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Organizadoras:

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Carolina Dutra Normey
Claudia Sobreiro de Oliveira
Lúcia Quevedo

I CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO,


GÊNERO E CONEXÕES
Aproximando Direito e Justiça – Através de um
olhar humanizado

Porto Alegre
2021
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Todos os direitos reservados

Organizadoras:
Rosângela Maria Herzer dos Santos
Diretora-Geral da ESA/OAB/RS

Carolina Dutra Normey


Coordenadora da Comissão da Mulher Advogada em Santana do Livramento

Claudia Sobreiro de Oliveira


Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OABRS

Lúcia Quevedo
Delegada da ESA de S. Do Livramento

C759
Congresso Internacional de Direito, Gênero e Conexões - Aproximando Direito e
Justiça – Através de um olhar humanizado (1: 2019: Santana do
Livramento, RS)
Anais [ recurso eletrônica]/ 1º Congresso Internacional de Direito, Gênero
e Conexões – Aproximando Direito e Justiça, 11 de out. em Santana do
Livramento, RS. – Porto Alegre: OABRS, 2021. 156p.

ISBN: 978-65-88371-05-3
1. Direito – Gênero. 2.Violência de gênero no Brasil. 3. Congresso.
I. Título
347.156

Jovita Cristina Garcia dos Santos – CRB/10ª -1517

A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em


trabalhos assinados, são de responsabilidade dos seus autores.

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Vice-Presidente: Márcia Isabel Heinen
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO – Rosângela Maria Herzer do Santos e Carolina Dutra Normey 8


PREFÁCIO - Lúcia Maria Quevedo ............................................................................ 10
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: O PERCURSO DA VIOLÊNCIA MORAL
ATÉ O FEMINICÍDIO- Bianca Ayres Elguy e Edilacir Larruscain ........................ 11
MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E A HIPÓTESE
CRIMINALIZADORA: REFLEXÕES NECESSÁRIAS- Cátia Conteratto Damo e
Josiane Petry Faria ....................................................................................................... 16
COMO SE ENCONTRA A ATUAL CONJUNTURA SOCIAL E
ADMINISTRATIVA FRENTE À APURAÇÃO E ELUCIDAÇÃO DOS CASOS DE
FEMINICÍDIO NO BRASIL PÓS ADVENTO DA LEI 13.104/15- Eduardo Vinhas
Fagundes ........................................................................................................................ 31
MULHER SUJEITO DE DIREITOS E VÍTIMA DE VIOLÊNCIAS NA LEI
11.340/2006: DISCURSO QUE PRODUZ E NATURALIZA RELAÇÕES DE
GÊNERO DESIGUAIS- Eliada Mayara Cardoso da Silva Alves – Elisama Maryan
Cardoso da Silva Alves e DulceMari da Silva Voss ..................................................... 37
NECESSIDADE DO DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS DA
MAGISTRATURA FRENTE ÀS CAUSAS ENVOLVENDO A VIOLÊNCIA
CONTRA AS MULHERES - Lucas Gonçalves Abad e Francine Nunes Ávila ...... 50
A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO CAMPO – UM RETRATO DE
EXCLUSÃO DAS TRABALHADORAS NAS COMUNIDADES RURAIS
TRADICIONAIS - Quélen Kopper e Francine Nunes Ávila ..................................... 64
UMA ANÁLISE DO FEMINICÍDIO E SUA REPERCUSSÃO NA COIBIÇÃO DA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA- Beatriz Lagreca Schmidt, Denise Tatiane Girardon dos
Santos e João Batista Monteiro Camargo .................................................................... 75
DIREITO PENAL INFORMÁTICO: VIOLÊNCIA CONTRA AMULHER NA
INTERNET DOS PAÍSES DO MERCOSUL - Manoela Chalá da Silva Milan ...... 88
VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL E A LEI MARIA DA PENHA:
AVANÇOS E RETROCESSOS - Marli Marlene Moraes da Costa e Maria Victória
Pasquoto de Farias ........................................................................................................ 95
O FEMININO E A MORTE NA CULTURA: REFLEXÕES SOBRE O
FEMINICÍDIO NO BRASIL - Natália Centeno Rodrigues e Rodrigo Fernandes
Teixeira ........................................................................................................................ 105
TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO
SEXUAL NO BRASIL - Paloma Souza dos Santos; Denise Tatiane Girardon dos
Santos e João Batista Monteiro Camargo ................................................................. 117
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NEGRA: ESTUDO CRÍTICO DA LEI
MARIA DA PENHA A PARTIR DA EPISTEMOLOGIA DECOLONIAL - Thais
Bonato Gomes .............................................................................................................. 131
Anexo - FOTOS: I CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO, GÊNERO E
CONEXÕES ................................................................................................................ 144
8

APRESENTAÇÃO

Em novembro de 2019, na cidade de Santana do Livramento foi realizado o "I


CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO, GÊNERO E CONEXÕES",
promovido pela Escola Superior da Advocacia, em parceria com a OAB - Subseção de Santa
do Livramento e a Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil -
Seccional do Rio Grande do Sul.

A iniciativa deste E-book nasceu após a seleção dos artigos apresentados durante o "I
Congresso Internacional de Direito, Gênero e Conexões", que dentre seus objetivos buscou
enaltecer a aproximação do Direito e Justiça, através de um olhar humanizado, e promover a
reflexão da temática escolhida considerando as realidades da região da fronteira do Brasil, com
painelistas brasileiros, e convidados da Argentina, Paraguai e Uruguai.

Agradeço aos organizadores do e-book: Carolina Dutra Normey, Claudia Sobreiro de


Oliveira e Lúcia Quevedo e os autores: Bianca Ayres Elguy, Edilacir Larruscain, Cátia
Conteratto Damo, Josiane Petry Faria, Eduardo Vinhas Fagundes, Eliada Mayara Cardoso da
Silva Alves, Elisama Maryan Cardoso da Silva Alves, Dulce Mari da Silva Voss, Lucas
Gonçalves Abad, Francine Nunes Ávila, Quélen Kopper, Francine Nunes Ávila, Beatriz
Lagreca Schmidt, Denise Tatiane Girardon dos Santos, João Batista Monteiro Camargo,
Manoela Chalá da Silva Milan, Marli Marlene Moraes da Costa, Maria Victória Pasquoto de
Farias, Natália Centeno Rodrigues, Rodrigo Fernandes Teixeira, Paloma Souza dos Santos;
Denise Tatiane Girardon dos Santos, João Batista Monteiro Camargo, Thais Bonato Gomes.

Rosângela Maria Herzer dos Santos


Diretora-Geral da Escola Superior da Advocacia
Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional do Rio Grande do Sul

Foram meses de organização, trabalho, muito esforço para conseguir chegar no nosso
objetivo maior, realizar um Congresso Internacional que tratasse de assuntos tão relevantes
como foram tratados na nossa Fronteira. Digo isso porque nossa Região está a exatos 500km
da Capital Porto Alegre, local onde a ESA juntamente com Comissões da OAB Seccional
semanalmente realizava antes da pandemia grandes cursos e eventos, atualmente estes eventos
vêm sendo supridos com excelência pelos cursos e eventos no modo virtual.

Trouxemos palestrantes do Brasil, Uruguai, Argentina e Paraguai, todos dispostos a


discutir temáticas de extrema importância não só para as mulheres mas para a sociedade como
um todo, pois a Violência contra a mulher adoece não só a vítima direta, mas todo o seu núcleo
familiar.

Foram 03(três) painéis, o primeiro tratou sobre o Feminicídio: o ápice da Violência


Doméstica, que contou com a Dra. Fabiana Otero representando o Brasil; a Dra. Nedy Dávila
representando o Uruguai e a Delegada Tatiana Bastos também do Brasil. O segundo painel teve
como temática Maria da Penha: Políticas Públicas e a aplicabilidade no combate a Violência
Doméstica e foram ouvidas a Dra. Luciana Teixeira representando o Brasil; o Oficial Ádans
Fabian e a Dra. Veronica Bujarin ambos do Uruguai assim como a Dra Adriana Torrente vinda
9

diretamente da Argentina. Por fim o terceiro painel tratou sobre Direito Penal Informático:
Violência Contra a Mulher na internet nos países do Mercosul, e tivemos a oportunidade de
ouvir o Dr. Spencer Sydow trazendo a visão do Brasil, o Dr. Mario Spangenberg expondo suas
considerações quanto ao Uruguai e a Dra. Rocío Riquelme que fez seu contraponto desde sua
realidade Paraguaia.

Como o objetivo principal era trazer visões de distintos Países sobre um mesmo tema,
e buscar um olhar humanizado quanto a estas questões tão relevantes, o Congresso foi encerrado
com uma bela fala sistêmica da Dra. Ana Carolina Lisboa, que nos brindou com a palestra Visão
Sistêmica em relação à violência contra a Mulher.

Cabe a mim fazer das palavras da Dra. Rosângela as minhas quanto aos agradecimentos,
pois nenhum evento desta dimensão seria um sucesso como foi sem a colaboração de uma
grande equipe. Porém preciso agradecer imensamente às minhas colegas de Comissão da
Mulher Advogada de Santana do Livramento que deixaram de atender seus escritórios, famílias
para que tudo saísse perfeito. Da mesma forma agradeço ao nosso Presidente Dr. Glenio
Cardoso Lopes que sempre acreditou no trabalho da Comissão, nos dando todo apoio e toda a
sua confiança na realização deste Congresso.

A partir deste Congresso, surge o presente E-book, sendo este um compilado de


trabalhos excelentes selecionados para proporcionar uma leitura de assuntos pontuais dentro
dos temos trazidos no Congresso assim como uma forma de eternizar este grande Evento que
com certeza teve como diferencial a proximidade entre os que lá se fizeram presentes,
palestrantes, convidados, colegas de outras subseções e países assim como os congressistas,
alcançando nosso objetivo final: falas enriquecedoras, trocas de realidades e um olhar
humanizado sobre as questões lá discutidas.

Carolina Dutra Normey


Secretária-geral da Subseção de Santana do Livramento
Coordenadora da Comissão da Mulher Advogada da Subseção de Santana do Livramento
10

PREFÁCIO

Honra-me sobremaneira prefaciar esta obra digital que reúne os trabalhos científicos
apresentados no I Congresso Internacional de Direito, gênero e conexões, por diversos motivos
e sentimentos mas, principalmente pela oportunidade de proporcionar o leitor a leitura de textos
produzidos por jovens pesquisadores jurídicos que debruçam seus estudos sobre temáticas
relevantes e pulsantes no mundo no que diz respeito a violência de gênero, desigualdades,
necessidades de atualização da visão da sociedade quanto a presença e atuação das Mulheres
na engrenagem social.

O Congresso foi pensado, idealizado e realizado por um grupo de Advogadas que


compõem a Comissão da Mulher Advogada da subseção da OAB de Santana do Livramento,
com o apoio da Comissão da Mulher Advogada da seccional do Rio Grande do Sul, OAB/RS e
da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Um evento internacional, de grande porte que
proporcionou inigualáveis momentos de troca de experiências, de aprendizados e sobretudo de
reflexão, em um ambiente de alto nível técnico e muito calor humano.

Coroando o Congresso, ilustrando as temáticas trabalhadas, a organização do evento foi


agraciada com a submissão de excelentes trabalhos científicos, frutos de pesquisas e dedicação
de alunos acadêmicos e profissionais da área jurídica, estes trabalhos estão dispostos nesta obra
para que o leitor possa, lendo estes textos, sentir-se inserido no contexto de conhecimento e
reflexão que aqueles que puderam presenciar o Congresso estiveram emergidos.

Esta obra deve ser consumida levando-se em conta a riqueza e diversidade das
contribuições ao nosso conhecimento, prestadas por cada autor.
Assim, é possível realizar a leitura de textos que abordam situações pontuais e muito bem
elaboradas dentro do universo da violência contra a mulher, e ainda ser provocado a analisar
aspectos culturais e a necessidade do aprimoramento de um sistema de coibição dos
feminicídios.

Estamos diante de uma coleção de trabalhos que foge da análise trivial da temática e
surpreende ao tratar da desigualdade de gênero no âmbito do trabalho rural, da violência
praticada no mundo virtual contra as mulheres, e de forma necessária no cenário atual, a
violência enfrentada pelas mulheres negras.

De maneira alguma escapa do escopo e análise dos nossos escritores um olhar crítico
formador de opiniões acerca do sistema normativo atual, a proficuidade destas medidas, as
imperfeições apontadas pelo desenvolvimento prático do sistema de proteção ao gênero.

Esta obra demonstra seu valor pela verticalização dos temas, pela abertura do horizonte
intelectual que proporciona e pela força representativa e emblemática que fornece ao ilustrar de
forma técnica e científica um trabalho extremamente bem-sucedido, e elaborado pelo grupo de
organizadoras do I Congresso Internacional de Direito, gênero e conexões.

Lúcia Maria Quevedo


Delegada da ESA OAB/RS – Subseção de Santana do Livramento – RS.
11

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: O PERCURSO DA VIOLÊNCIA MORAL ATÉ


O FEMINICÍDIO

Bianca Ayres Elguy1


Edilacir Larruscain2

Resumo: O direito protecional das mulheres foi ampliado nos últimos 30 anos em nosso país,
como por exemplo com a criação da Lei Maria da Penha é a inclusão do feminicídio como
agravante no crime de homicídio.
Contudo, o que está cada vez mais notável e em aumento de exposição na mídia é a violência
contra a mulher, da qual infelizmente na maioria dos casos, é envolta da morte da vítima,
resultante do seu âmbito de relações íntimas e em seu lar, e na maioria das vezes, pelo seu
companheiro.
Isto se deve ao fato de que a cultura que nos foi imposta é em sua grande parte machista, onde
os homens decidem e governam tudo, e esta ideia infelizmente é transmitida para a relação com
a mulher, onde seu companheiro deseja decidir as suas roupas, suas amizades, seus locais de
convívio social e até mesmo seu comportamento, e quando isso não é obedecido, surgem as
agressões.
Tais agressões são consideradas mascaradas, pois começam de modo sutil, onde geralmente
após acontecerem, o agressor se demonstra arrependido, a vítima se envolve nessa relação
abusiva, não vê a real gravidade da situação e não conta para ninguém o que está acontecendo.
Contudo, é que o agressor não muda, pelo contrário, e na maioria dos casos, aumenta o número
de agressões até resultar na morte da mulher.

Palavras-chave: Feminicídio. Violência. Leis Protetivas.

INTRODUÇÃO

O Brasil vem demonstrando grandes avanços em relação aos direitos para as mulheres.
No século XX, e especialmente nas últimas décadas, as mulheres conquistaram o direito ao
voto, divórcio, uso de contraceptivos, educação, trabalho e equiparação salarial entre os
gêneros.
No âmbito jurídico protecional, em 1985 foi criado o Conselho Nacional dos Direitos
da Mulher, subordinado ao Ministério da Justiça, com intenção da eliminação da discriminação
e aumento da participação das mulheres na política, economia e cultura, em 2006 entrou em
vigor a Lei n° 11.340 (Maria da Penha), criando mecanismos para coibir a violência doméstica
e familiar contra a mulher e em 2015 foi criada a Lei n° 13.104, onde altera o art. 121 do
Decreto-Lei n° 2.848 de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância

1
Estudante do curso de Direito/ 5º semestre. Campus Universitário de Santana do Livramento. Urcamp.
2
Orientador. Professor do Campus Universitário de Santana do Livramento. Urcamp.
12

qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1° da Lei n° 8.072 de 1990, para incluir o


feminicídio no rol dos crimes hediondos.
No entanto, o que insiste em existir, é a violência contra a mulher, em sua grande parte
na área doméstica, gerada por quem mais devia lhe amparar. O seu esposo, companheiro,
namorado, irmão ou pai, enfim, qualquer indivíduo que possua um vínculo afetivo ou um
convívio com a vítima, onde na maioria dos casos, após um ciclo vicioso de agressões e
demonstrações de um falso arrependimento e promessas de mudanças do agressor, acaba em
feminicídio.

DESENVOLVIMENTO

Toda semana são expostas nas mídias e veículos de comunicação notícias sobre novos
casos de feminicídio, onde mulheres são mortas de forma extremamente violenta e com falta
de piedade. O que se repete nesses casos, geralmente, é que o autor do crime sempre é o mesmo,
o companheiro da vítima que não aceita o fim de um relacionamento repleto de agressões, e
num ato machista de possessividade e irracionalidade, envolvendo algumas vezes álcool ou
drogas, tira a vida da sua companheira.
No dia 15 de maio deste ano, foi divulgada nos jornais do Estado do Rio Grande do
Sul, e entre esses, no portal de notícias Gaúcha ZH 3(SCUR e MARTINS, 2019), que após um
ano de desaparecimento, o corpo de uma mulher é encontrado enterrado em sua própria casa na
cidade de Dom Pedrito, e o suspeito, no qual já se encontra preso, é o seu próprio companheiro.
Casos assim, infelizmente estão sendo comuns e cotidianos de serem relatados,
levando assim ao questionamento de por que mesmo com a criação de leis punitivas, homens
ainda insistem, com seu sentimento de posse e superioridade, em violentar e até mesmo
assassinar suas companheiras.
A Lei Maria da Penha 4(BRASIL, 2006) define entre outras, que são formas de violência
doméstica e familiar contra a mulher:
a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou
saúde corporal; a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe
cause dano emocional e diminuição da autoestima (...) ou que vise sua degradação; a
violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a
manter ou a participar de relação sexual não desejada (...); que a induza a
comercializar ou a utilizar (...) a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à
prostituição, (...) ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e
reprodutivos; a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que

3
(SCUR e MARTINS: 2019)
4
(BRASIL: 2006)
13

configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, (...)


destinados a satisfazer suas necessidades e a violência moral, entendida como
qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Porém mesmo com esta ampla definição, a prevenção e o combate são difíceis, já que
esta é uma violência mascarada, onde começa com pequenos empurrões ou puxões de cabelo,
controles de ações e xingamentos e se desenvolve com tapas, socos, relações sexuais forçadas,
restrição de liberdade e controle de comunicação com o resto das pessoas.
Todavia entre essas ações existem boas práticas do agressor como a promessa de
mudança ou a entrega de presentes para se mostrar arrependido, o que após algum tempo,
sucede em agressões de maior grau de violência, alcançando a morte da mulher.
A vítima está tão envolvida e enganada, que não enxerga as atitudes violentas que lhe
são impostas, se ilude com as palavras e demonstrações de carinho após a agressão, se ilude de
que seu agressor irá mudar e não expõe para ninguém o que está acontecendo, o que gera uma
sensação de poder em seu agressor e fazendo com que as suas agressões sejam ocultadas e
aumentadas.
Essas situações são comuns e mais frequentes do que se possa imaginar, já que a vítima,
que pode ser uma colega de trabalho, de faculdade, um familiar ou uma vizinha, oculta as
agressões sofridas na ilusão de que elas não se repetiram, porém, infelizmente, na maioria dos
casos, elas só aumentam, chegando no final fatal, sua morte.
De acordo com o assunto, Carmen Hein de Campos, menciona no livro Feminicídio
#InvisibilidadeMata 5(in PRADO e SANEMATSU, 2017) que:

O feminicídio é a ponta do iceberg. Não podemos achar que a criminalização do


feminicídio vai dar conta da complexidade do tema. Temos que trabalhar para evitar
que se chegue ao feminicídio, olhar para baixo do iceberg e entender que ali há uma
série de violências. E compreender que quando o feminicídio acontece é porque
diversas outras medidas falharam. Precisamos ter um olhar muito mais cuidadoso e
muito mais atento para o que falhou (p. 13)

Medidas criminalizadoras servem mais para que após a conduta incorreta tenha sido
realizada, alguma providência seja tomada. Contudo é que evitar e educar a sociedade para que
a violência contra mulher não seja realizada, é mais racional do que punir após o crime ter sido
realizado, já que a cultura que nos é imposta é de que em briga de marido e mulher não se mete
a colher e que está tudo bem um casal viver em uma relação de constante violência.

5
(in PRADO e SANEMATSU : 2017)
14

Como afirma Wânia Pasinato (in PRADO e SANEMATSU, 2017):

É preciso entender definitivamente que, quando há violência contra uma mulher nas
relações conjugais não se trata de ‘crime passional’. “É uma expressão que temos que
afastar do nosso vocabulário, porque essa morte não decorre da paixão ou de um
conflito entre casais. Ela tem uma raiz estrutural e tem a ver com a desigualdade de
gênero. (p.16)

A desigualdade de gênero vem sendo combatida com políticas públicas de igualdade


entre homens e mulheres, contudo ainda há muito o que se conquistar. E para isso existe um
movimento que está lutando para que mulheres continuem conquistando o espaço e o respeito
de homens em uma sociedade em sua maioria machista, o feminismo. Esse movimento, que se
torna tão necessário em nosso cenário, já que a violência e o desrespeito contra as mulheres,
principalmente em suas relações intimas, decorrentes de um abuso e de uma manipulação,
mesmo com o passar dos anos e as medidas preventivas que não amedronta homens, somente
aumenta em dados estáticos e denúncias.
O sentimento de posse do homem sobre a mulher, é imposto na cultura machista
brasileira, onde homens são criados num sistema patriarcal, muitas vezes em ambientes
familiares em que os maridos podiam fazer o que desejavam com suas esposas, inclusive em
frente aos filhos. O problema maior é que esses homens crescem acreditando, em uma parte,
que tal sentimento seja normal e que podem governar o que sua ex ou atual companheira deve
vestir, agir, seus gostos, gastos e usos, suas amizades e obrigar a manter relações sexuais e
afetivas, e caso isso não seja realizado, ele não aceita e violenta, agride, tortura, estupra,
estrangula e mata. Fazendo assim, com que o Brasil, possua os maiores índices de feminicídio
do mundo.
Muito já se foi feito para proteger mulheres contra agressões e assassinatos, contudo o
caminho para a dignidade, o respeito e a valorização ainda é grande a ser conquistado.
A denúncia da violência sofrida é o único caminho para preservar e afastar da vida um
companheiro agressivo, e é melhor sofrer pelo fim de um relacionamento abusivo por um tempo
do que eternamente por marcas físicas e psicológicas que poderiam ainda sim ser piores, como
a própria morte.

CONCLUSÃO
Levando em conta todos os fatos mencionados, é imprescindível que todos se
conscientizem de que é inaceitável que mesmo após tantos avanços sociais, o desrespeito e a
violência contra a mulher insistam em existir em milhares de casos, que a mulher aceite viver
15

amedrontada em um relacionamento abusivo, e não denuncie o que está passando, já que a


denúncia é o único caminho para que a violência não fique impune.
Mas acima de tudo, que jamais se aceite que a cultura machista se imponha sob o
empoderamento feminino, fazendo assim, com que sonhos e famílias sejam destruídas, diante
de um sentimento de posse e superioridade que teima em existir na mente de alguns homens
em relação as mulheres.
Nada disso aconteceria se todos seguissem o disposto no Art. 5º da Constituição Federal,
onde diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, e reafirmado no inciso I, no qual menciona
que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
O sexo feminino é capaz, é igual, merecedor e equivalente ao sexo masculino e isso
precisa nos ser doutrinado com maior força e eficiência, já que estamos vivenciando tempos
onde um grande político brasileiro já mencionou até que “mulher deve ganhar salário menor
porque engravida”, demonstrando talvez um desprezo e desrespeito pelas mulheres.

BIBLIOGAFIA

SCUR, Noele e MARTINS, Cid. Após um ano desaparecida, corpo de mulher é encontrado
enterrado em casa. Disponível em:
<https://gauchazh.clicrbs.com.br/seguranca/noticia/2019/05/corpo-de-mulher-e-encontrado-
enterrado-dentro-da-casa-do-ex-namorado-em-dom-pedrito-
cjvp3d0js04c101maqjmdl71y.html> Acesso em: 02 de junho de 2019.

PRADO, Débora e SANEMATSU, Marisa (orgs.). Feminicídio #InvisibilidadeMata. Instituto


Patrícia Galvão. São Paulo. 2017
BRASIL. Lei n°. 11.340, de 7 de agosto de 2006.Lei Maria da penha. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13827.htm> Acesso em: 02
de junho de 2019.
16

MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA E A HIPÓTESE CRIMINALIZADORA:


REFLEXÕES NECESSÁRIAS

Cátia Conteratto Damo1


Josiane Petry Faria2

RESUMO: O presente estudo analisa as alterações produzidas no ordenamento jurídico


brasileiro pela Lei n.13.641 de 03 de abril de 2018, a qual criminalizou o descumprimento de
medidas protetivas aplicadas no âmbito da violência doméstica e familiar. O método de
abordagem utilizado na pesquisa é o dedutivo. No desenvolvimento do presente trabalho, são
conceituadas as medidas protetivas, os crimes de menor potencial ofensivo, a prisão preventiva
e a fiança policial e, posteriormente, analisadas as controvérsias previstas no artigo 24-A, quais
sejam, se o artigo prevê crime tipificado com aplicação da Lei dos Juizados Especiais e se a
proibição de fiança policial é constitucional. Por ser a Lei Maria da Penha um instituto criado
para proteger a mulher em situação de violência doméstica ou familiar, a Lei n. 9.099 de 26 de
setembro de 1995 não é aplicável ao crime de descumprimento de medidas protetivas, e a fiança
somente pode ser fixada pelo juiz.

Palavras-chave: Fiança policial. Lei dos juizados especiais criminais. Medidas protetivas de
urgência.

1 A NECESSIDADE DA CRIMINALIZAÇÃO DO DESCUMPRIMENTO DAS


MEDIDAS PROTETIVAS

Ao questionar a violência doméstica contra a mulher no ambiente familiar no Brasil,


leva-se em conta uma série de fatores culturais, históricos e religiosos que colaboraram para as
reiteradas práticas dessa ação. Com o passar dos anos, muitos movimentos feministas mudaram
esse contexto de submissão. Mas a sociedade ainda cultiva valores que incentivam a violência
contra as mulheres.3 Silvia Federici, ativista feminista ítalo-estadunidense, uma das
impulsionadoras das campanhas que começaram a reivindicar um salário para o trabalho
doméstico, realizado pelas mulheres sem nenhuma retribuição, sustenta que “[...] algumas das

1
Especialista em Ciências Criminais e graduada pela Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil.
Advogada e Servidora Pública. E-mail: caticonteratto@gmail.com.br.
2
Vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/RS, subsecção Passo Fundo. Possui pós-
doutoramento no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Rio Grande. Doutora pela Universidade
de Santa Cruz do Sul. Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Direito da Universidade de Passo
Fundo PPGDireito UPF. Conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (COMDIM). Coordenadora
do Programa de Extensão universitária PROJUR Mulher e Diversidade. Membra do Conselho Editorial do
CONPEDI. Coordenadora do grupo de pesquisa Dimensões do Poder, Gênero e Diversidade do PPGDireito, Linha
de pesquisa Relações Sociais e Dimensões do Poder, com ênfase em ciências criminais, gênero, relações de poder,
diversidade e direitos humanos. Advogada. E-mail jfaria2@upf.br.
3
RESENDE, Gisele Lira; VASCONCELOS, Claudivina, Campos. Violência Doméstica: A Aplicabilidade e
Eficácia das Medidas Protetivas como Instrumento de Prevenção e Combate à Reincidência na Comarca de Barra
do Garças-MT. Revista Direito em Debate. Jan/jun, 2018. p. 119. Disponível em:
<https://doi.org/10.21527/2176-6622.2018.49.117-137>. Acesso em: 2019.
17

questões pelas quais o antigo movimento das mulheres batalhava ainda estão em aberto, que de
fato não ultrapassamos a montanha [...]”. Defendia que a luta pela reivindicação dos direitos
das mulheres deveria ser contínua e bem sucedida, para reconstruirmos a sociedade.4
A Lei Maria da Penha não possui caráter repressivo, mas sim visa à proteção e à
assistência à mulher em situação de violência. Stela Valéria Soares de Farias Cavalcanti, ao se
manifestar sobre o tema, sustenta que a Lei prevê mecanismos de prevenção, políticas públicas
de cunho educacional e de assistência às vítimas, e que sua criação não teve a intenção de punir
mais severamente os agressores dos delitos domésticos.5Essa Lei se diferencia pela criação de
medidas protetivas de urgência, que são medidas cautelares, instrumentos legais
disponibilizados para que a vítima recorra à justiça de forma rápida, por isso o caráter urgente,
e consiga providências que cessem de imediato as agressões, sejam elas de qualquer natureza.
Estudo realizado pelo Conselho Nacional de Justiça no ano de 2017 demostrou que o
Poder Judiciário Brasileiro homologou 194.812 medidas em 2016, e 236.641 medidas em 2017,
um aumento de 21% no período. Apontou-se uma média diária de 648 medidas protetivas de
urgência no ano de 2017, ou seja, um caso de violência doméstica foi comunicado num período
inferior a três minutos. Ainda segundo a pesquisa, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
expediu a maior quantidade de medidas em números absolutos: cerca de 38.604.6
Diante da necessidade foi inserido na Lei Maria da Penha tipo penal específico para
punir a desobediência a decisões judiciais, que impõe medidas protetivas de urgência, o
chamado crime de descumprimento de medidas protetivas, criado pela Lei n. 13.641 de 03 de
abril de 2018.
A Egrégia Corte do Superior Tribunal de Justiça possuía orientação jurisprudencial de
que “[...] o descumprimento da decisão que impõe medida protetiva de urgência prevista na Lei
n. 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) é a decretação de prisão preventiva e não a imputação do
crime de desobediência [...]”7. O Tribunal possuía entendimento consolidado de que o

4
MORAES, Alana; BRANT, Maria A.C. . Silvia Federici: “Nossa luta não será bem sucedida a menos que
reconstruamos a sociedade”. SUR Revista internacional de Direitos Humanos. São Paulo, 2016. Disponível em:
<https://sur.conectas.org/nossa-luta-nao-sera-bem-sucedida-menos-quereconstruamossoc iedade/>. Acesso em:
03 ago. 2019.
5
CAVALCANTI, Stela Valéria Soares de Farias. Violência Doméstica: Análise da Lei “Maria da Penha”, nº
11340/06. 4. ed. Bahia: JusPodivm, 2012. p. 202.
6
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha. 2018.
Disponível em:<http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/06/2df3ba3e13e
95bf17e33a9c10e60a5a1.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2019.
7
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 305.442, Quinta Turma Criminal Distrito Federal, DF,
03 de mar. de 2015. Disponível em: < https://scon.stj.jus.br/SCON/>. Acesso em: 03 ago. 2019.
18

descumprimento não deveria ser imputado, mas que somente serviria de fundamentação para
prisão preventiva.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto8 afirmam que, diferentemente do
posicionamento adotado pela Egrégia Corte, uma segunda corrente defendia que a conduta do
agente que descumpria medida protetiva, configuraria o crime de descumprimento de medida
protetiva. Relatam que o Enunciado 27 do Fonavid (Fórum Nacional de Juízes de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher) se manifestou nesse sentido.
Alice Bianchini defende que a criminalização da conduta está em concordância com os
objetivos trazidos pela Lei Maria da Penha. Afirma que, “[...] agora, resta discutir se foi correta
a opção legislativa de criminalizar a conduta de descumprir medida protetiva de urgência e,
superando tal questão e entendendo correta, se a pena está adequada. [...]”.9Referido diploma
veio para preencher lacuna na Lei, em face da recorrente ocorrência de descumprimento de
medidas protetivas pelos agressores, fragilizando o propósito da Lei, qual seja, de proteção a
mulher vítima de violência. Antes mesmo do caráter repressivo, a Lei prevê a proteção e a
assistência à mulher, a fim de que cesse o mais rapidamente possível a violência sofrida por ela.

2 DA CONTROVÉRSIA TIPIFICAÇÃO DO DESCUMPRIMENTO DE MEDIDAS


PROTETIVAS

Com a edição da Lei n. 13.641, de 03 de abril de 2018, restou pacificada a discussão quanto à
tipificação da desobediência. Porém, a referida Lei trouxe como pena, para o descumprimento
de decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência, a de detenção, de três meses a
dois anos, e prevê que, na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá
conceder fiança. Essa questão vem dando margem a interpretações diversas.
De um lado, há quem defenda, como, por exemplo, Samantha Braga Pereira e Michele
Rocha Cortes Hazar, que, por ser a pena máxima cominada ao crime de descumprimento de
medidas protetivas a de dois anos, são aplicáveis os institutos despenalizadores da Lei n. 9.099,
de 26 de setembro 1995. Por outro lado, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto
sustentam ser inaplicáveis tais disposições à conduta.
Ainda, a nova Lei conferiu ao juiz a aplicação da fiança em caso de prisão em flagrante
do agente que descumprir ordem judicial de medidas protetivas. Esse fato também gerou

8
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11340/2006. Comentada artigo por artigo. Salvador: Editora JusPodivm, 2019. p. 228.
9
BIANCHINI, Alice. O novo tipo penal de descumprimento de medida protetiva previsto na Lei 13.641/2018.
Ago. 2018, p. 02. Disponível em: <https://professoraalice.jusbrasil.com.br /artigos/569740876/o-novo-tipo-penal-
de-descumprimento-de-medida-protetiva-previsto-na-lei1 3641-2018#_ftn4.> Acesso em: 29 ago. 2019.
19

discussões na doutrina, pois o artigo 32210 do Código de Processo Penal prevê que poderá ser
concedida fiança pela autoridade policial para as infrações cuja pena privativa de liberdade
máxima não seja superior a 4 anos, facultando a Lei a imposição de fiança somente pelo juiz,
devendo, nesse tempo, o acusado ser levado à prisão.

