não impediu a decadência


e expansão das religiões pelo mundo. Nesse sentido, destaque para a expansão
silenciosa do islamismo. Enquanto na Europa crescia a indiferença religiosa, nos
Estados Unidos da Américas expandem-se diversas denominações protestantes,
para o despertar religioso. Por seu turno, o islamismo cresceu tanto pelo Oriente
quanto para algumas partes do Ocidente, do Sudão ao Senegal, resultado de
sua reforma e renovação ante a crise de sociedades maometanas tradicionais
(especialmente o Império Turco e a Pérsia). A notória expansão islã no período
de 1789 a 1848 representou um renascimento mundial do islamismo, nas palavras
do historiador Eric Hobsbawn.21

Atualmente, segundo os relatórios da agência de inteligência estadunidense,


publicação eletrônica do The Worldbook, aproximadamente um terço da população
mundial é cristã, ao passo de que pouco mais de um quarto professa a religião
de Maomé. Hinduístas somam 15% e Budistas 7.1%, enquanto apenas 0.2% das
pessoas no mundo são judias.

Já no Brasil, o processo de aceitação de outras denominações religiosas


pelo Estado no Brasil é relativamente recente, com a transição da monarquia
para a república pela Constituição de 1891. Até então, pela égide da Constituição
de 1824 – expressamente no seu Art. 5º, apenas a “Religião Catholica Apostolica
Romana” era aceita pelo Império, na esfera pública; tolerava-se o culto doméstico,
desde que não se expressasse na forma de templo ou manifestar-se publicamente.

Os apontamentos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de-


monstram que no início da República 98,9% da população se declarava como
católica, restando 1% como evangélica e 0,1% como não religiosos. Em cem anos
de república, os dados de 1991 demonstram uma expressiva mudança: 84,1%
declaram-se católicos, 9% evangélicos, 1,5% espíritas e 5,1% como não religiosos.
Já no Censo de 2010, além da redução proporcional em relação ao total da po-
pulação ao longo dos cem anos, houve uma novidade – a redução em termos
absolutos da quantidade de católicos no país em relação ao censo anterior, uma
queda quase 1,7 milhão de pessoas. Nesse último censo, 64,6% consideraram-se
católicos, 22,2% evangélicos, 2% espíritas, 0,3% umbandistas e candomblé, e 8%
de não religiosos.

21 Ibid., p. 225.

263
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

2. Pluralismo e multidiversidade na perspectiva laica de Estado para acesso


aos espaços constitucionais no Brasil

Se a tolerância religiosa, como ficou demonstrada anteriormente, foi histori-


camente uma aspiração entre as denominações protestantes frente ao Catolicismo,
o pensamento laico das proteções às suas liberdades imbricadas pode levar ao
não reconhecimento das crenças minoritárias, como as matrizes africanas. Esse
pensamento, que no pós-revolução afastou dos espaços públicos a discussão
religiosa, implica também no distanciamento das origens do laicismo, na aceitação
de um establishment que segrega as demais crenças.

Observa Rubio,22 ao abordar a teoria crítica construtivista dos Direitos


Humanos, que o discurso universalista dos Direitos Humanos, aliados ao contexto
de globalização, conseguiu um status político e moral inquestionáveis, enquanto
linguagem hegemônica sobre a dignidade da pessoa humana. Entretanto, esses
mesmos valores universalizados são incorporados de forma assimétrica entre os
países centrais, desenvolvidos, e os países periféricos, subdesenvolvidos. Essa dis-
paridade decorre tanto no âmbito internacional, da dificuldade de reconhecer e
aceitar o estrangeiro em face do nacionalismo e da identidade geográfica, bem
como internamente, por razões de exclusões sociais como classe, renda, religião,
cor. Assim,
Es decir, la universalidad de los derechos humanos se construye sobre discursos
que defienden inclusiones en abstracto de todas las personas, pero sobre la
base trágica y recelosa de exclusiones concretas, individuales y colectivas.23

Assume que a defesa pelos Direitos Humanos possui um caráter ambi-


valente: ao mesmo tempo em que foi palco para emancipações, o sistema ao
qual está inserido limita-o e impede “un horizonte de universalidad conflictivo, más
diverso, más abierto y plural”.24 Conclui que a versão liberal e burguesa de direitos
humanos consolidou-se sobre um pretenso universalismo: se ao tempo do antigo
regime serviu de ferramenta para libertar-se de grupos oligárquicos, depois serviu
como instrumento de dominação controle.

A exclusão do debate público das religiões demonstra, tal como ocorre


nas formulações de Montesquieu, que a definição de valores constitucionais do
que é bom e justo encontra-se lastrada em um pensamento implícito de uma
moral dominante. A total secularização no plano público serve de máscara para
as relações de poder que a hegemonia moral, religiosa ou não, imporá sobre as
minoritárias, podendo prejudica-las em seus cultos e ritos e sem que se deem
espaço para se manifestarem, para denunciarem potenciais abusos e exclusões.
22 RUBIO, David S., 2015, passim.
23 Ibid., p. 185.
24 Ibid., p. 186.

264
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

O problema do debate público é relembrado por Thiago Gomes Viana,


em que, no Brasil, tradicionalmente trata-se o laicismo estatal como a exclusão
das religiões nas discussões públicas. Revolve o problema da Ação Civil Pública
em que o Ministério Público Federal ingresso para retirada da expressão “Deus seja
louvado” das cédulas. Critica a decisão judicial denegatória, que se fundamenta em
argumento de terror, na qual a pretensão equivaleria a medidas como abolição
dos feriados ou destruição do Cristo Redentor. De modo semelhante, relembra
que a problemática dos crucifixos em órgãos públicos foi tratada pelo Poder
Judiciário como questão cultural, voltando-se a falar que o Estado laico também
não proibiria gastos na manutenção de igrejas barrocas em Ouro Preto e cidades
históricas. Conclui o autor.25
Se no nível do debate jurídico a situação está nesse patamar, no debate
público em geral está pior. A mais comezinha iniciativa em defesa da
laicidade estatal recebe, de plano, o anátema de “laicismo”, de “cristofobia”
(preconceito contra cristãos), de ataque à tradição cristã do povo brasileiro,
quando, em verdade, certas práticas estão de uma tal maneira enraizadas
culturalmente que assumem um caráter de “naturalidade”, especialmente
porque a maioria cristã do país não se percebe enquanto detentora de
privilégios em relação às religiões minoritárias e ateus, agnósticos, céticos.

O processo democrático exige romper com essa tradição, que o Estado


reconheça e aceite a existência desses coletivos, que poderão sofrer as consequ-
ências morais, sociais e econômicas de suas decisões ético-morais. A construção
de uma sociedade plúrima que aceite as diferenças religiosas deve partir de um
pressuposto comunicativo, de abertura do espaço público para que amplamente
todas as crenças possam dialogar e renunciar posições de privilégios que afetem
exclusivamente as minorias, em verdadeiro exercício da razão comunicativa em
Habermas:26
Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os
participantes perseguem sem reservas seus fins ilocucionários, ligam seu
consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade
criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes
para as consequências da interação e que resultam em consenso.

A razão comunicativa é orientadora nas pretensões de validades, recons-


truindo um exercício para julgar a realidade constitucional: conhecer as intenções
do autor do discurso e participar da construção do discurso. Parte-se da força
social que cria os processos racionais do consenso. “Qualquer idealização gera
conceitos sobre a adaptação mimética a uma realidade dada e carente de um
esclarecimento”.27 Nesse sentido, a exclusão da religião espaço público implica

25 VIANA, Thiago G., 2014, p. 356.


26 HABERMAS, Jürgen, 1997, p. 20.
27 Ibid., p. 27.

265
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

em afastá-la também do locus discursivo, âmbito de formulação de conceitos


universais, porém com intenções concretas excludentes.

As ações públicas em torno de concretizar a diversidade religiosa no


locus ainda são incipientes. Em 2014, foi criado pela então Ministra Maria do
Rosário Nunes, no governo da Presidente Dilma Rousseff, o Comitê Nacional de
Respeito à Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos
da Presidência da República, com intuito de promover a diversidade religiosa, a
proteção de suas liberdades, inclusive de não ter religião, bem como o combate
à intolerância. Desde sua criação, o Comitê elaborou seis notas públicas que
manifestam o seu posicionamento sobre questões políticas hodiernas. A quinta
nota, por exemplo, manifesta-se contrariamente ao movimento de redução da
maioridade penal, uma resposta ao Projeto de Emenda Constitucional nº 171/1993.

Outro posicionamento de destaque28 – e que coaduna com o presente


artigo – refere-se à Nota Pública nº 6 de 07 de junho de 2017, que reforça a
importância da manutenção do Ensino Religioso na Base Curricular Comum
Nacional, de forma a incentivar o respeito e a compreensão da diversidade, sem
constituir em proselitismo29:
Entendemos que as escolas – confessionais ou laicas – têm importância
capital na promoção de sociabilidades que compreendam, valorizem e
respeitem as diferenças, dentre elas as religiosas. Daí decorre sua função
de contribuir na construção de uma cidadania que habilite as pessoas
a conviverem com distintas convicções de mundo e a adotarem como
legítimos alguns princípios básicos para a vida coletiva.

Por sua vez, o antropólogo Nilton Rodrigues Júnior observa criticamente


os movimentos estatais contra a intolerância religiosa. Segundo o autor, está
ocorrendo um processo de construção de projeção de identidades particulares,
como a identidade afro-brasileira, que não necessariamente defendem apenas
a liberdade religiosa, mas usam-na como combate ao racismo e à exclusão so-
cial. Esses movimentos sociais encontraram na luta pela liberdade religiosa uma
aceitação maior, um lugar público em que não se contesta as políticas públicas
voltadas contra a intolerância religiosa, contrastando com as demandas pelas cotas
de outros processos de inclusão afirmativa cuja maioria da sociedade se mostra
desfavorável. Conclui ainda que:30

28 SAUCEDO, 2014, p. 287: “Para se chegar, portanto, à escolarização do Ensino Religioso laico e plural, fez-
se necessária a construção de parâmetros específicos para superação de obstáculos político-pedagógicos e
epistemológicos presentes na disciplina. A tarefa de elaborar um documento nacional para a atual legislação
ficou sob a responsabilidade do Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER). O documento,
intitulado Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Religioso (PCNER), foi divulgado em 1997, um ano após
a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) pelo Ministério da Educação e da Cultura (MEC)”
29 BRASIL, 2017, p. 2.
30 RODRIGUES JÚNIOR, 2014, p. 31.

266
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

De todos os atores sociais envolvidos no combate à intolerância religiosa,


o Estado é o que mais efetua um movimento pendular entre o univer-
salismo e o particularismo, entre a defesa do bem público coletivo e o
reconhecimento das diferenças, entre a laicidade e a religiocização das
relações sociais. As ações do Estado faz-nos ver que, em tal paradoxo, há
uma estrutura social que continua acreditando que há liberdade religiosa
– para baixar um ebó, reunir-se em praça pública ou celebrar uma missa
campal- mas que, ao mesmo tempo, organiza e acredita em um movi-
mento social tal como a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa.

Entretanto, não significa que exista a tolerância religiosa no país, ainda


mais em face das religiões afro-brasileiras. Ao contrário, os dados das denúncias
contra crimes cibernéticos rompem com o imaginário de tolerância no país. A
Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, de 2006 a 2016, por
meio da ONG Safernet, recebeu 266.528 de denúncias anônimas por conteúdo
de intolerância religiosa, logrando remover 2.880 páginas com conteúdo ofensivo.
Segundo a Comissão de Combate à Intolerância, cerca de 70% dos casos de
abuso e atos violentos no Estado do Rio de Janeiro entre 2012 e 2015 foram
praticados em face das religiões de matrizes africanas.

Ainda que, como apontado por Nilton Rodrigues Júnior, os movimentos


contra a intolerância subvencionem a formação de identidades próprias, a abertura
do locus para a diversidade religiosa, em que pese insuficientes, demonstra uma
tentativa de refrear o crescente pensamento de coalizão, segregação e estigmati-
zação que estão marcando os volumosos movimentos sociais recentes.

Conclusão

Diante dos breves apontamentos realizados nesse trabalho, ao se pensar


em tolerância religiosa, abstratamente universalizada no princípio constitucional
de um Estado proposto como laico, se não debruçada nos problemas enfrenta-
dos pela práxis e por sua história, acaba-se por ocultar uma face que distancia
a teoria constitucional da prática. Corre o risco de esvaziar-se a norma pela falta
de efetividade.

A origem das liberdades religiosas surgiu em um contexto de confronto


entre católicos e protestantes, e quase todo o sistema jurídico é refletido na
maioria cristã. No Brasil, ainda que observada uma queda nos praticantes católicos,
a maioria ainda pertence ao cristianismo, razão pela qual a maioria dos conflitos
ocorrerem em face das religiões de matrizes africanas. Faltam espaços públicos para
as minorias pleitearem em face da maioria, e os poucos ainda permanecem em
conflito e frustações, como a experiência da Comissão de Combate à Intolerância.

O crescimento da intolerância religiosa no país parece refletir diretamen-


te da ausência de políticas públicas eficazes em integrar as vozes das minorias

267
A TOLERÂNCIA RELIGIOSA: A CRÍTICA HISTÓRICO-CONSTRUTIVISTA
E O ACESSO AOS ESPAÇOS CONSTITUCIONAIS NO BRASIL

religiosas, e incentivar a convivência pacífica entre os grupos antagônicos que


ocupam o poder. E, se nessa esteira permanecer, existe o perigo da submissão
da minoria ao desejo político das maiorias cristãs no país, apagando-se o diálogo
com o sufocamento dos espaços públicos à diversidade religiosa.

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269
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA:


UMA HISTÓRIA A SER CONTADA?

WINGLER ALVES PEREIRA


Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF)

Resumo
A pesquisa busca revelar o atual e dominante pensamento jurídico brasileiro
sobre a história constitucional do país. Por meio da análise das leituras mais
frequentes nos cursos de Direito das Universidades Públicas mais conceituadas
do país, segundo a avaliação da Ordem dos Advogados do Brasil, o trabalho
empírico compreendeu o levantamento dos manuais e livros mais utilizados
nas disciplinas de Teoria da Constituição, e a análise dos seus marcos teóricos.
O objetivo específico do trabalho foi discutir os resultados a partir de sua
correlação com o marco teórico do pensamento político brasileiro, como
sugerem, em especial, os estudos de Alberto Guerreiro Ramos. Em suma, a
partir do método dialético e de análise de conteúdo das obras de Direito
Constitucional mais utilizadas pelos principais cursos jurídicos do país, a pesquisa
buscou entender, a partir destas fontes primárias, como a história constitucional
brasileira é vista pela intelectualidade jurídica do país, que parece negá-la, em
privilégio da história dos países do Atlântico Norte.

Introdução

Em um apanhado histórico, são diversos os estudos, produzidos em várias


épocas, que tiveram o objetivo de entender as ideias que orientaram, e ainda
orientam o imaginário dos intelectuais brasileiros. Desde a Primeira República,
pelo menos, o estudo do pensamento brasileiro foi, e ainda é, objeto de análise
de notáveis estudiosos, como, por exemplo, Oliveira Vianna, Alberto Guerreiro
Ramos e Roberto Mangabeira Unger.

No estudo do imaginário político e social brasileiro há a linha específica


relacionada à análise do pensamento do intelectual periférico. Esta vertente busca
estudar a consciência que estes pensadores fazem da sua própria realidade, dos
seus problemas, em diálogo com o que é pensado nos países “desenvolvidos”. A
questão central deste tipo de estudo consiste em discernir se o intelectual da
periferia busca soluções para os problemas de seu país a partir de sua própria
história, de sua sociedade de passado colonial, ou se suas ideias são aqui trans-
plantadas sem um confronto com as circunstâncias particulares de seu meio.

Este trabalho busca trazer esta problemática para o campo do Direito,


mais especificamente por meio do diagnóstico do pensamento constitucional
brasileiro contemporâneo. Assim, haja vista o problema delimitado quanto ao

271
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

modo de pensar no mundo periférico, o marco teórico da pesquisa é centrado


(i) na ideia do imaginário colonial dominante no pensamento político e social
brasileiro, como sugerem os estudos do sociólogo e político Alberto Guerreiro
Ramos e (ii) nas pesquisas mais recentes sobre este mesmo assunto realizadas
pelo jurista e cientista político Christian Lynch.

Assim, o objetivo geral do trabalho consiste em compreender qual é o


imaginário constitucional brasileiro dominante na atualidade, e mais especificamente
se este imaginário é autêntico ou apenas uma imitação de ideias importadas de
países usualmente considerados mais “avançados e modernos”. Nesse passo, o
trabalho busca responder a seguinte questão: o pensamento constitucional da
intelectualidade brasileira é orientado por uma concepção alienada da sua própria
realidade? Nessa parte, pretende-se avaliar se esse ideal de constitucionalismo
é pautado por uma lógica colonial, de acordo com o marco teórico adotado,
inclusive no que diz respeito ao conceito de “alienação”.

Dada a amplitude desse imaginário, o objetivo específico do trabalho con-


siste em analisar o pensamento constitucional no ensino da graduação em Direito.
A escolha do ensino jurídico para a análise do imaginário constitucional brasileiro
decorre, em primeiro lugar, dos estudos que apontam a relação existente entre
esse ensino e as elites intelectuais do país, como afirmam Alberto Venancio Filho,
Sergio Miceli, Sérgio Adorno e Aurelio Wander Bastos, por exemplo. Em segundo
lugar, porque a gênese do pensamento da intelectualidade jurídica remonta ao
conhecimento adquirido na graduação. E, por fim, em razão da necessidade de
iniciativas modernizadoras nessa área, pois até o momento elas têm se restringi-
do à pós-graduação, especialização ou aperfeiçoamento1. Não é novidade que o
ensino jurídico vindica reformas desde longa data, tendo em vista ser marcado,
ainda nos dias atuais, pelo dogmatismo e pela falta de interdisciplinaridade com
as áreas afins ao Direito2.

Do universo do ensino jurídico da graduação, a pesquisa considera es-


pecificamente a matéria do Direito Constitucional que tem a capacidade de ao
mesmo tempo vislumbrar ideologias e imaginar instituições políticas e jurídicas:
a Teoria Constitucional, tomada como o estudo dos paradigmas que definem o
conceito de constituição, isto é, a explicação da essência do seu ser. Além disso,
a Teoria da Constituição é um dos pontos do Direito Constitucional mais ligados
às ciências afins ao direito, e que permite, portanto, testar a hipótese da pesquisa
de que a imaginação dominante no constitucionalismo brasileiro é pautada por
uma lógica colonial.

1 BASTOS, Aurélio Wander. O Ensino Jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 346.
2 SANTOS, André Luiz Lopes dos. Ensino jurídico: uma abordagem político-educacional. Campinas: Edicamp,
2002, p. 277.

272
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Ainda quanto ao seu objetivo específico, a pesquisa busca investigar


(i) quais são os constitucionalistas que figuram como paradigmáticos da Teoria
Constitucional nos livros mais utilizados pelos cursos de Direito, (ii) se eles são
brasileiros ou são estrangeiros, (iii) se fazem parte da história e da política brasileira
ou da história e da política de outros países, (iv) se a produção teórica nacional
é adotada como Teoria da Constituição, (v) se há privilégio de teorias alienígenas,
e (vi) qual a relação entre a Teoria Constitucional brasileira e estrangeira.

No aspecto metodológico, para a análise do pensamento constitucional


brasileiro, e mais especificamente para a investigação do imaginário da Teoria
Constitucional presente no ensino jurídico, o trabalho utiliza fontes primárias, em
um procedimento de coleta de dados e de análise de conteúdo das obras de
Direito Constitucional mais utilizadas nos principais cursos de Direito do país. O
trabalho adota métodos não apenas quantitativos, mas também qualitativos para
a seleção dos objetos de estudo.

O artigo está divido em três partes. Em primeiro plano, o trabalho apresenta


o marco teórico adotado sobre o imaginário colonial dominante no pensamento
político e social brasileiro, sobretudo com base nos estudos de Alberto Guerreiro
Ramos e Christian Lynch. A partir deste marco teórico, e a fim de trazer essa
problemática para o campo do pensamento constitucional brasileiro, na segunda
parte do trabalho são detalhados os métodos para a coleta das obras de Direito
Constitucional mais utilizadas pelos cursos de Direito selecionados pela pesquisa.
A análise de conteúdo destas obras é descrita na parte subsequente, e última, do
artigo. Assim, em seu terceiro e derradeiro momento, o artigo analisa os referenciais
teóricos de cada obra selecionada quanto à Teoria Constitucional, com o intuito
de compreender quais são os paradigmas dominantes nessa área. Ainda nesta
parte, o trabalho aponta as relações entre o imaginário constitucional brasileiro
e as ideias que permeiam o pensamento político e social no país, com o fito de
verificar se o paradigma dominante no constitucionalismo brasileiro é pautado
por uma lógica colonial, como sugere a hipótese desta pesquisa.

1. Uma explicação da tendência à cópia

A ideia de um imaginário colonial no pensamento político-social brasi-


leiro remonta desde longa data. A inclinação à cópia é apontada como uma
característica da intelectualidade brasileira desde pelo menos o século XIX, como
já afirmava Joaquim Nabuco, ao dizer que “o sentimento em nós é brasileiro,
a imaginação européa”.3 O mesmo cenário foi pintado por Sérgio Buarque de
Holanda em Raízes do Brasil.4

3 NABUCO, Joaquim. Minha formação. Rio de Janeiro, Paris: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1900, p. 42.
4 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 31.

273
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

Segundo a teoria social de Alberto Guerreiro Ramos, adotada como


marco teórico neste trabalho, a transplantação no Brasil não se explicaria porque
o povo brasileiro não tenha imaginação criadora, nem porque seja predisposto
à imitação. Para ele, a tendência à cópia decorreu de um processo inerente e
inevitável, dada a condição de país colonizado5.

Embora a realidade contemporânea permita uma avaliação de nossas


instituições pelo viés nacional, a teoria social de Guerreiro Ramos percebia que “a
cultura brasileira não poderia furtar-se à lógica da situação colonial”.6 Isso porque
a importação de instituições foi um desdobramento inevitável ao processo colo-
nizador, um acidente natural e não necessariamente patológico. Afinal, durante o
período em que o Brasil foi colônia de Portugal, as transplantações obedeciam e
serviam a um propósito pragmático, no sentido de estabelecer uma continuidade
da vida portuguesa em solo brasileiro.

Ainda de acordo com a teoria social de Guerreiro Ramos,7 por mais que
o processo de colonização tivesse sido conduzido pelos espanhóis, franceses ou
holandeses, não se teria realizado fora da pauta da imitação, pois ao fim e ao
cabo, a transplantação das instituições decorreu da própria necessidade da con-
strução nacional, para que se tornasse possível, a seu tempo, a nação brasileira.

Segundo a lógica colonizadora, e de acordo com a teoria positivista, a


cultura nativa era atrasada em relação à sua própria história e cultura, conside-
radas mais avançadas. Era necessário, portanto, acelerar a história na colônia para
que se alcançassem minimamente os níveis civilizatórios da Europa. O meio mais
eficaz e rápido consistia, justamente, em levar para a colônia as instituições que
garantissem o processo colonizador expropriatório. Essa explicação da tendência
à cópia pode naturalmente ser estendida ao pensamento da intelectualidade
periférica, como indicam os estudos de Guerreiro Ramos.

1.1 Por uma teoria brasileira pós-colonial

Apontando o que chama de “as ideias fora do lugar”, Roberto Schwarz


explica que, para a literatura nacional, há um “sentimento de contradição entre a
realidade nacional e o prestígio ideológico dos países que nos servem de modelo”.8
Ou, nas palavras do historiador José Murilo de Carvalho, que o Brasil é o exemplo
de “país exportador de matérias-primas e importador de ideias e instituições”.9 O
5 RAMOS, Alberto Guerreiro. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960, p. 91.
6 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: Andes Limitada, 1957,
p. 18.
7 RAMOS, Alberto Guerreiro. Introdução Crítica à Sociologia Brasileira. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 273.
8 SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p. 110.
9 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2014, p. 18.

274
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

que não significa uma exclusividade tupiniquim, pois como adverte Mangabeira
Unger, “todos os países de economia periférica tendem a ser governados por elites
que começam com projetos de imitar e importar as instituições econômicas e
políticas dos países centrais”.10

Nesse mesmo sentido, alerta a teoria social de Guerreiro Ramos que “os
critérios aqui vigentes não são induzidos, grosso modo, da realidade nacional. São
induzidos da realidade de outros países”.11 Ou, mais categoricamente, que “somos
até agora consumidores por excelência de cultura e ciência importadas”.12

Contra a tendência de atribuir a ideais e teorias importadas eficácia direta


na configuração nacional, Guerreiro Ramos sugeria um esforço no sentido de criar
uma estrutura adequada às circunstâncias particularíssimas do país. Sua proposta,
vista pelo “pragmatismo crítico”, culmina com a “redução sociológica”, cujo prin-
cipal traço consiste na preocupação em definir uma relação de continuidade
com os intelectuais críticos existentes nas gerações passadas do país13. As regras
da “redução sociológica” vislumbradas por ele eram quatro: o comprometimento
do intelectual com seu contexto; o caráter subsidiário da produção estrangeira,
libertando a ciência periférica “do automatismo mimético”; a universalidade somente
dos enunciados gerais da ciência; e a das fases, segundo a qual cada problema
ou aspecto de uma sociedade era parte de uma totalidade em função da qual
era possível compreendê-la14.

Contudo, o método de Guerreiro Ramos não significa uma aversão ao


estrangeiro, mas uma lógica que permita ao intelectual adaptar as teorias es-
trangeiras às necessidades da etapa de desenvolvimento experimentada pela
sociedade em que vive. Com razão, o próprio mecanismo de Guerreiro Ramos
previa a adaptação de postulados universais à realidade do país, mas desde que
houvesse um comprometimento com o contexto nacional.

Para Christian Lynch, a obra de Guerreiro Ramos, na década de 1950, “foi


desenvolvida conforme um plano deliberado de elaborar uma teoria pós-colonial
aplicada ao Brasil”15. Assim como o resgate crítico do pensamento sociológico
brasileiro possibilitara a Guerreiro Ramos teorizar sobre a sociedade colonial, seus

10 UNGER, Roberto Mangabeira. Diálogo: Roberto Mangabeira Unger. Entrevistador: Leonardo Avritzer. Cadernos
da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, jan./jun. 1994, p. 38.
11 RAMOS, Alberto Guerreiro. O problema nacional do Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1960, p. 91.
12 RAMOS, Alberto Guerreiro. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In:
Seminário Internacional, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: UnB, 1983, p. 547.
13 Idem.
14 RAMOS, Alberto Guerreiro. A redução sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996, p. 41.
15 LYNCH, Christian Edward Cyril. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o
pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, jan./abr. 2015, p. 1.

275
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

estudos sobre o pensamento político-social brasileiro o ajudaram a delinear sua


própria ideologia nacionalista, que levaria o Brasil a superar a sua condição periférica.

1.2 Tábua rasa do histórico nacional

A característica de privilegiar as teorias estrangeiras, em detrimento da


produção nacional, decorre, de acordo com a interpretação de Christian Lynch,
do “pouco caso demonstrado pelas elites dos países periféricos ao pensamento
produzido por elas mesmas, comparado àquelas elaboradas nos países centrais”.16
A crítica é direcionada para um ponto específico: a ideia de que somente é teo-
ria o que é produzido nos países “centrais” do Atlântico Norte. De acordo com
esse diagnóstico, ele aponta que na Ciência Política, por exemplo, só recebe o
nome de “teoria política” o que vem com o selo da importação, de modo que
a produção intelectual brasileira é denominada apenas de “pensamento”. Assim,
os países do “centro” produziriam
teoria, filosofia e ciência na forma de tratados originais e universais; da
periferia, só se poderiam esperar pensamentos ou histórias das ideias,
plasmados em ensaios sem originalidade ou simplesmente de baixa den-
sidade intelectual.17

Christian Lynch observa, ainda, que a tendência à cópia em nada contribuiria


para incutir no país a “consciência crítica de sua condição e de seus problemas”.18

Toda essa discussão aparenta ser mais adiantada na Ciência Política e nas
Ciências Sociais, certamente em razão da existência de um extenso debate sobre
as linhagens ou tradições do pensamento brasileiro. Lá, hoje a discussão caminha
a passos largos no sentido de superar o cenário colonial da intelectualidade brasi-
leira, tendo em vista os recentes e cada vez mais numerosos trabalhos científicos
sobre as linhagens e as tradições do pensamento político e social brasileiro19.

As próximas partes do artigo são justamente o resultado da análise desta


pesquisa quanto ao pensamento constitucional dominante no ensino jurídico no
país, de acordo com o marco teórico exposto nesta primeira seção do artigo.
A parte imediatamente subsequente, em específico, detalha os métodos para a
coleta das obras de Direito Constitucional examinadas na terceira e última parte
do trabalho.
16 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e
o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4,
2013, p. 734.
17 Idem, p. 759.
18 LYNCH, Christian Edward Cyril. Teoria pós-colonial e pensamento brasileiro na obra de Guerreiro Ramos: o
pensamento sociológico (1953-1955). Caderno CRH, Salvador, v. 28, n. 73, jan./abr. 2015, p. 6.
19 LYNCH, Christian Edward Cyril. Por que pensamento e não teoria? A imaginação político-social brasileira e
o fantasma da condição periférica (1880-1970). DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4,
2013, p. 727.

276
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

2. Os métodos e objetos da análise de conteúdo

Como antes indicado, para a análise do pensamento constitucional brasileiro


a partir do marco teórico adotado, e mais especificamente para a investigação
do imaginário da Teoria Constitucional presente no ensino jurídico, o trabalho
utiliza fontes primárias, em um procedimento de coleta de dados e de análise
de conteúdo das obras de Direito Constitucional utilizadas nos cursos de Direito.

Neste quesito, o trabalho adota métodos não apenas quantitativos, mas


também qualitativos para seleção dos objetos de estudo, sobretudo em razão do
espaço disponível para a análise. Assim, dado o elevado número de cursos de
Direito no país, o método da pesquisa para a seleção é de natureza marcadamente
qualitativa, e não apenas quantitativa. De fato, na última avaliação dos cursos de
Direito realizada no ano de 2012 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), autarquia federal vinculada ao Ministério da
Educação (MEC), foram contabilizados mais de mil e trezentos cursos de Direito
existentes no Brasil.20

Desse modo, os métodos utilizados pela pesquisa para a consideração da


qualidade dos cursos de Direito foram os divulgados pela OAB, principalmente
por meio do Exame de Ordem, que é aplicado aos bacharéis de Direito que
almejam ingressar no quadro de advogados da instituição. O Exame de Ordem
elaborado pela OAB, dentre todos os critérios disponíveis para avaliação, é o que
tem tido mais destaque na indicação da qualidade do ensino jurídico, o que é
reconhecido, ao menos de forma indireta, pelo próprio MEC. Embora utilize seus
próprios instrumentos de avaliação dos cursos de ensino superior, como o Exame
Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE) e o Conceito Preliminar de
Curso (CPC), houve uma notória e pública aproximação entre a OAB e o MEC
nos últimos anos, com o objetivo de melhorar e aperfeiçoar o ensino nos cursos
de Direito do país. Por essa razão, os principais e primeiros critérios desta pesquisa
para avaliação da qualidade do ensino jurídico foram os disponibilizados pela OAB.

Assim, o primeiro critério da pesquisa para a seleção dos cursos jurídicos


decorreu do último Indicador de Educação Jurídica de Qualidade divulgado em
2016 pelo Conselho Federal da OAB, nos quais os cursos de Direito receberam
o selo OAB Recomenda.21 No total, mais de cem cursos de Direito foram hom-
enageados por sua qualidade, sendo que mais da metade dos selos foram out-
orgados a Universidades Públicas. Por esse motivo, a pesquisa adota o método
qualitativo para a análise do pensamento constitucional presente no ensino jurídico
20 INEP. Conceito Preliminar de Curso – CPC, Brasília, mar. 2014. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/
educacao_superior/enade/planilhas/2012/cpc_2012_site_2014_03_14.xls>. Acesso em: 5 dez. 2017.
21 OAB. OAB entrega a 142 faculdades selo de qualidade em ensino de direito, Brasília, jan. 2016. Disponível
em: <http://www.oab.org.br/noticia/29187/oab-entrega-a-142-faculdades-selo-de-qualidade-em-ensino-de-direi-
to>. Acesso em 5 dez. 2017.

277
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

da graduação das Universidades Públicas brasileiras. Dentre as existentes no país,


a pesquisa selecionou as quinze que vêm se destacando, a nível nacional, pela
qualidade do ensino, conforme metodologia exposta a seguir.

Tendo em vista, ainda, o âmbito nacional da pesquisa, e para que fosse


abrangida a maior extensão territorial possível, foram selecionados os cursos de
Direito de Universidades Públicas das cinco regiões do país, por meio de três Es-
tados de cada Região, inclusive o Distrito Federal, de modo que cada Estado fosse
representado por uma Universidade Pública. Nesta parte, em especial, a pesquisa
adota o método qualitativo, e as Universidades foram selecionadas da seguinte
forma, em ordem sequencial e preferencial: em primeiro lugar, pela maior taxa de
aprovação no X ao XIII Exames de Ordem;22 em segundo lugar, pela maior taxa
de aprovação no VIII ao X Exames de Ordem;23 em terceiro lugar, pelo maior
Conceito Preliminar de Curso (CPC) atribuído pelo INEP.24 A partir dessa seleção,
os Estados foram automaticamente determinados a partir das Universidades mais
qualificadas de cada região.

A partir da triagem das quinze Universidades Públicas que aparece na ta-


bela 1 a seguir, a pesquisa levantou os livros mais citados em todos os conteúdos
programáticos da disciplina de Teoria da Constituição, ou equivalente, de cada
Universidade listada. Para evitar uma análise casuística, selecionaram-se as obras
que apareceram pelo menos cinco vezes nas diferentes bibliografias, conforme
aparece na tabela 2. A pesquisa restringiu-se, ainda, à bibliografia básica e não
contemplou eventual indicação de leituras complementares.

As ementas das disciplinas foram obtidas nos endereços eletrônicos oficiais


das respectivas Universidades, e quando ausentes, solicitadas e encaminhadas para
o e-mail do autor deste artigo. Adotou-se, sempre que possível, a versão mais
recente dos livros indicados, de acordo com a disponibilidade do acervo virtual de
bibliotecas públicas, como a do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal
de Justiça, por exemplo.

2.1 Seleção das Universidades Públicas

A relação das Universidades Públicas selecionadas de acordo com os


métodos da pesquisa é a que aparece na tabela a seguir. A lista aponta a região;
o Estado da federação; a Universidade selecionada; o critério utilizado; e o ano

22 OAB. Exame de Ordem em números, vol. 2, Brasília, out. 2014. Disponível em: <http://www.oab.org.br/arquivos/
exame-de-ordem-em-numeros-II.pdf>. Acesso em: 5 dez. 2017.
23 OAB Ordem dos Advogados do Brasil – Conselho Federal. Exame de Ordem em números, vol. 1, Brasília,
ago. 2013. Disponível em: <http://www.oab.org.br/arquivos/exame-de-ordem-em-numeros-I.pdf>. Acesso em: 5
dez. 2017.
24 INEP. Conceito Preliminar de Curso – CPC, Brasília, mar. 2014. Disponível em: <http://download.inep.gov.br/
educacao_superior/enade/planilhas/2012/cpc_2012_site_2014_03_14.xls>. Acesso em: 5 dez. 2017.

278
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

da ementa mais recente da disciplina de Teoria da Constituição, ou equivalente,


usada por cada Universidade.
Tabela 1. Universidades Públicas selecionadas pela pesquisa.

Ano da
Região Estado Universidade Critério
ementa

MG Universidade Federal de Viçosa 1º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2014


Sudeste

SP Universidade de São Paulo 3º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2008


ES Universidade Federal do Espírito 9º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2010
Santo
PE Universidade Federal de Per- 4º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2010
nambuco
Nordeste

CE Universidade Federal do Ceará 6º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2012


PB Universidade Federal da Paraíba 7º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2014

SC Universidade Federal de Santa 8º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2015


Catarina
PR Universidade Estadual de 13º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2010
Sul

Maringá
RS Universidade Federal de Santa 12º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2013
Maria
DF Universidade de Brasília 18º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2010
Centro-Oeste

MT Universidade Federal do Mato 27º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2015


Grosso
MS Universidade Federal de Mato 31º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2014
Grosso do Sul
AM Universidade Federal do 30º lugar no X ao XIII Exame de Ordem 2009
Amazonas
RR Universidade Federal de Roraima Conceito Preliminar de Curso contínuo 2015
Norte

3,3
PA Universidade Federal do Pará Conceito Preliminar de Curso contínuo 2010
3,2

2.2. Livros mais utilizados sobre Teoria da Constituição

De acordo com os métodos adotados pelo trabalho, a relação das obras de


Teoria Constitucional está contemplada na tabela a seguir, em que são apontados
o autor, ou autores; o nome do livro; e o número de vezes em que apareceram
nas diferentes ementas das Universidades selecionadas.
Tabela 2. Livros de teoria da constituição, ou equivalente, mais utilizados pelas Universidades Públicas selecionadas.

Número de vezes em
Autor ou Autores Nome do livro que aparece nas dife-
rentes ementas
Curso de Direito Constitucional
SILVA, José Afonso da 11
Positivo
BONAVIDES, Paulo Curso de Direito Constitucional 9

279
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

Direito Constitucional e Teoria da


CANOTILHO, José Joaquim Gomes 7
Constituição
MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo Curso de Direito Constitucional 6
ARAÚJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR,
Curso de Direito Constitucional 5
Vidal Serrano Nunes
MORAES, Alexandre de Direito Constitucional 5
TAVARES, André Ramos Curso de Direito Constitucional 5

A partir deste ponto, e com as lentes do marco teórico exposto na primeira


seção deste artigo, o estudo volta-se para seu objetivo principal de investigar se
o imaginário constitucional brasileiro dominante na atualidade é autêntico ou se
é apenas uma imitação de ideias importadas de países usualmente considerados
mais “avançados” e “modernos”. Como antes indicado, a seleção das Universidades
listadas na tabela 1 e das obras de Direito Constitucional que aparece na tabela
2 serviu para o propósito específico de analisar o modo de pensar o constitu-
cionalismo na graduação em Direito.

3. Os paradigmas da Teoria da Constituição não são nacionais

De plano, pela análise de conteúdo das obras listadas na tabela 2, o resul-


tado da pesquisa revelou que os marcos paradigmáticos da Teoria Constitucional
não se encontram no Brasil, mas sim nos Estados Unidos e na Europa. Esse foi
um traço característico em todas as obras analisadas, sem exceção. Em linhas
gerais, o constitucionalismo brasileiro aparece de três formas: ou não há qualquer
capítulo ou parte específica para sua análise, como no manual de Alexandre de
Moraes e de José Joaquim Gomes Canotilho; ou a análise é extremamente sucinta
e descritiva, como no livro de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet
Branco e no de Luiz David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior; ou aparece em
um contexto histórico, e não é elevado ao nível de Teoria Constitucional, como
nos livros de José Afonso da Silva, Paulo Bonavides e André Ramos Tavares.

Como traço comum, há um inequívoco prestígio dos clássicos estrangeiros,


de forma que os paradigmas relacionados à Teoria da Constituição são ditados
pela Europa e pelos Estados Unidos. Aos brasileiros coube, quando muito, tão
somente a tarefa de explicar a história do constitucionalismo, sem o destaque
conferido aos estrangeiros, menos ainda quando se leva em consideração a de-
finição dos paradigmas constitucionais.

A obra de José Afonso da Silva, por exemplo, apresenta o processo his-


tórico do constitucionalismo brasileiro, mas isto não tem o condão de elevá-lo à
categoria de Teoria Constitucional, tanto que é tratado unicamente como história,
em capítulo distinto do reservado à Teoria da Constituição. Da mesma forma, por
mais que a obra de Paulo Bonavides indique diversas produções teóricas nacionais

280
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sobre o constitucionalismo, e isto logo no início do livro, nenhuma delas é alçada


à categoria de Teoria Constitucional.

Igualmente, José J. Gomes Canotilho aponta o constitucionalismo europeu


e estadunidense como os paradigmas do mundo moderno25. Certamente por ter
nacionalidade portuguesa, sua obra é em grande medida destinada ao estudo da
Constituição Portuguesa de 1976, sobretudo a partir de uma perspectiva teórica
alemã. Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco afirmam, por sua
vez, que a noção que possuímos na atualidade sobre o fenômeno constitucional
“tem origem mais próxima no tempo e é tributária de postulados liberais que
inspiraram as Revoluções Francesa e Americana do século XVIII”.26 Indo mais longe,
afirmam que essas seriam duas tendências básicas para entender “a concepção
dos fundamentos do sistema jurídico em que o Brasil se insere”.27

Na mesma toada, Alexandre de Moraes registra que a origem do cons-


titucionalismo “está ligada às Constituições escritas e rígidas dos Estados Unidos
da América, em 1787, após a Independência das 13 Colônias, e da França, em
1791, a partir da Revolução Francesa”.28 Neste último caso, em específico, sequer
existe um capítulo ou uma parte especial para a análise do constitucionalismo
brasileiro, nem mesmo a partir de uma ótica histórica, como antes indicado. De
igual sorte, Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior entendem
que, historicamente, “o constitucionalismo está associado ao surgimento das duas
primeiras Constituições escritas, a americana e a francesa”.29 Os autores apresentam
o histórico das constituições brasileiras, e descrevem suas principais características,
desde a Constituição de 1824 até a Constituição de 1988, mostrando o desenrolar
do constitucionalismo brasileiro a partir de uma perspectiva predominantemente
descritiva e segregada da parte destinada à Teoria Constitucional ditada pela
Europa e pelos Estados Unidos.

Confirmando essa lógica, André Ramos Tavares destaca que o constitu-


cionalismo moderno é fruto das experiências dos Estados Unidos e da Europa,
“pela edição da Constituição norte-americana de 1787 e pela Revolução Francesa,
em 1789”, ao sugerir que “os ideais constitucionalistas consagrados na América
do Norte espraiaram-se por toda a América, na medida em que as colônias
conseguiam destacar-se de Portugal e Espanha”.30 Identificam-se “as Constituições

25 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2009, p. 51-60.
26 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 39.
27 Idem, p. 40.
28 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 1.
29 ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo:
Verbatim, 2011, p. 26.
30 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 32 e 34.

281
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

americana e francesa como a origem das Constituições na história jurídica do


homem, tal qual compreendidas atualmente”.31 Para não fugir à regra, o autor
conta a história do constitucionalismo por uma ótica eminentemente europeia
e estadunidense, ao lembrar os acontecimentos do Atlântico Norte, como a Re-
volução Francesa; a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789; a
Constituição francesa de 1791; a Constituição alemã de 1871; e o caso Marbury
versus Madison, julgado em 1803 pela Suprema Corte americana.

No que diz respeito às concepções das constituições, José Afonso da


Silva indica, por exemplo, que o sentido sociológico é atribuído aos escritos do
alemão Ferdinand Lassalle; que o sentido político é oriundo das ideias do alemão
Carl Schmitt; e que o sentido jurídico é tributário dos estudos do austríaco Hans
Kelsen32. No mesmo sentido, ao tratar do sentido sociológico, Luiz Alberto David
Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior fazem referência apenas à definição de Fer-
dinand Lassalle e de Niklas Luhmann, e ao abordar o sentido político, apontam
apenas Carl Schmitt33. Assim, o constitucionalismo teria surgido, de acordo com
os autores, com o Estado de Direito, muito embora tenha existido, antes dele,
outras instituições e movimentos caracterizados por um objetivo semelhante,
como “as teorias contratualistas (Maquiavel, Locke e Rousseau, dentre outros), a
teoria orgânica do poder (Montesquieu) e as declarações de direitos humanos
(da França e de Virgínia/EUA)”.34 Em linha idêntica, André Ramos Tavares cita
como paradigmas teóricos do constitucionalismo moderno as ideias de Thomas
Hobbes (Leviatã), John Locke (Tratado do Governo Civil), Montesquieu (O espírito
das leis) e Jean-Jacques Rousseau (Contrato Social).35

Numa vertente muito parecida, Paulo Bonavides sugere que os primeiros


questionamentos constitucionais surgiram com os escritos do abade Sieyès e de
Ferdinand Lassalle, sendo que a teoria do último tornou possível “o constitucio-
nalismo da democracia liberal e representativa”.36 Assim, registra também que o
conceito material de constituição é decorrente da construção paradigmática de
Ferdinand Lassalle e Hans Kelsen, e que os principais teóricos da constituição
foram, além deles, os alemães Carl Schmitt, Hermann Heller, Georg Jellinek e Ru-
dolf Smend. O autor indica, ainda, que a teoria material esboçou-se inicialmente
com a jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, até desembocar nas
“reflexões teóricas dos constitucionalistas de Weimar e, de último, também com a
contribuição dos juristas e publicistas da chamada Escola de Zurique”.37 Destaca,
31 Idem, p. 162.
32 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 40.
33 ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. São Paulo:
Verbatim, 2011, p. 31.
34 Idem, p. 27.
35 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 32 e 34.
36 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 173.
37 Idem, p. 100.

282
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

nesse sentido, que a teoria material da constituição, partindo de Ferdinand Lassalle,


no século XIX, teve durante a Constituição de Weimar, na Alemanha, “os seus
mais brilhantes teoristas”.38

Quanto à jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, é exemplar a


imagem transmitida por Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Branco sobre a doutrina
dos pais fundadores, resumida n’O Federalista, e o contexto fático do famoso caso
Marbury versus Madison, e de sua importância para a afirmação da supremacia
da constituição39. Para isto, resgatam-se as ideias basilares que inspirariam os con-
ceitos nucleares do constitucionalismo moderno, como as ideias de Jean Bodin,
Montesquieu, Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, apontando
suas principais obras: Seis Livros da República, O Espírito das Leis, Leviatã, Segundo
Tratado do Governo Civil e Contrato Social, respectivamente.40 Ao introduzir o
tópico sobre o conceito de constituição, há tão somente a referência a Ferdinand
Lassalle, com seu enfoque sociológico. Ao adentrar o conceito da constituição
em sentido substancial, destaca apenas as contribuições de Konrad Hesse para
a formação desta teoria, com sua ideia sobre a força normativa da constituição.

Apesar de reconhecer a dificuldade em apontar uma situação clássica


sobre a Teoria da Constituição, também é digna de nota a visão de José J. Go-
mes Canotilho sobre a importância dos alemães na construção dos paradigmas
da Teoria Constitucional, ao elevar os nomes de Hermann Heller, Richard Smend,
Carl Schmitt e Heinrich Triepel41. Além deles, a análise privilegia a história cons-
titucional inglesa como paradigma da antiguidade, e a francesa e estadunidense
como paradigmas do mundo moderno. Nesse sentido, indica a Magna Carta de
1215; a Petition of Rights de 1628; o Habeas Corpus Act de 1679; o Bill of Rights
de 1689; a Glorious Revolution de 1688; a Constituição americana de 1787; e a
Revolução Francesa de 1789. José J. Gomes Canotilho indica, ainda, que quem
desejar fazer o estudo da chamada “situação clássica” da Teoria da Constituição
terá de ler as obras de Carl Joachim Friedrich, Hans Kelsen, Herman Heller, Karl
Loewenstein e Carl Schmitt42.

A teoria alemã parece ligada, sobretudo, à importância conferida à Cons-


tituição de Weimar, como também apontado por André Ramos Tavares43 e José
Afonso da Silva44, notadamente ao registrarem que a Constituição brasileira de
38 Idem, p. 101.
39 MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 50-52.
40 Idem, p. 40-46.
41 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina,
2009, p. 1336.
42 Idem, p. 1339.
43 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 89.
44 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37. ed. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 84.

283
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

1934 seguiu aquele modelo. Segundo José Afonso da Silva, a Constituição de


1934 fora “um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencio-
nismo”, demonstrando influências tanto da ideologia fascista europeia quanto da
Constituição de Weimar45.

Como fica evidente, em todos os casos os espaços de construção teórica


estão localizados nos Estados Unidos e na Europa, não no Brasil, nem mesmo
nos marcos históricos de fundação do país. As ideias constitucionais brasileiras
não são aproveitadas, nem resgatadas, e muito menos elevadas ao nível de Teoria
da Constituição. A se julgar pelos resultados da pesquisa, parece que não houve,
neste país, intelectuais que pensaram em termos constitucionais, ou se existiram,
que não merecem figurar como paradigmas.

Todos esses exemplos servem para corroborar o fato de que, por mais
que refletissem sobre os problemas nacionais em importantes momentos do país,
não são consideradas Teorias da Constituição as ideias de inúmeros clássicos do
constitucionalismo brasileiro. Em consequência, é feita tábua rasa do constitucio-
nalismo nacional, que pode ser encontrado, por exemplo, durante o Império, com
as ideias de Joaquim Nabuco ou José Joaquim Carneiro de Campos, o marquês
de Caravelas; durante a Primeira República, com as propostas de Alberto Torres,
Oliveira Vianna ou Rui Barbosa; ou de Francisco Campos, no Estado Novo. Isso
quer dizer que os constitucionalistas contemporâneos não reivindicam a filiação
a uma tradição constitucional do próprio país, em níveis teóricos. A linhagem,
direta ou indiretamente, é estabelecida com os intelectuais do Atlântico Norte.

Na verdade, nem mesmo há uma tentativa de se esboçar, nas obras ana-


lisadas, um confronto entre a produção teórica estrangeira e a nacional. Adotam-
se, apenas, os paradigmas supostamente cosmopolitas ou universais. De fato, os
resultados da pesquisa quanto à Teoria Constitucional apontam para um ponto
de convergência até recentemente dominante nas Ciências Sociais e na Ciência
Política, como visto na primeira parte deste artigo: a inclinação em copiar as ideias
e instituições localizadas no Atlântico Norte. Considerando-se os resultados da
pesquisa, isso quer dizer que a tendência dominante entre os juristas brasileiros,
ainda na atualidade, consiste em imaginar instituições constitucionais por meio
de uma ótica estrangeira, sem a preocupação em resgatar o que já existiu ou
deixou de existir em nossa própria trajetória.

Assim, enquanto até a década de 1980 os intelectuais das Ciências So-


ciais faziam tábua rasa do conhecimento social brasileiro pretérito, e ao mesmo
tempo tomavam como paradigmas teóricos os escritos de Habermas, Althusser
e Gramsci, como indica a teoria social de Guerreiro Ramos46; os constituciona-
45 Idem.
46 RAMOS, Alberto Guerreiro. A inteligência brasileira na década de 1930, à luz da perspectiva de 1980. In:

284
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

listas de hoje parecem seguir o mesmo caminho, ao desconsiderar os clássicos


do constitucionalismo brasileiro, e adotar apenas as ideias de Sieyès, Ferdinand
Lassalle, Carl Schmitt, etc.

