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ISSN: 2525-8761
RESUMO
A historiografia do Rio Grande do Norte vem sendo repensada ultimamente,
principalmente a partir dos trabalhos desenvolvidos no PPGH e em outros PPGs da
UFRN. São expressivos os avanços conquistados na historiografia local acerca das
pesquisas de temáticas diversificadas, abordando os períodos colonial e republicano. No
entanto, são escassos os estudos dedicados à análise do Rio Grande do Norte no recorte
imperial, insuficientes sobretudo, quando se tratam das temáticas da escravidão e das lutas
dos negros nesta província. Na perspectiva da antropóloga Julie Cavignac, a explicação
para este silêncio da história dos negros, livres e escravizados, se dá pelo fato de que no
Rio Grande do Norte, a história fora redigida primeiro “pelas elites locais que tentaram
apagar, a todo custo, as especificidades étnicas (desses grupos) ao longo dos séculos”, a
exemplo de Luís da Câmara Cascudo que elencou a insignificância da mão de obra cativa
na produção açucareira, e de modo mais geral, na economia. Nas suas palavras “Nunca o
Rio Grande do Norte possuiu vasta escravaria.” No entanto, segundo o recenseamento do
Império de 1872, a população geral (de livres e escravos) da província norte-rio-
grandense era de 233.979 habitantes. Desse total, 13.020, eram cativos. Estudos mais
ABSTRACT
The historiography of Rio Grande do Norte has been rethought lately, especially after the
works developed in the PPGH and in other PPGs at UFRN. There are significant advances
in local historiography regarding research on diversified themes, approaching the colonial
and republican periods. However, the studies dedicated to the analysis of Rio Grande do
Norte in the imperial period are scarce, especially when dealing with slavery and black
people's struggles in this province. In the perspective of anthropologist Julie Cavignac,
the explanation for this silence on the history of blacks, free and enslaved, is due to the
fact that in Rio Grande do Norte, history was written first "by the local elites that tried to
erase, at all costs, the ethnic specificities (of these groups) over the centuries," as
exemplified by Luís da Câmara Cascudo, who listed the insignificance of the slave labor
in the sugar production, and more generally, in the economy. In his words "Rio Grande
do Norte has never possessed vast slavery." However, according to the Empire census of
1872, the general population (of free and slaves) of the Norte-rio-grandense province was
233,979. Of this total, 13,020 were captives. More recent studies have shown the strong
presence of slaves in Rio Grande do Norte, in the sugar industry, in cattle raising and the
production of its derivatives, such as cheese and leather, especially in the Seridó, and also
in the exercise of many other functions. Our research proposal consists in analyzing the
slaves' freedom strategies, their spatial dislocations, judicial disputes, social conflicts
among slaves or between slave-owners and slaves, their cultural practices and their ethnic
identities in the Rio Grande do Norte press in the 19th century. This article aims to present
the first results of the project "The press in the imperial period: sources for teaching and
research on slavery and black people's struggles in Rio Grande do Norte".
1 INTRODUÇÃO
A historiografia do Rio Grande do Norte vem sendo repensada ultimamente,
principalmente a partir dos trabalhos desenvolvidos no PPGH e em outros PPGs da
UFRN. São expressivos os avanços conquistados na historiografia local acerca das
pesquisas de temáticas diversificadas, abordando os períodos colonial e republicano. No
entanto, são escassos os estudos dedicados à análise do Rio Grande do Norte no recorte
imperial, insuficientes sobretudo, quando se tratam das temáticas da escravidão e das lutas
1
CAVIGNAC, Julie. Índios, negros e caboclos: identidades fronteiras e etnias em perspectiva. O caso do
Rio Grande do. Norte. In: CAVIGNAC, Julie; CARVALHO, Maria Rosário de; REESINK, Edwin. Negros
no mundo dos índios: imagens, reflexos, alteridades. Natal: EDUFRN, 2011.
2
CASCUDO, Luis da Câmara. História do Rio Grande do Norte. MEC, 1955. p. 44.
3
PEREIRA, Nilo. Imagens do Ceará-Mirim. Natal: Imprensa Universitária, 1969.
4
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 4. ed. São Paulo:
Global, 2010.
5
FERNANDES, Luiz. A imprensa periódica no rio Grande do Norte de 1832 a 1908. 2ed.
Natal: Fundação José Augusto, Sebo Vermelho. 1998. p. 64.
6
FERNANDES, Luiz. A imprensa periódica no rio Grande do Norte de 1832 a 1908. 2ed.
Natal: Fundação José Augusto, Sebo Vermelho. 1998. p. 49.
7
AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 2010; ____ Orfeu de Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na
imperial cidade de São Paulo. Campinas-SP: Editora da UNICAMP; Cecult, 1999.
8
QUE miséria! Brado conservador. Assu, 23 mar. 1877. Editorial, p. 2.
9
Não há, para as mesmas datas do Brado conservador sobre o caso citado, exemplares do Correio do Assu
na Hemeroteca Digital.
maioria individuais, mas houve um crescimento das fugas coletivas a partir de 1880,
relacionando-as com o fortalecimento do movimento abolicionista.10
Assim como em outros jornais, os periódicos do Rio Grande do Norte trazem na
seção Anúncios ofertas de compra e venda de escravos bem como avisos de fugas. Os
registros de fugas em jornais de outras cidades podem revelar possíveis rotas de fuga dos
escravos na província.
Percebe-se uma clara valorização da ação do senhor e da alforria vista como uma
caridade, eximindo qualquer ação dos escravos. Visão expressa também no texto de Nilo
Pereira, citado anteriormente. A aquisição da alforria requeria muito mais empenho dos
10
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro, 2008, p.137-138.