2.1 Aplicação da Lei n. 9.099/95 ao crime de descumprimento de medidas protetivas

A Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, tipifica as infrações de menor potencial


ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não
com multa. Prevê, para a configuração do crime, que esse tenha a pena prevista não superior a
de dois anos, não se avaliando os demais elementos.11O procedimento é mais benéfico
objetivando a reparação do dano sofrido pela vítima e a aplicação da pena não privativa de
liberdade. Inclusive, o artigo 6912 da referida lei prescreve que não haverá prisão em flagrante
e aplicação de fiança ao transgressor, mas sim será lavrado termo circunstanciado.
Diante desse conceito, surgiram discussões acerca da aplicação do instituto mencionado
ao crime de descumprimento, previsto pela Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018, o qual impôs
ao agressor penalidade máxima de dois anos e mínima de três meses. Predisse que para o
descumpridor, quando preso em flagrante, não será possível a aplicação de fiança pela
autoridade policial, mas sim pelo juiz, contrariando o que dispõe a Lei vigente.
Luan Alisson S. Furucho e Juliana M. Morotti13 defendem que “[...] o sujeito passivo
do crime é suscetível de divergências na doutrina, tendo em vista que o mesmo é,
primariamente, a administração da justiça e, secundariamente, a vítima de violência doméstica
e familiar [...]”. Isso acaba por gerar dúvida sobre a aplicação da Lei do Juizados Criminais, em

10
Artigo 322 do Código de Processo Penal: “A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de
infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Nos demais
casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas”.
11
PEREIRA, Samantha Braga; HAZAR, Michele Rocha Cortes. As controvérsias do crime de descumprimento
de medidas protetivas da Lei Maria da Penha. Revista de Direito Penal, Processual e Constituição. Porto Alegre.
v. 4, p. 81 – 9, jul/dez 2018, p. 89.
12
Artigo 69 da Lei 9099/95: “A autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo
circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima, providenciando-se as
requisições dos exames periciais necessários. Parágrafo único. Ao autor do fato que, após a lavratura do termo, for
imediatamente encaminhado ao juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá prisão em
flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de
cautela, seu afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”.
13
FURUCHO, Luan Alisson Seiji; MOROTTI, Juliana Midori. A nova lei de crime de descumprimento das
medidas protetivas: as repercussões trazidas à Lei Maria da Penha. III Colóquio Nacional de Estudos de Gênero
e História: Epistemologias Interdições e Justiças Sociais. jun. 2018, p. 6. Disponível em:
<http://www.seti.pr.gov.br> Acesso em: 08 ago. 2019.
20

face da consumação do crime de descumprimento de medidas protetivas ocorrer no momento


do inadimplemento de uma ordem judicial.
Segundo Samantha Braga Pereira e Michele Rocha Cortes Hazar14, o sujeito ativo do
tipo penal é o agressor a quem foram impostas as medidas protetivas e, como sujeito passivo é
o Estado, em razão do descumprimento ser de uma ordem judicial, sustentam que “[...]. Não se
pode deduzir que descumprir a ordem judicial das medidas protetivas é um ato de violência
direta contra a vítima [...]”.
Em sentido contrário, o artigo 4115 da Lei Maria da Penha determina que, para os crimes
praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, não se aplica a Lei n. 9.099 de
26 de setembro de 1995. Referido artigo foi objeto de Ação Direta de Constitucionalidade n.
19, a qual foi julgada procedente à unanimidade.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto,16 ao se manifestarem sobre o tema,
afirmam que haverá quem sustente a possibilidade de aplicação das medidas despenalizadoras,
em virtude de a pena cominada ser inferior a dois anos e, também, que “[...] não se trataria,
especificamente, de crime praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher, mas
sim de crime contra a Administração Pública, de forma que a vedação do artigo 41 da lei em
análise, que impede a aplicação da Lei n. 9099/95, não incidiria nesse caso [...]”. Reforçam o
seu posicionamento afirmando que são inaplicáveis as disposições da Lei dos Juizados
Criminais ao crime de descumprimento de medidas protetivas. Sustentam que “[...] seria um
verdadeiro contrassenso que uma inovação que tenha vindo – se imagina – em proteção a vítima
de violência doméstica, pudesse admitir a imposição de medidas despenalizadoras [...]”.
Para Marina Dias Marinho,17 também são inaplicáveis os benefícios da Lei n. 9.099 de
26 de setembro de 1995, pelo fato de o novo crime estar inserido na própria “Lei Maria da
Penha”, não sendo possível a substituição da pena por “cestas básicas”.
Salienta-se, diante das posições trazidas, que o principal objetivo da criação de um tipo
penal na Lei Maria da Penha é justamente resguardar a mulher e sua família, de maneira que se
possa tentar conter o agressor, fazendo cessar de imediato a situação de violência. Entende-se

14
PEREIRA, Samantha Braga; HAZAR, Michele Rocha Cortes. As controvérsias do crime de descumprimento
de medidas protetivas da Lei Maria da Penha. p. 86.
15
Artigo 41 Lei da 11340/06: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher,
independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.
16
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11340/2006. Comentada artigo por artigo. p. 229/230.
17
MARINHO, Mariana Dias. O crime de desobediência na Lei Maria da Penha. Jun. 2018, p.1 Disponível em:
<http://www.comunicacao.mppr.mp.br>. Acesso em: 29 jul. 2019.
21

que essas medidas fazem parte de todo um sistema de proteção estabelecido pela Lei Maria da
Penha, que busca dar efetividade aos direitos humanos e a devida proteção às mulheres.
Em uma análise de tipicidade, constata-se que o crime de descumprimento de medidas
protetivas possui como sujeito passivo a Administração Pública, portanto, devendo ser aplicada
a Lei dos Juizados Especiais Criminais, estando a previsão de imposição de fiança pelo juiz
inadequada e inconstitucional. Porém, não teria sentido a criação de tal tipificação penal se não
fosse para mudança na aplicação da concepção jurisprudencial criada pelos julgadores. Faz-se
necessária uma interpretação jurídico-penal dos fenômenos.
Em razão de o legislador prever que a aplicação da fiança será somente pelo juiz,
entende-se que é necessária uma análise sucinta de cada caso, pois o juiz pode aplicar medidas
diversas da prisão preventiva. O cárcere não é a solução mais adequada para a resolução do
conflito, podendo ser adotadas políticas de prevenção à violência, meios para atendimento
psicológico à vítima e ao agressor, amparo à mulher para se tornar menos vulnerável à
violência. Necessita-se de uma mudança de pensamento na sociedade, de que o gênero feminino
é inferior ao gênero masculino. Uma mudança cultural é um dos principais fatores para diminuir
os índices de violência.

2.2 Da prisão em flagrante e da sua conversão em preventiva

Único crime previsto na Lei Maria da Penha, o crime de descumprimento de medidas


protetivas trata-se de crime próprio, podendo ser praticado por agressor que tem sobre si ordem
judicial relacionada a delito cometido no âmbito doméstico e familiar. Muito se questiona sobre
a possibilidade de decretação da prisão preventiva para assegurar o cumprimento das medidas
protetivas.
O Desembargador Rogério Gesta Leal, nos autos do processo de julgamento do Habeas
Corpus n. 70077814101 defende que, por mais que a conduta praticada pelo agente seja
gravosa, a prisão cautelar não se apresenta como a única medida suficiente para fins de
preservação da vítima e acautelamento da ordem pública e social. Sustenta que “[...] a prisão
preventiva somente pode ser decretada em casos excepcionais e estritamente necessários,
notadamente levando em consideração o efeito negativo do cárcere e as influências próprias do
ambiente prisional. [...]”.18

18
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70077814101, 4ª Câmara Criminal, Porto
Alegre, RS, 14 de junho de 2018. Disponível em:<http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em 02 ago. 2019.
22

Verifica-se, portanto, que a decisão do legislador foi equivocada, ao possibilitar a


decretação da fiança somente pelo juiz. Justifica-se que cabe ao Delegado de Polícia lavrar o
auto de prisão em flagrante delito (ou termo circunstanciado de ocorrência). Além de verificar
a existência dos requisitos para a decretação da prisão preventiva do descumpridor da medida
e, estando presentes, poderá não arbitrar a fiança e representar pela decretação da medida
cautelar pessoal mais gravosa, qual seja, a prisão preventiva para garantir a execução das
medidas protetivas de urgência, não sendo privada a liberdade do acusado até que a decisão
judicial ocorra19.
Diante dos posicionamentos acima referidos, observa-se que o julgador deverá analisar
os requisitos autorizadores da prisão preventiva, pois, não possuindo o autor antecedentes
criminais e não revelada a sua periculosidade, outras medidas cautelares menos gravosas podem
ser aplicadas em substituição à prisão preventiva.
Em contraposição ao alegado, uma segunda corrente prega que a tipificação prevista no
artigo 24-A da Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018, foi criada para assegurar eficácia à prisão
preventiva. Para isso, previu a hipótese de prisão em flagrante do descumpridor de medidas
protetivas e fiança apenas judicial, diferentemente do previsto na legislação penal para esse tipo
de crime.
Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto sustentam que, ao vedar a aplicação da
fiança pela autoridade policial, está sendo garantida a aplicação do disposto no artigo 324 20 do
Código de Processo Penal, para possível conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva
“[...] o legislador fez expressa referência a essa proibição, deixando clara sua opção e facilitando
a tarefa do interprete [...]”.21
Esse fato pode ser constatado por análise breve de jurisprudência do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, o qual vem se posicionando no sentido de ser aplicável a restrição da
liberdade ao descumpridor de medidas protetivas.
Nos autos do Habeas Corpus n. 70081845042, sustentou-se que a Lei n. 11.340, de 07
de agosto de 2006, inseriu no ordenamento jurídico a possibilidade de segregação de cautelar,

19
LEITÃO JUNIOR, Joaquim Lopes; SILVA, Raphael Zanon da. A Lei nº 13.641/2018 e o novo crime de
desobediência de medidas protetivas. abr. 2018, p. 2. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br>.
Acesso em: 1º ago. 2019.
20
Artigo 324 do Código de Processo Penal: “Não será, igualmente, concedida fiança: I - aos que, no mesmo
processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das
obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; II - em caso de prisão civil ou militar; III -
(revogado); IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312)”.
21
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha. Lei
11340/2006. Comentada artigo por artigo. p. 232.
23

ainda que em crimes de menor potencial ofensivo, como no caso analisado, em que, após
deferidas as medidas protetivas em favor da vítima, o acusado a procurou, descumprindo as
medidas impostas e a ameaçou de morte, por quatro vezes. Justifica-se que “[...] o objeto da
referida lei consiste na prevenção dos crimes de violência doméstica, que geralmente ocorrem
no seio familiar, sem a presença de testemunhas [...]”. No caso em análise, foi mantida a prisão
do agressor para assegurar a aplicação da lei penal e a execução das medidas protetivas de
urgência.22
Note-se que o delito tipificado no artigo 24-A, ao prever a possibilidade de prisão em
flagrante garante que, de imediato, aquele agressor devidamente intimado da decisão legal que
o proíbe de se aproximar ou manter contato com a vítima seja cerceado do direito à liberdade.
Isso para assegurar a eficácia do respeito e do atendimento que se deve à determinação judicial,
que objetiva garantir à mulher o direito de viver sem violência.
Como se observa, a nova lei não pacificou o tema relativo ao descumprimento de medida
protetiva por parte do agressor, não havendo entendimento pacífico quanto ao rito
procedimental a ser seguido.

2.3 Aplicabilidade prática do crime de descumprimento de medidas protetivas

A violação da previsão legal do artigo 24-A da Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018, não
rara vezes pode seguir-se da prática de novos crimes contra a mulher em situação de violência
doméstica e familiar, ou seja, o companheiro quando viola as medidas protetivas de forma
dolosa e ao mesmo tempo profere ameaças à ex-companheira.
A alteração legislativa é recente, havendo poucos julgados na jurisprudência de
aplicação do crime de descumprimento de medidas protetivas. Analisaram-se decisões dos
Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e do Espírito Santo, nas quais o artigo 24-A da Lei
n. 13.641 de 03 de abril de 2018 está sendo aplicado. Porém, alguns juízes “a quo” não estão
aplicando a nova Lei.
Na pesquisa de jurisprudência realizada, no período de 1º de janeiro de 2019 até 05 de
setembro do mesmo ano, foram analisados os pedidos de Habeas Corpus do agressor que teve
sua prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. Também, observaram-se posições dos
Tribunais quanto a apelações propostas por réu condenado ao crime previsto no artigo 24-A da
Lei Maria da Penha. Foram analisadas quatorze decisões do Tribunal de Justiça do Espírito

22
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n.70081845042, 3ª Câmara Criminal, Porto
Alegre, RS, 25 de julho de 2019. Disponível em:<http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 02 ago. 2019.
24

Santo e vinte e uma do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os gráficos abaixo demostram
os resultados das decisões analisadas:
Gráfico 01. Resultado das decisões proferidas em pedidos de Habeas Corpus - RS

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Denegado

Concedido

0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Habeas Corpus

Fonte: A autora, a partir de RIO GRANDE DO SUL, 2019.

Gráfico 02. Resultado das decisões proferidas em pedidos de Habeas Corpus - ES

Tribunal de Justiça do Espírito Santo

Denegado

Concedido

0 2 4 6 8 10 12 14

Habeas Corpus

Fonte: A autora, a partir de ESPÍRITO SANTO, 2019.

Conforme demostra o Gráfico, 01 foram analisadas dezesseis decisões de habeas corpus


proferidas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Nelas, constatou-se que nove pedidos
foram denegados e sete concedidos. Os últimos tiveram como fundamento a concessão do
pedido, com determinação de soltura do réu por excesso de prazo; já os primeiros, para
denegação da ordem de manter os réus presos por estarem presentes os requisitos autorizadores
da prisão preventiva e essa ser necessária para assegurar proteção à vítima.
Já, no Tribunal de Justiça do Espírito Santo (Gráfico 02), em doze decisões analisadas,
denegou à unanimidade as ordens de habeas corpus, fundamentando suas decisões no sentido
de a prisão preventiva ser baseada nos requisitos autorizadores previstos no Código de Processo
Penal e não se tratar de antecipação da pena.
Nos Gráficos 03 e 04, demonstram-se decisões de apelações de réus condenados pela
prática do crime previsto no artigo 24-A da Lei n. 13.641 de 03 de abril de 2018, nas quais por
25

entendimento unânime dos desembargadores foram improvidos os pedidos dos recursos de


apelação. Confirmando a aplicação prática da alteração legislativa.
Gráfico 03. Resultado das decisões proferidas em sede de apelação - RS

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Provida

Improvida

0 1 2 3 4 5 6

Apelação

Fonte: A autora, a partir de RIO GRANDE DO SUL, 2019.

Gráfico 04. Resultado das decisões proferidas em sede de apelação - ES

Tribunal de Justiça do Espírito Santo

Improvida

Provida

0 0,5 1 1,5 2 2,5

Apelação

Fonte: A autora, a partir de ESPÍRITO SANTO, 2019.

Constatou-se que há divergência quanto ao entendimento dos referidos Tribunais no


tocante à concessão de ordem de Habeas Corpus do preso preventivamente pela prática do crime
de descumprimento de medidas protetivas. Os julgadores do Tribunal de Justiça do Espírito
Santo não estão revogando as prisões preventivas decretadas, mesmo após alguns meses de
privação de liberdade do agressor, sustentando que “[...] não se confunde a prisão preventiva
com a antecipação da sanção a ser imposta ao coacto, pois aquela se ampara nos requisitos
fumus ‘comissi delicti’ e ‘periculum libertatis’, não sendo possível, portanto, tratar sobre a
legitimidade da constritiva com base em mera presunção. [...]”.23
Já, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, após transcurso de prazo, está
concedendo, em alguns casos, ordem de habeas corpus, por entender que, se punido, o acusado

23
ESPÍRITO SANTO. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 0015535-09.2019.8.08.0000, da Segunda Câmara
Criminal. Des. Fernando Zardini Antonio. Espírito Santo, 14 ago. 2019. Disponível em:
<http://aplicativos.tjes.jus.br>. Acesso em: 03 set. 2019.
26

teria a fixação do regime inicial de cumprimento de pena diverso do fechado ou semiaberto.


Nos autos da ação de medidas protetivas de urgência n. 70081842114, julgada pela Terceira
Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi relaxada a prisão preventiva
de acusado de descumprimento de medidas protetivas, pelo excesso de prazo, em decorrência
de o réu estar preso há seis meses sem ter havido decisão judicial.24
Ainda, nos autos do processo n. 70081553067, o órgão ministerial interpôs recurso em
sentido estrito contra decisão do juízo da Comarca de Júlio de Castilhos que, durante audiência
de custódia, não converteu a prisão em flagrante do acusado de descumprir medidas protetivas
de urgência, em preventiva. O juiz “a quo” entendeu haver dúvidas sobre a ocorrência do fato,
em decorrência de o acusado ter apresentado defesa. O Desembargador Joni Victória Simões,
ao julgar o recurso, sustentou que, pelos fatos relatados, e em análise ao caso concreto,
inexistiam elementos concretos e atuais que demonstrassem a necessidade da medida do
cárcere.25
Cabe ressaltar, também, que, nos autos do julgamento da Ação Penal n. 0005616-
85.2018.8.08.0014, da Terceira Vara Criminal de Colatina, o julgador Marcelo Feres
Bressanapresentou voto embasando sua decisão de não incidência das penas descritas no artigo
24-A da Lei Maria da Penha, no princípio da consunção, sob o argumento de que o referido tipo
penal seria apenas o meio utilizado para a prática do novo crime contra a mulher, que no caso
foi o delito de ameaça.26
Referida sentença foi objeto de ação penal pública promovida pelo Ministério Público
do Estado do Espírito Santo. Claudia Regina dos Santos Albuquerque Garcia, coordenadora do
Núcleo de Enfrentamento as Violências de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres, ao
realizar estudo sobre o caso se manifesta no sentido de que

[...] o reconhecimento da adequação do princípio da consunção se configuraria em


verdadeira desconsideração do tipo penal do artigo 24-A, que diferente do alegado, é
delito autônomo e independente, que não tem seu fim em novo crime praticado contra
a mulher [...].27

24
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70081842114, 3ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 25 de julho de 2019. Disponível em: <
https://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em 08 ago. 2019.
25
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 70081553067, 2ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 27 de junho de 2019. Disponível em: <
https://www.tjrs.jus.br/site/busca-solr/index.html?aba=jurisprudencia>. Acesso em: 10 ago. 2019.
26
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Medidas Protetivas de Urgência n. 0005616-85.2018.8.08.0014,
3ª Vara Criminal de Colatina do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, Colatina, ES, 19 de março de 2019.
Disponível em: <http://aplicativos.tjes.jus.br /consultaunificada/faces/pages/exibirDadosProcesso.xhtml>. Acesso
em: 08 ago. 2019.
27
GARCIA, Claudia Regina dos Santos Albuquerque. Estudos Atuais. Núcleo de Enfrentamento às Violências
de Gênero em Defesa dos Direitos das Mulheres. Nov. 2018, p. 08. Disponível em:
27

Algumas decisões dos Tribunais analisados são contrárias ao entendimento


jurisprudencial majoritário, que prevê ser aplicável a tipificação do crime de descumprimento
ao descumpridor da ordem judicial que defere medidas protetivas. Mas, de modo geral, na
pesquisa realizada, constatou-se que o dispositivo está sendo aplicado. Em recente decisão, a
Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul negou provimento à
apelação proposta pelo réu, sob o fundamento de que, apesar de ele estar intimado de medidas
protetivas, foi até a residência da vítima por diversas vezes. Sustentaram os desembargadores
que o fato de o acusado ter ido até a residência da vítima já consuma o crime, pois esse estava
devidamente intimado das medidas, e no crime de descumprimento a consumação independe
da prática de qualquer outro delito para sua consumação.28
A violência contra a mulher é uma realidade constante. Em razão disso, o
descumprimento de medidas protetivas de urgência não poderia ficar impune, pois suas
consequências podem ser fatais. Por outro lado, o cárcere do agressor não irá resolver o
problema. O sistema prisional brasileiro está fracassado e há necessidade urgente de mudanças.
São necessárias políticas públicas que visem à reintegração dos detentos à sociedade e,
consequentemente, a diminuição da violência e a reincidência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo verificou que a aplicação das medidas protetivas de urgência é


necessária para a vítima de violência doméstica e familiar, pois são meios para assegurar o seu
acesso rápido à Justiça, postulando providências para fazer cessar as agressões sofridas. Ainda,
constatou-se que alguns doutrinadores defendem a aplicação dos institutos previstos na Lei n.
9.009 de 26 de setembro de 1995 ao crime de descumprimento, porém tal tese não foi
recepcionada pela maioria dos julgadores, em consonância com a pesquisa de jurisprudência
realizada. A fiança judicial, também, mostrou-se um meio necessário para assegurar maior
proteção à vítima de violência doméstica, cerceando a liberdade do agressor até que sejam
averiguados os fatos ocorridos.
Conclui-se que se necessita de práticas sociais e políticas públicas para uma mudança no
pensamento e no comportamento, nas quais as antigas concepções de subordinação e de

<https://www.mpes.mp.br/Arquivos/Anexos/4cdb3e86-aa47-4811-8a46-36db6fecabdb.pdf>. Acesso em: 11 ago.


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28
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28

tratamento desigual entre os sexos masculino e feminino não serão mais aceitas. O poder de
participação social das mulheres mostra-se necessário para garantir que possam estar cientes
sobre a luta pelos seus direitos, como a total igualdade entre os gêneros.

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sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção
Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a
criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de
Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível
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30

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RIO GRANDE DO SUL. Habeas Corpus n.70081845042, 3ª Câmara Criminal. Relator: Des. Sérgio
Miguel Achutti Blattes. Porto Alegre, 25 julho 2019. Disponível em:<http://www.tjrs.jus.br>. Acesso
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RIO GRANDE DO SUL. Habeas Corpus n. 70077814101, 4ª Câmara Criminal. Des. Rogério Gesta
Leal. Porto Alegre, 14 junho 2018. Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 02 ago. 2019.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Constitucionalidade n. 19. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=199827>. Acesso em: 2019.
31

COMO SE ENCONTRA A ATUAL CONJUNTURA SOCIAL E ADMINISTRATIVA


FRENTE À APURAÇÃO E ELUCIDAÇÃO DOS CASOS DE FEMINICÍDIO NO
BRASIL PÓS ADVENTO DA LEI 13.104/15

Eduardo Vinhas Fagundes1

Resumo: O presente trabalho busca debruçar-se sobre a conjuntura social, jurídica e estatal
encontrada pós advento da lei 13.104/15 que consolidou a qualificadora do feminicídio ao artigo
121 do Código Penal e permeou seu conteúdo normativo ao rol de crimes hediondos. Outrossim,
também faz-se mister investigar à luz dos dados disponíveis no Brasil, alocado nas produções
das instituições de pesquisas e autores relevantes para a explicação de conceitos, as possíveis
problemáticas que ainda assolam a apuração e elucidação desse tipo penal no cenário jurídico
brasileiro. Ademais, revela-se necessário uma abordagem racional com respaldo em evidências
que levem à guisa de uma conclusão que fomente um responsável debate público. Da mesma
forma, indaga-se se como estão operando os atores dos poderes públicos para o enfrentamento
da violência de gênero contida nas situações fáticas, que logo, desaguam na aplicação da já
supracitada qualificadora. A partir dessa abordagem, a pesquisa mostra-se alinhada a uma das
áreas temáticas disponíveis ao I Congresso Internacional De Direito, Gênero e Conexões. Seu
método têm cunho dedutivo e sua conclusão reside nos resultados presentes em dissertações de
mestrado, doutorado, doutrinas, legislação e estudos estatísticos recentes.
Palavras chave: Feminicídio. Direitos das mulheres. Direito penal. Violência de gênero

Abstract: This research aims to capture the legal, social and state-owned conjucture following
the law number 13.104/15 came to Brazil’s legislation, which included femicide to the 121
article of regarding the Criminal Code and adressed this normative to the list of heinous crimes.
Taking that into account, arrives the need to investigate trough the available data founded in
institutes of research’s productions and relevant authors to explain certain concepts, issues
envolving the apuration of this crime in Brazil’s juridical experience. Therefore, it becomes
fundamental to use a racional approach based on evidence that take us to a conclusion that
strengthen the public debate. At the same time, inquires how public agents are operating to fight
against gender violence that involves the feminicide norm’s application. Trough this
exploration, the research works aligned with the available topics of “I Congresso Internacional
De Direito, Gênero e Conexões”. This research relies on the deductive reasoning approach,
developed through master thesis, doctoral dissertations, books, legislation and recent research
data.
Keywords: Feminicide. Women’s rights. Criminal law. Gender violence.

INTRODUÇÃO
Se depreende ainda um conteúdo normativo encantatório, que apenas trabalha em vias
de um reconhecimento formal da problemática ou um imperativo contido nas sanções do tipo

Acadêmico do 10º Semestre do Curso de Graduação em Direito da Universidade da Região da Campanha –


1

URCAMP/Bagé. Endereço eletrônico: eduardovinhasf96@outlook.com.


32

penal que em sua qualificadora pode traçar uma melhor especificação da situação fática-
jurídica?
A igualdade material, portanto, deve ser visada à luz das contingencias que desaguam
no corpo social, para que assim se enseje um norte programático estatal que dê maior amparo
aos indivíduos em condições de fragilidade, trabalhado através das evidências disponíveis.
Dessa forma, o empreendimento pretende-se traçar a luz de dados e autores que
explanem conceitos significativos para essa construção, como se encontra a atual conjuntura
fática e jurídica da problemática em questão pós o advento da lei 13.104/15. Logo, é analisado
significância que a referida norma teve no ordenamento jurídico brasileiro.
Em suma, mostra-se válido o fomento à produção científica da temática, na medida em
que trata-se de fenômeno legal recente no Brasil, denotando certa urgência para sua elucidação,
tanto por sua realidade alarmante quanto à necessidade em empreender vias resolutivas em sua
abordagem.

O ADVENTO DA LEI 13.104/15: DADOS DISPONÍVEIS E ÓBICES QUE AINDA


ASSOLAM O ENFRENTAMENTO DA PROBLEMÁTICA

Não há como aferir-se que o devido tratamento jurídico brasileiro à problemática aqui
trabalhada tenha se dado de forma repentina ou que tenha vindo à tona de forma abrupta, nem
há como compreender os marcos legais atuais sem mover-se pelas remontas históricas. Houve
paulatinamente reivindicação de direitos por parte das mulheres, desaguando em um conjunto
de documentos prescritos por órgãos internacionais com postura humanista pós-guerra, com
ênfase para a Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos.
(MARQUES, 2015, p. 110).
Dessa forma, remetendo-se ao cenário brasileiro, a luta para quebra de paradigma
incorreu no confronto de um Estado evasivo à maioria das reivindicações dos anos 60, para
outro de produção legislativa mais sólida. De maneira trabalhosa, durante os anos e perpassando
pelas delegacias especializadas na década de 1980, até a 2006, com a criação da Lei Maria da
Penha (nº 11.340), tivemos então, um dos mais significativos paradigmas jurídicos para o
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (CAMPOS, 2017, p. 10 apud Neto,
2017, pg. 22). Advento legal que ingressou no ordenamento jurídico brasileiro em 2006 após o
histórico de agressões sofridos pela Maria Da Penha, em que a OEA condenou o Estado
Brasileiro por negligencia, determinando a criação de uma lei que amparasse as vítimas de
33

agressões em âmbito doméstico (PIOVESAN; PIMENTEL, 2011, apud, MENEZES, 2018, pg.
67).
Nesse sentido, é significativo ressaltar a justificativa do ingresso da qualificadora no
ordenamento jurídico brasileiro, e da mesma forma, definir o conceito de feminicídio a luz dos
juízos aqui apresentados. Portanto, a especificação normativa da qualificadora mostra-se
imprescindível, como postula Santos (p. 94, 2018).

[...] a tipificação da conduta de matar mulheres por pertencerem ao sexo feminino é


imprescindível para a coleta de dados dos crimes de forma sistemática, com o escopo
de criação, implementação e efetivação de políticas públicas eficazes no combate às
violências contra a mulher, sendo dever do Estado cumprir com os compromissos
firmados nos acordos e tratados nacionais prevenir os feminicídios e, caso ocorram,
para investigar e sancionar aqueles que ceifam as vidas de mulheres em razão de serem
mulheres.

Termo contido na qualificadora que foi inicialmente utilizado entendido como uma
junção de elementos de “[..] base misógina, envolvendo ou se originando de maus tratos;
violência física, psicológica, sexual, econômica ou patrimonial que colocam as mulheres em
uma posição de risco e que podem culminar em sua morte violenta” (MIGUENS, pg. 19, 2018),
tendo sua primeira utilização na realização do International Tribunal on Crimes Against
Women, de 04 à 08 de março de 1976 na cidade de Bruxelas, na Bélgica, que reuniu mais de
duas mil mulheres provindas de 40 países diferentes. (MIGUENS, 2018, pg. 19). Já em sua via
legal, a qualificadora ingressa no ordenamento jurídico brasileiro contendo prescrição no
sentido de que incidirá, quando a conduta típica incorrer contra a mulher por razões da condição
de sexo feminino. A devida consideração se dará na medida em que no crime ocorre no âmbito
doméstico e familiar ou quando há um menosprezo ou discriminação à condição de mulher
(BRASIL, 2015).
Explanado breve resumo do conceito e sua origem, vale expor os dados disponíveis que
denotam a problemática. Assim, consoante com o estudo do 13º Anuário Brasileiro de
Segurança Pública, os feminicídios integram 29,6% dos homicídios dolosos de mulheres em
2018 e incorreu aumento dos casos do tipo penal desde o vigor da referida lei, em 62,7%. Assim,
revela-se também um crescimento de registros em 4% dos números absolutos, dos 1.151 casos
em 2017 para os 1.206 em 2018 (2019, pg. 109). Todavia, deve-se atentar que, como postula o
Atlas da Violência de 2019, organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e o
Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que
O ponto principal é que não se sabe ao certo se o aumento dos registros de feminicídios
pelas polícias reflete efetivamente aumento no número de casos, ou diminuição da
subnotificação, uma vez que a Lei do Feminicídio (Lei no 13.104, de 09/03/2015) é
34

relativamente nova, de modo que pode haver processo de aprendizado em curso pelas
autoridades judiciárias. (p. 39)

Por conseguinte, apesar de algumas obscuridades ainda enfrentadas, a proteção do


direito fundamental à vida, amparado em sede infra legal pela lei do feminicídio, pode
contribuir para denotarmos como estão operando os atores estatais quanto à apuração dos
fatos delituosos e seus meios processuais adequados, e da mesma maneira, identificarmos
quais são os presentes óbices que encontram-se no caminho do acesso das mulheres à justiça
(SANTOS, 2018, pg. 259).
Em pesquisa recente, coordenada pela promotora Valéria Scarance do Ministério
Público de São Paulo, intitulada Raio X do Feminicídio, revela-se que nos casos analisados
pelo estudo (364 denúncias oferecidas pelo Ministério Público em 121 municípios paulistas
entre março de 2016 e março de 2017), na parcela em que há hipótese de relação afetiva, 87%
fazem referência quanto à qualificadora. Enquanto que nos demais casos, há denúncia por
homicídio. Além disso, a mesma investigação apresenta que apenas 3% do total de vítimas
obteve medidas de proteção e 4% das vítimas fatais haviam constado o ocorrido em Boletim de
Ocorrência, aferindo-se que diante desse cenário, as medidas de proteção mostram-se
importantes instrumentos para a prevenção da morte de mulheres (BRASIL, 2018, p. 18-22).
Destarte, com escopo de elucidar a ação pública frente à problemática, o 13º Anuário
Brasileiro de Segurança Pública novamente mostra-se significante quando analisa que
[...] também é relevante pontuar que ainda não é possível concluir se a proporção entre
feminicídio em contexto de violência doméstica e feminicídios cometidos por autores
sem vínculo com as vítimas expressa a realidade, ou se as polícias ainda têm
dificuldade em identificar as motivações baseadas em gênero fora da violência
doméstica. Essa segunda hipótese está diretamente relacionada a tentativas de
diagnósticos similares feitas em outros países da América Latina (2019, pg. 109).

A dificuldade na adequação do registro compreende-se pelo marco recente da lei, em


que ainda há um processo de aprendizado por parte dos agentes públicos. Dessa forma, em sede
jurisdicional, confirma-se também que alguns dos tribunais ainda não dispõe de estatísticas,
como é o caso do TJAP, TJAL e TJRN. Entretanto, há significativa movimentação processual,
tendo registros de 2.904 novos casos de feminicídio na Justiça Estadual do país em 2016, com
tramite ao longo do ano de 13. 498 casos ao total (contando-se processos baixados e pendentes)
e proferidas 3.573 sentenças. É o que aponta o Conselho Nacional de Justiça, no estudo
intitulado, “O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha” (BRASIL, 2017, pg. 42).
35

CONCLUSÃO

À guisa de conclusão, afere-se que ainda restam alguns óbices ao enfrentamento à


temática, principalmente em relação à cultura que permeia o corpo social, que ainda trabalha
com uma lógica moral de conferir responsabilidade à mulher por portar-se ou vestir-se de
determinada maneira nos espaços públicos e privados, podendo haver consequências ao
tratamento público da problemática. Da mesma forma, há ainda dificuldade no registro dos
dados referentes ao feminicídio por parte dos agentes estatais e os números dos crimes mostram-
se alarmantes, mesmo com o advento do instrumento fundamental da qualificadora ao
ordenamento jurídico brasileiro.

Outrossim, a tipificação mostra-se adequada política pública, na medida em que pode


ser um suporte à prevenção da violência de gênero, na medida em que os operadores da
segurança pública podem ter uma maior clarividência e especificidade do crime em questão.
Com sua ausência, teríamos um diagnóstico menos apurado, ensejando um tratamento mais
genérico ao homicídio. Ademais, mostra-se de suma importância um incentivo à denúncia das
primeiras agressões por parte das vítimas, pois o feminicídio é geralmente o ápice de violência
contra mulher, que se perpetua através de um clico, começando com outras formas de agressão.

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37

MULHER SUJEITO DE DIREITOS E VÍTIMA DE VIOLÊNCIAS NA LEI


11.340/2006: DISCURSO QUE PRODUZ E NATURALIZA RELAÇÕES DE GÊNERO
DESIGUAIS

Eliada Mayara Cardoso da Silva Alves1


Elisama Maryan Cardoso da Silva Alves2
Dulce Mari da Silva Voss3

Resumo: O artigo aborda a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006, enquanto dispositivo
jurídico que visa regulamentar as relações de gênero como forma de prevenção, coibição e
punição às violências contra mulheres. Com base na vertente das teorias pós-estruturalistas,
empreende um estudo teórico que tem como objetivo analisar as contingências históricas em
que o discurso jurídico se torna legítimo na vida social e atua como tecnologia de governo das
populações e das relações de gênero, como a Lei Maria da Penha, que engendra regimes de
verdade que subjetivam “a mulher sujeito de direitos e vítima de violências”. Práticas
enunciativas que, por estarem aliadas no mesmo texto, reforçam a concepção e a posição da
mulher como submissa e frágil. Ao final, o estudo aponta a ambiguidade do saber-poder
instituído pelo discurso jurídico que ao mesmo tempo enuncia as mulheres como sujeitos de
direitos e pretende resguardá-las das violências, o que mostra a negligência por parte do Estado
Liberal na garantia da vida digna, pois às mulheres continuam ocupando de forma desigual as
estruturas sociais. A criação de mecanismos legais para combater as violências praticadas
contra as mulheres se faz necessária porque elas ainda são encaradas como sujeitos as sujeitados
aos domínios da vida social e cultural regida pelos padrões culturais machistas e o poder
patriarcal.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Lei 11.340/06. Discurso de verdade. Subjetividades.


Práticas sociais. Relações poder-saber.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Esta pesquisa tem como foco a produção discursiva da enunciação “mulher sujeito de
direitos e vítima de violências” na Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 e as relações de poder-
saber por ela engendradas que determinam um modo de ser e existir mulher na vida social.

1
Autora: Advogada; Graduada em Direito pela Universidade da Região da Campanha – URCAMP/Bagé; Pós-
graduanda em Processo Penal na Damásio Educacional, Mestranda em Ensino na Universidade Federal do Pampa
– UNIPAMPA/Bagé.
2
Coautora: Advogada; Graduada em Direito pela Universidade da Região da Campanha – URCAMP/Bagé; Pós-
graduanda em Ensino de Filosofia na Universidade Federal de Pelotas - UFPel.
ha – URCAMP/Bagé; Pós-graduanda em Ensino de Filosofia na Universidade Federal de Pelotas - UFPel.
3
Orientadora: Graduada em Estudos Sociais - Licenciatura Plena em História (1991), Especialista em Educação
(1995), Mestre em Educação (1999) e Doutora em Educação (2012) pela Universidade Federal de Pelotas.
Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA/Campus Bagé – RS), atuando na Área da
Educação nos Cursos de Graduação - Licenciaturas e na Pós-Graduação.
38

Segundo a Organização Mundial de Saúde4, o Brasil tem a quinta maior taxa de


feminicídio do mundo. Frente aos recorrentes e crescentes casos de violências contra mulheres,
a defesa dos seus direitos à dignidade, acesso à saúde, educação e trabalho, entre outros, se faz
necessária.
Entende-se que essa Lei foi instituída como dispositivo de governo das relações de
gênero pelos sistemas legislativo e judiciário brasileiro, visando a prevenção, a proteção e a
repressão dos crimes cometidos contra mulheres.
É inegável que o surgimento da Lei trouxe maior segurança às vítimas que encorajaram-
se a denunciar seus agressores. Todavia, a questão que se coloca aqui é: problematizar as
contingências históricas em que se produz violências e se naturaliza a violação dos direitos das
mulheres, o como e o que se diz na Lei acerca da “mulher sujeito de direitos e vítima de
violências”. Ou seja, que condicionantes sociais, econômicos, culturais de gênero tornam as
mulheres vítimas de violências sendo elas sujeitos de direitos? Em que medida governar as
populações, coibir e combater via judicialização às violências contra mulheres, possibilita
desnaturalizar as relações de gênero historicamente constituídas pelo machismo e patriarcado?
Para tanto, neste estudo teórico procede-se a análise arquegenealógica do discurso da
Lei, com o aporte teórico de Michel Foucault ao operar com os conceitos discurso jurídico,
relações de poder-saber e modos de subjetivação. E os estudos de gênero filiados às teorias pós-
estruturalistas para analisar a produção de enunciados, indagando: “como apareceu um
determinado enunciado, e não outro em seu lugar?”5
Perspectiva de análise arquegenealógica que, como explicam Tedeschi e Pavan6:
propõe-se a escutar a história, considerando seus acasos e descontinuidades para aprender “[...]
que atrás das coisas há algo inteiramente diferente: não seu segredo essencial e sem data, mas
o segredo que elas são sem essência ou que sua essência foi construída peça por peça a partir
de figuras que lhe eram estranhas”. Mesmo a razão, diz Foucault, nasceu do acaso, da paixão
dos cientistas, da vontade de verdade e da necessidade de superar as paixões. Trata-se de
pesquisar em educação, não para avaliar o passado em nome de uma nova verdade – pois não

4
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Folha informativa - Violência contra as mulheres. Brasília: OMS,
2019. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-informativa-violencia-
contra-as-mulheres&Itemid=820.
5
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2014, p. 33.
6
TEDESCHI, Sirley Lizott; PAVAN, Ruth. A produção do conhecimento em educação: o Pós-estruturalismo
como potência epistemológica. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 12, n. 3, p. 772-787, set./dez. 2017. p. 03.
Acesso em: 28 de set. 2019. Disponível em: http://www.revistas2.uepg.br/index.php/praxiseducativa.
39

existe nenhuma identidade preservada –, mas para analisar o que somos, enquanto enredados
pela vontade de verdade. Ainda, trata-se de uma pesquisa que busca liberar os saberes históricos
– razão, verdade, sujeito –, torná-los capazes, como diz Foucault, de oposição e de luta contra
a coerção de um discurso que se pretende unitário, formal, científico, verdadeiro.