Com efeito, se por um lado, e a partir de uma teoria pós-colonial, como


a de Guerreiro Ramos, as pesquisas nas Ciências Sociais e na Ciência Política
tentam trilhar um caminho de superação do discurso submisso que predomina
no país, o mesmo parece não ocorrer quanto ao pensamento constitucional, que
ainda aparenta ser orientado por uma lógica eminentemente colonizada quanto
ao emprego dos paradigmas constitucionais construídos no mundo moderno,
como apontam os resultados desta pesquisa.

Considerações finais

A partir do estudo do imaginário dominante no ensino do fenômeno


constitucional, e com o marco teórico das Ciências Sociais e da Ciência Política
quanto ao estudo do pensamento brasileiro, o trabalho buscou compreender se a
lógica constitucional da intelectualidade pátria é pautada por uma lógica colonial.
A pesquisa revelou, pela análise de conteúdo das obras mais utilizadas nas dis-
ciplinas de Direito Constitucional dos cursos de graduação selecionados, que: ou
não há qualquer capítulo ou parte específica para o estudo do constitucionalismo
brasileiro; ou sua análise é extremamente sucinta e descritiva; ou aparece em um
contexto histórico, e não é elevado ao nível de Teoria Constitucional.

Como traço comum, as obras analisadas demonstraram que existe um


inequívoco prestígio dos clássicos estrangeiros, de modo que todos os paradigmas
relacionados à Teoria da Constituição são ditados pelos Estados Unidos e pela
Europa, principalmente pela França e Alemanha. Aos brasileiros coube, quando
muito, apenas a tarefa de comentar a história do constitucionalismo, mas não a
de formular Teorias da Constituição.

Sequer são lembradas, por exemplo, as ideias de Joaquim Nabuco; do mar-


quês de Caravelas; de Alberto Torres; Oliveira Vianna; Rui Barbosa; ou de Azevedo
Amaral. Nenhum deles, e nenhum outro, dada a sua condição nacional, aparece
como teórico da constituição. Este espaço ainda está reservado, no imaginário
da intelectualidade jurídica brasileira, às ideias importadas dos Estados Unidos e
da Europa. Nesse passo, a pesquisa mostrou que o pensamento constitucional
brasileiro parece ser dominado por uma lógica desde longa data vislumbrada
pelas Ciências Sociais e pela Ciência Política: a maneira colonial de pensar o país,
a tendência ainda hoje irresistível de copiar ideias e instituições consideradas mais
modernas, invariavelmente pensadas nos países do Atlântico Norte.

Seminário Internacional, set. 1980, Rio de Janeiro. Anais do Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas. Brasília: UnB, 1983, p. 546.

285
TEORIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA A SER CONTADA

Como também mostraram os resultados da pesquisa, os paradigmas


constitucionais pensados naqueles países são empregados de forma direta para
explicar o atual estágio do constitucionalismo brasileiro. Não há resgate da história
brasileira ou de seus clássicos para entender o fenômeno constitucional no país.
Em regra, a explicação do constitucionalismo nacional parece sempre começar do
zero. E quando se busca um fundamento histórico ou teórico, a primeira opção
é voltar os olhos para os conceitos, teorias e ideias ditadas pelos países “centrais”,
onde tudo é considerado mais avançado e moderno, como indica a teoria social
de Alberto Guerreiro Ramos sobre o pensamento político e social brasileiro.

Isto não significa sugerir que se deixe de aceitar teorias estrangeiras, mas
apenas mitigar a ideia de que elas sejam verdades absolutas e universais. Significa,
nesse passo, apostar na ideia de que as teorias são produções circunstanciais, de
forma que também é indispensável a análise dos clássicos constitucionais brasileiros.

Caso fosse estendido o objeto da pesquisa, certamente outras questões


poderiam ser formuladas. Por exemplo, por qual razão o movimento de Inde-
pendência dos Estados Unidos da América é considerado um marco para o
constitucionalismo brasileiro, mas a própria Independência do Brasil não o é? E
por qual motivo consideram-se paradigmáticas as relações entre democracia e
constituição dos escritos do abade Sieyès e não são avaliadas da mesma forma
as lições de Joaquim Nabuco ou Alberto Torres? É evidente, a essa altura, que
estas são apenas perguntas retóricas que servem para confirmar o resultado da
pesquisa quanto ao pensamento constitucional hegemônico no país: colonial e
dependente de marcos teóricos estrangeiros, mesmo nos dias atuais.

O trabalho mostrou, portanto, que o pensamento do jurista brasileiro a


respeito da história constitucional é, em regra, uma reprodução quase que exclusiva
de ideias e teorias importadas de países usualmente considerados mais modernos
e avançados. Nesse sentido, a pesquisa indica, em conclusão, que o imaginário
colonial domina o atual pensamento jurídico do país, a partir da negação de sua
história constitucional.

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IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA


DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824): BASES TEÓRICAS E
DEBATES CONSTITUINTES

CLÁUDIO ALCÂNTARA MEIRELES JÚNIOR


Doutorando na Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor da Universidade de Fortaleza (Unifor)

Resumo
Com a independência do Brasil, houve o estabelecimento de um gover-
no monárquico, hereditário, constitucional e representativo, como previsto no
artigo 3º da Constituição de 1824. na significou clara ruptura com o Antigo
Regime e com absolutismo monárquico. A instalação de sistema com quatro
poderes estatais, com destaque para o Poder Moderador, fez e ainda faz surgir
reflexões a respeito do viés do regime imperial brasileiro. Isso posto, o escopo
da presente pesquisa é investigar as bases fundamentadoras, tanto de cunho
teórico, como político-ideológico, da incorporação do Poder Moderador à
Constituição Política do Império do Brasil de 1824. Examina-se: (1) a obra de
alicerce conceitual para o chamado poder neutro, qual seja, “Princípios políti-
cos constitucionais”, de Benjamin Constant; (2) os Anais da Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil de 1823, investigando a defesa
pelos constituintes de um poder real com fulcro de regulação dos demais
poderes; (3) os dispositivos do texto constitucional de 1824 de regulamentação
do Poder Moderador e breve levantamento da análise de alguns autores do
século XIX sobre o instituto.

Introdução

Em quadro de profusão das concepções do liberalismo, tanto na vertente


econômica como político-ideológica, a proclamação da independência brasileira,
em 1822, dá vazão à forma de governo monárquico, divergindo de outros mo-
vimentos emancipatórios latino-americanos daquela época, marcados pela forma-
tação republicana. Ainda assim, a instalação de um sistema representativo e da
monarquia constitucional representou forma de ruptura com o Antigo Regime
de absolutismo monárquico.

Em verdade, a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte


(ANC) ocorreu mesmo antes da independência, mediante decreto do então
Príncipe Regente do Reino do Brasil, Dom Pedro de Alcântara de Bragança, em
3 de junho de 1822. Já existia pressão pelo seu retorno para Portugal, com pro-
pósito de regressão à condição anterior do Brasil como colônia, de forma que,
após o ato de convocação da ANC, D. Pedro recebe carta da Coroa Portuguesa
exigindo a anulação de tal ato.

289
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

Contudo, como é cediço, em 7 de setembro de 1822, D. Pedro proclama


a independência, sendo posteriormente coroado imperador do Brasil. A coroação
ocorreu em cerimônia de sagração no Rio de Janeiro em 1º de dezembro de 1822,
refletindo a afirmação da autonomia política brasileira, ao passo que assentava a
autoridade do – antes Príncipe Regente D. Pedro, mas agora – Imperador Cons-
titucional e Defensor Perpétuo do Brasil, D. Pedro I.1

Conforme Eduardo Romero de Oliveira,2 o cerimonial, com elementos


religiosos e peculiaridades próprias, contemplou tanto a perspectiva de que a
autoridade de D. Pedro I possuía fundamento em direito hereditário, como o
prisma de que estava sustentada em sanção religiosa, aglutinando ainda a sanção
política pela reverberação da aclamação nas províncias.

Note-se, por conseguinte, que essa autoridade do imperador não advi-


nha da concessão ou mesmo reconhecimento por uma ANC, que somente foi
instalada em 3 de maio de 1823, com sistema de governo e chefe de Estado já
estabelecidos. Denominada Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império
do Brasil, conforme Boris Fausto,3 não tinha em sua composição radicais, mas uma
maioria de liberais moderados que defendiam “uma monarquia constitucional que
garantisse os direitos individuais e estabelecesse limites ao poder do monarca”.

No transcorrer da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) ocorreu disputa


entre duas correntes: a elite coimbrã, que refletia projeto de centralização política
com fortalecimento do poder da Coroa, de modernização pelo alto e sem rupturas
abruptas que pudessem gerar alguma instabilidade; e a elite brasiliana, partidários
de um modelo símil ao de uma monarquia republicana, com descentralização
federativa do poder, privilegiando as lideranças locais e os interesses econômicos
da elite agrária.4, 5

É nessa conjuntura de instalação da ANC que inicialmente se desenvolve


a problemática a ser analisada na presente pesquisa, inserida no embate entre as
duas propostas delineadas, significando o Poder Moderador ferramenta atrelada
à concepção de concentração de poder do projeto coimbrão, de cunho estati-
zante e tutelar.

1 OLIVEIRA, Eduardo Romero de. O império da lei: ensaio sobre o cerimonial de sagração de D. Pedro I
(1822). Tempo [online]. vol.13, n.26, pp.133-159, 2009
2 Idem.
3 FAUSTO, Boris. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995, p. 148.
4 LYNCH, Christian Edward Cyril. Quando o regresso é progresso: a formação do pensamento conservador
saquarema e de seu modelo político (1834-1851). In: BOTELHO, A.; ERREIRA, G.. (Org.). Revisão do pensamento
conservador: idéias e política no Brasil. 1ed. São Paulo: Hucitec, p. 25-54, 2010.
5 LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de poder Mo-
derador no Brasil (1822-1824). DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, no 3, pp. 611 a 654,
2005.

290
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Quanto à metodologia, na pesquisa buscou-se investigar fatos históricos e


estabelecer relações entre os diversos elementos pertinentes ao estudo. Realizou-
se o trabalho mediante investigação indireta, por meio de pesquisa documental
e bibliográfica, com via exploratória, descritiva, explicativa, visando interpretar e
analisar criticamente os fatos, contemplando o aprimoramento de concepções
postas. A abordagem é qualitativa e o método dialético e histórico, pois procura-se
maior compreensão das ações e relações humanas e observação dos fenômenos
sociais, além de analisar o objeto como movimento da história.

1 Breves comentários à obra de Benjamin Constant: compreendendo o


conceito de Poder Moderador

Apoiando-se em vasta literatura – dentre as quais, cite-se Boris Fausto,6


Raymundo Faoro,7 José Reinaldo de Lima Lopes8 e Christian Lynch9, 10 –, identi-
ficou-se na obra de Henri-Benjamin Constant de Rebecque, intelectual francês
com atuação nos séculos XVIII e XIX, a pedra angular para compreensão das
bases teórico-conceituais do Poder Moderador, mais precisamente no trabalho
denominado originalmente Príncipes de politique applicables à tous les gouverne-
ments représentatifs et particulièrement à la Constitution actuelle de la France (1814),
publicado em 1815, traduzida para o Brasil po “Princípios Políticos”.

Afiança Christian Lynch11 que a “grande preocupação de Constant era


com a estabilidade do poder”, pois “desejoso de saudar as grandes conquistas
da Revolução de 1789, excluindo cuidadosamente a herança do Terror”, o poder
real teria o papel “de impedir que os outros três poderes, entrando em choque,
levassem uns aos outros de vencida, a, assegurando a estabilidade do Estado liberal
e os direitos civis e políticos dos cidadãos”, razão pela qual “Constant afirmava
que apenas a aceitação de limitação da soberania popular poderia impedir o
desrespeito aos direitos fundamentais”.

Em “Princípios Políticos”, Constant12 delineia sua própria teoria da separação


de poderes, própria de um Estado constitucional monárquico, elencando cinco
6 FAUSTO, op. cit..
7 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo,
2001.
8 LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história: lições introdutórias. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014.
9 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de
Medeiros de 1933: um estudo de direito comparado. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 47 n. 188 out./
dez. 2010a.
10 LYNCH, Christian Edward Cyril. O momento monarquiano: o Poder Moderador e o pensamento político
imperial. 2007. 421f. (Doutorado em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro.
11 LYNCH, Ibidem, p. 93.
12 CONSTANT, Benjamin. Princípios políticos constitucionais: princípios políticos aplicáveis a todos os governos
representativos e particularmente a constituição atual da Franca (1814). Organização e introdução de Aurélio
Wander Bastos. Tradução de Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2014, p. 38.

291
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

poderes distintos: “primeiro, o poder real; segundo, o poder executivo; terceiro, o


poder representativo da continuidade; o quarto, o poder representativo da opi-
nião; quinto, o poder de julgar”; sem que o poder real estaria acima dos demais,
pois seria “autoridade ao mesmo tempo superior e intermediária, interessado em
manter o equilíbrio, e com máxima preocupação em conservá-lo”.

Alertou para a necessidade do chefe de Estado não se substituir na


atuação dos outros poderes, questão fundamental para um regime monárquico
constitucional, não absolutista. O poder real a ser exercido pelo monarca seria
essencialmente neutro, possuindo a natureza de arbitrar possíveis conflitos e podar
os excessos dos demais poderes, mantendo a democracia estável.

Entendia que em uma monarquia constitucional, o rei deveria ser desnu-


do das paixões típicas daqueles que ocupam provisoriamente espaços de poder,
suscetíveis à instrumentalização do cargo em prol de um interesse político ou
partidário, dada a precariedade de suas posições, resultante da própria natureza
efêmera de se ocupar um caro não vitalício.

Localizando-se acima das dissidências políticas, ideológicas, partidárias,


estaria o monarca, em posição não comum, o que lhe possibilitaria atuar com
sobriedade, sem interesses privados que pervertessem a solenidade e deferência
de sua função. Constant13 chega a afirmar que o “monarca flutua, por assim dizer,
acima das contradições humanas”.

Contudo, o poder real e o poder executivo – exercido pelos ministros


– não se confundiam, pelo que, o primeiro não deveria ser rebaixado ao nível
do segundo, tampouco o segundo elevado ao nível do primeiro. Emaranhar
essas duas instancias significaria incorrer na irresolução de duas problemáticas: a
possibilidade de destituição do(s) ocupante(s) do executivo e a responsabilização
dessa(s) autoridade(s).

Se nas monarquias absolutistas somente por meio de uma insurreição


o executivo poderia ser destituído, dada a sua infungibilidade com a própria
Coroa, no sistema republicano a prerrogativa de destituição era instável, tento
em vista que a exercia a autoridade de momento. Em ambas situações, tento
em vista a suplantação das antigas autoridades, os depostos eram rigorosamente
sobrepujados e perseguidos.

A monarquia constitucional proposta por Constant,14 com separação entre


poder real e poder executivo, possibilitaria a resolução dessas questões, pois a
destituição dos ocupantes do segundo poder pelo titular do primeiro não signi-

13 CONSTANT, Ibidem, p. 40.


14 CONSTANT, Ibidem.

292
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

ficaria perseguição ou castigo, não sendo resultado de sublevação, posto que o


monarca assim procederia quando se fizesse necessário, sem insurgência, cólera,
ou obrigatória imposição de severa punição.

Isso não significaria a impossibilidade de responsabilização dos ministros


do executivo, muito pelo contrário, pois teriam essas autoridades responsabilidade
política, enquanto que o monarca hereditário, detentor do poder supremo, deveria
ser inviolável. Seria o monarca “um ser à parte, situado no píncaro do edifício”,
e “Sua atribuição particular, que perdura não somente nele, senão em toda sua
estirpe, desde seus antepassados até seus descendentes, o separa de todos os
indivíduos de seu império”.15

Destaque-se que não seria o monarca o executor direto das medidas


governamentais, cabendo ao poder real a escolha daqueles que comporiam o
poder ministerial, ao qual caberia as competências e atribuições do poder execu-
tivo, ou seja, responsáveis pelos atos de governar em si, as ações ativas e diretas.
Por conseguinte, o “poder ministerial ainda que emane do poder real, tem, não
obstante, uma existência verdadeiramente independente”.16

Estaria, assim, resguardado o poder supremo, distanciado dos enfrenta-


mentos e das controvérsias inerentes do processo político de governar. Nessa
dinâmica estaria situada a inviolabilidade do poder real, exercido pelo chefe de
Estado, de natureza neutra e arbitral, representando a estabilidade necessária
para a Nação. Os ministros seriam as autoridades responsabilizáveis, incumbidos
do poder executivo.

Tem-se então, nessa distinção, do poder real como um poder neutro,


enquanto que os ministros exerceriam um poder ativo, nas palavras de Constant,17
“a chave de toda a organização política”. Dessa maneira, a atribuição do chefe de
Estado no exercício desse poder neutro, regulador, arbitral, acima das dissidências
políticas, era fundamental para a busca pelo equilíbrio e estabilidade da nação.

No que diz respeito ao terceiro (representativo da continuidade) e quarto


poder (representativo da opinião), correspondiam, respectivamente, a uma as-
sembleia hereditária – similar à Câmara Alta, indicada pelo monarca – e a uma
assembleia representativa – correspondente da Câmara Baixa, eleita pelo povo.
Seriam dois corpos pares, postos no mesmo patamar, cujos integrantes gozariam
dos mesmos direitos e privilégios, muito embora possuíssem procedência diversa.

15 CONSTANT, Ibidem, p. 42.


16 CONSTANT, Ibidem, p. 37.
17 CONSTANT, Idem.

293
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

Dessa maneira, caracterizavam diferentes perspectivas e funcionalidades. Por


um lado, tem-se um corpo representativo da estabilidade e tradição, por outro,
o reflexo da opinião pública e da renovação, ou, como bem explicita Lynch:18
[...] Constant nelas enxergou tendências opostas: a câmara baixa expri-
miria a opinião pública do momento, passível de entregar-se a paixões,
à irracionalidade, ao radicalismo; ao passo que a câmara aristocrática,
devido mesmo à natureza de sua composição, tenderia a pensar a longo
prazo, elaborando soluções de continuidade, refletindo questões de forma
madura e apartidária, encarregada portanto de brecar as veleidades mais
ameaçadoras da assembleia eletiva, naquilo que concernia à preservação
do Estado constitucional.

No que diz respeito à relação desses poderes com o poder real, reafirma-
se o caráter arbitral do monarca, atuando no sentido de limitar excessos e evitar
antagonismos que pudessem conflagrar hostilidade e desestabilização.

A assembleia representativa poderia ser dissolvida sempre que as paixões


e ímpetos de seus membros levassem ao radicalismo. O veto do monarca aos
projetos de lei seria insuficiente em situações mais extremadas de descontrole, pois
sua reiteração apenas geraria irritação e acaloramento do embate. Não poderia
a assembleia ter poderes ilimitados, sendo a dissolução o mecanismo eficaz de
controle quando sua atuação se tornasse tendente ao estado de extremismo.

Conforme Constant,19 como à dissolução se seguiriam novas eleições, não


seria tal ato do poder real “um ultraje aos direitos do povo; ao contrário, quando
as eleições são livres, é uma chamada de seus direitos em favor de seus interesses”.
Seria então a dissolução mais uma atribuição do poder supremo tento em vista
a estabilidade, tendo em vista que “Uma assembleia com poder ilimitado é mais
perigosa do que o próprio povo”.

Quanto à assembleia hereditária, se nela “os pares se fortalecem por conta


da independência adquirida imediatamente após sua nomeação”, pois, diversamente
da câmara baixa, aquela instancia não poderia ser dissolvida pelo poder real, o
número de seus membros não poderia ser limitado, evitando que fosse criado
uma espécie de partidarismo de oposição aos interesses do soberano e de seus
súditos em prol das conveniências da aristocracia. Dessa maneira, seria possível
a nomeação de novos integrantes pelo monarca, gerando a maioria necessária.20

Por fim, quanto ao quinto poder, competente para julgar os casos parti-
culares, o poder neutro atuaria para abrandar situações de excessiva severidade
nos julgamentos, atuando o monarca por meio da sua prerrogativa de conceder
18 LYNCH, op. cit., p. 96.
19 CONSTANT, op. cit., p. 49-50.
20 CONSTANT, Ibidem, p. 52.

294
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

sua graça, direito de perdoar penas por demais rigorosas, que não traduzissem
critérios de justiça desejáveis.

Tem-se então na obra de Benjamin Constant21 o poder real como regula-


dor dos demais poderes estatais, dito como poder neutro porque permaneceria
dissociado da arena política, distanciamento fundamental para que pudesse o
monarca, no exercício desse poder, atuar como o árbitro isento de paixões e
interesses particulares.

A partir dessa compreensão, pode-se inferir que o poder neutro tinha


papel de conservação da estabilidade da democracia, harmonizando os outros
poderes, dos quais destacava-se em sito superior, pelo que deveria atuar como
efetivo moderador dos excessos e desequilíbrios dessas instancias de poder a
ele submetidas.

2 As concepções de Poder Moderador na Assembleia Geral Constituinte e


Legislativa do Império do Brasil de 1823

O Poder Moderador não estava previsto no projeto de Constituição


apresentado em setembro de 1823 na ANC, sendo incluído somente no projeto
encomendado pelo imperador após a dissolução da Constituinte, permanecendo
no texto final. Ainda assim, houve no transcorrer dos debates constituintes quem
remetesse a um poder neutro a ser exercido pelo imperador, ainda que não
fosse sustentado expressamente a inclusão de um quarto poder, como restou
consagrado na Constituição outorgada. Essas argumentações eram utilizadas, ainda
que como recurso retórico, no entrechoque que permeou toda a ANC, entre
centralização da autoridade estatal com o fortalecimento do poder imperial, ou
maior autonomia aos constituintes e descentralização política.

Já sessão de abertura da ANC, em 4 de maio de 1823, na chamada Fala


do Trono de D. Pedro I, o imperador foi bastante contundente, demonstrando
qual direcionamento esperava que a Constituinte tomasse, o que gerou, desde
o início dos trabalhos, a referida tensão entre a autoridade do poder imperial e
a do poder dos constituintes:22
Como Imperador Constitucional, e mui especialmente como defensor
perpétuo deste império, disse ao povo no dia 1º de dezembro do ano
próximo passado, em que fui coroado e sagrado, que com a minha
espada defenderia a pátria, a nação e a Constituição, se fosse digna do
Brasil, e de mim.

21 CONSTANT, Ibidem.
22 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 9. ed. Brasília: OAB Editora, 2008,
p. 32-33.

295
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

Ratifico, hoje, mui solenemente perante vós esta promessa, e espero que
me ajudeis a desempenhá-la, fazendo uma constituição sábia, justa, ade-
quada e executável, ditada pela razão, e não pelo capricho, que tenha em
vista tão-somente a felicidade geral, que nunca pode ser grande sem que
esta constituição tenha bases sólidas, bases que a sabedoria dos séculos
tenha mostrado, que são as verdadeiras, para darem uma justa liberdade
aos povos, e toda a força necessária ao Poder Executivo.

Nesse momento não se observa, por parte do imperador, defesa aberta


de um sistema aos moldes de Benjamin Constant, pois D. Pedro I23 afirmou a
necessidade de uma Constituição na qual “os três poderes sejam bem divididos,
de forma que não possam arrogar direitos que lhe não compitam, mas que sejam
de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, ainda
pelo decurso do tempo, fazerem-se inimigos”.

Remeteu o imperador à organização e harmonização dos três poderes, de


maneira que o texto constitucional colocasse empecilhos a possibilidade de se
estabelecer um poder despótico, fosse real, fosse democrático, evitando, assim, a
anarquia. Ainda assim, para que o monarca pudesse cumprir a promessa solene
de defesa do império, necessário era dar força ao Poder Executivo, como visto
na transcrição acima.

Como explanado anteriormente, a ANC foi instalada já com sistema de


governo e chefe de Estado definidos, a cerimônia de coroação de D. Pedro I já
o havia assentado como Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil,
razão pela qual, há de se reconhecer que sua autoridade era anterior ao próprio
texto constitucional. Por essa razão, no transcorrer dos trabalhos da Constituin-
te – e a partir da Fala do Trono – desenvolveu-se disputa entre a autoridade
do poder imperial e a do poder dos constituintes, a respeito dos seus alcances,
limites e possiblidades de conformação.

Permeando esse certame, saliente-se, estavam as duas correntes já aludidas,


representantes da elite coimbrã e da elite brasiliense. Ressalte-se também que esse
embate sobre a supremacia da ANC e sua relação com o Poder Imperial teve
como ponto da maior relevância a regulamentação no sentido de que não seria
necessária a sanção imperial para a promulgação das disposições normativas da
Constituinte, tendo em vista que não se tratava de uma Assembleia nos moldes
pensados por Sieyés, pois acumulava as atribuições de órgão legislativo ordinário.

Para o propósito da pesquisa, tratando dos debates constituintes conti-


dos nos Annaes do Parlamento Brazileiro de 1823,24 afunila-se na exploração de
23 BONAVIDES, Ibidem, p. 33.
24 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléia Constituinte (1823). 6 v. Biblioteca Digital da Câmara
dos Deputados. Brasília: Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca. Disponível em:
http://bd.camara.gov.br. Acesso em 03 jul 2017.

296
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

possíveis alusões ao Poder Moderador pelos deputados, mesmo que não tenha
ocorrido inequívoca defesa da teoria de Constant em termos literais e puros.

Orientando-se pelos escritos de Christian Lynch25, 26 para mapear a temá-


tica, verificou-se que diversas nuances conceituais e argumentativas em relação
ao dito poder neutro foram levantadas durante a ANC. Pelo menos três atores
políticos defenderam em algum grau a concepção do Poder Moderador, que
foram Antônio Carlos de Andrada Machado, José Joaquim Carneiro de Campos
e João Severiano Maciel da Costa, refletindo três concepções distintas, diferen-
ciando-se entre si conforme seu maior ou menor distanciamento da teorização
de Benjamin Constant.

Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, deputado por São


Paulo, era irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva, ambos pertencentes do
grupo da elite coimbrã e defensores da Coroa – pelo menos, a princípio, pois
com o transcorrer dos trabalhos, passaram a opor-se às ingerências do poder real.
Conforme Lynch,27 a concepção apresentada na ANC de Andrada Machado para
o Poder Moderador foi a linha argumentativa que mais se aproximou na teori-
zação de Benjamin Constant, pois o espelhava como um poder desinteressado
das entranhas dos embates políticas, por isso neutro, acima das tensões, como
mesmo o exercício de um privilégio pelo imperador.

Ainda durante as sessões preparatórias da Constituinte, sobre a disposição


espacial do trono na sala onde se dariam os trabalhos, Andrada Machado28 ques-
tionou “Que paridade ha entre o representante hereditario da nação inteira e os
representantes temporarios?”, ou mesmo “que paridade ha entre o representante
hereditario e um unico representante temporario, que, bem que condecorado
com o titulo de presidente, não é mais que o primeiro entre os seus iguaes?”. O
poder real não estava nivelado com os demais, era “o poder influente, e regulador
dos mais poderes politicos”.

Também em uma das sessões preparatórias, tratando sobre as formalidades


para a Fala do Trono, mais precisamente, sobre a possibilidade do presidente da
ANC, que era D. José Caetano da Silva Coutinho, proceder em resposta imedia-
ta ao discurso do imperador, Andrada Machado29 defendeu posição de que tal
resposta não deveria ocorrer, pois não poderia haver aprovação ou reprovação
25 LYNCH, op. cit..
26 LYNCH, Christian Edward Cyril. O discurso político monarquiano e a recepção do conceito de poder
Moderador no Brasil (1822-1824). DADOS: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 48, no 3, pp. 611 a
654, 2005.
27 LYNCH, Idem..
28 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO. Assembléia Constituinte (1823). 6 v. p. 5. Biblioteca Digital da
Câmara dos Deputados. Brasília: Centro de Documentação e Informação Coordenação de Biblioteca. Disponível
em: http://bd.camara.gov.br. Acesso em 03 jul 2017.
29 Idem.

297
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

da fala imperial, posto que “Um poder não julga outro poder, mórmente quan-
do este poder, é, por sua essencia inviolavel como é o monarcha em todos as
constituições mundo”. Afirmou que a fala do imperador somente poderia ser
discutida caso fosse introduzida para debate na ANC por moção e revisitada por
um dos deputados, pois seria como “o sol que não podemos olhar directamente,
facilmente encaramos quando um corpo menos radiante lhe amortece a luz”.

Prosseguindo nessa discussão, interessante observar que o posicionamento


de Andrada Machado chegou a ser tachado de iliberal, pecha de imediato refu-
tada, remetendo Andrada a políticos britânicos para sustentar a possibilidade de
conciliação entre a dignidade nacional e a deferência ao chefe supremo do país.

Advogou que o monarca era “a chave que fecha a abobada social”, sendo
“de certo modo superior a todos os outros poderes, que todas as mostras de
submissão, de differença, e respeito a elle, jámais são degradantes”. Nessa contenda,
Andrada Machado afirma que o poder imperial era superior ao da ANC, tento
em vista ter sido o imperador a convoca-la.30

Iniciados os trabalhos propriamente ditos da ANC, em certa discussão


sobre a concessão de acento ao Padre Venâncio Henriques de Rezende – eleito
pela província de Pernambuco, mas excluído pela câmara de Olinda sob acusação
de ser contra a causa do Brasil por promover o sistema republicano –, Andrada
Machado31 discorreu sobre os conceitos de monarquia constitucional e absolutista,
quando explicitou que:
Quando uma nação é regida por um só indivíduo, o governo desta
nação é monarchico, se o poder é hereditário na dynastia reinante, e se
o monarcha tem alguma parte ao menos no supremo poder moderador
nacional. Se todos os poderes se concentrão n’um só homem, a monar-
chia é absoluta, a qual porém se differe do despotismo em ser o poder
exercitado segundo leis fixas quando no despotismo tudo depende do
arbitrio e capricho variavel do despota. Se porém os poderes são dividi-
dos, ficando a legislação na mão dos representantes nacionaes, e o poder
executivo na mão de um monarcha hereditario, inviolável e com alguma
influencia sobre os outros poderes, temos o que chamamos monarchia
constitucional representativa.

Ainda que não tenha realizado distinção clara entre Poder Moderador
e Executivo, sustentou que deveria ocorrer predominância do poder real sobre
os demais, o que não tornaria o regime despótico ou absolutista, pois existiria
a separação de poderes. Essa divisão entre os poderes, no entanto, não poderia
acarretar em isolamento, necessitando existir “uma entidade intermediaria que
concilie os discordes interesses dos elementos inimigos, democrático e monarchi-

30 Idem.
31 Idem.

298
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

co”, que, quando necessário fosse, impusesse “força para pôr em movimento os
rodízios quando inertes, ou moderar-lhes os movimentos, quando desordenados”.32

Trata-se claramente da concepção pela necessidade de existência de uma


instancia reguladora dos poderes, visando o seu equilíbrio e evitando a belige-
rância entre eles. Deveria o poder real, como poder acima dos demais, exercer
essa função de estabilização.

Nesse mesmo sentido, em outra questão, dessa vez sobre a possibilidade


de perdão de crimes, afirmou que se tratava do direito de graça, prerrogativa não
do legislativo, mas do monarca, “não na qualidade de poder executivo, mas sim
na de poder moderador”, evitando os males de uma legislação defeituosa ou de
sentenças por demais severas que desaguassem em injustiça, atuando o monarca
no sentido de limitar os excessos dos demais poderes.33

Inserido no debate acerca da possibilidade de sanção do imperador aos


projetos de lei propostos pela ANC, em situação específica sobre projeto de
decreto, Andrada Machado afiançou a imprescindibilidade de um poder conser-
vador para a estabilização de um país, a ser exercido pelo monarca, quando de
uma monarquia constitucional.34

Sobre a responsabilidade dos ministros do Estado e o significado da au-


toridade imperial, Andrada Machado afirmou35 que “Sua Magestade, em phrase
constitucional, é zero como individuo, é acima das fraquezas humanas, não é
homem, mas é um ente metaphysico.” A vontade de um monarca era conhecida
por meio da atuação dos órgãos de Estado, e os ocupantes desses cargos que
poderiam ser responsabilizados, sendo o poder real inviolável.

Outro constituinte que abordou aspectos relacionados ao Poder Modera-


dor foi o José Joaquim Carneiro de Campos, deputado pelo Rio de Janeiro que
viria a ser o Marquês de Caravelas, esposando, consonante análise de Lynch36 noção
intermediária quanto à proximidade ao conceito e Constant comparativamente
aos outros dois constituintes. Seu discurso foi voltada ao viés de um poder de
exceção, que deveria ser exercido com a finalidade de proteção ao próprio sis-
tema representativo-constitucional, visando a estabilidade institucional, como um
poder de controle dos demais para a manutenção da correta funcionalidade da
estrutura estatal.

32 Idem.
33 Idem.
34 Idem.
35 Idem.
36 LYNCH, op. cit.

299
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

Como exemplo desse ponto de vista, em debate a respeito da possibilida-


de do imperador suspender integrante dos conselhos das províncias eleitos pelo
povo, quando o conselheiro abusasse de sua autoridade, Carneiro de Campos37
exprimiu o entendimento de que, sendo o imperador o chefe supremo da nação,
teria “o direito de suspender os membros do conselho que não cumprirem com
os seus deveres”, mas como exercício de exceção:
[...] por via de regra quem elege, tambem deveria ter direito a suspender
e destituir, todavia não convém que o povo use da uma autoridade,
que além de promover frequentes ajuntamentos populares, quasi sem-
pre perigosos, abriria uma porta franca a intrigas e subministraria meios
bem commodos para os perturbadores do socego e seguranca publica
subverterem a boa ordem. Da falta desta consideração tem nascido as
frequentes revoluções que tem experimentado os governos provisorios das
provincias, e todos os males que nós sabemos e procuramos remediar.

Segundo Carneiro de Campos,38 “a suprema autoridade vigilante ou o


poder moderador, que nas monarchias é inseparável do monarca”, era “destinado
para evitar a perturbação da ordem publica e desarranjo da machina politica”, mas
não em qualquer situação, e sim como “extremo recurso e a ultima instancia no
systema constitucional, e sômente tem exercicio, quando se não offerece outro
algum meio ordinario e pacifico de evitar os damnos imminentes do estado”.

Em outra ocasião, abordando a querela no tocante à submissão (ou


não) dos projetos de lei à sanção imperial, Carneiro de Campos levantou a tese
de que caso ocorresse a preponderância do legislativo em relação ao chefe da
nação, não podendo o último suspender os efeitos de uma lei, mas apenas ser
o executor delas, não se estaria diante de um regime monárquico, mas de um
governo republicano.

Em um regime monárquico representativo, ou na denominada “Monarchia


temperada” ou moderada, a influência do corpo de representantes na formação
das leis seria repartida “com igualdade entre elle e o chefe da nação”. Carneiro
de Campos39 defendeu o poder de sanção do imperador e assim argumentou:
Cumpre que jámais percamos de vista que o monarcha constitucional,
além de ser o chefe do poder executivo, tem demais a mais o caracter
augusto de defensor da nação: elle é a sua primeira autoridade vigilante,
guarda dos nossos direitos e da constituição. Esta suprema autoridade,
que constitue a sua pessoa sagrada e inviolavel, e que os mais sabios
publicistas deste tempo tem reputado um poder soberano distincto do
poder executivo por sua natureza, fim e attribuições, esta autoridade digo,

37 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO, op. cit.


38 Idem.
39 Idem.

300
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

que alguns denominão Poder neutro ou Moderador e outros Tribunicio


é essencial nos governos representativos.

Nessa conjuntura, para evitar que a monarquia recaísse em sistema ab-


solutista, o poder legislativo deveria vigiar os ministros que exerciam o poder
executivo, evitando o estabelecimento da tirania de um só, ao passo que o
monarca resguardaria a nação de possíveis excessos do legislativo, evitando a
tirania de muitos.

Por fim, remeta-se ainda ao constituinte que proferiu fala a respeito do


Poder Moderador, consoante Lynch,40 mais se afastou dos escritos de Benjamin
Constant, João Severiano Maciel da Costa, deputado por Minas Gerais e futuro
Marquês de Queluz, partidário do pensamento do poder real como um poder
de centralização política na figura do imperador.

Já em setembro de 1823, quando se debatia o projeto de Constituição


apresentado à ACN pela junta designada para tal, em discussão sobre como seria
a organização político-territorial do Estado Unitário, se seria em províncias ou
comarcas, Maciel da Costa41 intercedeu pela estruturação em províncias, posto que:
Sabemos todos que n’um governo constitucional, o. supremo chefe, alem
do poder executivo para a simples execuçao das lei, tem o supremo
poder moderador, em virtude do qual elle vigia como da atalaia sobre
todo o Imperio; é o argos politico, que com cek olhos tudo vigia, tudo
observa, não só vigia, e observa, mas tudo toca, tudo move, tudo dirige,
tudo concerta, tudo compõe fazendo aquillo que a nação faria, se po-
desse, mas sendo preciso commette-lo a alguém, tem mostrado a razão,
a experiencia, que á uma pessoa moral, isto é, uma corporação.
Ora, se o supremo moderador tudo deve ver, e tudo tocar, é preciso
tenha olhos, e braços por todo o Imperio. Esses olhos, esses braços, são
as autoridades provinciaes, que vêm, e tocão por elle e com elle estão em
continuo e imediato contacto; relações estas que não quadrão aos mem-
bros do poder judiciario, que deve elle mesmo ser vigiado, sobrerroldado.

Portanto, Maciel da Costa42 defendeu a organização política em províncias


pois as compreendia como divisões políticas, diferentes das comarcas, que seriam
divisões judiciárias. Como o poder imperial deverias estar presente em todo o
território, “a guarda e a vigia” deveriam ser divididas “por tantas autoridades su-
balternas, quanto bastem para o feliz desempenho”, pois o “Imperio é o corpo;
suas provincias, suas villas, seus municipios, são os membros, são as visceras; o
espirito publico, o amor da pátria, são os agentes que circulão por eles, e os põe
em movimento.”

40 LYNCH, op. cit..


41 ANNAES DO PARLAMENTO BRAZILEIRO, op. cit.
42 Idem.

301
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

No entanto, o projeto de Constituição, apresentado na sessão de 1º de


setembro de 1823, cujo principal redator foi Antônio Carlos Ribeiro de Andrada
Machado e Silva – a essa época, já em contraposição à preponderância da Coroa
–, dispunha em seu artigo 39 que eram três os poderes políticos do império:
Executivo, Legislativo e Judiciário. Na verdade, ressalte-se que ainda em junho, no
transcorrer dos debates constituintes, havia vencido a tese de que não caberia ao
imperador sequer a sanção dos projetos de lei discutidos na ANC.

Reitere-se que a Constituinte foi permeada por tensão e controvérsias com


o poder imperial, e, dentre outras problemáticas, pode-se remeter ao controle
nacional das tropas das forças armadas, com participação de portugueses sem
seus quadros, ocorrendo até proposta parlamentar no sentido de expulsão do
país de portugueses cuja conduta fosse suspeita (lembre-se que Portugal somente
reconheceu a independência do Brasil em 1825, por meio do Tratado do Rio de
Janeiro ou Tratado Luso-Brasileiro).43

O incidente com Davi Pamplona Corte Real, brasileiro que haveria sido
espancado por militares portugueses dos quadros das Forças Armadas brasileiras, é
considerado como fator de acirramento das controvérsias a respeito de portugueses
ocupantes de postos militares no Brasil, culminando com maior radicalização dos
debates na ANC, inclusive com proposta relativa à liberdade de imprensa, que
denunciava os abusos desses militares lusos.

Em 12 de novembro de 1823, mais precisamente na madrugada dessa


data, naquela que ficou conhecida como noite da agonia, o imperador dissol-
veu a Assembleia Constituinte. D. Pedro I cercou o prédio da ANC com forças
militares, e acabou por prender e deportar opositores que compunham a As-
sembleia Constituinte. O imperador então proferiu Decreto criando Conselho de
Estado composto por 10 membros com a finalidade de elaborar novo projeto
de Constituição:44
Havendo eu, decreto de 12 do corrente, dissolvido a Assembléa Geral
Constituinte e Legislativa, e igualmente promettido um projecto de Cons-
tituição, que deverá (como tenho resolvido por melhor) ser remettido ás
Camaras, para estas sobre elle fazerem as observações, que lhe parecerem
justas, e que apresentarão aos respectivos Representantes das Provincias,
para dellas fazerem o conveniente uso, quando reunidos em Assembléa,
que legitimamente representa a nação: E como para fazer semelhante
projecto com sabedoria, e apropriação ás luzes, civilização, e localidades
do Imperio, se faz indispensavel, que eu convoque homens probos, e
amantes da dignidade imperial, e da liberdade dos povos: Hei por bem

43 BONAVIDES, op. cit..


44 BRASIL. Decreto de 13 novembro de 1823. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/
anterioresa1824/decreto-38883-13-novembro-1823-568086-publicacaooriginal-91478-pe.html>. Acesso em 05 jul
2017.

302
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

crear um Conselho de Estado, em que tambem se tratarão os negocios


de maior monta, e que será composto de dez membros; os meus seis
actuaes Ministros, que já são Conselheiros de Estado natos, pela Lei de
20 de Outubro proximo passado, o Desembargador do Paço Antonio
Luiz Pereira da Cunha, e os Conselheiros da Fazenda Barão de Santo
Amaro, José Joaquim Carneiro de Campos, e Manoel Jacinto Nogueira da
Gama: os quaes terão de ordenados, que por outros empregos tiverem. O
Ministro e Secretario de Estado dos Negocios do Imperio o tenha assim
entendido, e faça executar, expedindo as ordens necessarias. Paço em 13
de Novembro de 1823, 2° da Independencia e do Imperio.

Conforme Bonavides e Andrade,45 o Conselho trabalhou no texto consti-


tucional “calcado sobre as bases de outro que lhe foi apresentado pelo próprio
Imperador, o qual esteve mais de uma vez presente às reuniões do Conselho,
participando ativamente das discussões.”

Essa base era, na realidade, o antigo projeto, com algumas reformulações.


Joaquim Carneiro de Campos compunha o Conselho, sendo o relator do projeto
de Constituição encomendado pelo imperador. O Poder Moderador foi então
acrescentado ao texto, assim como as atribuições do imperador foram amplia-
das, como foi dilatada as possibilidades de ingerência do poder imperial sobre
os demais poderes.

Em 11 de dezembro, portanto, aproximadamente trinta dias depois da


instituição do Conselho de Estado, aquela que viria a ser a primeira Constitui-
ção do Brasil já estava pronta. Em 25 de março de 1823, após a aprovação das
Câmaras Municipais, a Constituição Política do Império do Brasil foi outorgada
por D. Pedro I.

Isso posto, o que se percebe é que não ocorreu na ANC manifestação


categórica no sentido da estruturação dos poderes do estado em quadro di-
ferentes instancias, mas remissão a aspectos da teoria de Benjamin Constant –
mesmo sem citá-lo diretamente – para sustentar concepção de robustecimento
do poder imperial, uma vez que as funções de um possível poder neutro, arbitral
e regulador poderiam ser exercidas pelo imperador enquanto chefe supremo
da nação. A denominação de Poder Moderador como um quarto poder, com
dispositivos constitucionais próprios, apareceu já nos trabalhos do Conselho de
Estado, permanecendo no texto constitucional outorgado.

3 Constituição Política do Império do Brasil e a regulação do Poder Mo-


derador

Conforme a Constituição Política do Império do Brasil de 25 de mar-


co de 1824, o Brasil era um Estado Unitário, sem subdivisão interna em entes
45 BONAVIDES, op. cit.. p. 85-86.

303
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

autônomos, mas com Províncias, submetidas ao Governo Central (art. 2); com
sistema política estruturado sob a forma de Monarquia Hereditária, cuja “Dynastia
Imperante” era a de D. Pedro I, “Defensor Perpetuo do Brazil” (arts. 3 e 4, arts.
116-120). Tratava-se, todavia, de uma Monarquia Constitucional, com previsão de
Sistema Representativo, portanto, afastando-se do modelo de Estado Absolutista
europeu (art. 3).

A Constituição Imperial inseriu-se na forte tradição daquela época de


declarações de direitos, estabelecendo em seu artigo 179: “A inviolabilidade dos
Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade,
a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio,
pela maneira seguinte”. Observa-se nas disposições desse artigo a perspectiva típica
do liberalismo vigente na época, com garantia formal da liberdade em relação à
não intervenção nos assuntos privados. Frise-se, contudo, que o texto constitucional
permaneceu silente quanto à escravidão, perpetuando o regime escravocrata, que
perdurou até as vésperas da proclamação da República.

Quanto à estruturação dos poderes estatais, eram quatro os poderes po-


líticos do Império: Poder Legislativo, Poder Moderador, Poder Executivo e Poder
Judicial (art. 10). O Poder Executivo estava regulamentado no Capítulos II do
Título 5º, e o art. 102 estabelecia: “O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e
o exercita pelos seus Ministros de Estado”. Em relação ao Poder Moderador, regu-
lado pelas disposições do Capítulos I do Título 5º, assim prescrevia a Constituição:
Art. 98. O Poder Moderador é a chave de toda a organisação Politica,
e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da
Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele
sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais
Poderes Politicos.

Portanto, o imperador acumulava a chefia do Poder Executivo com o


exercício do Poder Moderador. Observe-se bem a redação do artigo 102, que
prescreve claramente que o imperador exercitará o Poder Executivo por meio
dos ministros de Estado. O artigo 132 estabeleceu que “Os Ministros de Estado
referendarão, ou assignarão todos os Actos do Poder Executivo, sem o que não
poderão ter execução”.

Por sua vez, o Poder Legislativo era composto pela Câmara dos Deputados
e pelo Senado (art. 14). A Câmara dos Deputados era eletiva e temporária (art.
35), com a legislatura durando quatro anos (art. 17). O Senado, por outro lado, era
composto por membros vitalícios, que seriam nomeados pelo Imperador, como
exercício do Poder Moderador (arts. 43 e 101, I), mas a partir de listas tríplices
resultantes de eleição provincial. Já o Poder Judiciário era composto por Juízes de

304
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Direito nomeados pelo Imperador no exercício de suas atribuições como Chefe


do Poder Executivo (art. 102, III).

Pode-se perceber algumas aproximações entre a teorização de Benjamin


Constant e a estruturação dos poderes estatais da Constituição de 1824, como
a possiblidade de dissolver a Câmara dos Deputados para a salvação do Estado,
com imediata convocação de novas eleições (art. 101, V), nomear os senadores
(art. 101, I) – muito embora não houvesse número ilimitado de senadores, afas-
tando-se de ponto importante da teoria de Constant –, nomear e destituir os
ministros de Estado (art. 101, VI), bem como perdoar ou moderar penas impostas
em condenações judiciais (art. 101, VIII).

No entanto, ocorreu forte centralização de poder na figura do imperador,


que não era apenas inviolável, mas usa pessoa era sagrada (art. 99), que dividia
o papel de Representante da nação brasileira com a Assembleia Geral (art. 11).
Como já transcrito, o Poder Moderador a chave da organização política, conso-
nante determinação constitucional (art. 98). Dentre as atribuições desse poder
elencadas no art. 101, estavam diversas disposições de ingerência sobre os demais
poderes, e conforme José Reinaldo de Lima Lopes:46
Este poder incluía interferências no funcionamento do legislativo, seja
nomeando os senadores vitalícios, seja sancionando (e vetando, claro) as
leis aprovadas ou dissolvendo a Câmara dos Deputados e no Judiciário,
nomeando os juízes ou suspendendo magistrados. O Poder Moderador
não era defendido como um poder absoluto, mas como um remédio aos
impasses do partidarismo, que se imaginavam inevitáveis na representação
parlamentar. Era um remédio para a paralisia decisória ou para o predo-
mínio de interesses particulares, mesmo que majoritários.

Nota-se que a estrutura constitucional de funcionamento do sistema de


quatro poderes possibilitava que o Poder Moderador fosse mais do que um poder
neutro, regulador, arbitral, como na concepção esposada por Andrada Machado
no início dos trabalhos da ANC, que o situava numa posição que inspirava de-
ferência por localizar o imperador acima da própria política.

Na análise de Bonavides e Andrade,47 o Poder Moderador nada mais era


do que a constitucionalização do absolutismo, e o Brasil oitocentista ainda estava
transitando entre o colonialismo e sua efetiva emancipação, pelo que, no Império,
haveria ocorrido um híbrido de liberalismo com absolutismo.

Segundo José Reinaldo de Lima Lopes,48 os defensores do Poder Mode-


rador, no entanto, o concebiam como instrumento necessário para era evitar a
46 LOPES, op. cit., p. 272.
47 BONAVIDES, op. cit...
48 LOPES, Ibidem, p. 306.

305
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

fragmentação do país em razão do sistema representativo, possibilitando a esta-


bilidade da ordem política nacional: “No sistema representativo, as eleições geram
quase que naturalmente os perigos da facção. Quem zelará pelo interesse geral? O
poder moderador, poder neutro, dizem alguns constitucionalistas conservadores”.

Para Paulino Soares de Sousa, o Visconde do Uruguay,49 o Poder Moderador


era essencialmente conservador, delegado pela nação, razão pela qual não poderia
estar na dependência dos demais poderes políticos do Estado, constituindo poder
supremo, pelo que, residia privativamente no primeiro representante da nação,
qual fosse o imperador, chefe supremo do Estado brasileiro.

O Poder Moderador não poderia construir nada de novo, pois não era
poder ativo, mas apenas mantenedor da harmonia entre os demais poderes, um
fiscal, com finalidade de “conservar, moderar a acção, restabelecer o equilibrio”, e
esse fim não seria atingido “se estivesse assemelhado, refundido e na dependência
de um d’elles”.50

Na mesma linha foi Zacarias de Góes e Vasconcellos,51 que, examinando


o artigo 98 da Constituição de 1824, “fallando do poder moderador; allude a esse
poder que, na moderna theoria politica, exerce a suprema inspecção, e fórma o
laço entre todos os poderes”. Interessante notar que o autor aponto que o trans-
plante da obra de Bejamin Constant até na escolha das palavras que constavam
na Constituição de 1824 quando ao Poder Moderador, resultou em expressões
ambíguas e imprecisas, objeto de polêmica em sua interpretação e aplicação.

Outro a advogar pelo Poder Moderador foi José Antônio Pimenta Bueno, o
Marquês de São Vicente,52 para quem o referido poder era “a suprema inspecção
da nação, é o alto direito que ella tem, e que não póde exercer por si mesma,
de examinar o como os diversos poderes politicos, que ella creou e confiou a
seus mandatarrios, são exercidos”.