11
No dia de 21 de Junho. O Assuense. Assu, 14 set. 1867. Annuncios, p. 4.
12
MANUMISSÃO. O Assuense. Assu, 02 set. 1870. Noticiário, p. 02.
escravos do que pode parecer pela notícia acima. Os estudos sobre alforria mostram que
em sua maioria eram conseguidas mediante pagamento pelo escravo ou cumprimento de
obrigações e prestação de serviços.13 Embora o direito a compra da alforria só tenha sido
reconhecido com a Lei de 28 de Setembro de 1871, já era uma prática.14 “Muitos escravos
pareciam dispostos a se submeter às mais variadas e severas condições no intuito de
tornarem-se libertos”15, mas a trajetória do escravo até conseguir a alforria não costuma
ser apresentado nas cartas de liberdade. Algumas situações vêm à tona nos jornais à
exemplo, o caso do menino Gregório evidencia às dificuldades que envolviam a alforria.
Quando o pai de Gregório soube da intenção de venda do menino pelo senhor, ofereceu
200 mil reis pela sua alforria, porém, o proprietário alegou que o custo seria de 300 mil.
A lei de 28 de setembro de 1871 dava direito ao escravo que dispusesse de pecúlio
comprar sua alforria16, mas esse direito era negado quando o senhor não acordava o valor
da indenização, nessa situação era necessário recorrer à justiça para arbitramento do valor,
conforme fez o pai de Gregório.
Considerando que a proposta do projeto tem entre seus objetivos proporcionar o
acesso as fontes para utilização na pesquisa, mas também no ensino básico, as publicações
sobre a manumissão enfatizando a caridade da senhora e o caso de Gregório, cujo pai
tentou comprar sua liberdade para evitar que fosse vendido e, não obtendo sucesso
recorreu à justiça, podem ser utilizados pelo professor para problematizar a luta dos
escravos pela liberdade, as diferentes visões da liberdade e a atuação dos escravos nesse
processo.
Os livros didáticos de ensino fundamental e médio, embora tenham se atualizado,
além de ter surgido novas publicações fundamentadas em uma historiografia mais
recente, ainda trata pouco da complexidade das relações entre senhores e escravos. No
entanto, a produção historiográfica que enfatiza a ação do escravo enquanto sujeito ativo
já tem décadas, visto que emergiu do debate ocorrido, principalmente na década de 1980,
entre historiadores que defendiam a ideia de que o escravo estivera reduzido à condição
13
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. EISEMBERG, EISENBERG, Peter. Homens esquecidos. Campinas: Ed. Unicamp, 1989.
SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru, EDUSC, 2001. GONÇALVES, Andréa Lisly.
As margens da liberdade: estudo sobre a prática de alforrias em Minas colonial e provincial. Belo
Horizonte: Fino Traço, 2011.
14
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte:
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
15
GONÇALVES, Andréa Lisby. As margens da liberdade: estudo sobre a prática de alforrias em Minas
colonial e provincial. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011. p. 18
16
Lei 2080 de 28 de Setembro de 1871. art 3 par 2º
17
GENOVESE, Eugene Dominick. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Trad. Maria
Inês Rolim e Donaldson Magalhães Garschagen. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília-DF: CNPq, 1988.
18
GENOVESE, Eugene Dominick. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Trad. Maria
Inês Rolim e Donaldson Magalhães Garschagen. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília-DF: CNPq, 1988.
19
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-
1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
20
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad.
Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras; CNPq, 1988.
21
CASTRO, Hebe Mattos. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista –
Brasil, séc. XIX. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
de ‘pardo’ era usada, antes, como forma de registrar uma diferenciação social, variável
conforme o caso, na condição mais geral de não branco.” A autora explica que, dessa
maneira, “todo escravo descendente de homem livre (branco) tornava-se pardo, bem
como todo homem nascido livre, que trouxesse a marca de sua ascendência africana. ” A
autora demonstrou que “para tornarem-se simplesmente ‘pardos’, os homens livres
descendentes de africanos dependiam de um reconhecimento social de sua condição de
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livres, construído com base nas relações pessoais e comunitárias que estabeleciam.
Apesar disso, os negros, mesmo aqueles livres e libertos, não raro eram detidos pelos
representantes da lei para averiguação, suspeitos de serem escravos. Também com certa
frequência libertos eram reescravizados e livres de cor negra eram escravizados. Ou seja,
a liberdade, a princípio, não estava disponível para as pessoas de cor negra. Como a
historiografia mostra, é de grande complexidade as situações que envolvem escravos e
libertos que podem ser exploradas em diversas fontes, inclusive os jornais.
Além das seções Noticiário, Anúncios, À pedido já citadas, outras seções como
Editais, Correspondência, Ao Público e Documentos, Batizados e Óbitos são encontradas
informações referentes à escravos, mesmo quando o conteúdo principal da matéria não é
o escravo. A diversidade de matérias levantadas até esta etapa da pesquisa mostra como
a presença escrava era mais significativa do que costumava se afirmar nos livros sobre o
Rio Grande do Norte. Desse modo, a transcrição de fontes jornalísticas para o estudo da
escravidão e liberdade no Rio Grande do Norte pode trazer novas perspectivas para a
historiografia.
22
CASTRO, Hebe Mattos. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista –
Brasil, séc. XIX. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p.42
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 1 ed. Rio de Janeiro:
Departamento de Imprensa Nacional/Ministério da Educação, 1955.
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro 1808-1850. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
LYRA, Tavares. História do Rio Grande do Norte. 3 ed. Natal: Instituto histórico e
geográfico do Rio Grande do Norte, 1998.