2 AS FORMAS JURÍDICAS E A PRODUÇÃO DE VERDADES ACERCA DAS


RELAÇÕES DE GÊNERO

Para tratar sobre a enunciação da verdade “mulher sujeito de direitos e vítima de


violências” na Lei Maria da Penha, faz-se necessário empreender o estudo das práticas jurídicas
como produção discursiva que regulamenta as relações de gênero na vida social. No livro “A
verdade e as formas jurídicas”, Foucault7 por meio de conferências, analisa as contingências
históricas em que, na cultura ocidental, o discurso jurídico constituiu-se em domínio de poder-
saber que regula as práticas sociais. O objetivo das suas pesquisas foi mostrar como as práticas
sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos
objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas
de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. Trata-se do surgimento do sujeito de conhecimento
(saber homem) via a história dos domínios científicos que regulam as relações sociais, mediante
práticas de controle e da vigilância, condições históricas sob as quais a verdade jurídica aparece.
Foucault analisa alguns textos de Nietzsche, com o objetivo de provar a tese que o
conhecimento foi inventado pelos homens, que existem relações de poder até na história da
verdade. Assim, explica Foucault8: “O conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, bem
como ele não é natural, é contra- natural”. Entendimento que o leva a afirmar: “As condições
políticas, econômicas, de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de
conhecimentos, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento e, por
conseguinte as relações de verdade”.
Portanto, as práticas jurídicas assumem o estatuto de verdade que condiciona existências
humanas, domínio de saber-poder que engendra em cada época e sociedade, regimes de verdade
e formas de governar a vida social e, consequentemente, relações de gênero.
Na segunda conferência, Foucault9 discute a antiga peça grega de Édipo a partir da
análise de Deleuze e Guattari sobre o Complexo de Édipo de Freud. O objetivo é demonstrar

7
FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo
Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002, p. 07.
8
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 17)
9
FOUCAULT, M (idem, 2002, p. 29)
40

as formas jurídicas presentes na sociedade grega na época. Bem como a análise metodológica
dos discursos como jogos estratégicos de ação e de reação, de pergunta e de resposta, de
dominação e de esquiva, como também de luta.
Para Foucault10, a primeira forma jurídica grega aparece em Ilíada, na parte em que
Homero descreve a disputa numa corrida de carruagens entre Menelau e Antíloco11. Assim
explica Foucault12, “Eis uma maneira singular de produzir a verdade, de estabelecer a verdade
jurídica: não se passa pela testemunha, mas por uma espécie de jogo, de prova, de desafio
lançado por um adversário ao outro”.
Já na Idade Média menciona que obter a verdade fazia-se com base no depoimento do
acusado. Não era propriamente a compatibilidade do depoimento com os fatos que o fazia valer,
mas sim o status social como títulos, testemunhos de notáveis. Nessa situação, prevalecia muito
mais a força de quem alegava, do que qualquer outra coisa. Sendo possível observar essas
formas jurídicas como existentes até hoje nos modernos tribunais: a testemunha e a prova.
Na terceira conferência, Foucault13 refere-se a história do processo, apresenta formas
jurídicas ao longo do tempo, percebe-se uma transição da justiça privada para uma justiça
pública. Nesse sentido, analisa a reelaboração da teoria do sujeito, a constituição histórica de
um sujeito do conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias
que fazem parte das práticas sociais.
Esse sistema de práticas jurídicas foi desaparecendo no final do século XII e no começo
do século XIII, em razão dos meios mais importantes para assegurar a circulação de bens ter se
tornado a guerra, a rapina e a ocupação. Assim, os detentores do poder quiseram comandar as
decisões judiciárias também ao seu favor14.
Para Foucault15, agora a justiça vai se impor do alto, pois os indivíduos não terão mais
o direito de resolver seus litígios, ao contrário, deverão submeter-se a um poder exterior a eles
que se impõe como poder judiciário e poder político. Aparece também a figura do procurador,
representante do soberano, do poder externo lesado pelo dano, e que substituirá a vítima como

10
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 32-22)
11
A competição possui uma espécie de “juiz”, uma “testemunha”, uma pessoa que está à observar e depois dar seu
veredicto. Nessa competição, Menelau acusa Antíloco de ter trapaceado, sendo que assim Menelau põe seu
adversário à prova: Pede para que Antíloco, caso não tenha trapaceado, jure sua honestidade diante de Zeus, e que
esse o castigue se fizer um falso juramento. Diante da situação, Antíloco admite que trapaceou. Menelau consegue,
assim, sua “prova cabal”.
12
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 32)
13
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 53)
14
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 62)
15
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 64-66)
41

parte ofendida. A noção de crime e dano será substituída pela de infração e o soberano é não
somente a parte lesada, mas a que exige reparação.
Assim, foi toda essa transformação política que tornou não só possível, mas necessária
que o método de produção da verdade fosse substituído pelo inquérito (conjunto de atos e
diligências que tem por objetivo descobrir e apurar a verdade de fatos alegados ou acusações,
sindicância, etc.). Ou seja, o inquérito é uma determinada maneira do poder se exercer16.
Na quarta conferência, Foucault17 retrata as formas de práticas penais que caracterizam
a sociedade disciplinar e as relações de poder oriundas a essas práticas penais. Em outras
palavras, a reorganização do sistema judiciário e penal.
No final do século XVIII e início do século XIX houve uma reorganização do sistema
judiciário e penal em diversos países da Europa e do mundo. Os mecanismos penais já não se
importam mais com o fato criminoso, mas em controlar a conduta antes e após o delito18.
Para finalizar, Foucault19 inicia a última conferência abordando o nascimento das
ciências de exame que estão em relação com a formação e estabilização da sociedade capitalista,
dando continuidade a algumas noções desenvolvidas anteriormente, acerca do que ele
chamou sociedade disciplinar (panoptismo). Vejamos Foucault:20 “É uma forma de poder que
se exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância individual e contínua, em forma de
controle e punição e recompensa e em forma de correção”.
Durante o século XIX21, outras formas de controle passaram a vigorar, além da força de
trabalho através de baixos salários frente a cargas horárias elevadas: o controle de como gastar
o tempo livre e as economias do operário.
As formas jurídicas que Foucault explica ao longo do texto contribuíram para o
entendimento de que a verdade jurídica é produto de um contexto histórico e social e, portanto,
não é algo universal e incontestável, tendo em vista que varia de acordo com o paradigma
vigente. Demonstra que toda relação social e produção da verdade está relacionada ao poder.
Assim, o direito enquanto resultado das relações sociais deixa de ser imparcial ou isento. Pois,
sendo o discurso jurídico fruto das práticas do poder, logo o contexto social influenciará na sua
produção.

16
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 68-78)
17
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 79)
18
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 79-85)
19
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 103)
20
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 103)
21
FOUCAULT, M. (idem, 2002, p. 117)
42

Nesse contexto, o discurso da Lei Maria da Penha não pode ser considerado um
fenômeno isolado. Uma lei materializada linguisticamente num suporte não pode ser descrita e
nem apontada como um sistema autônomo, mas sim como um percurso de discursos, cujos
efeitos de sentido se produzem e reproduzem nos enunciados discursivos que emanam do saber
jurídico. Por isso, consideramos relevante discutir e problematizar a maneira como a Lei Maria
da Penha institui uma prática enunciativa acerca da “mulher” que, ao mesmo tempo, identifica-
as como “sujeito de direitos e vítima das violências”, o que acaba por estabelecer efeitos desse
discurso nas relações de gênero. Pode-se, então, dizer que, em toda sociedade, a produção e
circulação de discursos coloca a linguagem em funcionamento, engendrando relações de poder-
saber e regimes de verdade.

3 A LEI MARIA DA PENHA E AS POSSIBILIDADES DE MULHERES


(RE)EXISTIREM

No Brasil, crimes contra as mulheres acontecem constantemente. É de se reconhecer


que as desigualdades entre homens e mulheres foram construídas historicamente pela cultura
machista e patriarcal que naturaliza a posição de submissão das mulheres em relação aos
homens, o que, de certo modo, autoriza e banaliza atos de violência física, psíquica ou
intelectual contra mulheres.
Naturalização e banalização que reforçam comportamentos sociais e relações de gênero
nas quais o homem é forte e dominador e a mulher frágil e submissa. Essa foi uma das bandeiras
do feminismo ao destacar a dominação do homem no seio familiar. No discurso da Lei Maria
da Penha, observamos indícios da mulher como sujeito assujeitado pela posição de inferioridade
e submissão. Efeito das contingências históricas e sociais que produziram e fizeram proliferar
discursos do “ser mulher”.
Assim, esclarece Louro22 que: A construção dos gêneros e das sexualidades dá-se
através de inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas situações, é
empreendida de modo explícito ou dissimulado por um conjunto inesgotável de instâncias
sociais e culturais. É um processo minucioso, sutil, sempre inacabado. Família, escola, igreja,
instituições legais e médicas mantêm-se, por certo, como instâncias importantes nesse processo
constitutivo.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v 19. n. 2 –


22

maio/agos. 2008, p. 02.


43

A Lei 11.340/06 é uma das práticas legislativas e jurídicas que age no processo
constitutivo de produção da “mulher como sujeito de direitos e vítima das violências” ocorridas
dentro dos lares e em outros espaços institucionais. Maria da Penha Maia Fernandes, cujo nome
é dado à Lei nº 11.340/20006, é um biofarmacêutica cearense e foi casada com o professor
universitário Marco Antonio Herredia Viveros. Em 1983, ela sofreu a primeira tentativa de
assassinato, quando levou um tiro nas costas enquanto dormia. Viveros foi encontrado na
cozinha, gritando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes. Desta
primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica. A segunda tentativa de homicídio
aconteceu meses depois, quando Viveros empurrou Maria da Penha da cadeira de rodas e tentou
eletrocutá-la no chuveiro23.
Condenado em duas ocasiões, o réu não chegou a ser preso, o que gerou indignação na
vítima, que procurou auxílio de organismos internacionais, culminando com a condenação do
Estado Brasileiro, em 2001, pela Organização dos Estados Americanos (OEA), por negligência
e omissão em relação à violência doméstica, recomendando a tomada de providências a respeito
do caso. No mesmo relatório, foi recomendado que fossem tomadas medidas para evitar
acontecimentos semelhantes como, por exemplo, a criação de uma legislação específica para
coibir a violência doméstica e familiar perpetrada contra a mulher, além do pagamento de uma
indenização à Maria da Penha, pelo Estado24.
Dessa forma, o surgimento da Lei Maria da Penha só é possível porque temos um
somatório de acontecimentos. O caso da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes soma
a muitos outros. E, apesar desse caso somar-se a milhares de outros da mesma natureza,
distingue-se deles porque Maria da Penha buscou órgãos internacionais para legitimar a
denúncia de violência contra a mulher.
O discurso da Lei Maria da Penha faz referências a padrões, regras e valores que
caracterizam modelos de conduta incertos na formação discursiva da violência doméstica e
familiar praticada contra a mulher25.

23
FERNANDES, Maria da Penha Maia. Sobrevivi... posso contar. 2. ed. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2012,
s/p.
24
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 10.
25
MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei Maria da
Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018, p. 09.
44

Nos enunciados discursivos dos artigos 1°, 2° e 3° da Lei 11.340/200626, observamos a


indicação do objeto legal, o que revela o conteúdo essencial da matéria regulada, e os
esclarecimentos prévios sobre o assunto:

Art. 1° Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, nos termos do § 8° do art. 226 da Constituição Federal, da
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a
Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do
Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra
a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de
violência doméstica e familiar (BRASIL, 2006).

Criada com o intuito de resguardar e amparar os direitos das mulheres, a lei prevê e
estabelece ações e mecanismos para coibir a violência, seja ela doméstica ou em casos em que
trabalhadoras são agredidas em seu ambiente de trabalho e familiar, quando envolvem pessoas
que tenha laços de parentesco, vínculos afetivos presentes ou passados ou que convivam na
mesma casa.
Neste sentido, pontua Moura27 que observa-se o exercício do poder disciplinar através
do discurso da Lei ao “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”,
tornando os sujeitos objetos construídos e normalizados pelas relações de poder-saber, a partir
das tecnologias sociais baseadas no saber jurídico. Nesse ínterim, os enunciados “coibir” e
“prevenir” do intradiscurso constroem efeitos de sentido de ilusão de proteção do sujeito mulher
através da legislação e impedem a visão quanto aos elementos de dominação, embora sempre
haja resistência, já que a violência continua existindo.
Portanto, observa-se a formação discursiva jurídico-governamental impondo um
tratamento diferenciado ao sujeito mulher nos casos de violência doméstica e familiar. Por estar
presente uma formação discursiva do sujeito mulher como subjetivação de fragilidade, de
proteção especial, criadas pelo discurso social.
Ademais, vejamos:

Art. 2° Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,


renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas as oportunidades e facilidades

26
BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8
ago. 2006. Seção 1, p. 1. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm.
27
MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei Maria da
Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018, p. 10.
45

para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento
moral, intelectual e social28.

O sujeito enunciador remete ao discurso patriarcal de submissão feminina, ao


reconhecer que os problemas referentes à opressão social de discriminação em relação à mulher
ainda existem e que, com o advento da Lei Maria da Penha, deverão ser eliminados ou sua
intensidade reduzida. Esse enunciado legal produz discursivamente modos de subjetivação do
sujeito mulher como submissa e desprotegida, discriminada socialmente, que somente será
protegida pelo Estado, ou seja, como uma estratégia de governamentalidade que irá suprir as
formas de discriminação29. Essa prática enunciativa também retoma interdiscursivamente o
enunciado jurídico do artigo 5°, caput, do texto constitucional de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(BRASIL, 1988)

Se a Constituição Federal, lei maior dentro do saber jurídico, assevera que “todos são
iguais perante a lei”, por que, em 2006, a necessidade de um texto infraconstitucional com o
mesmo discurso? Porque há a necessidade de um enunciado jurídico, um dispositivo de
segurança específico para o sujeito mulher? Esse tratamento retoma a fragilidade atribuída
historicamente a esse sujeito e constrói um efeito de sentido de reafirmação da desigualdade,
pois se há necessidade de garantir ao sujeito mulher o status de igualdade, o sujeito enunciador
acolhe que ela é desigual frente aos demais cidadãos, o que acaba por fixar e naturalizar a
posição de submissão que o sujeito “mulher vítima de violências” ocupa.
Não se trata de negar a necessidade da Lei frente a crescente situação de violências que
muitas mulheres estão expostas. Contudo, não basta coibir e punir os crimes sem que sejam
transformadas as culturas machistas e patriarcais que negam as possibilidades de as mulheres
decidirem suas próprias vidas, sem que sejam garantidas condições dignas de vida às mulheres,
como prevê a Lei:

Art. 3° Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos


direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia,

28
BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8
ago. 2006. Seção 1, p. 1. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm.
29
MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei Maria da
Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018, p. 12.
46

ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à


dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. 30

Neste enunciado vislumbramos o exercício da governamentalidade agindo sobre todo


corpo social, ou seja, há o controle da população a partir da ação de governar a vida do sujeito
mulher. Observamos que, ao assegurar o direito “à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à
educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania,
à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”31 ao sujeito mulher,
há a responsabilidade estatal pela condição de vida dessa população, visto que não é qualquer
tipo de vida dispensada à mulher, mas uma ação do poder sobre a vida que garanta uma
cidadania plena32.
Desse modo, a Lei reconhece que às mulheres não são concretamente sujeitos de
direitos, embora trata-se de direitos humanos e não apenas das mulheres em situação de
violência. Também há a construção do efeito de sentido por meio do silenciamento de que,
antes da Lei Maria da Penha, o sujeito mulher não tinha acesso a nenhum desses direitos: vida,
segurança, saúde, alimentação, educação, cultura, moradia, acesso à justiça, esporte, lazer,
trabalho, cidadania, liberdade, dignidade, respeito e convivência familiar e comunitária, já que
não havia condições para o efetivo exercício deles33.
Então, fica a questão: o mesmo Estado Liberal que coloca sob a força da lei a
necessidade de garantia dos direitos sociais, e não o faz, decide por engendrar novos
dispositivos jurídicos, como a Lei Maria da Penha, para tentar sanar a violência contra as
mulheres. Parece que ao insistir num saber-poder de regulação da população e das relações de
gênero, o discurso judiciário não penetra no âmago da questão: Por que as mulheres são vítimas
de violências?

30
BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8
ago. 2006. Seção 1, p. 1. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm.
31
BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo, Brasília, DF, 8
ago. 2006. Seção 1, p. 1. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm.
32
MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei Maria da
Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018, p. 13.
33
MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei Maria da
Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018, p. 13.
47

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, compreendemos a Lei Maria da Penha como uma tecnologia de governo
de vida, isto é, ela se insere em uma rede de práticas discursivas e não-discursivas que se
inscrevem num conjunto de discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões
regulamentares, leis, medidas administrativas, proposições filosóficas, morais, filantrópicas
etc34.
A Lei Maria da Penha é, então, uma tentativa de regulação dos sujeitos sob dois aspectos
importantes: um que se relaciona à possibilidade de intervenção na vida de cada um dos
governados, já que ela regula relações consideradas de âmbito privado (vida doméstica e
familiar) e outro que se refere à participação dos governados na sua elaboração. Em busca de
um controle sobre a relação conflituosa entre os sujeitos, o discurso da lei constrói efeitos de
sentido, produzindo modos de subjetivação do sujeito mulher marcados pelo sofrimento e
agressão, tentando redimir a presença da submissão feminina por meio de um discurso que
demonstra que a mulher foi, por muito tempo, um sujeito silenciado em muitos aspectos
sociais35.
O Estado assume posição de regular e garantir a proteção da mulher. Mas é preciso ir
além dessas criações de mecanismos institucionais e judiciais. Deve-se analisar a questão
discursiva e desnaturalizar o modo como a sociedade segue estabelecendo as relações de gênero
desiguais.
É preciso uma desubjetivação, no sentido de que não há um discurso capaz de definir a
mulher, seja como sujeito de direitos, seja como vítima de violências, não há uma mulher, são
mulheres que lutam, que resistem, mas que também, por muitas vezes, aceitam resignadas uma
posição que as impede de quebrar as amarras de uma vida precária, indigna.
O importante a ressaltar aqui é que, na perspectiva foucaultiana, as análises discursivas
pretendem colocar em evidência a imposição de sentidos, lutas pelo poder da palavra, num certo
foco específico de relações de poder; ora, essas lutas não são verticais somente, elas existem
lado a lado, por todos os lados, e não são linearmente compreensíveis ou compreendidas36.

34
FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 6. ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017, p. 138.
35
MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei Maria da
Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018, p. 15.
36
FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault revoluciona a pesquisa em educação? PERSPECTIVA,
Florianópolis, v. 21, n. 02, p. 371-389, jul./dez. 2003, p. 10.
48

Embora seja inegável a importância da regulamentação da Lei Maria da Penha – Lei


11340/2006, como movimento de visibilidade da mulher em situação de violência, na medida
em que as mulheres são definidas e reguladas de acordo com normas institucionais nem sempre
acolhedoras.
Mas, a condição de gênero e a sexualidade é produzida pela linguagem e na cultura,
através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e das leis e também,
contemporaneamente, através dos discursos dos movimentos sociais e dos múltiplos
dispositivos.
Outras relações são possíveis e experimentadas pelos afetos, amar e ser amada/o são
também ensaiadas e ensinadas na cultura, são diferentes de uma cultura para outra, de uma
época ou de uma geração para outra. E hoje, mais do que nunca, essas formas são múltiplas. As
possibilidades de viver os gêneros e as sexualidades ampliaram-se. As certezas acabaram. Tudo
isso pode ser fascinante, rico e também desestabilizador. Mas não há como escapar a esse
desafio. O único modo de lidar com a contemporaneidade é, precisamente, não se recusar a
vivê-la37.
Portanto, há que se buscar a promoção efetiva dos direitos das mulheres em nosso País,
desnaturalizar relações de poder-saber marcadas pela hegemonia machista e/ou pela
heteronormatividade patriarcal que, ao longo do percurso da história ocidental, justificam e
naturalizam a violação aos corpos das mulheres. Cabe a nós mulheres (re)existir e (trans)formar
a história em outras histórias.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação penal especial. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Diário Oficial [da] União, Poder Executivo,
Brasília, DF, 8 ago. 2006. Seção 1, p. 1. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm.

FERNANDES, M. P. M. Sobrevivi... posso contar. 2. ed. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2012.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Foucault revoluciona a pesquisa em educação?


PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 21, n. 02, p. 371-389, jul./dez. 2003.

FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2014.

37
LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v 19. n. 2 –
maio/agos. 2008, p. 7.
49

_____. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e


Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2002.

_____. Microfísica do Poder. Organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado.


6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v


19. n. 2 – maio/ago. 2008.

MOURA, N. B. de. Relações de poder e modos de subjetivação: uma análise discursiva da Lei
Maria da Penha. Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 7, n. 1, p. 148-164, jan./abril 2018.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Folha informativa - Violência contra as mulheres.


Brasília: OMS, 2019. Acesso em: 27 de set. 2019. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5669:folha-
informativa-violencia-contra-as-mulheres&Itemid=820.

TEDESCHI, Sirley Lizott; PAVAN, Ruth. A produção do conhecimento em educação: o Pós-


estruturalismo como potência epistemológica. Práxis Educativa, Ponta Grossa, v. 12, n. 3, p.
772-787, set./dez. 2017. p. 03.
50

NECESSIDADE DO DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS DA


MAGISTRATURA FRENTE ÀS CAUSAS ENVOLVENDO A VIOLÊNCIA CONTRA
AS MULHERES

Lucas Gonçalves Abad1


Francine Nunes Ávila2

"No dia que for possível à mulher amar em sua força e


não em sua fraqueza, não para fugir de si mesma, mas
para se encontrar, não para se renunciar, mas para se
afirmar, nesse dia o amor tornar-se-á para ela, como
para o homem, fonte de vida e não perigo mortal".
(SIMONE DE BEAUVOIR)3

Resumo: O presente artigo busca discutir a necessidade do desenvolvimento de competências


da magistratura frente às causas envolvendo situações de violência contra as mulheres. Para
tanto, a partir de uma pesquisa básica, de natureza qualitativa, buscou na doutrina e documentos
institucionais e legais definir os aspectos materiais e conceituais a respeito da tutela
jurisdicional-legal no enfrentamento à violência contra as mulheres, bem como discutir o
desenvolvimento de competências da magistratura no âmbito da capacitação de magistrados
para atuar nas causas de enfrentamento de violências contra às mulheres.

Palavras-chaves: Competências. Violência. Mulher. Magistratura.

INTRODUÇÃO
Marco importante no combate à violência contra as mulheres foi esculpido no ano de
2006 com a edição da Lei Federal nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Ao
tratar dos atos abusivos contra as mulheres no âmbito familiar, a Lei Maria da Penha destaca o
importante papel jurisdicional do Estado na proteção à mulher, em combate as violações da
dignidade e dos Direitos Humanos das mulheres.
Durante o decorrer da história da humanidade a naturalização do processo violento das
relações sociais e familiares legitimou a violência contra a mulher, de forma que as situações
de violações dos direitos humanos para mulheres e consequente a vulnerabilidade feminina
tornaram-se características da sociedade atual, marcada por um regime social de natureza
patriarcal e sexista.

1
Doutorando em Educação, pela PUCRS, Mestre em Educação, pela PUCRS. Pedagogo, Neuropsicopedagogo e
Gestor de Serviços Jurídicos e Notariais. Graduando em Direito, pela IDEAU e Pós-graduando em Direito
Processual Civil, pela UNINTER. E-mail: lucasgoncalvesabad@gmail.com
2
Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade FEEVALE. Bolsista de Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil. Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. Graduada em Direito pela Universidade da Região da
Campanha-URCAMP. Coordenadora da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do
Brasil, Subsecção Bagé/RS. Professora. Advogada
3
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro, 1967.
51

O “Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil”4, de Júlio Jacobo


Waiselfisz, destaca que a preocupação com a violência contra as mulheres é incipiente, tendo
em vista a existência deste fato desde os primórdios da humanidade.
Ainda, Waiselfisz (2015) ressalta que importante instrumento de combate ao
feminicídio5 no Brasil foi a Lei nº 13.104/2015, que classifica este crime como hediondo e no
caso de a vítima estar em situação de vulnerabilidade, gera agravantes à pena cominada ao ato
delituoso.
Dessa forma, para a efetivação da tutela jurisdicional é primordial que a(o)
magistrada(o) desenvolva competências6 necessárias para lidar com situações dessa natureza,
de forma que a partir dos seus conhecimentos, habilidades e atitudes possa desenvolver ações
em consonância com o ordenamento jurídico que promovam além da proteção a prevenção às
situações de violência contra a mulher em todos os âmbitos da sociedade.
O presente artigo busca discutir a necessidade do desenvolvimento de competências da
magistratura frente às causas envolvendo situações de violência contra as mulheres. Para tanto
está dividido em duas seções, sendo a primeira abordando os aspectos materiais e conceituais a
respeito da violência contra as mulheres, fazendo uma abordagem histórica social e jurídica, e
o segundo tratando da tutela jurisdicional-legal no enfrentamento à violência contra as
mulheres.
Com a finalidade de aprofundar as discussões, a segunda seção apresentada e discute o
desenvolvimento de competências profissionais a partir da atuação da magistratura por
intermédio de ações de capacitação promovidas pelo Judiciário e com destaques legais que
importem no estímulo ao desenvolvimento dessas competências da capacitação de magistrados
para atuar com causas de enfrentamento à violência contra as mulheres.
Ao final a discussão se dará traçando debates a respeito de políticas de
formação/capacitação de magistrados na atuação às causas envolvendo violências contra as

4
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: FLASCO,
2015.
5
De acordo com Waiselfisz (2015, p.7), feminicídio é entendido como “o as agressões cometidas contra uma
pessoa do sexo feminino no âmbito familiar da vítima que, de forma intencional, causam lesões ou agravos à saúde
que levam a sua morte”.
6
Para o presente estudo, utilizar-se-á a definição de competências a partir de Fleury e Fleury (2006), os quais
destacam que “o conceito de competência é pensado como um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes
que justificam um alto desempenho, na medida em que há também um pressuposto de que os melhores
desempenhos estão fundamentados na inteligência e na personalidade das pessoas” (FLEURY; FLEURY, 2006,
p. 28)
52

mulheres, como forma de delinear possibilidades aplicáveis na prática do exercício da


jurisdição.

1. A LUTA DAS MULHERES POR IGUALDADE NO BRASIL

A violência contra a mulher e sua histórica dominação vem sendo rompida muito
lentamente no Brasil.
Ao analisarmos o contexto histórico, percebemos a opressão da mulher que desde os
primórdios foi explorada pelos colonizadores em terras brasileiras, praticando violações das
mais altas em corpos negros, índios e, de forma diversa, mas não menos opressiva, em corpos
brancos.
A família, a igreja e o modelo eurocentrista do padrão social mantiveram (e ainda
colaboram) para uma sociedade machista e patriarcal, estabelecendo protagonismo limitado ao
papel de mãe e esposa, como se a mulher não pudesse (ou não devesse) ter o mesmo ciclo de
ascensão do homem, ou que neste buscar sempre houvesse a necessidade da maternidade e
casamento como a comprovação do sucesso.
Para Teles7, que na sua obra traz um recorte histórico brasileiro e o movimento
feminista, resta evidente que os processos de subjugação e resistência no decorrer das etapas
históricas do Brasil, apontando a imutabilidade da condição de nenhum protagonismo feminino
no contexto social no Brasil colônia e império, porém na história não contada há diversos relatos
do quanto as mulheres foram cruciais na manutenção dos seus territórios em tempo de guerra,
no cultivo das fazendas, no trato com os escravizados e contribuíram de forma sobremaneira
para uma suposta libertação, condescendentes ou não com as verdadeiras intenções e busílis do
aspecto econômico e não moral da “libertação” dos escravos.
Independente das considerações necessárias de posicionamento dos autores sobre o
tema da escravização dos corpos negros e a utopia da democracia racial no Brasil 8, certo é que
as mulheres tiveram protagonismo na manutenção das suas casas, fazendas e na relação com os
escravizados, relações essas que em não poucos casos chegaram a ser de uma aderência maior
que a coisificação comum dos corpos negros daquela época.
Com o êxodo rural, a “urbanização” e o processo de industrialização no país, o papel da
mulher, embora culturalmente ainda dado à maternidade e cuidado da família foi se

7
TELES, Maria Amélia. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Braziliense, 1999.
8
FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos
da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. 3ª ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1971.
53

modificando na medida em que viraram força de trabalho da família. O pai, chefe de família
que tudo coordenava na situação de família tradicional, se vê superado pelos filhos e até pelas
filhas no mercado de trabalho em virtude da situação geracional e vê na mulher uma mínima
independência na medida em que é a ponte do relacionamento nas relações de parentesco e
compadrio9, as quais foram importantes e fundantes nesse tempo.
A mulher começa a adquirir um tanto de liberdade e protagonismo com a força de
trabalho e com a procura da mão de obra das lidas domésticas para as camadas média superior
e altas das cidades e nos trabalhos artesanais como costura, conquistando um sentido jamais
experimentados nas sociedades tradicionais.10
As lutas feministas europeias ecoaram em nossas terras e com o acesso de raríssimas
mulheres no ensino superior, na imprensa e em outros lugares de poder jamais antes ocupados
fez eco ao início do movimento feminista no Brasil, o qual é o grande responsável pelas
conquistas que hoje temos e por toda a consciência dos desafios que ainda devemos enfrentar.
É das lutas das mulheres a resistência com a criação de movimentos anti-facistas, a
conquista do sufrágio feminino (apesar de nenhuma representatividade, contudo), resistindo
inclusive ao golpe militar de 64, seja pegando em armas ou mantendo o pensamento
progressista que norteou a luta das mulheres em toda a sua existência.
É de salientar que nenhuma luta política/ideológica foi capaz de contemplar o
protagonismo feminino, tanto que não havia espaço, por óbvio, no militarismo conservador e
ditatorial, tampouco nos meandros do comunismo, revelando esta interseccionalidade11 da
exclusão e dominação, vez que a luta de classes tampouco preocupava-se com as questões de
gênero, pelo menos não em seu bojo principal.
O ano de 1975 foi um divisor de águas e uma centelha que inflamou novamente a luta
das mulheres no Brasil através da promoção do Ano Internacional da Mulher pela Organização
das Nações Unidas - ONU. Os anos entre 1975 a 1985 restaram fixados como a Década das
Nações Unidas para a Mulher. Assim houve grande apelo internacional para a luta das mulheres

9
DURHAN, Eunice. A Caminho da Cidade. Editora Perspectiva S.A: São Paulo, 1973.
10
Por sociedades tradicionais utilizaremos aqui o conceito da Antropóloga Eunice Durhan, a qual define que a
organização do trabalho e a organização social vigentes nas sociedades tradicionais referem comunidades presas
à agricultura de subsistência, em de isolamento relativo, na qual se estabeleceram padrões culturais próprios.
Baseada na grande maioria em um grupo familiar representado pela família conjugal (homem-mulher-filhos), em
que a característica fundamental do grupo conjugal é a dominância paterna.
11
Para Carla Akotirene interseccionalidade é um conceito pensado como uma categoria teórica que focaliza
múltiplos sistemas de opressão, em particular, articulando raça, gênero e classe.
54

e o reconhecimento dos seus direitos, causando burburim também na imprensa brasileira com
a abertura da imprensa ao movimento feminista e a circulação do Jornal Nós Mulheres.12
Embora é sabido que o movimento feminista tem sua carga elitista nessa época pré-
redemocratização, até mesmo pelo acesso do conhecimento a poucas mulheres e pelas lutas se
darem muito em torno dos anseios das mulheres brancas, letradas, muitas lésbicas e
pertencentes a classes superiores, outros feminismos ganham força e destaque e atingem
inclusive as classes populares na luta por creches por exemplo, o que vai impulsionar e fazer
um movimento totalizante nas lutas e anseios das mulheres no Brasil, porque mesmo que
conservadas em si nos padrões hegemônicos da família, enquanto modelo eurocentrista de
família constituída por homem e mulher brancos, heteros, cisgênero e filhos nas mesmas
condições, nas quais a mulher se insere enquanto dona de casa, ainda nessa condição e no tempo
mais atual faz-se necessária a luta por direitos mínimos do Estado, sentimento muito maior se
analisarmos as mulheres trabalhadoras.
Nasce dessa época, mais propriamente da I Conferência Mundial sobre a mulher em
1975 a obrigação (pelo menos formal) dos Estados signatários o dever de desenvolverem
medidas legais e políticas públicas no sentido de igualdade de gênero e proteção da mulher.
Nesse contexto de surge a primeira modificação legislativa importante em relação à
mulher no campo do Direito de Família que foi a Lei do Divórcio, datada de 1977. Embora seu
tom conserve o machismo e replique o modelo patriarcal, corresponde a uma forma de
libertação da instituição do casamento, pelo menos na questão legal, já que para igreja segue
sendo eterno e indissolúvel até os dias presentes.
Sucederam-se no âmbito internacional importantes conferências no mesmo sentido, a
citar a II Conferência Mundial sobre a Mulher, em Compenhage, em 1980, a III Conferência
Mundial sobre a Mulher, em Nairóbi, no Quênia, em 1985, e a Conferência Mundial dos
Direitos Humanos, em Viena, em 1993, na qual se estabelece o marco formal, jurídico e
histórico em que a violência contra a mulher é reconhecida como violação dos direitos
humanos.
Entra ratificações parciais do texto e ressalvas atinentes a direito de família e outras
formas de conservadorismo, seguiu o Brasil negligenciando os preceitos construídos
internacionalmente desde 1975 e embora a Constituição de 1988 garanta a equidade esperada,
no aspecto material ela não veio e está a engatinhar até os dias atuais.

12
TELES, Maria Amélia. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Braziliense, 1999.
55

No que tange às políticas públicas, empurradas internamente pelos internacionais e


alavancadas pelo movimento feministas foi criado em 1985 o Conselho Nacional de Direitos
da Mulher, o qual era vinculado ao Ministério da Justiça, tendo por escopo eliminar a
discriminação de gênero assegurar à mulher espaços de participação política, cultura e
econômica, Conselho que em 2003, passou a integrar a Secretaria de Políticas para Mulheres,
com participação mista do governo e sociedade civil organizada. No ano de 2015 foi criado o
Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, o qual fundiu as
secretarias especiais das Políticas de Promoção da Igualdade Racial, de Direitos Humanos, e de
Políticas para as Mulheres, extinto pelo governo Bolsonaro em 2018, criando o MDH —
Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, presidido pela Ministra Damares
Alves, uma Pastora de Igreja Evangélica, fundamentalista religiosa conhecida por seu
posicionamento conservador de esperar que as mulheres voltem a ser donas de casa para ter o
respeito que merecem, implicada também a processos nada ortodoxos de cura gay, dentre outros
absurdos inimagináveis em um período dito democrático, mas de fato sombrio no Brasil atual,
contrariando a legislação internacional, do qual o Brasil é signatário e todas as lutas e avanços
até aqui conquistados.
Embora aqui não se queira tratar do feminismo em si, não há como se dissociar as lutas
feministas com o avanço da legislação em prol das mulheres no Brasil e no mundo, sendo
emblemático e inafastável entender ainda o protagonismo da Maria da Penha no olhar
legislativo e nas políticas públicas no Brasil.
No ano de 1983, Maria da Penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio por parte
de Marco Antonio Heredia Viveros, seu marido, que declarou à polícia que o fato teria sido
uma tentativa de assalto. A vítima sobreviveu e após quarto meses internada passando por
cirurgias ao retornar o marido a manteve em cárcere privado durante 15 dias e tentou eletrocutá-
la durante o banho.
A sua luta por justiça culminou com a lei que leva o seu nome, porque no seu caso
específico o poder judiciário somente levou a julgamento o agressor oito anos depois, o qual
foi sentenciado a 15 anos de prisão, mas recorreu em liberdade.
Na luta por efetividade da sentença e da própria justiça, em 1998 Maria da Penha
conseguiu levar o caso ao Centro de Justiça o Direito Internacional (CEJIL) e ao Comitê Latino-
americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), os quais denunciaram
o caso para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (CIDH/OEA). A posição do Estado Brasileiro, embora signatário da Convenção
56

Americana sobre Direitos Humanos e demais convenções relativas a erradicação da violência


contra mulher permaneceu inerte durante todo o processo, sendo responsabilizado
posteriormente por omissão e negligência, sendo determinada pela referida Comissão que o
Brasil tomasse medidas capazes de garantir a proteção das mulheres, culminando com a
legislação hoje vigente.