Por conseguinte, era poder delegado pela nação – como o eram todos,
na redação do artigo 12 da Constituição –, mas não por ela exercido, tendo em
vista que cabia ao imperador, era fundamental para impedir os abusos dos demais
poderes. Para o Marquês de São Vicente,53 esse poder conservador era “a mais
elevada força social, o orgão politico o mais activo, o mais influente, de todas as

49 URUGUAY, Paulino Soares de Sousa, Visconde do. Ensaio sobre o direito administrativo. 2 tomos. Rio de
Janeiro: Typografia Nacional, 1862,t.2.
50 URUGUAY, Ibidem, p.60.
51 VASCONCELLOS, Zacarias de Góes e. Da natureza e limites do poder moderador. Rio de Janeiro: Typographia
Universal de Laemmert, 1862, p. 13.
52 SÃO VICENTE, José Pimenta Bueno, Marquês de. Direito publico brazileiro e analyse da Constituição do
Imperio. Rio de Janeiro: Typographia Imp. e Const. de J. Villeneuve & C., 1857, 204.
53 SÃO VICENTE, Ibidem, p. 204-205.

306
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

instituições fundamentais da nação”, pelo que o “exercício do poder moderador é


quem evita nos perigos publicos o terrivel dilemma da dictadura ou da revolução;
todos os attributos do monarcha levão sua previdentes vistas a não querer nem
uma nem outra dessas fatalidades, que quasi sempre se entrelação e reagem.”

Aluda-se ainda à obra de Braz Florentino Henriques de Souza,54 que


enfatizou o caráter conservador do Poder Moderador, remédio para as ameaças
das tormentas revolucionárias, era, na verdade, “a mais alta expressão da soberania
nacional acautelando-se sabiamenle contra o seus proprios desvios”.

Tal poder era “não só a chave de toda a organização politica, senão tam-
bem a pendula do grande mecanismo social, o aarbitro e o regulador supremo
de todos o outros poderes”. As prerrogativas do Poder Moderador que eram
objeto de crítica pelos seus opositores, eram motivo de exaltação por Braz Souza:55
E’ elle quem manda a todos com imperio: ao legislativo pelo veto, pelo
adiamento da Assembleia Geral; pela disssolução da camara do depu-
tados; – ao executivo pela demissão dos ministros; – ao judiciario pela
suspensão do magistrado, pelo perdão das penas, e pela amnystua. E’ elle
quem a todos communica os principios de vida e de ordem necessarios
á manutenção da sociedade;

Por óbvio que a essa defesa do Poder Moderador existiu não menos
incisiva antítese, como no sentido de que a louvada estabilidade, na realidade,
traduzia-se em limitação à liberdade nacional, posto que o “poder moderador,
podendo interferir em todos os outros poderes do Estado, terminava por fazer
e desfazer politicamente o que quisesse”.56

Em 1823, ao se pronunciar sobre o projeto da Constituição elaborado


pelo Conselho de Estado e apreciado nas províncias, Frei Caneca57 teceu severas
críticas ao texto – republicano, foi um dos líderes da Revolução Pernambucana
de 1817, como também seria da Confederação do Equador de 1824 –, apon-
tando contradições e lacunas, como possibilidade de reunificação com Portugal
e fragilidade das províncias.

Sobre o Poder Moderador, foi categórico: “O poder moderador de nova


invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação brasileira e o
garrote mais forte da liberdade dos povos”. Criticou, por exemplo, a possibilidade

54 SOUZA, Braz Florentino Henriques de. Do poder moderador: ensaio de direito constitucional contendo a
analyse do Titulo V Capitulo I da Constituição Politica do Brazil. Recife: Typografhia Universal, 1864, p. 16.
55 SOUZA, Ibidem, p. 25.
56 LOPES, op. cit., p. 307.
57 CANECA, Joaquim do Amor Divino Rabelo, o Frei. Ensaios políticos: crítica da constituição outorgada, bases
para a formação do pacto social e outros. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 1976.

307
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

de dissolução da Câmara dos Deputados, bem como a nomeação os Senadores,


o que estabelecia desigualdade entre as casas.58

Em obra publicada já no Segundo Reinado, Tobias Barreto,59 como um


crítico do seu tempo, aludiu a uma espécie de fé católica que os publicistas
brasileiros defensores do Poder Moderador tinham na Constituição e na supe-
rioridade da realeza, nutrindo concepções estéreis e idealistas, fundadas nas ideias
inglesas, como a noção de estabilidade da coroa. Em sua avaliação, no entanto,
o próprio texto constitucional não viabilizava um governo parlamentar ao molde
inglês, mas sim a centralização no imperador como preponderante e soberano.

Asseverou que a simples previsão do Poder Moderador na Constituição


não havia significado uma passagem da ideia de Benjamin Constant do mundo
da teoria para o mundo dos fatos. Nada mais era do que a passagem da con-
cepção de um livro para outro, cuja efetiva aplicação, com alcance dos objetivos
pensados, ainda estaria por resolver-se, até porque:60
Quando se diz que o poder moderador foi um fruto da razão e da
lógica, é mister não esquecer que esta razão e esta lógica pertenciam a
certos homens, e estes homens a uma certa época. Em outros termos,
a teoria em questão não se pode ser considerada à parte do espírito
que a concebeu, nem do meio social, em que ela se produziu. As idéias
também têm a sua biografia. O que se costuma às vezes chamar a força
da lógica, é apenas a necessidade dos tempos.

Nesse contexto, tendo como bastante precisa a analise acima transcrita de


Tobias Barreto – segundo José Reinaldo de Lima Lopes,61 inserido no movimento
intelectual de 1870 que já identificava e criticava o idealismo nos discursos dos
juristas –, considera-se assertiva a percepção de Christian Lynch62 no sentido de
que “o sucesso e o fracasso do Poder Moderador dependiam substancialmente
da forma como o seu exercente lhe imprimiria a marca de sua personalidade”,
pois a “flexibilidade da Constituição permitiria que o titular desse poder fosse
um déspota, se assim quisesse, ou um Rei parlamentarista, que tão somente se
limitasse a supervisionar a marcha dos negócios públicos.”

Ainda que não se corrobore com a perspectiva de que o Poder Moderador


seria uma mera constitucionalização do absolutismo, inegável que o arcabouço
normativo da Constituição de 1824 proporcionava que a atuação do imperador
no controle e regulação dos demais poderes não se adstringisse a um poder de
58 CANECA, Ibidem, p. 100.
59 BARRETO, Tobias. A questão do poder moderador e outros ensaios brasileiros. Petrópolis: Vozes, 1977.
60 BARRETO, Ibidem, p. 98-99.
61 LOPES, op. cit.
62 LYNCH, Christian Edward Cyril. O Poder Moderador na Constituição de 1824 e no anteprojeto Borges de
Medeiros de 1933: um estudo de direito comparado. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 47 n. 188 out./
dez. 2010a, p. 100.

308
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

exceção com escopo de assegurar a estabilidade institucional, como deveria ser


na perspectiva demonstrada por Carneiro de Campos na Constituinte – atentan-
do que foi ele o membro do Conselho de Estado responsável pela relatoria do
projeto de Constituição pós dissolução da ANC.

Não que tenha sido o pensamento de Maciel da Costa a influenciar


na formatação constitucional do Poder Moderador, mas a sua fala na ANC, já
ao final do mês de setembro, passadas semanas de debate sobre o projeto de
Constituição que não contemplava o dito poder neutro, parece refletir o que foi
propiciado pela efetiva prescrição na dogmática constitucional.

Conclusão

A instauração de sistema representativo e da monarquia constitucional


na independência do Brasil significou clara ruptura com o Antigo Regime e com
absolutismo monárquico. Ainda assim, o estabelecimento de um sistema com
quatro poderes estatais, com destaque para a novidade do Poder Moderador,
privativo do imperador, fez (e faz) surgir questionamentos a respeito do quão
democrático de fato era o regime imperial brasileiro.

No transcorrer da ANC houve intenso debate – e acirrado embate – a


respeito da prevalência (ou não) e limites (ou alcance) da autoridade do Poder
Imperial sobre as próprias deliberações parlamentares, resultaram na dissolução
da Constituinte, fato que simbolizou o triunfo da pretensão de predominância e
fortalecimento da Coroa.

O projeto que vinha sendo discutido não previa a separação dos poderes
do Estado em quatro corpos, senão na tripartição de poderes consagrada na
doutrina de Montesquieu. Tendo o Poder Moderador sido introduzido no esta-
tuto constitucional pós dissolução da Constituinte, à vista disso, como demanda
direta de D. Pedro I, poderia ser esse outro sinal de sua natureza absolutista, ou
mesmo despótica.

A partir da obra de Benjamin Constant, teorizador do poder real como


poder neutro, árbitro dos outros poderes estatais, abaixo dele situados, pode-se
identificar congruências da estrutura normativa constitucional com os conceitos
do intelectual francês. Nesse azo, não se estaria diante de um instituto absolutista,
mas de instrumento conservador, diga-se, como que antirrevolucionário, prezando
pela estabilidade da nação brasileira recém independente, assim, congruente com
as concepções da elite coimbrã – posteriormente, do pensamento saquarema
– de desenvolvimento estabelecido de cima para abaixo, evitando rupturas e
arroubos de instabilidade.

309
PODER MODERADOR NA CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO IMPÉRIO DO BRASIL (1824):
BASES TEÓRICAS E DEBATES CONSTITUINTES

As manifestações na ANC no sentido de remissão ao dito poder neutro,


já traduziam muito mais a noção de necessidade de predominância do poder
real e centralização político-administrativa, com vistas à unificação do país recém
emancipado, do que uma preferência por um regime autoritário. O Poder Mo-
derador, nada obstante, recebeu aparato de regulamentação constitucional que
possibilitava a inserção do chefe de Estado em assuntos dos outros poderes
estatais, ou seja, permitia incursões interventoras que extrapolavam a teorização
pensada por Benjamin Constant, mas sem configurar a instituição de um regime
absolutamente antidemocrático.

Ainda assim, a depender muito mais, diga-se, da postura imperial, do que


da própria entabulação prescrita pela dogmática constitucional, o exercício do
Poder Moderador poderia refletir a instrumentalização possibilitadora da concreção
da perspectiva do segmento político de conservadorismo liberal no sentido da
necessária estabilidade da neófita nação brasiliana, carente ainda da construção
da ordem e unidade nacionais, apenas possível com a prevalência da concepção
de centralização política e fortalecimento do chefe de Estado.

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310
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

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311
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE


A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS NA EDUCAÇÃO
DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

LAILA MAIA GALVÃO


Mestra em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
e Doutora pela Universidade de Brasília (UnB). Professora de direito do Instituto Federal do Paraná (IFPR).

JOSÉ ARTHUR CASTILLO DE MACEDO


Mestre e doutorando em direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Professor de direito do Instituto Federal do Paraná (IFPR).

Resumo
O presente artigo investiga os debates, durante a Assembleia Constituinte
de 1933 e 1934, a respeito da repartição das competências das modalidades de
educação pública entre os entes federados. Para tanto, buscou-se averiguar se
houve uma disputa mais profunda no decorrer do processo constituinte em
relação a modelos de centralização e descentralização nessa área. A análise das
disputas sobre a divisão das responsabilidades no âmbito do ensino público
teve como objetivo verificar a posição de algumas figuras públicas e de cer-
tos grupos políticos nesse debate, bem como as propostas apresentadas que
instituíram uma nova obrigação para os entes federados. Assim, foi possível
aprofundar uma reflexão sobre a própria história do federalismo brasileiro e a
construção de seu desenho institucional.

Introdução

A visão predominante a respeito da repartição de competências, tanto


na história do direito constitucional quanto na teoria ou dogmáticas constitucio-
nais, tende a conceber as diversas formas de distribuir as competências entre os
diversos entes federados, como uma questão meramente técnica. Para esta visão
a técnica é compreendida a partir de uma visão simplória de que as regras jurí-
dicas, tidas como “formais”, seriam “neutras” ou não seriam o objeto de grandes
disputas. No presente texto partimos de uma premissa distinta, pois as regras
“simplesmente” formais de competência, encerram em si algumas complexidades,
as quais pretendemos iluminar a partir da análise da repartição de competências
sobre a educação na constituinte de 1933-1934.

O texto está dividido em quatro partes. Na primeira parte explicamos


nossa proposta de releitura da compreensão dominante a respeito das compe-
tências atribuídas na Constituição, à luz da teoria constitucional contemporânea.
Depois, em um segundo momento, apresentamos uma breve contextualização da

313
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

década de 1930, para introduzir as principais questões que desafiavam os atores


sociais à época. Na terceira parte é analisado o momento anterior à Constituinte
de 1933-1934. Já na quarta parte, há uma análise panorâmica dos debates sobre
educação no decorrer da Assembleia Constituinte de 1933 e 1934.

1. Repensar as competências

No âmbito do direito em geral, e, do direito constitucional em particular,


regras de competência são majoritariamente compreendidas como regras “formais”.
O adjetivo formal para tais normas pretende atribuir às regras dois sentidos: i)
oposição às regras materiais, isto é, de conteúdo; ii) caracterizar o conteúdo da
norma, o qual corresponde a formalização de determinados atos, ou, em outras
palavras, a forma pela qual eles devem ser confeccionados. Essa visão, bastante
simplória, já foi contestada por pensadores de diversas linhas teóricas1. As críticas
centravam-se, sobretudo, na conexão que há entre direito material e formal. Talvez
haveria razões didáticas para mantê-la, mas ela seria pouco útil do ponto de vista
prático ou científico, já que não produz ganhos teóricos (melhor compreensão
do direito) ou práticos (melhor efetivação do direito).

Não obstante, é necessário avançar em relação ao segundo ponto. As


regras ditas formais são regras que atribuem poderes às pessoas e instituições,
prescrevendo onde, quem e como poderão ser produzidos atos que serão con-
siderados válidos pelo direito. Portanto, tratam-se de regras relevantes para com-
preender a distribuição do poder em qualquer sociedade, porquanto elas são o
meio através do qual o direito aloca poder concedendo o status de lícito ou
ilícito a certas condutas ou situações. Assim, diferentemente do que tem sido
feito na teoria jurídica, não é possível compreender as regras – formais ou ma-
teriais – como regras neutras, pois a escolha de locais (onde), atores (quem), ou
de procedimento (como), é determinante para os resultados pretendidos, sociais,
políticos ou econômicos.

Tal constatação tem sido levada em consideração em estudos a respeito


da legitimidade democrática da jurisdição constitucional. Todavia, ela é ignorada
nos estudos a respeito da estrutura do Estado, especialmente da repartição de
competências na Federação. Nos últimos anos, contudo, teóricos da América do
Sul e do Norte tem chamado atenção para a conexão entre as regras de com-
petência e o exercício do poder. Serão apresentadas três ideias fundamentais para
repensar as competências, as quais nos permitiram pensá-las à luz das disputas
políticas concretas e dos projetos políticos subjacentes às propostas feitas.

1 Para ficar com dois exemplos, alemães do século XIX, vide: HEGEL, G. W. F. Linhas Fundamentais da Filosofia
do Direito: ou Direito Natural e Ciência do Estado em Compêndio. Trad.: Paulo Menezes (et. al.) São Leopoldo:
Unisinos; São Paulo: Loyola; 2010; MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Trad.: Nelio Schneider. São Paulo: Boi-
tempo, 2010.

314
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Judith Resnik chama atenção para o fato de que na tradição estado-uni-


dense o termo utilizado para competências é “power”, e, a partir dessa constatação
ela explicita o fato de que as disputas a respeito de competências são disputas
sobre o poder político2. Um dos exemplos trazidos pela autora é a controvér-
sia a respeito dos direitos reprodutivos das mulheres. No final do século XX,
por muitos anos conservadores afirmavam que a legislação a respeito de direitos
reprodutivos das mulheres era de competência estadual. Se esse entendimento
fosse correto, os Estados-membros dos Estados Unidos poderiam editar leis que
restringissem direitos das mulheres em matéria reprodutiva no território estadual.
O argumento deles era de que direitos reprodutivos, fariam parte do âmbito
material de regulação do direito de família, cuja competência, nos Estados Uni-
dos é estadual. De outro lado, os progressistas defendiam que o debate sobre
os direitos reprodutivos diz respeito a liberdade e a igualdade, e, por isso, seriam
inconstitucionais as regras estaduais a respeito do tema. Resnik ressalta que estas
controvérsias vão muito além da análise tradicional formalista que as reduzem a
uma discussão sobre “quem” pode legislar. A confirmação da constitucionalidade
a respeito da competência legislativa e o enquadramento em um âmbito material
ou em outro, resultará em uma diferente distribuição do poder, a qual deve ser
levada em consideração já que privilegiará diferentes projetos de vida e de nação.

Na mesma linha de Resnik, as professoras Susan Bloch e Vicki Jackson


chamam atenção para outro ponto complementar a análise feita pela professora
de Yale. Em uma obra dedica a história do federalismo norte americano3, Bloch e
Jackson ressaltam o fato de que o regime de repartição de competências materia-
lizado na Constituição, isto é, as regras e princípios que distribuem competências
na federação, podem resultar de disputas contingentes que se dão entre os atores
políticos, cujos objetivos são a resolução dos diversos problemas apresentados
quando da redação da Constituição, ou quando é debatida a sua alteração. Essa
visão agrega mais realismo a compreensão dos debates que ocorrem antes da
redação da Constituição e depois quando da interpretação das suas regras. Ao
chamar atenção para este ponto, Bloch e Jackson tornam visível para o federa-
lismo uma questão lançada por Pierre Bourdieu, a respeito da forma como o
direito positiva certas regras, e, com isso congela ou rearranja, por um período,
determinadas disputas sociais. Isso é relevante para o presente trabalho, pois nos
interessa justamente sobre a forma como se deu a repartição de competências
na educação, durante a constituinte de 1933-1934.

2 RESNIK, Judith. What’s Federalism For? In: BALKIN, Jack M.; SIEGEL, Reva B. The Constitution in 2020. New
York: Oxford, 2009, p. 269-284.
3 BLOCK, Susan Low; JACKSON, Vicki C. Federalism: A reference Guide to the United States Constitution. Santa
Barbara: Praeger, 2013, p. Xi e ss.

315
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

O terceiro ponto complementar a análise proposta é desenvolvido por


Roberto Gargarella em sua obra “A Casa de Máquinas da Constituição”4. Nela, o
autor argentino argumenta que nos últimos anos os setores progressistas deixaram
de se mobilizar com o objetivo de modificar a organização dos poderes (a sala
de máquinas). Apesar de muitos países latino-americanos terem elaborado novas
constituições ao final do século XX, a maioria delas não trouxe grandes inovações
se comparadas aos constituintes do século XIX ou de meados do século XX (no
nosso caso da década de 1930). Além disso, uma das principais conclusões do
livro é a dissintonia entre a busca de um projeto igualitário, com a positivação de
direitos políticos, sociais, culturais e ambientais, e a ausência de modificação da
estrutura de poder responsável por implementar esses direitos. Segundo Gargarella,
isso gera uma inconsistência interna da Constituição, pois ela cria direitos funda-
mentais que, em tese, promovem maior poder aos cidadãos pois os empoderam,
mas, simultaneamente, cria uma estrutura de poder centralizada que bloqueia a
garantia destes direitos. Entretanto, os atores políticos e constituintes progressistas
de outras épocas estavam preocupados em dar coerência entre as instituições,
os direitos e o projeto de nação que se procura concretizar.

Apresentadas tais críticas, é possível compreender porque a reflexão a


respeito das regras de repartição de competências não pode ser vista algo neutro,
já que nem de longe ele é. Em verdade, trata-se de um locus de disputa de poder,
sobre quem estará autorizado, a fazer algo em determinado tempo e espaço. A
Constituição ao assegurar esse poder a determinados atores em detrimento de
outros produz dois resultados: i) o mais evidente, é conceder poder aos atores
responsáveis (competentes) pela atuação; ii) pode reconfigurar o jogo de forças
prévio à constituinte de modo a fortalecer ou a enfraquecer grupos políticos
que estão disputando o domínio (de recursos escassos, de poder ou prestígio)
na região. Aliás, tal fato é reconhecido por Angela Castro Gomes que, na intro-
dução da obra “Regionalismo e Centralização Política”, chama a atenção para o
fato de que na década de 1930 estavam em disputa diversos projetos de país5.
Em síntese, como se verá no próximo item, naquela época muitas críticas eram
feitas ao liberalismo laissez faire praticado na República Velha. Portanto, ressalta a
autora, a questão central a ser enfrentada na constituinte era centralização versus
federalismo, uma vez que o federalismo representava a velha ordem derrubada pela
Revolução de 1930, na qual havia o predomínio dos coronéis e das oligarquias
estaduais. A centralização era vista, por alguns setores do Governo Provisório, como
a melhor forma de responder aos dilemas enfrentados pelo Brasil no momento.

4 GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: dos siglos de constitucionalismo en América


Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz, 2014.
5 GOMES, Angela de Castro. Introdução. In: GOMES, Angela de Castro (Coord.). Regionalismo e Centralização
Política: Partidos e Constituinte nos Anos 30. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 23 e ss.

316
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A partir dessa compreensão renovada de competências, é possível conectar


a teoria constitucional à história do direito (constitucional), para traçar um quadro
mais complexo sobre a forma como se materializou na Constituição de 1934 a
compreensão do direito à educação e sobre o federalismo. Um último ponto é
relevante antes de compreendermos o contexto da década de 1930. A articulação
ora proposta entre teoria constitucional e história do direito constitucional, permitirá
em trabalhos profundos que se aprofunde a disputa que se dá entre defensores
da descentralização e da centralização do Estado. Sob a perspectiva teórica essa
questão tem sido mal trabalhada pelos teóricos do direito constitucional. Por outro
lado, porém, do ponto de vista da história do direito, é necessário recuperar a
sofisticação dos meios técnicos jurídicos desenvolvidos por certos atores para dar
conta de materializar o projeto de país e de Constituição por eles defendidos.

2. Contextualização mais geral

Na virada da década de 1920 para a década de 1930, o Brasil passou


por intensas transformações. Tratou-se, especialmente, da transição de um país
essencialmente rural para um país que se pretendia mais moderno e urbano6. Não
custa destacar que o texto de abertura da famosa coletânea de textos organizada
na década de 1920 por Vicente Licínio Cardoso, chamada Às Margens da Repúbli-
ca, destacava o tema da educação como fundamental para essa “modernização”
social e política. O texto de Carneiro Leão clamava por uma urgente e necessária
modernização e ampliação do ensino público do país7. É também nessa coletâ-
nea que se encontra o famoso texto de Oliveira Vianna criticando o idealismo
da Constituição de 1891 e seu descolamento da realidade brasileira8. Desde os
debates da revisão constitucional no início da década de 1926, referente ainda
ao texto constitucional de 1891, já circulavam ideias de que era preciso pensar
a constituição como instrumento de promoção do desenvolvimento econômico
e social do país.

Vale destacar que, ainda na década de 1920, alguns estados da federação


passaram a investir de modo mais significativo na estrutura educacional e no
combate ao analfabetismo. Dentre esses estados, podemos chamar atenção para
os casos de São Paulo, o Distrito Federal, Ceará, Minas Gerais e Bahia9. Foi nesse
período que se articulou pela primeira vez de modo mais organizado uma asso-

6 GOMES, Angela de Castro. Introdução. In: História do Brasil Nação 1808-2010. Volume 4 (1930-1964). Rio
de Janeiro: Ed. Objetiva; Fundação Mapfre, 2013, p. 32.
7 LEÃO, Antonio Carneiro. Os deveres das novas gerações brasileiras. In: À margem da história da República.
Introdução de Alberto Venâncio Filho. Vicente Licínio Cardoso (org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1981.
8 VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição In: À margem da história da República. Introdução de Alberto
Venâncio Filho. Vicente Licínio Cardoso (org.). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.
9 NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. 3ª ed. São Paulo: Editora Universidade de São
Paulo, 2009.

317
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

ciação de educadores brasileiros a fim de estimular uma interlocução a respeito


dessas intervenções na educação pública.

Já na década de 1930, uma das primeiras medidas do governo provisório


de Getúlio Vargas foi criar o Ministério da Educação e da Saúde. Dessa forma, o
tema da educação que era praticamente de responsabilidade exclusiva dos estados,
passa a ser tratado também na esfera federal por um ministério específico para
a área. O jurista Francisco Campos assume o Ministério e em 1931 promove as
chamadas reformas da educação, regulando questões referentes, principalmente,
ao ensino secundário e ao ensino superior. A gestão de Francisco Campos no
ministério apontava para uma maior centralização, atribuindo-se à União um papel
mais ativo na regulação do ensino, bem como em sua fiscalização.

Francisco Campos, como Ministro da Educação, buscou conciliar interesses


distintos com suas reformas. De um lado, quis agradar o grupo dos católicos,
inserindo a previsão do ensino religioso facultativo. No entanto, os católicos do
Rio de Janeiro se decepcionaram com as reformas de Campos. O grupo que se
reunia no Centro Dom Vital já se mostrou insatisfeito com algumas mudanças,
pois provavelmente esperavam um aceno ainda mais contundente em prol das
ideias católicas sobre o ensino no país.

Campos também quis atender algumas demandas dos chamados es-


colanovistas, que eram os educadores adeptos de uma pedagogia progressista
(Escola Nova). Os integrantes da Associação Brasileira de Educação (ABE) eram
em grande parte entusiastas desses novos modelos pedagógicos e era preciso
agradar esse grupo também. Francisco Campos trazia em seu discurso elementos
do escolanovismo e já havia colocado em prática partes de uma pedagogia mais
progressista quando era responsável pela educação do estado de Minas Gerais na
década de 1920. Não obstante, representantes da ABE também ficaram insatisfeitos
com as reformas promovidas.

Essa tensão em relação às ações do Ministério tinha repercussões externas


também. Ainda no início da década de 1930, os católicos se retiraram da Asso-
ciação Brasileira de Educação, por discordâncias insuperáveis. Os embates durante
a Assembleia Constituinte de 1933 e 1934 no campo da educação normalmente
são retratados, não sem razão, como uma disputa entre católicos e educadores
escolanovistas concentrados na Associação Brasileira de Educação (ABE). A Liga
Eleitoral Católica (LEC), como movimento suprapartidário, levou para o centro
dos debates temas como a possibilidade do ensino religioso nas escolas públicas,
saindo vitoriosa na maioria dessas disputas.

318
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

1. Momento anterior à Assembleia Constituinte de 1933/1934

Os atores que se engajaram no debate não eram apenas intelectuais


preocupados com a organização federal do Estado, mas eram também atores
políticos interessados pragmaticamente na manutenção e ampliação de suas esferas
de poder. Portanto, é preciso observar duas camadas nas posições apresentadas
pelos atores envolvidos nesse debate: (i) a investigação dos modelos de federalismo
e repartição de competências apresentados; e (ii) os interesses políticos conjun-
turais que estariam por detrás das posições afirmadas durante a Constituinte.
Dessa sobreposição de visões mais pragmáticas ou mais abstratas a respeito da
distribuição de competências no campo da educação, pretende-se demonstrar a
complexidade dos enfrentamentos durante a Constituinte, bem como o caráter
contingente das disputas que moldaram aquele texto constitucional.

Apesar de o recorte temporal da pesquisa englobar o período de ela-


boração da Constituição, entre 1932 e 1934, buscou-se analisar não apenas as
discussões entre os parlamentares constituintes, mas também as participações de
intelectuais e grupos políticos que tentaram interferir na elaboração da nova Cons-
tituição. Portanto, os Anais da Constituinte de 1933 e 1934 não foram as únicas
fontes primárias analisadas. As atas da subcomissão do Itamaraty, por exemplo,
figuram como importantes fontes desses debates fora da Assembleia Constituinte10,
especialmente para se averiguar as posições de destacados intelectuais à época
como João Mangabeira, José Américo de Almeida, Oswaldo Aranha, entre outros.
Por mais que defendessem uma intervenção maior do Estado nas áreas sociais,
com maiores responsabilidades para a União, as propostas sobre como fazê-lo
se diferenciavam significativamente.

O tema da educação entra em pauta a partir da leitura de uma carta de


Miguel Couto, na 4ª sessão11, encaminhada ao Presidente da Comissão Afrânio de
Mello Franco. O professor Miguel Couto chamava atenção para a importância do
tema da educação para o desenvolvimento do país e destacava três propostas:
(i) obrigatoriedade do ensino primário para crianças entre 7 e 14 anos; (ii) Des-
tinação de 20% a 25% das rendas da União, dos Estados e Municípios à “cultura
do povo”; e (iii) Estados responsáveis pela educação nas capitais, municípios
responsáveis pela educação em suas sedes e a União responsável pela educação
nas zonas rurais do território nacional.

A destinação de um percentual específico para a educação não era um


tema novo. No Decreto 20.348 de 29 de agosto de 1931, também conhecido

10 AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a Constituição Nacional. Brasília: Conselho Editorial do
Senado Federal, 2004.
11 AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a Constituição Nacional. Brasília: Conselho Editorial do
Senado Federal, 2004, p. 54.

319
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

como “Código dos Interventores”, o Governo Provisório de Getúlio Vargas já havia


fixado percentuais para gastos com educação:
Art. 13. A administração dos Estados e dos municípios obedecerá aos
seguintes preceitos, mantida a legislação em vigor, que os não contrariar:
VI, os Estados devem empregar, no mínimo, 40 % de sua renda na ins-
trução primária. A criação de outras Secretarias obedecerá ás seguintes
proporções: duas, para os Estados de renda compreendida entre 10 e
20.000;000$0; três, para os de renda compreendida entre 20 e 50.000:000$0;
quatro para os de renda compreendida entre 50 e 100.000:000$0; cinco
para os de renda superior a 100.000:000$0.
Art. 22. O Estado poderá exigir de cada município até 15% de sua recei-
ta arrecadada para atender a serviços de segurança, saúde e instruções
públicas, quando ministrados exclusivamente pelo Estado.

Assim, a primeira discussão da referida comissão sobre o ensino no Brasil


e o tratamento constitucional da educação pública se voltou para a propos-
ta apresentada pelo professor Miguel Couto a respeito da destinação de um
percentual fixo para a educação no âmbito da União, estados e municípios. O
presidente da comissão, Afrânio de Mello Franco, sugeriu que o percentual a ser
fixado não deveria constar do texto constitucional, mas sim de proposta legislativa
a ser discutida pelo Parlamento após a aprovação da nova Constituição. Já João
Mangabeira acatou a sugestão de Miguel Couto, sugerindo apenas a redução do
percentual de 20% para 10% (AZEVEDO, 2004, p. 55-56). A discussão foi adiada
dada a impossibilidade de uma convergência entre os membros da comissão.

Na 21ª sessão, os integrantes da comissão debateram as sugestões apre-


sentadas pela Federação Nacional das Sociedades de Educação, uma associação
fundada em 1929 por Vicente Licínio Cardoso após desentendimentos com a
Associação Brasileira de Educação sobre a fundação de uma Federação que con-
gregasse os departamentos estaduais da ABE12. A Federação defendia ideias que já
circulavam entre os membros da comissão, como, por exemplo, a competência da
União para fixar as diretrizes gerais da educação em todo o país e a necessidade
dos entes federados contribuírem com 10% da renda resultantes dos impostos
para “manutenção e desenvolvimento da obra educacional”13.

Na 41ª sessão, o tema da educação viria à tona novamente, dessa vez


associado à discussão sobre as competências do município. Solano da Cunha
propôs um artigo para da Constituição no seguinte sentido: “nenhum município

12 NERY, Ana Clara Bortoleto. A Sociedade de Educação de São Paulo: embates no campo educacional (1922-
1931). São Paulo: Ed. UNESP, 2009.
13 AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a Constituição Nacional. Brasília: Conselho Editorial do
Senado Federal, 2004, p. 54, p. 388.

320
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

poderá ser constituído sem renda suficiente para manter os serviços de ensino
municipal, limpeza pública e conservação de estrada de rodagem”14.

A subcomissão do Itamaraty elaborou um anteprojeto oficial de Cons-


tituição. Não obstante, outros grupos foram responsáveis por elaborar também
propostas de textos. A Associação Brasileira de Educação - ABE chegou a publi-
car um livro com propostas para a nova Constituição15. O livro atribuía grande
destaque para a repartição de competência em matéria de educação. Na quinta
conferência da ABE, foi discutida entre os integrantes a seguinte tese: “quais as
atribuições respectivas dos governos federal, estaduais e municipais, relativamente
à educação”. Assim, a ABE apresentou a seguinte conclusão:
Depois de estudos demorados, veio a prevalecer na Comissão a doutrina
de que à União, como poder central, deveria caber a função de elaborar
um plano geral de educação, para todo o país, plano que obedeceria
a característicos fixados pela própria Constituição e teria flexibilidade
e extensão necessárias para permitirem o livre desenvolvimento de ini-
ciativas regionais e locais e a adaptação às condições diverssíssimas do
meio brasileiro.16

Sobre o papel da União, ressaltava-se que:


Resta examinar o ponto de vista em que se colocaram os autores do
anteprojeto entregando à União a competência, tão somente, da fixação
de um plano educacional, cuja execução deverá coordenar e estimular,
exercendo uma ação supletiva, onde se fizer preciso, por deficiência de
meios e de iniciativas.

Portanto, a União teria o papel de redigir um plano nacional de educação


e atuaria de forma supletiva no âmbito da competência dos estados. Além disso,
a União teria um papel fundamental de produção de pesquisas e estudos sobre
a educação brasileira.

Assim, a tese vitoriosa da Associação buscava atribuir aos Estados completa


autonomia na organização e administração dos sistemas educativos locais17. Os
principais argumentos para defender essa tese foram os seguintes: (i) necessidade
de adaptação regional e local dos diferentes sistemas educativos; (ii) “necessidade
de estimular o sentimento de responsabilidade”, no sentido de que a suposta
uniformização federal do ensino viria retirar “a vitalidade” das instituições de
ensino que “vegetariam, por aí, sob a compreensão uniformizante e longínqua

14 Ibid, p. 820.
15 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema educacional e a nova Constituição. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1934.
16 Ibid, p. 12.
17 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO. O problema educacional e a nova Constituição. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1934, pp. 14-15.

321
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

do poder federal”; (iii) necessidade de permitir a livre experimentação e evitar a


pura imposição legal.

Por outro lado, foram explícitos na indicação de que a descentralização não


poderia ser radical a ponto de entregar essa tarefa educacional aos municípios. O
argumento, de cunho pragmático, era de que muitos municípios brasileiros não
tinham condições práticas de assumir essa responsabilidade. Apenas aos municí-
pios com renda e adequado “desenvolvimento cultural” poderiam eventualmente
organizar seus sistemas educativos por delegação dos estados.

Sobre a transição para esse novo modelo, a proposta dos associados, com
base na ideia de competência suplementar, foi a seguinte:
(...) ficará a União livre para deliberar sobre os próprios estabelecimentos
que mantêm presentemente. Poderá conservá-los no caráter de suplemen-
tos aos sistemas educativos ou entregá-los aos Estados, acompanhados
das subvenções necessárias, conforme lhe pareça mais oportuna ou mais
conveniente.18

A Associação Brasileira de Educação, no entanto, não deve ser vista como


um grupo homogêneo. Essa apresentação do anteprojeto da Constituição foi es-
crita e assinada pelo educador Anísio Teixeira. É de se destacar, nessa justificativa
da ABE, a menção à pesquisa no campo da educação, tema que era muito caro
a Anísio. Verifica-se também que a comissão de dez integrantes apontada para
redigir o anteprojeto era presidida por ele, demonstrando a extensão do papel
de liderança desempenhado pelo educador baiano.

Vale destacar, no entanto, que Anísio era à época Secretário de Instrução


Pública do Distrito Federal (referente, à época, à cidade do Rio de Janeiro). Tendo
em vista que é muito provável que Anísio tenha assumido essa posição de lide-
rança na ABE, não se pode olvidar que era de seu interesse atribuir aos estados
e ao Distrito Federal um papel preponderante. A proposta para a Constituição
redigida pela ABE deve ser encarada também como um processo de disputa
que já estava em pauta na então capital federal em relação à competência para
gerir escolas e universidades. Por ser a capital federal, o Rio de Janeiro contava
com algumas escolas públicas secundárias e com uma universidade, todas geridas
pelo governo federal. Era do interesse do então Secretário de Educação assumir
a gestão dessas escolas no lugar da União.

4. Disputas no decorrer da Assembleia Constituinte de 1933/1934

Ainda no momento de abertura da Assembleia Constituinte, o então


Presidente da República Getúlio Vargas fez questão de mencionar o tema da

18 Ibid, p. 16.

322
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

educação em seu discurso. Após lançar algumas ponderações a respeito do


Estado Moderno, que deveria intervir mais em assuntos econômicos e sociais,
fez uma breve análise da gestão de Francisco Campos a frente do Ministério da
Educação19. Vargas reconhecia o avanço nesse tema em alguns estados ainda na
década de 1920, mas apontava que nada era feito de “forma orgânica”.

Desde o início de seu discurso, Vargas chamou atenção para o problema


do financiamento da educação, mais uma vez ressaltando os problemas do pe-
ríodo anterior, como o excesso de endividamento dos estados e a falta de zelo
para com a educação:
É oportuno observar. Aos Estados coube velar pela instrução primária,
quase todos contraíram vultosos empréstimos, acima das suas possibili-
dades financeiras. Da avalanche de ouro com que muitos de abarrotaram,
abusando do crédito, qual o numerário distraído de ampliar ou aperfeiçoar
o ensino? Esbanjavam-no em obras suntuárias, em organizações pomposas
e, às vezes, na manutenção de exércitos policiais esquecidos de que o
mais rendoso emprego de capital é a instrução. Sem a necessidade de
castos planos de soluções absolutas, porém, impraticáveis na realidade,
procuremos assentar em dispositivos eficientes e de aplicação possível
todo o nosso aparelhamento educador.20

Vargas destacou, então, que o decreto do governo provisório que regu-


lamentava a atividade dos Interventores nos estados já trazia a previsão de um
montante destinado à educação:
Atingimos ao ponto onde os pessimistas habituaram-se a encontrar dificul-
dades de toda sorte. Refiro-me aos recursos indispensáveis para organizar
e manter semelhante aparelho educativo, cujo desenvolvimento pode ser
graduado de acordo com as possibilidades financeiras do país. Nesse
terreno, mais do que em qualquer outro, convém desenvolver o espírito
de cooperação, congregando os esforços da União, dos Estados e dos Mu-
nicípios. Quando todos, abstendo-se de gastos suntuosos e improdutivos,
destinarem elevada ao máximo uma percentagem fixa de seus orçamentos
para prover as despesas da instrução, teremos dado grande passo para
a solução do problema fundamental da nacionalidade. Comprovando o
interesse do Governo Provisório a respeito, é oportuno ressaltar que o
decreto destinado a regular os poderes e atribuições dos Interventores
determina que os Estados empreguem 10% no mínimo das respectivas
rendas na instrução primária e estabelece a faculdade de exigirem até
15% das receitas municipais para aplicação nos serviços de segurança,
saúde e instrução públicas, quando por eles exclusivamente atendidos.21

19 ANAIS DA ASSEMBLEIA CONSTITUINTE 1933-34, vol. 1, p. 105.


20 Ibid, p. 106.
21 Ibid, p. 107.

323
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

Por fim, Vargas disse que, uma vez organizada a cooperação entre os
poderes públicos federais, estaduais e municipais, restaria à União a tarefa de
“organizar, superintender e fiscalizar” os serviços de educação nacional.

O anteprojeto da Constituição apresentado também nesse momento


inicial da Assembleia Constituinte trazia uma síntese das discussões da mencio-
nada Subcomissão do Itamaraty. O anteprojeto continha o Título XI dedicado
somente à “cultura e do ensino” e apontava a educação como de competência
concorrente entre União, estados e municípios. À União caberia elaborar um
plano geral de educação, além de implementar a fiscalização.

Predominaram no decorrer da Constituinte debates sobre o ensino leigo


e o ensino religioso, mais uma vez fazendo eco à disputa que se travava entre os
educadores católicos e os educadores escolanovistas. Aos poucos foi se firmando
o entendimento de que o governo federal deveria uniformizar regras (“centralização
doutrinária”, segundo o Ministro Juarez Távora), enquanto os estados deveriam
executar essas regras em seus territórios (“descentralização administrativa”).

O silêncio da Liga Eleitoral Católica no debate da divisão de competências


na educação não deve ser interpretado como uma omissão. É preciso averiguar
o cálculo político feito pelo grupo dos católicos em relação à centralização e a
descentralização e qual modelo beneficiaria de modo mais imediato seu programa,
que tinha como um dos seus principais objetivos exercer maior influência nos
colégios públicos de modo geral.

O texto final da Constituição de 1934, se comparado ao texto da Consti-


tuição anterior, de 1891, trouxe modificações significativas no campo da educação
e da repartição de competências nessa área. De acordo com o artigo 15122, a
competência para organizar e manter sistemas educativos seria dos estados e do
Distrito Federal. À União caberia fixar diretrizes gerais e mais um amplo rol de
competências:
Art 150 - Compete à União:
a) fixar o plano nacional de educação, compreensivo do ensino de todos
os graus e ramos, comuns e especializados; e coordenar e fiscalizar a sua
execução, em todo o território do País;
b) determinar as condições de reconhecimento oficial dos estabeleci-
mentos de ensino secundário e complementar deste e dos institutos de
ensino superior, exercendo sobre eles a necessária fiscalização;
c) organizar e manter, nos Territórios, sistemas educativos apropriados
aos mesmos;

22 Constituição de 1934, art. 151 - Compete aos Estados e ao Distrito Federal organizar e manter sistemas
educativos nos territórios respectivos, respeitadas as diretrizes estabelecidas pela União.

324
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

d) manter no Distrito Federal ensino secundário e complementar deste,


superior e universitário;
e) exercer ação supletiva, onde se faça necessária, por deficiência de
iniciativa ou de recursos e estimular a obra educativa em todo o País,
por meio de estudos, inquéritos, demonstrações e subvenções.
Parágrafo único – O plano nacional de educação constante de lei federal,
nos termos dos arts. 5º, nº XIV, e 39, nº 8, letras a e e , só se poderá
renovar em prazos determinados, e obedecerá às seguintes normas:
a) ensino primário integral gratuito e de freqüência obrigatória extensivo
aos adultos;
b) tendência à gratuidade do ensino educativo ulterior ao primário, a fim
de o tornar mais acessível;
c) liberdade de ensino em todos os graus e ramos, observadas as pres-
crições da legislação federal e da estadual;
d) ensino, nos estabelecimentos particulares, ministrado no idioma pátrio,
salvo o de línguas estrangeiras;
e) limitação da matrícula à capacidade didática do estabelecimento e
seleção por meio de provas de inteligência e aproveitamento, ou por
processos objetivos apropriados à finalidade do curso;
f) reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino somente
quando assegurarem. a seus professores a estabilidade, enquanto bem
servirem, e uma remuneração condigna.

Vale destacar que o texto constitucional final positivou a regra debatida


de fixar percentuais de gastos mínimos em educação em seu art. 156: “A União e
os Municípios aplicarão nunca menos de dez por cento, e os Estados e o Distrito
Federal nunca menos de vinte por cento, da renda resultante dos impostos na
manutenção e no desenvolvimento dos sistemas educativo”.

O resultado final não agradou a todos. Para o educador baiano Anísio


Teixeira, que no período da Constituinte de 1933 a 1934 ocupava o cargo de
Diretor-Geral da Instrução Pública na cidade do Rio de Janeiro, os debates cons-
tituintes sobre educação foram realizados de forma casuística23. As posições dos
constituintes teriam, segundo Anísio, refletido interesses políticos mais imediatos
como a formação de uma base eleitoral de cunho clientelista, deixando de lado
a oportunidade histórica de se organizar um bom e eficiente sistema nacional
de educação:
O problema da educação nacional não logrou, apesar da oportunidade
única de se votar o capítulo da Constituição relativo a essa matéria,
não logrou, já o dissemos, ser focalizado na sua verdadeira significação
e nos seus devidos termos. Mais uma vez, problemas imediatos e locais
23 TEIXEIRA, Anísio. A educação e a Constituição Federal. In: Educação para a democracia: introdução à
administração educacional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 251-254.

325
EDUCAÇÃO E(M) DISPUTA: DISCUSSÕES SOBRE A REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS
NA EDUCAÇÃO DURANTE A CONSTITUINTE DE 1933-1934

e interesses pela ordem de coisas anterior prevaleceram, impedindo que


o problema fosse reposto em condições de nos dar esperanças de vê-lo
gradualmente resolvido.24

Anísio se referia ao sistema de repartições de competência no âmbito da


educação pública. Para ele, a crítica exacerbada ao chamado “ultrafederalismo” da
Primeira República por meio da defesa das prerrogativas da União, bem como a
defesa cega do poder dos estados, para reger a educação local, representavam
apenas disputas políticas orientadas por interesses específicos.

Considerações finais

Como resultados parciais dessas reflexões, é possível apontar, de forma


preliminar, a existência de duas posições principais: (i) uma que reivindicava um
papel mais ativo da União, inclusive assumindo a gestão de escolas e universida-
des; (ii) outra que reivindicava para os estados e municípios a competência para
cuidar do ensino primário, secundário e superior, restando à União apenas um
papel de coordenadora do sistema educacional como um todo.

As disputas em torno da Constituição culminaram em um texto que


privilegiou a centralização do poder, fortalecendo a União em desfavor dos
Estados-Membros. Todavia, essa afirmação deve ser matizada por dois motivos.
O primeiro é a curta vigência da Constituição de 1934. Em razão do pequeno
período em que esteve vigente, não se pode afirmar com segurança que houve,
efetivamente, um engrandecimento da União em detrimento dos Estados. Além
disso, conforme apontado acima, já durante o Governo Provisório algumas das
medidas adotadas na constituinte em matéria de educação já eram praticadas
antes da vigência da Constituição.

No mesmo sentido que Bercovici25, é possível concluir que o texto final


da Constituição de 1934 referendou várias das políticas que já vinham sendo
implementadas pelo governo provisório, especialmente no sentido de atribuir
à União a competência de regulamentar e fiscalizar as instituições de ensino
secundário e superior. Porém, o quadro é mais complexo se analisada com mais
atenção a atuação de certos atores. A Liga eleitoral católica parecia se beneficiar
circunstancialmente de uma aproximação com elementos do governo federal, o
que justificaria o fato da LEC não defender a descentralização da educação naquele
momento. Os intelectuais da subcomissão Itamaraty, por outro lado, defenderam
a ampliação do papel da União na construção dos sistemas educacionais, e com
esse intuito instituíram mecanismos para efetivá-la. Foi a subcomissão que manteve

24 Ibid, p. 251.
25 BERCOVICI, Gilberto. Tentativa de instituição da democracia de massas no Brasil: instabilidade constitucional e
direitos sociais na Era Vargas (1930-1964). In: FONSECA, Ricardo Marcelo e SEELAENDER, Airton (Orgs.) Historia
do Direito em Perspectiva: do Antigo Regime à Modernidade. Curitiba: Juruá Editora, 2009.

326
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

no projeto a ideia de constitucionalizar a regra que fixava percentuais mínimos


para gastos com educação.

De outro lado, certos grupos viam com maior desconfiança essa maior
responsabilidade da União na área educacional. A Associação Brasileira de Educação,
por exemplo, foi contra a repartição de competências no campo da educação na
Constituição de 1934. Anísio Teixeira, assumindo certa liderança na Associação,
reclamou especialmente do casuísmo das decisões, dizendo que faltou ao cons-
tituinte pensar um “sistema” de educação. Para ele, a Constituição não deixava
claro qual papel a União deveria desempenhar. No entanto, a própria posição do
Anísio Teixeira possuía, em certa medida, um caráter “casuísta”, uma vez que ele
era o Secretário de Educação do Distrito Federal e buscava obter maior controle
das esferas de ensino na capital.

Portanto, a análise não apenas do texto constitucional final, mas também


das discussões que o produziram, é fundamental para uma compreensão dos
valores e dos interesses políticos que moldaram a estrutura do ensino público no
país naquele contexto. Investigar o desenho do federalismo, nesse caso, mostra-se
particularmente importante ao demonstrar que as posições dos atores envolvem
projetos de Estado distintos, ao mesmo tempo que evidenciam disputas políticas
concretas e pontuais a respeito do arranjo institucional. Ao analisar a constituição
dos sistemas de educação e a repartição de competências da Constituição de
1934, é possível recuperar o caráter dinâmico e concreto dos conflitos subjacentes,
os quais muitas vezes são aparentemente neutralizados quando da promulgação
da Constituição, mas que na verdade se rearticulam no momento seguinte na
forma de disputas interpretativas acerca dos seus sentidos.

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327
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328
Grupo de Trabalho

DIREITO E EXPANSÃO DA ESTATALIDADE


IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO


E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUN-
DA METADE DO SÉCULO XIX

TXAPUÃ MENEZES MAGALHÃES


Universidade Federal da Bahia

Resumo
Ao longo do Segundo Reinado, o Conselho de Estado foi chamado a
se manifestar sobre matérias importantes para a construção e o destino do
Império brasileiro. Além disso, por suas seções passaram inúmeras consultas e
dúvidas relativas ao cotidiano da administração policial e judiciária, especialmente
na sua Seção de Justiça. Dentre as matérias debatidas nessa Seção, esteve a
questão relativa à entrada de pessoas negras no país, tendo os conselheiros
firmado posição contrária, com base em interpretação controversa do artigo
7º da Lei de 7 de novembro de 1831. Assim, mostra-se necessário estudar os
pareceres sobre o tema, bem como outros que tratam da referida lei, para
compreender a atuação dos conselheiros na defesa da estabilidade da ordem
social escravista. No presente trabalho, foram analisados alguns pareceres sobre
a lei, de modo a perceber o discurso da Seção de Justiça sobre a manutenção
da ordem social escravista, especialmente no que se refere à proibição da
entrada de negros e negras no Brasil Imperial. Assim, fez-se possível também
compreender a própria atuação dos conselheiros, juristas estadistas, em matéria
delicada para a administração do Império.

1. Introdução

O Segundo Conselho de Estado no Brasil Império foi instituição chave


para a construção e manutenção da ordem durante o Segundo Reinado. For-
mado, majoritariamente, por bacharéis durante toda a sua existência, o Conselho
foi composto por muitas figuras de destaque da elite política do período, cuja
carreira na burocracia imperial foi marcada pela profissionalização e experiência
em diversos cargos1.

Pelo Conselho passaram as questões políticas mais importantes do Segun-


do Reinado, sendo que a atuação dos conselheiros foi orientada à garantia da
estabilidade do regime imperial e ao monopólio estatal centralizado2. O Conselho
1 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem; teatro das sombras. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013, p. 355-390. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A Velha Arte de Governar – Um estudo sobre
política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 99-166.
2 VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura jurídica e a arte de governar: algumas hipóteses investigativas sobre

331
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

era composto em seções, dentre as quais se destaca a Seção de Justiça, a qual,


segundo José Reinaldo de Lima Lopes, foi espaço privilegiado na construção de
uma cultura jurídica no Brasil oitocentista.3

Na Seção em questão, inúmeras matérias foram colocadas sob apreciação,


destacando-se conflitos de atribuição e jurisdição, controle de constitucionalidade,
consultas do imperador e resolução de dúvidas das autoridades imperiais na ati-
vidade judicial e policial cotidiana4, através das quais, muitas vezes, eram emitidos
avisos para orientar a atuação da burocracia. Percebe-se, assim, a relevância da
Seção na consolidação da organização administrativa e judicial do Brasil Império.

Dentre as questões eventualmente colocadas aos conselheiros, havia a


relativa à entrada de pessoas negras estrangeiras no Brasil. Sabe-se que, em 7 de
novembro de 1831, foi editada a Lei Diogo Feijó, a qual proibia oficialmente o
tráfico de escravos no país. Apesar de, sobretudo a partir de 1834, não ter sido
cumprida em sua finalidade precípua5, o seu artigo 7º foi efetivado (e ampliado)
pelas autoridades no Brasil imperial6. Esse artigo previa a proibição da entrada
de pessoas libertas no país, determinando às autoridades responsáveis a imediata
deportação.

No curso do século XIX, há notícias de inúmeras situações em que as


autoridades policiais barraram a entrada de negros e negras no Brasil imperial
com o argumento da vigência da Lei de 7 de novembro de 18317, inclusive com
base no aviso nº 118 de 9 de maio de 1835, expedido pelo Ministério da Justiça,
com o seguinte teor:
Tendo o Governo Imperial de fazer cumprir religiosamente a Lei de 7 de
novembro de 1831, acaba de expedir Circulares a todos os Encarregados
de Negócios e Cônsules Brasileiros, residentes em país estrangeiro, para
participarem dos respectivos Governos, e publicarem pelas folhas, que
aos Chefes de Polícia do Império se tem determinado que não consin-
tam desembarcar, ou residir em qualquer Província dele, homem algum

a Seção de Justiça do Conselho de Estado. Revista de História da USP, São Paulo, n. 5, 2007.
3 LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo de Delfos – O Conselho de Estado no Brasil Império. São Paulo:
Editora Saraiva, 2010.
4 Ibid., p. 160-177.
5 Há larga historiografia sobre a trajetória da Lei de 1831, desde o início, em que as autoridades imperiais
ensaiaram um cumprimento da lei, passando pela época do contrabando sistêmico, até os últimos anos do
escravismo no Brasil, quando a lei “renasceu” nas ações de liberdades propostas por escravizados e seus curadores.
A esse respeito, ver, especialmente: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres – A abolição do tráfico de
escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017; PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império
do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011; e CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão:
ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
6 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 45-81. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 211-225.
7 Ibid.

332
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

de cor, que chegue de fora do Brasil, quando no seu passaporte não


venha declarada a sua qualidade de ingênuo, e mesmo assim abonada
essa qualidade por aqueles Cônsules, ou Encarregados de Negócios, que
existirem nos lugares de onde vierem [...]8.

Em algumas ocasiões, todavia, seja por dúvidas das autoridades policiais a


respeito da aplicabilidade da lei sobre o caso concreto, seja por provocação das
pessoas que estavam sendo objeto da fiscalização na entrada do país, a Seção
de Justiça do Conselho de Estado foi chamada a se manifestar sobre a situação,
determinando os caminhos da atuação policial.

Desse modo, as decisões da Seção de Justiça a respeito da entrada de


negros e negras libertas (e livres) no Brasil imperial, sob o fundamento da proibi-
ção prevista no artigo 7º da Lei de 7 de novembro de 1831, podem ser espaços
privilegiados para compreender o discurso do Conselho acerca da manutenção
da ordem pública, bem como o trabalho do órgão na orientação às autoridades
policiais e judiciárias sobre a política a ser executada no Império. Além disso, serve
de estudo na atuação da Seção de Justiça na aplicação ambígua da referida lei e
na existência de um controle racial na entrada de pessoas livres no Brasil imperial,
com foco na manutenção da ordem pública escravista.

No presente trabalho, partiremos de um parecer da Seção de Justiça


do Conselho de Estado de 1868, em que os conselheiros reiteraram a proibição
da entrada de “pessoas de cor” no Brasil. Após, discutiremos a instituição e sua
atuação sobre a Lei de 7 de novembro de 1831, mesmo quando não debatido
o seu artigo 7º. Assim, podemos perceber o discurso dos conselheiros sobre a
lei, colocando em perspectiva o parecer de 1868. Ao final, procuraremos refletir
sobre certa continuidade no discurso do órgão em torno da referida lei.

2. A consulta de 11 de maio de 1868 e a reafirmação da proibição da


entrada de pessoas negras no Brasil Imperial

Em maio de 1868, chegou à Seção de Justiça do Conselho de Estado dú-


vida das autoridades policiais da Corte e do Ministério dos Estrangeiros, suscitada
pela proibição da entrada de um marinheiro, de nome Brown, “homem de cor
e súdito inglês”, que estava a bordo da sumaca argentina “Luisita”.

Ao aportar na Corte, o referido marinheiro foi impedido de desembarcar


livremente, sob o fundamento de que era proibida a entrada de “pessoas de cor”
no Brasil. A legação argentina, obrigada a prestar fiança e a se responsabilizar pela
reexportação do marinheiro, diante da situação, argumentou que a Lei de 7 de

8 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Coleção das Decisões do Império do Brasil (1835). Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1864, p. 89. A grafia dos documentos citados nesta dissertação foi atualizada, mantendo-
se, quando possível, as formas originais dos nomes próprios e dos títulos das obras.

333
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

novembro de 1831 estava em desuso e que, de toda forma, não se aplicava ao


caso, considerando que Brown era pessoa livre, e não liberto, como dizia o artigo
7º da referida legislação, que tinha o seguinte teor: “Não será permitido a qualquer
homem liberto, que não for brasileiro, desembarcar nos portos do Brasil debaixo
de qualquer motivo que seja. O que desembarcar será imediatamente reexportado”.

O Ministro dos Estrangeiros, respondendo à legação, destacou que, um


ano antes, o Conselho de Estado já havia se manifestado sobre caso semelhante,
deixando claro que “o Governo Imperial devia impedir o desembarque de homens
e mulheres de cor procedentes do estrangeiro, livres ou libertos”9. Observou que,
no Brasil, “as leis ou estão em vigor e devem ser religiosamente observadas, ou
são derrogadas pelo Poder competente”10.

A legação argentina ainda tentou argumentar que a lei era muito clara
e só falava em liberto, e não em livre. Assim, inexistindo prova de que Brown
alguma vez tivesse sido escravo, não havia por que impedi-lo de ingressar no
país. O Ministro dos Estrangeiros, então, explicou que a expressão usada pela
lei – liberto – era, na verdade, antítese de escravo. Mais, observou que o caso
de Brown era idêntico ao debatido um ano antes: o de uma mulher negra que
acompanhava um estadunidense – era ingênua, mas de cor; logo, não poderia
ingressar no Brasil.

Desse modo, percebe-se que, mesmo o Aviso nº 118 de 9 de maio de


183511, citado no tópico anterior, perdia sua força normativa, uma vez que, ainda
que a pessoa de cor comprovasse que tivesse nascido livre, estaria proibida de
entrar no país. O critério proibitivo, assim, deixava de ser a condição social da
pessoa – liberta – para se tornar unicamente racial – de cor.

Wlamyra Albuquerque12 e Sidney Chalhoub13 já tiveram a oportunidade


de destacar como os conselheiros modificaram intencionalmente o conteúdo
da palavra liberto, porquanto, na literatura e na compreensão das autoridades,
nunca esse termo era compreendido como antítese de escravo. Sabia-se muito
bem que liberto, na forma como prevista no artigo 7º da Lei de 7 de novembro
de 1831, visava apenas e tão somente à proibição da entrada de pessoas que já

9 CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da seção de justiça do
Conselho de Estado. Anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo Conselho, até hoje. Rio de Janeiro: B.
L. Garnier Livreiro Editor, 1884, p. 1378.
10 Ibid., p. 1378.
11 Nesse parecer de 1868 ora debatido, aponta-se que foi expedido novo aviso, de 4 de maio de 1867, em que
se consolidava a interpretação destacada. Infelizmente, ainda não foi possível localizá-lo, mesmo nas publicações
oficiais dos atos, decisões e avisos do Governo.
12 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 45-81.
13 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1ª edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, p. 211-225.

334
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

haviam sido escravizadas – para evitar que o fossem novamente –, ou mesmo


para evitar que os traficantes usassem do expediente de traficar escravos com
documentos falsificados em que se constava a informação de que eram libertos.

Com efeito, na discussão da lei, em 1831, o Parlamento debateu a situa-


ção de contrabando que se afigurava recorrente, em que os traficantes inseriam
escravizados no país sob o fundamento de que eram libertos14. Assim, o obje-
tivo do artigo 7º era evitar que se usasse tal expediente e, por consequência, a
escravização ilegal; ainda, o dispositivo servia para impedir o ingresso de libertos
considerados “indesejados”. Liberto, assim, não era compreendido como antítese de
escravo, nem como pessoa de cor livre. Ao fazer tal interpretação, os conselheiros
não só subvertiam intencionalmente o sentido da expressão liberto, contida tanto
na lei em questão como na própria Constituição Imperial de 1824, como raciali-
zavam o discurso em torno da proibição da entrada de pessoas negras no país15.

Wlamyra Albuquerque já mostrou como houve uma racialização dos


discursos nos últimos anos da escravidão no país e essa interpretação, consagrada
pelo Conselho de Estado, é mais um elemento a demonstrar tal fato16. Para além
desse aspecto – muito importante – é preciso compreender outro fator que
influenciou e sempre esteve na pauta dos conselheiros: a manutenção da ordem.

Esta preocupação com a ordem social escravista se manifesta mais clara-


mente no caso citado pelo Ministro dos Estrangeiros, quando respondeu à legação
argentina. Em Resolução de 30 de novembro de 1866, o Conselho de Estado foi
instado a se manifestar sobre a entrada de uma “mulher de cor negra” que tinha
vindo ao Brasil em companhia de um imigrante norte americano. Na ocasião, após
ver sua companhia ser impedida de ingressar no país, o estadunidense tentou,
de todas as formas, garantir a sua entrada, trazendo argumentos semelhantes ao
que a legação argentina suscitou.

Os conselheiros, no entanto, em parecer que viria a se tornar jurisprudência


administrativa, conforme destacado no caso argentino quase dois anos depois,
consolidaram a interpretação da absoluta proibição de entrada de pessoas ne-
gras no país, ainda que livres, explicitando a preocupação com a ordem pública
escravista brasileira:
[...] deve ponderar Vossa Majestade Imperial o perigo à ordem pública,
que haveria, admitida a imigração de homens de cor procedentes dos
Estados Unidos, existindo ainda entre nós a escravidão, o contato desta
14 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres – A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p. 73.
15 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 45-81. CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. 1ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 211-225.
16 ALBUQUERQUE, op. cit.

335
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

gente recentemente emancipada, e que vem da guerra com o entusiasmo


da vitória, não pode deixar de ser uma grande conflagração17.

A influência da abolição da escravidão nos Estados Unidos sobre a política


da escravidão no Brasil está demonstrada pela historiografia, ainda que careça de
contínuo desenvolvimento. Sendo o principal sustentáculo ideológico da segunda
escravidão18, o sul estadunidense exercia papel importante no discurso escravista
brasileiro19. Os resultados da guerra civil, com a abolição da escravidão naquele
país, alarmaram os senhores e as autoridades brasileiras, representando marco
de inflexão da política da escravidão no país e, tudo indica, influenciando na
mobilização do Imperador e do Conselho de Estado em debater o que viria a
ser a Lei do Ventre Livre20.

Diante desse contexto, a preocupação com a ordem pública, que sempre


esteve na pauta dos conselheiros, é incrementada com a perspectiva efetiva de
término da escravidão, que, até 1865, ainda não se afigurava tão urgente. Nesse
sentido, a entrada de pessoas negras estrangeiras, livres ou libertas, poderia ser um
elemento de influência para os escravizados, segundo raciocinavam os conselheiros.

Esse aspecto fica evidente no argumento utilizado para impedir a en-


trada da mulher negra que acompanhava o homem branco norte americano:
deveria ser ponderado o “perigo à ordem pública” na imigração de “homens de
cor procedentes dos Estados Unidos”, considerando o contato que esta “gente
recentemente emancipada, e que vem da guerra com o entusiasmo da vitória,
não pode deixar de ser uma grande conflagração”. Assim, não era conveniente à
ordem imperial o contato “desta gente” - negros e negras – com os escravizados
brasileiros.

Essa proibição, como fica patente no caso da legação argentina, não


se limitava às pessoas de cor que viessem dos Estados Unidos. O súdito inglês
Brown também estava proibido de ingressar, sem que o argumento da ordem
fosse levantado expressamente. Afinal, na Resolução de 30 de novembro de 1866,
a orientação do governo já havia sido definida.

Voltando ao caso da legação argentina, esta questionou os critérios da


Administração imperial, afirmando que “muitos indivíduos de cor, segundo é
notório, têm sido introduzidos no país não só pelos navios mercantes, como
17 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 71.
18 A respeito do conceito de “segunda escravidão”, baseado nas antigas colônias, já emancipadas, em especial
Estados Unidos, Brasil e Cuba, ver: MARQUES, Ricardo. SALLES, Ricardo (Orgs.). Escravidão e capitalismo histórico
no século XIX: Cuba, Brasil e Estados Unidos. 1ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
19 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011, p. 318.
20 Ibid.

336
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

pela marinha de guerra do Império”. A discussão, então, passou a ser pautada


por esta afirmação da legação, sendo que os conselheiros, quando finalmente
se manifestaram, destacaram que a Consulta não tratava sobre se a proibição
do artigo 7º englobava também homens livres – afinal, isto já estava definido
–, mas sim sobre a acusação de que muitos negros e negras entravam no país
livremente, recomendando a Seção de Justiça toda vigilância e energia na matéria:
De tudo quanto vem de ser exposto, resulta que o objeto da Consulta
não é se a Lei de 1831, Art. 7º compreende os homens de cor libertos ou
também os homens de cor ingênuos, porque esta questão está decidida
pela Imperial Resolução de 30 de novembro de 1866 sobre Consulta da
Seção de Justiça e Estrangeiros do Conselho de Estado; nem também
pode ser objeto da Consulta a nota da legação argentina sobre o mari-
nheiro Brown, porque esta nota foi perfeitamente contestada pelas Notas
do Ministério dos Estrangeiros no qual competia a solução do negócio;
assim que versa a Consulta somente sobre os fatos denunciados na Nota
Argentina de 14 de agosto de 1867, os quais o Ministério de Estrangei-
ros pediu que fossem averiguados pelo Ministério da Justiça. Parece à
Seção de Justiça do Conselho de Estado que estes fatos denunciados não
são senão abusos que não podem ter procedência jurídica. Cumpre que
esses abusos [entrada de pessoas negras] sejam prevenidos e reprimidos,
recomendando-se toda a vigilância e energia na execução do Aviso de 4
de maio de 186721 [grifos adicionados].

Ao orientar vigilância e energia na efetivação da proibição de entrada de


negros libertos e livres no país, o Conselho reafirmava a substituição de sentido
do artigo 7º da lei, que passava a ser orientado por um critério racial. Ao assim
proceder, reafirmava-se a preocupação com as influências que negros e negras
estrangeiras pudessem exercer sobre os escravizados brasileiros, desestabilizando
eventualmente a ordem pública, tão cara aos juristas estadistas componentes
do Conselho.

Para firmar a compreensão sobre o posicionamento da Seção nos casos


acima narrados, mostra-se oportuno tanto analisar mais especificamente a atuação
do Conselho de Estado, quanto trazer outros pareceres em que a Lei de 7 de
novembro de 1831 esteve em pauta.

3. Conselho de Estado: depositário dos segredos do Estado e fiador da


construção da ordem
Foi com efeito uma grande concepção política, que mesmo a Inglaterra
nos podia invejar, esse Conselho de Estado, ouvido sobre todas as grandes
questões, conservador das tradições políticas do Império, para a qual os
partidos contrários eram chamados a colaborar no bom governo do

21 CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da seção de justiça do
Conselho de Estado. Anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo Conselho, até hoje. Rio de Janeiro: B.
L. Garnier Livreiro Editor, 1884, p. 1380.

337
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

país, onde a oposição tinha que revelar seus planos, suas alternativas, seu
modo diverso de encarar as grandes questões, cuja solução pertencia ao
ministério. Essa admirável criação do espírito brasileiro, que completava
a outra, não menos admirável, tomada a Benjamin Constant, o Poder
Moderador, reunia, assim, em torno do imperador as sumidades políticas
de um e outro lado, toda a sua consumada experiência, sempre que
era preciso consultar sobre um grave interesse público, de modo que
a oposição era, até certo ponto, partícipe da direção do país, fiscal dos
seus interesses, depositária dos segredos de Estado.22

Foi assim, entusiasta, que Joaquim Nabuco se manifestou sobre o Conselho


de Estado. Pela posição política que adotava, não há surpresa na sua manifestação,
considerando, no particular, o seu apoio à Monarquia. Independentemente de tal
aspecto, esse trecho de Um estadista no Império ajuda a ilustrar a importância
política que o Conselho exerceu no Segundo Reinado.

Com efeito, estudos recentes observam o protagonismo do órgão na cultura


política e jurídica do Império23. A despeito de ser órgão consultivo24, sua atuação
orientou fortemente a conduta do Imperador, do Parlamento e do Judiciário no
período, haja vista sua composição e vasta competência25.

O Conselho esteve previsto no título 5º da Constituição Política do Im-


pério de 1824, na parte relativa ao Poder Moderador, estando disciplinado no
capítulo VII, que dizia:
Art. 142. Os Conselheiros serão ouvidos em todos os negócios graves, e
medidas gerais da pública Administração; principalmente sobre a decla-
ração da guerra, ajustes de paz, negociações com as Nações Estrangeiras,
assim como em todas as ocasiões em que o Imperador se proponha a
exercer qualquer das atribuições próprias do Poder Moderador, indicadas
no Art. 101, à exceção da VI.26

22 DE MELLO, Evaldo Cabral (Org.). Essencial Joaquim Nabuco. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras,
2010, p. 502.
23 MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A Velha Arte de Governar – Um estudo sobre política e elites a partir do
Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007. LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo
de Delfos – O Conselho de Estado no Brasil Império. São Paulo: Editora Saraiva, 2010.
24 Nesse sentido, o fato de, dentro da teoria do direito em vigor, o Conselho não interpretar autenticamente
as leis (papel reservado ao legislativo), ou seja, suas decisões não serem diretamente vinculantes, não significa
que o órgão, na prática, não decidisse efetivamente sobre uma série de medidas administrativas e judiciais. A
respeito do caráter consultivo e, dentro dessa perspectiva da teoria do direito, assim se manifesta José Reinaldo
Lima Lopes. op. cit., p. 120.
25 LOPES, op. cit. MARTINS, op. cit. VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura jurídica e a arte de governar:
algumas hipóteses investigativas sobre a Seção de Justiça do Conselho de Estado. Revista de História da USP, São
Paulo, n. 5, 2007.
26 BRASIL. Constituição (1824). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886, p. 27.

338
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Desde o início, o órgão foi objeto de algumas críticas, muitas vezes mais
direcionadas ao Poder Moderador, porquanto seria o retrato do absolutismo do
monarca27, contrário às tendências pretensamente liberais do século XIX.

Extinto em 1834, no período da Regência em que predominou o posi-


cionamento moderado critico do órgão, o Conselho de Estado volta a estar em
debate já em 1837, vindo a ser novamente instituído pela Lei nº 234 de 23 de
novembro de 1841.28 À diferença da Constituição de 1824, passa a ser previsto
que os ministros também são componentes do Conselho, além de serem criadas
seções, em regra ligadas ao Ministério respectivo. O artigo 7º prevê novamente o
seu caráter consultivo; todavia, restam especificadas algumas matérias consideradas
particularmente importantes:
Art. 7º Incumbe ao Conselho de Estado consultar em todos os negó-
cios em que o Imperador houver por bem ouvi-lo, para resolvê-los; e
principalmente:
1º Em todas as ocasiões em que o Imperador se propuser a exercer
qualquer das atribuições do Poder Moderador, indicadas no artigo cento
e um da Constituição.
2º Sobre declaração de guerra, ajustes de paz, e negociações com as
Nações estrangeiras.
3º Sobre questões de presas e indenizações.
4º Sobre conflitos de jurisdição entre as Autoridades Administrativas, e
entre estas e as Judiciárias.
5º Sobre abusos das Autoridades Eclesiásticas.
6º Sobre Decretos, Regulamentos, e Instruções para a boa execução das
Leis, e sobre Propostas que o Poder Executivo tenha de apresentar à
Assembleia Geral.29

Em relação à Seção de Justiça – em cujo âmbito foi analisado o caso


da sumaca argentina, descrito no segundo tópico deste texto –, dentre suas
atribuições deve ser destacado o controle de constitucionalidade, o contencioso

27 Interessante observar, sobre esse aspecto, que, ao contrário do que apregoa certo senso comum acerca do
Conselho, este não foi criação isolada da teoria política e jurídica vigente no século XIX. Como nos mostra José
Reinaldo de Lima Lopes, há experiências similares em países europeus; além disso, em termos de estabilidade
política e jurídica, o Conselho exerceu papel semelhante ao da Suprema Corte dos Estados Unidos. Por outro
lado, em relação à monarquia no Brasil no século XIX, em contraposição à adoção da República na maioria dos
países vizinhos, já há historiografia consolidada em mostrar como, no âmbito da práxis política, o republicanis-
mo dos vizinhos não representava necessariamente mais progressismo ou acesso à vida pública, muitas vezes
sendo tão centralizado e elitizado quanto a Monarquia brasileira, e até mesmo com menos democratização
do jogo eleitoral. Sobre o tema, é oportuna a seguinte leitura: LYNCH, Christian Edward Cyrill. Da monarquia à
oligarquia – história institucional e pensamento político brasileiro (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2014, p. 15-81.
28 OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. O Conselho de Estado e o complexo funcionamento do governo monárquico
no Brasil do século XIX. Revista de História da USP, São Paulo, n. 5, 2007.
29 BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Coleção das Decisões do Império do Brasil (1841). Rio de Janeiro:
Typographia Nacional, 1842, p. 59.

339
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

administrativo, os conflitos de competência e jurisdição, as manifestações a res-


peito da organização judiciária, dos recursos de graça, bem como a resolução de
dúvidas e interpretação da lei30.

Assim, é perceptível a importância de sua atuação durante o período


imperial. Por suas reuniões passaram questões fundamentais, como a declaração
da guerra contra o Paraguai e o anteprojeto da Lei do Ventre Livre. Apesar de
ter sido objeto de muitos debates31, principalmente a partir da segunda metade
do século XIX, fato é que o Conselho exerceu papel central nas decisões polí-
ticas tomadas pelo Imperador, na administração do Estado imperial, bem como
na centralização saquarema que possibilitou a pacificação do Império após o
conflituoso período regencial32.

Além do vasto âmbito de competências e de atuação, a dimensão da


importância do Conselho de Estado é demonstrada por sua composição. Inte-
grantes da elite político-econômica do país, dos partidos liberal e conservador
e com formação bacharelesca33, os membros do Conselho, “sumidades políticas”
no dizer de Joaquim Nabuco, retratam, portanto, o imaginário ideológico do
projeto imperial34.

Nesse sentido, cumpre observar que, em geral, para se alcançar o cargo


de conselheiro, era necessário ter sólida carreira política. Raro era o conselheiro
que antes não tinha sido Ministro de Estado, Presidente de Província, senador
ou deputado. À título ilustrativo, 89,3% (oitenta e nove virgula três por cento)
30 LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo de Delfos – O Conselho de Estado no Brasil Império. São Paulo:
Editora Saraiva, 2010, p. 160-176.
31 Tais debates e posições contemporâneas acerca do Conselho são assim sintetizados por Cecília Helena Salles
de Oliveira, op. cit., p. 51: "Refiro-me, especialmente, às noções de que o exercício do poder moderador não
coadunava com a prática de uma monarquia parlamentar; de que o poder moderador era sinônimo de poder
pessoal e imperialismo, no sentido da coroa sobrepor-se à situação política, invertendo-a a seu bel prazer e
arbítrio; e, inversamente, a de que o poder moderador era essencial para preservar o Império, garantindo sua
integridade territorial, obstando a desorganização social e, ainda, impedindo um enfrentamento partidário direto,
pois nesse argumento o poder moderador possibilitava a alternância dos partidos de forma a minimizar arestas
entre grupos concorrentes e a aplainar diferenças significativas entre liberais e conservadores".
32 "Pragmatismo e defesa intransigente do poder de Estado caracterizavam o centro das preocupações dessa
elite de magistrados que se incumbiu de moldar as instituições do Império. Elite visceralmente comprometida
com a construção e a manutenção da ordem que se expressou no desenho das instituições que se fixará em
sua forma mais ou menos definitiva na década de quarenta e não sofrerá alterações significativas até o fim do
Império. E que garantiram através de todo o período, a relativa estabilidade do monopólio estatal centralizado,
a unidade territorial e a manutenção das bases do domínio senhorial. Daí a elevada densidade política presente
nas interpretações jurídicas do Conselho e suas seções". VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura jurídica e a arte
de governar: algumas hipóteses investigativas sobre a Seção de Justiça do Conselho de Estado. Revista de História
da USP, São Paulo, n. 5, 2007, p. 42.
33 Para se ter uma ideia da predominância da formação jurídica, entre os 72 (setenta e dois) conselheiros
que passaram pelo Conselho entre 1842-1889, 53 (cinquenta e três) eram formados em Direito, segundo Maria
Fernanda Vieira Martins, em A Velha Arte de Governar – Um estudo sobre política e elites a partir do Conselho
de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2007, p. 154-157.
34 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem; teatro das sombras. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013, p. 355-390. MARTINS, op. cit. PIROLA, Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império –
uma história social da lei de 10 de junho de 1835. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015, p. 201-207.

340
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

dos conselheiros foram antes Ministros de Estado, 80,4% (oitenta virgula quatro
por cento) foram senadores e 71,4% (setenta e um virgula quatro por cento)
Presidentes de Província35. Em muitos casos, como no de Nabuco de Araújo, o
conselheiro passava por todos esses principais cargos da burocracia imperial. Em
suma, chegar ao Conselho era o ápice de uma sólida carreira.

Sendo esse o quadro da composição e constituição do Conselho, é


perceptível como os conselheiros foram construtores e mantenedores da ordem
e da centralização monárquica. Havia, nas palavras de José Murilo de Carvalho,
uma “parcialidade a favor do sistema”36, com defesa pública do Estado imperial,
muitas vezes com pragmatismo político se sobrepondo a aspectos jurídicos ou
mesmo de coerência política. A prudência e a manutenção da ordem orientavam
a atuação dos conselheiros, o que pode ser percebido na própria narrativa do
conselheiro Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente, ao descrever a instituição
em seu Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império:
Ele resolve e esclarece as dúvidas por seus pareceres ou consultas; e faz-se
indispensável para a existência de uma marcha estável, homogênea, para
unidade de vistas e de sistema. É o corpo permanente, ligado por seus
precedentes e princípios, que conserva as tradições, as confidências do
poder, a perpetuidades das ideias; é portanto, quem pode neutralizar os
inconvenientes resultantes da passagem muitas vezes rápida, da instabili-
dade dos ministros, depositários móveis da autoridade que tem vistas e
pretensões administrativas, às vezes não só diferentes, mas até opostas.37

A preocupação com a estabilidade, com a conservação das tradições e


instabilidade, destacada pelo conselheiro, pôde ser percebida nos pareceres des-
tacados no tópico anterior e nos outros pareceres em que a Seção de Justiça
debateu a Lei de 7 de novembro de 1831.

A despeito de não haver dúvidas quanto à importância dos conselheiros


e da posição que o Conselho ocupava junto ao Imperador, a historiografia não
é uniforme quanto à atuação do órgão e sua relação com as elites econômicas
do país.

Em trabalho clássico, José Murilo de Carvalho destaca a importância do


estudo do Conselho para se alcançar o pensamento da elite política do Império.
Pondera, todavia, ser “certamente um exagero dizer que se tratava de um quinto
poder”38, conforme defendido por José Honório Rodrigues39, haja vista o seu ca-
35 MARTINS, op. cit., p. 99-166. CARVALHO, op. cit., p. 357. VELLASCO, op. cit., p. 45.
36 CARVALHO, op. cit., p. 363.
37 KUGELMAS, Eduardo (Org.). José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente. São Paulo: Editora 34,
2002. (Coleção Formadores do Brasil), p. 366.
38 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem; teatro das sombras. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013, p. 358.
39 BRASIL. Congresso. Senado Federal. O Conselho de Estado: o quinto poder? Brasília: Senado Federal e Arqui-

341
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

ráter consultivo, inclusive porque em inúmeras ocasiões, ainda que minoritárias,


o Imperador não seguiu o parecer dos conselheiros.

O mesmo autor também não entende que se possa resumir os conse-


lheiros a representantes dos interesses do domínio rural, destacando que, muitas
vezes, atuaram fora dos padrões políticos defendidos pela elite agrária. Em verdade,
dentro do projeto político centralizado em que atuava, ao Conselho faltaria, na
visão do autor em questão, certa base social, ficando, por vezes, afastado do que
se passava na política cotidiana. Em suas palavras:
A localização no ápice da burocracia, a preocupação quase obsessiva com
a defesa dos interesses do Estado, a resistência à expansão da participação
política, consequências em parte do sistema centralizante que ajudara a
criar, colocavam-no em precárias condições para responder com agilida-
de às mudanças sociais e políticas que se processavam, às vezes como
fruto de decisões por ele mesmo tomadas. De sua posição no alto da
fortaleza de um Estado alicerçado em uma economia de exportação,
os conselheiros tinham visão privilegiada dos horizontes distantes e dos
perigos que pudessem ameaçar suas defesas. Mas pela mesma posição
tinham dificuldades em perceber e refletir o que se passava a seus pés
nos becos do sistema político.40

Tal perspectiva é questionada por Maria Fernanda Vieira Martins que, em


trabalho voltado especificamente para o Conselho, demonstrou as bases sociais,
familiares e econômicas em que se assentavam os conselheiros, defendendo e
demonstrando ser equivocada a conclusão de José Murilo de Carvalho41.

A autora, todavia, concorda com o raciocínio de que não se pode limitar


a atuação do Conselho à mera representação dos interesses das elites econômicas.
O jogo da política, o esforço da centralização, a necessidade de pensar a nação
e os desígnios do Estado, dentre outras tarefas exercidas pelos conselheiros, dei-

vo Nacional, 1978. Disponível em <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf/ACE/O_Quinto_Poder.pdf>.


Acesso em: dezembro de 2017.
40 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem; teatro das sombras. 8ª edição. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013, p. 383.
41 Nas palavras corretas da autora: “Assim, torna-se difícil imaginar que um grupo de estadistas, desvinculado
de relações mais estreitas com a sociedade, pudesse obter legitimidade e tornar-se capaz de se impor sobre
as elites como um todo e de impingir-lhes um projeto de país independente de uma negociação mais direta,
cotidiana, que inclusive desse conta das divergências e conflitos de interesses. Da mesma forma, restaria perguntar
quem teria sido responsável por tão ampla obra de articulação, pelo acesso desses homens ao poder, e como
estes puderam ascender sem estarem diretamente vinculados aos grandes interesses políticos e econômicos do
país, considerando-se o conjunto dos poderes locais, negociantes, capitalistas, proprietários de terras, não só na
Corte, mas em todas as províncias do Império”. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A Velha Arte de Governar –
Um estudo sobre política e elites a partir do Conselho de Estado (1842-1889). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2007, p. 396-397. O mesmo entendimento é externado por Ivan de Andrade Vellasco, em A cultura jurídica e
a arte de governar: algumas hipóteses investigativas sobre a Seção de Justiça do Conselho de Estado. Revista de
História da USP, São Paulo, n. 5, 2007, p. 45.

342
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

xam mais complexa a relação do Conselho com as elites, muitas vezes havendo
embates e divergências sobre a atuação do poder monárquico42.

Divergindo de ambos os autores, mas sem deixar de concordar quanto


à importância política do Conselho na política imperial, Ricardo Pirola defende
que os conselheiros atuavam visando à manutenção dos interesses senhoriais,
ainda que, muitas vezes, houvesse embates entre a elite agrária e os pareceres43.

Independentemente dessas diferentes posições acerca da atuação do Con-


selho44 – a qual tende a ser mais bem esclarecida e debatida à medida que se
avançarem os estudos sobre ele –, os autores são unânimes quanto ao fato de ser
uma instituição chave para se compreender a política imperial e as perspectivas
de nação que se construíram sob o regime monárquico. É, por ora, o que nos
interessa neste trabalho.

Sendo instituição de tamanha importância, infere-se que os pareceres do


Conselho podem ser uma chave de leitura para acessar a política imperial sobre
a escravidão e os escravos, particularmente no que se refere à preocupação com
a ordem pública e econômica.

Nos pareceres das seções, mais especificamente, é possível vislumbrar não


só a discussão política macro, como também a atuação cotidiana da Administra-
ção, possibilitando a percepção de como as políticas imperiais eram orientadas
42 MARTINS, op. cit., p. 398.
43 “A respeito do Conselho de Estado, podemos ponderar que os Conselheiros eram representantes dos
interesses da classe senhorial que, na primeira metade do século XIX, havia formado a si mesma e gestado o
próprio Estado Imperial (nos termos em que sustentou Ilmar Mattos). Nesse sentido, discordamos tanto de
Carvalho de que não teriam os conselheiros uma base social que os apoiasse, quanto de Martins de que não
estavam os membros da alta burocracia imperial ligados diretamente aos interesses dos ‘plantadores escravistas’.
De fato, ao acompanharmos as discussões referentes à lei de 10 de junho de 1835, produzidas pela seção Justiça
e pelo Conselho Pleno, podemos perceber a maneira pela qual atuaram os conselheiros visando à manutenção
dos interesses senhoriais (especialmente aqueles ligados à sustentação da produção agrícola exportadora, com
base na mão de obra escrava). E mesmo quando atuavam de maneira reformista no que se referia à legislação
criminal, o faziam em nome da preservação da ordem social e da integridade do Estado imperial”. PIROLA,
Ricardo. Escravos e rebeldes nos tribunais do Império – uma história social da lei de 10 de junho de 1835. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015, p. 202.
44 Não posso deixar de consignar o trabalho de José Reinaldo de Lima Lopes sobre a Seção de Justiça do
Conselho de Estado, já citado em outras partes deste artigo, em que o historiador defende a perspectiva do
Conselho como local privilegiado na produção de uma cultura jurídica pragmática, central para a própria cul-
tura jurídica oitocentista. Assim, para além da importância política do órgão, este teria uma atuação jurídica
fundamental, ainda que o autor, por vezes, deixe de considerar o peso da política nas decisões da Seção de
Justiça. LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo de Delfos – O Conselho de Estado no Brasil Império. São Paulo:
Editora Saraiva, 2010. Conforme Vellasco, ao comentar artigo de José Reinaldo sobre o Conselho: "Isso implica, a
meu ver, que a produção jurídica do Conselho de Estado e suas seções, e, sobretudo, a Seção de Justiça - uma
das mais mobilizadas - deve ser considerada sem se perder de vista que era contingenciada permanentemente
pelas circunstâncias, pela política e pelos interesses [...]. Entretanto, quando se avalia a produção jurídica do
Conselho e de suas seções, alguns aspectos me parecem devam ser levados em conta: mais do que juristas - o
que a maioria era de fato, por formação, eram homens de estado e tinham em mente as razões de Estado,
quais sejam a estabilidade do poder monárquico, a resolução dos conflitos intra-elite e a legitimação do poder
imperial". VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura jurídica e a arte de governar: algumas hipóteses investigativas
sobre a Seção de Justiça do Conselho de Estado. Revista de História da USP, São Paulo, n. 5, 2007, p. 44.

343
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

na prática. Como afirmou José Reinaldo, “Embora o Conselho Pleno fosse visto
como o órgão de consulta política por excelência, as seções foram as que mais
ativamente funcionaram”45.

Explicitada, ainda que sucintamente, a importância, composição e fun-


cionamento do Conselho de Estado, é possível voltar aos pareceres da Seção de
Justiça, buscando perquirir de que modo os conselheiros pensavam a Lei Diogo
Feijó, especialmente o seu artigo 7º. Considerando o quadro que se acaba de
narrar sobre a instituição, faz-se possível compreender claramente as posições
que foram adotadas por diferentes conselheiros ao longo do Segundo Reinado
sobre a referida lei.

4. O Conselho de Estado e o debate sobre a Lei de 7 de novembro de 1831

Em 30 de outubro de 1854, a Seção de Justiça do Conselho de Estado


foi instada a se manifestar sobre representação dirigida pela Assembleia Legislativa
da Província de São Paulo, em que os representantes paulistanos reclamavam a
política de comutações da pena de morte em galés perpétuas de crimes prati-
cados por escravos contra seus senhores e demais pessoas previstas na Lei de
10 de junho de 1835.

Os conselheiros responderam duramente à representação e, dentre os


argumentos utilizados, destacaram a escravização ilegal de milhares de africanos
e africanas à revelia da Lei de 07 de novembro de 1831:
O que se deve, pois concluir é: que a Lei de 10 de junho de 1835 não
resolveu o difícil problema de adaptar os princípios eternos da Justiça
à punição desses crimes; para resolvê-lo, era preciso que antes de tudo,
não só se tivesse feito um profundo exame dos fatos sociais, assim como
das suas causas e efeitos, e atendido às exigências políticas, mas também
se lhe tivesse acudido com adequadas providências. Nada disto se fez.
Milhares de negros eram anualmente importados no Brasil, a despeito da
Lei que proibia este nefando tráfico. Não era possível que eles não viessem
a perceber a ilegalidade da sua escravidão.
A liberdade concedida ao que dentre eles eram apreendidos no mar ou no
desembarque, as reclamações de falsos protetores; as sugestões de outros
escravos; tudo, enfim, tem concorrido para fazer-lhes conhecer a sua posição,
e para que não devêssemos torná-la ainda mais penosa por um excessivo
e insuportável rigor.46 [grifos adicionados]

Como se percebe, a Lei Diogo Feijó era rememorada pelos conselheiros


para justificar a comutação da pena de morte dos crimes praticados por escra-
45 LOPES, op. cit., p. 158.
46 CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da seção de justiça do
Conselho de Estado. Anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo Conselho, até hoje. Rio de Janeiro: B.
L. Garnier Livreiro Editor, 1884, p. 508.

344
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

vos contra senhores, familiares e agentes da produção, com base na defesa da


manutenção da ordem.

Considerando a ilegalidade da escravidão à revelia da Lei de 7 de no-


vembro, não era prudente tornar a situação dos escravizados “ainda mais penosa
por um excessivo e insuportável rigor”, sobretudo porque inúmeros elementos
indicavam que os cativos poderiam conhecer a sua condição. Piorar a situação
dos escravizados, assim, poderia gerar o aumento da insurgência escrava, na lógica
daqueles estadistas47.

A mesma preocupação com a ordem é manifestada na política do go-


verno imperial em relação aos africanos livres, ou seja, aqueles que haviam sido
libertados em decorrência da Lei de 7 de novembro de 1831, ou mesmo pelos
tratados anteriores com a Inglaterra48. Ao contrário de serem reexportados, como
determinava a legislação, tais africanos foram designados para trabalharem para
particulares ou em órgãos públicos, muitas vezes em regime semelhante ou até
mesmo pior que o da escravidão49.

A política em torno dos africanos livres esteve na pauta da administração


imperial durante boa parte do Segundo Reinado, especialmente entre as décadas
de quarenta e cinquenta; sendo que, após a arrematação dos serviços por parti-
culares ou designação para trabalhar em obras públicas, a maioria foi submetida
a trabalho em período muito superior ao previsto inicialmente50. A preocupação
com a influência que poderiam exercer sobre os escravizados esteve latente entre
as autoridades imperiais.

Após reiteradas pressões britânicas e pedidos dos próprios africanos livres,


o governo imperial foi, paulatinamente, instado a liberá-los do trabalho com-
pulsório, não sem antes cercar-se de todos os cuidados para evitar distúrbios à
ordem pública51. Em Resolução de 20 de dezembro de 1859, a Seção de Justiça
pronunciou-se sobre a emancipação dos africanos livres que prestavam serviços
47 Nota-se, no particular, que as comutações penais exerciam, no Antigo Regime, importante função ideo-
lógica, na construção da imagem de um monarca paternal. Conforme Antonio Hespanha, as concessões de
graça serviriam para realizar a “inculcação ideológica” necessária à imagem da monarquia. HESPANHA, António
Manuel. Caleidoscópio do Antigo Regime. São Paulo: Alameda, 2012, p. 159.
48 Sobre o tema, em todas as suas nuances, ver: MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres – A abolição
do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
49 MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres – A abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p. 90-128.
50 Ibid., p. 129-164.
51 No âmbito da Seção de Justiça do Conselho de Estado, a pressão britânica é perceptível em Consulta de
23 de abril de 1847, quando os conselheiros se manifestaram acerca de pedido da Inglaterra para conhecer a
condição dos africanos livres, bem como ter acesso a relatório sobre eles. A Seção de Justiça vetou o pedido,
por julgar que não era “conveniente”. CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Imperiais resoluções tomadas
sobre consultas da seção de justiça do Conselho de Estado. Anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo
Conselho, até hoje. Rio de Janeiro: B. L. Garnier Livreiro Editor, 1884, p. 118. Ver também: MAMIGONIAN, op.
cit., especialmente o capítulo 5, p. 165-208.

345
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

a estabelecimentos públicos, visto que, desde o Decreto nº 1303 de 1853, os que


trabalhavam para particulares já haviam sido libertados, ao menos oficialmente.

No parecer, os conselheiros afirmaram que não havia razões para mantê-los


sob o trabalho forçado, sendo justo que o referido Decreto fosse estendido “aos
que servem em estabelecimentos públicos”. Ponderava, todavia, que:
Se, porém, o número desses africanos for avultado, pensa a Seção que
seria conveniente a adoção de algumas providências que os sujeitassem à
inspeção de alguma autoridade e que os dispersassem, por exemplo, por
algumas Colônias, porquanto a rápida introdução de tantos pretos livres no
mesmo lugar – onde viveram, senão inteiramente como escravos, ao menos
sujeitos a certo regime, não deixa de trazer inconvenientes. O certo é que
com justiça, sendo livres, não podem ficar perpetuamente sujeitos a uma
tutela parelha em meio com a escravidão, à espera de uma reexportação
que se vai tornando uma verdadeira burla52 [grifos adicionados].

Como se percebe, reconheceu-se, finalmente, o direito dos africanos livres


à liberação dos serviços, mas exigências da ordem pública e o medo de inconve-
nientes faziam com que os conselheiros firmassem o entendimento de que não
seria prudente liberá-los para viverem onde quisessem. Assim é que, conforme
demonstra Mamigonian53, muitos africanos livres realmente foram obrigados a se
mudar para províncias longínquas de onde sempre viveram.

O medo da influência que esses africanos livres poderiam exercer sobre


os escravizados compara-se, nesse aspecto, ao medo que os conselheiros tinham
das pessoas negras estrangeiras vindas ao Brasil, daí o expediente que se repete:
em um caso, a proibição de os africanos livres ficarem onde sempre viveram;
no outro, de pessoas negras estrangeiras ingressarem no país. Nas duas decisões,
conveniências da ordem pública escravista definem a direção dos conselheiros.

Um último parecer pode orientar definitivamente a compreensão da polí-


tica dos conselheiros em relação à Lei de 7 de novembro de 1831. Em Resolução
de 28 de outubro de 1874, os conselheiros tentaram vetar a utilização da referida
lei como fundamento de ações de liberdade. Mais uma vez, o fundamento prin-
cipal utilizado foi a manutenção da ordem pública.

A dúvida foi suscitada pelo Presidente da Província do Rio Grande do


Norte, onde alguns escravizados, componentes de um inventário, alegaram que
haviam sido escravizados ilegalmente à revelia da proibição da Lei Diogo Feijó. O
Presidente da Província orientou o promotor responsável a ingressar com a ação
52 CAROATÁ, op. cit., p. 842.
53 Conforme narra a historiadora: “As forças da ordem e os concessionários estavam obcecados com a ideia
de que os africanos livres, uma vez emancipados e fora do domínio senhorial, seriam má influência para os
africanos livres que ainda serviam, e também aos escravos”. MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres – A
abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 347.

346
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

de liberdade, caso fosse comprovada a condição dos escravizados. Os conselheiros,


todavia, ponderaram:
O negócio não é tão simples, como supõe o Presidente da Província do Rio
Grande do Norte; é muito grave pelo seu alcance e consequências; merece
ser apreciado com madureza e reflexão.
[…]
Em todo o caso é fora de dúvida que não pode ter apoio na Lei de
1831 o direito que se quer atribuir ao africano importado como escravo,
depois daquela data, de ser equiparado à pessoa que nasceu livre no
Brasil para o gozo da plena liberdade civil.
[…]
Aquele pretendido direito [de ser libertado por ação de liberdade] poria
o Africano importado como escravo em melhor condição que o Afri-
cano apreendido como livre, que a Lei citada mandou reexportar com
a maior possível brevidade; e ainda em melhor condição que o liberto,
que não for brasileiro, a quem expressamente proibiu desembarcar nos
portos do Brasil, debaixo de qualquer motivo, devendo ser imediatamente
reexportado o que desembarcar. Releva ponderar aqui que o Governo
inglês, sistematicamente empenhado na repressão do tráfico, nunca em
suas exageradas exigências pugnou por esse direito. Nem nos Estados
Unidos, onde a importação de africanos depois da abolição do tráfico foi
proporcionalmente maior do que no Brasil, se lembraram os abolicionistas
deste meio de extinguir a escravidão, que acabou ali de um modo violento
sim, mas talvez menos desastroso do que o iniciado no Rio Grande do
Norte, dando azo às vinganças, aos ódios e falsos depoimentos de que se
queixa a parte interessada.
No Brasil, a escravidão há de ficar completamente extinta, não muito tarde,
pelo meio pacífico da Lei de 28 de setembro de 1871, ou outro for sugerido
pela sabedoria do Poder Legislativo, se aquele, o que não é de recear, se
mostrar insuficiente.54 [grifos adicionados]

Finalmente, os conselheiros ainda apontaram que, pela legislação em vigor, a


competência para decidir se o escravizado era proveniente de tráfico ilegal era da
auditoria da marinha, e não do foro comum. Nesse sentido, a Seção manifestava
extrema preocupação com a adoção de procedimentos tendentes a reconhecer
no Poder Judiciário o direito à liberdade de escravizados ilegalmente: “Seria uma
temeridade em uma terra onde há escravos, considerar provenientes do tráfico,
por conjecturas falíveis, aqueles que não mostram uma importação verificada
pela autoridade competente que é a Auditoria da Marinha”55.

54 CAROATÁ, José Próspero Jeová da Silva. Imperiais resoluções tomadas sobre consultas da seção de justiça do
Conselho de Estado. Anno de 1842, em que começou a funcionar o mesmo Conselho, até hoje. Rio de Janeiro: B.
L. Garnier Livreiro Editor, 1884, p. 1723-1724.
55 Ibid., p. 1724.

347
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

Haveria, na verdade, “prescrição dos fatos passados”, sendo medida “revo-


lucionária” arrancar os escravos dos senhores “sem indenização”56. Tal prescrição
estaria “na consciência de todos”, lamentando os conselheiros que surgisse agora
essa ideia de libertação, “infelizmente apoiada pela autoridade pública, ideia que,
envolvendo uma propaganda de insurreição, pode ser funesta nas Províncias
onde há grande aglomeração de escravos”. Assim, os conselheiros orientavam
a vedação da proposta do Presidente da Província e o Imperador deu o seu
habitual “como parece”.

Sabe-se que, a despeito de tal parecer, o Poder Judiciário acabou por


se tornar um dos espaços de luta dos escravizados pela liberdade, sob o fun-
damento de escravização ilegal à revelia da Lei de 1831, sobretudo na década
de 1880, concretizando os medos dos conselheiros de Estado, tão preocupados
com a ordem57.

A resolução acima descrita denota, de maneira ainda mais clara, a política


dos conselheiros acerca da Lei Diogo Feijó. O Conselho procurava impedir todas
as possibilidades de distúrbio à ordem pública escravista. Nesse quadro, valia im-
pedir a entrada de pessoas negras livres no país, forçar a mudança de província
de africanos livres e tentar vetar o reconhecimento do direito à liberdade de
escravizados ilegalmente.

No último parecer comentado, os exageros discursivos dos conselheiros, ao


considerarem mais desastroso o uso de ações de liberdade com base na Lei de
1831 para a ordem do que uma guerra civil como ocorreu nos Estados Unidos,
evidenciam o receio de que a utilização considerada inconveniente da Lei gerasse
a subversão da ordem social58. No Brasil, diziam os conselheiros, como ademais
pensava a elite político-econômica do Império, a escravidão deveria ser extinta
de modo pacífico, sendo suficiente a Lei do Ventre Livre.59

56 Mamigonian demonstra como a Lei Eusébio de Queirós, de 1850, tem como um dos pressupostos a tentativa
de esquecimento da Lei de 7 de novembro de 1831 e seus efeitos, ainda que informalmente. É a “prescrição
dos fatos passados” dita pelos conselheiros. MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres – A abolição do
tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
57 Há ampla historiografia sobre o tema. Ver: GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade – ações de
liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de
Pesquisa Social, 2010. ISBN 978-85-99662-76-2. Disponível em SciELO Books <http://books.scielo.org>; CHALHOUB,
Sidney. Visões da liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011; AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos. Campinas: Editora da Unicamp, 2010; e NEQUETE,
Lenine. Escravos e magistrados no 2º Reinado: aplicação da Lei n. 2.040, de 28/9/1871. Brasília: Fundação Petrônio
Portela, 1988.
58 O parecer também é comentado por Beatriz Mamigonian, em Africanos Livres – A abolição do tráfico de
escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 428-435. Ver também: AZEVEDO, Elciene. O direito
dos escravos. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 137-140.
59 MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição
no Brasil. 2ª Edição. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

348
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

5. Considerações finais

Os pareceres trabalhados no último tópico permitem compreender a


orientação dos conselheiros da Seção de Justiça em relação ao artigo 7º da Lei
de 7 de novembro de 1831. Ao subverterem o conteúdo da palavra liberto, para
englobar também as pessoas negras livres, a Seção agia em conformidade com
suas demais manifestações, que procuravam impedir qualquer espécie de influência
considerada inconveniente à ordem escravista no país.