2. A TUTELA JURISDICIONAL-LEGAL NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA


CONTRA AS MULHERES

Violência doméstica é todo e qualquer tipo de violência que ocorra no meio familiar,
isto é, que habitam um ambiente em comum. Pode acontecer com pessoas que possuem laços
sanguíneos ou que são unidas de forma civil, como acontece com o casamento.
A violência contra a mulher é um fenômeno antigo que por muito tempo foi invisível
perante o nosso ordenamento jurídico, pois por muito tempo foi banalizado, muito pela cultura
da sociedade que era visivelmente patriarcal.
Em 2006 entrou em vigor a Lei nº 11.340, Lei Maria da Penha, a qual criou mecanismos
para combater a violência doméstica e familiar contra a mulher de maneira específica, trazendo
no texto legal o termo “violência de gênero”.
A Lei Maria dispõe sobre a violência doméstica e familiar contra a mulher, penalizando
qualquer ação ou omissão baseada em discriminação de gênero que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito doméstico,
familiar e em qualquer relação íntima de afeto.
A Lei proporciona às vítimas atendimento policial preferencialmente feito pelo sexo
feminino, evitando o constrangimento em fazer a denúncia e relatar os fatos da violência na
presença de um homem. A autoridade policial poderá encaminhar a vítima para hospital,
fornecer transporte para ela e seus dependentes, e, se for o caso, acompanhá-la para a retirada
de seus pertences do local onde foi praticada a violência, além de informar os direitos garantidos
a ela nessa situação.
A lei ainda traz a garantia de que a vítima e as testemunhas da violência não tenham
contato com o agressor, garantindo também o direito de medidas protetivas de urgências, como
o encaminhamento à programas de proteção e atendimento da Delegacia da Mulher, o
afastamento do agressor do ambiente familiar, a proibição de frequentar determinados lugares
em comum com à agredida, restrição ou suspensão de visitas aos dependentes e prestação de
alimentos provisórios.
57

Adendos importantes foram trazidos nos anos de 2018 e 2019 à lei como o mecanismo
para punir àquele que descumpre as medidas protetivas de urgência com previsão de pena de
detenção de 03 (três) meses a 01 (um) ano, não excluindo a aplicação de outras sanções cabíveis,
além do imediato afastamento do lar do agressor verificada a existência de risco atual ou
iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar,
ou de seus dependentes, pela autoridade judicial, pelo delegado de polícia, ou pelo policial.
A lei Maria da Penha foi um passo significativo para assegurar as mulheres a integridade
física, psíquica, moral, sexual e patrimonial, possuindo caráter preventivo e punitivo.
Uma das principais mudanças promovidas pela Lei nº 11.340/06 com a edição da Lei
Maria da Penha é o tratamento jurídico dado às infrações praticadas no âmbito das relações
familiares. Uma das alterações produzidas por essa lei é a previsão da inaplicabilidade da Lei
nº 9.099/1995 nas infrações contra a mulher no âmbito doméstico. Dessa forma, os crimes e
contravenções penais praticadas no âmbito das relações familiares contra a mulher,
independentemente da pena em abstrato que lhes é cominada, não são mais de competência dos
Juizados Especiais Criminais. Isso significou reconhecer que a violência contra a mulher, seja
ela configurada pela prática de contravenção penal ou pela prática de crime, não pode ser tratada
como infração de menor potencial ofensivo.
É contraditório reconhecer a violência contra a mulher como infração de menor
potencial ofensivo, sendo que os tratados internacionais, inclusive ratificados pelo Brasil,
reconhecem tal violência como violação de direitos humanos. Essa violência afronta os direitos
humanos da mulher na medida em que viola a mulher nas esferas moral, psicológica, física,
sexual e, em alguns casos, também na patrimonial.
Em decorrência da inaplicabilidade da Lei nº 9.099/1995, as infrações que envolvem a
violência doméstica e familiar contra a mulher não podem mais ser investigadas por termo
circunstanciado, não incidindo mais nessas infrações o procedimento sumaríssimo. Além disso,
a lesão corporal contra a mulher no âmbito da violência doméstica, independentemente de sua
natureza, passou a ser de ação penal pública incondicionada. Isso porque, pelo Código Penal,
os crimes de lesão corporal seriam todos de ação penal pública incondicionada.
Entretanto, a Lei nº 9.099/1995 apresenta, em seu art. 88, a previsão de ação penal
pública condicionada à representação para as lesões leves e culposas. Assim, com a vigência
dessa lei, passou-se a entender, em nosso sistema jurídico que, as lesões leves e culposas seriam
de ação penal pública condicionada à representação e as lesões (dolosas) graves e gravíssimas
seriam de ação penal pública incondicionada. Todavia, como a Lei Maria da Penha afastou a
58

incidência da lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, voltou a vigorar para as infrações
cometidas contra a mulher no âmbito da violência doméstica a regra do Código Penal, ou seja,
todas as lesões corporais cometidas contra a mulher nas relações de família são de ação penal
pública incondicionada.
Outra alteração significativa incluída pela Lei nº 11.340/2006 foi a proibição da
substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direito de prestação pecuniária
ou de outra natureza. Dessa forma, a Lei Maria Da Penha impossibilitou a substituição da pena
privativa de liberdade por prestação pecuniária de qualquer natureza. Tal proibição demonstra
grande avanço, eis que era corriqueira a aplicação dessa substituição da pena privativa de
liberdade pela imposição de pagamento de cestas básicas, como se fosse possível reparar a
dignidade da vítima meramente com uma prestação pecuniária e, na maioria dos casos, de valor
ínfimo.
A Lei Maria da Penha, ao retirar da competência dos Juizados Especiais Criminais, o
processamento e julgamento das infrações que envolvem violência doméstica contra a mulher,
criou os Juizados de Violência Doméstica familiar contra a Mulher, e, enquanto não estivessem
estruturados, a competência cível e criminal foi atribuída às varas criminais.
Por fim, destaca-se também a determinação de providências a serem adotas pelo Estado
no sentido de criação de políticas públicas visando à conscientização social, com foco em
medidas preventivas e em um modelo multidisciplinar no tratamento das vítimas de violência
doméstica. Essa previsão atende à exigência internacional prevista nos artigos 7º, 8º e 9º da
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, que
instituem os deveres do Estado, enfatizando a necessidade da atuação Estatal, constituindo-se
um marco no combate à violência contra mulher no âmbito das relações familiares, impedindo
assim que tais infrações fossem tratadas como crimes de menor potencial.
Nada mais justo que a violência contra a mulher represente violação de direitos
humanos, contraditório é tratá-la meramente como infração de menor potencial ofensivo, e
trouxe inúmeros avanços, contudo, também há pontos a serem observados, como o fato de que
a lei estabeleceu os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, mas não
obrigou sua criação, não estipulou data nem período para a adequação das justiças estaduais e
federais à nova sistemática.
Contudo, de nada adianta o juiz impor o cumprimento de tal medida aos agressores, se
não há espaços que realizem esse tratamento e concretizem essa medida.
59

Enfim, o advento da Lei Maria da Penha representou um marco na luta da violência


doméstica contra a mulher, contudo, verifica-se que ela foi apenas um primeiro impulso nessa
luta que ainda precisa avançar e, para isso, é necessário não só a atuação estatal, mas também
a conscientização e a cobrança por parte da sociedade.

3. DESENVOLVIMENTO DE COMPETÊNCIAS DA MAGISTRATURA:


CAPACITAÇÃO DE MAGISTRADOS PARA ATUAR COM CAUSAS DE
ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

Diante da importância da tutela jurisdicional com o intuito de promover o enfrentamento


da violência contra a mulher, surge a necessidade de desenvolvimento de competências
daqueles que lidam na linha de frente com os casos que envolvem esse tipo de violência e que
necessitam de atenção e cuidado no atendimento às vítimas de violência doméstica.
Como abordado na introdução deste artigo, a necessidade de se conceituar competências
como o conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes (FLEURY; FLEURY, 2006) 13
permite-nos compreender que a formação e atuação do magistrado deve ser pautada em um
conjunto teórico, prático e metodológico de forma que possa desenvolver as competências
necessárias para lidar com casos complexos como estes.
Nesse sentido, tratando das competências e seu desenvolvimento durante a trajetória
profissional, Guy Le Boterf (2003)14 discorre que a competência do profissional parte do
pressuposto que o mesmo deve saber administrar uma situação complexa, envolvendo saberes
diversos que necessitam ser desempenhados na busca pela efetivação de suas funções, no caso
do magistrado, da entrega da tutela jurisdicional pleiteada.
Sendo assim, saber agir com pertinência, saber mobilizar em um contexto, saber
combinar, saber transpor saber aprender e saber aprender a aprender, e saber envolver-se,
compreendem o conjunto de saberes que formam as competências dos profissionais a partir de
Le Boterf (2003).
Para Le Boterf (2003, p. 39) a “capacidade de adaptação em situações inconstantes e
complexas, a meios turbulentos e ao inédito resgata o que os gregos chamam de métis15”, uma

13
(FLEURY; FLEURY, 2006).
14
LE BOTERF, Guy. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.
15
Ao definir a métis grega, Le Boterf (2003, p. 39) destaca que a métis traduz-se na capacidade de adaptar-se
permanentemente e modificar seus modos de agir e mover-se em função dos movimentos e dos contextos, e
“segundo a tradição grega, três tipos de homem devem saber encarnar essa inteligência prática e astuciosa: o piloto,
o médico e o sofista. Os três devem brilhar na arte de conjecturar (tekmairesthai), isto é, saber adivinhar e abrir
um caminho por meio de balizas, mantendo, ao mesmo tempo, os olhos fixados no objetivo a alcançar. Esse
60

vez que o profissional, seja ele da área que for deverá manter-se atento às modificações e
situações contextuais para então saber exatamente os momentos de agir.
Nesse contexto, enfrentando as situações de violência doméstica, deve então o magistrado
desenvolver e encontrar seu métis para lidar com as situações urgentes que clamam a
necessidade de uma atuação eficaz em situações de extrema violência e vulnerabilidade das
vítimas de violência doméstica.
Ainda, ao desenvolvimento de suas competências, deve o magistrado, partindo da teoria
do desenvolvimento de competências de Le Boterf (2003), mobilizar-se em um contexto, uma
vez que não apenas deve possuir os conhecimentos ou habilidades, mas detentor de ações
contextuais, de maneira a proporcionar maior efetividade na entrega da tutela jurisdicional à
vítima de violência doméstica.
A necessidade de instrumentalizar os saberes e as capacidades16 a partir de recursos que
dispõe (como as ferramentas legais e judiciais necessárias à finalidade da tutela requerida), faz
com que o magistrado possa utilizar-se de todos os recursos disponíveis, para analisar a situação
da autora, o contexto social em que vive e as situações que promovam e despertem o ato
violento, podendo então atuar com precisão em suas decisões.
A partir de então, utilizando dos recursos disponíveis na aplicabilidade da tutela legal
que dispõe, necessita ainda desenvolver a competência abrangida pelo saber combinar, de forma
que possa integrar saberes múltiplos não somente de sua formação, mas da equipe
multiprofissional disponível no judiciário a fim de dar o suporte à vítima de violência, sabendo
aplicar as técnicas disponíveis de ressocialização e reinserção da vítima na sociedade, de
maneira individual e característica de cada caso.
Portanto, considerando a subjetividade de cada sujeito e de cada caso concreto, em seus
diferentes contextos, ações e possibilidades de proteção e prevenção, deve ainda o magistrado
“saber transpor” não se limitando, enquanto profissional.
Segundo Le Boterf (2003) necessita o profissional abster-se “à execução idêntica de
tarefas únicas e repetitivas”, ou seja, isso pressupõe que “ele deve ter condições de resolver
problemas ou de enfrentar situações, e não um problema ou uma situação”, de forma a analisar
caso a caso as situações complexas que possam envolver todas as demandas que são postas ao
magistrado na sua atuação diária, demonstrando que quanto maior for o nível e a qualidade da

‘conhecimento oblíquo’, esse ‘saber conjectural’ convém tanto ao piloto, que segura o leme de direção, ao médico,
que ausculta sintomas proteiformes, como ao sofista, mergulhado no fervor da discussão”.
16
LE BOTERF, Guy. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.
61

formalização frente aos casos concretos, aliadas ao aumento de sua capacidade de transpor às
situações diversas, mais competente desenvolver-se-á o profissional magistrado.
Sobre este aspecto, segundo Araken de Assis (2015), é conferido ao juízo a prática com
equidade de suas ações, de forma que:

o julgamento segundo a equidade significa, conforme estipula o art. 723. Parágrafo


único, nas causas de jurisdição voluntária, ampla margem para o juiz, sem observar o
critério da legalidade estrita, “adotar em cada caso a solução que considerar mais
conveniente ou oportuna” (ASSIS, 2015, p. 928)17

Nesse sentido, a aprendizagem e o envolvimento com os casos que são colocados a sua
jurisdição devem ser ferramentas constantes no desenvolvimento dessas competências
requeridas ao magistrado na atividade jurisdicional de enfrentamento às causas envolvendo
vítimas de violências.
Ainda que a legislação e doutrina processualista reforcem a necessidade da atuação
imparcial do magistrado, “a equidistância representa uma característica fundamental da
intervenção de órgão estatal no conflito das partes”18. Entretanto, não se deve confundir a
imparcialidade do magistrado com a neutralidade, de forma que sua imparcialidade decorre de
normativa legal processual e tem o condão de garantir o andamento do processo de maneira a
tornar eficaz a tutela jurisdicional praticada pelo magistrado, enquanto a neutralidade quando
praticada pelo mesmo faz com que não pratique os saberes necessários ao exercício de suas
competências frente aos delicados casos envolvendo as vítimas de violência.
Como forma de proporcionar capacitação aos magistrados e servidores do judiciário
brasileiro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), promove anualmente, como ação
institucional, desde 2007, a Jornada de Trabalhos sobre a Lei Maria da Penha. De acordo com
o CNJ a Jornada tem auxiliado na implantação de varas especializadas e a capacitação de
magistrados e servidores, além de ter proporcionado a criação do Fórum Permanente de Juízes
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid)19.
Importante destacar que em setembro de 2018 foi atualizado o Manual de Rotinas e
Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de forma que

17
ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. Parte Geral: institutos fundamentais. Volume II. Tomo I. São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 928.
18
ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. Parte Geral: institutos fundamentais. Volume II. Tomo I. São
Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 964.
19
Segundo o CNJ, o Fonavid tem o intuito de “conduzir permanente e profundo debate da magistratura a respeito
do tema, bem como incentivou a uniformização de procedimentos das varas especializadas em violência doméstica
e familiar contra a mulher”. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes-2-2/violencia-contra-a-
mulher/jornadas/
62

demonstra a necessidade de qualificação, capacitação e preparo de magistrados na atuação em


varas especializadas nessa matéria.
O Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher20 destaca os critérios definidores de uma estrutura mínima para a gestão e o
funcionamento de Varas Criminais e de Execução Penal, de forma que os casos sejam atendidos
com celeridade e qualidade, de maneira uniforme em todo o território nacional, além de prever
o número máximo de processos por vara, permitindo assim uma atuação mais eficaz por parte
do judiciário e atenção específica aos casos concretos envolvendo violência doméstica e
familiar contra a mulher.
Ainda o documento discorre a respeito dos procedimentos desde as medidas protetivas
de urgência, da fase pré-processual à fase processual e ao processo de execução da pena, bem
como destaca as atuações dos auxiliares de justiça e da importância da equipe multidisciplinar,
de forma que as intervenções com a vítima e com o agressor/réu sejam pautadas em
procedimentos específicos de atuação judicial.
De outra forma, o Manual parte da Política Judiciária Nacional de enfrentamento à
violência contra as mulheres no Poder Judiciário, instituída pela Portaria nº 15, de 8 de março
de 2017, que prevê dentre outras ações o objetivo de “fomentar a política de capacitação de
magistrados e servidores em temas relacionados às questões de gênero e de raça ou etnia por
meio das escolas de magistratura e judiciais”.
Nesse sentido, a partir do aparato administrativo, legal e judicial, os magistrados e suas
equipes multiprofissionais, no atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar,
desenvolvem suas aptidões e qualidades pessoais e profissionais de forma a responder à
demanda social de tutelar o direito das mulheres que buscam no Judiciário a tutela jurisdicional
necessária.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto procurou trazer um relato histórico e social da luta dos direitos das mulheres no
Brasil, os mecanismos legislativos criados, sobretudo com a abordagem mais específica da Lei
Maria da Penha em os seus consecutivos legais.

20
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher. Brasília, CNJ, 2018. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2011/02/b3f18ac2f32a661bd02ca82c1afbe3bb.pdf . Acesso em: 30 set. 2019.
63

Também, impõe destacar a importância do poder judiciário, sobretudo dos magistrados


no recorte proposto, no acolhimento da vítima, no enfrentamento da violência, como um elo
fundamental para o sistema de proteção das mulheres vítimas de violência.
Nesse sentido, é indispensável o desenvolvimento de competências para que o
magistrado possa atuar de forma construtiva e assecuratória no enfrentamento à violência contra
as mulheres, já que a exposição ao sistema processual também causa dor e sofrimento à vítima
que precisa estar acolhida e somente assim estará no momento em que o magistrado
individualmente e a magistratura enquanto classe institucionalmente organizada tiver um
posicionamento e olhar uníssono sobre tais enfrentamentos e formas de lidar com a vítima e
com a violência sofrida, o que deve se dar com a capacitação constante e efetiva dos magistrados
e servidores do judiciário brasileiro

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. Parte Geral: institutos fundamentais. Volume II.
Tomo I. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2015. p. 928.

BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo. Vol 2: A Experiência Vivida, Difusão Europeia do Livro,


1967.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados de


Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Brasília, CNJ, 2018. Disponível
em:<https://www.cnj.jus.br/wp-
content/uploads/2011/02/b3f18ac2f32a661bd02ca82c1afbe3bb.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019.

DURHAN, Eunice. A Caminho da Cidade. Editora Perspectiva S.A: São Paulo, 1973

FERNANDES, Florestan; BASTIDE, Roger. Brancos e negros em São Paulo: ensaio


sociológico sobre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de cor
na sociedade paulistana. 3ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971.

FLEURY, A.; FLEURY, M. T. L. Estratégias empresariais e formação de competências: um


quebra cabeça caleidoscópio da indústria brasileira. Ed. atlas 3ª ed. São Paulo, 2006

LE BOTERF, Guy. Desenvolvendo a competência dos profissionais. Porto Alegre: Artmed,


2003.

TELES, Maria Amélia. Breve história do feminismo no Brasil. São Paulo: Braziliense, 1999.

WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil.


Brasília: FLASCO, 2015
64

A DESIGUALDADE DE GÊNERO NO CAMPO – UM RETRATO DE EXCLUSÃO


DAS TRABALHADORAS NAS COMUNIDADES RURAIS TRADICIONAIS

Quélen Kopper1
Francine Nunes Ávila2

Resumo: O presente trabalho problematiza a questão identitária da mulher do campo, com


recorte na análise das comunidades rurais tradicionais com organização de trabalho e
organização social caracterizadas pela agricultura de subsistência, sob o olhar do seu
reconhecimento social e biográfico, no contexto da dominação masculina ainda mais permeada
no meio rural.

Palavras chave: Gênero. Rural. Mulher. Reconhecimento.

Nas sociedades rurais tradicionais3 que ainda resistem paradoxalmente nas sociedades
complexas hodiernas, a separação de gênero no âmbito da agricultura familiar separa um tipo
de trabalho específico para homens e outro para mulheres, hierarquizando-os, da mesma forma
como se hierarquizam os gêneros de modo geral, na medida em que a mão de obra e os frutos
do trabalho masculino recebem maior relevância, valor econômico e reconhecimento,
demarcando sobretudo no ambiente de agricultura familiar a desigualdade de gênero.
Essa afirmação é a priori compreendida e sustentada na simbologia do trabalho
doméstico destinado historicamente à mulher, atrelando o feminino como um estado biológico
e cultural de disponibilidade de servir ao outro, disponível e solícita, sem, contudo, exigir nada
em troca, pois nasceu para essa função dentro do contesto social da agricultura familiar hoje
vigente.

1
Possui graduação em Direito pela Universidade da Região da Campanha (1998) e especialização em Gestão
Pública. Atualmente é advogada - Escritório de Advocacia Kopper Paiva, Juíza leiga - Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul e professora da graduação e pós-graduação da Faculdade IDEAU, campus Bagé e
pós graduanda em Direito de Família pela Verbo Jurídico. Foi coordenadora do Observatório da Criminalidade
em Bagé e Advogada e mediadora no Núcleo de Justiça Comunitária, ambos são serviços prestados pela Prefeitura
Municipal de Bagé.
2
Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade FEEVALE. Bolsista de Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil. Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. Graduada em Direito pela Universidade da Região da
Campanha-URCAMP. Coordenadora da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do
Brasil, Subsecção Bagé/RS. Professora. Advogada.
3
Por comunidades rurais tradicionais utilizaremos aqui o conceito da Antropóloga Eunice Durhan, a qual define
que a organização do trabalho e a organização social vigentes nas sociedades tradicionais rurais referem
comunidades presas à agricultura de subsistência, em de isolamento relativo, na qual se estabeleceram padrões
culturais próprios. Baseada na grande maioria em um grupo familiar representado pela família conjugal (homem-
mulher-filhos), em que a característica fundamental do grupo conjugal é a dominância paterna.
65

Essas relações de gênero também podem ser compreendidas por relações sociais e de
poder, ligado a identidade social a partir do nascimento, naturalizando os papeis do homem e
da mulher por uma falsa construção biográfica e social.
Embora sabe-se que a desigualdade de gênero não é um atributo apenas das mulheres
em situação rural, os ambientes tradicionais rurais têm em si uma forte estrutura patriarcal, com
restrito ou nenhum poder decisório na economia familiar, embora desenvolvam também
atividade na lavoura e grande parte do labor rural desenvolvido pelo homem do campo, além
da lida doméstica.
Apesar disso, no universo estudado da mulher rural que vive nas comunidades rurais
tradicionais em agricultura de subsistência esse feminino é visto como membro da família que
presta uma ajuda, mas não como a detentora de uma força de trabalho, uma trabalhadora rural,
uma profissional do campo.
A Constituição Federal de 1988 equiparou homens e mulheres em relação aos direitos
sociais, após muitas lutas encabeçadas por movimentos sociais femininos. Destaca-se que
anterior à citada constituição, mulheres não tinham direito à aposentadoria rural, somente
garantiam o benefício previdenciário de pensão por morte do seu esposo, o que atrelava a
necessidade de “libertação” apenas com a morte de um marido, ou seja, a conservação e
necessidade da instituição do casamento.
Quando se fala no trabalho e papel da mulher no universo da agricultura familiar de
subsistência na zona rural importante perceber dois principais eixos de questões. De um lado
temos a mulher na atividade doméstica, no cuidado com as crianças, na manutenção da casa, na
alimentação e em todos os afazeres que integram as necessidades internas da família e não
representam protagonismo na sociedade em que vive, apesar da importância para o grupo
familiar. De outro lado temos força laboral ativa da mulher na participação da colheita, lida
com animais de pequeno porte (porcos, galinhas, etc) e inclusive no tambo com vacas de leite,
manuseio de ferramentas.
Nas duas situações mencionadas se manifesta a invisibilização da mulher rural,
inclusive não sendo reconhecida a duplicidade de trabalho pelo grupo familiar, tampouco há
uma inserção e integração das mulheres nos processos produtivos da agricultura familiar e o
reconhecimento social em um espaço rural onde ainda se mostra presente a ideia de que a
mulher é um apêndice do homem, com menciona Simone de Beauvoir.
66

Portanto, opera-se necessariamente o condicionamento da mulher em sua socialização


à alienação de servir ao homem, operando a dominação masculina denunciada por Bourdieu
(1989).
Importante percebermos que o Estado brasileiro, à espelho dos movimentos
internacionais iniciados pela ONU em 1975, preocupou-se (de forma bastante retardatária para
que se diga a verdade) em estabelecer políticas públicas para a proteção dos direitos das
mulheres e para igualdade de gênero. Porém, conforme salienta Fraser (2001) necessário aliar
a essa iniciativa a criação de uma política cultural da diferença combinada com política social
de igualdade, através de remédios para injustiça econômica, redistribuindo renda e
reorganizando a divisão do trabalho, também aponta que deve haver um remédio para injustiça
cultural ou simbólica que envolva o reconhecimento positivo da diversidade, o que ocasiona ao
seu sentir uma mudança abrangente nos padrões sociais de representação.
Para Fraser as demandas feministas ao desejar abolir a divisão do trabalho segundo o
gênero tendem a promover a desdiferenciação do grupo, mostrando que a política do
reconhecimento e a política da redistribuição podem ter objetivos contraditórios. Enquanto a
primeira tende a promover a diferenciação do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la.
Ao tratarmos desse tema, há que se falar também no conceito de identidade, marcado
por indefinições e controvérsias, entretanto, envolve processos de subjetivação reflexiva pelas
quais a identidade é construída.
Woodward (2005) afirma que identidade é relacional, depende, para existir, de algo fora
dela, que fornece condições para que ela exista, assim, identidade, é marcada pela diferença.

Observe a frequência com que a identidade nacional é marcada pelo gênero. No nosso
exemplo, as identidades nacionais produzidas são masculinas e estão ligadas a
concepções militaristas de masculinidade. As mulheres não fazem parte desse cenário,
embora existam, obviamente, outras posições nacionais e étnicas que acomodam as
mulheres (WOODWARD, 2005, p. 9).

A identidade depende da diferença, segundo Woodward, “uma das mais frequentes e


dominantes dicotomias é, como vimos no exemplo de Lévi-Strauss, a que existe entre natureza
e cultura”.
A escritora feminista francesa Hélène Ci-xous adota o argumento de Derrida sobre a
distribuição desigual de poder entre os dois termos de uma oposição binária, mas
concentra-se nas divisões de gênero e argumenta que essa oposição de poder também
é a base das divisões sociais, especialmente daquela que existe entre homens e
mulheres (WOODWARD, 2005, p. 50)

Para Ricoeur (2006), “(...)identidade é o primeiro ponto tratado no discurso do


reconhecimento(...)”. O referido autor entende que o reconhecimento de si, passa pelo plano da
67

consciência reflexiva, o que denomina também de hermenêutica de si. As considerações das


capacidades que encontram expressão na forma do ‘eu posso’, abrindo caminho para
problemática do ser reconhecido, bem como, na capacidade narrativa reflexiva, o sujeito como
identidade narrativa, também são pontos presentes no reconhecimento.
De acordo com Honneth (2003), processo da individualização está ligado ao pressuposto
de ampliação das relações de reconhecimento mútuo.

(...) a reprodução da vida social se efetua sob o imperativo de um reconhecimento


recíproco porque os sujeitos só podem chegar a auto relação prática quando aprendem
a se conceber, da perspectiva normativa de seus parceiros de interação, como seus
destinatários sociais (HONNETH, 2003, p. 155).

Para Fraser (2001), deve ser desenvolvida uma teoria crítica de reconhecimento que
identifique uma defesa somente daquelas versões da política cultural da diferença que possam
ser combinadas coerentemente com a política social da igualdade a partir da relação traçada
entre redistribuição e reconhecimento, conceituando igualdade social e reconhecimento
cultural. Para iniciar, precisa se compreender a injustiça econômica informada por um
compromisso com a igualdade e a injustiça cultura ou simbólica.
Assim, para Fraser é preciso complementar o conceito de reconhecimento com o de
redistribuição, já para Honneth as questões de justiça distributiva seriam tratadas melhor no
quadro da Teoria do Reconhecimento, pontuando aqui uma discordância quanto aos conceitos
a partir das reflexões do processo subjetivo, no olhar de cada autor.
O que se tem majoritariamente na literatura é que a identidade está em construção, pois
constantemente a partir de mecanismos de reflexão subjetiva, alinhas se aos fenômenos que
ocorrem a partir da vivência e experiência dos sujeitos, nas suas relações sociais, econômica,
política e cultural.
Para os autores filiados à ideia de identidade elemento dinâmico, ancorado no processo
da vida social, está filhada a corrente chamada interacionismo simbólico.

Goffman (1982) defende que a construção indenitária, enquanto um contínuo processo


social, permite o abandono de uma identidade e a procura de uma nova, pelo que os
sujeitos acumulam uma multiplicidade de “apresentações do eu”. Também Mead
(1967) realça o facto de qualquer pessoa dividir-se em vários “eus”. Para Lewis e
Phoenix (2004), todo o indivíduo acumula um conjunto de diferentes identidades,
simultaneamente, mediante as diferentes posições sociais ocupadas. (apud SANTOS,
2016, p. 03)
68

Woodward, 2005, pontua que a construção da identidade está tanto no campo simbólico
quanto social. A luta para afirmar as diferentes identidades tem causas e consequências
materiais.
O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é
necessário para a construção e a manutenção das identidades. A marcação simbólica
é o meio pelo qual damos sentido a práticas e a relações sociais, definindo, por
exemplo, quem é excluído e quem é incluído. E por meio da diferenciação social
que essas classificações da diferença são “vividas” nas relações sociais
(WOODWARD, 2005, p. 13)

Por fim, podemos dizer que as identidades são fluidas e cambiantes, variando quanto a
intensidade e a complexidade das dimensões envolvidas, uma identidade desenvolvida no setor
rural está imerso o ambiente natural e de saberes tradicionais.
A prática social cotidiana de uma comunidade rural é orientada por saberes tradicionais
que expressam diferentes culturas, em especial no campesinato onde muitas vezes há
reprodução de práticas de outras nacionalidades trazidas por imigrantes, juntamente com suas
crenças.
Os recursos naturais disponíveis no ambiente rural também são utilizados e manejados
de acordo com as práticas e saberes guiados por uma identidade étnica, influenciada pelo
processo histórico de colonização, ou seja, a identidade está relacionada ao ambiente natural e
a saberes tradicionais, em constante mudança já que executado em conjunto com suas relações
sociais.
Nesse sentido o reconhecimento social das atividades produtivas da mulher rural
perpassa pela (re) definição da identidade sócio profissional da mulher, que implica na análise
dos conceitos de reconhecimento e interpretação dos fenômenos sociais.
Na teoria de reconhecimento do Honneth (2003) o desrespeito por alguma das formas
de reconhecimento gera as lutas em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor,
nas relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social.
As formas individuais das capacidades e formas sociais suscetíveis de fazer a transição
entre o reconhecimento de si e o reconhecimento mútuo perpassa pelas reivindicações coletivas
e são submetidas a apreciação e aprovação pública. Na questão da mulher rural,
tradicionalmente, desempenha suas atividades produtivas na unidade familiar, entretanto, a sua
identidade é construída, durante a história, como “dona de casa”, como atividade de reprodução
social para família e não como contribuição econômica, o que impossibilita seu reconhecimento
social como agente econômico.
69

Para Honneth (2003), o vínculo entre representações e práticas sociais se expressa pela
mediação simbólica, que resulta na configuração de uma identidade, que se atam laços sociais
em instauração.
Ainda, dentro da concepção de Honneth, toda análise de processo construção
indenitária, como no caso de gênero, mediante uma interação cotidiana, observa se a busca do
indivíduo pelo reconhecimento identificação e reconhecimento atestação.

Dir-se-á que há uma grande distância entre as identidades que implicam capacidades
pessoais e as identidades que dizem respeito à instauração do vínculo social. No
primeiro caso, tratava-se do reconhecimento-atestação. Ora, a identidade dos atores
sociais engajados em uma ação coletiva não se deixa expressar tão diretamente em
termos de reconhecimento-atestação, mesmo se leva em consideração a complexidade
das articulações induzidas pela diversidade das capacidades em jogo. Mas, por mais
próxima que "a prática da história" queira se manter da "história das práticas" -
segundo o título do artigo- manifesto de Bernard Lepetit, a reflexão sobre as
identidades coletivas não pode escapar a uma sofisticação de grau mais elevado que a
identidade-ipseidade dos sujeitos individuais da ação. ( HONNETH, 2003, p. 152).

Tomando como base os paradigmas estabelecidos por Hegel e Mead, Honneth vê a


constituição da identidade, quando os sujeitos usam essas representações para se verem e
formarem uma avaliação de si mesmos, com base nas reações das outras pessoas e nas
representações feitas dos “outros”. Assim, podemos dizer, que a constituição da identidade da
mulher rural e o seu reconhecimento está também sendo construída através da interação social,
a medida que esta busca a sua liberdade individual e sua autonomia.
A mulher rural embora tenha sua identidade e reconhecimento intersubjetivo atrelado
as relações de solidariedade, relações jurídica, de amor e vínculos afetivos (dimensões de
reconhecimento proposta por Honneth), principalmente de ordem familiar, visto o local de sua
atuação e interação social, em oposição tem o seu não reconhecimento pela privação de direitos
frente ao patriarcado o desrespeito ao amor pelos maus tratos, ameaças a integridade física e
psíquica, tendo a sua honra e dignidade ofendida como membro de uma comunidade cultural,
consequente desrespeito a solidariedade. Nesse sentido se percebe avanço dos movimentos
sociais e a criação de políticas sendo trabalhadas para atender este processo de emancipação,
motivando as ações coletivas e transformações na buscando uma evolução moral.
No caso das mulheres rurais, podemos pensar também na questão da solidariedade (ou
etnicidade) proposta por Honneth (2003), como última esfera de reconhecimento, que remete à
aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na
comunidade. Por meio dessa esfera, gera se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações
pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade.
70

No que tange aos desdobramentos do conceito de Axel Honneth feitos pela pensadora
americana Nancy Frase, que também comunga da ideia de que o reconhecimento das diferenças
são motivações para lutas de grupos que defendem a nacionalidade e etnicidade, assim, pode se
dizer que a identidade profissional das mulheres rurais pode ser alterada, deixando de estar
vinculada apenas ao lar a medida que se usam e tomam conhecimento dos conteúdos materiais
e simbólicos dos processos da vida social do trabalho, mudando sua condição dentro da unidade
de produção familiar a partir de suas lutas combinadas com política social de igualdade,
relacionada a redistribuição e reconhecimento cultural.

O remédio para a injustiça econômica é alguma espécie de reestruturação político-


econômica. Pode envolver redistribuição de renda, reorganização da divisão do
trabalho, controles democráticos do investimento ou a transformação de outras
estruturas econômicas básicas. Embora esses vários remédios difiram
significativamente entre si, doravante vou me referir a todo esse grupo pelo termo
genérico “redistribuição”. O remédio para a injustiça cultural, em contraste, é alguma
espécie de mudança cultural ou simbólica (...). Pode envolver, também, o
reconhecimento e a valorização positiva da diversidade cultural (...) (FRASER, 2011,
p. 232).

Fraser, explica que a luta de reconhecimento promove a diferenciação do grupo, ao


chamar atenção para especificidade de algum grupo e a luta de redistribuição busca abolir os
arranjos econômicos que embasam as especificidades do grupo, ficando os dois tipos tem
tensão. Assim apresenta o dilema da distribuição-redistribuição.

Quando lidamos com coletividades que se aproximam do tipo ideal da classe


trabalhadora explorada, encaramos injustiças distributivas que precisam de remédios
redistributivos. Quando lidamos com coletividades que se aproximam do tipo ideal da
sexualidade desprezada, em contraste, encaramos injustiças de discriminação negativa
que precisam de remédios de reconhecimento. No primeiro caso, a lógica do remédio
é acabar com esse negócio de grupo; no segundo caso, ao contrário, trata-se de
valorizar o “sentido de grupo” do grupo, reconhecendo sua especificidade (FRASER,
2011, p. 233).