No particular, os negros e negras livres que vinham do estrangeiro, muitas


vezes para praticar um comércio já consolidado60, eram vistos pelos conselhei-
ros como possível fator de desordem, que poderia influenciar negativamente
a estabilidade do sistema escravista brasileiro. Nesse sentido, compreende-se a
afirmação de Tâmis Parron de que a revolução de São Domingos “conformou a
modernidade política da escravidão brasileira”61.

Para evitar qualquer espécie de fator de desordem, como já destacado,


os conselheiros orientavam as autoridades policiais e judiciárias tanto a impedir
a entrada de pessoas negras no país, quanto a evitar a utilização de ações de
liberdade com base na Lei de 7 de novembro de 1831. Além disso, valia forçar
a mudança de domicílio dos africanos livres, de forma a evitar o contato con-
siderado inconveniente com escravizados. Assim, misturavam-se argumentos de
ordem pública e preconceitos raciais na preocupação dos conselheiros com a
estabilidade do Império brasileiro.

Nesse sentido, as manifestações da Seção de Justiça sobre a Lei de 7 de


novembro de 1831, especialmente sobre o seu artigo 7º, permitem questionar, ainda
que parcialmente, a afirmação de José Reinaldo de Lima Lopes, no sentido de
que “as opiniões da Seção de Justiça do Conselho de Estado podem ser avaliadas
como um esforço para fazer primar o postulado da legalidade, ainda que levando
frequentemente em consideração os fins pressupostos ou os fins esperados das
diversas leis nos casos concretos”, bem como de que a Seção fazia “uso de um
processo em que o propósito social e de justiça se leva em consideração, ainda
que não determine o resultado”62. Não se pode deixar de considerar que, confor-
me destacou Vellasco, “mais do que juristas – o que a maioria era de fato, por
formação, eram homens de estado e tinham em mente as razões de Estado”63, o

60 ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 47-80.
61 PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2011, p. 31.
62 LOPES, José Reinaldo de Lima. O oráculo de Delfos – O Conselho de Estado no Brasil Império. São Paulo:
Editora Saraiva, 2010, p. 345.
63 VELLASCO, Ivan de Andrade. A cultura jurídica e a arte de governar: algumas hipóteses investigativas sobre
a Seção de Justiça do Conselho de Estado. Revista de História da USP, São Paulo, n. 5, 2007, p. 44.

349
SEÇÃO DE JUSTIÇA DO CONSELHO DE ESTADO E O ARTIGO 7º DA LEI DE 7 DE NOVEMBRO DE 1831:
MANUTENÇÃO DA ORDEM ESCRAVISTA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

que implicava em, muitas vezes, exarar manifestações dissonantes da legalidade e


que atendiam apenas aos reclamos da ordem social escravista.

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350
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RUPTURAS, CRISES E DIREITO

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351
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS


NO BRASIL DO SÉCULO XIX: UM ESTADO IMPERIAL
INTERVENCIONISTA?

LILIAM FERRARESI BRIGHENTE


Universidade Federal do Paraná, Bolsista Capes

Resumo
Esta comunicação tem por objeto um dos aspectos fundamentais de
nossa pesquisa de doutorado, a qual trata dos aspectos jurídicos do sistema
penal escravista brasileiro do séc. XIX, bem como da condição jurídica criminal
do escravo no mesmo período. A partir deste século, a historiografia brasileira
descreve uma intensificação do controle punitivo sobre os escravos, tendência
essa proveniente, sobretudo, da expansão do aparelho estatal. Nesse sentido, o
trabalho investiga inicialmente as raízes dessa ampliação da atuação estatal e
os meios pelos quais ela se realizou, com especial destaque para a importância
exercida pelo Código Criminal do Império de 1830 na delimitação da referida
condição jurídica do escravo; a seguir, se procura averiguar quais as implicações
dessa interferência estatal nas relações senhor-escravo e no direito punitivo do-
méstico, bem como, de modo mais amplo, na própria instituição da escravidão,
examinando-se com esse propósito alguns casos concretos. A metodologia
desta pesquisa abarca, como fontes primárias, autos de processos criminais da
segunda metade do século XIX, nos quais os escravos são vítimas/autores de
crimes, pertencentes, sobretudo, ao Arquivo Municipal de Castro, localidade
que no século XIX concentrava a maior população de escravos do Paraná.

António Manuel Hespanha em artigo publicado em 1993 na coletânea


“Justiça e Litigiosidade”, analisando o poder e a política penal do Antigo Regime
português, chegava a uma conclusão surpreendente ao comparar o “direito penal
da monarquia corporativa” com o “direito penal da monarquia estatalista”.

Segundo este historiador do direito, a “ruptura iluminista” dos Códigos


Ilustrados não tornou o “sistema de controle e disciplina”, – no qual se insere o
processamento e a punição de delitos –, mais brando. Ao contrário, sob a égide
das Ordenações portuguesas, o sistema penal punia menos e ameaçava mais,
apesar das penas previstas serem mais atrozes e cruéis1. Prevalecia a comutação
das penas e o emprego do recurso da graça, como a clemência do rei.
1 Conforme Hespanha: “Vejamos agora o que acontecia com a mais visível das penas – a pena de morte
natural – prevista pelas Ordenações para um elevado número de casos, em todos os grandes tipos penais,
salvo, porventura, nos crimes de dano. Prevista tantas vezes que, nos fins do séc. XVIII, se conta que Frederico
o Grande, da Prússia, ao ler o livro V das Ordenações, teria perguntado se, em Portugal, ainda havia gente viva.
Na prática, todavia, os dados disponíveis parecem aconselhar uma opinião bem diferente da mais usual quanto
ao rigorismo do sistema penal. Na verdade, creio que a pena de morte natural era, em termos estatísticos, muito
pouco aplicada em Portugal.” HESPANHA, António Manuel. Da “iustitia” à “disciplina”. Texto, poder e política

353
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

Por outro lado, a partir do despotismo iluminado (meados do século


XVIII em diante), há um “agravamento do rigor do sistema penal da coroa, visível
no aumento de frequência da aplicação da pena de morte2”, o que Hespanha
demonstra ainda com levantamento estatístico dos crimes e penas aplicadas para
ambos os períodos.

Trata-se de uma conclusão que aponta para um paradoxo, sobretudo


quando se considera que a propaganda iluminista denunciava o abuso dos cruéis
castigos e métodos medievais empregados pelo direito punitivo do Antigo Regime.

Esta mesma postura punitiva atuante dos novos Estados iluministas, no


âmbito de aplicação do direito criminal, que foi divisada por Hespanha para Portugal,
parece surgir também quando se considera o direito criminal do Império do Brasil,
em especial, quando se estuda a punição e controle dos escravos no século XIX.

Os historiadores sociais muitas vezes notaram esta tendência. Por exemplo,


Silvia Hunold Lara comenta uma análise da legislação portuguesa seiscentista,
segundo a qual 57% dos diplomas legais entre 1640 e 1699 diziam respeito ao
Brasil. Dentro deste montante, 27,9% dos textos versavam sobre as instituições e
a administração do Brasil, 3,33% diziam respeito à legislação sobre a escravidão
de origem africana3. A partir destes dados conclui que:
Embora restritos ao século XVII, estes dados revelam a importância das
regiões americanas no império português e das relações escravistas entre
os dois continentes que ladeiam o Atlântico. Mas, indicam também uma
tônica importante. As determinações legais não instituíam nem pretendiam
moldar a relação senhor-escravo: ela pertencia à alçada do domínio privado
do senhor. As leis tratavam do que interessava à Igreja, ao recolhimento
dos impostos, aos contratos de compra e venda, aos que atentam contra
o poder senhorial, incitando contra as fugas. Havia um cuidado para não
interferir no poder senhorial e no direito do senhor sobre o escravo.

Entretanto, se esta é a conclusão para o século XVII, o cenário parece


começar a mudar nos séculos seguintes, com especial relevo a partir dos Códigos
Iluministas, nas palavras da própria autora:
Este traço marcante foi muitas vezes atenuado pela emergência da face
paternal do soberano preocupado com o mais ínfimo dos seus súditos
– e que interferia para corrigir abusos, afastar a crueldade dos castigos,
o excesso no luxo das escravas, cuidar para execução de um enterro
cristão, etc. a intenção era clara: cortar o excesso, sem entretanto afetar

penal no Antigo Regime. In: Justiça e litigiosidade: história e prospectiva de um paradigma. Lisboa (Portugal):
Calouste Gulbenkian, 1993, p. 287-379.
2 HESPANHA, loc. cit.
3 Considerando-se os indígenas à parte, com 3,9%. Embora acrescente que esta porcentagem deva ser acrescida
dos índices relativos à África, pois 13,6% da legislação dirigida a este continente trata do embarque, comércio
e transporte dos escravos.

354
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

o poder dos senhores nem dar margem à ‘soltura dos escravos. Estas
determinações legais tem sido pouco estudadas. Entre os poucos a lidar
com o tema, o entendimento mais frequente é que possam ter relação
com movimentos de codificação das relações escravistas ocorridos em
outras nações europeias (como no caso da legislação sobre Dom Pedro
II e o Code Noir) ou com movimentos letrados de críticas às relações
entre senhores e escravos.4

Leila Algranti, em estudo realizado sobre a escravidão urbana na cidade


do Rio de Janeiro, para o início do seguinte século XIX, utilizando os registros
policiais, nomeia-o, sugestivamente, “O feitor ausente”. Esclarece que nas cidades,
esta tendência intromissiva do Estado imperial, através da polícia e do aparato
judiciário que aplicava o direito criminal, é ainda mais visível. O feitor está au-
sente porque está presente a figura vigilante do Estado, “que assumia as tarefas
da feitorização e provocava novos arranjos no sistema escravista, colorindo as
relações sociais com novos tons5.”

Ao discorrer sobre as características da escravidão urbana, Leila Algranti


explica que nas cidades os escravos circulavam muito mais livremente, deslocando-
se por todo o perímetro urbano desacompanhados. Um exemplo emblemático
dessa condição diferenciada do escravo urbano era o do chamado escravo ao
ganho. O fato de o escravo não estar, nas cidades, sob o constante olhar do
senhor ou do feitor, trouxe como uma de suas implicações, uma presença maior
do Estado no controle e punição dos escravos:
Nas fazendas, os escravos eram punidos ou pelas mãos do feitor ou
pelas do senhor. Nas cidades, o proprietário que não quisesse castigar
seu escravo pessoalmente podia recorrer à polícia para tais funções,
mediante pagamento. Os negros eram punidos ou nas prisões, ou nos
vários pelourinhos espalhados pela cidade, de acordo com a vontade
do senhor. Cabia também ao poder público punir os cativos por ou-
tras infrações das leis da cidade, ou simplesmente por serem suspeitos.
Portanto, o vazio deixado pela ausência de fiscalização total do senhor
era preenchido pelo poder público, altamente interessado em manter a
ordem da cidade e evitar aglomerações perigosas de negros. ‘Os serviços
municipais de correção expressam a importância do controle público
sobre a população escrava nas cidades... poucas coisas ilustram melhor
as diferenças entre as condições rurais e urbanas’. Dessa forma, ao ultra-
passar os limites da propriedade de seu amo, o escravo escapava ao seu
controle, mas caía em outro: o controle dos elementos e representantes do
poder público. Entre o escravo e o senhor interpunha-se uma nova figura:
o Estado e seus agentes.6

4 LARA, Silvia Hunold. Os escravos e seus direitos. In: NEDER, Gislene (Org.). História & direito: jogos de
encontros e transdisciplinaridade. Rio de Janeiro (RJ): Revan, 2007. Grifos nossos.
5 Apresentação da obra, na contracapa, por Laura de Mello e Souza. In: ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor
ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro (1808-1822). Petrópolis (RJ): Vozes,1988.
6 ALGRANTI, 1988, p. 51. Grifos nossos

355
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

Se esta é a conclusão de Algranti para o começo do século XIX, ela já é


divisada com muito mais clareza por Roberto Guedes Ferreira, ao considerar toda
a primeira metade deste século, referindo-se ainda à cidade do Rio de Janeiro.
Para este historiador, existe a intromissão do Estado no domínio senhorial. O
que ainda é objeto de dissonância é qual a medida desta intromissão, quando
ela ocorria e mesmo se ela teria sido capaz de alijar o poder senhorial, o que
ele denomina de “impasse historiográfico”. Não deixa, contudo, de sublinhar a
importância da questão, citando Algranti e Sidney Chalhoub:

Sidney Chalhoub destaca a importância das conclusões de Leila Algranti,


na medida em que a autora percebe uma tendência que se ampliaria ao longo
do século XIX, mas o autor faz suas ponderações, ao ressaltar que a intervenção
do Estado, no período Joanino, se restringia aos espaços públicos. A tarefa de
compelir os escravos ao trabalho continuava da alçada dos senhores. E acrescenta:
Se a escravidão é uma forma de organização das relações de trabalho
assentada numa política de dominação [sobre bases pessoais], então a
emergência de um aparato político-administrativo apto e disposto a interferir
sistematicamente nas relações entre senhores e escravos (...) é efetivamente
um momento de ruptura no processo histórico.7

Nesse sentido, se levarmos em conta essas importantes observações dos


historiadores brasileiros e considerarmos presente a hipótese de pesquisa em
questão, qual seja, a da presença crescente do poder público no governo dos
escravos a partir do século XIX, ao menos duas questões preliminares podem
ser extraídas da hipótese inicial. Em primeiro lugar, quais as origens desta nova
postura do Estado imperial; em segundo, quais as implicações dela nas relações
senhor-escravo e no direito punitivo doméstico, bem como, de modo mais amplo,
na própria instituição da escravidão.8

Examinemos a primeira questão. No que diz respeito aos antecedentes


nacionais, àquilo que prepara o caminho para a expansão estatal sobre o controle
punitivo dos escravos, do ponto de vista da história do direito, cabe mencionar o
papel precursor que parece ter exercido a Intendência Geral de Polícia no Rio de
Janeiro, criada em 1808, logo após a chegada da Família Real Portuguesa ao Brasil.

De acordo com Andréa Slemian, a mencionada instituição foi criada com


objetivo de controlar a cidade e seus habitantes, instituição de transição entre o
direito penal de Antigo Regime e as modernas ideias liberais que se assentariam

7 FERREIRA, Roberto Guedes. Autonomia escrava e (des)governo senhorial na cidade do Rio de Janeiro da
primeira metade do século XIX. In: FLORENTINO, M. (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos
XVIII-XIX. Rio de Janeiro (RJ): Civilização Brasileira, 2005, p. 231-283. Grifos do autor.
8 E, até mesmo, no regime político do Estado, já que no final do século XIX não apenas cai o regime escravista
com a abolição (1888), mas também o Império, com ascensão de um novo modelo político, a República, já
em 1889.

356
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

com a Constituição Imperial de 1824. Segundo a autora, o Intendente Geral


aplicava penas e punições, atuando tanto no âmbito do legislar quanto no do
executar. A primazia do bem público estava vinculada “à redefinição do papel do
Estado como controlador da sociedade9”, ao seu papel moralizador e civilizador10.

Nesse sentido, a vigilância sobre os habitantes da cidade será constante,


inclusive quanto aos negros. Em 1818, o Intendente Viana se posicionava con-
trariamente aos maus tratos praticados pelos senhores contra os escravos, cujas
reclamações não paravam de chegar à Intendência.
No intuito de diminuírem os abusos, a Intendência interferia nos castigos,
e comprometia-se, mesmo, em executá-los no Calabouço, mediante o
pedido e o pagamento feitos pelos senhores. Era assim que a Polícia
chegava a proteger o escravo, evitando sua mutilação ou morte, o que
acarretaria ‘prejuízo deles mesmos [os escravos], do Estado, e até atentado
à própria humanidade’.11

A autora ilustra essas observações citando um caso ocorrido em 1818,


de uma escrava que fora entregue à Polícia por sua senhora para que recebesse
a pena de duzentos açoites:
Após a aplicação da metade da pena, sua aplicação foi desaconselhada
pelo cirurgião em vista de a negra correr sério risco de vida. Contrariada
com isso, a senhora levou sua escrava de volta para casa e pagou para
que um negro de seu vizinho continuasse a açoitá-la. O Intendente Viana
não pôde conter sua indignação com a atitude da senhora, e afirmou
que ‘nem a humanidade nem as leis de S.M. podiam jamais sofrer que um
senhor desumano pudesse ter mais liberdade do que a Autoridade Pública
para continuar a seu arbítrio a praticar sevícias.’ Além disso, o ‘arbítrio do
Estado’ havia sido ignorado.12

Deste modo, se a Polícia do Rio de Janeiro podia somar esforços com


o poder senhorial na punição dos escravos, não é menos verdade que passava
também a poder controlar a intensidade do castigo aplicado, como o número
de açoites e a frequência deles. Delegação do poder punitivo privado, portanto,
que acabava por permitir também a sua restrição.

9 SLEMIAN, Andréa. Políticas em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1824). São Paulo: Hucitec, 2006, p. 71.
10 Da mesma forma, Airton Seelaender escrevendo sobre a modernidade do direito público e as mudanças
que ocorreram na administração real, esclarece sobre as origens da figura do Intendente, que ele deita raízes
no commissaire da monarquia francesa do século XVII, os novos mandatários da Coroa: “Mais controlável pela
Coroa do que o “officier”, o “commissaire” desempenhava funções estratégicas, nas áreas em que a confiança e
a eficiência importavam particularmente. Eram “commissaires” os Secretários de Estado, estes antecessores dos
atuais ministros. Eram “commissaires” os embaixadores, o “Controlador Geral das Finanças”, o Tenente Geral da
Polícia de Paris. Eram “commissaires” sobretudo os intendentes, nervos essenciais que vinculavam a cabeça da
monarquia às províncias e nelas tentavam implantar as diretrizes do Absolutismo Reformador.” SEELAENDER,
Airton Cerqueira-Leite. O contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público na idade moderna.
Revista Sequência, n. 55, dez. 2007, p. 270.
11 SLEMIAN, 2006, p. 75. Grifos nossos.
12 Idem, p. 76. Grifos nossos.

357
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

É, porém, o estudo de Kirsten Schultz, que indica a nosso ver com mais
precisão o caráter preparatório exercido pela Intendência Geral de Polícia no
tratamento jurídico criminal dado ao escravo que será posteriormente delimitado
pelo Código Criminal de 1830.

Segundo Schultz, a Coroa, agora instalada no Rio de Janeiro, passou a ter


de considerar também os peticionários do Novo Mundo, “ainda que não tivessem
status de vassalos”, caso dos escravos que buscavam “justiça junto ao trono”:
Consequentemente, a transformação do Rio de Janeiro em corte e a
redefinição da monarquia na América significaram reconciliar ideias de
vassalagem e justiça real com o uso difundido da escravidão e com os
residentes africanos e afro-brasileiros que formavam a maioria dos resi-
dentes da população da cidade. Enquanto ‘todas as pessoas sem exceção
nem qualidade nem de Côr’ reivindicavam os seus ‘direitos’ de vassalos, a
autoridade do rei antagonizou a autoridade do senhor.13

Os escravos apelavam ao Rei, que por sua vez procurava conselho no In-
tendente de Polícia. Como um importante intermediário, o Intendente aconselhava
ou desaconselhava o Rei a intervir. Inicialmente, o Intendente tentou desviar os
requerimentos da “intervenção extraordinária” real, despachando no sentido de que
os peticionários deveriam buscar os “meios ordinários” de solução legal na justiça14.

Mas, a medida não surtiu efeito, pois os escravos continuavam a “se


queixar ao Paço”, inclusive por maus tratos, alegando que “a sua ‘condição baixa’
os qualificava para a intervenção real, porque esse status na verdade os desqua-
lificava para o uso dos processos judiciais estabelecidos, que favoreciam os ‘ricos
e poderosos’.15”

Citando também o mesmo caso acima referido por Slemian, apresentado à


Intendência em 1818, o da escrava Policena, no qual a senhora da mesma escrava
demonstrara “rebeldia à ordem do Intendente” de abreviar a punição aplicada a
esta última, a autora escreve que o Intendente:
13 SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a Corte real portuguesa no Rio de Janeiro (1808-
1821). Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 222. Grifos nossos.
14 “Orientando os escravos a usarem as cortes reais para dirimir suas queixas, Viana tanto estava defendendo o
processo judicial e a autoridade dos magistrados quanto reconhecendo a integridade das queixas dos escravos
e, [...] ‘a [sua] triste condição’ no Brasil. Ao fazê-lo, e talvez involuntariamente, ele construiu uma identidade
política única para os escravos. Como outros vassalos, escravos tinham ‘direitos’ e, conforme observou frequen-
temente em relatórios sobre petições de residentes livres e escravos da cidade, garantir esses recursos era parte
fundamental da manutenção da ordem, da unidade e da lealdade, mitigando possíveis consequências violentas
do descontentamento. Contudo, somente para escravos os direitos eram excepcionalmente limitados; cessavam,
segundo Viana, antes de chegar ao trono. Em outras palavras, se, como argumentou posteriormente um jurista
do século XIX, a posição dos escravos e pessoas livres sujeitou-os a uma ‘legislação peculiar’, no Rio de Janeiro
de Dom João, essa mesma posição pareceu fazer deles vassalos peculiares. Numa contradição lancinante do
princípio da monarquia absoluta – em que todo o poder se concentrava na figura exclusiva do monarca – as
petições de escravos e ex-escravos podiam ser avaliadas por um magistrado real, mas não pelo monarca que
o magistrado representava.” Idem, p. 245-246.
15 Idem, p. 247.

358
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

[...] também reconhecia, [que] a solução para este dilema econômico


e imperial mais amplo estava vinculada à autoridade dos senhores. A
frequência com que os escravos peticionavam à intendência como ao
‘Soberano e [...] Todas as Reaes Pessoas’, que, por sua vez, enviavam os
escravos maltratados à Intendência, explicou Viana, pedia uma ‘medida fixa’
que não só restringisse os maus tratos per se, mas também acabasse com
a ‘ilimitada liberdade’ que os proprietários tinham assumido em relação a
escravos. Embora ele desaconselhasse a criação de um Código dos Negros,
a ‘falta de legislação adequada ao actual estado das coisas’, insistia Viana,
fazia com que toda e qualquer tentativa de regulamentar a escravidão
parecesse infundada e, portanto, mais fácil de o proprietário de escravos
ignorar. Uma nova legislação, por sua vez, prepararia os proprietários para
as restrições adicionais necessárias ‘ao seo mal intendido, e arbitrario domi-
nio’, a ações que às vezes levavam a assassinatos impunes e provocavam
o desaparecimento de escravos, a criação de quilombos e outros tipos
de desordem. Prover um recurso mais eficiente à justiça preservaria, neste
sentido, a ordem social e a escravidão no Brasil, e também mitigaria uma
futura confrontação mais ampla, pois como Viana ambivalentemente ob-
servou, ‘o Grande Edificio da Liberdade, e da desafronta da humanidade
perseguida, crescerá’.16

Ambivalente é a palavra certa, pois se tal medida preservaria a ordem social


e a escravidão ela também limitaria esta mesma instituição criando restrições, e,
portanto diminuindo o seu âmbito ou ao menos os poderes privados que dela
emanavam para os senhores:
Contudo, ao mesmo tempo em que Viana sugeria que responder às
denúncias de abuso feitas pelos escravos por meio de decisões judiciais
evitaria outras formas de resistência e, portanto, funcionaria indireta-
mente em favor dos seus proprietários, ele também reconhecia, como
os próprios escravos peticionários do Rio, que na autoridade ‘arbitraria’ e
‘ilimitada liberdade’ dos seus proprietários eles e o príncipe regente tinham
um inimigo comum. Não só se extinguiam os direitos dos proprietários
em caso de desumanidade, mas, conforme ele explicou, ‘nem as leis de
Sua Magestade podião jamais sofrer que um Senhor dishumano podesse
ter mais liberdade, do que a Autoridade Publica, para continuar a seo
arbitrio a praticar sevícias’. Em outras palavras, a própria autoridade da mo-
narquia, teoricamente reconhecida como absoluta, era enfraquecida quando
proprietários de escravos agiam de maneira que seu soberano não podia
agir. A solução, aconselhou o intendente, era deixar claro que a autoridade
do proprietário de escravos era manifestamente circunscrita pela lei e pela
Coroa por ela representada.17”

Que o leitor nos perdoe as longas citações, porém estes trechos são fun-
damentais para a interpretação que vamos propor: essa nova legislação restritiva
reclamada pelo Intendente, esse “princípio não codificado”, nas palavras precisas
de Schultz, de intervenção régia a favor dos escravos e de limitação dos direitos
16 SCHULTZ, 2008, p. 251. Grifos nossos.
17 Idem, p. 252. Grifos nossos.

359
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

de propriedade do senhor, que, conforme o Intendente não podia incluir castigos


excessivos e encarceramento, será codificado, literalmente, ao menos no âmbito
do direito criminal, com o Código Criminal de 1830.

Se examinarmos o referido Código Criminal veremos que ele continha


um dispositivo específico para os réus escravos, prevendo logo no artigo 60 que
seriam condenados na pena de açoites (fixados na sentença, não superiores a 50
por dia), sempre que não o fossem na pena capital ou de galés. Além disso, o
senhor seria obrigado a trazê-lo com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz
designasse.18 E o artigo 14, que estabelecia os casos de crimes justificáveis, nos
quais não teria lugar a punição, determinava no parágrafo 6° os limites do poder
punitivo doméstico dos senhores: “Quando o mal consistir no castigo moderado,
que os pais derem a seus filhos, os senhores aos seus escravos e os mestres aos
seus discípulos; ou desse castigo resultar, uma vez que a qualidade dele, não seja
contrária às Leis em vigor.”

Investiguemos um pouco melhor as origens destes artigos. Durante os de-


bates para a aprovação do Projeto de Código Criminal brasileiro, a única questão
levantada para discussão em plenário foi se, numa nação civilizada, seria aceitável
a manutenção das penas de morte e galés. Os deputados desejavam excluí-las,
até porque a própria Constituição do Império de 1824 já as havia abolido. Nesse
sentido, Bernardo Pereira de Vasconcelos, autor de um dos projetos de Código
apresentados para análise e discussão, pedia aos deputados que primeiro de-
clarassem se o Código compreenderia os escravos. A questão era importante,
na medida em que “todos os que falaram a favor da pena capital alegaram ser
a existência da escravidão uma das principais razões para sua manutenção19”.
Durante os quatro dias de debate, um argumento foi decisivo: o Brasil ainda se
encontrava num grau inferior de civilização, pois era um país escravagista e dada
a condição do escravo, somente a pena de morte seria capaz de dissuadi-lo do
crime, somente ela seria capaz de conter os escravos e garantir ordem.20

18 Código Criminal do Império do Brasil de 1830. Anotado pelo Dr. Braz Florentino Henriques de Souza. Recife
(PE): Thypographia Universal, 1858, p. 31. Disponível em: http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/221763. Acesso
em: 15.03.2017.
19 SLEMIAN, Andrea. À nação independente, um novo ordenamento jurídico: a criação dos Códigos Criminal
e do Processo Penal na primeira década do Império do Brasil. In: RIBEIROS, Gladys Sabina (Org.). Brasileiros e
cidadãos: modernidade política (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2008, p. 175-206.
20 Muitos pesquisadores tem sublinhado o caráter retórico desse argumento, direcionado à manutenção da
escravidão e, sobretudo, da pena de morte no Império, inclusive para os livres. Entretanto, o problema é bas-
tante complexo, pois se é plausível a mobilização retórica do argumento, também é certo que ele encontrou
ressonância na consciência dos deputados, que votaram favoravelmente à manutenção daquela pena, a ser
aplicada no regime do Código do mesmo modo para livres e escravos. Sobre o caráter retórico do argumento,
dentre outros, ver: COSTA, Vivian Chieregati. Codificação e formação do Estado –nacional brasileiro: o Código
Criminal de 1830 e a positivação das leis no pós-independência. Dissertação de mestrado. Universidade de São
Paulo. 2013. p. 172-202.

360
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Deste modo, com base em um argumento escorado na segurança pública


e na manutenção da ordem interna do Império, o escravo foi incluído no novo
direito que se começava a construir para uma nação independente, pela porta
de entrada da lei penal. Seria julgado da mesma forma que os demais homens
livres, com a única distinção estabelecida na aplicação das penas (já que so-
mente para ele existiam os açoites). De nada adiantou, portanto, a Constituição
do Império ignorar a existência de escravos, deixando de conter qualquer regra
para a definição de sua condição jurídica. Conforme Ricardo Alexandre Ferreira,
“é possível afirmar que o silêncio do texto constitucional quanto aos cativos era
juridicamente sustentável e reafirmava a escravidão não incluindo coisas ou objetos
de propriedade (os escravos) em regras destinadas a cidadãos21”.

Não obstante isso, e mesmo que um dos comentadores do Código Cri-


minal, Braz Florentino Henriques de Souza, seguindo esta mesma ideia, em nota
logo abaixo do mencionado artigo 60, afirmasse com resoluta tranquilidade que
não havia ali um conflito com a Constituição Imperial, e, referindo-se ao disposto
no seu parágrafo XIX do artigo 179 que abolia as penas cruéis, acrescentasse: “os
escravos acham-se fora dela”. Ou seja, que a Constituição não era aplicável aos
escravos. Era o diploma dos homens brancos e livres22. Entretanto, é nítido que
os escravos entravam novamente no âmbito do direito pelo Código Criminal do
Império, oscilação esta que não passou totalmente despercebida pelo comentador
Código, já que considerou necessário fazer constar a nota.

Esta última constatação mostra como é importante estudar a condição


jurídica do escravo no âmbito do direito criminal do Império, já que ela não é a
mesma que vigora no âmbito do direito civil. A introdução do escravo no âmbito
do Código Criminal reafirma aquilo que Perdigão Malheiro já havia observado e
que procura explicar em sua obra “A Escravidão no Brasil,” publicada em 1866:
Em relação à lei penal, o escravo, sujeito do delito ou agente dele, não é
coisa, é pessoa na acepção lata do termo, é um ente humano, um homem
enfim, igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Re-
sponde, portanto, pessoal e diretamente pelos delitos que cometa, o que
sempre foi sem questão. Objeto do delito, porém, ou paciente, cumpre
distinguir. O mal de que ele pessoalmente possa ser vítima não constitui
o crime de dano, e sim ofensa física, para ser punido como tal, embora o

21 FERREIRA, Ricardo Alexandre. Crimes em comum: escravidão e liberdade sob a pena do Estado imperial
brasileiro (1830-1888). São Paulo (SP): Unesp, 2011, p. 166. Grifos do autor.
22 A Constituição Imperial também incluía os libertos entre os cidadãos no artigo 6, inciso I. Porém, o artigo
94, parágrafo 2º, logo esvaziava esta cidadania proibindo que eles fossem eleitores (num contexto de voto cen-
sitário), o que vedava também o acesso a cargos públicos cujo requisito fosse a condição de eleitor. Ademais,
o liberto podia voltar à condição de escravizado, pois havia a previsão legal de reversão da alforria concedida
em caso de ingratidão para com o Senhor (Ordenações Livro 4, Título 63, parágrafo 7 e ss.). Esta previsão só
viria a ser revogada em 1871, pela Lei nº 2.040.

361
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

ofensor fique sujeito a indenizar o senhor; nesta última parte, a questão


é de propriedade, mas na outra é de personalidade.23

Ou seja, ao considerar o escravo enquanto pessoa perante o crime atri-


bui-se a ele a personalidade negada pela condição de cativo, pois ele passa a ser
imputável: capaz de responsabilidade penal24. Em outros termos, incluir o escravo
no âmbito da lei penal significa retirá-lo do mundo das coisas e submetê-lo às
leis (punitivas, é certo) dos homens.

Jacob Gorender também notou esta contradição, quando diz que o es-
cravo transcende a condição de coisa possuída no relacionamento com o senhor
e com os homens livres em geral por meio do ato criminoso:
O primeiro ato humano do escravo é o crime, desde o atentado contra
o senhor à fuga do cativeiro. Em contrapartida ao reconhecer a respon-
sabilidade penal dos escravos, a sociedade escravista os reconhecia como
homens: além de incluí-los no direito das coisas, submetia-os à legislação
penal. Essa espécie de reconhecimento tinha, está claro, alto preço. Os
escravos sempre sofreram as penas mais pesadas e infamantes. [...] mas a
pena mais cruel justamente por ser uma pena, implicava o reconhecimento
de que se punia um ser humano.25

Os legisladores brasileiros do século XIX poderiam ter omitido o escravo


no Código Criminal, assim como fizeram os constituintes na Constituição de
1824, poderiam ter feito como o legislador francês que criou um Código Negro
especificamente destinado a regê-los, mas nenhuma dessas foi a opção escolhida
e sim a que incluiu o escravo no Código Criminal, o mesmo que se aplicava a
todos os homens livres, de modo que com esta inclusão assentaram definitiva-
mente a condição jurídica de pessoa do escravo em nossa legislação criminal. O
caminho tomado é da maior importância pelas implicações que disso resultam
para o poder punitivo doméstico senhorial, para os escravos e para a própria
instituição da escravidão. Vejamos resumidamente algumas dessas implicações
em notas preliminares de pesquisa:

23 E logo no parágrafo seguinte explica que por ser o escravo considerado pessoa quando perpetra um delito,
esta interpretação não macula a possibilidade de novamente ser objeto, dando azo a crime de furto. Isto é,
furtar escravos de outrem é um crime unicamente contra o senhor (não contra o escravo). É um crime contra
a propriedade que o Código Criminal caracteriza como roubo e não um crime contra a pessoa (do escravo).
Portanto, volta novamente o escravo a ser coisa nessa hipótese. MALHEIRO, Perdigão. A escravidão no Brasil:
ensaio histórico, jurídico, social. Introdução de Edison Carneiro. 3 ed. Petrópolis (RJ): Vozes; Brasília (DF), INL,
1976, p. 49. Os grifos são do autor.
24 Nesse mesmo sentido, escrevem Arno e Maria José Wehling: “Com tais predisposições e ambigüidades,
como a legislação situava o escravo em juízo? Preliminarmente deve ser observado, como regra geral quanto
ao direito material, que na área civil o escravo era objeto da relação jurídica, uma vez que sobre ele se exercia
um direito de propriedade. Mas na área penal, admitia-se a dupla condição de sujeito e objeto da relação
jurídica, pois o crime que cometia lhe era imputável.” WEHLING, Arno e Maria José. Direito e justiça no Brasil
colonial: o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro (1751-1808). Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 481.
25 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo (SP): Editora Ática, 1992, p. 51. Grifos nossos.

362
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

1. Ao contrário do que se sustenta, o primeiro Código Criminal do Império


é moderno precisamente porque incluiu os escravos e não o inverso. A inclusão
do escravo no Código é uma confirmação da vocação dessa nova forma jurídica
dos nascentes Estados-Nação26: a tendência à completude, à redução das fontes
do direito, e, no âmbito penal, o crescente monopólio da violência, que ia aos
poucos eliminando os últimos redutos do direito punitivo privado. Como sabe-
mos, no Brasil, este direito tinha um forte exemplar no direito punitivo privado
dos senhores. Isto é, no direito doméstico de castigar e punir os escravos. Não
é ao acaso que já em maio de 1832, poucos meses antes da promulgação do
segundo Código brasileiro, o Código do Processo Criminal, já é possivel encontrar
um Ministro da Justiça, o liberal Diogo António Feijó, no Relatório apresentado
à Assembleia Geral Legislativa, ao comentar o estado das prisões na Corte em
especial do Calabouço, a prisão destinada aos escravos, a seguinte afirmação: “O
Governo julgou que a autoridade dos senhores restrita à correção de faltas, não
devia estender-se à punição de crimes reservada à Justiça. Os escravos são homens,
e as Leis os compreendem.27” (grifos nossos);

2. Como se extrai desta última citação, o Código Criminal determinava o


julgamento pelo poder público da imensa maioria dos crimes, isto é, pelo poder
judiciário, inclusive dos escravos, relegando apenas os pequenos delitos (crimes
policiais), que hoje classificaríamos, sobretudo, como contravenções penais, às
posturas municipais (as quais de qualquer forma ainda importavam num julga-
mento pelo poder público municipal, pelos juizes de paz, inicialmente, e pelos
subdelegados, delegados e juizes municipais após a reforma do Código de Pro-
cesso criminal, de 1841). Aos senhores restava tão somente o “castigo moderado”
de que falava o mencionado artigo 14, correspondente ao poder disciplinar e
à correção de faltas leves. Incorporando o sentido restritivo desta legislação, é
possível citar a Portaria de 3 de novembro de 1831, na qual o Regente Feijó
determinava à Intendência Geral de Polícia que não aplicasse aos escravos mais
de 50 açoites, e em dois dias, à requisição dos senhores, e que quando o escravo
tivesse cometido um crime, deveria primeiro “preceder processo legal, para em
consequência de sentença serem dados mais açoites, visto que mais de 50 deve-se
entender excesso de correção, e por isso proibido pela Lei28.” Ainda, em 1882, um
juiz de direito da Província de São Paulo, sustentando esta mesma compreensão

26 Sobre as características da forma Código, dentre outros ver: TARELLO, Giovanni. Storia della cultura giuridica
moderna: assolutismo e codificazione del diritto. Società editrice il Mulino: 2016.; GROSSI, Paolo. Code Civil:
uma novíssima fonte para a nova civilização jurídica. Extraído de: Atti del Convegno “Il bicentenário del códi-
ce napoleônico (Roma, 20 decembre 2004).”. Roma: Bardi Editore, 2006, p. 19-42. Tradução de André Ribeiro
Giamberardino.
27 Relatório do Exmo. Ministro da Justiça Diogo Antonio Feijó do ano de 1831 apresentado à Assembleia Geral
Legislativa na sessão ordinária de 1832. Rio de janeiro. Disponível em: http://www-apps.crl.edu/brazil/ministerial/
justica. Acesso em: 15.03.2017.
28 ARAUJO, José Paulo de Figueirôa Nabuco. Legislação brasileira ou coleção chronologica das leis, decretos,
resoluções de consulta, provisões, etc. do Império do Brazil, desde o ano de 1808 até 1831 inclusive. Tomo II. Rio
de janeiro: 1844, p. 527.

363
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

de que somente a lei penal cabe definir os crimes, e a lei processual determinar
o seu julgamento, reformou um despacho de impronúncia, para determinar ao
promotor público que procedesse a nova queixa contra uma senhora, pelas penas
do artigo 201 do Código Criminal, em face de castigos aplicados em sua escrava
Eva, entendida por ele como pessoa miserável29 e, logo, representável ex officio
pelo promotor público. Esta interpretação contornava o disposto no art. 75, §2º
do Código de Processo Criminal, que vedava ao escravo dar denúncia contra seu
senhor, indicando que se o escravo não podia fazê-lo pessoalmente, o promotor
não só podia como devia, tomando-o como pessoa miserável, o que na prática
equivalia à denuncia do senhor pelo Estado.

3. Acompanha esta última constatação uma outra que parecerá extrema-


da, e de fato o era logo que o Código Criminal foi promulgado: ao acolher os
açoites como a principal pena aplicável aos escravos, o Código transformava o
antigo costume senhorial de açoitar os escravos em pena pública, e que portanto
somente poderia ser aplicada pelo Estado, em caso de cometimento de crime.
Esta intepretação, é verdade, pressupõe já a presença do princípio da legalidade
na legislação penal. Mas, ela era extraível da Constituição (art. 179, inciso I, “Nen-
hum cidadão será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em
virtude de lei”, e inciso II, “nenhuma lei será estabelecida sem utilidade pública”)
e estava presente logo no artigo de abertura do Código Criminal (“Art. 1º Não
haverá crime, ou delicto (palavras synonimas neste Código) sem uma Lei anterior,
que o qualifique.”), portanto, ao menos na lei em tese, o que está mais uma vez
em consonância com a pretensão monopolista dos Códigos. Para ilustrar como
era possível o emprego desta interpretação, é possivel citar um caso ocorrido
em 1873, quando um juiz de direito da Província do Piauí condenou um senhor
por ter chicoteado barbaramente um escravo já idoso, decisão que proferiu à
revelia inclusive das conclusões do juri que considerara o castigo moderado. O
juiz condenou o senhor nas penas do artigo 201 (ferimentos leves), sob o argu-
mento de que “como é o açoute uma pena e por isso contrário às leis em vigor
(§.6° do art. 14 do Cod. Crim); pena essa que só poderá ser aplicada em virtude de
commutação por sentença nos casos indicados no art. 60 do mesmo Código.30”; e
29 Neste caso o juiz de direito interpretou o artigo 14 como uma circunstância meramente justificativa, não
dirimente, ou seja, a aplicação de castigos moderado pelo senhor é um crime (perfeito), que somente fica isento
de pena no caso de ser moderado. Inexistindo a moderação, quando o castigo for contrário às leis em vigor,
afasta-se a circunstância que suspende a punição e surge o crime de ofensas físicas leves (ou graves conforme
o caso): “E dahi, ainda, o erro daqueles que entendem, violando taes princípios, não autorizar a lei o processo
contra o senhor que commette na pessoa de seu escravo o crime do art. 201 do código; como se não fora o
maior de todos os absurdos pretender que haja um crime, um só sequer, dos qualificados pelo legislador penal, ao
qual não seja aplicado sempre e em todos os casos da lei processual respectiva, cujo objetivo outro não é senão,
precisamente, prescrever e regular, por seus preceitos, o modo de investigar todos os fatos que, nas relações dos
casos ocorrentes, vão traduzindo crimes definidos pela lei penal. [...] por mais que isso repugne aos costumes e usos
tradicionais que parecem ter investido o senhor da faculdade de praticar impunemente no escravo ofensas físicas
de caráter leve, deve ser em todo caso respeitada e cumprida a lei, que vê em semelhante atentado um crime
sujeito à sanção penal e só suscetível de justificação nas condições por ela mesma estatuída.” O Direito, Revista
mensal de legislação, doutrina e jurisprudência, vol. 27, ano 10, jan./abr. 1882, vol. 27, p. 407-408. Grifos nossos.
30 O Cearense, ed.19, 5 de março de 1874, p. 4; Anais da Câmara dos Deputados, sessão de 10 de agosto de

364
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

ainda com um segundo exemplo: quando dos debates sobre a abolição da pena
de açoites para o escravo no Senado, em 1886, foi exatamente a distinção entre
o castigo doméstico e o regime público também pelos senadores denominado
de “regime do Código”, que foi invocada para revogar o artigo 6031;

4. Além disso, O Código reduzia enormente a pessoalidade das penas,


se comparado ao Livro V da Ordenações Filipinas, que ele visava substituir. Nas
Ordenações, a pena variava conforme a qualidade do réu, se fildalgo ou peão,
nobre ou plebeu, se judeu, cristão novo ou velho, etc. O Código ainda mantinha
uma distinção sob este critério, no que concerne à aplicação das penas: a que
diferia entre a condição jurídica de livre e a condição jurídica de escravo, já que,
como vimos, somente para os últimos empregava a pena de açoites. Contudo,
mesmo no que diz respeito às condição jurídicas distintas, é plausível dizer que já
havia também uma redução, se pensarmos que no século anterior, sob o direito
de Antigo Regime, existia pelo menos mais uma condição jurídica largamente
aplicada aos indígenas, a de administrado, como já esclarecemos em outro estudo32;

5. Tudo indica que houve de fato uma redução das fontes do direito
aplicáveis ao escravo, pelo menos a julgar pelos cerca de 50 processos criminais
da Cidade de Castro, no Paraná, que estamos analisando para verificar como se
processava na prática o julgamento dos escravos no âmbito criminal (seja como
vítimas ou réus). Sendo o processo mais recente, constante da nossa amostra,
do ano de 1843, não existe nele sequer uma citação do direito romano, mas tão
somente da nossa legislação penal, dos Códigos e das leis de reformas que os
seguiram, de avisos, portarias e outros atos do governo imperial. Se no âmbito do
direito civil, as Ordenações Filipinas e o recurso ao ius commune, bem como ao
direito romano em matéria de escravidão, ainda será amplamente utilizado até a
abolição em todo o Império, na ausência de um Código Civil, o mesmo parece
não ocorrer no âmbito do direito criminal. Aliás, neste último âmbito existir
uma proliferação de atos emanados do governo (portarias, avisos, decisões, atas,
etc) que incidem sobre o controle social dos escravos, diretamente atrelados à
expansão do aparato estatal o que parece reforçar aquilo que Airton Seelaender
denominou, em artigo recente, de uma “tendência à juridicização33.”
1874, tomo IV, p. 386-387. Grifos nossos. Este caso foi localizado pelo Historiador Ricardo Pirola e relatado em
sua comunicação oral no VIII Escravidão e liberdade no Brasil Meridional, realizado em Porto Alegre, em maio
de 2017. Como o autor optou por não publicar seu texto nos anais do evento, faço constar esta nota.
31 A Abolição no Parlamento, vol. II, p. 324 e ss.
32 Sobre a problemática da condição jurídica do indígena no período colonial, bem como para uma análise
detalhada das distintas categorias jurídicas de escravo, administrado e livre, concernente aos indígenas, o leitor
pode consultar o nosso: BRIGHENTE, Liliam Ferraresi. Entre a liberdade e a administração particular: a condição
jurídica do indígena na Vila de Curitiba (1700-1750). 2012. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Univer-
sidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Curitiba, 2012.
33 SEELANDER, Airton Cerqueira-Leite. A longa sombra da casa. Poder doméstico, conceitos tradicionais e
imaginário jurídico na transição brasileira do Antigo Regime à modernidade. “Livro do Centenário”, volume
temático da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro, a. 178, n. 473, jan./mar.
2017, p. 367.

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O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

6. Nesse sentido, pelo contrário, o que se verifica tanto nos processos


criminais, quanto nas atas e pareceres do Conselho de Estado, bem como nas
discussões parlamentares sobre o assunto, é que o Código Criminal passa a ser
o direito comum que rege a condição jurídica criminal do escravo, sobretudo,
por oposição à lei n. 4 de 10 de junho 1835, posteriormente editada, e que era
considerada uma lei de exceção por alterar dispositivos dos Códigos Criminal e
do Processo Criminal relativamente a alguns crimes cometidos por escravos34.

Poderíamos ainda aumentar este elenco, porém, estas observações já


são suficientes para mostrar a importância do nosso primeiro Código Criminal
enquanto diploma jurídico que rege a condição jurídica criminal do escravo no
Império do Brasil. Não obstante a sua importância central, ele foi completamente
esquecido nas análises da historiografia. Na verdade, não somente por ela, pois
se olharmos, por exemplo, uma obra como “A abolição no parlamento: 65 anos
de lutas (1823-1888)”, (em dois volumes, obra comemorativa do centenário da
Abolição, que pretende ser um repositório cronológico de todas as leis e projetos
sobre a escravidão no referido período, editado pelo próprio Senado Federal), já
na linha cronológica destas leis que aparece nas páginas iniciais (p.24-25, Vol. I),
sequer se menciona o Código Criminal de 1830, como se a história da legislação
penal imperial referente aos escravos começasse somente com a Lei n. 4, de 10
de junho de 1835, da qual parte a referida cronologia35.

No que diz respeito à segunda questão que derivamos da hipótese


inicialmente proposta, e que pergunta sobre as implicações desta intromissão
do poder público no domínio senhorial, o seu deslinde tem-se mostrado ainda
mais intrincado, sobretudo quando se analisam estas implicações a partir de
fontes primárias. A complexidade do assunto aparece na análise dos termos de

34 Um exemplo de como por direito comum, no âmbito criminal, entendia-se no Império, basicamente, o regime
do Código Criminal, encontra-se nesta passagem retirada das discussões sobre a abolição da pena de açoites e
da Lei de 10 de junho de 1835, em 1886, no Senado: “O SR. IGNACIO MARTINS – [...] O que eu digo é que,
se o júri negar a qualidade que é exigida no ofendido para ser classificado o crime do escravo na lei de 10
de junho, isto é, vejamos um exemplo: se o escravo ferir a um descendente do feitor, será processado pela Lei
de 10 de junho, mas se no julgamento provar que o ofendido não era descendente do feitor, será condenado
nas penas do Código Criminal pelo direito comum; porém, como ele foi processado e julgado de acordo com
a lei de 10 de junho, não pôde alegar circunstâncias atenuantes a seu favor, e portanto será condenado no
máximo, o que não aconteceria se ele tivesse sido processado e julgado pelo direito comum [ou seja, conforme
o Código Criminal], porque então poderia ter alegado atenuantes, que sendo reconhecidas levariam a pena
ao médio e ao mínimo. ´[...] Anais do Senado do Império (Sessão de 1-10-1886, p. 296 a 299). Discurso dos
Senadores Ignácio Martins e Cruz Machado sobre o Projeto “G”, em 1-10-1886. A abolição no Parlamento: 65
anos de luta. Vol. II. p. 425. Grifos nossos.
35 A lei de 10 de junho de 1835 também é importante para a configuração da condição jurídica do escravo
no Império e deve ser analisada conjuntamente com o Código Criminal. Contudo, esta análise ultrapassa o
recorte que fizemos para esta comunicação, na qual o enfoque foi direcionado a este último, que até agora
tem sido muito pouco estudado, quando não completamente esquecido pelos pesquisadores. Sobre a Lei de
10 de junho de 1835 em especial, ver: RIBEIRO, João Luiz. No meio das galinhas as baratas não tem razão: a
lei de 10 de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio de Janeiro:
Renovar, 2005.; PIROLA, Ricardo. Escravos rebeldes no tribunais do Império: uma história social da lei de 10 de
junho de 1835. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2015.

366
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

bem viver que faz Roberto Ferreira, nos registros policiais estudados por Leila
Algranti, ou nos processos criminais de campos dos Goitacases descritos por
Silvia Lara. Não é diverso daquilo que temos encontrado nos processos criminais
paranaenses envolvendo escravos como réus ou autores de crimes da segunda
metade do século XIX.

Muitas vezes os poderes público e senhorial foram contrapostos e en-


traram em conflito, já que os crimes cometidos por escravos também causavam
aos senhores grandes prejuízos, especialmente quando eles escapavam do jugo
privado da justiça senhorial para serem julgados pela justiça institucional, o que
levava alguns senhores à insatisfação e mesmo à recusa dessa intromissão num
âmbito que consideravam apenas de sua alçada.

Nesse sentido, encontramos nos processos criminais do século XIX, per-


tencentes ao Arquivo Público do Paraná, um senhor curitibano, que após ter
seu escravo condenado à pena de quatro anos e meio de galés pelo tribunal
do júri local, em razão deste ter roubado o próprio estabelecimento comercial
de sua propriedade, restava inconformado com a sentença que o condenou e
apelava para Tribunal da Relação no Rio de Janeiro, alegando que havia nulidade
no processo, como último recurso para tentar evitar a perda da mão-de-obra e
o capital empregado na compra de um escravo ainda jovem, que contava com
apenas 35 anos36.