Por fim, pode se dizer que Nancy Fraser compartilha da ideia de Honneth, entretanto
em relação a imposição de todos os desejos dos sujeitos, pondera que o paradigma indenitário
de Honneth carece de critérios para garantir a auto realização, pois nem toda reivindicação pode
ser defendida, como concretização dos anseios extremistas, neonazistas e terroristas.
De acordo com Krischke, 2003, pg. 02, “Nancy Fraser (1999) e Axel Honneth (2003),
enfatizam a necessidade de agregarem-se políticas de reconhecimento sócio-político-cultural às
tradicionais políticas de redistribuição econômica”, as quais se verificou no contexto brasileiro
sobretudo no Governo Lula, com a implantação de políticas públicas de redistribuição sócio-
econômica e sócio-culturais e que se entrelaçam com reconhecimento entre as diferenças de
71

identidade, as quais parecem ter declinado abruptamente no atual momento político conservado
do país. Fraser, afirma que a justiça social acontece quando presente a redistribuição e o
reconhecimento, afirmando também que nenhum deles por sí só é o suficiente. Fraser crítica
Honneth em relação ao conceito de reconhecimento.

Axel Honneth e Charles Taylor, dois dos principais teóricos do reconhecimento, o


interpretam como uma questão de auto-estima. Considero, ao contrário, que é uma
questão de justiça (...) O que torna o não-reconhecimento um erro moral é a sua
negativa a indivíduos e grupos da possibilidade de participação paritária com os
demais numa interação social (...) Essa norma paritária apela a uma concepção de
justiça que pode ser aceita por pessoas que aderem a visões doutrinárias divergentes,
desde que concordem assumir termos eqüitativos de interação sob condições de
pluralismo valorativo”. (Ibid. p.5) 11 ( apud. KRISCHKE, 2003, p. 08)

Para Krischke, 2003, pg. 08, Fraser aborda a questão da perspectiva de que o
“(...)reconhecimento é uma reparação à injustiça, e não a satisfação de uma necessidade
genérica (...) Assim, as formas de reconhecimento exigidas pela justiça em cada caso, dependem
das formas de não-reconhecimento que demandam reparação”. Nesse sentido, as políticas
públicas de reconhecimento e as de distribuição precisam ser complementares.
Outro aspecto importante a ser considerado é a questão da linguagem como símbolo
indenitário. Wookward, 2005, em seu texto “Identidade e diferença: uma introdução teórica e
conceitual”, relata uma situação de guerra em que enxerga identidades a partir da linguagem
simbólica, trabalhando o que é visto como sendo a mesma coisa e o que é visto como sendo
diferente em duas identidades, podemos trazer esta análise também para questão de gênero no
ambiente rural, as práticas de relação de poder que moldam uma cultura.
Na concepção de Wookward, 2005, pg. 17, a representação inclui as práticas de
significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
inclusive, sugerindo que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e aquilo
no qual podemos nos tornar.
Todas as práticas de significação que produzem significados envolvem relações de
poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é excluído. A cultura
molda a identidade ao dar sentido à experiência e ao tornar possível optar, entre as
várias identidades possíveis, por um modo específico de subjetividade - tal como a da
feminilidade loira e distante ou a da masculinidade ativa, atrativa e sofisticada dos
anúncios do Walkman da Sony (DU GAY & HAEE et all, 1997, apud WOOKWARD,
2005).

A sociedade moderna, afetada pelas mudanças sociais constituíram vários núcleos de


identidades, onde os indivíduos vivem em diferentes instituições, chamado por Bourdieu de
“Campos sociais”, Woodward, 2005.
72

Laclau argumenta que não existe mais uma única força, determinante e totalizante, tal
como a classe no paradigma marxista, que molde todas as relações sociais, mas, em
vez disso, uma multiplicidade de centros. Ele sugere não somente que a luta de classes
não é inevitável, mas que não é mais possível argumentar que a emancipação social
esteja nas mãos de uma única classe. Laclau argumenta que isso tem implicações
positivas porque esse deslocamento indica que há muitos e diferentes lugares a partir
dos quais novas identidades podem emergir e a partir dos quais novos sujeitos podem
se expressar (LACLAU, 1990: 40). As vantagens desse deslocamento da classe social
podem ser ilustradas pela relativa diminuição da importância das afiliações baseadas
na classe, tais como os sindicatos operários e o surgimento de outras arenas de conflito
social, tais como as baseadas no gênero, na “raça”, na etnia ou na sexualidade (apud,
WOODWARD, 2005, p. 29).

Woodward, deixa visível em seu texto que na vida moderna há uma diversidade de
posições que nos estão disponíveis - posições que podemos ocupar ou não, sendo difícil separar
identidades e estabelecer fronteiras entre elas, podendo estas identidades mudarem, quanto a
forma que representamos a nós mesmos, como homens, mulheres e trabalhadores. As nossas
experiências podem trazer fragmentações na nossa identidade aliada a mudanças no mercado
de trabalho e padrões de comportamento, ocasionando também um conflito de identidade diante
desta complexidade da vida moderna.
Os significados culturais sobre a sexualidade são produzidos por meio de sistemas
dominantes de representação, por exemplo, a mãe trabalhadora rural, tem sua escolha
constrangida pelos discursos dominantes do macho, ou seja, a forma como vivemos nossas
identidades sexuais é mediada pelos significados culturais sobre a sexualidade, em razão disso,
surge os novos movimentos sociais, que buscam políticas de identidade.
Estas políticas de identidade partem das diferenças, concentrada nas divisões de gênero,
que tem o poder distribuído de forma desigual, onde homens e mulheres estão em oposição de
poder.
Cixous sugere que as mulheres estão associadas com a natureza e não com a cultura,
com o “coração” e as emoções e não com a “cabeça” e a racionalidade. A tendência
para classificar o mundo em uma oposição entre princípios masculinos e femininos,
identificada por Cixous, está de acordo com as análises estruturalistas baseadas em
Saussure, as quais vêem o contraste como um princípio da estrutura linguística
(HALL, 1997a). Mas, enquanto para Saussure essas oposições binárias estão ligadas
à lógica subjacente de toda linguagem e de todo pensamento, para Cixous a força
psíquica dessa duradoura estrutura de pensamento deriva de uma rede histórica de
determinações culturais (WOOKWARD, 2005, p. 51).

A segunda posição centra-se nas estruturas sociais: aqui as mulheres são identificadas
com a arena privada da casa e das relações pessoais e os homens com a arena pública do
comércio, da produção e da política.
73

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da temática apresentada podemos observar que identidade é um conceito com


características variadas e peculiares. A construção da identidade é considerada uma
problemática da modernidade. Em razão das liberdades, o sujeito passa a se questionar a que
identidade deve se ter, pois estas são variáveis, dependendo de questões subjetivas, ancoradas
no processo social.
Nesse processo, também aparecem as lutas moralmente motivadas por grupos sociais
que buscam estabelecer formas de reconhecimento recíproco, devendo estar adequadamente
concebidas para auxiliar as lutas por redistribuição.
O desafio ainda é compreender da realidade sociológica vivenciada pelas mulheres
agricultoras, analisar as diferenças que compõe a identidade destas.
A mulher rural é responsável pela alimentação familiar, participação da colheita,
arrumação da casa, cuidados do quintal e dos animais, ou seja, corresponde às atividades
domésticas e a força de trabalho rural, estabelecendo uma dupla jornada ainda mais dura e
penosa que a das zonas urbanas, vivência invisibilizada, já que embora integrada no processo
produtivo da agricultura familiar não há reconhecimento social, pois ainda é relacionada a sua
missão em razão da sua natureza solidária em prol da família.
Entretanto, as mulheres começam a romper com as barreiras das falsas identidades,
buscando seu reconhecimento social e seus direitos, unidas pelos movimentos sociais, frente as
interações no seu ambiente que culminam nos conflitos apresentados na teoria do
reconhecimento elaborada por Honneth, em que o sujeito elabora a sua identidade a partir da
interação social e Nancy Fraser avança a teoria de Honneth ao trazer ao debate acerca do
reconhecimento a questão da redistribuição, no presente trabalho aborda se estes conceitos
pontuando questões sobre identidade e reconhecimento relacionado a desigualdades de gênero.
A partir do século XX, as lutas pelo reconhecimento da diferença, trouxeram
reivindicações outras que não mais só a redistribuição de riquezas, igualdade e justiça social,
mas também lutas de reconhecimento com base em noções de identidade, acontecendo a eclosão
de conflitos étnicos e religiosos, cada vez mais dependentes de avaliações culturais em
detrimento das económicas.
A invisibilidade do trabalho da mulher no campo e a não remuneração decorrem da
manutenção das sociedades tradicionais rurais que contempla na sua essência a desigualdade
de gênero, sendo as políticas públicas o caminho para reconhecimento e redistribuição, pois a
mulher do campo necessita do reconhecimento como trabalhadora rural e também de garantias
74

de autonomia econômica, que possibilite a mudança e transformação nas relações de


desigualdade de gênero.
Podemos concluir que muito embora haja uma discussão entre os autores apresentados,
muito contribuem para o tema da identidade feminina no campo e as divisões entre
reconhecimento e redistribuição relacionada ao gênero, pois o reconhecimento se baseia na
interação entre indivíduos que condescendem de ideais e veem a na luta uma resposta para
injustiças sofridas dentro de uma sociedade.

REFERÊNCIAS

BRESSIANI, Nathalie. Redistribuição e reconhecimento - Nancy Fraser entre Jürgen


Habermas e Axel Honneth. Cad. CRH vol.24 nº.62 Salvador May/Aug. 2011, Scielo,
disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
49792011000200007, acessado em 04.04.17
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
DURHAN, Eunice. A Caminho da Cidade. Editora Perspectiva S.A: São Paulo, 1973
FRASER, Nancy. Da distribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós
socialista. Caderno de Campo, São Paulo, nº 14/15, p. 1-382, 206
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad.
De Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003. P. 7-29 e p. 155-227.
KRISCHKE, Paulo J. Governo Lula: Políticas de Reconhecimento e de Redistribuição.
Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Nº 47 – Outubro de 2003.
RICOEUR, Poul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006. P 105-167
SANTOS, Cristina. O lugar do consumo na problemática identitária contemporânea, Forum
Sociológico [Online], 23 | 2013, posto online no dia 01 Janeiro 2014, consultado o 04 Agosto
2016. 2016.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual in T. T. da Silva
(org.), Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, Petrópolis, Editora Vozes,
2005
75

UMA ANÁLISE DO FEMINICÍDIO E SUA REPERCUSSÃO NA COIBIÇÃO DA


VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Beatriz Lagreca Schmidt1


Denise Tatiane Girardon dos Santos2
João Batista Monteiro Camargo3

Resumo: A desigualdade de gênero e a violência exercida contra a mulher é um problema que


está entranhado na nossa cultura e na sociedade brasileira que tem a família organizada de
maneira patriarcal, uma herança que ficou desde a época colonial e permanece até os dias de
hoje. O presente trabalho tem como objetivo analisar a eficácia da Lei Maria da Penha, os
avanços nas políticas públicas no combate à violência contra mulher e analisar o quanto a Lei
do Feminicídio pode auxiliar no sentido de modificar essa triste realidade. É um artigo
bibliográfico que utilizou como base para os estudos artigos científicos, obras literárias e sites
que apontam os índices de violência dentro do nosso Estado e no país. Ao analisar a
implementação da Lei nº 11.340/06, verificou-se que apesar de representar um grande avanço
na luta contra a violência feminina, na prática, não houve diminuição significativa nos casos de
violência doméstica e não trouxe integral e efetivo apoio às mulheres que são vítimas deste tipo
de delito. Já a Lei nº 13.104/15 veio como um avanço na coibição contra a forma mais extrema
da violência contra mulher, que resulta na morte das vítimas, mas ainda é cedo para constatar
algum resultado expressivo. Com o presente estudo foi possível analisar os avanços que se teve,
tanto na questão da desigualdade de gênero quanto no combate da violência contra mulher; no entanto,
tais avanços ainda não são suficientes para que se tenha uma efetiva proteção da mulher e de seus direitos.
Palavras-chave: Violência doméstica. Feminicídio. Desigualdade de gênero.

1 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O presente artigo tem como tema a violência doméstica e tem como delimitação a
análise do feminicídio e a sua repercussão na coibição da violência doméstica. Será divido em
três capítulos.

1
SCHMIDT, Beatriz Lagreca. Bacharel em Direito - URCAMP. Contato:bialagrecaschmidt@gmail.com
2
. Doutoranda em Direito - UNISINOS. Mestra em Direito - UNIJUÍ. Especialista em Educação Ambiental - UFSM.
Integrante do Comitê Gestor do Pacto Universitário dos Direitos Humanos da Universidade de Cruz Alta. Integrante
do Grupo de Pesquisa “Clínica de Direitos Humanos” - UFPR. Integrante do Grupo de Pesquisa Jurídica em
Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - GPJUR. Integrante do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Práticas Sociais
- UNICRUZ. Docente no Curso de Direito e do Núcleo Comum da UNICRUZ e do Curso de Direito das Faculdades
Integradas Machados de Assis FEMA - Santa Rosa. Advogada. Conciliadora Judicial - TJ/RS. Contato:
dtgsjno@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5993648671113115.
3
Advogado inscrito na OAB-RS sob número 107.919. Doutor em Diversidade Cultural e Inclusão Social - FEEVALE,
Novo Hamburgo. Mestre em Direito com concentração em Direitos Humanos - UNIJUÍ. Especialista em Docência no
Ensino Superior e em Advocacia Geral - UNICID, em Filosofia e Direitos Humanos - AVM Faculdade Integrada, em
Educação para os Direitos Humanos - FURG, em Gestão Pública - UFSM e em Educação Ambiental – UFSM, em
Direito Administrativo e Direito Penal e Processual Penal Militar pela AVM Faculdade Integrada. Bacharel em Direito
- URCAMP e licenciado em Direito, formação de professores para o nível técnico e tecnológico através do Programa
Especial de Graduação da - UFSM. Contato: camargojoao@hotmail.com
76

Em um primeiro momento será analisada a desigualdade de gênero dentro da nossa


sociedade, qual seria a sua origem e por qual motivo ainda se encontra tão presente nos dias de
hoje. Verificaremos a maneira como somos criados, com uma tendência ao machismo e a uma
forma patriarcal de organização familiar, onde a mulher sempre é submissa ao homem e não
tem voz, nem vez.
Apesar de todas essas conquistas e avanços, vamos constatar que ainda existem muitas
mulheres que sofrem com o machismo na sua forma mais extrema, através da violência, que é
sofrida dentro de casa e praticada por pessoas com as quais possuem um vínculo afetivo muito
forte.
Em um segundo momento, vamos conhecer a história da Maria da Penha, mulher que é
símbolo da luta contra a violência doméstica no Brasil. Veremos o quanto ela sofreu até que seu
agressor fosse punido pelos fatos que cometeu e ver o quão importante sua história foi para
encorajar outras mulheres tão vítimas quanto ela.
Observaremos que a violência doméstica compreende um ciclo e que em grande parte
dos casos resulta na morte da vítima e, geralmente, pelas mãos de seu companheiro. No último
capítulo vamos ver que apesar do quão significante e importante tenha sido a implementação
da Lei Maria da Penha, a sua eficácia com o passar do tempo não foi demonstrada através dos
números.
Analisaremos que a implementação da Lei do Feminicídio surge como mais um meio
que o legislador encontrou de punir severamente a forma mais extrema resultante da
desigualdade de gênero, da intolerância e da violência contra a mulher.

2 - DESIGUALDADE DE GÊNERO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A origem da desigualdade de gênero no Brasil está na forma patriarcal com que era
organizada a sociedade, e esta é uma herança que vem desde os tempos da colonização4. O
homem sempre foi visto como o chefe da família, responsável pelo sustento e proteção da
casa, enquanto que a mulher tinha o papel de cuidar do lar, do marido e dos filhos. Em
verdade, a mulher era vista como um ser destinado unicamente à procriação e educação da
prole5.

4
BAUER, Gui. A violência contra a mulher e a desigualdade de gênero no Brasil, 2015. Disponível em:
<https://www.projetoredaçao.com.br/temas-de-redaçao/violencia-contra-a-mulher-o-feminicio-no-
brasil/violencia-contra-a-mulher-e-a-desigualdade-de-genero-no-brasil/15046>
5
ARAÚJO, Maria José de Azevedo. A violência como fruto da desigualdade de gênero, 2009. Disponível em:
<http://www.webartigos.com/artigos/a-violencia-como-fruto-da-desigualdade-de-genero/28535/>
77

O gênero é a distinção cultural de cada um dos sexos e suas peculiaridades biológicas.


As características consideradas como “masculinas” e “femininas” são ensinadas a nós desde
que nascemos e, portanto, tomadas como verdadeiras; e são exatamente essas características
que dão início à hierarquia e à desigualdade entre os sexos
Muitos pensadores influentes difundiam a ideia de machismo e desigualdade de gênero,
pregando que mulheres nasceram destinadas somente ao casamento e a maternidade, tratando-
as como seres burros e ainda selvagens, pouco dotada intelectualmente e moralmente fraca.
Não podemos considerar o machismo uma “invenção” moderna. Machismo não é um
padrão que foi criado da noite para o dia, é herança de uma cultura ancestral que caminha lado
a lado com o desenvolvimento da humanidade. O machismo esteve presente em todos os tempos
da nossa história. O capitalismo foi forjado como um pensamento machista; a igreja tomou para
si ideias machistas; durante o pré-feudalismo europeu, o machismo era a base de tudo. O
machismo não tem origem, nacionalidade, nem distinção de classe social, ele simplesmente está
arraigado na nossa cultura há muito tempo, desde os primórdios da humanidade e permanece
até os dias de hoje6.
No Brasil, as conquistas das mulheres por um espaço na sociedade ocorreram de forma
muito difícil e lenta, desde a conquista do direito mais básico, como poder frequentar a escola,
até a mais importante das conquistas femininas, o direito ao voto, que abriu um espaço,
pequeno, porem de grande significado para as mulheres dentro da sociedade7.
O sufrágio feminino no Brasil era a principal bandeira dos movimentos feministas.
Havia muitos obstáculos na vida de qualquer mulher na sociedade brasileira e além da busca
incessante pelo direito de participar da vida política do país, as feministas encontraram pela
frente uma série de problemas e desigualdades, dentre elas, a educação8.
Em 1827 foram criadas algumas escolas que admitiam a entrada de meninas. No entanto,
elas pouco aprendiam sobre as letras e a ênfase da educação era voltada para as prendas
domésticas. A precariedade de profissionais na área da educação obrigou o Estado a criar

6
MOSCHOVICK, Marilia. Machismo a opressão primeira, 2016. Disponivel em
<https://www.geledes.org.br/machismo-a-opressao-primeira/>
7
MARAFIGO, Gisele. Conquistas importantes das mulheres no Brasil ao longo da história, 2013. Disponível em:
<https://www.faneesp.edu.br/portal_ext/extensao1363286863.pdf>
8
GAUTÉRIO, Rosa Cristina Hood. História do sufrágio feminino no Brasil, 2013. Disponível em: <http://www.tre-
sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/revista-tecnica/edicoes/n-4-juldez-2013/integra/2013/11/historia-do-sufragio-
feminino-no-brasil/indexd45d.html?no_cache=1&cHash=90759d10fa3c817a43126ffb618767fd>
78

escolas para a formação de professores e muitas meninas da época viram nisso uma
oportunidade de estudar e tornar a magistratura uma profissão9.
Mesmo diante dessas conquistas, as mulheres que usufruíam dos direitos alcançados
eram vistas como rebeldes e como se não fossem exemplo a ser seguido.
Muitas mulheres seguiam vivendo submissas aos maridos, ainda somente dedicadas ao
lar e por muitas vezes sofrendo agressão por parte de seus companheiros. Aliás, esta é uma
violência que ultrapassa os anos e as gerações, a mulher apanhava de seu marido pelos diversos
e mais fúteis motivos. Bastava que ela não o agradasse, bastava fazer alguma coisa que do ponto
de vista do homem fosse errado, ou muitas vezes servia como “saco de pancadas” para que seu
marido descontasse nela todas as frustrações do seu dia a dia, quiçá, todas as frustrações da sua
vida.
Somente na década de 80 foram criados alguns centros de autodefesa para coibir a
violência contra a mulher. Nesta década foi instaurada a primeira Delegacia de Atendimento
Especializado à Mulher, no estado de São Paulo. Em 1988, 26 deputadas federais com a ajuda
de algumas feministas criaram uma mobilização chamada o “Lobby do batom”, onde juntas
obtiveram muitos avanços na Constituição Federal e garantiram a igualdade de direitos e
obrigações entre homens e mulheres perante a lei10.
A violência doméstica exercida pelos homens atinge as diferentes camadas sociais do
nosso país, impedindo o desenvolvimento psicossocial da mulher, o que interfere na vida de
uma família inteira. As questões de desigualdade de gênero se manifestam de diversas maneiras,
mas a mais cruel delas é através da violência baseada em discriminação e agressões físicas que
as mulheres sofrem diariamente dentro dos seus lares, afetando a sua qualidade de vida.
Desde pequenos temos que lidar com o entendimento de que homens e mulheres
possuem um papel distinto na sociedade, no entanto, a única coisa que efetivamente os
diferencia são as questões biológicas, que determina as características físicas. No entanto as
diferenças “sociais” são aquelas que foram impostas através da nossa cultura.
A desvalorização da mulher e do papel feminino é um fato muito persistente e começa
desde a educação dos indivíduos. Na maioria dos lares a educação mostra a figura do pai como

9
GAUTÉRIO, Rosa Cristina Hood. História do sufrágio feminino no Brasil, 2013. Disponível em: <http://www.tre-
sc.jus.br/site/resenha-eleitoral/revista-tecnica/edicoes/n-4-juldez-2013/integra/2013/11/historia-do-sufragio-
feminino-no-brasil/indexd45d.html?no_cache=1&cHash=90759d10fa3c817a43126ffb618767fd>
10
MARAFIGO, Gisele. Conquistas importantes das mulheres no Brasil ao longo da história, 2013. Disponível em:
<https://www.faneesp.edu.br/portal_ext/extensao1363286863.pdf>
79

o porto seguro, demonstrando coragem e poder e isso faz com que a mãe seja apenas como
cuidadora do lar e da família, criando desde cedo aquela ideia do “sexo frágil”.
Atualmente a luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, em todos os
âmbitos da sociedade, traz à tona um problema que sempre existiu: o machismo que em pleno
século XXI encontra-se entranhado nos lares, na rua e no local de trabalho de todas as mulheres.

3 - LEI MARIA DA PENHA, UMA ILUSTRE DESCONHECIDA

Quem é Maria da Penha? Será que todos os brasileiros conhecem a história da mulher
que é símbolo da luta no combate à violência doméstica no país? Maria da Penha Maia
Fernandes, cearense, farmacêutica, foi vítima de violência doméstica por 20 anos e foi vítima
de tentativa de homicídio por duas vezes cujo autor foi seu marido Marcos Viveiros, professor
universitário.
No ano de 1983, após o nascimento de suas três filhas, Maria da Penha levou um tiro
nas costas enquanto dormia e o autor, seu marido, deu a versão de que a casa teria sido invadida
por assaltantes. Após quatro meses internada em hospitais e depois de diversas cirurgias, ao
retornar para casa, Maria da Penha foi vítima de seu marido novamente, desta vez ele tentou
eletrocutá-la enquanto ela tomava banho.
Somente após esse segundo episódio é que houve indícios de que Marcos poderia
realmente ser o autor dos disparos que deixaram Maria da Penha paraplégica. Com autorização
judicial, ela conseguiu sair de casa sem que se configurasse abandono de lar e passou a travar
uma batalha pela justiça e para que seu agressor fosse punido.
Oito anos depois desses fatos, em 1991, Marcos foi condenado, mas mesmo assim
recebeu a liberdade. Inconformada, Maria da Penha escreveu um livro intitulado “Sobrevivi…
posso contar” onde relatava toada as agressões sofridas por ela e pelas filhas e através disso o
caso começou a ser reconhecido a nível mundial e passou-se a perceber o quanto o Brasil era
carente na questão de amparo e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.
Algumas ONG's encaminharam para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(OEA) uma petição contra o Estado brasileiro com relação à impunidade no caso de Maria da
Penha. Em 2001 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Brasil por
negligência, omissão e tolerância em relação os casos de violência doméstica.
Em 2002, quando faltava apenas seis meses para que o crime fosse prescrito, Marcos
foi condenado, no entanto, cumpriu apenas 2/3 de sua pena. Após ter seu sofrimento
reconhecido pelo mundo todo, finalmente, no ano de 2006, o Brasil reconheceu a necessidade
80

de criar uma lei que punisse severamente os agressores e que protegesse as mulheres da
violência sofrida dentro de suas próprias casas. A partir de então, criou-se a Lei nº 11.340/06.
A violência doméstica praticada contra a mulher é considerada violência de gênero e
por isso se diferencia das demais formas de violência. As condutas dos agressores normalmente
não são motivadas apenas por algum motivo pessoal, mas sim praticadas como uma forma de
expressar a hierarquização da mulher em relação ao homem, devendo ser subordinada a ele.
Ao analisar a vida da mulher que deu origem à lei que protege todas as outras mulheres
do Brasil, a única diferença é que Maria da Penha sobreviveu às agressões para poder contar a
história e fazer justiça. Infelizmente, para uma parte das mulheres que são vítimas de agressões
diariamente, a trajetória é mais difícil e não tem o mesmo final, pois muitas vezes sequer têm a
coragem de pedir ajuda11.
A Lei nº 11.340/06 evidenciou a resistência que existia na sociedade com relação à
aceitação da violência doméstica como crime de menor potencial ofensivo, o que reforçava
ainda mais a dominação do sistema patriarcal. A criação da Lei representou uma mudança na
arraigada impunidade e reconheceu a obrigação do Estado em garantir a segurança da mulher
tanto no ambiente público quanto no privado, enfrentando a violência doméstica, garantindo a
emancipação e autonomia da mulher12.
Dentre várias mudanças que a implementação da Lei Maria da Penha trouxe para nosso
ordenamento jurídico, as principais medidas são as seguintes:

- O artigo 14 da Lei determina a criação de Juizados competentes para julgar os casos


de violência doméstica e enquanto não se dá a criação destes, a competência é da Vara
Criminal, com o intuito de afastar a competência dos Juizados Especiais Criminais;
- A Lei alterou o Código Penal, na medida em que introduziu uma forma específica
de lesão corporal, no §9º do art. 129, com apenamento de 03 meses a 03 anos, se
praticada no âmbito da violência doméstica, antes do advento da lei, a pena máxima
era de 1 ano;
- O artigo 17 da Lei proibiu a substituição da pena de prisão pelo pagamento de cestas
básica, pena pecuniária ou multa;
- O artigo 19 inovou no sentido de criar as medidas protetivas de urgência, com o
objetivo de proteger a mulher que se encontra em iminente risco de novas
agressões13.

11
SCNEIDER, Valéria Magalhães. A eficácia da Lei Maria da Penha no combate à violência doméstica, 2016.
Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-eficacia-da-lei-maria-da-penha/>
12
MORENO, Renan de Marchi. A Lei Maria da Penha incorporou o avanço legislativo internacional e se
transformou no principal instrumento legal de enfrentamento à violência contra mulher no Brasil, 2014. Disponível
em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8757/A-eficacia-da-Lei-Maria-da-Penha>
13
CORRÊA, Amanda e JAKUBOWSKI, Ana Paula. Lei Maria da Penha – Abrangência e Eficácia, 2017.
Disponível em: <http://correamanda.jusbrasil.com.br/artigos/328169928/lei-maria-da-penha-abrangencia-e-
eficácia>
81

A aprovação dessa Lei, sem dúvidas, foi um marco, pois hoje em dia muitas pessoas
sabem de sua existência e, principalmente, sabem com qual objetivo ela foi criada. No entanto,
são poucos os brasileiros que têm conhecimento do conteúdo da Lei. Nesse sentido, a
conscientização da população acontece na medida em que o Estado começa a adotar políticas
públicas para atender devidamente a mulher que é violentada.
Além de toda a preocupação em amparar a vítima de violência doméstica, o legislador
observou que as vítimas recorrem primeiramente às Delegacias de Polícia. Em razão disso
estabeleceu uma série de medidas a serem cumpridas pela polícia civil e militar nos casos de
violência doméstica. O artigo 11 da Lei Maria da Penha estabelece quais as providências devem
ser tomadas pelos policiais, dentre essas, o dever de proteger a vítima e seus familiares e
comunicar imediatamente o Ministério Público e Poder Judiciário, agilizando a adoção das
medidas protetivas. O referido artigo também estabelece que as mulheres devem ser informadas
dos serviços disponíveis, para que decidam sobre as medidas protetivas que podem requerer e
se irão ou não oferecer representação14.
No entanto, como se sabe, não é bem esse o atendimento que as mulheres recebem
quando chegam a uma delegacia. Muitas vezes sentem-se constrangidas pelo fato de que não
existem profissionais qualificados o suficiente para que forneçam segurança as vítimas. Ocorre
que, muitas vezes, ao chegar na delegacia a mulher se torna vítima mais uma vez do machismo
que está culturalmente entranhado na nossa sociedade.
A última pesquisa realizada pelo IPEA sobre a efetividade da Lei Maria da Penha foi em
março de 2015. Apesar da Lei não ter como foco o homicídio das mulheres, a pesquisa apontou
que a violência doméstica ocorre em ciclos, onde o grau de agressividade vai aumentando até
desencadear na morte das vítimas e 90% dos autores desses homicídios são familiares das
mulheres.
O IBGE apontou que 1,2 milhão de mulheres sofrem agressões no Brasil e as estimativas
feitas pelo IPEA revelaram que somente 52 mil ocorrências chegam ao conhecimento da polícia.
Após o advento da Lei 11.340/06 houve a diminuição de 10% na taxa de homicídios de
mulheres no Brasil.
Portanto, apesar de todo o avanço legislativo e das medidas de proteção à mulher
previstas na Lei Maria da Penha, ainda há um longo caminho a ser percorrido na busca de uma
conscientização maior sobre o papel da mulher na sociedade atual, bem como da relação

OLIVEIRA, Thalita Netto. Lei Maria da Penha e suas implicações na atualidade, 2011. Disponível em:
14

<http://www.unipac.br/site/bb/tcc/tcc-84ca9e5fa2b5db5ea3c8ac4e4a649841.pdf>
82

igualitária e de respeito que deve existir com relação ao homem. Os índices demonstrados acima
mostram que a Lei Maria da Penha, sozinha, não é capaz de resolver o problema da violência
contra mulher e em razão disso o legislador reconheceu a necessidade de criar uma lei que
punisse de forma ainda mais severa o agressor e em razão disso foi aprovada a lei 13.104/15,
intitulada a Lei do Feminicídio.

4 - LEI 13.104/15 - FEMINICÍDIO

Conforme o que foi exposto no capítulo anterior, sabe-se que a Lei Maria da Penha foi
um grande avanço na punição de agressores de mulheres no âmbito doméstico. No entanto,
apesar de garantir medidas protetivas, a pena imposta a um autor de homicídio contra mulher
tinha o mesmo apenamento de homicídio simples, dependendo das condições em que se desse
o fato.
A publicação da Lei nº 13.104/15 alterou o Código Penal incluindo o feminicídio como
crime qualificado. O §2º-A do art. 121 acrescentou que o homicídio será qualificado se
praticado por “razões da condição de sexo feminino” que ocorrerá em duas hipóteses: violência
doméstica e familiar ou menosprezo e discriminação à condição de mulher15.
O §7º do artigo 121 estabelece que a pena será aumentada de 1/3 até a metade se o delito
for praticado: a) durante a gravidez ou nos três meses posteriores ao parto; b) contra pessoa
menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência e c) na presença de ascendente ou
descendente da vítima.
Na América Latina o conceito de feminicidio era tido como o conjunto de violações aos
direitos humanos das mulheres que acontecem porque as condições históricas permitem a
ocorrência desse tipo de delito. Para Lagarde (2008), a omissão das autoridades em relação a
esses crimes torna o feminicídio um crime de Estado. Nesse sentido, a autora acredita que não
só o assassinato, mas também os suicídios dessas mulheres ocorrem em razão da omissão
estatal, pois essas mortes poderiam ser evitadas se os direitos da mulher fossem respeitados,
ocorrendo, então, o desrespeito das mulheres como gênero16.

15
GOMES Cláudia Albuquerque e BATISTA Mirela Fernandes. Feminicídio: paradigmas para analise da violência
de gênero com apontamentos à Lei Maria da Penha, 2016. Disponível em:
<http://www.unisul.br/wps/wcm/connect/57571c15-0bd8-498c-baca-599dde5e74cf/artigo_gtdir_claudia-
mirela_vii-spi.pdf?MOD=AJPERES>
16
LAGARDE, Marcela. El feminismo en mi vida: hitos, claves y topías. Ciudad de México: Inmujeres DF, 2012,
643p.
LOEPS, Maria Cardoso. Nenhuma vitória é permanente: uma análise dobre a violência contra as mulheres no Rio
Grande do Sul entre os anos de 2012 e 2015. Disponível em: <http://www.http://bancodeteses.capes.gov.br/>
83

A história do Brasil revela que muitas mulheres morrem nas mãos dos seus parceiros.
São vítimas de todas as idades, classes sociais e níveis de educação, e são assassinadas por
homens que são levados a cometer esses crimes pelos motivos mais fúteis possíveis, como a
intolerância ao ouvir um “não” vindo de uma mulher, ou pelo fim de um relacionamento, por
exemplo17.
A Central de Atendimento à Mulher, serviço criado em 2005 para auxiliar mulheres em
situação de violência, em 10 anos, realizou 4.823.140 atendimentos, foram, em média, 62.418
atendimentos por mês e 2.052 por dia18.
A violência contra as mulheres é a forma mais explícita do sexismo e tem como
consequência a dominação de gênero. A desigualdade, a discriminação e o controle dos homens
sobre as mulheres gera muita dor e sofrimento a essas vítimas e, em casos não muito raros,
resulta em morte. A misoginia, que é o ódio contra as mulheres, ocorre quando se acredita que
existe uma inferioridade natural das mulheres com relação aos homens, pensamento que,
infelizmente, ainda é muito comum hoje em dia19.
Em 2016, quase uma década após a implementação da Lei Maria da Penha, alguns
estudos apontaram certas fragilidades com relação a nova legislação. Uns dos principais
obstáculos são a falta de serviços especializados, as deficiências dos espaços já existentes e
problemas relativos às equipes de profissionais para atuar nessa área. A Lei Maria da Penha se
configura como uma legislação que atende a todas as recomendações das Nações Unidas para
proteger e promover os direitos das mulheres e, principalmente, o direito de viver sem ser vítima
de violência. No entanto, na prática, os esforços para combater as agressões ficam limitados
quando encontram a questão da responsabilização dos acusados e a fixação de um apenamento
justo, tendo em vista que as mulheres não são apenas vítimas da violência em si20.
Nesse passo, cumpre referir que o apenamento mais gravoso, quando se tratar de vítima
mulher, tem por escopo coibir a perpetuação da violência de gênero e, ao mesmo tempo,
prevenir futuros comportamentos agressivos, voltados contra a mulher. Uma vez que as medidas

17
FERNANDES, Valéria Diez Scaronce. Feminicídio: uma lei necessária?, 2015. Disponível em:
<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/feminicidio-uma-lei-necessaria/15183>
18
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Pacto nacional pelo enfrentamento
à violência contra as mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2011. 70 p. Disponível em:
<http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/pacto-nacional>. Acesso em: abr. 2015.
19
LAGARDE, Marcela. El feminismo en mi vida: hitos, claves y topías. Ciudad de México: Inmujeres DF, 2012,
643p.
20
PASINATO, Wânia. Oito anos de Lei Maria da Penha. Entre avanços, obstáculos e desafios. Revista Estudos
Feministas, Florianópolis, v. 23, n. 2, maio 2015. Disponível em: Acesso em: 10 out. 2015.
84

previstas na Lei Maria da Penha mostraram-se insuficientes para reduzir o número de delitos
praticados contra o sexo feminino.