Ainda, da documentação pertencente à Cidade de Castro, no Paraná, Ter-


mo que no século XIX concentrava a maior população de escravos da Província,
surge da documentação guardada no Arquivo Municipal outro caso, que mostra
como nem todos os senhores ficaram contentes com essa intromissão estatal e
buscavam por todos os meios afastá-los da justiça pública.

Trata-se do crime cometido em São José da Boa Vista (distrito do Termo


de Castro) pelo escravo Francisco no ano de 187537. Inicialmente, Francisco foi
acusado de tentativa de homicídio. No entanto, tratava-se de uma tentativa de
estupro, seguida de uma tentativa de homicídio. Dentre outras coisa, o que chama
atenção neste processo foram as tratativas estabelecidas entre o senhor do escravo
e o marido da vítima, que se iniciaram logo após o cometimento do crime. O
senhor do escravo propôs ao primeiro “fazer algum arranjo de acomodação, visto
que Virgínio [marido da vítima] estava com animal pronto para vir se queixar”.

36 “Traslado de Apelação Crime. Autos do Tribunal do Júri da Capital da Província do Paraná. Autora: a Justiça.
Maria Joanna liberta – Lauriano escravo do Capitão Manoel Antonio Carneiro, Francisco, Ricardo, Senhorinha e
Quitéria escravos de Dona Lourença Floriana De Lima – Réus presos”. BR PRAPPR PB 045 PI 5850 Cx.231. 1859.
Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná (DEAP).
37 Existem três autos no Arquivo Municipal de Castro (CCEE) que tratam deste processo, dentre originais e
traslado. Todos incompletos e em mau estado. “1876. Cidade de Castro. Tribunal do Júri. A Justiça. Autora. Francisco,
escravo de José Fernandez de Lima. Réu.” Transcrição nossa. As citações seguintes referem-se a este documento.

367
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

O marido pediu ao senhor do escravo a quantia de 600 mil réis, “o que o dito
Lima achou muito e respondeu que então valia mais a pena entregar o escravo
à justiça”. Como resultado das negociações, o acerto ficou em 200 mil réis, tendo
afinal o marido recebido 100 mil à vista, ao abrir mão de receber os 200 mil a
prazo, acrescentando a testemunha que “depois disso fizeram assinar um papel
desistindo da questão, digo de processo.”

Um contrato chegou a ser celebrado entre o senhor do escravo e o marido


da ofendida para que este último desistisse de denunciar o escravo às autoridades
judiciais, conforme relatou Carlos Ribeiro do Vale, uma das pessoas a assasinar
o contrato como testemunha. Mas, um terceiro agente da burocracia estatal
do Império interviu no trato, como narra a testemunha Antonio Ribeiro Nobre:
Disse finalmente que esteve em casa de Silvestre de tal, pai da ofendida,
quando o senhor do réu procurou obter a desistência de Virgínio quanto
à acusação do réu e que o mesmo Virgínio recebeu para este fim a
quantia de 100 mil réis, mas o inspetor de quarteirão, que esteve presente
nesta ocasião não quis aceder os pedidos para não levar ao conhecimento
das autoridades aquele delito porque sabia serem de mau procedimento
os escravos do dito Lima, tanto que um deles já sofrera um processo
por crime idêntico na província de Minas e a impunidade do reu serão?
a acoroçoá-lo a repetir iguais atentados, visto ser ele um escravo vadio
altaneiro a seu senhor, procedeu no exercício de sua autoridade e disciplina.”
(grifos nossos)

O inspetor de quarteirão era último elo do centralizado sistema de polícia


e administração da justiça do Império estabelecido a partir de 1841, cuja hierarquia
tinha como autoridade máxima o Ministro da Justiça. Exisitiam tantos inspetores
quantos fossem os quarteirões num determinado distrito. João Mendes de Almeida
Júnior escreve que o artigo 18 §2 do Código de Processo e o artigo 66 §2 do
Regulamento n.º 120 de 1842 determinavam as atribuições dos inspetores, dentre
elas a de “vigiar sobre a prevenção dos crimes” e “fazer prender os criminosos
em flagrante delito”. “Pimenta Bueno, nos seus Apontamentos sobre o processo
criminal, entendia que aos inspetores, bem como aos oficiais de justiça, cabia esta
atribuição como obrigação.38”

Não podendo impedir que o escravo fosse denunciado à Justiça, uma


vez que o crime de tentativa de homicídio era daqueles em que cabia denúncia,
inafiançável, prosseguindo de ofício através do promotor público39, restou ao
38 Na verdade, a função já existia no Código de Processo Criminal de 1832, junto com os juízes de paz. Foi
mantida com a reforma de 1841 e integrada no novo sistema. ALMEIDA JUNIOR, Joao Mendes de. O processo
criminal brasileiro. 4 ed., vol. 1. São Paulo (SP): Freitas Bastos, 1959, p. 310-312. (grifos do autor)
39 Aliás, essa tendência à ampliação dos crimes submetidos ao impulso oficial que também estava na base
da discussão sobre a separação entre a polícia e a justiça, era um movimento geral de ampliação dos poderes
do Estado que atingia também os livres, limitando cada vez mais a ação particular e consequentemente os
poderes locais. Nesse sentido, Koerner lembra que: “Já em 1850, Nabuco propunha que o Ministério público
deveria ter o direito de denunciar todos os crimes, sendo por consequência abolida a distinção entre os crimes

368
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

senhor contratar um advogado para tentar livrá-lo de uma condenação e do


risco que agora ele mesmo corria de perder a sua propriedade, caso o escravo
fosse condenado à morte ou a galés perpétuas.

Maria Helena Pereira Toledo Machado, que estudou a criminalidade es-


crava em Campinas e Taubaté, esclarece que a aplicação da pena capital e a de
galés perpétuas redundavam na perda total do valor do escravo40, sendo por este
motivo as penas mais odiadas pelos senhores. De fato, os historiadores indicam
que a Lei do Ventre Livre de 1871, seguida pela Lei dos Sexagenários, introduziu a
intervenção do poder público nas relações senhor-escravo e sobre a importância
que adquiriu então no discurso dos senhores o binômio direito de propriedade
versus liberdade. Se os senhores tinham de perder a propriedade dos escravos,
uma propriedade legalmente reconhecida, à perda deveria corresponder uma
indenização. Porém, quando se procura olhar o ordenamento jurídico do Império
como um todo, é possível perceber que essa intervenção do poder público já
estava presente bem antes no âmbito da legislação penal, já que neste âmbito
vigorava uma verdadeira desapropriação forçada dessa mesma propriedade. O
escravo condenado à pena de morte ou a galés perpétuas estava para sempre
perdido para o senhor que não tinha direito a qualquer indenização.

Foi exatamente na pena de galés perpétuas que o escravo Francisco foi


condenado pelo júri de Castro. Porém, o procurador contratado pelo senhor,
obteve êxito em anular o julgamento quando apelou para a Relação. O curador
nomeado naquela Relação para defesa do escravo, já que o recurso subira sem as
razões, ainda observava sobre a pena de galés que “quanto a questão de fundo
o crime descrito é horroroso, mas, sobre não estar provado que o réu o com-
etesse, a pena de galés é até ambicionada por escravos, tão pouco moralizadora
se tem tornado.”

Embora, o escravo Francisco ainda fosse julgado pelo júri de Castro por
mais três vezes, devido as sucessivas anulações dos julgamentos, que tiveram como
resultado final a sua surpreendente absolvição41, os dois casos que citamos, revelam
de ação pública e os crimes de ação particular. Ele era também favorável a reformas no júri, propondo que
se passasse para o juiz de direito o julgamento dos crimes de resistência e de retirada de presos, e também
o julgamento de todas as questões atribuídas aos juízes municipais. Na proposta de 1866, Nabuco de Araújo
defendia a atribuição exclusiva do Ministério Público para proceder à acusação dos criminosos e à limitação
da ação particular aos crimes contra a honra [...]. NABUCO, v. 1, p. 89-90 apud Koerner, Andrei. Judiciário e
cidadania na Constituição da República (1841-1920). 2 ed. Curitiba: Juruá, 2010, p. 50-53. (Coleção Biblioteca de
História do Direito).” Exigência esta última que foi acolhida quase integralmente na reforma de 1871. Além disso,
no projeto que Nabuco expôs na sessão de 15 de maio de 1866, conforme Nequete, caberia ao Ministério
público a defesa dos direitos daqueles a quem a sociedade deve proteção, dentre eles os escravos (quando
vítimas). NEQUETE, Lenine. O poder judiciário no Brasil a partir da independência (Império). Brasília (DF): Supremo
Tribunal Federal, 2000, p. 86.
40 MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas
(1830-1880). São Paulo (SP): Brasiliense, 1987, p.30.
41 Da primeira condenação à pena de galés perpétuas passará o escravo à pena de cem açoites e ferro no
pescoço pelo espaço de quatro anos, em seguida a seis meses de prisão e multa correspondente à metade

369
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

como a justiça institucional, ao condenar os cativos, podia retirar dos senhores


a jurisdição sobre seus escravos, ao mesmo tempo em que isto significava para
os escravos sair do jugo senhorial, embora nesse caso passassem ao jugo do
Imperador, com o cumprimento da pena de galés perpétua.

Talvez por isto, as galés parecem ter sido bem mais atrativas para os
escravos. Aliás, não são poucos os exemplos de escravos que cometiam crimes
para serem condenados a essa pena. O Ministro da Justiça Velho Cavalcante de
Albuquerque, no Relatório que apresentou à Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro, em 30 de setembro de 1876, sintetiza com suas considerações a respeito
da pena de galés, inúmeros casos reais narrados pelos historiadores:
Releva ainda ponderar que para certa classe de criminosos, as penas esta-
belecidas são açoites, galés e morte; mas esta raríssimas vezes é executada,
e a de galés, que deve consistir no trabalho forçado, reduz-se ao serviço
de limpeza, asseio e fornecimento das cadeias, onde os condenados vivem
na ociosidade a mais perniciosa. Esse mesmo serviço, que de ordinário
não passa de quatro horas por dia, lhes proporciona meios de saírem à
rua, tornando a pena menos rigorosa que a de prisão simples. Do exposto
resulta que os referidos criminosos, cujo número vai aumentando, acham
no próprio cumprimento da pena incentivo para o crime. Houve tal que,
ainda coberto de sangue e diante do cadáver de sua vítima, bradava cheio
de ufania – que não era mais escravo, porque já pertencia às galés. Houve
quem perante os tribunais declarasse – que fora impelido somente pelo
desejo de ser condenado a essa mesma pena. Outros chegam a disputar
entre si a autoria de fatos que não cometeram. Muitos em vez de fugir,
correm à presença da autoridade, confessam com impudência os bárbaros
atentados que praticam, e espontaneamente procuram as cadeias como
melhoramento de sua triste condição.42

Desta forma, o levantamento de fontes primárias tem mostrado que não


era uma prática tão incomum a de que os escravos se servissem do cometimento
de delitos como forma de se subtrair à autoridade senhorial. Há vários casos
desses registrados nos documentos históricos. Por exemplo, um caso analisado

do tempo, considerando-se perempta a causa por que o réu não havia sido preso em flagrante e finalmente
à absolvição, soltura e baixa na culpa, num caso que conta muito sobre o sistema do júri no Brasil do século
XIX e seu funcionamento nas distantes localidades do interior. Embora o resultado final possa ter se revertido
a favor do senhor com a absolvição do escravo, cuja propriedade para aquele retornava, também é certo que
não a recuperou sem contabilizar prejuízos: ficou privado dos serviços do escravo por 3 anos, tempo que durou
o processo, teve de arcar com as custas iniciais, bem como com os honorários do procurador contratado. Mas,
sobretudo, o que este caso revela é que, a partir do momento que um escravo criminoso passava ao jugo da
justiça pública para ser por ela julgado e apenado, o deslinde do julgamento, desprendendo-se do controle do
senhor e de seu direito punitivo doméstico, podia alcançar resultados imprevisíveis e até mesmo absurdos: há
um grande salto da pena de galés, a segunda pena mais severa do Código, suplantada apenas pela pena de
morte, e a completa absolvição no outro extremo, deslinde a que chegou o julgamento final.
42 Relatório apresentado à Assembleia Legislativa na primeira sessão da décima sexta legislatura pelo Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios da Justiça Conselheiro Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque. Instituto Typo-
graphico do Direito. 1877. Disponível em: http://www-apps.crl.edu/brazil/ministerial/justica. Acesso em: 15.03.2017.
Grifos nossos

370
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

pelo penalista Nilo Batista, que o encontrou consultando os processos criminais


contra escravos da Comarca de Vassouras, Província do Rio de Janeiro.

Nilo Batista deparou-se com o assassinato do Feitor português José Bastos


de Oliveira pelos escravos Gil, Manoel, Quintiliano, Marciano e Joaquim, em 1879.
“Praticado o crime, os cinco escravos dirigiram-se e apresentaram-se na Delegacia
de Polícia, tendo no percurso cruzado com seu senhor que, informado do ocorrido,
regressava à Fazenda.” Também o promotor que atuou no processo reconhecia:
“o escravo se faz criminoso para subtrair-se ao cativeiro do senhor, aceitando de
melhor vontade a escravidão da pena.43” O crime foi qualificado como pertencente
à disciplina da Lei n. 4 de 10 de junho de 1835, acima referida, que prescrevia
para este delito a pena de morte.

Assim, a complexidade do tema multiplica as indagações44: até que ponto


a atuação do sistema penal da época interferiu nas relações entre senhores e
escravos, sobretudo, a partir da promulgação do Código Criminal de 1830? Ao
mesmo tempo em que se limitou a autonomia escrava, seja pelas leis penais,
seja pela atuação da polícia e justiça locais, isso também não restringiu o poder
senhorial? E ao restringir o poder senhorial, paradoxalmente, não aumentou
novamente a autonomia escrava ao permitir que os reclames destes chegassem
à justiça e ao Direito, ainda que pelo meio radical do cometimento de delitos?
Cometer crimes não pode ter sido uma astúcia empregada pelos escravos para
fazer frente ao embate cotidiano com os senhores na conquista por direitos que
lhes conferissem um certo reconhecimento social?

Esta última reflexão nos conduz novamente ao texto de Hespanha, com


o qual começamos nossa comunicação. Hespanha mostra como um direito penal
aparentemente dotado das “luzes da razão”, que se ergueu sobre os escombros
da velha ordem penal do Antigo Regime, pode ser até mesmo mais violento do
que ela própria fora.

Assim, se os portugueses passaram a ser mais severamente punidos sob


o direito penal da monarquia estatalista, quando se considera o escravo sob a
égide do direito punitivo do Estado Imperial brasileiro, ao menos a princípio, o que
se divisa é também, paradoxalmente, a possível abertura de brechas de embate
contra os senhores, e assim contra a condição de escravizado.

43 BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. In: NEDER, Gizlene (Org.). História & Direito: jogos de encontros
e transdisciplinaridade. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.29-62.
44 Há ainda uma outra possibilidade que é a do escravo assassinado pelo senhor, a qual não referimos porque
ainda não encontramos nenhum caso, mas que possivelmente surgirá também nas fontes históricas locais, o que
reforça a grande complexidade do tema proposto. Esta é outra situação na qual a justiça institucional muitas
vezes interferiu nas relações senhor - escravo. Para um caso emblemático nesse sentido ver o primeiro capítulo
de Elciene Azevedo. AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de
São Paulo. Campinas (SP): 2010, p. 37-92.

371
O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
UM ESTADO IMPERIAL INTERVENCIONISTA?

Situação paradoxal, na medida em que parece ter sido através do direito


penal, que era um direito punitivo e limitador da liberdade (não tendo a função
de ampliá-la, mas de restringi-la), que o escravo teve originalmente reconhecida
a sua humanidade, ainda que não intencionalmente a princípio.

Em outros termo, pode essa concorrência entre os poderes público e


privado ter significado, mesmo que em estreita medida, a abertura de um espaço
de embate para com o senhor e de autonomia para o escravo? Seria possível
vislumbrar nessa abertura propiciada pela inserção do escravo no âmbito do
Código Criminal um índício do processo de abolição já em curso? Questões de
maior envergadura, para as quais ainda não temos resposta, mas pode ser que
elas sejam tão surpreendentes quanto as conclusões a que chegou Hespanha em
seu já clássico estudo, ainda que para o escravo no Império do Brasil elas possam
se revelar, afinal, invertidas, e por isso mesmo não menos paradoxais que aquelas.

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O CONTROLE PUNITIVO DOS ESCRAVOS NO BRASIL DO SÉCULO XIX:
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374
Grupo de Trabalho

DIREITO E JUSTIÇA NA AMÉRICA PORTUGUESA


IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO


DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

BÁRBARA ALVES BENEVIDES


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Resumo
O estudo em questão faz parte da dissertação de mestrado em desen-
volvimento intitulada provisoriamente de “A Pena de Morte e seus Rituais de
Execução na Colonização da América Portuguesa (1530-1808)”. Dentre outros
objetivos, na pesquisa em curso busquei realizar um mapeamento da concessão
de jurisdição para aplicação da pena de morte na América lusitana no perí-
odo indicado. Assim procurei observar quais eram os oficias que possuíam a
capacidade de condenar à morte, em que espaço eles detinham tal jurisdição
e quais eram as pessoas passíveis de receber esta pena. Neste artigo apresento
como a alçada da pena de morte se organizou na América portuguesa a partir
da criação das Juntas de Justiça, tendo como início deste estudo o ano de
1723, com a concessão de autorização para a criação da Junta de São Paulo,
e encerrando em 1777, quando foi conferida autorização similar ao Maranhão.
Destaca-se que a formação das Juntas de Justiça que ocorreu no século XVIII
se deu a partir da reinvindicação de alguns oficiais da justiça em fazer valer
em seus domínios parte do Regimento dos ouvidores gerais das capitanias
do Sul, que versava sobre a jurisdição para aplicar a última pena. Mais pre-
cisamente o capítulo 6º, e ocasionalmente o 7º, que surgiram primeiramente
no Regimento de 1642.

A pena última chegou à América portuguesa através da carta de poderes


passada ao capitão mor Martim Afonso de Sousa, líder da expedição que veio ao
Brasil em 1530 patrocinada por D. João III.1 Esta carta, dentre outras atribuições,
lhe incumbiu de julgar os casos cíveis e crimes com alçada até a morte natural.2
Ao longo das diferentes conjunturas vividas pela América portuguesa a jurisdição
para aplicação da pena de morte se modificou acompanhando as mudanças
administrativas que corresponderam a diferentes demandas oriundas dos estágios
da colonização. No momento inicial de ocupação do território a jurisdição da
última pena esteve sob a responsabilidade de particulares, de início foi atribuição
de Martin Afonso, depois passou a constar como encargo dos capitães donatá-
1 Schwartz explica que esta expedição teve como objetivo assegurar a posse da colônia para Portugal, que
se via ameaçada pela investida de rivais estrangeiros. Marcando, assim, a transição entre o que o chama de
frouxa administração da justiça imposta pela necessidade militar para uma administração mais concreta, baseada
no estabelecimento da colonização permanente. SCHWARTZ, S. B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial: O
Tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p.42.
2 SALGADO, G. (coord.). Fiscais e Meirinhos: a administração no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p. 49; 73.

377
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

rios que deveriam atuar em conjunto com os ouvidores das capitanias.3 Com a
solidificação da ocupação e a implementação de uma estrutura de governo mais
bem delimitada através da instalação do governo geral, ela se tornou encargo de
funcionários nomeados pelo rei, os governadores gerais e ouvidores gerais, até se
manter como responsabilidade exclusiva destes.4 Posteriormente, por conta da
criação da Relação da Bahia, em 1609, a Ouvidoria Geral do Estado do Brasil foi
incorporada a esta instituição, seu ouvidor teve suas atribuições referentes a pena
última alargadas e se tornou neste momento membro do Tribunal.5

A princípio existiam apenas os cargos de governador geral e ouvidor geral


do Estado do Brasil, criados em 1548, mas em virtude das divisões administrativas
do território ocorridas em 1608, com a criação da Repartição do Sul, e em 1621,
com a criação do Estado do Maranhão, foram instituídos governadores gerais e
ouvidores gerais para estas novas instâncias. Devido à esta segmentação regional
e a extinção do Tribunal da Relação em 1626, que implicou em modificações
significativas na armação judicial da colônia6, a pena de morte passou a ser res-
ponsabilidade também dos governadores gerais e ouvidores gerais da Repartição
do Sul7 e do Estado do Maranhão.8 O restabelecimento da Relação em 1652, não
alterou a jurisdição concedida aos governadores gerais do Estado do Brasil e do
Estado do Maranhão e dos novos ouvidores gerais, mas incorporou novamente
o ouvidor geral do Estado do Brasil como membro deste Tribunal.9

Percebe-se que do século XVI até a primeira metade do século XVII a


capacidade de aplicação da pena de morte era concedida pelo monarca como
atributo dos cargos e instituições. A partir da segunda metade dos seiscentos, essa
situação mudou e a alçada para pena última foi sendo demandada por gover-
nadores gerais das capitanias, ouvidores gerais das capitanias e das comarcas10 e

3 SALGADO, G. (coord.). Op. Cit., p.50; 66; 99; 128-129; MELLO, I. de M. P. Poder, Administração e Justiça: Os
Ouvidores Gerais no Rio de Janeiro (1624-1696). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura: Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro, 2010, p. 20; COSENTINO, F. “Construindo o Estado do Brasil: instituições, poderes
locais e poderes centrais”. FRAGOSO, J.; GOUVÊA, M. de F. O Brasil colonial, 1443-1580. v. I. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2014, p.532-534.
4 Regimento que levou Tomé de Souza governador do Brasil, Almerim, 17/12/1548. Fonte original em: Lisboa,
AHU, códice 112, fls. 1-9, p.6. Disponível em: http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/1.3._Regimen-
to_que_levou_Tom__de_Souza_0.pdf; Acessado em: 16 de agosto de 2017; SALGADO, G. (coord.). Op. Cit.,
p.144-145; MENDONÇA, M. C. de (Org.). Raízes da Formação Administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 1972, p. 56.
5 MENDONÇA, M. C. de (Org.). Op. Cit., p. 393-394.
6 SCHWARTZ, S. B. Op. Cit., p.184.
7 Em 1612, a Repartição do Sul foi extinta, assim como o cargo de governador geral deste território, mas sua
ouvidoria continuou a existir. Por conta disso, a partir desse momento irei me referir ao ouvidor geral desta
região como ouvidor geral das capitanias do Sul. SALGADO, G. (coord.). Op. Cit., p.76-77.
8 No caso dos governadores gerais, a partir de 1608 para o da Repartição do Sul e 1623 para o do Estado
do Maranhão. Referente aos ouvidores gerais, a partir de 1642 para o das capitanias do Sul e 1644 para o do
Estado do Maranhão. SALGADO, G. (coord.). Op. Cit., p. 178;181-182; 203-205; 251-256.
9 SALGADO, G. (coord.). Op. Cit., p. 183-186; 254-259.
10 Ao longo desta pesquisa me deparei com diferentes tipos de ouvidores, os identifiquei da seguinte forma:

378
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

oficiais da Câmara ao rei, como um elemento importante para o que alegaram


ser a manutenção da ordem e boa administração da justiça. No século XVIII, tal
capacidade passou a ser concedida a nível local por meio da constituição das
Juntas de Justiça.

A historiografia apresenta informações rasas sobre as Juntas de Justiça


e dados conflitantes sobre a sua criação, composição e qualidade das pessoas
julgadas. No entanto, existe o consenso de que as Juntas tinham jurisdição para
processar e sentenciar até a pena última. Elas teriam sido criadas em algumas
capitanias no século XVIII em busca do dito interesse em aperfeiçoar e agilizar
a aplicação da justiça. O motivo de sua criação estaria atrelado principalmente
às dificuldades em se remeter os réus para serem julgados na Relação da Bahia
por conta da distância e do alto custo, o que ocasionaria a continua falta de
castigo dos criminosos. As autoridades coloniais entendiam que esta dificuldade
era a responsável pela alta incidência de crimes que não cessavam.

Apesar de não mencionar especificamente as Juntas de Justiça, em 1979


Schwartz já indicou que no setecentos foi concedido a ouvidores no Rio de Ja-
neiro, Pernambuco, São Paulo e Minas Gerais a jurisdição para condenar à morte
certos tipos de criminosos, no caso índios, mulatos e negros, considerados por
este autor como “grandes encrenqueiros e, portanto, merecedores de atenção
judicial específica”.11 Em capítulo publicado no livro organizado por Graça Salgado
em 1985, Edgar Coelho defendeu que as Juntas surgiram através do alvará de 18
de janeiro de 1765, que ordenava a sua instituição em todos os lugares em que
houvesse ouvidores de capitanias, com o objetivo de agilizar a aplicação da Justiça,
que se faria morosa muitas vezes por conta da distância entre as localidades do
interior da colônia e as Relações.12 As mesmas seriam formadas pelo ouvidor, no
papel de presidente e relator, e dois adjuntos nomeados pelo ouvidor, podendo
ser ministros letrados, onde os houvesse, ou bacharéis formados.13

Posteriormente, no ano de 2004, Arno e Maria José Wehling atestaram


que estas Juntas foram formadas na década de 1760, mas não apontam o alvará
precisamente. Sua criação teria se justificado, na visão deles, pelo crescimento

ouvidor de capitania, senhorial ou donatarial – escolhidos pelo donatário, atuavam nas capitanias, tiveram
alçada para pena de morte, mas a perderam paulatinamente com a instituição do ouvidor geral; ouvidor geral
do século XVI até o final do XVII – escolhido pelo rei, atuava sobre mais de uma capitania (atuação regional),
tinha alçada para pena de morte (o do Estado do Brasil a partir de certa data poderia agir por conta própria,
os das capitanias do Sul, e do Estado do Maranhão atuavam em conjunto com mais dois oficiais); ouvidor da
comarca, ouvidor geral do século XVIII, ouvidor geral de comarca ou ouvidor geral de capitania – aparentemente
eram escolhidos pelo rei para substituir os ouvidores de capitanias, a melhor forma de delimitar sua atuação é
dizendo que atuavam nas comarcas o que poderia coincidir com o território da capitanias, ser parte de uma
capitania ou englobar partes de mais de uma capitania.
11 SCHWARTZ, S. B. Op. Cit., p.203.
12 Aqui Coelho se refere à Relação da Bahia, criada em 1609 e a Relação do Rio de Janeiro criada em 1751.
13 COELHO, E. P. “Estrutura Judicial”. In: SALGADO, G. (coord.). Op. Cit., p.81.

379
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

da criminalidade e pela necessidade de estancá-la com mais rapidez e eficiência.


Para os Wehling, as Juntas de Justiça foram criadas em algumas capitanias como
intermediárias entre os juízes de fora e ouvidores de comarca e os colegiados
das Relações.14 Os autores afirmam que na conturbada conjuntura pela qual o
governo português passou entre 1734 e 1737, com problemas de relacionamento
com a Espanha, aumento do contrabando no Brasil e agravamento da situação
econômica no Oriente, foi preferível optar pela criação das Juntas, reunindo em
um novo órgão funcionários já existentes, ao dar origem à uma nova Relação.
Um pouco diferente do que foi apontado por Coelho, os Wehling indicaram que
as Juntas eram compostas pelos ouvidores, ministros letrados e advogados, mas
presididas pelo governador da capitania.15

No mesmo ano de 2004, Luís Francisco Carvalho Filho identificou como


data de criação das Juntas de Justiça o ano de 1731, através da Carta Régia que
concedeu esta jurisdição às autoridades de Minas Gerais. Segundo o autor, sua
criação tinha como objetivo acabar com a impunidade e, para tal, foi conferido
a governadores e ouvidores de diversas capitanias a capacidade de condenar à
pena capital, sem apelo, “pessoas despidas de qualidade superior”.16 Em texto mais
recente, publicado em 2013, Dilma Cabral identifica a Junta de Justiça do Mato
Grosso como a primeira a ter sido instalada na América portuguesa. Defendendo,
assim, uma nova data de origem: o ano de 1758. De acordo com a autora elas
começaram a se estabelecer a partir de meados do século XVIII em diferentes
capitanias, presando pela observância das leis e conservação da paz, julgando
inclusive processos de crimes cometidos por militares.17 Apesar de não versar
a respeito de sua data criação, em sua tese de doutorado defendida em 2013,
Isabele Mello também trouxe informações a respeito das Juntas, segundo a autora:
A junta de justiça funcionava como uma espécie de tribunal local, com-
posto pelo ouvidor, pelo juiz de fora e pelo governador da capitania, na
ausência deste último poderia ser substituído pelo provedor da fazenda,
seu objetivo era dar agilidade em casos crimes que envolvessem escravos,
índios mulatos etc. A jurisdição da junta de justiça estava diretamente
ligada a condição social do indivíduo, só poderia julgar crimes envolvendo
pessoas de ‘menor qualidade’.18

Como foi possível perceber, apesar de os autores apontarem motivos


semelhantes que levaram ao surgimento das Juntas de Justiça no século XVIII,
conforme indiquei, as informações que dão conta de explicar sua origem e sua

14 WEHLING, A.; WEHLING, M. J. Op. Cit., p.330.


15 Idem, p. 129; 217-218.
16 CARVALHO FILHO, L. F. “Impunidade no Brasil - Colônia e Império”. Estudos Avançados, São Paulo, vol. 18,
nº 51, USP, maio/ago. 2004 p. 186.
17 CABRAL, D. “Juntas de Justiça” In: Dicionário da Administração Pública Brasileira do Período Colonial. 7 jan.
2013. Disponível em: http://linux.an.gov.br/mapa/?p=4213 Acesso em: 28 de fevereiro de 2017.
18 MELLO, I. de M. P. de. Magistrados a serviço do rei... Op. Cit., p. 129.

380
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

natureza diferem em alguns pontos. Com o intuito de elucidar essas questões re-
corri à análise de fontes, em sua maioria Cartas Régias, cartas escritas pelos oficiais
da Câmara, consultas feitas ao Conselho Ultramarino e pareceres do mesmo.19
Consegui coletar mais informações sobre a origem e o funcionamento das Juntas
de Justiça, que inclusive dão conta de explicar os motivos para as discrepâncias
encontradas nos estudos que aludem a tal tema. Antes de pormenorizar os dados
identificados, alguns pontos precisam ser previamente destacados.

A organização das Juntas de Justiça tinha uma estrutura base, mas elas
se compuserem de forma distinta nas diferentes regiões em que foram formadas
por conta de questões específicas, tais como a ausência temporária de oficias
ou a sua inexistência, a dificuldade de reunir todos os membros, as necessidades
particulares referentes aos crimes e perfil dos criminosos que assolavam cada
região e seu respectivo combate. Assim, apresentaram variações respeitantes aos
membros que a constituíam, a posição que ocupavam na Junta e a qualidade de
pessoas que podiam julgar. Outra questão importante de se mencionar é que
o fato de determinada região adquirir o direito de criar de Junta de Justiça não
significa que estas foram formadas imediatamente. Então, aqui estarei me atendo
ao momento em que foi concedida autorização para sua criação e não quando
foram efetivamente constituídas. O objetivo não é mapear o histórico de ação
das Juntas, mas averiguar quando determinadas capitanias conseguiram jurisdição
para processar e sentenciar até a pena de morte.

Isto posto, identifiquei que a formação das Juntas de Justiça, no século


XVIII, se deu a partir da reinvindicação de alguns oficiais em fazer valer em seus
domínios parte do Regimento dos ouvidores gerais das capitanias do Sul, que
versava sobre a jurisdição para aplicar a última pena. Mais precisamente o capí-
tulo 6º, e ocasionalmente o 7º, que surgiram primeiramente no Regimento de
1642. Estes capítulos conferiam jurisdição ao ocupante do cargo para condenar
à morte escravos, índios e peões brancos, julgando em conjunto com o capitão
mor e o provedor da fazenda. Ressalta-se que para escravos e índios não haveria
apelação nem agravo, já para peões brancos, existia possibilidade de recurso caso
houvesse discordância de dois votos.

Os regimentos seguintes, datados de 1651, 1658 e 1669, mantiveram as


mesmas prescrições20 que foram utilizadas como referência para praticamente todos
os pedidos que identifiquei na documentação do Conselho Ultramarino. Desta
forma, apesar de a maioria das fontes não indicar a data do Regimente ao qual
elas se referem, visto que estes capítulos foram conservados integralmente, percebi
que a identificação do documento apontado pode ser feita em comparação com
19 As Fontes utilizadas se encontram no Projeto Resgate, na Biblioteca Nacional e no livro GOULART, J. A.
Da Palmatória ao Patíbulo (Castigos de Escravos no Brasil). Rio de Janeiro: Conquista, 1971.
20 SALGADO, G. (coord.). Op. Cit., p.254; 257; 258.

381
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

as datas dos pedidos. Mas que, de qualquer modo, não altera o conteúdo da
solicitação. Destaca-se que determinação semelhante foi passada ao ouvidor geral
do Estado do Maranhão através do Regimento de 1644. No entanto, as fontes
não se remetem a este Regimento, acredito que por este se localizar em outra
instância administrativa, tratando-se efetivamente de outro Estado.

Assim, a partir de meados do século XVII, governadores gerais das capitanias


e ouvidores gerais das capitanias passaram a solicitar autorização para formar a
mesma composição de ministros com poderes de sentenciar até a pena de morte
as pessoas plebeias indicada pelos capítulos 6º e 7º dos Regimentos do ouvidor
geral das capitanias do Sul. E foi esta organização que passou a ser denominada
como Junta de Justiça. Estes oficiais denunciavam a alta incidência de “delitos
atrozes” que estariam ocorrendo e a falta de castigos em suas respectivas regiões,
motivados em sua maioria pela distância da Relação da Bahia e posteriormente
do Rio de Janeiro, ou pela fuga dos réus das cadeias. Acreditavam que com a
aplicação da pena de morte, tais crimes cessariam. Deste modo, requisitavam a
pena última como um instrumento para a dita boa administração da justiça e
manutenção da ordem. Encontrei solicitações como estas vinculadas às capitanias
de Pernambuco, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

É interessante perceber que nos pedidos de jurisdição para aplicar a pena


de morte em Junta, os oficias sempre se remetiam as outras regiões que possuíam
esta capacidade. O que mostra que a concessão de permissão para processo e
sentença da pena última nas capitanias era uma informação que circulava no
território. Também notei que em muitas ocasiões as requisições não eram aten-
didas de imediato, elas acabavam sendo repetidas por anos até que recebessem
uma resposta positiva. E, ainda que os Wehling se refiram às Juntas como “novo
órgão” e Mello afirme que “funcionavam como uma espécie de tribunal local”,
me chamou atenção a forma como a documentação se referia a elas. A utiliza-
ção frequente do termo “convocação” denota que as Juntas de Justiça não eram
instâncias permanentes, mas criadas e organizadas conforme a necessidade e a
demanda de casos por conta do que os oficias de justiça da época entendiam
ser um contexto de violência, alta delinquência, e do respectivo interesse que
os mesmos oficias teriam em manter o que consideravam ser a ordem e boa
administração da justiça.

Tal explicação foi utilizada inúmeras vezes nos pedidos de autorização


para criação das Juntas e para a obtenção da alçada para condenar até a morte
natural. Os problemas com segurança e o interesse em tornar a justiça mais
eficiente aparecem nas solicitações de todas as regiões que indicarei. Conjecturo
que o reestabelecimento da Relação da Bahia, em 1652, não teria resolvido os
transtornos com a ação da justiça em diversas regiões por conta da distância e/ou

382
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

dos poucos funcionários, como indicou Schwartz.21 Assim entendo que a criação
das Juntas surgiu como uma alternativa para suprir essa carência. Paralelamente,
considero que sua emergência está igualmente relacionada a conjuntura de pas-
sagem do século, tendo como destaque o aumento populacional por conta da
descoberta do ouro e, por conseguinte, a dita preocupação com a manutenção
da ordem. Sobre este contexto, Nuno Camarinhas explica que é possível observar
duas fases de desenvolvimento do aparelho judicial português no Brasil:22
num primeiro momento, o controlo das regiões-chave através da criação
de ouvidorias de carácter territorial mais vasto; depois da descoberta do
ouro, observamos a profusão de novas ouvidorias que, nas regiões aurífe-
ras, têm um âmbito extremamente localizado e, ao mesmo tempo, uma
missão bastante específica de manutenção da ordem e do funcionamento
da extracção e do envio da produção para a metrópole.23

Desta forma, entendo que o surgimento das Juntas de Justiça transportou


a pena de morte para um âmbito mais local que, a partir de 1765, foi concedida
a toda capitania que tivesse ouvidor. Retomarei a este ponto mais adiante. As
Juntas deveriam ser realizadas na Casa da Câmara,24 elas poderiam ser compostas
por seis, cinco, quatro ou três membros, sendo eles normalmente: governador geral;
ouvidor geral da capitania; demais ouvidores; provedor da fazenda; juiz de fora;
intendente; bacharéis; ou ministros letrados.25 Todavia, em todas as composições
que encontrei, o ouvidor geral da capitania deveria estar presente. A primeira
autorização para criação de Junta de Justiça que identifiquei foi concedida a São
Paulo em 1723. Posteriormente, foi conferida jurisdição para Minas Gerias, em
1731; Pernambuco, em 1735; Grão-Pará, em 1758; Goiás, aparentemente em 1763;
Mato Grosso, por volta de 1765, ano de promulgação do alvará que possibilitou
a criação das Juntas em qualquer capitania que tivesse ouvidor. Falarei ainda sobre
a autorização para a criação da Junta do Maranhão, em 1777. Apesar de ter sido
concedida após a promulgação do alvará de 1765, é relevante mencioná-la por

21 Segundo Schwartz, a insuficiência de pessoal foi um dos problemas que afligiu a Relação da Bahia ao longo
de toda a sua história. A ausência dos Juízes, que acumulavam atribuições administrativas, combinada com o
grande número de casos à espera de julgamento tornou o processo judicial lento. Além disso, a distância e o
alto custo para se remeter a Relação também foram obstáculos para a sua atuação. Os Wehling afirmam que o
Tribunal do Rio de Janeiro enfrentou os mesmos problemas. SCHWARTZ, S. B. Op. Cit., p. 205, 213; WEHLING,
A.; WEHLING, M. J. Op. Cit., p.225; 232; 591.
22 CAMARINHAS, N. O aparelho judicial ultramarino português: O caso do Brasil (1620-1800). Almanack
Braziliense, [S.l.], n. 9, p. 84-102, maio 2009, p. 85, 87. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/alb/article/
view/11710/13483 Acesso em: 14 agosto de 2017.
23 CAMARINHAS, N. Op. Cit., p.87.
24 Cópia da Ordem Real sobre a nova Junta dos Criminosos para serem sentenciados até a última pena,
em Anais da Biblioteca Nacional Vol. 9: 5982 - Cod. CDII (19-4) sob. Nº 11 6 ff não num. 30x17; AHU-Goiás
AHU_CU_008, Cx. 10, D. 622.
25 Cópia da Ordem Real sobre a nova Junta dos Criminosos para serem sentenciados até a última pena,
em Anais da Biblioteca Nacional Vol. 9: 5982 - Cod. CDII (19-4) sob. Nº 11 6 ff não num. 30x17; AHU-Goiás
AHU_CU_008, Cx. 2, D. 162; AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 19, D. 1153; AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 10, D.
622; AHU-MATO GROSSO, cx. 15, doc. 8 AHU_CU_010, Cx. 15, D. 944; AHU-PERNAMBUCO AHU_CU_015,
Cx. 67, D. 5673.

383
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

conta de algumas particularidades que esta apresentou em relação a qualidade


de pessoas que poderia condenar.

Junta de Justiça de São Paulo (1723)

De acordo com Isabele Mello, no ano de 1696 foi criada a ouvidoria


geral da capitania de São Paulo. Sua instituição veio como resposta a sugestões
dadas pelos ouvidores gerais das capitanias do Sul que explicavam as dificuldades
enfrentadas por conta do extenso território a ser percorrido e dos custos de seu
deslocamento para administrar a justiça aos povos. A partir de então, enquanto
as vilas de Santos para o sul ficariam sujeitas ao ouvidor de São Paulo, todas
aquelas vizinhas de Ilha Grande, Paraty, Ubatuba e São Sebastião, bem como
a Nova Colônia do Sacramento, ficariam sob a jurisdição do ouvidor do Rio
de Janeiro.26 No ano de 1722 o ouvidor geral da comarca de São Paulo enviou
carta ao Conselho Ultramarino protestando sobre as diferenças existentes entre
o seu Regimento e o do ouvidor geral do Rio de Janeiro. Dentre as divergências,
destacou a falta de alçada para a pena de morte e assegurou que “em São Paulo
[era] mais necessária porque [havia] mais número de culpados”. Com isso, propôs
que fosse concedida alçada para, em conjunto com o governador e o juiz de
fora de Santos, condenar à morte os escravos, índios, mulatos e bastardos ainda
que forros. A permissão foi concedida por meio de parecer do Conselho Ultra-
marino de 20 de junho de 1723 e foi determinado que o ouvidor geral de São
Paulo tivesse a mesma jurisdição para aplicar a pena de morte que o ouvidor
geral do Rio de Janeiro.27

Junta de Justiça de Minas Gerais (1731)

A história de Minas Gerais está atrelada à de São Paulo. De acordo com


Carla Maria de Almeida e Mônica de Oliveira, a região que veio a se tornar a
capitania de Minas Gerais foi ocupada a partir do final do século XVII. Com a
disseminação das notícias sobre a descoberta do ouro, grandes levas de pessoas
de diversas condições e oriundas de partes da colônia e do Reino se direcionaram
para lá. O grande afluxo populacional e mercantil, junto com a realidade espacial
que confundia o espaço de moradia com a área a ser trabalhada gerou um peculiar
florescimento urbano. As autoras afirmam que houve algumas disputas entre as
autoridades no que concerne ao controle administrativo das regiões mineradoras.
No entanto, logo se estabeleceu que estas ficariam sob a alçada do governador e
capitão geral do Rio de Janeiro. Todavia, após a Guerra dos Emboabas, em 1709,
a criação da capitania de São Paulo e Minas do Ouro, independente do Rio de
Janeiro foi sugerida como forma de restabelecer o bem comum e tentativa de
conter o que era visto como “desgoverno”. Ou seja, de pôr fim aos conflitos e
26 MELLO, I. de M. P. de. Magistrados a serviço do rei... Op. Cit., p. 185
27 AHU-São Paulo-MGouveia, cx. 3, doc. 341. AHU_CU_023-01, Cx. 3, D. 341.

384
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

disputadas entre os desbravadores vicentinos e os migrantes que chegaram à essas


regiões após a descoberta do ouro, visto que se tratavam de locais de primordial
interesse para a Coroa e que se encontrava densamente povoado. Carmen Lucia
de Azevedo indica que posteriormente a mesma capitania foi dividida no ano
de 1720 em duas capitanias autônomas, separando, assim, São Paulo e Minas
Gerais. Além disso, a capitania de Minas Gerais já nasceu subdividida em quatro
comarcas, Vila Rica, Sabará, Rio das Mortes e Serro Frio.28

Do mesmo modo pelo qual o ouvidor geral de São Paulo solicitou a pena
última por conta do que considerou ser o “elevado número de criminosos”, o
governador e capitão-general da capitania de Minas também o fez em 7 de maio
de 1730, denunciando o contínuo e grande número de crimes que estariam sendo
cometidos naquela localidade “por bastardos, carijós, mulatos, e negros, porque
como não viam exemplo de serem enforcados, e a justiça que deles se fazem
na Bahia, não consta são demasiadamente matadores”.29 Em virtude disso, este
oficial pleiteou que fosse concedida aos ouvidores gerais da comarca a mesma
jurisdição possuída pelo Rio de Janeiro para sentenciar a morte em Junta com o
governador e mais ministros. Através de Carta Régia enviada a este governador
em 24 de fevereiro de 1731, o monarca menciona ter também recebido por
parte dos ouvidores das comarcas de Ouro Preto, Sabará, Rio das Mortes e Serro
Frio, relatos de casos de negros presos naquelas regiões por terem matado seus
senhores. Isto posto, por resolução do Conselho Ultramarino, resolveu conceder
a mesma jurisdição atribuída ao governador do Rio de Janeiro e São Paulo, para
sentenciarem em última pena os considerados “delinquentes” das qualidades re-
feridas. A Junta deveria ser convocada com os ouvidores das quatro Comarcas,
Juiz de fora da vila do Ribeirão do Carmo e o Provedor da Fazenda. No caso
de empate, o voto do governador seria o decisivo.30

Não obstante, em dezembro de 1735, foi enviada nova Carta Régia ao


governador de Minas Gerais versando sobre a forma de composição das Juntas
naquela região. Nesta, o monarca menciona a reclamação feita pelo governador
em 20 de maio de 1735, na qual explicava que não estava conseguindo formar
as Juntas com os membros determinados por Sua Majestade. E, em função disto,
os problemas que estavam tendo com escravos criminosos e assassinos na região
não estavam sendo resolvidos. Inclusive assinalando que seu antecessor tentou
convocar a Junta para julgar vários escravos presos por crimes capitais, mas não
conseguiu reunir os ministros. Com o intuito de resolver esta problemática, o rei
decidiu diminuir o número de membros que formavam a Junta e estabelecer que
28 ALMEIDA, C. M. C. de; OLIVEIRA, M. R. de. “Conquista do centro-sul: fundação da Colônia de Sacramento
e “achamento” das Minas”. In: FRAGOSO, J. L. R.; GOUVÊA, M. de F. (org.). O Brasil Colonial, 1580-1720 v. II. Op.
Cit., 2014, p.282, 296, 301, 302, 308; AZEVEDO, C. L. de. “Administração Fazendária”. In: SALGADO, G. (coord.).
Op. Cit., p. 90.
29 GOULART, J. A. Op. Cit., p. 190.
30 GOULART, J. A. Op. Cit., p. 190.

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JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

fossem 4 ministros, como ele havia determinado para a capitania de Pernambuco,


o que veremos a seguir. Deste modo, as Juntas de Minas deveriam ser formadas
pelo ouvidor de Vila Rica; juiz de fora de Ribeiro do Carmo e 2 ministros da época
que se achassem mais perto da mesma vila.31Apesar de os Wehling indicarem
que segundo o viajante Saint-Hilaire as Juntas das Minas Gerais tinham também
como competência julgar deserção de militares e demais crimes,32 não identifiquei
a concessão de jurisdição para processar e sentenciar militares na Carta Régia
que ordenava a sua criação em 1731. Contudo, não descarto que essa atribuição
possa ter sido concedida posteriormente por meio de outro documento legal.

Junta de Justiça de Pernambuco (1735)

Atentado agora para o caso de Pernambuco, Maria do Socorro Ferraz


afirma que em 1587 esta capitania já se destacava estruturalmente por conta de
sua expressiva renda. Segundo a mesma, o fim da ocupação holandesa, em 1654,
teria ocasionado uma mudança na relação de Portugal com essa capitania, de
modo que a Coroa buscou aumentar o seu domínio nesta região e na América
portuguesa de uma forma geral, através da criação de tribunais, cargos públicos
e administrativos.33 O primeiro pedido de Pernambuco para ter alçada de pena
de morte foi anterior aos realizados por São Paulo e Minas Gerais, tendo sido
feito pelos oficias da Câmara de Olinda ao príncipe regente em 1671. Neste
pedido consta que a demanda pela aplicação da pena de morte na região se
justificava pelo alto número de “delinquentes” que lá se encontrava. Solicitaram,
assim, poder para aplicar a pena última da mesma forma que o Rio de Janeiro
a aplicava, visto que esta capitania teria passado por situação similar no que
dizia respeito a dita “alta criminalidade” e a pena de morte haveria dado conta
deste problema. E, considerando que Pernambuco tinha a mesma reputação e
os mesmo ministros, defendiam ser justo receber o mesmo direito. Os oficiais da
Câmara pernambucana ressaltaram que muitas vezes o castigo não era aplicado
porque a parte ofendida não tinha como levar o caso para a Bahia ou que, por
conta desta dificuldade, os próprios injuriados acabavam matando os criminosos.
Outro argumento bastante relevante foi apresentado, os oficiais destacaram a
importância de se assistir ao horror do castigo, de realizar a execução no lugar
onde o crime foi cometido.34

Novamente, em 1672, o pedido foi levado ao rei. Nesta carta, os oficias


da Câmara de Olinda especificaram a qualidade das pessoas que pretendiam
justiçar. Indicaram o crescimento dos excessos dos criminosos brancos, índios e

31 AHU-PERNAMBUCO AHU_CU_015, Cx. 67, D. 5673; GOULART, J. A. Op. Cit., p. 191.


32 WEHLING, A.; WEHLING, M. J. Op. Cit., p.108; 110; 113; 128.
33 FERRAZ, M. do S. “A sociedade colonial em Pernambuco. A conquista dos sertões de dentro e de fora”. In:
FRAGOSO, J. L. R.; GOUVÊA, M. de F. (org.). O Brasil Colonial, volume 2. Op. Cit., p.180, 185.
34 AHU-PERNAMBUCO AHU_CU_015, Cx. 10, D. 915.