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo trouxe, em um primeiro momento, a questão da desigualdade de


gênero e do machismo que encontram-se arraigados na nossa sociedade, bem como os possíveis
motivos pelos quais essas questões transcenderam durante séculos e permanecem até os dias de
hoje.
Foi visto que um dos possíveis motivos para que exista uma crença de “superioridade”
do homem é a questão cultural da forma patriarcal de organização familiar, onde a mulher
sempre foi vista como um ser frágil e inferior, em todos os aspectos, sendo considerada
unicamente como um instrumento de perpetuação da descendência.
Em um segundo momento foi observada a luta das mulheres que buscavam ter suas
vozes ouvidas, clamavam por igualdade e reconhecimento dentro da sociedade e,
principalmente, almejavam pela garantia dos direitos que somente a elas não eram assegurados.
No entanto, apesar das diversas e relevantes conquistas, ainda é difícil para as mulheres ter seus
direitos garantidos sem sofrer, o mínimo que seja, com o machismo.
Vimos que a violência doméstica é a maneira mais cruel que os homens encontram de
tentar manter a sua “superioridade” dentro do lar e garantir o seu domínio como chefe da
família. Foram observadas as dificuldades que essas vítimas têm de buscar ajuda e se afastar
dessas agressões, seja por questões econômicas, em razão dos filhos ou meramente pela
dependência emocional dos agressores, que geralmente são seus companheiros, ou seja, pessoas
com as quais possuem inegável vínculo afetivo. Acompanhamos a história de luta de Maria da
Penha, mulher que sofreu calada durante anos e que é o maior símbolo do país na luta contra
violência doméstica. O seu caso ficou mundialmente conhecido e no Brasil deu origem à Lei nº
11.340/06, que foi um grande avanço na legislação na questão do reconhecimento e proteção
ao direito das mulheres.
Apesar da grande mudança trazida pela Lei Maria da Penha, foi possível observar a
deficiência do Estado na questão da efetiva proteção a essas mulheres. Vimos que somente a
responsabilização dos agressores não é suficiente. Essas vítimas precisam de assistência nos
mais diversos âmbitos e não somente na questão legal. As mulheres que sofrem violência
doméstica necessitam ter a certeza de que, se denunciarem seus agressores, serão amparadas
pelo Estado não apenas no quesito segurança, mas também, quanto ao apoio psicológico.
85

A violência doméstica, como já visto, compreende um ciclo em que a mulher é


completamente dominada pelo seu agressor e em razão dessa situação de domínio é que se torna
tão difícil denunciar e lutar contra a violência sofrida. Este ciclo de violência começa com
agressões verbais, humilhações, partindo para agressões físicas, até culminar na morte dessas
mulheres, muitas vezes, sem que jamais tenham sido auxiliadas ou tratadas como vítimas de
violência doméstica. Em um terceiro momento, foi tratada a questão da criação da Lei do
Feminicídio, que foi promulgada no dia 09 de março de 2015 e passou a tratar uma forma
qualificada de homicídio, tornando hediondo o crime cometido contra a vida da mulher.
A par do agravamento da sanção penal, não se pode olvidar que também é mister a
estruturação de formas de prevenção à violência que as mulheres sofrem diariamente na rua,
em casa e no trabalho, pois somente a punição criminal não basta. Acredita-se que deve existir
uma preocupação maior por parte dos governos em educar as crianças com foco na igualdade
entre os gêneros. Deve ser abolida a ideia de que mulher é o sexo frágil. Precisa-se compreender
o fato de que as nossas diferenças são unicamente biológicas, não havendo razão para qualquer
forma de preconceito ou discriminação.
As crianças precisam ser educadas de forma a aprender, desde muito cedo, a isonomia
que deve existir entre mulheres e homens e, mais do isso, ambos merecem respeito. Da mesma
forma que durante séculos se permanece a ideia de patriarcado, é possível que a partir de agora
envidemos esforços para mudar a maneira de pensamento dentro dos próprios lares e que deve
começar pelas crianças.
Enfim, somente a partir do momento em que conseguirmos modificar a cultura da
sociedade, através da educação, é que poderemos vislumbrar homens e mulheres
desempenhando papeis importantes e sem distinção de gênero.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: http://www.webartigos.com/artigos/a-violencia-como-fruto-da-desigualdade-
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Disponível em: https://www.projetoredaçao.com.br/temas-de-redaçao/violencia-contra-a-
mulher-o-feminicio-no-brasil/violencia-contra-a-mulher-e-a-desigualdade-de-genero-no-
brasil/15046.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Pacto nacional


pelo enfrentamento à violência contra as mulheres. Brasília: Secretaria de Políticas para as
Mulheres, 2011. 70 p. Disponível em:
86

<http://www.spm.gov.br/sobre/publicacoes/publicacoes/2011/pacto-nacional>. Acesso em: abr.


2015.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm>
CORRÊA, Amanda e JAKUBOWSKI, Ana Paula. Lei Maria da Penha – Abrangência e
Eficácia, 2017. Disponível em: <http://correamanda.jusbrasil.com.br/artigos/328169928/lei-
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DANTAS, Tiago. Sufrágio Feminino, 2015. Disponível em:
<http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/politica/sufragio-feminino.htm>
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FONSECA, Paula Schiavini. Histórico da Lei nº 11.340/06, 2010. Disponível em:
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sobre a violência contra as mulheres no Rio Grande do Sul entre os anos de 2012 e 2015.
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MORENO, Renan de Marchi. A Lei Maria da Penha incorporou o avanço legislativo


internacional e se transformou no principal instrumento legal de enfrentamento à violência
contra mulher no Brasil, 2014. Disponível em:
<http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8757/A-eficacia-da-Lei-Maria-da-Penha>.

OLIVEIRA, Thalita Netto. Lei Maria da Penha e suas implicações na atualidade, 2011.
Disponível em: <http://www.unipac.br/site/bb/tcc/tcc-
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87

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SAFIFIOTI, Heleieth. Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero. Cadernos


Pagu, n.a6, p. 115-136. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n16a07.pdf>.

SCNEIDER, Valéria Magalhães. A eficácia da Lei Maria da Penha no combate à violência


doméstica, 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/a-eficacia-da-lei-maria-da-
penha/>.
88

DIREITO PENAL INFORMÁTICO: VIOLÊNCIA CONTRA AMULHER NA


INTERNET DOS PAÍSES DO MERCOSUL

Manoela Chalá da Silva Milan¹

Resumo: Com o advento da internet as redes de comunicação se expandiram assim como


crimes elaboradores para atingirem seus usuários, principalmente a violência contra a mulher
que já é decorrente fora agora também se encontra no âmbito virtual. A América Latina,
especificamente os países membros Mercosul, fazem parte de uma área de grande incidência
de casos de discriminação do gênero feminino, a partir das informações expostas, são elencadas
algumas medidas para diminuir os números apresentados mediante uma perspectiva mais
realista da situação.
Palavras-chave: Crimes informáticos. Violência. Desigualdade de gênero

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo apresentar um esboço a respeito dos crimes
informáticos e crimes de violência contra a mulher na contramão de trazer conhecimentos a
respeito dos resultados produzidos na realização dos dois. Ademais são citadas algumas
soluções para os casos por meio do Direito Penal informático de uma forma que possa abranger
os outros países mencionados buscando construir uma visão explicativa a respeito de um tema
tão sensível que ao mesmo tempo que comum, em uma tentativa de fazer com que o leitor possa
de forma eficiente compor seu próprio estudo sobre a temática, além da função de refletir sobre
seu comportamento na internet, pois ao compartilhar informações poderá estar praticando um
crime e é indispensável que o indivíduo tenha consciência dos seus atos, assim como o impacto
que este pode ter na vida da vítima.
Para a elaboração deste artigo utilizou-se o método descritivo, a consultar diversos
textos, outros artigos, acervos bibliográficos e veículos de informação internacionais, todavia
através de uma linguagem minimamente rebuscada para maior entendimento.

2. CRIMES INFORMÁTICOS
Observando o cenário atual, o fenômeno denominado globalização trouxe a informação
para todas as redes de comunicação de uma maneira muito mais rápida, é possível que um
acontecimento no Japão chegue no mesmo momento em que está ocorrendo. É perceptível que
a globalização trouxe às pessoas maiores facilidades, fazendo com que houvesse maior
interação entre culturas, idiomas, relações econômicas entre outras temáticas.
O maior dos efeitos da globalização desenrolou-se com o advento da internet, as redes
sociais online geram uma espécie de rede global como se todos os habitantes do planeta se
89

comunicassem conforme uma única comunidade. Porém os feitos sempre transportam lados
positivos e negativos, dessa maneira a internet também se transformou em um lugar para
atividades criminosas e ilegais.
Torna-se necessário entender o conceito de crime virtual para melhor entendimento e
aprofundamento do tema, por tanto conforme o procurador de justiça do Ministério Público do
Estado de São Paulo, Augusto Rossini:

O conceito de “delito informático” poderia ser talhado como aquela conduta típica e
ilícita, constitutiva de crime ou contravenção, dolosa ou culposa, comissiva ou
omissiva, praticada por pessoa física ou jurídica, com o uso da informática, em
ambiente de rede ou fora dele, e que ofenda, direta ou indiretamente, a segurança
informática, que tem por elementos a integridade, a disponibilidade e a
confidencialidade.

Cada vez mais a internet torna-se o espaço para o cometimento de atos ilícitos,
principalmente por ser um ambiente livre, surgem publicações de conteúdo ofensivos, roubos
de senhas bem como invasões às páginas e servidores em todo ciberespaço. Sendo assim o
Direito Penal teve que se atualizar junto com o desenvolvimento desses crimes para que as
pessoas pudessem recorrer à justiça e encontrar amparo em dispositivos legais. Segundo dados
do Superior Tribunal Federal (STF), grande parte dos magistrados brasileiros acreditam que
95% dos crimes eletrônicos se encontram no Código Penal por configurarem crimes comuns
com a ressalva de serem produzidos na internet, dessa forma torna-se perceptível a insuficiência
de leis em relação a delitos praticados no espaço cibernético.
Dados coletados pelo Ministério Público Federal (MPF) demonstram que mais de 366
casos virtuais foram registrados por dia em 2018, um aumento de 110% em relação a 2017, este
levantamento comprova a necessidade da criação de maiores mecanismos que protejam os
usuários e penas mais severas ligadas exclusivamente ao âmbito virtual.

3. CRIMES CONTRA A MULHER

Não são apenas os usuários da informática como grande grupo que são alvos de crimes
que acontecem diariamente e em grande escala, a comunidade feminina luta por seus direitos
há anos e também pela criação e efetivação de políticas públicas que promovam a igualdade de
gênero e valorização da mulher especialmente por meio da educação.
A violência contra a mulher, assim como outros preconceitos relacionados ao gênero
feminino estão por trás de uma cultura que está enraizada dentro da sociedade patriarcal desde
os primórdios. Para entender como a mulher é vista, é necessário apresentar a posição da mulher
90

através de uma linha do tempo onde estas iniciam com a principal função de gerar vidas,
passando a ser responsáveis por todas as tarefas domésticas e ainda por muito tempo são usadas
como moeda de troca entre famílias que enxergavam o casamento como um contrato financeiro,
todas essas e demais funções faziam parte também de uma influência religiosa em cima de uma
desigualdade e relação de poder vinculadas exclusivamente ao gênero masculino.
Assédio, exploração sexual, estupro, tortura, violência psicológica e agressões são
apenas alguns dos crimes praticados contra mulheres, e ainda um crime específico segundo o
Código Penal brasileiro, que se encontra no o Art. 1o da Lei nº13.104/2015 que prevê o
feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, artigo 4º, inciso l,
considera que há razões de condição de sexo feminino quando o crime resulta de violência
doméstica ou da discriminação de gênero e objetificação da mulher.
Ainda que contemporaneamente a mulher tenha conseguido se livrar de muitas amarras
ligadas as questões de gênero é evidente que o sistema ainda desestruturado faça com que os
números a respeito dos crimes vinculados estritamente contra a mulher continuem dia após dia.
Uma pesquisa realizada pelo jornal Folha de São Paulo ano passado (2018) apontou que eram
registrados mais de 606 casos de violência doméstica e 164 casos de estupro por dia no Brasil,
podendo o total de casos passar dos 500 mil por ano, sendo menos de 10% comunicados à
polícia.
Não obstante as mulheres ainda são vítimas da desigualdade gênero na esfera do
trabalho, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) as
trabalhadoras ganham em média 20,5% a menos que os homens e destas apenas 25,8% ocupam
cargos presidenciais ou de liderança e chegam a receber 52,7% a menos que eles.

4. DESENVOLVIMENTO DA TECNOLOGIA E PARALELAMENTE DOS


CRIMES: A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DIGITAL
CONTEMPORÂNEO

Com a propagação da tecnologia bem como dos crimes cibernéticos, as redes sociais e
outros mecanismos de comunicação tornaram-se um espaço para aumentar a violência contra a
mulher. O ambiente virtual possui o papel de reproduzir e fortalecer as discriminações de
gênero, assim como fotos e vídeos de mulheres passam a ser postados acompanhados de
comentários pejorativos em relação a vítima.
O espaço virtual transformou-se em um novo lugar para ações de violência contra o
gênero feminino, muito dos casos tornam-se impossíveis de ser revertidos devido seu rápido
91

alcance e ainda os padrões rígidos e tradicionais da sociedade fazem com que as próprias
vítimas respondam por tais atos, distanciando a culpa dos verdadeiros responsáveis. Devido
essa situação, é cada vez mais comum que vítimas desses crimes cometam suicídio após
descobrirem mídias íntimas compartilhadas em redes sociais.
A pesquisadora e professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, Marta
Rodriguez Machado, confirma:
Quando esse material vai para a internet, a mulher é culpada porque ela tem sua
sexualidade revelada – e há um julgamento natural da mulher que manifesta sua
sexualidade, por parte da nossa sociedade patriarcal. Muitas mulheres mudam de
cidade e até se suicidam.

Existem falhas nos tribunais brasileiros, mesmo assim há leis que permitem punir crimes
virtuais contra a mulher da seguinte forma: crimes cibernéticos relacionados a honra são
tratados pela responsabilidade civil e criminosa, no caso de cibercrimes contra as mulheres,
estas encontram amparo legal na Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006) que prevê em seu
artigo 7º como violência psicológica:

Qualquer conduta que cause dano emocional ou prejuízo à saúde psicológica e à


autodeterminação da mulher; diminuição, prejuízo ou perturbação ao seu pleno
desenvolvimento; que tenha o objetivo de degradá-la ou controlar suas ações,
comportamentos, crenças e decisões mediante ameaça, constrangimento, humilhação,
manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem,
ridicularização, exploração, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio.

Como já mencionado anteriormente existem imperfeições nos processos que chegam


aos tribunais brasileiros, consequentemente é necessário a criação de leis mais severas que
protejam as mulheres, pois não é possível que após tantos anos de violência e sofrimento as
normas e padrões sigam os mesmos.

5. VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA INTERNET DOS PAÍSES DO


MERCOSUL

O processo de globalização também permitiu uma integração de mercados entre países


e regiões, a criação de blocos econômicos foi apenas uma das consequências junto a
internacionalização dos fluxos de capitais. Um dos exemplos é o Mercosul, que consiste em um
mercado comum entre Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina onde há a garantia de livre
circulação de bens, produtos e serviços entre os países membros, formando uma grande
comunidade de pessoas, visto que o bloco também possui objetivos relativos a proteção da
cidadania e permite a livre circulação de pessoas entre os países membros citados.
92

A preocupação em relação aos indivíduos que participam do bloco, proporciona um


estudo a cerca do principal tema do artigo, o que significa apresentar números sobre a violência
contra a mulher na internet, especialmente neste grupo de países latino-americanos que de
acordo com a história é onde as mulheres encontram-se nas posições mais vulneráveis e de
exploração por conta não só de gênero mas também de raça e cor.
Conforme o jornal El País, o Paraguai lidera entre os países do bloco ao ser o que mais
usufrui dos meios informáticos para comunicação, dessa forma a tendência a violência contra
as mulheres nesse âmbito tende a ser maior, visto que o país é muito atrasado em relação as
questões de gênero, já o Uruguai ocupa o segundo lugar do ranking de usuários, usufruindo das
redes para disseminar o tráfico internacional e exploração sexual de mulheres, atrás destes na
Argentina constatou-se que a cada 10 mulheres, 8 já sofreram algum tipo de violência na
internet e por mesmo o Brasil sendo o último na escala de uso do ambiente virtual, pesquisas
demonstram que 67,4% das mulheres sofreram ofensas em redes sociais e 62,1% tiveram
exposição a conteúdos impróprios e violentos pelos parceiros(SaferNet Brasil, 2017).
Dado o exposto essa é uma realidade que precisa ser mudada, não só por meio de
políticas públicas e a criação de leis em cada país, afinal cada um possui seu próprio
ordenamento, mas a criação de tratados e acordos internacionais que proporcione um reflexo
interno entre os países do Mercosul para diminuição de casos de violência contra a mulher não
apenas no âmbito digital, mas também do lado de fora. É necessário que cada Estado contribua
para que o direito penal informático se torne mais rígido e incentive mais profissionais a
aprofundarem-se dentro do tema.

6. CONCLUSÃO

Considerando que os crimes cibernéticos acontecem no cotidiano, medidas de


prevenção devem ser tomadas, como soluções antivírus e técnicas que protejam tanto seus
dados como fotos e vídeos, já a questão dos crimes contra a mulher em si é necessária que todos
se juntem na luta ao combate pois ainda é pauta para questões de saúde pública e atinge todas
as classes sociais, inclusive as menos favorecidas. Estes crimes em grande parte violam também
os direitos humanos dos quais todos os países do Mercosul têm a obrigação de cumprir, já que
são direitos soberanos a todas as nações.
Como visto, os crimes informáticos estão cada vez maiores e mais comuns bem como
crimes envolvendo violência contra a mulher é perceptível que há uma necessidade de fazer
uma mudança que abrange duas etapas, a primeira a curto prazo é a criação de leis mais severas
93

e aperfeiçoamento do sistema judicial para punição, o segundo é continuar construindo uma


imagem de igualdade de gênero dentro da sociedade que ainda hoje possui características
patriarcais.
Os dados levantados a respeito dos índices de violência digital contra a mulher nos
países do Mercosul demonstra os altos números de casos de crimes contra o gênero feminino
do qual estamos inseridos no meio, porém os demais países que detém a tecnologia suficiente
para conseguir resolver casos no âmbito virtual, não cooperam pois existe um maior preconceito
com as mulheres latino-americanas, muitas vezes vídeos e fotos íntimas são vendidos para o
exterior com o objetivo de satisfazer o indivíduo - homem - dessa forma não é à toa que segundo
a ONU Mulheres, a América Latina é a região em que mais existem casos onde os agressores
saíram impunes.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Brasília, Art.121 do Decreto Lei nº 2.848/40, de 9 de março 2015: Feminicídio.


Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm>
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm>Acesso em: 02
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especialistas. Disponivel: em<http://www.telam.com.ar/notas/201705/187564-internet-
violencia-de-genero-argentina-leyes.html> .Acesso em: 02 out. 2019.
MERCOSUL. Saiba mais sobre o MERCOSUL. Disponível em:
<http://www.mercosul.gov.br/saiba-mais-sobre-o-mercosul>Acesso em: 02 out. 2019.
94

NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Relatora da ONU pede que Argentina proteja mulheres diante
de cultura machista. Disponível em:<https://nacoesunidas.org/relatora-da-onu-pede-argentina-
proteja-mulheres-diante-de-cultura-machista/>Acesso em: 02 out. 2019.
ONU MULHERES. Respostas à violência baseada em gênero no Cone Sul. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2016/12/30/internacional/1483055106_448456.html> Acesso
em: 02 out. 2019.
SCHIMIDT, Guilherme. Crimes Cibernéticos. Disponível em:
<https://gschmidtadv.jusbrasil.com.br/artigos/149726370/crimes-ciberneticos>Acesso em: 02
out. 2019.
95

VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL E A LEI MARIA DA PENHA: AVANÇOS E


RETROCESSOS

Marli Marlene Moraes da Costa1


Maria Victória Pasquoto de Freitas2

Resumo: A violência de gênero manifesta-se de diversas formas na sociedade contemporânea,


muito embora a violência física seja a mais comum e identificável, muitas mulheres sofrem
também com a violência psicológica e a sexual. O machismo e o conservadorismo ainda
figuram como principais influências para ocorrência da violência e, além disso, o problema
também envolve questões sociais, econômicas, educacionais, emocionais e de saúde. A
pesquisa objetiva contextualizar a violência de gênero e suas causas, demonstrar indicativos de
violência contra mulheres e comparar os avanços e retrocessos do Brasil para a prevenção da
violência de gênero. O problema de pesquisa compreende-se no questionamento: “Quais as
motivações para a prática de violência contra a mulher e por que o Brasil ainda sofre com esse
problema sócio-familiar?”. Para realização do estudo foram utilizados o método de abordagem
dedutivo e o método de procedimento monográfico. Os resultados da pesquisa verificaram o
aumento gradual da violência praticada contra mulheres e os inúmeros prejuízos físico e
psíquicos nas vítimas de violência, bem como a caricidade de políticas públicas transversais e
integrais para prevenção do machismo e da violência de gênero no Brasil.

Palavras-chave: Violência de gênero. Lei Maria da penha. Políticas públicas

INTRODUÇÃO

A violência de gênero no Brasil é um tema complexo e multifacetado, e representa


contemporaneamente um problema onipresente na sociedade, atingindo todos os grupos e
classes sociais. O machismo e o conservadorismo são as grandes causas da violência, o
sentimento da mulher como objeto de posse e como ser inferior, ainda são propagados na
sociedade atual, dificultando os processos de emancipação feminina.

1Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, com pós-doutoramento em Direito pela
Universidade de Burgos - Espanha, com bolsa CAPES. Professora da Graduação e da Pós-Graduação Lato Sensu
em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito
- Mestrado e Doutorado da UNISC. Coordenadora do Grupo de Estudos Direito, Cidadania e Políticas Públicas do
PPGD da UNISC. Especialista em Direito Privado. Psicóloga com Especialização em Terapia Familiar. Membro
do Conselho Consultivo da Rede de Pesquisa em Direitos Humanos e Políticas Públicas. Membro do Núcleo de
Pesquisas Migrações Internacionais e Pesquisa na Região Sul do Brasil - MIPESUL. Integrante do Grupo de
Trabalho em Apoio a Refugiados e Imigrantes (GTARI/UNISC). Membro do Conselho Editorial de inúmeras
revistas qualificadas no Brasil e no exterior. Autora de livros e artigos em revistas especializadas. E-
mail:marlim@unisc.br
2
Mestranda em Direito com Bolsa Prosuc Capes Modalidade II na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e
Bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha (URCAMP), integrante do Grupo de Estudos
Direito, Cidadania e Políticas Públicas da UNISC. Endereço eletrônico: victoriapasquoto@hotmail.com. O
presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –
Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
96

A violência é um fenômeno crescente no Brasil, nas análises comparativas, tiveram


Municípios que aumentaram em cerca de 300% a violência contra as mulheres. As regiões
Norte apresentam os maiores índices de violência, enquanto que a região Sudeste apresentou
os menores.
Daí surge o questionamento: Por quais motivos o Norte apresenta números alarmantes
se comparados com o Sudoeste e o Sul? Questões econômicas? Sociais? Culturais? As
pesquisas realizadas nacionalmente não buscam os motivos para a violência em cada região,
sendo extremamente difícil elaborar políticas públicas que atendam de igual forma a todas as
unidades federativas.
A punibilidade de forma mais severa necessita de complementos e medidas preventivas
da violência, o autor do crime dificilmente vai ser impedido de praticar a agressão por receio
da punição. Por isso que medidas educativas, como palestras e oficinas voltadas as questões de
gênero e violência, como também de construção de relacionamentos saudáveis, são
imprescindíveis para enfrentamento da violência de gênero.
Por fim, o Brasil vem reconhecendo as necessidades da elaboração e efetivação de
políticas públicas de gênero, contudo ainda carece de investimentos para concretização das
medidas. A violência de gênero é um problema sério no país e as políticas públicas devem ser
corroboradas com o fim da cultura do machismo, do conservadorismo e do patriarcalismo, para
que só então as mulheres possam ter liberdade nos relacionamentos.

1 O CONTEXTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL

O Brasil possui fortes raízes machistas e conservadoras, esses antepassados ainda se


reproduzem na sociedade atual e, especificamente, nas relações conjugais e familiares. A
mulher tratada culturalmente como entidade do lar e ocupante do papel de submissão, sofreu
uma quebra paradigmática entre os anos de 1990 a 2000, passando a emancipar-se e a exercer
atividade laboral fora do lar.
Os relacionamentos afetivos e o casamento impunham “deveres” as mulheres, dentre
eles: obediência ao marido e realização das tarefas domiciliares e para os filhos. Enquanto que
o marido era o provedor do lar e o chefe da família, exercendo o pátrio poder3 sobre a esposa e
os filhos e tendo maior poder de decisão nas escolhas familiares e relacionais.

3
BRASIL. Lei n° 3.071, de 1° de Janeiro de 1961. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 25 set. 2019.
97

O machismo e patriarcalismo estão engendrados de uma forma tão contundente na


sociedade, que o Código Civil de 1916 ainda se referia ao pátrio poder, interessante observar o
artigo 380 do referido que expõe que “durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido,
como chefe da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher”4, demonstrando
claramente a superioridade masculina.
Essa construção histórica ainda produz efeitos nas relações atuais, onde homens do
século XXI agem como os do século XIX, tratando as mulheres como propriedade. O machismo
e o patriarcalismo externalizam-se de diferentes formas, seja uma opinião ofensiva, a aversão
ao feminismo e de forma mais direta a violência física, sexual e psicológica contra mulheres.

O homem, ainda amplamente informado pelo poder socialmente legitimado que


exerce sobre a mulher e pela experiência de impunidade quando ultra-passa os limites
do tolerável, lida de forma violenta com esta nova situação. Como revelam dados
assistemáticos e da CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito - sobre a violência contra
a mulher, de 1992, a não-disponibilidade cotidiana da mulher para a satisfação dos
desejos de sexo/poder do companheiro constitui, crescentemente, causa imediata de
violência doméstica.5

A posição de mulheres na sociedade como esposas, mães e donas de casa era


considerada como vocação, tendo em vista que os trabalhos fora de casa exigiam força.
Contudo, essa realidade se alterou e em contrapartida a cultura patriarcal e da divisão do
trabalho permaneceu.
Os movimentos feministas, principalmente no final dos anos 60, reverteram a realidade
doméstica feminina, mostrando uma nova perspectiva e uma nova possibilidade de futuro e
emancipação, o que provocou a desnaturalização dos maus-tratos domésticos contra mulheres
e da sobreposição do homem, uma vez que as mulheres já ocupavam espaços públicos e
obtinham renda, não justificando mais sua submissão.
Além das raízes culturais, o Brasil sofre uma forte ascendência da violência nas relações
sociais. A “violência tem sido uma palavra muito usada para expressar comportamentos, modos
de vida, sociedades e outros fenômenos humanos”, perpassando o âmbito sócio-familiar e
aparecendo cada vez mais nos meios de comunicação, nas escolas e conversas informais. 6

4
Idem.
5
(SAFFIOTI, Heleiet I. B. Violência de gênero no Brasil atual. In: Estudos Feministas. 2° sem. p. 443-461. 1994.
p. 443. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/viewFile/16177/14728>. Acesso em: 26
set. 2019.
6
STREY, Marlene Neves. Violência e gênero: um casamento que tem tudo para dar certo. In: GROSSI; Patrícia
Krieger (Org.). Violências e Gênero: coisas que a gente não gostaria de saber. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. p.
51.
98

Após esse recorte histórico, é importante mencionar que os estudos feministas quanto
as violências domésticas iniciaram nos anos 807, o atraso do país demonstra-se quando somente
no ano de 2006 foi reconhecido legislativamente o crime de violência doméstica contra a
mulher, pela lei Maria da Penha8, que representou um marco normativo nos direitos de mulheres
e um avanço no que toca a políticas públicas de gênero.

2 ESTATÍSTICAS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO ANTES E APÓS A


PROMULGAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA (LEI N. 11.340/06)

A violência contra as mulheres passou a ser objeto de discussão nos anos 80, entrando
na pauta das políticas públicas apenas nos anos 90. É importante ressaltar que os dados e as
estatísticas, demonstram apenas uma parcela da realidade do Brasil, considerando os casos que
não chegam as políticas públicas e que ainda não há total abrangência das pesquisas em todo o
território nacional.
A violência de gênero será abordada em suas diversas formas: violência psíquica,
violência física – intrafamiliar ou não – e a forma mais extrema de violência, a morte. A
complexidade da violência de gênero e sua existência nas diversas camadas e grupos sociais e
étnicos, bem como as inúmeras formas de extarnalização por vezes não são identificáveis pelas
políticas públicas. Um relacionamento abusivo, por exemplo, apesar de representar um tipo de
violência psíquica, ainda não está incluído nas pesquisas.

7
SANTOS, Cecília Macdowell; IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero:
Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. In: EIAL - Estudios Interdisciplinarios de América Latina. jan/2005. p.
147.
8
BRASIL. Lei n° 11.340, de 7 de Agosto de 2006. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em 27 set. 2019.
99

Registros de denúncias 2018/2019

2018
2019
Total nos períodos
Violência
Violência Violência
doméstica e
psicológica física
familiar
2018 3.209 3.260 62.485
2019 0 1.105 35.769
Total nos períodos 3.209 4.365 98.254

Fonte: Sistema Integrado de Atendimento à Mulher – disque 180, 2019.9

Da análise do gráfico acima, é possível observar os números alarmantes de violência


doméstica familiar se comparados aos números de violência psicológica e violência física, o
que demonstra a invisibilidade das últimas. Quando se menciona as denúncias do disque 180,
não se refere apenas as vítimas que buscam ajuda, mas também a pessoas próximas que
identificam a violência e realizam a denúncia.
É importante ressaltar que antes de haver a violência física, na maioria dos casos ocorre
primeiro a violência psicológica (como a ameaça, por exemplo) e num segundo momento a
violência física isolada, para só depois tornar-se uma agressão reiterada e diária e então,
perceptível. Ocorre que muitas mulheres por medo, dependência econômica e emocional,
esperança de mudança de atitudes, etc., suporta a violência até atingir o nível extremo e
ocasionar, inúmeras vezes, a morte.
Para demonstrar a evolução da violência de gênero no Brasil, o Mapa da Violência de
São Paulo traz dados de homicídios contra mulheres – se faz necessário esclarecer que essa
pesquisa ainda não abrangia todo o país, bem como não tratava o homicídio de mulheres como
violência de gênero – no ano de 2003, demonstrando que 92,6% das vítimas de homicídios eram
homens e 7,4% mulheres10. A pesquisa não apresenta os motivos dos homicídios, porém em

9
BRASIL. Sistema Integrado de Atendimento À Mulher. Balanço anual: Ligue 180 recebe mais de 92 mil
denúncias de violações contra mulheres. 2019. Disponível em: <https://www.mdh.gov.br/todas-as-
noticias/2019/agosto/balanco-anual-ligue-180-recebe-mais-de-92-mil-denuncias-de-violacoes-contra-mulheres>.
Acesso em 27 set. 2019.
100

uma tabela que demonstra os Boletins de Ocorrência realizados, cerca de 12% dos registros
foram por estupro, o que já expõe uma parte da violência de gênero.11
Já no mapa da violência do ano de 2012, há divisões claras de gênero e demonstra um
aumento significativo da violência entre os anos 1980 e 201012, muito influenciado pela Lei
Maria da Penha e pelas políticas públicas e mídias que iniciaram o trabalho de incentivar as
denúncias e o diálogo. A violência sempre existiu, só não era externalizada.
O mapa da violência mais recente (2015) já trata em seu título “Mapa da violência 2015:
homicídio de mulheres no Brasil”13, ressaltando de forma mais contundente e real os
homicídios, feminicídios e as causas das violências contra mulheres. Primeiramente, o
documento abre tópicos para esclarecer como foi realizada a pesquisa e aponta a Lei do
Feminicídio (Lei n. 13.104/2015) como mais um complemento à lei Maria da Penha, agindo
também como uma forma de garantia as mulheres.

A violência contra a mulher não é um fato novo. Pelo contrário, é tão antigo quanto a
humanidade. O que é novo, e muito recente, é a preocupação com a superação dessa
violência como condição necessária para a construção de nossa humanidade. E mais
novo ainda é a judicialização do problema, entendendo a judicialização como a
criminalização da violência contra as mulheres, não só pela letra das normas ou leis,
mas também, e fundamentalmente, pela consolidação de estruturas específicas,
mediante as quais o aparelho policial e/ou jurídico pode ser mobilizado para proteger
as vítimas e/ou punir os agressores.14

O Atlas da Violência, publicado em 2019, registrou um aumento de 5,4% em homicídios


se comparado os anos de 2016 e 2017, e 4,7 mortes para cada grupo de 100 mil mulheres.
Ainda, o relatório apresentou que em cada 4 mortes, 3 são de mulheres negras15, o que
demonstra mais uma particularidade na violência contra a mulher, o viés de raça.
O Estado de Roraima apresenta o maior índice de mortes, 10,6 vítimas para cada grupo
de 100 mil mulheres, seguido do Acre com taxa de 8,3 mortes para cada 100 mil mulheres e

11
WAISELFISZ, Júlio Jacobo; ATHIAS, Gabriela. Mapa da violência de São Paulo. Brasília: 2005. Disponível
em: <https://mapadaviolencia.org.br/publicacoes/MapaSPaulo.pdf>. Acesso em: 28 set. 2019. p. 109.
12
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2012: Os novos padrões da violência homicida no Brasil. São
Paulo: 2011. Disponível em: <https://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf>. Acesso em: 28 set.
2019. p.68.
13
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso, 2015.
Disponível em: <https://mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 28
set. 2019. p. 1.
14
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil. Brasília: Flacso, 2015.
Disponível em: <https://mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 28
set. 2019. p. 7.
15
BRASIL. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da Violência
2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de
Segurança Pública. 2019. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pd
f>. Acesso em: 29 set. 2019. p. 35.
101

Rio Grande do Norte com a mesma média. Já os menores índices concentram-se nos Estados
de São Paulo, com 2,2 vítimas para cada 100 mil, Distrito Federal (2,9) e Santa Catarina (3,1).16
Desta forma, o que se conclui diante dos números apresentados, é que apesar da criação
de leis, das centrais de ajuda e da conscientização social sobre os riscos do machismo, a
violência vem aumentando progressivamente. O Brasil ainda carece de políticas públicas e de
investimento prioritário para as questões de gênero, como também elaboração de palestras e
oficinas tratando do tema.

3 AVANÇOS E RETROCESSOS NO BRASIL QUANTO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O Brasil já avançou em muito quando incluiu em suas pautas os direitos de mulheres e


as questões de gênero, primeiro com a criação da Lei Maria da Penha em 2006 e depois com a
Lei do Feminicídio em 201517. Contudo, é preciso mais ações para prevenir, enfrentar e
erradicar esse problema social que assola o pais e perpassa as décadas, constituindo ainda uma
demanda contemporânea.
Da análise dos dados e da progressividade da violência no Brasil e, principalmente, nas
regiões Norte, se extrai que a punibilidade não é o único meio de obter redução da violência.
Medidas como a conscientização de crianças e adolescentes em fase escolar, tem poder de
modificar suas ações no futuro (na constituição de um relacionamento casual ou conjugal).
O machismo e o conservadorismo enraizados na sociedade permitem que homens
considerem as mulheres um objeto de posse e com direito de reivindicá-lo. Ademais, a não-
aceitação de términos em relacionamentos motiva, em grande parte, a ameaça, a violência e em
casos mais graves o feminicídio. É importante ressaltar que esse problema permeia toda a
sociedade em seus diversos grupos, camadas sociais e comunidades.
A violência contra a mulher normalmente é combinada como, por exemplo, a violência
psicológica e a física ou a física e a sexual, demonstrando uma dupla violação de direitos. Em
pesquisa realizada pela OMS no Brasil, 56% das mulheres admitem sofrer apenas violência
física; 30% das mulheres afirmaram ter sido agredidas pelo parceiro tanto com violência física
como sexual e menos de 10% afirmaram ter sofrido violência sexual18, sendo que em grande

16
Idem.
17
BRASIL. Lei n° 13.104, de 9 de Março de 2015. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm>. Acesso em 30 set. 2019.
18
OMS. Estudio multipaís de la OMS sobre salud de la mujer y violencia doméstica: Primeros resultados sobre
prevalencia , eventos relativos a la salud y respuestas de las mujeres a dicha violencia. Suiza: 2005. Disponível
em: <https://assets-compromissoeatitude-
102

parte das agressões conjugais é formado um padrão de abuso reiterado “[...] e pode ter
consequências como dores pelo corpo, dificuldades para realizar tarefas cotidianas, depressão,
abortos e tentativas de suicídio”.19

La violencia ejercida contra la mujer tiene unas repercusiones mucho mayores que el
daño inmediato causado a la víctima. Tiene consecuencias devastadoras para las
mujeres que la experimentan, y un efecto traumático para los que la presencian, en
particular los niños. Representa algo vergonzoso para los Estados que no logran
evitarla y las sociedades que la toleran. La violencia ejercida contra la mujer
constituye una violación de los derechos humanos básicos que debe eliminarse
mediante la voluntad política y las actuaciones judiciales y civiles em todos los
sectores de la sociedad.20

Com o retorno do pensamento conservador na política, com discursos machistas e com


a vontade de retroceder o papel feminino a entidade do lar, houve a legitimação do pensamento
machista nas comunidades e na sociedade, fazendo com que todo o movimento feminista e
social viva um retrocesso e falta de incentivo governamental para prosseguir com suas lutas.
Desta forma, o país já avançou muito quanto a elaboração de leis, centrais de
atendimento e políticas públicas voltadas a proteção de mulheres. Porém, ainda são necessárias
medidas complementares e intersetoriais que abarquem a conscientização, a prevenção, o
enfrentamento e a erradicação da violência.

CONCLUSÃO

A violência de gênero obteve um crescimento considerável nos últimos anos, o que


implica na necessidade de novas estratégias para enfrentamento desse problema social. Todos
os dias mulheres tem suas vidas ceifadas pelo machismo, por este motivo, o estudo objetificou
demonstrar os índices de violência no Brasil através de dados extraídos de entes governamentais
com vista a ressaltar a importância da propagação da não-violência e da defesa dos direitos das
mulheres.

ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2012/08/OMS_estudiomultipais_resumendelinforme1.pdf>. Acesso em: 30 set.


2019. p. 9
19
OMS. Estudio multipaís de la OMS sobre salud de la mujer y violencia doméstica: Primeros resultados sobre
prevalencia , eventos relativos a la salud y respuestas de las mujeres a dicha violencia. Suiza: 2005. Disponível
em: <https://assets-compromissoeatitude-
ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2012/08/OMS_estudiomultipais_resumendelinforme1.pdf>. Acesso em: 30 set.
2019. p. 19.
20
OMS. Estudio multipaís de la OMS sobre salud de la mujer y violencia doméstica: Primeros resultados sobre
prevalencia, eventos relativos a la salud y respuestas de las mujeres a dicha violencia. Suiza: 2005. Disponível em:
<https://assets-compromissoeatitude-
ipg.sfo2.digitaloceanspaces.com/2012/08/OMS_estudiomultipais_resumendelinforme1.pdf>. Accesso em: 30 set.
2019. p.1.
103

Em resposta ao problema de pesquisa, além das questões ideológicas, a ascensão do


conservadorismo tem colaborado para a legitimação do pensamento machista e patriarcal, que
retrocede a mulher ao papel de submissão e inferioridade e coloca o homem no centro das
relações. A relevância da pesquisa concerne na demonstração da violência (ou das violências,
quando de forma conjunta) e da prejudicialidade física e psíquica para as mulheres e, até
mesmo, para seus filhos quando presenciam as agressões.
No mesmo sentido, o Brasil não toma as medidas necessárias para o fim da violência,
avançando em uma política pública e falhando em outra, seja por falta de incentivos
governamentais ou iniciativa dos governantes em efetivar as políticas públicas já existentes. É
imprescindível a análise individualizada das regiões do país para a elaboração de políticas
públicas que atendam suas especificidades.
O advento da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio foram uma resposta ao
aumento da violência, contudo, é notório que somente o aumento da punibilidade não previne
a ocorrência da violência. Devem ser tomadas medidas intersetoriais, complementares e
conjuntas para o fim da violência de gênero e a mudança da cultura de submissão feminina.
Por fim, a violência de gênero é considerada um problema multifatorial, envolvendo
tanto questões econômicas, culturais, educacionais, familiares e sociais. O Brasil já avançou
quanto a elaboração de legislação protetiva e punitiva, contudo o país ainda carece de novas
estratégias para dar fim a esse problema social que atinge diretamente as mulheres todos os
dias.

REFERÊNCIAS

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WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídios de mulheres no Brasil.


Brasília: Flacso, 2015. Disponível em:
<https://mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em:
28 set. 2019.
105

O FEMININO E A MORTE NA CULTURA: REFLEXÕES SOBRE O FEMINICÍDIO


NO BRASIL

Natália Centeno Rodrigues1


Rodrigo Fernandes Teixeira2

Resumo: O presente artigo possui por objetivo discutir a noção do feminicídio enquanto uma
categoria da linguagem que denota a mortificação do corpo feminino e que conota uma
possibilidade de resistência frente as estruturas patriarcais da sociedade. Nos orientamos a partir
do método dialético por possibilitar a compreensão dos sujeitos, da cultura e da linguagem em
relação consequencial. Dessa forma, lançamos um olhar sobre a autorização da violência
masculina sobre o corpo e a existência feminina, resultando na sua completa aniquilação apenas
pela sua condição de gênero. Percebemos que a criação dessa categoria é fundamental por
permitir a categorização de uma tipologia penal específica que permite atuar na prevenção da
morte de mulheres e colaborar na luta pela autonomia do gênero feminino.

Palavras-chave: Feminicídio. Linguagem. Cultura. Prevenção.

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

A sociedade brasileira é uma coletividade demarcada por desigualdades e assimetrias,


ambas são elementos que dificultam as discussões propostas e muitas vezes constituem
empencilhos para que possamos abordar elementos que constituem a nossa realidade social. O
femicídio é um elemento que compõe o complexo cenário contemporâneo, o presente texto
propõe refletir sobre a importância da criação do femicídio, como uma categoria que visibiliza
a condição feminina na sociedade brasileira.
Históricamente a morte feminina existe desde o começo dos tempos, há poucas décadas
existia na cultura jurídica brasileira a tese da legítima defesa da honra, ideia aventada muitas
vezes quando um homem matava sua esposa ou companheira, para lavar sua honra. Essa tese
até a década de 60 era bem aceita nos tribunais nacionais, na década seguinte passou perder
força, pois observamos que na década de 70, “a impunidade começa a diminuir com a autuação
dos movimentos feministas”3 Substanciado na tese de legitima defesa da honra vimos muitos
homens conseguir absolvição, apesar da tese arguida não estar amparada em nenhum

1
Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel). Mestra em Direito e Justiça Social (FURG).
Bacharela em Direito e História (FURG). Advogada regularmente inscrita junto a OAB/RS com o número 102.120.
Docente universitária da Faculdade Ideau de Bagé. E-mail para contato: naticenteno@gmail.com
2
Mestrando em Psicanálise Clínica e Cultura (UFRGS). Bacharel em Psicologia (FURG). Psicólogo clínico. E-
mail para contato: rodrigo.fds.t@gmail.com
3
BAPTISTA, Carla Viviane Bertoch. Homicídio passional – uma discussão entre crime privilegiado e qualificado.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 116, ano 2015, s/p.
106

dispositivo legal, tal argumento substanciou absolvições e permeiou o laço cultural, de modo a
se cosubstanciar no cotidiano e chegou a ser retratada na teledramaturgia em obras como
Gabriela, inspirada em livro homônimo de Jorge Amado, exibida no ano de 2012, por um canal
de televisão aberta e obras cinéfilas como Estomago, filme brasileiro de 2007, tais obras são
alegorias que nos fazem pensar como esses crimes se inscrevem no âmbito cultural brasileiro.
Vemos assim, que a mulher por muito tempo foi retratada como um objeto possuído por
um homem, essa construção social do que seria o local da mulher, qual o seu papel nossa
sociedade, se enraizou nos espaços privados e muitas vezes ampliou-se para o público. A
ruptura com o papel de submissão feminina começou a ser estabelecido através de tensões
sociais, que reivindicavam direitos e garantias as mulheres, das quais destacamos a luta pelo
direito ao voto traçadas no começo do século XX, as décadas seguintes foram marcadas pela
tentativa do ingresso no mercado formal de trabalho, o direito de divorciar-se do esposo
conquistado na segunda metade da década 70, a igualdade de gênero como um direito
constitucional assegurado em 1988 até a criação de uma legislação específica que visa proteger
a mulher no âmbito das relações domésticas, e objetiva resguardá-la dos mais variados tipos de
violências, que o caso da Lei Maria da Penha de 07 de agosto de 20064.
Para o presente escrito utilizamos uma abordagem metodológica dialética, por entender
que a mesma possibilita o diálogo com a realidade social concreta e viabiliza a reflexão sobre
um problema sem reduzi-lo as soluções simplistas. “Fica claro também que a dialética é
contrária a todo conhecimento rígido. Tudo é visto em constante mudança: sempre há algo que
nasce e se desenvolve e algo que se desagrega e se transforma” 5. Ao elaborarmos o texto
utilizamos os seguintes procedimentos técnicos: pesquisa bibliográfica e documental, ambas de
nível exploratório. Recorremos a tais recursos com a intenção de enriquecermos a problemática
abordada.
Dentro desse escrito analisaremos o feminicídio como uma categoria de análise que é
pensada através da construção cultural, o femicídio como um crime atroz que denuncia a
ineficiência do Estado brasileiro em tutelar o gênero feminino e a elaboração ou visibilização
de elementos que nos auxiliam a enfrentar a violência de gênero como um problema social.

4
BRASIL. Lei n. 11.340 de 07 de agosto de 2006. – Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm Acessado em setembro de 2019.
5
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 1989, p. 32.
107

2. A CONSTRUÇÃO DO FEMINICÍDIO COMO UMA CATEGORIA DE ANÁLISE

Nesse cenário que diversos diplomas legais asseguram e resguardam a condição


feminina, vimos a criação de políticas públicas que visam assegurar a vida feminina em nosso
país, essas medidas de enfretamento denunciaram uma triste realidade, o Brasil é o 5º país no
ranking mundial de violência contra a mulher6. Nesse cenário de crescente problematização da
condição feminina, em março de 2015 foi sancionada a Lei do feminicidio (Lei 13.104/2015)7,
que se originou do Projeto de Lei do Senado 8.305 de 2014, e criou o femicídio como uma
agravante do crime de homicídio, qualificadora que será evocada quando e uma mulher for
assinada em virtude da condição de gênero.
A tipificação do feminicídio, nos interroga a pensar inúmeras questões, a primeira delas
é o que significa essa palavra. Se retomarmos a origem semântica latina, obtemos a fusão de
duas expressões femina acrescida de cidio, matar uma femêa, matar uma mulher. Diante dessa
significação gramatical, se estabelece uma diferenciação entre feminicídio e o homicídio –
sendo que o último significa matar um homem. Por conta das generalizações e abstrações que
permeiam a linguagem e os códigos culturais relegamos o ato de matar uma mulher em virtude
da condição de gênero, pois o mesmo permaneceu silente por um lapso temporal.
O feminicídio pode ser compreendido como uma violência extrema que aniquila a
existência feminina, através da morte. Tal expressão foi utilizada internacionalmente pela
primeira vez 1976, sua formulação original em língua inglesa por Diana Russel, durante um
depoimento perante o Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em Bruxelas, na
Bélgica, conforme nos ensina Jacqueline Zarbatto8. “Já no Brasil, a categoria “femicídio” foi
utilizada por Heleieth Saffioti e Suely Almeida (1995), com uma análise sobre homicídios de
mulheres nas relações conjugais”9.
Temos como categorias mais detalhadas o feminicídio íntimo e o não-íntimo. O primeiro
refere-se àquele que é realizado por um home que possui vínculo afetivo com a vítima, seja
matrimonial, familiar ou sexual; o segundo por aquele que impetra a morte sem que haja algum

6
Informação obtida via: https://nacoesunidas.org/onu-feminicidio-brasil-quinto-maior-mundo-diretrizes-
nacionais-buscam-solucao/ Acessado em setembro de 2019.
7
BRASIL Lei n. 13.140 de 09 de março de 2015 – Lei do Feminicídio. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm Acessado em setembro de 2019.
8
ZARBATTO, Jacqueline. Feminicídio. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio (org.).
Dicionário crítico de gênero. 2.ed. – Dourados, MS: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019, p.
245.
9
ZARBATTO, Jacqueline. Feminicídio. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio (org.).
Dicionário crítico de gênero. 2.ed. – Dourados, MS: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019, p.
245.
108

tipo de relação íntima, porém, há uma relação de confiança, como amigos e colegas de trabalho.
Tal diferenciação é fundamental para montagem dos dados estatísticos a posterior leitura dos
mesmos.

3. O SILÊNCIO COMO CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA: O DOMÍNIO, A


SUBJUGAÇÃO E O FEMININO

O silêncio foi historicamente atribuído como uma condição feminina,


historiograficamente o papel da mulher passou a ser retratado há algumas décadas, a presença
feminina nos livros de história é uma conquista recente. A mulher começa a figurar na vida
pública no final do século XIX, “O silêncio é, um mandamento reiterado através dos séculos
pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento”10 esse silêncio
sintomático e desejado como conduta social feminina observa Michele Perrot em sua obra. Os
silêncios que compuseram a esfera pública, a arena política e o âmbito privado. As mulheres
foram atribuídas o papel da escuta, do acolhimento, da espera, um silenciar que constituiu-se
na impossibilidade de fala, e que retirou o feminino da linguagem, quando foram criadas
categorias universais e generalistas, todas assentadas na perspectiva masculina, como a palavras
homem, para designar pessoas de ambos os sexos. A existência feminina é reivindicada, como
exemplo lembramos da francesa Marie Gouze, publicamente conhecida como Olympe de
Gouges, que em setembro de 1791, propôs a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã11
para se igualar aos elementos trazidos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789, apontado como o grande diploma legal que temos da Revolução Francesa. A condição
de silenciamento é denunciada quando uma cidadã cria um documento que visa reconhecer os
direitos e atribui a cidadania as mulheres, tentando igualar a condição da mulher a do homem.
Esse documento histórico, pois, reivindica a igualdade entre os sexos, poucas vezes é estudado
nas graduações de direito, sendo um diploma interessante no que tange o reconhecimento de
direitos humanos, o silenciar perpetua-se quando as coisas não são reconhecidas.
O silêncio atribuído a história das mulheres é marcado por uma dominação, por uma
vinculação que estrutura a relação constituída em nossa sociedade

O corpo está no centro de toda relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro,
de maneira imediata e especifica. Sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas,
seus gestos, sua maneira de andar, de olhar, de falar e de rir (provocante, o riso não
cai bem às mullieres, prefere-se que elas fiquem com as lágrimas) são o objeto de uma
perpétua suspeita. Suspeita que visa o seu sexo, vulcão da terra. Enclausllrá-las seria

10
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 9.
11
O texto integral encontra-se disponível em: http://emaberto.inep.gov.br/index.php/emaberto/article/view/2450
109

a melhor solução: em um espaço fechado e controlado, ou no mínimo sob um véu que


mascara sua chama incendiária. Toda mulher em liberdade é um perigo e, ao mesmo
tempo, está em perigo, um legitimando o outro. Se algo de mau lhe acontece ela está
recebendo apenas aquilo que merece. O corpo das mulheres não lhes perténce. Na
família, ele pertence a seu marido que deve ‘possui-lo’ com sua potência viril. Mais
tarde, a seus filhos, que as absorvem inteiramente 12.

Percebemos, então, que a condição cultural do feminino está atrelada a uma dominação
masculina da integridade da mulher, ou seja, tanto seu corpo como seus modos de vida são
regulamentados pelo poder patriarcal. Esse diálogo sobre a acepção cultural onde o masculino
é dono do feminino por uma espécie de “direito divino” é fundamental para entendermos como
a história pode nos contar a maneira como a linguagem se estrutura de forma a subalternizar a
condição do gênero feminino. Não à toa, conforme o mito cristão de surgimento humano,
questão que é importante de ser pensada por nós, afinal, os valores cristãos se encontram nos
pilares da sociedade ocidental, Deus cria a mulher a partir da costela do homem, portanto, um
dos mitos mais fundamentais da formação das bases culturais do mundo ocidental é de uma
subalternidade natural da mulher em relação ao homem, da mulher como uma consequência
direta do corpo masculino, consequentemente, sem existência própria.
Portanto, apesar de todo o “avanço civilizatório”, não conseguiu-se ainda chegar a um
entendimento e uma produção de uma condição de igualdade ontológica entre homens e
mulheres, principalmente entre o corpo masculino e o corpo feminino. Fica claro para nós que
a
Dimensão maior da história das relações 'entre os sexos, a dominação dos homens
sobre as mulheres, relação de forças desiguais, expressa-se freqüentemente pela
violência. O processo de civilização a faz recuar sem aboli-la, tornando-a mais sutil e
mais simbólica. Subexistem, entretanto, grandes explosões de uma violência direta e
sem dissimulação, sempre pronta a ressurgir, com a tranqüila segurança do direito 'de
poder dispor livremente do corpo' do Outro, este corpo que lhe pertence 13.

Tal questão desloca o debate e nos faz pensar em uma espécie de subdivisão do processo
de violência, nunca hierarquizada, porém, colocada em perspectiva, pois há um refinamento
das estruturas de poder que vão ampliando os meios de dominação e os tornando cada vez mais
sutis, fazendo com que, inclusive, a formação subjetiva da mulher seja atrelada a essa estrutura
patriarcal, tendendo a naturalizá-la. Uma das principais perguntas que se interpõe nesse diálogo
é: o que faz um homem autorizar-se a destruir o corpo feminino ao seu bel prazer?
Não temos respostas prontas, mas elencamos alguns indícios teóricos que nos auxiliam
a rascunharmos respostas. No final do século XIX, na Áustria vitoriana, surgiam os primeiros

12
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 447.
13
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 454.
110

estudos psicanalíticos de Sigmund Freud. Seu primeiro trabalho publicado foi os “Estudos sobre
a Histeria”, que, basicamente, versava sobre casos clínicos de mulheres histéricas, em suma,
considerada loucas. Temos de largada um cenário bastante específico para o surgimento deste
trabalho, já que o tratamento regular da época para as histéricas era de internações em hospitais
como o famoso Salpetriére, dirigido por Charcot, onde métodos como banhos gelados, choques
elétricos, massagens, banhos de sol e, em último recurso, porém, muito comum, a retirada do
útero, como medida mais drástica e invasiva, mas que resguardava o resultado clínico esperado.
Histeria carrega na própria etimologia o útero, hístero em grego significa útero, ou seja,
a doença de uma loucura sem muito sentido só poderia ser feminina. Os sintomas variavam
muito, desde crises afásicas, sonambulismo, esquecimento, estado estupor, agressividade,
problemas relativos aos sentidos e se comunicar em idioma não comum. Pensar que este
problema é um problema feminino pela sua fraqueza e por um saber médico seria algo
demasiadamente pobre, porém, a condição da histeria nos diz em demasia sobre a posição da
cultura frente ao corpo feminino, pois, nela “É como se esses corpos nos falassem da patologia
e da violência escondidas ali na esquina, espreitando no horizonte da ‘femidade’ normal”14. Tal
tarefa, encampada por homens que dispõem de saber e de aparato imbuído de autoridade, é de
neutralização de qualquer ameaça que uma mulher impõe ao patriarcalismo.
Poderíamos remontar a Idade Média, para demonstrarmos como o corpo feminino, esse
corpo diferente do masculino sempre foi objeto de especulação. Curiosidade que na maioria das
vezes o submeteu a um local de subjulgação, ou seja, o diferente é subjulgado para assim ser
analisado e contido. Os corpos femininos sempre foram estudados, contenciados, afastados e
subjulgados, em virtude da diferença.
Freud15 percebe que estes métodos de “tratamento” e o encarceramento da histeria não
se ocupavam em absolutamente nada, eram duplamente ineficazes, pois não geraram melhoras
nas condições clínicas das mulheres e nem colaboravam para a emancipação social das mesmas.
É extremamente curioso que venhamos aqui mencionar o trabalho de um homem sobre
mulheres doentes, porém, é a paciente 0, Anna. O, de nome Bertha Pappenheim, que dá nome
ao método psicanalítico: a cura pela fala. Foi necessário ainda um homem encabeçar essa ideia,
porém, Bertha, no futuro, tornou-se uma assistente social de fundamental importância para os
temas feministas e da saúde da mulher. Ou seja, ao desencarcerar a loucura e ao negar o ímpeto
masculino de subjugar o corpo feminino, abre-se uma fenda na linguagem que torna possível

14
JAGGAR, Aalison, BORDO, Susan. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro, RJ: Rosados tempos 1997,
p. 27.
15
Ver mais na obra: FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro, RJ: Editora Imago, 1995.
111

parte do trabalho de emancipação da mulher enquanto sujeito integral. Emancipação essa


alcançada através da possibilidade de fala, de elaboração na linguagem que a possibilitava
bordear, contornar suas questões, as recolocando a partir da palavra, a coloca como sujeito e
não mais como objeto pesquisável.
“O corpo assassinado das mulheres evidencia-se como um corpo marcado pela vontade
de repressão e destruição das partes que representam a voz e a feminilidade” 16. Vemos que a
violência empregada em crimes de gênero aparece como uma nova forma de controle sobre o
corpo feminino, controle que extrapola o domínio da existência, controle que supostamente
admite a cessação da sua vida, não basta matar a toxicidade masculina o autoriza a matar, a
mutilar, a violar, a deformar esse corpo, como se esse crime consistisse em um desfazimento
do sujeito de gênero feminino. Esse aniquilamento, essa anulação pela condição de gênero que
a tipificação do feminicidio busca combater, reprimir e conscientizar. Falar de feminicídio
significa problematizar o ódio contido nas relações sociais, desferido as mulheres, ódio que se
reflete em implicações econômicas, jurídicas, políticas, ou seja, social, que afetam a vivência
feminina.

4. O DIREITOS DAS MULHERES E O COMBATE A VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Problematizar as questões de gênero nos exige uma reflexão que se estende para além
do elemento específico do feminicídio, nos faz compreender toda rede complexa que vem sendo
construída para resguardar os direitos das mulheres. A elaboração do feminicídio como uma
qualificadora do homicídio é uma conquista importante, mas junto dela se faz necessário
destacarmos algumas ações positiva do Estado com a intuito de assegurar direitos e a vida das
mulheres.
Em junho de 1994, ocorreu a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar
a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará”17, texto produzido no âmbito da
Organização dos Estados Americanos (OEA) visa assegurar a proteção da condição do gênero,
tanto no âmbito público como privado. Pontou que violência não é apenas física, e observa a
violência sexual e psicológica como formas a ser combatida. Tutela direitos como a vida, a
integridade física, mental e moral, a liberdade e à segurança pessoal, não ser submetida à

16
ZARBATTO, Jacqueline. Feminicídio. In: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio (org.).
Dicionário crítico de gênero. 2.ed. – Dourados, MS: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019, p.
248.
17
Texto convencional disponível em: http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm . Acessado
em setembro de 2019.
112

tortura, igualdade de proteção perante a lei, liberdade para participar da vida pública de seu
país, assim como para participar de assuntos políticos. Assegura as mulheres o direito de ser
valorizadas independentemente de padrões estereotipados, de comportamentos e hábitos
socioculturais. Além de assegurar esses direitos a Convenção de Belém do Pará dispõe que os
Estados devem adotar medidas legais para coibirem a violência contra a mulher. O Brasil só
internalizou o texto convencional em agosto de 1996, através do Decreto nº 1.973, o processo
de incorporação faz com que o texto convencional ingresse em nosso ordenamento jurídico.
Sendo um marco na perspectiva legal brasileira.
Passados dez anos, tivemos a aprovação da lei que tornou-se um marco para pensarmos
a proteção aos direitos das mulheres, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), remonta um
cenário de proteção ao gênero feminino nas relações domésticas e familiar. Esse dispositivo
legal inaugurou uma nova perspectiva nas relações sociais no Brasil, começou a deslocar o
problema da violência de gênero do âmbito interno, familiar para ser problematizado como uma
questão social. A visibilidade alcançada a partir da Lei Maria da Penha, proporcionou novos
espaços de construções sociais nos quais a violência de gênero começou a desnaturalizada e a
mulher enquanto sujeito que sofre a violência, começou a construir possibilidades narrativas
que a deslocam da condição de culpada.
Ainda no âmbito nacional, surge a tipificação do feminicídio, como uma das causas de
aumento nos crimes de assassinato quando o mesmo possuir motivação de gênero, ou seja,
quando há uma morte violenta e essa foi cometida por razões da condição feminina, em virtude
do gênero. Essa criação legislativa evidencia quando o Estado torna-se insuficiente em evitar a
morte das mulheres, essa qualificadora do tipo penal homicídio nos diz que há uma
circunstância especial nesse assassinato, demonstrando uma vida feminina foi ceifada em
virtude da sua condição de gênero. Por ser uma construção recente o feminicídio muitas vezes
ainda é subnotificado como uma qualificadora do homicídio, fator que dificulta a compilação
dos dados oficiais.
Nos oito primeiros meses de 2019 (janeiro a agosto) no Estado do Rio Grande do Sul
constam que 66 (sessenta e seis) feminicídios foram consumados e 233 (duzentos e trinta e três)
foram tentados, estatísticas muita próxima do mesmo período do ano anterior, que registrou 73
(setenta e três) consumados e 249 (duzentos e quarenta e nove) tentados. Pelos números é
possível verificarmos que houve uma redução em comparação com o ano anterior, conforme os
dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio Grande do Sul18.

18
Dados disponíveis em: https://ssp.rs.gov.br/indicadores-da-violencia-contra-a-mulher
113

Sobre os dados compete tecermos uma observação que os mesmos encontram-se organização
em nível estadual e especificado por tipologia, conseguimos acessar informações sobre os
munícipios do nosso estado, evidenciando que há uma atualização e uma preocupação do ente
estatal com os crimes envolvendo violência contra a mulher, o mesmo rigor é observado com
outras tipologias penais, fator que favorece a extração de dados estatísticos. Nacionalmente
vislumbramos a inexistência de índices nacionais, como uma base integrada de dados, fator que
dificulta um levantamento para problematizarmos tais questões. O que verificamos foram
variados estudos que indicavam no primeiro semestre do corrente ano um aumento significativo
no número de feminicídios. Atribuímos esse aumento ao discurso de intolerância e aniquilação
do outro que se tornou prática recorrente na sociedade brasileira, a impossibilidade da
construção de um diálogo inviabiliza a aproximação e a visibilidade do outro, fator que autoriza
a aniquilação do diferente e inviabiliza a construção de uma sociedade mais justa e igual.
A pauta da violência contra a mulher possuí um lugar de destaque na nossa sociedade,
e ocupa as discussões públicas nesse sentido inúmeras questões tocam a mesma e geram
preocupações ao pensarmos nos altos índices que nosso país ostenta. Questão crucial a ser
trazida para dentro dessa reflexão, um contexto social no qual a flexibilização da posse e do
porte de armas está sendo discutido, gera um aumento na circulação das mesmas e também uma
insegurança para mulheres. “Apenas em 2017, mais de 221 mil mulheres procuraram delegacias
de polícia para registrar episódios de agressão (lesão corporal dolosa) em decorrência de
violência doméstica”19, dados esses extraídos a partir dos registros, lembrando que quando
falamos de questões criminais ainda temos a cifra oculta, na qual estão incluídas todas as
mulheres que por vergonha ou outros motivos não denunciaram as situações que vivenciaram.
Ao pensar o feminicídio não podemos restringi-lo a uma qualificadora de um tipo penal,
é um fenômeno complexo, que parte de um recorte de gênero, tendo em vista que é o mesmo é
o assassinato de alguém em virtude da condição de gênero. Mas outros elementos estão
imbrucados como a questão racial e questão de classe20. Para termos um panorama mais amplo
seria necessário um observatório nacional com dados disponíveis, para assim conseguirmos
elaborar um diagnóstico desse problema social.

Acessado em setembro de 2019.


19
IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas da violência
2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: 2019, Disponível em:
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatorio_institucional/190605_atlas_da_violencia_2019.pdf
Acessado em setembro de 2019, p. 42.
20
Entendemos que essas questões constituem elementos importantes do fenômeno em comento, mas por virtude
da extensão do artigo, não teremos como aborda-los de modo aprofundado.
114

Outra questão importante, perpassa pela adoção de medidas que visem padronizar a
conduta dos agentes públicos no que tange tal delito. Nesse sentido, destacamos a iniciativa
realizada pelo Conselho Nacional de Justiça, que elaborou a Resolução nº 254 de 2018, que
criou a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder
Judiciário, a qual visa a realização de mutirões para agilizar a tramitação das ações que
envolvam casos com violências contra a mulher. Além disso, estabeleceu a criação de
Coordenadorias estaduais da mulher em situação de violência doméstica e familiar, e através
delas, devem estabelecer parcerias entre entidades públicas e organizações não-
governamentais, e além deve realizar formação para os magistrados que atuarão nessa temática.
Visando estimular a qualificação sobre essas questões.
Destacamos a criação de um Modelo do Protocolo latino-americano de investigação das
mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio) documento
elaborado em 2014, pelo Escritório Regional para a América Central do Alto Comissariado das
Nações Unidas para os Direitos Humanos (OANUDH), o mesmo visa organizar e orientar a
práticas dos operadores da Justiça, para assim melhorar a investigação policial e até mesmo o
processamento judicial, o documento intui organizar as ações do Estado, para responder as
obrigações internacionais e nacionais assumidas pelo governo brasileiro para enfrentar o
feminicídio. Até setembro de 2018 apenas três estados brasileiros aderiram a esse protocolo:
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Sul.
Essas iniciativas buscam elaborar novas práticas e possibilidades para os atuantes no
judiciário e no sistema de investigação policial, visando que os casos de feminicídios sejam
encaixados como tal, e não mais como subnotificações. Visando que haja por parte dos agentes
públicos uma uniformidade na condução desses delitos e oriente para a construção de uma
política pública, no âmbito judiciário e policial para padronizar, a ação nas situações extremas.
Além do estatuto jurídico que envolve inúmeras questões práticas da proteção à mulher,
temos nessa expansão da tipificação do feminicídio uma função fundamental que a da operação
de uma mudança no nível da linguagem. Assim como consideramos no começo do texto que a
dominação do feminino pelo masculino se estrutura na cultura por meio da linguagem, uma
revolução nesse aspecto passa obrigatoriamente pela mesma.
Jacques Lacan considera que o sujeito é uma consequência da linguagem e que a cultura
é formada pela mesma, ou seja, do ponto de vista estruturalista, toda a mudança que pretenda
romper com uma cadeia histórica de acontecimentos necessita ser iniciada pela linguagem. A
luta para que haja uma palavra que defina o assassinato feminino por sua condição parece ser
115

pouco, porém, ela abre uma fresta para que possamos reconhecer que existem mulheres que são
mortas apenas por serem mulheres, algo que há quarenta anos atrás não seria possível.
Giorgio Agamben, filósofo italiano, se debruça sobre a figura jurídica do Hommo Sacer
(homem, novamente) que seria aquela pessoa a quem seria impetrada essa condição e sua morte
não seria nem assassinato nem sacrifício. Tal fator torna esta vida eliminável sem que haja
consequências para quem pratica tal ato de violência. No caso do assassinato das mulheres,
ofertar uma categoria faz com que ela exista para além da realidade crua, possibilita que haja o
combate.
Ainda é fundamental comentarmos a possibilidade de um relativismo e da importância
de não cairmos nele. Existem muitos argumentos que dão conta de a categorização do
feminicídio seria desnecessária por já haver a categoria do homicídio, fora que dão conta de
perguntar quando ocorre o contrário, quando uma mulher mata um homem por ser homem. O
primeiro ponto a ser considerado é que sequer existem dados estatísticos suficientes que
justifiquem a tentativa de criação categórica de um “machicídio”. O outro fato é que deixar de
levar em conta a violência praticada por homens, mostradas nas estatísticas, contra as mulheres,
seria um erro tamanho.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, ao inscrever na linguagem, reconhecemos a existência da condição de gênero feminina,


não apenas através da tipificação de um delito que majore a punição do homicídio que retira a vida de
uma mulher em virtude da condição de gênero, inscrevemos no laço social a existência de uma série de
direitos os quais as mulheres seguem reivindicando e também reconhecemos a condição feminina como
elemento fundamental de respeito e respaldo jurídico em uma sociedade democrática.
Consideramos também que a categorização do feminicídio atua em duas frentes: uma que
interfere na possibilidade de criação de políticas públicas que reduzam a mortalidade feminina pela sua
condição de gênero e a outra que colabora com uma mudança de paradigma do domínio masculino sobre
o corpo feminino, essa atua na dimensão simbólica e se faz fundamental para resignificarmos os
elementos culturais que tangenciam as relações humanas. Dessa forma, é a abertura de uma fenda
discursiva que pode dar início a uma verdadeira revolução acerca da condição da mulher na cultura
ocidental, sobretudo em nosso país. Fenda que possibilitará o respeito aos direitos humanos e alteridade
feminina.
116

REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Carla Viviane Bertoch. Homicídio passional – uma discussão entre crime
privilegiado e qualificado. Revista Brasileira de Ciências Criminais. Vol. 116, ano 2015.

BRASIL Lei n. 13.140 de 09 de março de 2015 – Lei do Feminicídio. Disponível em:


http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm Acessado em
setembro de 2019.

BRASIL. Lei n. 11.340 de 07 de agosto de 2006. – Lei Maria da Penha. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/L11340.htm Acesso set. 2019.

FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1995.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1989.

IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Atlas
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da Grande Dourados, 2019.
117

TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO


SEXUAL NO BRASIL

Paloma Souza dos Santos1


Denise Tatiane Girardon dos Santos2
João Batista Monteiro Camargo3

Resumo: O presente artigo visa a realizar uma breve análise sobre o tráfico internacional de
mulheres para fins de exploração sexual no Brasil, expondo as dificuldades conceituais,
principalmente, quanto ao consentimento, buscando abordar o perfil das vítimas e aliciadores e
os fatores de vulnerabilidade, e, por fim, a importância e das políticas públicas para o
enfrentamento ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, e sua a (in)eficácia.
Objetiva-se, dessa forma, analisar como ocorre o tráfico internacional de pessoas com a
finalidade de exploração sexual, partindo dos fatores originários do tráfico de mulheres; o perfil
do traficante e das vítimas e as principais formas de aliciamento e recrutamento, partindo do
problema da (in)eficácia das legislações protetivas internacionais e nacionais, como o Protocolo
de Palermo, a Constituição Federal e o Código Penal. A metodologia utilizada é a qualitativa
bibliográfica e, como método, o dedutivo.
Palavras-chave: Tráfico internacional de mulheres. Exploração sexual. Vulnerabilidade das
vítimas. (In)eficácia de políticas públicas. Brasil.

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O tráfico de seres humanos é um fenômeno crescente na sociedade atual, por fatores


como a pobreza, instabilidade econômica, política e social, preconceitos em relação a gênero e
raça, guerras, globalização, inaplicabilidade legislativa. O crime tem se expandido,
internacionalmente, sem diferenciação de suas diversas modalidades, tendo as vítimas, no caso
do Brasil, em sua maioria, aliciadas com a promessa de melhores condições de vida, seja em
outro local do Brasil ou em país diverso, que possua maior grau de desenvolvimento.