386
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

negros, e que acreditavam que ao condenar tais delinquentes à morte, consegui-


riam diminuir a violência. Em 1676, se repetiu a mesma demanda. Na lateral do
documento consta uma anotação datada de 8 de julho de 1677 que informa
parecer contrário ao pedido, emitido pelo Conselho Ultramarino argumentando
que se castigassem os delitos com prontidão os ouvidores poderiam errar na
determinação da sentença, e a morte era uma pena que não poderia ser re-
parada.35 Conquanto, após a concessão da jurisdição para as capitanias que já
mencionei, em 20 de outubro de 1735 foi emitida Ordem Real que dispunha
sobre a criação de Junta dos Criminosos para serem sentenciados até a pena
última, concedendo a mesma jurisdição que tinha o Rio de Janeiro, São Paulo e
Minas Gerais ao ouvidor de Pernambuco. A carta manifestava36
que seria conveniente para se atalharem as muitas desordens, e delitos
que frequentemente sucedem na capitania de Pernambuco, e Paraíba,
cometidos pelos índios bastardos, carijós, mulatos, e negros, que eu fosse
servido, para terror, e emenda deles, permitir que se punissem naquelas
partes os delinquentes de crimes atrozes com a pena de morte, na mesma
forma, que mandei praticar nos governos do Rio de Janeiro, São Paulo
e Minas, para que vendo aqueles povos o castigo se contivessem com
este exemplo de obrarem semelhantes absurdos37

Apesar de a Carta Régia se remeter a crimes que teriam ocorrido tanto


em Pernambuco como na Paraíba, não encontrei pedidos para criar Juntas vindos
da Paraíba. É preciso esclarecer que esta mesma Carta não concedeu jurisdição ao
ouvidor da Paraíba38 para criar Junta própria, a determinação real designou que
este ouvidor deveria participar como adjunto da Junta de Pernambuco. Assim, a
ordem era que as Juntas deveriam ser compostas pelo ouvidor e o governador
de Pernambuco, tendo como adjuntos, o ouvidor da Paraíba, e o juiz de fora
de Olinda, com um dos ouvidores que tivessem servido nas ditas Ouvidorias ou
nas do Sertão da mesma capitania ou dos que passassem do Reino para elas.
Em 1746, mais uma determinação referente às Juntas surgiu. Por meio de Ordem
Real, foi estabelecido que só se faria Junta de Justiça em Pernambuco uma vez
ao ano por conta de problemas que teriam ocorrido com o ouvidor da Paraíba,
relacionados a sua estadia prolongada naquela região e as suas despesas.39 Poucos
meses depois, nova prescrição foi enviada referente à composição da Junta, por
conta da dificuldade de conseguir ouvidores adjuntos. Em função disso, o rei

35 AHU-PERNAMBUCO AHU_CU_015, Cx. 11, D. 1059.


36 Cópia da Ordem Real sobre a nova Junta dos Criminosos para serem sentenciados até a última pena, em
Anais da Biblioteca Nacional Vol. 9: 5982 - Cod. CDII (19-4) sob. Nº 11 6 ff não num. 30x17.
37 Idem.
38 Em alguns momentos a fonte indicou como ouvidor da comarca em outros como ouvidor da capitania
39 Ordem Real sobre se fazer Junta de Justiça uma só vez ao ano, em Anais da Biblioteca Nacional Vol. 9:
5982 - Cod. CDII (19-4) sob. Nº 11 6 ff não num. 30x1

387
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

permitiu que se escolhesse o procurador da Coroa ou outro bacharel formado


como substitutos.40

É interessante atentar para os argumentos utilizados pelos os oficias da


Câmara de Pernambuco ao solicitar a permissão para criar Juntas de Justiça
com a capacidade de condenar à morte. Primeiro eles apontaram a dita eficá-
cia desta pena em dar conta do que, segundo os mesmos, seria uma onda de
alta criminalidade no Rio de Janeiro. Depois, ressaltaram a importância dos seus
oficias comparando-os aos oficiais da mesma capitania. A indicação da distância
da Relação para a falta de castigo dos criminosos não foi utilizada apenas nas
solicitações feitas pelos oficiais pernambucanos, como indicarei adiante ao abordar
a criação de outras Juntas. Mas chama a atenção, e muito, o fato destes oficias
destacarem que a falta de punição dos crimes estaria levando as partes prejudi-
cadas pelas transgressões a fazer “justiça por conta própria”. O que pode ser visto
como mais um elemento que alimentaria o alegado contexto de criminalidade
que estaria ocorrendo. Além disso, merece destaque o fato de ressaltarem a
importância de a pena ser aplicada no lugar onde o crime ocorreu, permitindo
assim que os conterrâneos assistissem à execução capital, a fim de intimidar os
supostos criminosos de agir.

Similarmente é relevante destacar que comparado com os pedidos feitos


pelas capitanias de São Paulo e Minas Gerais, a solicitação enviada por Pernambuco
foi a que mais demorou a ser atendida. Aliado a isso, temos o motivo indicado
pelo Conselho Ultramarino para negar o pedido, que por si só já é sobressalen-
te, a irreversibilidade da pena de morte. A meu ver estes dois pontos levantam
duas questões: por que frente às solicitações de São Paulo e Minas Gerais a
autorização de criação de Junta de Justiça com alçada para sentenciar à morte
demorou tanto para ser concedida a Pernambuco? E, por que a justificativa a
respeito da irreversibilidade da pena de morte apareceu apenas para a solicitação
feita por esta capitania? Até o momento não consegui conjecturar respostas para
estes questionamentos, mas acredito que seja válido indicar aqui estas indagações.

Ademais, observando os pedidos para a criação das três Juntas de Justiça


indicadas acima, a solicitação realizada por Pernambuco demandava a autorização
para sentenciar réus brancos, enquanto as requisições feitas por São Paulo e Minas
Gerais se referiam apenas a negros, índios e mestiços. As autorizações concedidas
aos oficias de cada uma dessas regiões indica que para sua atuação deviam tomar
como base o Regimento do ouvidor geral do Rio de Janeiro de 1642, contudo
não explicitam exatamente qual parte do regimento. A relevância se faz presente
na medida em que o capítulo 6º deste Regimento versava sobre a condenação
à morte de índios e escravos, enquanto o capítulo 7º se referia à capacidade de
executar peões brancos. Retomando a informação fornecida por Schwartz por
40 AHU-PERNAMBUCO AHU_CU_015, Cx. 67, D. 5673.

388
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

exemplo, entendo que aos ouvidores gerais tanto de São Paulo como de Minas
Gerais e Pernambuco foi concedida apenas a atribuição presente no capítulo 6º,
ou seja, eles não adquiriram a capacidade de sentenciar pessoas brancas. O que
demonstra que, pelo menos nesse momento, as Juntas de Justiça direcionavam a
condenação à pena de morte a pessoas específicas – negros, índios e mestiços
–, que seriam consideradas de “menor qualidade” por aquela sociedade.

Junta de Justiça do Grão-Pará (1758)

Passando agora para outra instância administrativa, falarei sobre a criação


da Junta de Justiça do Grão-Pará. Ao longo de sua existência, o Estado do Ma-
ranhão passou por mudanças em sua constituição político administrativa, sendo
renomeado a cada alteração: Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 1620 (des-
membrados em dois governos independentes em 1652 e restaurado em 1654);
Estado do Grão-Pará e Maranhão, em 1751 (com destaque para a predominância
do Pará em relação ao Maranhão neste momento); Estado do Grão-Pará e Rio
Negro e Estado do Maranhão e Piauí, em 1772. Esta última dando origem a duas
unidades distintas e subordinadas diretamente à Lisboa. Ou seja, ainda separadas
do Estado do Brasil.41 No que concerne à estrutura judicial, temos modificação
anterior à desagregação da unidade administrativa deste Estado. Angélica Ricci
Camargo afirma que a partir da criação da Junta de Justiça do Grão-Pará, em
1758, a administração da justiça das capitanias desta região passou para as Juntas.42

A permissão para criação de Junta de Justiça no Grão-Pará foi conferida


por carta régia em 28 de agosto de 1758. Nesta, o monarca concedeu ao gover-
nador geral do Grão-Pará “toda cumprida jurisdição”, entendo aqui ser alçada até
a pena última, para punir soldados e demais oficiais pelos crimes de deserção,
sedição, rebelião, Lesa Majestade e outros contra o Direito Natural como “ho-
micídios voluntários, rapinas de salteadores, que [passão] nos caminhos e lugares
ermos, infestando-os para impedirem o comércio humano, e resistências as Justiças,
estabelecidas para conservarem a paz pública”.43 Diferente do que observei nas
demais capitanias, neste caso não localizei solicitações dos oficiais para aplicação
de pena de morte na região. Quando concedeu a permissão, o monarca apenas
indicou que iria obsequiar a jurisdição para tal por considerar
indispensável no Governo Político principalmente de colônias novamente
fundadas que os dois polos do premio e do castigo se conservem fir-
mes e inalterados, para que persistindo assim sempre no seu equilíbrio
41 SANTOS, F. V. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no Estado do Grão-Pará e
Maranhão (1751-1780). Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008. Disponível
em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06072008-140850/ p.13.
42 CAMARGO, A. R. “Ouvidor-geral do Estado do Maranhão”. In: Dicionário da Administração Pública Brasileira
do Período Colonial. 17 jan 2014. Disponível em: http://linux.an.gov.br/mapa/?p=1181 Acesso em: 28 de fevereiro
de 2017.
43 AHU-Maranhão, 946 AHU_ACL_CU_003, Cx. 37, D. 2985.

389
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

a balança da Justiça, cresção em virtude os bons, e se apartem os maus


de seus perversos costumes.44

Isto posto, diferente de como se deu a criação das demais Juntas identi-
ficadas, a Junta de Justiça do Grão-Pará não teve sua origem desencadeada por
demandas de oficiais, mas por determinação do próprio monarca. Também notei
que nesta Carta a pena de morte não é explicitada, todavia considerei que ela
estava subentendida ao atentar para os crimes que foram indicados como os que
deveriam ser julgados – Lesa Majestade, homicídios e etc. – que de acordo com
as Ordenações Filipinas deveriam ser penalizados com a morte45, pela menção do
rei de conceder “toda a cumprida jurisdição” e pela característica natureza das
Juntas de possuir poder para condenar à última pena.

Além disso, a Junta do Grão-Pará teve maior alçada sobre qualidade de


pessoas ao ser concedida à capacidade de condenar soldados e oficias, além
de paisanos. A composição da Junta para julgar os militares seria ligeiramente
diferente. Neste caso, os juízes deveriam ser “todos os oficias maiores dos dois
Regimentos da cidade do Pará, e [Marapá], ou os que [seves] cargos servirem,
e ser[ia] relator o ouvidor do Estado”. Para julgar os não-militares, a Junta seria
composta pelo ouvidor, o intendente das colônias, o juiz de fora e três ministros
ou bacharéis formados “e não os havendo, três vereadores dos que serviram no
ano em que se proferir a sentença ou no ano procedente a ele”.46

Sua carta de criação também indicava que esta Junta poderia sentenciar
réus europeus, americanos e africanos, livres ou escravos. Em caso de empate na
determinação, o governador deveria decidir a sentença a ser proferida sem agravo
ou apelação. E, segundo o monarca, se tratando de o réu ser “pessoa, que tinha
algum dos foros da minha Real Casa” ou com “graduação de capitão entre os
militares”, não poderia executar a sentença antes de se remeter o caso a ele.47
Diferente das demais Juntas, na do Grão-Pará vemos a possibilidade de se justiçar
pessoas de “maior qualidade”, capacidade semelhante foi concedida à Junta do
Mato Grosso e do Maranhão na segunda metade do XVIII, como exibirei mais
adiante. No entanto ainda assim é possível perceber a existência de artifícios que
levariam em conta a qualidade do réu antes de aplicar a pena.

44 Idem.
45 ORDENAÇÕES Filipinas On-line Fac-Símile, Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de
Coimbra – Portugal. Disponível em: http://www.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5ind.htm . Acesso em: 15 mai. 2017,
Livro V, Tít. 6, p.1153-1158; Tít.35, p. 1184; Tít. 38, p. 1188-1189; Tít. 41, p. 1190.
46 AHU-Maranhão, 946 AHU_ACL_CU_003, Cx. 37, D. 2985.
47 Idem.

390
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Junta de Justiça de Goiás (1763)

Retornando a criação de Juntas no Estado do Brasil, Maria de Fátima


Gouvêa aborda a questão da extinção da capitania de São Vicente e a decorrente
criação de novas capitanias, assunto ao qual me referi ao tratar das conjunturas
de criação das Juntas de São Paulo e Minas Gerais. Não obstante, para além da
constituição destas duas capitanias a autora indica que posteriormente ainda
foram formadas mais duas a partir da repartição do território que constituía a
capitania de São Vicente. Em 1748 foram criadas as capitanias de Goiás e do
Mato Grosso desprendidas de São Paulo que passou a ficar mais uma vez ane-
xada ao Rio de Janeiro.48

Antes mesmo de ser capitania independente de São Paulo, no ano de


1742, Goiás enviou a primeira solicitação demandando a permissão para sen-
tenciar à pena de morte através de Junta de Justiça. Em carta ao rei de 16 de
março do mencionado ano, o ouvidor da comarca e Minas de Goiás afirmou ter
conhecimento de que no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Grão-Pará e Pernambuco
se praticava o capítulo 6º do Regimento do ouvidor geral do Rio de Janeiro.
Inclusive, mencionou que no Grão-Pará foi ele quem havia posto em prática as
determinações presentes neste capítulo.49 Visto que a Carta Régia que autorizou a
criação de Junta de Justiça no Grão-Pará data de 1758, entendi que ao se referir
à prática de pena de morte no Grão-Pará na carta enviada em 1742 o ouvidor
da comarca estava se remetendo à capacidade de condenar à morte concedida
ao ouvidor geral do Estado do Maranhão através do Regimento de 1644, que
conforme supracitado era similar ao capítulo 6º do Regimento do ouvidor geral
do Rio de Janeiro aqui demandado.

De todo modo, ao fazer o seu pedido o ouvidor da comarca e Minas de


Goiás afirmou que nas capitanias indicadas escravos e índios eram sentenciados
à pena de morte pelo ouvidor geral em conjunto com o governador geral e o
provedor da Fazenda. A partir disso alegou ter a intenção de fazer valer o mes-
mo exercício nas Minas de Goiás. Contudo, ressaltou que se remeteu ao rei por
conta de dúvidas a respeito de como seria composta a Junta de Justiça naquela
região considerando que a capitania de Goiás não contava com todos oficias que
seriam necessários para formar a Junta. Ao abordar este assunto, apontou os casos
específicos das Juntas de Justiça de Pernambuco e Minas Gerais que receberam
permissão do monarca para compor as Juntas com outros membros por conta
das dificuldades particulares de cada uma dessas capitanias em reunir os oficias

48 GOUVÊA, M. de F. “Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-


1808)” In: BICALHO, M. F.; GOUVÊA, M. de F.; FRAGOSO, J. (orgs). O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica
Imperial Portuguesa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.302-303.
49 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 2, D. 162.

391
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

que primeiramente teriam sido demandados. Com isso pediu orientação ao rei
sobre como poderia proceder de acordo com a realidade de sua própria capitania.50

Na década seguinte, no ano de 1754, o pedido foi repetido e dessa vez


Goiás já era independente de São Paulo. A solicitação foi feita por meio de ofício
do governador e capitão general de Goiás dirigido ao Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar, o documento de 28 de janeiro abordava o que seria uma
grande quantidade de delitos e a necessidade de se criar Junta em Goiás “para
se colocar em prática a ordem a respeito da pena de morte”. Neste documento,
o governador indicava como grave problema da região o que afirmava ser uma
grande quantidade de “delitos atrozes” cometidos por índios, bastardos, carijós,
mulatos e negros. Assim como constava nas solicitações das outras capitanias, este
oficial alegava que a falta de castigos fazia com que os ditos crimes continuassem
ocorrendo e indicava a distância da Relação como motivo para a dificuldade de
aplicação das punições. O governador e capitão general de Goiás ressaltou que já
havia realizado este pedido em 1749 ao Conselho Ultramarino e que pelo mesmo
ter sido negado voltava a repeti-lo, asseverando que era “precisamente necessário
que Sua Majestade permita que sejam enforcados nestas Minas, para que o horror
deste espetáculo faça conter aos mais a que não cometam semelhantes delitos”.51

Pouco tempo depois, em 12 de abril de 1757, o ouvidor e corregedor


geral de Goiás escreveu carta ao rei que em seu conteúdo novamente de-
nunciava as dificuldades que aquela região estaria passando por conta da “alta
criminalidade”. E solicitava que se praticasse a pena de enforcamento em Goiás
nos brancos também, não só nos negros, mulatos e tapuias. O ouvidor afirmou
que após a instalação da Relação do Rio de Janeiro, em 175152, proibiu-se en-
forcar nas Minas de Goiás. Dado que neste momento a região ainda não tinha
recebido autorização para sentenciar e executar os réus que merecessem a pena
de morte, auferi que provavelmente os criminosos daquela região eram julgados
pela Relação do Rio de Janeiro, mas a aplicação da pena era feita em Goiás. Isto
posto, o ouvidor explicou mais uma vez a dificuldade de remeter os presos para
o Tribunal do Rio de Janeiro devido à distância e pediu permissão para mandar
enforcar naquelas minas de Goiás “negros e mulatos matadores”. E, no caso dos
criminosos brancos, que estes tivessem seus processos remetidos para a Relação
do Rio de Janeiro para que fossem sentenciados, mas que a aplicação da pena
fosse realizada na capitania de Goiás. O mesmo pedido ainda foi repetido nos

50 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 2, D. 162.


51 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 10, D. 622
52 Schwartz afirma que a criação deste Tribunal foi uma das primeiras reformas feitas pelo Marquês de Pombal
no Brasil, com o sentido de fortalecer o poder da justiça real. Ele indica que queixas oriundas das capitanias
do Sul sobre a necessidade de recorrer de suas decisões à Bahia eram feitas periodicamente. SCHWARTZ, S. B.
Op. Cit., p. 213-214.

392
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

anos de 1758 e 1760, sendo acentuado pelo governador e capitão general de


Goiás da seguinte foram:53
é certo que para a boa administração da Justiça havia de fazer uma forca
nesta capital, como há nas Minas Gerais, em Vila Rica, que fica muito
mais perto da Relação do Rio de Janeiro, que só assim se serão menos
assassinos que continuamente executam, mulatos, cabras, mestiços, e
bastardos54

Este oficial ressaltou não só a distância, incluindo como elementos com-


plicadores para aplicação das punições os altos gastos que teria remetendo os
réus para a Relação do Rio de Janeiro e o fato de as cadeias de Goiás não terem
segurança estrutural suficiente para manter os acusados presos por muito tempo.
Outro argumento apontado pelo governador e capitão general de Goiás foi que
quando esta capitania era anexa à de São Paulo o rei havia ordenado que lá
se levantasse forca.55 A solicitação da prática do capítulo 6º do Regimento dos
ouvidores do Sul de 1642 foi novamente realizada em 1762, dessa vez através de
carta enviada pelos oficias da Câmara de Vila Boa. O pedido era o mesmo. Em
anotações feitas na lateral do documento, datadas de 1764 e 1765, encontra-se
parecer favorável a solicitação.56 Não obstante, em 1763, o ouvidor geral de Goiás
enviou ofício ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar dando conta da
formação da Junta de Justiça e afirmou já ter executado três réus através da
mesma. No ofício o ouvidor relatou os inúmeros pedidos que foram feitos para
que se pudesse formar a Junta e que “pela autoridade do nosso Excelentíssimo
Presidente” deram início a elas. Suponho que ao mencionar “nosso Excelentíssimo
Presidente”, o ouvidor geral de Goiás estava se referindo ao governador geral da
mesma capitania. Nesse sentido, questiono se a Junta de Justiça de Goiás foi for-
mada antes ou depois de ser concedido parecer favorável do rei para sua criação.57

Observa-se que a demanda para a constituição de Junta de Justiça em


Goiás foi bastante similar à de Pernambuco por ter sido repetida por bastante
tempo até ser atendida e também por apresentar dois elementos de destaque
em comum em seus pedidos. Assim como Pernambuco, Goiás mencionou a
execução de brancos e a importância de aplicar a pena na localidade em que
o crime ocorreu. No entanto, apresenta uma diferença em relação à solicitação
realizada pelos oficias pernambucanos, ao se remeter à execução de criminosos
brancos, ela não solicitou permissão para sentencia-los, apenas pediu para que
estes tivessem sua pena aplicada naquela capitania. De todo modo, é instigante
perceber que apenas essas duas regiões, Goiás e Pernambuco, expressaram o
53 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 14, D. 841; AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 15, D. 886; AHU-Goiás AHU_
CU_008, Cx. 17, D. 983.
54 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 17, D. 983.
55 Idem.
56 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 18, D. 1079.
57 AHU-Goiás AHU_CU_008, Cx. 19, D. 1153.

393
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

interesse em se fazer aplicar a pena última em seu território e em destacar a


execução de réus brancos. Outro ponto que se evidencia consiste na incerteza
sobre a formação desta Junta ter sido antes ou depois da concessão de autorização
do rei. Ademais, no que se refere a sua composição e a qualidade de pessoas
que poderia julgar, esta seria composta por apenas três oficiais, o ouvidor geral,
o governador geral e o provedor da Fazenda podendo julgar escravos, índios,
carijós e mulatos sem apelação ou agravo.

Junta de Justiça do Mato Grosso e Alvará de 1765

Assim como em Goiás, as solicitações do Mato Grosso antecederam


a sua independência como capitania perante São Paulo, elas começaram a ser
realizadas em 1731. Em 25 de dezembro deste ano, o ouvidor geral das Minas
de Cuiabá enviou carta ao rei tratando sobre os “crimes e desacatos” que te-
riam sido cometidos naquela região pelos presos que fugiam. Por conta disso,
demandou que o ouvidor geral daquela capitania em conjunto com a Câmara, o
guarda mor e o regente em Junta 58, tivessem alçada para aplicar pena de morte.
O ouvidor afirmou ter conhecimento de que através de um despacho do Con-
selho Ultramarino de 26 de março de 1722, o rei ordenou que com criação da
capitania do Mato Grosso vigorasse naquela região o mesmo Regimento dado
aos ouvidores de São Paulo. E complementou afirmando que por resolução de
“Vossa Majestade” de 20 de julho de 1723 foi determinado que o ouvidor geral
de São Paulo utilizasse o Regimento do ouvidor geral do Rio de Janeiro de 1642.
Logo, o oficial do Mato Grosso pediu que nas Minas de Cuiabá o ouvidor, com
a Câmara, guarda mor, regente em Junta e juiz de fora letrado tivessem alçada
para punir com pena capital sem apelação nem agravo, assim “fazendo levantar
forca” para as mesmas pessoas que eram sentenciadas pelo ouvidor do Rio de
Janeiro e cidade de São Paulo.59

Em 1755, o governador e capitão general da capitania de Mato Grosso


refez o mesmo pedido ao rei justificando-o por conta da superlotação da cadeia
da Vila de Cuiabá e pelo que afirmava ser “as grandes misérias” que a vila esta-
ria passando por não ter autorização para sentenciar em Junta de Justiça até a
pena de morte pretos, mulatos e carijós.60 Apesar de Dilma Cabral afirmar que
no ano de 1758 foi instituída Junta em Mato Grosso, não localizei vestígios que
corroborem tal colocação. Entendo que a capitania do Mato Grosso adquiriu
autorização para formar Juntas com capacidade para condenar a pena de morte
às pessoas plebeias que cometessem “crimes atrozes” a partir da promulgação do

58 Pelo que foi possível entender “o regente em Junta” aqui mencionado se refere a algum oficial que estivesse
substituindo o governador daquela capitania.
59 AHU-MATO GROSSO, cx. 1, doc. 36 AHU_CU_010, Cx. 1, D. 45
60 AHU-MATO GROSSO, cx. 7, doc. 36 AHU_CU_010, cx. 8, D. 473

394
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

alvará de 1765. Este documento concedeu o direito de formar Junta de Justiça à


toda capitania que possuísse ouvidor, sendo ordenado da seguinte forma:
Eu El Rei faço saber aos que este Alvará com força de Lei virem: Que
havendo chegado à Minha Real Presença multiplicadas, e sucessivas queixas
dos Meus fies Vassalos habitantes nos Territórios das partes interiores do
Estado do Brasil; manifestando nelas por um grande número de fatos
evidentes, que o meio dos recursos para os Juízos da Coroa da Bahia, e
Rio de Janeiro, tinha demonstrado uma triste, e ruinosa experiência, que
já não podia socorre-los, útil, e oportunamente; [...] Hei por bem Ordenar,
que em toda a parte do Brasil, onde houver Ouvidores, se formem Juntas
de Justiça, [...] Na mesma forma que se praticava antes do estabelecimen-
to das sobreditas Relações nos seus respectivos Territórios, e está ainda
praticando nas Capitânias do Grão Pará, do Maranhão, e de Angola.61

Ainda que grande parte da historiografia indique a origem das Juntas a


partir do mencionado alvará, como foi possível observar, a criação das mesmas
foi anterior a este. Igualmente, considero relevante destacar que antes do referido
alvará as Juntas eram instituídas a partir de demandas dos oficiais presentes nas
capitanias – excetuando-se o caso da Junta de Justiça do Grão-Pará e a do Mara-
nhão, como veremos adiante – e estas nem sempre foram atendidas de imediato.
Após a emissão desta ordem real, toda capitania que tivesse um ouvidor teria
permissão para o estabelecimento de Junta, compreendo que este alvará serviu
para normatizar um fenômeno que passou a ocorrer em regiões que apresentariam
um cenário considerado pelas autoridades como “de alta criminalidade” desde a
década de 20 dos setecentos. Isto posto, entendo que temos aqui um exemplo
de lei que atende a uma prática e não que a impõe. Ademais, considero que esta
determinação ampliou a capacidade de alcance da jurisdição da pena capital e
muito provavelmente aumentou a efetiva aplicação desta pena. Ressaltando que
a possibilidade de sentenciar à pena de morte através das Juntas de Justiça se
direcionou principalmente às pessoas dita de “menor qualidade”, negros, índios
e mestiços – com exceção da permissão para julgar militares que foi concedida
ao Grão-Pará, e indicarei a seguir que também foi designada ao Mato Grosso
e ao Maranhão – entendo que se, de fato, a pena última foi mais aplicada por
meio das Juntas, ela foi executada especificamente sobre este grupo de pessoas.

Ademias acredito que o alvará de 1765 regulou especificamente a for-


mação de novas Juntas de Justiça e não interferiu nas determinações individuais
anteriormente concedidas a cada capitania no que se referia à composição e a
qualidade das pessoas julgadas. Assim, este alvará ordenava que as Juntas fossem
formadas pelo ouvidor (entendo ouvidor geral da capitania) como presidente e
relator e dois adjuntos que deveriam ser ministros letrados que estivessem na

61 ALVARÁ DE 18 DE JANEIRO DE 1765. In: CARDIM, P.; SILVA, C. N. da; XAVIER, A. B. (Coord.). Arquivo
Digital O Governo dos Outros: Imaginários Políticos no Império Português Disponível em: http://www.governo-
dosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=107&accao=ver&pagina=144 Acesso em: 15 de agosto de 2017.

395
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

terra, na sua falta poderiam ser nomeados pelo ouvidor como adjuntos bacha-
réis formados.62 É curioso perceber que este alvará não identificava a qualidade
dos réus a serem sentenciados, tomando por base a jurisdição das outras Juntas
considerei que fossem índios, negros e mulatos.

Apesar de ter identificado que a Junta do Grão-Pará teve jurisdição para


condenar pessoas de maior qualidade, atribui está especificidade ao fato deste
território se tratar de uma outra unidade administrativa, um outro Estado distinto
do Estado do Brasil, que não possuía Tribunal da Relação neste momento. Não
obstante, o alvará mencionava que as Juntas deveriam atuar de forma semelhante
ao que se “praticava antes do estabelecimento das sobreditas Relações nos seus
respectivos Territórios, e está ainda praticando nas Capitânias do Grão-Pará, do
Maranhão, e de Angola”.63 O que abre a possibilidade para que militares e pessoas
de “maior qualidade” pudessem ser sentenciados por qualquer Junta de Justiça
que viesse a ser formada. No entanto, tendo a acreditar que não, considerando
que a capacidade de sentenciar soldados, por exemplo, foi concedida apenas a
algumas Juntas de forma individual, como ao Grão-Pará em 1758, à do Mato
Grosso em 1771 e a do Maranhão em 1777, como explicarei agora. Ainda assim,
a mencionada possibilidade não deve ser totalmente descartada. Quando abor-
dei a criação da Junta de Justiça de Minas Gerais me deparei com a afirmação
de Arno e Maria José Wehling de que estas teriam capacidade para condenar
militares. Mesmo que não tenha encontrado outros indícios para tal declaração
esta interpretação poderia dar conta de explicar o que foi dito pelos Wehling.

Autorização para sentenciar militares na Junta de Justiça do Mato Grosso


(1771) e na Junta de Justiça do Maranhão (1777)

Como enunciado, em 1771 as Juntas formadas na capitania do Mato


Grosso adquiriram por meio de Carta Régia a alçada para sentenciar soldados e
outros oficias nos mesmos crimes que se concedeu ao Grão-Pará em 1758. No
entanto, nesta carta não foi apontada a necessidade de composição diferenciada
da Junta para julgar militares. Indicou-se apenas que fossem compostas por cinco
ministros letrados daquela vila e das terras vizinhas e se não os tivessem poderia
ser formada por advogados de boa nota.64

No caso do Maranhão, em 1777, quando o Estado do Maranhão se en-


contrava dividido em dois (Estado do Maranhão e Piauí, e Estado do Grão-Pará e
Rio Negro) foi conferida permissão para criação de Junta de Justiça naquela região
com capacidade para atuar nos casos de soldados e outros oficiais, e paisanos.
62 ALVARÁ DE 18 DE JANEIRO DE 1765. In: CARDIM, P.; SILVA, C. N. da ; XAVIER, A. B. (Coord.). Arquivo
Digital O Governo dos Outros: Imaginários Políticos no Império Português Disponível em: http://www.governo-
dosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=107&accao=ver&pagina=144 Acesso em: 15 de agosto de 2017.
63 Idem.
64 AHU-MATO GROSSO, cx. 15, doc. 8 AHU_CU_010, Cx. 15, D. 944

396
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A Carta Régia que concedeu sua autorização foi bastante similar a concedida ao
Grão-Pará, todavia algumas distinções podem ser apontadas. Na Carta em questão
a pena de morte foi claramente indicada, a criação da Junta se fazia para que
fossem “sentenciados todos os réus, que cometerem delitos que por eles mereção,
não só as penas arbitrárias, mas a última, para que cresçam em virtudes os bons,
e se apartem os maus, dos seus perversos costumes”.65

Além disso, este documento não se referia à necessidade de remeter


ao rei os casos de pessoas da Casa Real ou militares com título de capitão.
Entretanto, assim como foi assinalado na Carta Régia de criação das Juntas do
Grão-Pará, na do Maranhão também era dito que os criminosos deveriam ser
sentenciados sem apelação ou agravo independente de se tratarem de europeus,
americanos e africanos, livres ou escravos.66 A respeito da composição, a Junta
formada nesta capitania seria composta por cinco ministros letrados da cidade e
das mais vizinhas, caso não houvesse os ministros estes poderiam ser substituídos
por advogados de boa nota nomeados pelos o ouvidor geral dessa comarca, que
atuaria como juiz relator.67

Considerações Finais

Conforme foi possível vislumbrar, a partir do final do século XVII a juris-


dição para aplicação da pena de morte passou a ser solicitada por governadores
gerais, ouvidores gerais e oficiais da Câmara ao rei, como um elemento importante
para manutenção da ordem e boa administração da justiça. E foi essa demanda
que deu origem às Juntas de Justiça. No entanto, é preciso ter em mente que a
Junta de Justiça não era a única instância detentora de poderes para condenação
e aplicação da pena de morte neste contexto. A jurisdição da pena última que
constava como atribuição do ouvidor geral do crime da Relação da Bahia, não
foi perdida, no entanto com a criação das Juntas sua esfera de ação foi reduzida.
Situação equivalente ocorreu com a atuação do ouvidor geral do crime da Relação
do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII.

Apesar de neste período as Relações da Bahia e do Rio de Janeiro não


apresentarem novo Regimento que tivessem alterado os deveres de seus oficias,
aqueles que tinham funções ligadas à pena capital tiveram seu espaço de ação
limitado em algumas regiões pelas Juntas de Justiça criadas. A princípio foi possível
identificar a permissão para formar Juntas em São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco,
Goiás e Mato Grosso, no entanto a partir da promulgação do Alvará de 1765
outras capitanias também poderiam vir a formar as Juntas. Ou seja, percebe-se
que julgar os crimes praticados por pessoas de plebeias que demandariam a
65 AHU-MARANHÃO, 946 AHU_ACL_CU_003, Cx. 37, D. 2985.
66 Idem.
67 Idem.

397
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

pena de morte, foi paulatinamente deixando de ser uma responsabilidade das


Relações nas localidades que houvesse a formação de Junta de Justiça. O que
provavelmente reduziu a quantidade de processos criminais que eram remetidos
ao ouvidor geral do crime da Relação, fosse da Bahia ou do Rio de Janeiro.

Por fim, considero que a reconstrução da organização normativa da pena


capital possibilita um melhor entendimento da forma pela qual deveria se proceder
nos casos que requeressem a condenação à morte natural nos diferentes con-
textos e espaços. Entendo que compreender a esquematização legal da pena de
morte se torna imprescindível para que se possa pensar na sua efetiva aplicação.
Ademias, até o presente momento desconhecia trabalhos que apresentassem a
organização da jurisdição pena última na América portuguesa e fornecessem mais
detalhes sobre a criação e sistematização das Juntas de Justiça. Neste sentido este
estudo tem como objetivo contribuir não só para as pesquisas a respeito da pena
de morte na América lusitana, mas também para os estudos sobre a justiça e a
estruturação das jurisdições na América portuguesa de uma forma geral.
ANEXO - Jurisdição da pena de morte concedida às Juntas de Justiça (1723-1777)

ESTADO DO BRASIL
JUNTA DE JUSTIÇA JUNTA DE JUSTIÇA JUNTA DE JUSTIÇA
DE SÃO PAULO DE MINAS GERAIS DE PERNAMBUCO
Desde 1723: Desde 1731/1735: Desde 1735:
•Composição: ouvidor geral • Composição: ouvidor de • Composição: ouvidor geral
da comarca; governador Vila Rica; juiz de fora de de Pernambuco; governa-
geral; juiz de fora de Ribeiro do Carmo; e 2 dor geral de Pernambuco
Santos. ministros da época que se (presidente); ouvidor da
• Qualidade dos réus para achassem mais perto da Paraíba; juiz de fora de
sentenciar: escravos, mesma vila. Olinda; um dos ouvidores
índios, mulatos e bastardos • Qualidade dos réus para gerais de comarca, ou
ainda que forros. sentenciar: bastardos, procurador da Coroa, ou
• Recurso: sem apelação carijós, mulatos e negros. bacharel formado.
nem agravo. • Recurso: sem apelação • Qualidade dos réus
nem agravo. para sentenciar: índios,
bastardos, carijós, mulatos
e negros.
•Recurso: sem apelação
nem

398
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

JUNTA DE JUSTIÇA JUNTA DE JUSTIÇA


DE GOIÁS DO MATO GROSSO
A partir de 1763: A partir de 1765:
• Composição: ouvidor • Composição: Ouvidor (presidente e relator), e 2 Ministros
geral; governador geral; Letrados (ou bacharéis formados).
provedor da Fazenda. • Qualidade dos réus para sentenciar: índios, negros e
• Qualidade dos réus para mulatos.
sentenciar: escravo, • Recurso: sem apelação nem agravo.
índios, carijós e mulatos.
• Recurso: sem apelação A partir de 1771:
nem agravo. • Composição: 5 ministros letrados daquela vila e das terras
vizinhas, ou advogados de boa nota.
• Qualidade dos réus para sentenciar: militares (deserção,
sedição, rebelião, Lesa Majestade, homicídios voluntários,
rapinas de salteadores, e resistências as Justiças, estabe-
lecidas para conservarem a paz pública) e paisanos.
• Recurso: sem apelação nem agravo.

ESTADO DO GRÃO-PARÁ E MARANHÃO


JUNTA DE JUSTIÇA JUNTA DE JUSTIÇA
DO GRÃO-PARÁ MARANHÃO
A partir de 1758: A partir de 1777:
• Composição para sentenciar paisanos: ouvidor, o • Composição: ouvidor geral
intendente das colônias, o juiz de fora, e 3 ministros da comarca (juiz relator), e 5
ou bacharéis formados (ou 3 vereadores). ministros letrados da cidade e
• Composição para sentenciar militares: todos os das mais vizinhas (ou advogados
oficias maiores dos dois Regimentos da cidade do de boa nota, nomeados pelos o
Pará, e [Marapá], ou os que [seves] cargos servirem, ouvidor geral dessa comarca).
e o ouvidor do Estado. • Qualidade dos réus para sen-
• Qualidade dos réus para sentenciar: militares (de- tenciar: militares (deserção, se-
serção, sedição, rebelião, Lesa Majestade, homicídios dição, rebelião, Lesa Majestade,
voluntários, rapinas de salteadores, e resistências as homicídios voluntários, rapinas
Justiças, estabelecidas para conservarem a paz públi- de salteadores, e resistências
ca) e paisanos ainda que sejam europeus, ou ameri- as Justiças, estabelecidas para
canos, ou ainda africanos, ou livres, ou escravos. conservarem a paz pública) e
•Recurso: sem apelação nem agravo. paisanos ainda que sejam euro-
• Obs.: se se tratar de réu pertencente a Casa Real ou peus, americanos ou africanos,
com título de capitão, não se fará livres ou escravos.
•Recurso: sem apelação nem
agravo.

399
JURISDIÇÃO DA PENA DE MORTE E A CRIAÇÃO DAS JUNTAS DE JUSTIÇA
NA AMÉRICA PORTUGUESA (1723-1777)

ESTADO DO BRASIL E ESTADO DO GRÃO-PARÁ E MARANHÃO


JUNTAS DE JUSTIÇA
DE ACORDO COM O ALVARÁ DE 1765
A partir de 1765:
• Pré-requisito: qualquer capitania que tiver ouvidor.
• Composição: ouvidor (presidente e relator), e 2 ministros letrados (ou
bacharéis formados).
• Qualidade dos réus para sentenciar: índios, negros e mulatos.
• Recurso: sem apelação nem agravo.

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400
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

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401
Grupo de Trabalho

HISTÓRIA DO DIREITO DO TRABALHO


IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTI-


TUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO1

RAFAEL LAMERA GIESTA CABRAL


Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA)

Resumo
Grande parte das narrativas explicativas sobre a regulação do trabalho
na década de 1930 acabam por exteriorizar as tensões existentes entre o mito
da outorga de direitos pelo Estado e o protagonismo da classe trabalhadora
para firmar novos locais de Direito. A proposta desta pesquisa tem como
ponto de partida um questionamento complexo a partir de um estudo de
caso ocorrido em uma mina de carvão em Arroio dos Ratos-RS: qual o
impacto que a regulação do trabalho causa para o trabalhador em tempos
de constitucionalização de direitos, tal como os observados na década de
1930? Essa questão coloca outros desafios, pois não basta a existência da
legislação, é necessário investigar como o acesso aos direitos consagrados pela
legislação são mediadas pelos interesses de trabalhadores, empregadores e o
Estado. Assim, a partir da metodologia da micro-história, buscou-se analisar
um processo trabalhista e reconstruir seu contexto em um levantamento de
fontes primárias e documentos judiciais. O caso exteriorizou uma relação em
que a dimensão público e privado se encontrava radicalizada, vislumbrada na
relação entre a empregadora, empregados e o município e seus limites de
controle e vigilância sobre o trabalho. O que emergia desse conflito não era
apenas uma resistência ou crise no sistema punitivo local, mas a presença de
alternativas, de possibilidades históricas que, ao serem ritualizadas mediante
o processo, permitiam o registro dos limites e avanços de uma comunidade
de trabalhadores que passava a ser mediada pelo direito de maneira inédita.

Introdução

A partir de 1930, mudanças profundas marcaram o mundo do trabalho


no Brasil. O nascimento de uma incipiente regulamentação do direito do trabalho
acelerou-se em um contexto político, econômico e social inédito, com forte frag-
mentação e instabilidade no arranjo de interesses reformulados no pós-Revolução
de 1930 – Era Vargas.

Grande parte das narrativas explicativas sobre a regulação do trabalho na


década de 1930 acabam por exteriorizar as tensões existentes entre o mito da
outorga de direitos pelo Estado e o protagonismo da classe trabalhadora para
firmar novos locais de Direito. A proposta desta pesquisa tem como ponto de

1 O presente texto é um fragmento da tese de doutorado em Direito do autor, em circulação para discussão
nos anos de 2016/2017. Uma versão ampliada deste trabalho foi publicada pela Revista Direito e Práxis, vol. 8,
n. 4, 2017.

405
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

partida um questionamento complexo: qual o impacto que a regulação do tra-


balho causa para o trabalhador em tempos de constitucionalização de direitos,
tal como os observados na década de 1930?

Essa questão coloca outros desafios, pois não basta a existência da legisla-
ção, é necessário investigar como o acesso aos direitos consagrados pela legislação
são mediadas pelos interesses de trabalhadores, empregadores e o Estado. Ao
integrar esse ponto, os olhares se direcionam a uma das principais instituições
responsáveis pela organização de interesses entre capital e trabalho: o Conselho
Nacional do Trabalho, que entre 1923 a 1945, quando se transformou em Tribunal
Superior do Trabalho, lavrou mais de 50 mil acórdãos em ações trabalhistas e
previdenciárias. Em visita ao fundo de arquivo do Conselho Nacional do Trabalho
(CNT), no Tribunal Superior do Trabalho (TST), uma reclamação trabalhista de
agosto de 1934 chamou a atenção. Tratava-se de um pedido de reintegração ao
trabalho promovido por sete mineiros de uma mina de carvão da Companhia
Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo – CEFMSJ, de Arroio dos Ratos, Rio
Grande do Sul, que haviam sido expulsos da mina pela polícia local por serem
considerados indesejáveis. O processo trazia à tona denúncias de greve, prisão de
trabalhadores e uma possibilidade de uso da própria lei para reformar a decisão
da empresa empregadora.

Na composição entre capital e trabalho, verificou-se o desdobramento


do conflito trabalhista em outros níveis de complexidade e a partir dos rastros
deixados pela reclamação foi possível construir um programa de pesquisa que
buscou identificar o impacto que um processo de natureza trabalhista causava
em contextos de constitucionalização de direitos e instituição de práticas e ações
protetivas de longo alcance.

A forma como o processo se desenvolveu, atrelado ainda à configuração


das defesas apresentadas, refletia, na verdade, o uso de uma racionalidade seletiva
e limitada, cuidadosamente construída para não expor as realidades mais amea-
çadoras do mundo do trabalho em conflito com a lei, mas de grande referência
para a história do direito constitucional brasileiro.

Os acontecimentos locais (em que foram presenciados os conflitos entre


polícia, mineiros e companhia) – por mais que representassem uma prática, pos-
sivelmente, reiterada da companhia empregadora – estavam interligados a fatos
econômicos e políticos que fugiram do controle da empresa. Nesse contexto,
surgem problemas interessantes para a reflexão acerca da história do direito em
momentos de aplicação do direito. O que emergia desses conflitos não era apenas
uma resistência ou crise no sistema punitivo local, mas a presença de alternati-
vas, de possibilidades históricas que, ao serem ritualizadas mediante o processo,

406
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

permitiam o registro dos limites e avanços de uma comunidade de trabalhadores


que passava a ser mediada pelo direito de maneira inédita.

Com a reconstrução do caso a partir da metodologia da micro-história,2


é possível lançar algumas interpretações sobre o contexto da regulação trabalhista
reorganizada após a Constituição de 1934 e do papel do Conselho Nacional do
Trabalho ao estabelecer novos locais de direito entre resistência e ajuste à nova
ordem constitucional.

Esse trabalho foi organizado em duas etapas: na primeira, busca-se explorar


a reclamação trabalhista utilizada como caso base e na segunda, promove-se uma
análise que tem como foco avaliar o contexto da regulação de direitos e sua ins-
trumentalização a partir das discussões constitucionais pós Constituição de 1934.

1. Os mineiros e a reclamação trabalhista no Conselho Nacional do Trabalho

Nos primeiros dias do mês de setembro de 1934, chegava ao Conselho Na-


cional do Trabalho (CNT) uma reclamação trabalhista da 11a Inspetoria do CNT em
Porto Alegre/RS. Tratava-se do processo dos mineiros Domingos Mantilha, Liberalino
Machado de Lima (ou Januário Machado de Lima), Raphael Mezza, Antônio Nunes
das Pedras, Adalberto Azambuja dos Santos, João Keenan e Thomaz Gonçalves da
Silva3 contra a Companhia Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo (CEFMSJ).

O caso se originou em uma das instalações da CEFMSJ, no distrito de


Arroio dos Ratos, município de São Jerônimo/RS. A primeira manifestação oficial
da empresa ocorreu em 22 de agosto de 1934. Produzida em lauda única, esclarecia
que os empregados Liberalino Machado de Lima, Raphael Mezza, Antônio Nunes
das Pedras e Adalberto Azambuja dos Santos foram expulsos das minas de carvão
pelas autoridades policiais em março de 1934, “como indesejáveis, motivo por que
nossa Companhia os considerou demitidos por abandono de emprego”.4 O empre-
gado Domingos Mantilha foi transferido para lugar diverso de sua ocupação, por
conveniência do serviço e “com igual ordenado, deixou de se apresentar no serviço
que lhe fora destinado”. Os empregados João Keenan e Thomaz Gonçalves da Silva
teriam deixado de comparecer ao serviço “por sua livre vontade”, o primeiro, em
1929 e o segundo, em dezembro de 1933, sem darem nenhuma satisfação.

2 Os fundos de arquivo sobre as companhias carboníferas disponíveis no Museu Estadual do Carvão, em


Arroio dos Ratos-RS, e os jornais da época auxiliaram no levantamento de dados sobre o caso e contexto
local.
3 As primeiras petições no processo indicavam apenas o nome de Thomaz Gonçalves. A partir de 1935, a
referência a Thomaz Gonçalves da Silva tornou-se comum.
4 Fl. 03 do processo nº 9.582/1934.

407
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

Na sequência, seguia o processo na íntegra, com petição inicial5 e provas


documentais dos empregados reclamantes, todos representados pelo advogado do
Sindicato dos Mineiros de Arroio dos Ratos (SMAR).6 Dos sete reclamantes, apenas
Antônio e Adalberto, segundo dados da petição, possuíam pouco mais de sete anos
de vínculo empregatício. Os demais eram empregados estáveis, com tempo superior
a dez anos de vínculo empregatício na categoria de mineiros.

Na petição inicial, os empregados narravam que as demissões foram injustas,


visto não terem cometido faltas graves que justificassem a reação da empresa e
em função da violação dos procedimentos legais para demissão,7 presentes no
art. 53, do Decreto nº 20.465, de 1º de outubro de 1931, que exigia a instauração
de inquérito administrativo para apurar a existência de falta grave de empregados
com mais de dez anos prestados a uma mesma empresa. Embora reconhecessem
que Antônio e Adalberto poderiam ser demitidos sem ofensa a dispositivos de
leis por não serem estáveis, “a injustiça de tal ato não deixa de ser chocante, para
qualquer pessoa, que se preze de ter um pouco de sentimento de justiça para
com o seu semelhante”. Buscando a reintegração dos trabalhadores, o sindicato
requereu a intervenção do Ministério do Trabalho.

Em 11 de dezembro de 1934, a CEFMSJ apresentou uma petição8 em que


buscava embargar a continuidade do processo. Amparada por opinião jurídica
do consultor da empresa, o delegado diretor da companhia apresentou novos
argumentos, indicando a impossibilidade de enviar o inquérito administrativo para
apurar falta grave por entender que tal medida somente se aplicaria a empre-
sas que tivessem demitido empregados estáveis, conforme nova disposição do
art. 2o do Decreto nº 22.096, de 16 de novembro de 1932.9 Para a empresa, o
afastamento dos trabalhadores não ocorreu pela demissão, mas, sim, pela prisão
efetuada pela polícia, o que, em seu entendimento, não ensejava a obrigação de
instaurar inquérito administrativo. Sobre o assunto, a empresa manifestava que:
De fato, nenhuma demissão foi lavrada ou dada aos reclamantes por
esta empresa, tendo eles em sua maior parte, sido privados de trabalhar
pela polícia local, em consequência de prisão por ela efetuada, devido à
denúncia recebida de estarem tramando uma greve geral entre os minei-
ros, denúncia, aliás, a que a Direção desta empresa foi completamente
estranha. Afastados, assim, do serviço, por motivo, não de demissão, que
5 Fls. 05 e ss. do processo nº 9.582/1934.
6 O sindicato dos Mineiros de Arroio dos Ratos foi criado em 1º de janeiro de 1933 e reconhecido pelo
MTIC em junho do mesmo ano.
7 O Decreto nº 22.096, de 16 de novembro de 1932, estendeu aos serviços de mineração o regime das Caixas
de Aposentadoria e Pensão e outros dispositivos de proteção social e previdenciária aos trabalhadores (Decreto
nº 20.465, de 1º de outubro de 1931, alterado em 24 de fevereiro de 1932).
8 Fls. 40 e ss. do processo nº 9.582/1934.
9 O decreto estendia aos serviços de mineração, em geral, as disposições do Decreto nº 20.465, de 1 de
outubro de 1931, com as modificações constantes do de nº 21.081 de 24 de fevereiro de 1932, prevendo as
CAPs e a estabilidade decenal aos empregados.

408
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

não houve, mas de prisão efetuada pela polícia, é claro que a nenhum
inquérito administrativo estava obrigada a empresa a qual, diante do
inopinado afastamento, forçado, dos reclamantes, não podia deixar de logo
dar-lhes substituto, conforme fez, em legítimo resguardo dos interesses da
mesma que lhe incumbe precipuamente zelar.10

Em decorrência desse argumento, caracterizando o “abandono de em-


prego forçado”, a companhia pretendeu contornar eventuais prejuízos causados
aos reclamantes utilizando o disposto no art. 171 da nova Constituição, em vigor
desde 16 de julho de 1934, que previa ser de responsabilidade do funcionário
público indenizar, em solidariedade com o Estado e municípios, situações que,
por negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos,11 viessem a causar
prejuízos a terceiros. Ao utilizar esse dispositivo, a companhia pretendia afirmar
que, uma vez comprovada posteriormente a “injustiça da prisão”, o responsável
direto pelos prejuízos causados, decorrentes de negligência, omissão ou abuso no
exercício de suas funções deveria ser acionado judicialmente – nesse caso, a polícia
e não a empresa, cuja obrigação de readmitir os empregados e pagar-lhes salários
não procederia, visto não ter contribuído para a privação a que foram sujeitos.
Assim, a empresa utilizava o argumento da culpa de terceiro como exclusão de
eventual responsabilidade para ressarcir os prejuízos causados aos empregados.
Remetendo, novamente, aos dispositivos da Constituição de 1934, a empresa
afirmava que essa obrigação só seria possível se houvesse lei que determinasse tal
ressarcimento, pois conforme o art. 113, parágrafo 2o da Constituição, “ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo se não em virtude de lei”.

Assim, argumentava que, naquele caso, por não se tratar de demissão


dada pela empresa, mas de impedimento dos operários para comparecerem ao
serviço por motivo de prisão efetuada pela polícia, a responsabilidade pelo res-
sarcimento dos prejuízos pesaria contra a autoridade policial, inquestionavelmente
prevista no art. 1.550 do Código Civil de 1916, que preceituava que “a indenização
por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que
sobrevierem ao ofendido, e no de uma soma calculada nos termos do parágrafo
único do art. 1.547”.

Acompanhando a manifestação, a empresa apresentou um ofício da Inspe-


toria Regional do MTIC, no qual constatava que o inspetor Ernani de Oliveira, em
atendimento ao SMAR, acompanhou as causas que teriam determinado a prisão
e demissão dos operários. No ofício, Ernani de Oliveira destacava que a Chefatura
de Polícia do Estado informou-lhe que esses operários foram denunciados à polícia
como comunistas e promotores de um movimento grevista entre o pessoal de
mineração. Todavia, após rigorosa sindicância promovida pelo 3o delegado auxiliar
da capital, concluiu-se que as imputações eram destituídas de fundamento. O
10 Fl. 40 do processo nº 9.582/1934.
11 No original, a empresa grifou o termo.

409
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

ofício indicava, por fim, um pedido do inspetor à direção da empresa: “afigura-


se-me, assim, ato de boa justiça a readmissão desses operários, tão rudemente
atingidos por infundada e aleivosa imputação. Acredito que diverso não será o
vosso juízo, o que me autoriza a confiar nessa reparação”.

Em 5 de fevereiro de 1935, a procuradoria apresentou novo parecer so-


bre o caso Domingos Mantilha e outros. Refutando os argumentos da empresa,
compreendeu que “desde que forçado pela polícia, deixava de se caracterizar o
abandono de emprego pelos reclamantes e ainda apurada a improcedência da
denúncia, cabia à companhia readmiti-los em seu serviço, uma vez que não se
verificavam as hipóteses do art. 53 dos decretos n. 20.465 e 21.081”.12

O acórdão13 proferido rejeitou a manifestação da empresa. Determinou a


reintegração de Domingos Mantilha.14 Em agosto do mesmo ano, a companhia
apresentou ao CNT os certificados de tempo de serviço dos operários.15 Após
trocas de ofícios entre o CNT e o sindicato, somente em 16 de abril de 1936
houve nova manifestação nos autos, quando o sindicato reagiu às informações
da companhia sobre as certificações de tempo de serviços, passando a questio-
ná-las, inclusive, com a apresentação de outras declarações de tempo de serviço
emitidas pela própria companhia.16

O sindicato também se manifestou sobre documento fornecido pelo


delegado de polícia, apontando que o comparecimento dos operários junto à
delegacia não foi espontâneo, pois foram forçados diante das acusações que
haviam surgido. Acrescentou, ainda, a própria informação da empresa, segundo
a qual os operários foram expulsos das minas em razão de uma acusação que
se verificou infundada.

A ação da polícia, bem como sua vinculação aos administradores da


Estrada de Ferro e Minas, passou a ser questionada apenas a partir desse mo-
mento pelo sindicato: havia uma acusação formal de que o delegado José Maria
de Carvalho “era autoridade truculenta, perseguidor sistemático de operários a
soldo das companhias de mineração”.

12 Fl. 46 do processo nº 9.582/1934.


13 Os acórdãos eram redigidos por funcionários auxiliares da secretaria do CNT. À fl. 52, há informação de
que este acórdão foi redigido por Bergamine de Abreu, em 14 de maio de 1935.
14 A empresa cumpriu a determinação do CNT, reintegrando Domingos. À fl. 51, verso, há a indicação de que
a empresa reintegrou também Thomaz, porém, sem indenizar qualquer um dos dois pelo tempo que ficaram
impedidos de trabalhar. A notícia de pagamento de indenização a Domingos, referente aos salários não pagos
durante o tempo do afastamento, ocorreu à fl. 105, de 2 de outubro de 1937, após exaustivas denúncias de
não cumprimento total do acórdão.
15 Fls. 56-63 do processo nº 9.582/1934. As certidões eram de 13 de julho de 1935.
16 O sindicato apresentou uma justificativa judicial em busca da comprovação de que Liberalino e Januário
eram a mesma pessoa, com vinculação de tempo de serviço superior a dez anos. No entanto, a justificação
foi desentranhada do processo, sem cópia nos autos.

410
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Acompanhando a petição, havia um ofício17 emitido pelo sindicato e ende-


reçado ao inspetor regional do MTIC, Ernani de Oliveira, no qual se questionava se:
i) a inspetoria tinha conhecimento da demissão dos operários Adalberto, Raphael,
Liberalino e outros; ii) houve comprometimento espontâneo dos mineiros com
as autoridades policiais de abandonarem as minas ou se foram obrigados pela
autoridade policial a firmar esse compromisso em virtude de uma denúncia em
que se achavam envolvidos por tentativa de subversão da ordem; iii) a delegacia
de polícia da capital do estado, encarregada de apurar o inquérito sobre as prisões
dos operários, apurou serem infundadas as acusações contra os envolvidos; iv) na
qualidade de inspetor, tinha conhecimento de que o delegado, em São Jerônimo,
era considerado pelos operários das minas de Arroio dos Ratos e de Butiá como
uma autoridade atrabiliária e algoz dos trabalhadores, para satisfazer as diretorias
das companhias de mineração, tendo mesmo chegado ao ponto de se apossar
ilegalmente de móveis, utensílios e arquivos do sindicato dos mineiros de Butiá
para atender a um pedido do diretor-presidente das minas.

Em resposta ao ofício, o inspetor informou que tinha conhecimento das


demissões e acreditava não ter havido declaração espontânea dos operários, pois
as considerava como demissões injustas. Após a devida investigação, reconhecen-
do que as acusações eram infundadas, relatou que era de seu conhecimento a
indisposição dos operários contra o delegado, registradas, inclusive, nos arquivos
da 17a Inspetoria Regional do MTIC. Acrescentou que tinha conhecimento da
intervenção do delegado de polícia, José Maria de Carvalho, no fechamento da
sede do sindicato dos mineiros de Butiá, por solicitação de Roberto Cardoso,
diretor da Companhia Carbonífera Rio-Grandense (CCR), com apropriação dos
móveis e arquivo.

Em 19 de maio de 1936, a procuradoria lançou aos autos um parecer18


conclusivo para o deslinde do feito. Considerando as conclusões da empresa como
ilógicas, o parecer apontou que a simples prisão pela polícia, mesmo sob efeito de
processo de investigação instaurado perante a autoridade policial, não era suficiente
para confirmação de falta grave, uma vez que esta deveria ser provada em inquérito
administrativo, nos termos do art. 53 do Decreto nº 20.465, de 1] de outubro de
1931, cumulado com o Decreto nº 22.096, de 16 de novembro de 1932.

Recusando a justificativa de demissão por se ater a ato policial que efetuou


prisão para averiguação, a procuradoria pugnou pela: i) notificação da empresa
para pagamento da indenização devida a Domingos Mantilha; ii) reintegração e
indenização de Thomaz Gonçalves da Silva e Raphael Mezza, por preencherem
os requisitos da estabilidade, reconhecidas pela empresa, sem apuração da falta
grave mediante inquérito administrativo; iii) rejeição dos pedidos de reintegração
17 Fl. 86, processo nº 9.852/1934.
18 Fl. 92, verso, processo nº 9.852/1934.

411
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

de Adalberto dos Santos Azambuja, João Keenan e Antônio Nunes das Pedras,
por não possuírem ou comprovarem mais de dez anos na relação de emprego;
iv) rejeição do pedido de Liberalino Machado Lima ou Januário por ausência de
prova de que se tratavam da mesma pessoa, “mas sim que usou nomes diferentes
em ocasiões diversas”; contudo, mesmo que fossem a mesma pessoa, os atestados
apresentados não preenchiam o requisito decenal.

O acórdão19 produzido pelos membros da 3a Câmara20 relatou as duas


decisões anteriores do conselho e sustentou que “à vista dos elementos constan-
tes dos autos, fica[va] evidenciado que os empregados reclamantes, por terem
tramado uma greve geral entre os mineiros, foram expulsos do serviço da mina
pela polícia, que os prendeu para averiguação e processo criminal posterior”.
Ao considerar improcedente a argumentação da CEFMSJ de que não lhe cabia
promover inquérito administrativo devido à prisão efetuada pela polícia, e por
se tratar de prisão que não resultou em condenação criminal, o CNT enten-
deu que era dever da empresa proceder à abertura de inquérito para apurar
falta grave eventualmente cometida por empregados estáveis. Nesses termos,
o conselho determinou: i) o pagamento das indenizações que teriam direito
Domingos Mantilha; ii) a reintegração de Thomaz e Raphael, com pagamento
de indenizações salariais pelo tempo que ficaram privados do trabalho; iii) a
rejeição do pedido de Adalberto e Antônio, devido à ausência de provas do
tempo de serviço superior a dez anos, necessários para configurar estabilidade
profissional; iv) rejeição do pedido de Liberalino ou Januário, por serem impre-
cisas os documentos juntados aos autos para provar que se tratava da mesma
pessoa, e mesmo se fosse acolhida, por não cumprir os dez anos de trabalho
necessários para a estabilidade decenal; e v) em relação a João Keenan, a con-
versão do julgamento em diligência, na qual se exigia da empresa informações
sobre a comprovação do tempo de serviço do empregado.

A 3a Câmara do CNT, durante sessão realizada em 6 de setembro de 1938,21


acolheu o pedido de João Keenan e determinou sua reintegração. A discussão dos
membros do CNT nesse julgamento pode ser recuperada nas notas taquigráficas
do arquivo. Informado sobre a decisão, em 29 de dezembro de 1938, o Cadem
comunicou o falecimento de João Keenan, ocorrido em 14 de janeiro de 1938.

19 Fls. 96-99, processo nº 9.582/1934.


20 Não há no fundo CNT registro das notas taquigráficas desta sessão, impossibilitando, novamente, acesso
aos debates dos conselheiros no julgamento.
21 Fls. 154-155, no processo nº 9.582/1934.

412
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

2. O impacto da reclamação trabalhista para a institucionalização de Di-


reitos Inéditos

A reclamação trabalhista nº 9.852/1934 pode ser considerada como um


ponto de inflexão relevante para a história do direito constitucional. Essa afirma-
ção assume a perspectiva desafiadora de tentar compreender como um caso
concreto pode ilustrar situações de disputa sobre novas funções de direitos em
sociedades mediadas pelo direito.

O contexto em que a reclamação foi apreciada pelo CNT coincidiu com


o momento constitucional de 1934. O ponto de partida desta análise tem como
referência os avanços sociais que a Constituição de 1934 incorporou, principal-
mente os ligados à regulação do direito do trabalho. Em nenhum momento da
reclamação, o tema “constituição” foi aventado para legitimar a demanda dos
mineiros reclamantes – e talvez não fosse necessário. Mas ao recepcionar a nova
ordem constitucional de maneira tímida, a textualidade produzida pelas partes
foi capaz de impor silêncios significativos.

Mesmo não os explicitando textualmente, o processo em análise desvelou


aspectos constitucionais que possuíam valor próprio. A resistência manifestada
pelos trabalhadores, ao pleitear acesso à justiça, por exemplo, envolvia uma série
de direitos reais que não estavam apenas catalogados, mas à disposição para
serem implementados.

Em cada movimento dos trabalhadores, ações do sindicato, polícia, Minis-


tério do Trabalho e da própria companhia, foi possível observar a reprodução de
diversas estruturas que sempre eram capazes de produzir algo novo. Estratégias
de linguagem, violência, ameaças, punições, prisão, entre outras situações, entraram
em cena e compuseram o enredo de realidades sobrepostas e que margeavam
o processo.

Nessas estruturas, foi possível identificar a imposição de regras, que, até


certo ponto, não deixavam de ser coercitivas. No entanto, essas regras propor-
cionavam contrapartidas de recursos que poderiam ser utilizados para fins de
contestação e, com isso, revelavam também serem recursos capacitadores. Em
grande parte, essas estruturas eram regidas por mecanismos de vigilância e controle
que não refletiam apenas o poder de monitoramento de um grupo sobre outro,
mas estabeleciam restrições aos “locais de direito”, isto é, aos locais de trabalho
dos empregados, onde as disputas e conflitos se desdobravam diretamente. A
luta dos trabalhadores teve um papel crucial para seu estabelecimento, sobretudo
quando as resistências e afirmações dos trabalhadores colocavam-se em oposição
à vigilância imposta de cima para baixo.

413
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

Considerando as limitações existentes em uma mina de carvão – para


além de saber lidar com a distribuição desigual de direitos que os mecanismos
de vigilância conferiam –, um dos principais desafios à organização do trabalho
consistia em estabelecer e ressignificar “locais de direito” nos quais fosse possível
um esforço de negociação capaz de interferir naquela dinâmica.

Em cada uma das esferas possíveis em que a os novos direitos se assentava


(esfera civil, política e social – ou econômica), as reações contra os sistemas de
controle e punição poderiam assumir um local diferente. José Maurício Domingues,
na apresentação ao livro de Giddens,22 afirma que:
Os direitos civis ligam-se à vigilância exercida pelas atividades de “poli-
ciamento” do Estado, e seu local de exercício é paradigmaticamente a
corte de justiça. Os direitos políticos têm como foco o parlamento ou
as câmaras, e derivam da vigilância como monitoramento reflexivo do
poder administrativo do Estado. Last, but not least, direitos econômicos
possuem como foco o local do trabalho, seu eixo sendo fornecido pela
vigilância exercida sobre a força de trabalho; não há claro local para seu
exercício e defesa, e não é, portanto, casual que sejam um grande tema
de luta social no capitalismo.23

Na prática, Giddens24 procurava estabelecer que, na formação do Estado-


nação, o desenvolvimento da cidadania não poderia ser compreendido sem levar
em consideração a questão da vigilância. Assim, diferentemente de Marshall25,
Giddens deixava de considerar as três categorias dos direitos de cidadania como
fase no conjunto do desenvolvimento da cidadania para “interpretá-las como
três arenas de contestação ou conflito, cada uma vinculada a tipos distintos de
vigilância, onde essa vigilância é tanto necessária ao poder dos grupos superiores
quanto como eixo para a operação da dialética de controle”. 26

No caso dos mineiros, também seria possível observar que seus “locais
de direitos” se constituíram a partir de seus próprios locais de trabalho, dupla-
mente vigiados – pela companhia e pela autoridade policial – em relação às
regras impostas sobre sua força de trabalho. Por outro lado, a sindicalização ou
até mesmo a emergência ou ameaça da greve pode ser considerada como um
nível significativo de controle pelo trabalhador sobre o processo de trabalho
em reação à dupla vigilância.

22 GIDDENS, Anthony. O Estado-Nação e a violência. São Paulo: Edusp, 2008.


23 DOMINGUES, José Maurício. In: GIDDENS, op. cit., 2008, p. 19.
24 GIDDENS, op. cit., 2008.
25 MARSHALL, T. H. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
26 Giddens, op. cit., 2008, p. 226, ainda concluiria que “todas as três formas de direitos de cidadania destacados
por Marshall têm duas faces. Como aspectos de vigilância, eles podem ser mobilizados para expandir o controle
que os membros da classe dominante são capazes de manter sobre aqueles em posições subordinadas. Mas
ao mesmo tempo, cada um é uma alavanca de luta, que pode ser usada para conter tal controle”.

414
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A reclamação trabalhista, de certo modo, modifica essa estrutura, porque


impõe e cria um espaço de institucionalização para os novos direitos – não no
sentido de direitos como catálogos, mas do direito de poder defender direitos a
partir de uma ritualização que produz texto, proporciona a produção de provas
e obtém convencimento.27

Durante muito tempo, o alcance administrativo das autoridades do Estado


deixou praticamente intocadas as regras sobre o mundo do trabalho. A grande
autonomia de empregadores, como as companhias de mineração na região do
baixo Jacuí, no Rio Grande do Sul, sobre contratos de trabalho e seus efeitos era
permitida desde que certas obrigações com o Estado fossem satisfeitas. A ma-
nutenção da autonomia vinculada ao pagamento de impostos entre a prefeitura
de São Jerônimo e a CCR exemplifica a situação.

2.1 Nos limites da autoridade policial, o Ministério do Trabalho

A organização administrativa da CEFMSJ era complexa. Em 1934, aproxima-


damente 3 mil mineiros estavam vinculados às atividades nas minas de carvão.28
Com um número cada vez maior de trabalhadores, o tema segurança ou ordem
pública sempre esteve presente nas minas, e as seções policiais foram instituídas
mediante acordo entre o diretor da companhia e o poder público municipal.

A partir do momento em que essa parceria se concretizou, houve um


aperfeiçoamento no sistema de controle e vigilância por parte da empresa. No
entanto, este sistema constituía-se de maneira radicalmente oposta à formação de
uma identidade política que permitisse, a médio e a longo prazo, evitar conflitos
entre as classes de empregados e empregadores.

Dentro do sistema vila-fábrica do início da década de 1930, era vedado


aos trabalhadores firmar ou ter controle sobre os “locais de direito”. Esse fato, por
consequência, reforçava a exclusão dos benefícios da cidadania.

Com a formação do sindicato dos mineiros, a luta dos trabalhadores por


melhores condições de vida e para a implementação da nova legislação social
passou a ser organizada. Por mais que essa afirmação possa ser relativizada diante
do contexto restritivo e limitador que o governo provisório concedeu à formação
dos sindicatos, a partir da reforma de 1931, a simples presença do sindicato fun-
damenta a necessidade de um refinamento estratégico para preencher a lacuna

27 O papel exercido pelo processo corrobora essa afirmação.


28 O número exato de mineiros em Arroio dos Ratos era incerto. Os documentos oficiais emitidos pela
companhia apontavam a existência de 2.500 a 3.000 operários em 1934 (Fundo CEFMSJ-MCAR). Após a fusão
entre a CEFMSJ e CCR, o Cadem ampliou o número de postos de trabalho nas minas da região. No final da
década de 1930, o número já era superior a 9 mil trabalhadores.

415
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

que se perpetuou nos espaços de experiência produzidos pelos conflitos entre


capital e trabalho.

Os sindicatos se constituem, desse modo, como um espaço de contestação


em relação aos sistemas de controle e vigilância exercidos pelos empregadores.
Em Arroio dos Ratos, a presença do sindicato indicou outros desafios que me-
reciam ser apreciados.

O primeiro deles foi o enfrentamento com a autoridade policial. Na


fase pré-processual, ou seja, da expulsão dos trabalhadores até a chegada do
processo no CNT, a autoridade policial passou a ser questionada não apenas
pelo sindicato, mas também pela forma como Ernani de Oliveira, representante
do MTIC, atuou no caso.

Desde 23 de abril de 1934, Ernani de Oliveira se dedicava à mediação


entre a CEFMSJ e o sindicato. Com a despedida dos trabalhadores, o SMAR
oficiou a Oliveira solicitando intervenção. Nos autos, foi possível identificar uma
dessas influências quando Oliveira encaminhou ofício à direção da Companhia
Estrada de Ferro e Minas do Jacuí, em Porto Alegre, solicitando a reintegração
dos empregados expulsos das minas e afirmando que:
Atendendo a uma representação do sindicato de operários das Minas de
Arroio dos Ratos, procurou esta Inspetoria averiguar as causas que teriam
determinado a prisão por autoridade policial, e consequente dispensa do
serviço dessa empresa, dos operários Raphael Mezza, Adalberto Azambuja
dos Santos, Ricardo Pavio, João Herrera, Liberalino Machado, Antônio das
Pedras e José Francisco. Informa-me a Chefatura de Polícia do Estado
que esses operários foram denunciados à polícia como comunistas e
promotores de um movimento grevista entre o pessoal de mineração. O
sr. 3o delegado auxiliar desta Capital, após rigorosa sindicância, concluiu
que aquelas imputações são destituídas de fundamento. Afigura-se-me,
assim, ato de boa justiça a readmissão desses operários, tão rudemente
atingidos por infundada e aleivosa imputação. Acredito que diverso não
será o vosso juízo, o que me autoriza a confiar nessa reparação. Aproveito
o ensejo para expressar-vos o meu grande apreço e distinta consideração.
Saúde e fraternidade.29

O conteúdo desse ofício já foi apresentado no primeiro capítulo. O retorno


a ele tem o objetivo de destacar o papel que o sindicato assumiu na esfera de
contestação ao conflito junto ao MTIC que, naquele momento, colocara-se como
um elo entre empregador e empregados.

Os quatro operários expulsos das minas de Arroio dos Ratos estavam


identificados. O próprio Ernani de Oliveira informara que, após sindicância sobre
o caso, a acusação de que Adalberto, Antônio, Raphael e Liberalino eram comu-
29 Fl. 44 do processo nº 9.582/1934.

416
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

nistas e teriam promovido movimento de greve entre o pessoal das minas foi
destituída de fundamento. O que chamava a atenção era a possibilidade inédita
de revisão de uma decisão emitida pela autoridade policial local.

O acesso aos resultados da sindicância realizada pelo inspetor do trabalho


se consolidou como uma fonte fundamental a favor dos argumentos dos mineiros,
a tal ponto que, daquele momento em diante, ele se tornou um fiel colaborador
dos interesses dos reclamantes.

O erro em uma investigação policial sempre demanda prejuízos. No entanto,


no caso dos mineiros de Arroio dos Ratos, a informação de que as imputações
de terem tramado uma greve geral era destituída de fundamento causou um
impacto maior. Primeiro, pelo fato de que o próprio órgão de segurança pública
interferiu em um sistema em que público e privado se constituíam de maneira
híbrida, em benefício da companhia; e segundo, por enfraquecer o argumento da
empresa, que utilizava a politização do caso por intermédio da polícia.

A revisão do caso pela polícia da capital, mesmo que fosse considerada


casual, evidencia os limites do formato público e privado determinado pela com-
panhia. Em outras palavras, as estruturas que mantinham o sistema de controle,
vigilância e punição da empresa passaram a ser questionadas não apenas pelos
trabalhadores mas também com a intervenção direta do inspetor do Ministério
do Trabalho.

Esse desafio colocou a companhia em uma situação inédita: os fatos


que ora se levantavam contraditavam as informações prestadas pela empresa,
obrigando-a a se pronunciar, isto é, sujeitando-a à necessidade de responder ao
monitoramento reflexivo que a vigilância estatal criou com a reforma do CNT
em 1934.

A existência do processo gerou uma textualidade interessante. Ao passo


que consolidou um espaço privilegiado e concedeu atenção especial a um con-
flito, permitiu observar uma evolução dos usos do direito. Foi possível identificar
o papel do sindicato e do inspetor do trabalho nas relações trabalhistas, bem
como evidenciar as tênues fronteiras entre público e privado ao analisar as rela-
ções, responsabilidades e poderes da companhia no que se refere aos prefeitos,
policiais, mineradores e a uma concepção de justiça trabalhista (representados
pelo MTIC e o CNT).

Em dois momentos bem específicos do processo, foi possível notar que


tanto a empresa quanto a polícia associavam a militância política com a greve,
não restando aos trabalhadores outra definição que não a de indesejáveis. Como
o processo enfrentava essas questões? Estrategicamente, ao representar os mineiros,

417
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

o sindicato buscou argumentar que o caso revelava uma violação às “regras de


direito”. Não houve espaço para argumentos outros que não se vincular às “re-
gras do jogo”; os argumentos eram fundamentados exclusivamente nos decretos
legislativos do governo provisório. A reclamação desafiou a empresa a partir dos
usos da linguagem jurídica, excluindo, dessa forma, qualquer possibilidade de que
o argumento de serem comunistas ou terem tramado uma greve geral avançasse.

Os argumentos e ações do sindicato não estavam apenas ancorados na lei.


Ao lado dela, havia uma articulação entre o SMAR e Ernani Oliveira que visava
estabelecer, com as armas do texto, elementos suficientes para ampliar a margem
de convencimento e a produção de provas a favor dos mineiros. A participação
de Oliveira merece destaque.

No processo de institucionalização do movimento operário sindical em


Porto Alegre, a inspetoria regional do MTIC foi elemento-chave para o apare-
lhamento do Estado como principal interlocutor entre patrões e empregados.
Ernani de Oliveira transitava em locais onde as organizações sindicais, operárias
e patronais mais se faziam presentes: nas juntas de conciliação e julgamento e
nas comissões mistas de julgamento.

Segundo Machado30, a classe patronal não mantinha relações diretas com a


classe trabalhadora. Na maioria das vezes, os “encontros diretos” ocorriam quando
conflitos de greve ou problemas na esfera de produção surgiam. Com isso, Ernani
de Oliveira assumiu um protagonismo nessa relação entre capital e trabalho.

Em cada etapa de organização dos operários em Porto Alegre, a presen-


ça do MTIC foi notada. Segundo Machado31, a organização dos operários pode
ser compreendida em três períodos. No primeiro, entre 1930 a 1932, a principal
característica foi a aproximação das classes, possibilitando – com a Revolução de
30 – o desenvolvimento e a unificação nacional, trazendo em si uma perspectiva
de melhoria de condições de vida e de trabalho. O segundo período, entre 1933
e 1934, ficou marcado pelo enfrentamento de classe, quando a classe operária,
heterogênea no nível econômico, passa a contar, no nível político, com a FORGS,
seu principal elemento homogeneizador e orientador da luta operária.32 Por fim,
entre 1935 e 1937, período em que a classe operária encontrava-se subjugada, tanto
pelo aspecto econômico quanto político, resultando na supressão e repressão do
movimento operário.

30 MACHADO, Carmém Lúcia Bezerra. O movimento operário sindical no Rio Grande do Sul de 1930 a 1937.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1983.
31 Idem, p. 97-98.
32 É nesse período que surgem os círculos operários e também a união sindicalista.

418
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

No período de aproximação das classes, o MTIC atuou diretamente sobre


a organização dos trabalhadores com incentivo e controle sobre o processo de
sindicalização. A FORGS e o próprio SMAR são exemplos dessa atuação. Entre
os mineiros, as principais greves ocorreram em 1933 e 1934, período em que
Oliveira, por muitas vezes, foi pessoalmente às minas para promover a solução
dos conflitos.

Com essas considerações, a atuação do inspetor do MTIC indicava que,


por mais que os interesses econômicos da companhia estivessem interligados
ao processo de aceleração da industrialização promovida por Getúlio Vargas, ao
se fazer presente, a inspetoria do Ministério pode ser considerada como órgão
que impõe limites às ações dos empregadores. Não se tratava de um órgão que
buscava apenas moralizar as relações de trabalho, mas que impunha a necessidade
constitucional de se legitimar decisões que fossem mediadas pela lei, pelo direito.

Por um lado, não seria a Constituição de 1934 ou os decretos por si sós


que cessariam as violações aos direitos do trabalhador. Por outro lado, a função
da Constituição de 1934, naquele contexto, passava a ser outra, sobretudo, ao
proporcionar um determinado modo de articulação entre direito e política.

2.2 Entre a lei e a estratégia: a conformação do direito e da política diante


do Conselho Nacional do Trabalho

O Conselho Nacional do Trabalho (CNT) foi criado pelo Decreto nº


16.027, de 30 de abril de 1923, constituindo-se como órgão consultivo dos
poderes públicos em assuntos relacionados à organização do trabalho e à previ-
dência social. Isento, inicialmente, de funções contenciosas no âmbito trabalhista
e previdenciário, o CNT foi vinculado ao Ministério da Agricultura, Indústria e
Comércio, cuja missão era dedicar-se a estudos sobre trabalho nas indústrias, sis-
temas de remuneração do trabalho, contratos coletivos de trabalho, conciliação e
arbitragem (prevenção e resolução de conflitos), trabalho de menores e mulheres,
aprendizagem, ensino técnico, acidentes de trabalho e seguros sociais,33 Caixa de
Aposentadorias e Pensões (CAP) de ferroviários,34 instituições de crédito popular
e caixas de crédito agrícola.

Sua instituição estava intrinsecamente ligada à Lei Elói Chaves (Decreto nº


4.682, de 24 de janeiro de 1923). A partir da organização do sistema previdenciário

33 Os seguros sociais eram regulamentados pelo Decreto nº 14.786, de 28 de abril de 1921. Com o CNT, a
Comissão Consultiva de Seguros contra acidentes do trabalho foi dissolvida, e suas atribuições foram transferidas
ao conselho.
34 No campo previdenciário, uma das principais resoluções do período corresponde ao Decreto nº 4.682, de
24 de janeiro de 1923, conhecida como Lei Elói Chaves, responsável por determinar a criação de Caixas de
Aposentadoria e Pensões para todos os funcionários de empresas de estradas de ferro.

419
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

de trabalhadores das estradas de ferro mediante as CAPs, o CNT seria o órgão


responsável pela fiscalização e controle das caixas.

Em pouco mais de dez anos, o conselho passou a ter um papel funda-


mental nas soluções de conflitos entre empregados e empregadores. A primeira
reforma do conselho ocorreu em 19 de janeiro de 1928, com a edição do Decreto
nº 18.074. No entanto, a reforma mais significativa ocorreu em 1934, dois dias
antes da promulgação da Constituição de 1934.

O Decreto nº 24.784, de 14 de julho de 1934, instituiu um novo regulamento


para o conselho. De certo modo, o decreto já se alinhava com os dispositivos da
futura Constituição, que, de maneira inédita, instituía a Justiça do Trabalho.35 Os
últimos meses do governo provisório foram marcados pela aceleração na emissão
de decretos. A justificativa era a limitação aos poderes presidenciais que a futura
Carta Constitucional previa. O acordo entre os constituintes, de que todos os
decretos do governo provisório seriam aprovados, sem qualquer apreciação judi-
ciária dos mesmos atos, decretos e efeitos (art. 18 das disposições transitórias da
Constituição de 1934), ampliou a produção legislativa do governo provisório. Foi
nesse contexto que o CNT foi reformado.

As principais alterações no conselho estavam na ampliação de sua compe-


tência, que, além das atividades de consultoria técnica, congregava a possibilidade
de ser órgão julgador de questões que interessassem à economia, ao trabalho e
à previdência social, com funções administrativas, de fiscalização e punição.

Assim, a ampliação da competência do CNT integrava-se a um núcleo


complexo que oferecia um plano de institucionalidade novo para a ampliação
dos “locais de direito” do e para o trabalho. O tom dessa complexidade era
ditado pelos decretos nº 21.396, de 12 de maio de 193236 e nº 22.132, de 25 de
novembro de 1932, que instituíram as comissões mistas de conciliação. O primeiro
decreto se destinava aos municípios e localidades onde existissem sindicatos ou
associações profissionais de empregadores e empregados para a composição e
solução de dissídios coletivos, sob responsabilidade do MTIC. O segundo de-
creto se destinava à composição de litígios individuais, oriundos de questões de
trabalho em que fossem as partes empregados sindicalizados, mas que não se
relacionassem aos dissídios coletivos.

35 O artigo 122 da Constituição de 1934 dispunha: “Para dirimir questões entre empregadores e empregados,
regidas pela legislação social, fica instituída a Justiça do Trabalho, à qual não se aplica o disposto no Capítulo
IV do Título I [referência que a Justiça do Trabalho não era vinculada ao Poder Judiciário]. Parágrafo único:
A constituição dos Tribunais do Trabalho e das Comissões de Conciliação obedecerá sempre ao princípio da
eleição de membros, metade pelas associações representativas dos empregados, e metade pelas dos empre-
gadores, sendo o presidente de livre nomeação do governo, escolhido entre pessoas de experiência e notória
capacidade moral e intelectual”.
36 Esses decretos foram expedidos na gestão Joaquim Pedro Salgado Filho no Ministério do Trabalho.

420
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

A composição do CNT foi ampliada de 12 para 18 conselheiros, propor-


cionalmente vinculados a representantes de empregados e empregadores (oito no
total), funcionários graduados do MTIC (quatro no total) e mais seis conselheiros
com competência reconhecida em assuntos sociais. A indicação desses membros
era competência do presidente da República, sendo facultada aos sindicatos e
associações de classe a indicação de membros de suas categorias para aprecia-
ção presidencial. Esse dado, embora soasse democrático, arrastava uma série de
situações emblemáticas, que envolviam a relação entre Estado e sindicatos no
transcorrer da década de 1930.

O CNT passou a funcionar não apenas como órgão consultivo mas tam-
bém como Tribunal de Embargos (embora essa disposição para apreciar embargos
já constasse desde a primeira reforma do conselho em 1928).

A nova estruturação do CNT não deixava de ser uma alternativa para que
novos locais institucionalizados de contestação em relação ao mundo do traba-
lho prosperassem. A forma como foi articulada a reforma do conselho permite
associá-la a uma concepção incipiente de como se estruturaria a futura Justiça
do Trabalho. Formalmente, apenas em 1939 o CNT foi considerado como órgão
da Justiça do Trabalho, compreendido como seu tribunal superior.37

De certo modo, esse deslocamento parcial do controle e da vigilância sobre


a força de trabalho – que primeiramente eram organizados por empregadores
nos próprios locais de trabalho, e depois passam para um órgão estatal como
o CNT – concede a um conjunto amplo de trabalhadores um maior poder de
articulação, que poderiam usar diversas estratégias para adquirir medidas substan-
ciais de controle sobre situações que, formalmente, não possuíam. Esse espaço de
mudança a que se faz referência estava ligado diretamente à extensão dos novos
direitos, justamente num momento em que o que se vivenciava era um déficit
de cidadania e uma crise de democracia.

O contexto de greve é bem exemplificativo. O encaminhamento de uma


greve pode exteriorizar, a partir do local de trabalho, um movimento de disputa
política que, por vezes, pode ainda não estar clara para a própria consciência
política de seus atores. A competição entre os interesses pessoais dos envolvi-
dos evolui a ponto de se aglutinarem em um nível corporativo capaz de lançar
bases para ações, estratégias e projetos de pequeno e médio alcance. Mas tão
importante quanto isso é o fato de se verificar até que ponto uma estrutura

37 O Decreto-Lei nº 1.237, de 2 de maio de 1939, reestruturou o CNT. O decreto-lei, vinculado aos dispositivos
da Constituição de 1934, que também previa a Justiça do Trabalho, definiu que o CNT, com jurisdição em
todo território nacional, seria considerado tribunal superior da justiça trabalhista. No entanto, impende salientar
que sua instituição ocorreu apenas em 1º de maio de 1941, sendo inserida como parte do Poder Judiciário na
constituição de 1946.

421
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

jurídico-institucional, como o CNT, pode constituir-se como um local efetivo de


realização das novas regras sociais, de uma nova razão política.

As transformações mediadas pelos decretos que regulamentavam os direitos


trabalhistas, como a que se propunha na transição do governo provisório para o
governo constitucional pós-Constituição de 1934, a estabilização de expectativas
normativas tornava-se necessária para a consolidação do sistema jurídico. Nesse
sentido, o CNT passava a ser a instituição que, além de fundamentar suas decisões
perante esse sistema, também era compelida a lidar com as linguagens produzidas
pelo sistema da política.

De certo modo, a reclamação trabalhista promovida pelos mineiros retrata


um momento em que as linguagens do direito e da política radicalizam-se. A
institucionalização de novos direitos voltados aos trabalhadores e a ritualização
representada pelo processo geram uma textualidade que refletia os desafios da
época. Mas como compreendê-los?

O conflito trabalhista que deu origem à reclamação agregou três situações


diversas que não eram inicialmente conexas entre si. Diante dessas circunstâncias,
os argumentos da companhia para justificar ou não as demissões foram lança-
dos nos autos com vistas a explorar os limites que as razões jurídicas e políticas
emprestavam ao caso.

O argumento da greve, mais uma vez, pode ser levantado como chave
interpretativa. A greve foi utilizada naquele contexto como um veículo para de-
finir os locais do direito. A persistência de associar, mesmo que indiretamente, a
militância política dos mineiros a um movimento ilegal, assim como o fato de
os mineiros terem sido classificados como indesejáveis pela autoridade policial
local que os expulsou das minas, revela esse caráter exploratório que tenciona
identificar tal argumento às regras de direito. Contudo, não o faz na perspectiva
do direito propriamente dito, mas, sim, na forma de uma negação de direitos,
criminalizando o movimento.

Essa perspectiva assumida atinge tanto o sistema do direito quanto o da


política, em especial no que se refere ao tema direito de greve. Em relação aos
direitos do trabalho, o direito de greve foi duramente disputado pelos constituintes
na ANC de 1933-1934, inclusive, com substitutivos que permitiam o direito de
greve pacífica realizado por empregados sindicalizados.38 A companhia usou o
exercício da greve vinculando-o diretamente a um abuso de direito, considerado
como instrumento de ataque contra o capital. No âmbito do CNT, por sua vez,

38 A expressa permissão ao direito de greve não resistiu às pressões e deixou de ser incluído no texto cons-
titucional de 1934.

422
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

a questão da greve teve outro desdobramento relevante: a exploração dos limites


políticos do conselho em relação ao direito posto.

Embora essa estratégia não tenha persistido por longo tempo, sua utilização
pela companhia não deixa de ser reveladora. Como referência a esse argumento,
retoma-se o posicionamento de conselheiro Gualter Ferreira, por ocasião da primeira
sessão de apreciação da reclamação trabalhista, ocorrida em 16 de novembro de
1934. Naquele momento, reagindo ao argumento do relator Manoel Tibúrcio – que
solicitava a reintegração de todos os trabalhadores estáveis uma vez que havia a
indicação de que a companhia os havia demitido sem a instauração de inquérito
administrativo para apurar falta grave –, mesmo sem a indicação de que a empresa
havia sido citada para responder ao processo, Ferreira afirmava ser uma situação
muito difícil para os conselheiros, podendo até afetar o prestígio de seus membros.

O prestígio a que se referia Ferreira relacionava-se à própria condição


administrativa do conselho que, vinculada ao MTIC, poderia sofrer repreensões
políticas, para além da necessidade de promover decisões que se vinculassem às
regras do direito. No entanto, a exposição do relator também era circunscrita
à mesma alegação de violações de direito, mas às praticadas pela companhia:
Temos aqui 4 com mais de 10 anos de serviço, sendo um com 40 anos.
Agora eu pergunto se a empresa andou certa não fazendo inquérito
administrativo, como era de obrigação? Se os empregados foram de-
mitidos como mau elemento, nada mais fácil que provar no inquérito
administrativo. Entretanto, a empresa não cogitou, não a interessava, o
que para mim importa como má-fé.39

O argumento da companhia, de que não seria obrigada a instaurar in-


quérito administrativo por não ter demitido os quatro trabalhadores que foram
expulsos pela polícia, não foi acolhido pelos conselheiros do CNT. Mesmo assim,
a opção de não o instaurar acabou prevalecendo.

Na prática, diante da circularidade das regras jurídicas levantadas, até


mesmo o argumento de abandono de emprego relativo aos demais trabalhado-
res reclamantes trouxe à tona a resistência da companhia em não se vincular à
ordem constitucional.

Nesse aspecto, o posicionamento do CNT em relação ao caso produziu


um silêncio constitucional interessante. As tentativas de enquadrar a companhia
dentro das regras constitucionais eram eminentemente complexas e permissivas.
As reiteradas solicitações de cumprimento de suas decisões ou ainda pedidos
de remessa do inquérito não realizado pela companhia podem ser citadas como
exemplo. Por mais que as decisões de mérito tenham determinado a reintegra-
39 Ata da sessão de julgamento do processo nº 9.852/1934, em 16 de novembro de 1934. Relator Manoel
Tibúrcio.

423
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

ção dos empregados estáveis, as decisões políticas do CNT deixaram de apreciar


argumentos e situações que exteriorizavam uma natureza muito mais complexa
que integrava o conflito.

Por alguma razão, a partir do momento que o CNT se limitou a verificar a


estabilidade ou não dos mineiros, acabou por ignorar situações de abuso de direito
por parte da companhia que afetavam direitos que estavam constitucionalizados
para os trabalhadores. Os decretos editados pelo governo provisório anteciparam
muitas etapas de processo de expansão de direitos que seriam posteriormente
inseridos no texto constitucional.

Esse silêncio sobre a Constituição carrega em si questionamentos sobre


a função que a Constituição de 1934 poderia assumir em situações que a socie-
dade passava a ser mediada pelo direito. A reclamação trabalhista auxilia nesse
entendimento justamente por ilustrar como os limites dos sistemas da política
e do direito criam, diante da estrutura institucional, um canal interpretativo para
a definição do que é direito ou não.

As constituições modernas têm por característica a dupla capacidade de


realizar e positivar normas que estão inteiramente ligadas aos princípios da igual-
dade e liberdade. Ao lado dessa concepção, assumiram também o status de um
plano superior, capaz de dar forma ao ordenamento jurídico de uma comunidade.

Nesse sentido, a Constituição assume a condição de ser facilitadora entre


duas estruturas que se firmaram e por consequência, consolidaram-se em funções
diferentes: direito e política.40 A relação entre essas duas esferas é fundamental
para se compreender o processo moderno de transformação social que emerge
com as constituições. Ao lado dessas asserções, a fórmula “Estado de Direito”
expressa uma relação importante entre política e direito, principalmente pela
necessidade de responder de maneira eficaz ao problema da fundação do Estado
e, consequentemente, do direito, como instrumento jurídico-coercivo do Estado.

Enquanto o sistema político se beneficia com o fato de que o direito se


encontra codificado e que, diretamente, administra a diferença do que é conforme
ao direito ou não direito, o sistema jurídico se beneficia com o fato de que a
paz – a diferença de poderes claramente estabelecida e o fato de que as decisões
podem se impor pela força está assegurada em outra parte, ou seja, no sistema
político.41 Enquanto a política se vincula à produção de decisões vinculantes, o
direito encontra seu espaço com a produção de uma decisão. As influências desse
sistema interpretativo encontram-se em Luhmann. Em diálogo com esta teoria,
Cristiano Paixão, acrescenta que:
40 Para aprofundamento, ver Holmes (1993); Grimm (2006) e Fioravante (2001).
41 LUHMANN. El derecho de la sociedad. [S.l.]: [s.n.], 13 jan. 2003.

424
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

[...] ao isolar e consolidar funções diferentes, o processo é irreversível: não


se concebe uma sociedade que tenha seu centro na política, assim como
não se permite que o direito deva suas condições de vigência a uma
constelação normativa exterior ao próprio sistema jurídico.42

A ideia de se permitir a reconexão entre esses dois sistemas a partir da


Constituição marcou o desenvolvimento da concepção moderna do constitu-
cionalismo, principalmente, por possibilitar a afirmação das opções fundamentais
de cada comunidade, vinculando-a às ideias de separação de poderes e direitos
fundamentais (política) e o estabelecimento de uma forma nova para se com-
preender a vigência da ordem jurídica (direito).43

Como toda a história política elucida, os momentos de construção de


novos regimes políticos – principalmente os que ensejam processos de elaboração
constitucional – trazem à tona situações que nem sempre se resolvem no texto
constitucional. A Constituição de 1934 pode ser compreendida dentro desse
parâmetro. Como registraram Paixão44 e Cepêda45 a Carta de 193446 insere-se no
paradigma do estado social de direito e sua curta duração pode ser compreen-
dida não apenas pelas fortes divergências na política interna mas também pela
alta carga de instabilidade (por vezes, jurídica) que a nova ordem constitucional
experimentou desde sua promulgação. A fragilidade que a Constituição de 1934
representou na história política nacional pode ser compreendida sob múltiplas
perspectivas. Entre as possíveis, destacam-se seu contexto. O processo de confor-
mação da futura Constituição pela constituinte de 1933-34 pode ser identificado
em meio a uma complexidade que representava um alto nível de fragmentação. O
caráter autocrático do governo provisório produzia – para além de sua narrativa
modernizante – uma série de resistências e dificuldades na estabilização política
mediada pelos instrumentos legais legítimos.47

42 PAIXÃO, Cristiano. Autonomia, democracia e poder constituinte: disputas conceituais na experiência cons-
titucional brasileira (1964-2014). Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, Florença, v. 43,
2014, p. 418.
43 Nesse sentido, Paixão (2014, p. 418) ainda acrescenta que “essa construção conceitual produz duas importantes
consequências: (i) o direito passa a referir-se a si próprio, ou seja, ele prescinde de operações de ‘legitimação’
ou ‘validação’ a partir de condensações de sentido ligadas à política, à moral, à religião ou à filosofia dos va-
lores; e (ii) apresenta-se a necessidade de constante atualização da comunicação produzida pelo direito numa
perspectiva interna, voltada à dinâmica das regras em casos concretos”.
44 PAIXÃO, Cristiano. Direito, política, autoritarismo e democracia no Brasil: da Revolução de 30 à promulgação
da Constituição da República de 1988. Araucária. Revista Iberoamericana de Filosofia, Política y Humanidades,
Madri, ano 13, n. 26, 2011.
45 CEPÊDA, Vera Alves. Contexto político e a crítica a democracia liberal: a proposta de representação classista
na Constituinte de 1934. In: MOTA, C. G.; SALINAS, N. S. C. Os juristas na formação do Estado-Nação brasileiro.
São Paulo: Saraiva, 2010.
46 Para maiores detalhes sobre a Constituição de 1934, referencia-se os trabalhos do autor em Cabral (2010;
2011; 2015).
47 CEPÊDA, Vera Alves, op. cit., 2010.

425
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

As resistências sobre a inclusão dos direitos sociais na Constituição exempli-


ficam esse tema, principalmente, em relação ao direito de greve. O processamento
da reclamação trabalhista no CNT representa esse desafio que as perspectivas
do direito e da política assumiam. O pedido de reintegração realizado pelos
trabalhadores pautava-se pela vigência de um direito vinculado a uma adequada
compreensão das transformações sociais pela qual o país passava. Assim, o pedido
se interconectava de forma imediata às transformações constitucionais de 1934,
com conteúdos bem definidos.

A resistência da companhia, por outro lado, posicionava-a contra a nova


ordem constitucional, em especial, pela aparente recusa aos procedimentos que
o novo direito estabelecia. Verifica-se, assim, a demonstração de uma superação
apenas parcial da tradicional subordinação do direito à política. Embora o caso
em apreço possa ser considerado parcialmente bem-sucedido, por determinar a
reintegração dos mineiros estáveis, ele matiza exatamente esse momento de rede-
finições pelo qual o direito e a política passaram com o advento da Constituição
de 1934. Os limites e as possibilidades do caso lançam contribuições para a história
do direito, sobretudo, ao direito constitucional, por demonstrar como as tensões,
conflitos e direitos são articulados dentro do aparato institucional organizado pela
nova ordem a partir da tematização de indícios, provas e evidências.

Considerações finais

Durante muito tempo a década de 1930 tem sido revisitada por pesqui-
sadores das mais variadas matizes. Temas relacionados à questão social, ao lado
das transformações políticas iniciadas pelo governo provisório de Getúlio Vargas,
sempre se destacaram neste cenário. Neste mesmo tempo, o acesso a novas
fontes de pesquisa, via arquivos, testemunhos e outros vestígios, se transformou
completamente e este trabalho é um desdobramento deste momento. No fundo
de arquivo do CNT no Tribunal Superior do Trabalho foi possível ter acesso há
mais de 900 reclamações trabalhistas que demonstram outros indicadores sociais,
políticos, econômicos e sobretudo jurídicos que marcaram o tema questão social
na década de 1930.

A reclamação n. 9.582/1934 é representativa por duas razões especiais:


a primeira, por ser iniciada em concomitância com a Constituição de 1934. No
entanto, essa observação se torna especial não para dar à constituição um efeito
normativo que não possuía em 1934, mas ser um momento em que, de forma
inédita, o país constitucionalizava um amplo experimento de legislação social já
em curso nos primeiros anos da década de 1930. A segunda razão pode ser
explicada por ser a reclamação a instrumentalização do direito contra arbítrios,
uma alternativa prática a resistência a desmandos e violação de direitos.

426
IX CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO
RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Na primeira parte deste trabalho, a reclamação foi relatada. Em cada


desdobramento dos autos, é possível verificar o jogo argumentativo das partes,
bem como os limites e possibilidades de ação. Mas uma reclamação, por si só,
não tem a capacidade de desvendar outros elementos subjacentes que exercem
pela influência na forma como os direitos são exercidos, até mesmo para não
diminuir as alternativas estratégicas das partes.

Desde 1932, aos trabalhadores mineiros foram concedidas as mesmas


garantias no trabalho previstas aos ferroviários. Em um contexto de organização
desses trabalhadores por intermédio dos sindicatos, 7 mineiros foram demitidos
sem a abertura de inquérito administrativo para apurar faltas graves. O enredo do
caso aponta para outras esferas de violação de direitos. No entanto, a estratégia
de defesa desses trabalhadores foi justamente usar a violação à lei, objetivamente
verificável.

A seletividade dos trabalhadores no uso dos argumentos chamou a aten-


ção e com a redução da escala de observação, tornou-se possível verificar um
ineditismo significativo para compreender os conflitos trabalhistas em contexto
de recém regulação do trabalho.

No caso em apreço, a lei trabalhista não era suficiente para combater


os sistemas de controle e vigilância exercidos pelo empregador sobre a mão de
obra nas minas de carvão. Contudo, a regulação trabalhista, ao lado do Conselho
Nacional do Trabalho, promovia alternativas tanto para os trabalhadores, quantos
aos empregadores, pois permitia a presença do Estado (mesmo com interesses
próprios, corporativos e limitados) em uma relação que, durante longo tempo,
era exercida de maneira desigual, sujeita a violações e abusos.

A reclamação trabalhista exteriorizou uma relação em que o público e


o privado se encontravam radicalizados, vislumbrada na relação entre a compa-
nhia, o município de São Jerônimo e os contornos da ordem pública e privada
reconstruídos pelos diretores da CEFMSJ. Essa rede complexa de relações era
forjada também na medida em que a companhia se utilizava da autoridade po-
licial local para o controle e fiscalização dos trabalhadores nas minas e, depois,
ao tentar se isentar de suas obrigações legais,48 transferindo a responsabilidade
para a autoridade policial. Em um segundo momento, foi possível compreender o
conflito sob a perspectiva da inovação de direitos dentro do sistema híbrido dos
espaços público e privado no local de trabalho e o impacto que uma reclamação
trabalhista poderia causar nessa estrutura.

48 Em especial, no que diz respeito ao processo, a obrigação de instaurar inquérito administrativo para apurar
falta grave.

427
REGULAÇÃO TRABALHISTA E O CONTEXTO CONSTITUCIONAL DE 1934: UM ESTUDO DE CASO

A reclamação trabalhista representa ainda, nesse enredo, um desafio que


pode ter a capacidade de romper com os silêncios que os acordos de longa
duração promoveram no âmbito da companhia. O desdobramento do processo
impôs a necessidade de diálogo, que seria mediado em um “local de direito”
inédito para a CEFMSJ.

À margem desses fenômenos, outra estrutura, já consolidada e caracterizada


pela polícia local, pelo prefeito municipal e pelo diretor da companhia, passava a ser
questionada em novos planos de institucionalidade. Por mais que o processo possa
ser contemplado em seus limites, ele não perde a característica de ser instrumento
pelo qual a resistência ao arbítrio se efetivou, permitindo, na medida do possível,
uma extensão aos benefícios da cidadania que ainda deveria enfrentar um longo
processo de ajuste às regras constitucionais de proteção ao trabalhador.

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RUPTURAS, CRISES E DIREITO


ANAIS DOS GRUPOS DE TRABALHOS DO

IX
CONGRESSO
BRASILEIRO
DE HISTÓRIA
DO DIREITO

RUPTURAS, CRISES E DIREITO

Realização:
ISBN 978-85-67300-01-6

INSTITUTO HISTÓRICO
E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO

Apoio:

Universidade Federal Fluminense


UFRJ

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