1
Graduada em Direito pela Universidade de Cruz Alta (RS). Contato: palomasantos530@hotmail.com
2
. Doutoranda em Direito - UNISINOS. Mestra em Direito - UNIJUÍ. Especialista em Educação Ambiental -
UFSM. Integrante do Comitê Gestor do Pacto Universitário dos Direitos Humanos da Universidade de Cruz Alta.
Integrante do Grupo de Pesquisa “Clínica de Direitos Humanos” - UFPR. Integrante do Grupo de Pesquisa Jurídica
em Cidadania, Democracia e Direitos Humanos - GPJUR. Integrante do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Práticas
Sociais - UNICRUZ. Docente no Curso de Direito e do Núcleo Comum da UNICRUZ e do Curso de Direito das
Faculdades Integradas Machados de Assis FEMA - Santa Rosa. Advogada. Conciliadora Judicial - TJ/RS. Contato:
dtgsjno@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5993648671113115.
3
Advogado inscrito na OAB-RS sob número 107.919. Doutor em Diversidade Cultural e Inclusão Social -
FEEVALE, Novo Hamburgo. Mestre em Direito com concentração em Direitos Humanos - UNIJUÍ. Especialista
em Docência no Ensino Superior e em Advocacia Geral - UNICID, em Filosofia e Direitos Humanos - AVM
Faculdade Integrada, em Educação para os Direitos Humanos - FURG, em Gestão Pública - UFSM e em Educação
Ambiental – UFSM, em Direito Administrativo e Direito Penal e Processual Penal Militar pela AVM Faculdade
Integrada. Bacharel em Direito - URCAMP e licenciado em Direito, formação de professores para o nível técnico
e tecnológico através do Programa Especial de Graduação da - UFSM. Contato: camargojoao@hotmail.com
118

As mulheres, geralmente são oriundas de países e regiões mais pobres, onde há pouco
acesso à informação, e são das vítimas mais vulneráveis, embora existam outros propósitos para
o tráfico de pessoas, como a retirada de órgãos e trabalho análogo ao escravo. O estudo justifica-
se na medida em que o tráfico de mulheres, para fins de exploração sexual, demonstra-se como
um dos maiores expoentes desse crime e a necessidade de se discutir sobre medidas para o seu
enfrentamento.

2 TRÁFICO DE PESSOAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A PRÁTICA CRIMINOSA

O tráfico de pessoas é uma prática antiga, identificada em várias regiões do mundo, dentre elas,
no Brasil-Colônia, em que as principais vítimas eram mulheres, inicialmente, negras, pois, para
Rodrigues, “[...] dos séculos XVI a XIX, os senhores obrigavam as escravas negras a prostituir-se, com
os fluxos migratórios vieram ao País; as escravas brancas para serem exploradas sexualmente, porém a
escravidão é muito mais antiga que o tráfico de negros”4.

No século XIX, a Revolução Industrial procedeu à rejeição ao tráfico negreiro, ante a


necessidade de mão-de-obra e de consumidores dos produtos industrializados, decorrendo na abolição
da escravatura, que, no Brasil, foi em 1888.Com elevados lucros, a exploração sexual adotou nova
caracterização e se voltou também para as mulheres brancas, convergente com as correntes migratórias
do fim do século, pois, para Menezes:

[...] a exploração sexual de mulheres não era um atividade nova durante o século XIX
e início do século XX, mas havia adquirido uma nova caracterização à medida que o
capitalismo e a expansão europeia haviam redesenhado o mundo e vida urbana,
provendo a internacionalização dos mercados e a expansão dos prazeres. Neste
contexto, a figura da mulher torna-se um objeto para exportação da Europa para um
novo Continente.5

Essa expansão europeia estava, intimamente, vinculada à urbanização e à industrialização das


sociedades, assim como à consolidação do sistema capitalista ocidental, com a coisificação do ser
humano. A figura da mulher, nesse aspecto, era mercadológica.6 Neste viés, Cunha e Pinto explicam:

Atualmente, esse crime se confunde com outras práticas criminosas e de violações aos
direitos humanos e não serve mais apenas à exploração de mão de obra escrava.
Alimenta também redes nacionais e transnacionais de exploração sexual comercial,

4
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Tráfico Internacional de Pessoas Para Exploração Sexual. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 55.
5
MENEZES, Lená Medeiros de. O tráfico internacional de mulheres no debut e fin-de-siecle. In: Discursos
sediciosos - crime, direito e sociedade. Ano 2, Nº. 4. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997, p. 171-178. p. 172.
6
MENEZES, Lená Medeiros de. O tráfico internacional de mulheres no debut e fin-de-siecle. In: Discursos
sediciosos - crime, direito e sociedade. Ano 2, Nº. 4. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1997, p. 171-178.
119

muitas vezes ligadas a roteiros de turismo sexual, e organizações especializadas em


retirada de órgãos.7

Das causas do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, de acordo com Justo,
destacam-se duas:

A demanda pela prostituição e as condições desfavoráveis nas quais meninas e


mulheres têm para desenvolverem suas vidas que as vulnerabilizam à violência e à
prostituição. A demanda pelo sexo da prostituição é o motor que gera a crise mundial
de tráfico de mulheres e crianças. É a demanda pela prostituição e outros serviços
sexuais que torna vulneráveis mulheres e crianças aos traficantes. 8

Considerando a complexidade da prática reprovável do tráfico de pessoas, buscou-se a definição


de um conceito que contemplasse “[...] alguma instrumentalização por parte dos governos, organizações
internacionais, ou mesmo as organizações não governamentais, para influenciar as políticas de combate
ao fenômeno”, conforme explica Santos et al9.

A Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores, assinada no México10,


em 1994, conceituou como tráfico internacional de pessoas com menos de 18 anos como sendo a “[...]
subtração, transferência ou retenção, ou a tentativa de subtração, transferência ou retenção de um menor,
com propósitos ou por meios ilícitos”11, em seu artigo 2º. Exemplificou, como propósitos ilícitos, entre
outros, a prostituição, a exploração sexual, servidão e definiu, como sendo meios ilícitos, “[...] o
sequestro, o consentimento mediante coação ou fraude, a entrega ou o recebimento de pagamentos ou
benefícios ilícitos com vistas a obter o consentimento dos pais, das pessoas ou da instituição
responsáveis pelo menor”12.

No ano 2000, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou um comitê intergovernamental
para tráfico transnacional de seres humanos, definido no Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à
Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, conhecido como Protocolo de

7
CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Tráfico de Pessoas: Lei 13.344/2016 Comentada por
Artigos. Salvador: Juspodvm, 2017.
8
JUSTO, Nathalia. Tráfico de Pessoas, valores e prostituição. Franca: Universidade Estadual Paulista Júlio De
Mesquita Filho, 2008, p. 29.
9
SANTOS, Boaventura de Sousa; GOMES, Conceição; DUARTE, Madalena; BAGANHA, Maria Ioannis.
Tráfico de mulheres em Portugal para fins de exploração sexual. Colecção Estudos de Gênero. Lisboa, 2008,
p. 17.
10
Ratificada pelo Brasil pelo Decreto Nº 2.740, de 20 de Agosto de 1998.
11
OEA. Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de
Menores. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/B-57.htm>. Acesso em: 12 Set. 2019,
s/p.
12
OEA. Organização dos Estados Americanos. Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de
Menores. Disponível em: <http://www.oas.org/juridico/portuguese/treaties/B-57.htm>. Acesso em: 12 Set. 2019,
s/p.
120

Palermo13.O Protocolo foi adotado pela Resolução da Assembleia-Geral nº. 55/25, em 15 de novembro
de 2000, passando a vigorar em 200314. O Protocolo afirma a importância de respeitar, plenamente, os
direitos humanos das vítimas envolvidas e a promoção, entre os Estados, de forma a atingir os objetivos
propostos, e define, no artigo 3º,o que significa a expressão tráfico de pessoas:

[...] o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de


pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto,
à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma
pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração
incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares
à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; [...]15

Na alínea “a” do artigo 3º, o Protocolo estabeleceu obrigações aos países signatários,
exigindo, entre outras, a criação de um arcabouço normativo e de políticas públicas de
prevenção e repressão ao tráfico internacional de seres humanos. Assim, o Protocolo de
Palermo é um importante tratado com fins de combater o tráfico internacional de mulheres ao
combater e prevenir as atividades de infratores que promovem a entrada ilegal de uma pessoa
em outro país.
Contudo, o tráfico de pessoas é a terceira fonte mais rentável de exploração de forma
Ilícita, ficando atrás apenas do tráfico de armas e o de drogas. Segundo a Organização
Internacional do Trabalho (OIT), no ano de 2005 43% das vítimas eram subjugadas para
exploração sexual e 32% para trabalhos forçados, sendo que 25% eram submetidas a ambas.
No Brasil, o tráfico para fins sexuais é, predominantemente, de mulheres e adolescentes,
afrodescendentes, entre 15 e 25 anos.16
O Código Penal Brasileiro, no artigo 149-A, define o tráfico internacional de pessoas como
“agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave
ameaça, violência, coação, fraude ou abuso”17, com fins de, entre outros, exploração sexual, conforme
o inciso V. Esta redação passou a viger em 2016, incluída pela Lei nº. 13.344/201618 (Lei de Tráfico

13
ONU. Organização das Nações Unidas. Protocolo de Palermo. Disponível em: <http://sinus.org.br/2014/wp-
content/uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf>. Acesso em: 12 Set. 2019, s/p.
14
Ratificado pelo Brasil por intermédio do Decreto nº. 5.017, de 12 de março de 2004
15
Op. cit., p. 2-3.
16
OIT – Organização Internacional do Trabalho. (Org.) Tráfico de Pessoas para fins de Exploração Sexual.
Brasília: Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2005.
17
BRASIL. Decreto lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal Brasileiro. Disponível
em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em 12 Set. 2019.
18
Dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às
vítimas; altera a Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código
de Processo Penal), e o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); e revoga dispositivos do
Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
121

de Pessoas), calcada no artigo 3º do referido Protocolo Adicional da ONU. No Brasil, portanto, o


tráfico de pessoas, cometido no território nacional contra vítima brasileira ou estrangeira, e no exterior,
contra vítima brasileira, é calcada em 3 eixos: prevenção, repressão e assistência à vítima19.

A legislação tornou mais rigorosa as penalidades. A busca de solução do crime de tráfico


internacional de pessoas demanda um esforço articulado entre os países, não, apenas, em evitar que o
ato ocorra, mas de fazer frente às redes que estruturam os grupos criminosos, como a comunicação e os
recursos financeiros.

3 A VULNERABILIDADE SOCIAL E O TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE


EXPLORAÇÃO SEXUAL NO BRASIL

Estudar o tráfico, em sua nova configuração, deve alinhar-se com a garantia de direitos
fundamentais das mulheres. Além de ser um dos crimes que vem crescendo no mundo, e por alvejar o
gênero feminino, quando exposto à vulnerabilidade, torna-se ainda mais perceptível.

Tratar sobre o tráfico de mulheres, e não de homens, deve-se a dados que demostram que a
mulher tem mais facilidade de ser traficada, tendo em vista os fatores de desigualdade financeira, por se
encontrarem em vulnerabilidade social, em situações de pobreza, pouca escolaridade. De acordo com a
Comissão Europeia:

A pobreza, o desemprego, bem como a ausência de educação e de acesso aos recursos


constituem as causas subjacentes ao Tráfico de Seres Humanos. As mulheres são
particularmente vulneráveis ao tráfico de seres humanos devido à feminização da
pobreza, à cultura de discriminação e desigualdade entre homens e mulheres, à falta
de possibilidades de educação e de emprego, a cultura hedonista que transforma o
corpo da mulher em objeto de desejo e cobiça.20

Para Fischer e Marques (2001, p.3), a exclusão da mulher está, diretamente, vinculada com a
desigualdade de gênero:

A exclusão social da mulher é secular e diferenciada. A compreensão sobre a condição


bipolarizada do sexo possibilita indicações dos nortes da exclusão social
fundamentada na diferença. É sabido que o fenômeno da exclusão não é específico da
mulher, mas atinge os diferentes segmentos da sociedade. É também notório que a
exclusão não é provocada unicamente pelo setor econômico, embora se admita que
este é um dos principais pilares de sustentação desse fenômeno. A exclusão é gerada
nos meandros do econômico, do político e do social, tendo desdobramentos

19
“Art. 1º. [...] Parágrafo único. O enfrentamento ao tráfico de pessoas compreende a prevenção e a repressão
desse delito, bem como a atenção às suas vítimas.” BRASIL. Lei nº 13.344, de 6 de outubro de 2016. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-
2018/2016/Lei/L13344.htm#targetText=Disp%C3%B5e%20sobre%20preven%C3%A7%C3%A3o%20e%20rep
ress%C3%A3o,de%201940%20(C%C3%B3digo%20Penal).>. Acesso em: 12 Set. 2019, s/p.
20
COMISSÃO EUROPEIA. Tráfico de mulheres – a miséria por trás da fantasia: da pobreza à escravatura sexual
– uma estratégia Europeia global. MEMO/01/64. Comissão de Justiça e Assuntos Internos: Brussels, 2001, p. 2.
122

específicos nos campos da cultura, da educação, do trabalho, das políticas sociais, da


etnia, da identidade e de vários outros setores.21

São diversas as razões e fatores o tráfico de pessoas decorre, como o gênero, as desigualdades
sociais, falta de oportunidades, e, especialmente, o tráfico de mulheres, é uma forma de lucro rentável e
cada vez maior, por serem, particularmente, mais vulneráveis do que os homens. Segundo dados do
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o perfil das vítimas é de:

Mulheres e adolescentes entre 16 (dezesseis) a 30 (trinta) anos e crianças a partir dos


9 (nove) anos. A classe pobre, solteiras, com filhos, sem maiores perspectivas de
melhoria de vida, com pouco estudo ou analfabetas e que começaram a trabalhar muito
cedo Comumente são morenas ou negras, por ser uma cor exótica e diferente dos
exploradores maioria de desperta maior interesse.22

No geral, as mulheres imigrantes, após chegarem ao destino, percebem que estão sendo
vítimas de tráfico de pessoas para prostituição, têm os documentos apreendidos e vivem como
objetos, sujeitando-se às formas desumanas de exploração, inclusive, com ameaças à família,
fatores que impedem, ou dificultam, substancialmente, que as mulheres resistam ou encontrem
formas de escapar do que lhes foi impingido.23
Os aliciadores integram organizações criminosas nacionais ou transnacionais, e tratam da saída
das vítimas do País, como passaporte, passagens, vistos, hospedagens. As promessas são de melhores
oportunidades em trabalhos, “com as mulheres, que representam o maior percentual do tráfico de
pessoas, ocorre, na maioria das vezes com trabalhos como modelos, garçonete entre outros”24, como
destacam Ramina e Raimundo.

As mulheres abordadas possuem idades de 16 a 30 anos, geralmente, com filhos, pois os


aliciadores entendem ser um elemento de convencimento, tanto para a promessa melhores condições de
vida, quanto para usá-los, após o tráfico, como argumento de convencimento/ameaças.25De acordo com
Teresi e Healy, os “[...]donos dos locais de exercício da prostituição cuidam da infraestrutura, logística

21
FISCHER, Izaura Rufino; MARQUES, Fernanda. Gênero e Exclusão Social. N°. 113. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco, 2001, p. 2.
22
UNODC - Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Conheça o perfil do tráfico de seres humanos
no Brasil. 2003. Disponível em: <http://www.unodc.org/brazil/press_release_2004-05-19.html>. Acesso em: 12
Set. 2019, p. 27.
23
LOURENÇO, Priscila Rodrigues; CALIARI, Fábio Rocha; SPAGNOL, Rosangela Paiva. Tráfico
internacional de pessoas para fins de exploração sexual á luz da legislação Brasileira. Barretos: Conic, 2013.
24
RAMINA, Larissa; RAIMUNDO, Louise. Tráfico internacional de mulheres para fins de exploração sexual:
Dificuldades conceituais, caracterização das vítimas e operacionalização. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia, v. 14, n. 14.1, 2013. p. 162-180, p. 8.
25
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Tráfico Internacional de Pessoas Para Exploração Sexual. São Paulo:
Saraiva, 2013.
123

de encaminhamento da mulher do aeroporto à cidade, do dinheiro a ser enviado para passagem e para
despistar as autoridades de imigração do país de destino”26.
Apenas ao chegarem ao destino, percebem que são vítimas de tráfico de pessoas para
prostituição. São mantidas sob forte vigilância, sem contato com familiares e ameaçadas para filhos e
familiares que deixaram. De acordo com Vasconcelos:

As investigações demonstram que a questão do trabalho escravo está diretamente


atrelada à impunidade, à pouca oferta de emprego, às condições de isolamento
geográfico em que se dá a exploração do trabalho e à ausência de ingerência do
Estado. A maior incidência dos casos no país ocorre na área rural (60% com atividade
pecuária) e se aproxima do que se convencionou chamar de servidão por dívida. 27

Estas práticas criminosas tornaram-se ferramentas modernas de escravidão e violência,


uma das atividades ilícitas mais rentáveis do mundo, os quais incluem o tráfico de seres
humanos como a terceira atividade criminosa mais lucrativa do mundo. Lourenço et al destacam
que houve um aumento deste crime no Brasil, “[...] nos últimos anos devido às dificuldades
econômicas, as altas taxas de desemprego e a absoluta falta de oportunidade, facilitando o
envolvimento no crime”28.
Com o processo acelerado de globalização, um mesmo país pode ser local de partida,
de chegada ou de ligação com outros. O crime de tráfico de pessoas submete a vítima, de forma
que não há que se falar em consentimento desta, pois é, completamente, viciado, em decorrência
da condição que se encontra, conforme o art. 3º, “b” da Convenção de Palermo:

O consentimento da vítima do tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de


exploração descrito na alínea “a” do presente artigo será considerado irrelevante se
tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea “a” do presente
artigo”.29

A exploração sexual constitui violação aos direitos humanos, no que interrompe direitos
fundamentais tais como: a liberdade de escolha, a obrigação de fazer algo contra sua vontade,
o abandono do lar entre outros. A ideia de submissão feminina frente à soberania patriarcal
mantém a desigualdade e a opressão, sofrida pelas mulheres, pelo que Dias afirma:

[…] é inquestionável que a ideologia patriarcal ainda subsiste, e leva o homem a se


sentir proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos filhos. […]. Ao homem

26
TERESI, Verônica Maria; HEALY, Claire. Guia de referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de
pessoas no Brasil. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça, 2012, p. 70.
27
VASCONCELOS, Márcia. Manual de Capacitação sobre enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Brasília:
Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Justiça, 2010, p. 115.
28
LOURENÇO, Priscila Rodrigues; CALIARI, Fábio Rocha; SPAGNOL, Rosangela Paiva. Tráfico
internacional de pessoas para fins de exploração sexual á luz da legislação Brasileira. Barretos: Conic, 2013,
p. 43.
29
ONU. Organização das Nações Unidas. Protocolo de Palermo. Disponível em: <http://sinus.org.br/2014/wp-
content/uploads/2013/11/OIT-Protocolo-de-Palermo.pdf>. Acesso em: 12 Set. 2019, p. 3.
124

sempre coube o espaço público, e a mulher foi confinada nos limites do lar, no cuidado
da família. Isso enseja a formação de dois mundos: um, de dominação, externo,
produtor; outro, de submissão, interno e reprodutor. A essa distinção estão associados
os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo a família, e ela cuidando do lar,
cada um desempenhando a sua função.30

O pensamento patriarcal e as várias formas de desigualdade, ainda presentes no Brasil,


influenciam, diretamente, em a mulher ser a principal vítima do tráfico humano. A busca da promoção
da igualdade, do empoderamento feminino e por uma sociedade mais justa é necessária para combater
a violência de gênero, e por consequência, o tráfico feminino.

4 A (IN)EFICÁCIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O ENFRENTAMENTO AO


TRÁFICO DE MULHERES PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL NO BRASIL

Em decorrência do aumento do tráfico de pessoas, em especial, o tráfico internacional de


mulheres, e pela gravidade do delito, medidas combativas são tomadas pelos Estados. Ainda são
insuficientes informações sobre o que configura, de fato, a exploração, como as medidas para superar a
desigualdade de gênero, promover a de igualdade, valorização da mulher. Contudo, fatores como “[...]
a corrupção, o descaso dos governos, o despreparo da polícia, a pobreza e a falta de oportunidades no
país de origem são fatores que ajudam o crescimento desse crime”31, são incipientes, tanto no Brasil,
quanto no exterior, conforme Rodrigues.
Em pesquisa, com base em relatório apresentado durante o 1º Seminário Internacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes, ocorrido no Rio de Janeiro, de 2014
a 2016, a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) do Ministério da Justiça e Segurança Pública
contabilizou, pelo Serviço Ligue 180, um total de mulheres vítimas de tráfico de pessoas superior ao de
homens, para fins de exploração sexual e trabalho escravo. Do total de 488 casos identificados pelo
Ligue 180 para exploração sexual, 317 eram mulheres e 5eram homens. Para trabalho escravo, foram
recebidas denúncias de 257 casos no período de 2014 a 2016, com predominância também de mulheres,
123 contra 52 homens.32
O tráfico internacional de pessoas para fins de violência sexual, segundo o UNODC, em
estudo de 2003, atinge 83% mulheres e 48% menores de 18 anos. São recorrentes em lugares
ou situações de vulnerabilidade social, onde, por falta de educação, saúde e perspectivas de

30
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre justiça e os crimes contra as mulheres. Porto Alegre: Livraria do
advogado, 2004, p. 56.
31
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Tráfico Internacional de Pessoas Para Exploração Sexual. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 55.
32
BRASIL. Mulheres são maioria das vítimas do tráfico de pessoas. 2017. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-09/mulheres-sao-maioria-das-vitimas-do-trafico-de-pessoas-
aponta-relatorio>. Acesso em: 12 Set. 2019.
125

melhoria de qualidade de vida, as mulheres passam a buscar trabalho e fonte de renda em outros
lugares.33Em 2010, UNODC apontou que a movimentação financeira, provocada pelo tráfico
de pessoas para fins de exploração sexual para a Europa, chega a 3 bilhões de dólares por ano,
levando a um aumento de 70.000 vítimas por ano.34Em dados de 17 de março de 2017, o
UNODC apontou que quase um terço do total das vítimas de tráfico de pessoas no mundo são
meninos e meninas, e que mulheres e meninas correspondem a 71% das vítimas do tráfico.35
Para a política de enfrentamento, no Brasil, foi criado o Decreto nº 7.901, de 4 de fevereiro de
2013, que instituiu a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – CONATRAP. No artigo 1º
constam os objetivos, dentre os quais: ampliar e aperfeiçoar instâncias e órgãos de enfrentamento ao
tráfico de pessoas, a prevenção e repressão do crime, a responsabilização dos, a atenção às vítimas e a
proteção de seus direitos; fomentar a cooperação entre órgãos; reduzir situações de vulnerabilidade;
capacitação dos envolvidos; disseminação de informações e sensibilização social.36
Dentre a sociedade civil organizada, há a Associação Brasileira de Defesa da Mulher
(ASBRAD), uma Organização Não Governamental (ONG), fundada em 1997 e estruturada por pessoas
capacitadas de diversas áreas, com a missão de “[...]acolher mulheres, crianças e adolescentes vítimas
de violência nas suas mais diversas modalidades”37, pautada na ética e transparência, em defesa da
proteção e direitos da mulher, criança e adolescente, oferecendo assistência e denunciando casos de
violência.38

33
UNODC. Global Reporton Trafficking in Persons. UNODC: Viena, 2017. Disponível em:
<https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/frontpage/2017/03/quase-um-terco-do-total-de-vitimas-de-trafico-de-
pessoas-no-mundo-sao-criancas-segundo-informacoes-do-relatorio-global-sobre-trafico-de-pessoas.html>
Acesso em: 12 Set. 2019.
34
UNODC. Global Reporton Trafficking in Persons. Viena: UNODC, 2010. Disponível em:
<https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/imprensa/discursos/2010/03-25-seminario-regional-sobre-trafico-de-
pessoas-e-exploracao-sexual.html> Acesso em: 12 Set. 2019.
35
Op. cit, 2017.
36
BRASIL. Diagnóstico Sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil. Secretaria Nacional de
Justiça do Ministério da Justiça/Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC): Brasília, 2013.
Disponível em: <http://www.unodc.org/brazil/press_release_2004-05-19.html>. Acesso em: 12 Set. 2019.
37
ASBRAD. Associação Brasileira de Defesa da Mulher. Nossa História. Disponível em:
<http://www.asbrad.com.br/index-1.html>. Acesso em: 12 Set. 2019.
38
De acordo com o artigo 2° do Estatuto da ASBRAD, a ONG tem a finalidade de: 1. Proteger e defender os
direitos da mulher, da família, da maternidade, da infância, da adolescência e da velhice; 2. Oferecer assistência
social, psicológica e jurídica, gratuitamente; 3. Combater e denunciar os casos de violência em todos os âmbitos
da convivência humana, em especial a exploração infanto-juvenil nas suas mais diversas modalidades,
empreendendo a busca da responsabilização e punição de quem as violenta, abusa ou explora; 4. Mobilizar a
sociedade para denunciar casos de qualquer natureza, inclusive representando os seus assistidos em juízo ou fora
deste; 5. Desenvolver programas de capacitação para geração de ocupação e renda para mulheres advindas de
famílias de baixa renda e/ou de risco social; 6. Prestar serviços assistenciais implementando atendimento direto a
adolescentes inseridos nas medidas sócio educativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
ASBRAD. Associação Brasileira de Defesa da Mulher. Estatuto ASBRAD. Disponível em:
<http://www.asbrad.com.br/estatutos.html >. Acesso em: 12 Set. 2019, p. 1.
126

O combate ao tráfico de pessoas é complexo, e, no Brasil, ainda são insuficientes informações


sobre a exploração e investimentos em medidas de igualdade, valorização da mulher, que, juntamente,
com a educação, aperfeiçoamento na formação, empregos tendo em vista que, na maioria das vezes, as
mulheres vítimas possuem baixa escolaridade e renda, assim as levando a aceitarem, essas propostas,
com a promessa de empregos e altos salários, pois, de acordo com Libório e Sousa:

A deficiência dos registros sobre o fenômeno, nas instituições, está relacionada, na


maioria das vezes, a falta de clareza conceitual/definições sobre o que é tráfico de
mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual comercial. Como
consequência, as instituições, quando registram dados sobre o fenômeno, o fazem de
forma diferenciada e incompleta.39

Rodrigues destaca que a prevenção ao tráfico de pessoas é o meio mais eficiente para seu
enfrentamento, pois “[...] o objetivo é reduzir a vulnerabilidade de determinados grupos sociais ao tráfico
e fomentar o seu empoderamento, também efetuar políticas públicas para o combate a reais causas
estruturais do problema”40. No que diz a proteção das vítimas, é necessário que seja efetuado um
tratamento justo, seguro e não discriminatório, com proteção especial e acesso à justiça, evitando assim
que sejam retraficadas.41
As respostas institucionais para o enfrentamento do tráfico de mulheres seguem
caminhos distintos, mas já contam com leis integrais, políticas e ou planos nacionais de ação.
O Brasil demonstrou avanços importantes com os Planos de Ação e ao aprofundar o
mapeamento das principais rotas do tráfico, além de gerar espaços para a discussão do tema
com a sociedade civil, bem como, a articulação tripartite entre Secretaria de Políticas para
Mulheres da Presidência da República, o Ministério da Justiça, e a Secretaria de Direitos
Humanos.42
As dificuldades são percebidas na parcial eficácia em combater o tráfico de mulheres,
com inúmeras barreiras que ocultam essa prática, como silêncio das vítimas e dos familiares,
que, por vezes, recusam-se a denunciar ou testemunhar, inibindo a localização dos criminosos

39
LIBÓRIO, Renata Maria Coimbra; SOUSA, Sônia M. Gomes. A exploração sexual de crianças e adolescentes
no Brasil: reflexões teóricas, relatos de pesquisas e intervenções psicossociais. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2004, p. 275.
40
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Tráfico Internacional de Pessoas Para Exploração Sexual. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 157.
41
RODRIGUES, Thaís de Camargo. Tráfico Internacional de Pessoas Para Exploração Sexual. São Paulo:
Saraiva, 2013.
42
BRASIL. Diagnóstico Sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira no Brasil. Secretaria Nacional de
Justiça do Ministério da Justiça/Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC): Brasília, 2013.
Disponível em: <http://www.unodc.org/brazil/press_release_2004-05-19.html>. Acesso em: 12 Set. 2019.
127

e condenação pelos delitos praticados. Também, pelo atraso na legislação concernente à


prostituição, fator importante, pois, conforme Anderson e Davison43:
[...]o tratamento das mulheres vítimas de tráfico, quer no âmbito da previsão
normativa, quer da sua aplicação, está frequentemente condicionado por concepções
moralistas, sobretudo porque as mulheres prostitutas carregam um forte estigma
social, vendo os seus direitos civis e humanos a serem repetidamente violados.

Também as questões burocráticas, uma vez que a vítima de tráfico internacional de


pessoas deve procurar a Secretaria de Justiça do país e acionar o Núcleo de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas, que presta apoio e assistência. Bem como, são encarregados de “[...]
executar, enquanto unidades administrativas, ações previstas na Política Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas” nos eixos de atuação de prevenção, responsabilização
dos autores e atenção às vítimas.44 Em todos os países, signatários do Protocolo de Palermo, há
núcleos de enfrentamento com telefones para denúncia.
É fundamental mudar os paradigmas valorativos, éticos, jurídicos e de enfrentamento,
com políticas sociais como meio e não como fim, sedimentado nos direitos humanos e com
políticas de proteção integral, considerando, assim, particularidades regionais, culturais, sociais
e políticas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tráfico internacional de mulheres ainda representa um problema no cenário


internacional, e impõe, aos Estados, desafios de enfrentamento e combate. Um dos elementos
legais ao seu efetivo combate é a implementação do artigo 6º da Constituição Federal, como
educação, trabalho, moradia, avançando contra as desigualdades e a vulnerabilidade de certos
grupos sociais, como as mulheres.
O tráfico de pessoas retira da vítima a sua condição de pessoa humana, tratada como
objetivo, produto de troca, venda e transporte, e as mulheres são as principais vítimas, ante a
exploração sexual. Ainda que haja avanços legislativos, como o Protocolo de Palermo ou a Lei
de Tráfico de Pessoas, seu enfrentamento deve considerar a própria compreensão dos vários
aspectos da violência, o que passa pelos olhares de uma política pública eficaz. É importante o

43
ANDERSON, Bridget; DAVIDSON, Julia O’Connell. Trafficking – A Demand Led Problem. Sweden: Save
The Children, 2002. Apud SANTOS, Boaventura de Sousa; GOMES, Conceição; DUARTE, Madalena;
BAGANHA, Maria Ioannis. Tráfico de mulheres em Portugal para fins de exploração sexual. Colecção Estudos
de Gênero. Lisboa, 2008, p. 24.
44
BRASIL. Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Disponível em:
<https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/redes-de-enfrentamento/nucleos-de-
enfrentamento>. Acesso em: 12 Set. 2019.
128

Estado buscar solucionar este problema por meio do combate às condições de vulnerabilidade,
bem como, uma posição na punição do delito e na defesa da vítima mais efetiva.

REFERÊNCIAS

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VASCONCELOS, Márcia. Manual de Capacitação sobre enfrentamento ao Tráfico de


Pessoas. Brasília: Ministério da Justiça – Secretaria Nacional de Justiça, 2010.
131

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NEGRA: ESTUDO CRÍTICO DA LEI MARIA


DA PENHA A PARTIR DA EPISTEMOLOGIA DECOLONIAL

Thais Bonato Gomes1

Resumo: A pesquisa estuda criticamente as leis contra a violência de gênero, em especial a Lei
Maria da Penha, no que diz respeito à violência contra mulheres negras. Trata-se de estudo
baseado em informações e relatórios sobre a violência contra a mulher negra no Brasil e uso do
método hipotético-dedutivo e revisão bibliográfica. O trabalho é necessário para pensar como
as normas nem sempre contemplam as especificidades das diferentes mulheres, pensando o
próprio processo histórico colonialista de subjugação e invisibilidade das demandas que
interseccionam raça, classe e gênero. Assim, pergunta-se: Em que medida a Lei Maria da Penha
deixa de observar as especificidades das mulheres negras brasileiras? De que maneira os
estudos Decoloniais podem servir de aporte epistemológico para fomentar a crítica ao Direito?
Compreende-se que a adoção das teorias Decoloniais podem exercer um papel fundamental no
processo de potencialização dos direitos das mulheres negras e de luta contra a violência desse
grupo específico de mulheres, historicamente negligenciado pelo processo de colonialidade do
poder, do saber e do ser.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Violência contra a mulher negra. Decolonialidade.

INTRODUÇÃO

Em agosto deste ano, a Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006, completou 13 anos. De
lá para cá, uma série de discussões acerca da violência de gênero foram pautadas no Brasil,
inclusive, novos marcos legais foram implementados no ordenamento jurídico brasileiro, como
é o caso do Feminicídio. Não obstante os avanços normativos na garantia formal de combate à
violência contra a mulher, algumas peculiaridades são invisibilizadas.
Os números são alarmantes. Mais da metade das mulheres assassinadas no Brasil são
negras, sendo desproporcional a taxa de crescimento de homicídios de mulheres negras em
relação a mulheres não negras. Diante desse cenário de violência sistêmica contra mulheres
pretas e pardas, problematizou-se a pesquisa da seguinte forma: Em que medida a Lei Maria da
Penha deixa de observar as especificidades das mulheres negras brasileiras? De que maneira os
estudos Decoloniais podem servir de aporte epistemológico para fomentar a crítica ao Direito?
Parte-se da hipótese de que a Lei Maria da Penha se presta a um público-alvo geral:
“mulheres”, olvidando-se da intersecção de raça, classe e gênero. Assim, objetiva-se

1
Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CAPES. Mestra em Direito pela
Universidade Federal de Pelotas. Especialista em Direito do Trabalho e graduada em Direito pela Universidade
Franciscana. Advogada
132

compreender como os estudos Decoloniais podem vir a contribuir com a propagação das
denúncias elaboradas pelos movimentos sociais – em especial do movimento feminista negro-
e servir de crítica ao sistema jurídico hegemônico.
Desse modo, o estudo enquadra-se na linha de pesquisa “Maria da Penha: Políticas
Públicas e a aplicabilidade no combate à violência de gênero”, proposta pelo presente evento.
Através do método hipotético-dedutivo e revisão bibliográfica, o artigo foi organizado em três
diferentes momentos. Em primeiro lugar, pontuar os recentes avanços legais em prol da
proteção das mulheres no ordenamento jurídico brasileiro, sobretudo com o advento da Lei
Maria da Penha.
Em segundo lugar, será feito o recorte racial da temática, demonstrando, através de
pesquisas e estudos doutrinários, a importância de discutir o enfrentamento da violência de
gênero através da intersecção de raça, classe e gênero. Por fim, analisar a possibilidade de um
olhar crítico latino-americano do Direito, por meio dos estudos Decoloniais.

1 OS AVANÇOS LEGAIS NO COMBATE – FORMAL – À VIOLÊNCIA CONTRA


MULHER NO BRASIL

A Constituição da República brasileira de 1988, regulamenta uma série de medidas em


prol da igualdade e não discriminação. O diploma legal consagra como objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil, a promoção do bem-estar de todos, sem preconceito de raça,
sexo, cor, idade ou outras discriminações, assim como, determina que todos são iguais perante
a lei. O artigo 5º, inciso I especifica que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações 2.
Entretanto, a positivação do direito não é suficiente para que haja a aplicabilidade de
forma igual para todos, tampouco é capaz de modificar a estrutura basilar patriarcal calcada ao
longo da história. Portanto, a constitucionalização do princípio da igualdade diz respeito à
igualdade formal, sendo sua concretização (igualdade material) possível quando houver o
afastamento das discriminações que impõem modelos e esmagam ou eliminam as diferenças
prejudiciais3.
Mesmo diante dessa realidade distante da igualdade material, formalmente está
consolidado que igualdade e a não discriminação são “[...] princípio fundamental que ilumina

2
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em set. 2019.
3
BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: a questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen
Hein de (Org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. p. 61.
133

e ampara todo o sistema internacional de proteção dos direitos humanos. Sua proteção é
requisito, condição e pressuposto para o pleno e livre exercício de direitos”4.
Nesse sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), adotada pela Organização dos Estados
Americanos (OEA), no ano de 1994, afirmou que a violência contra a mulher constitui violação
aos Direitos Humanos, sendo manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre
homens e mulheres. Ainda nessa convenção, recorda-se a Declaração para a Erradicação da
Violência contra Mulheres, ponderando que a violência contra mulher permeia todos setores da
sociedade e afeta negativamente suas próprias bases. Definiu a violência contra mulheres como
“qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual
ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”5.
Tal Convenção foi primordial para impulsionar as discussões acerca da violência contra
a mulher, pautando as demandas de gênero. Ademais, contribuiu para que, no plano
infraconstitucional brasileiro, fosse elaborada a Lei nº 11.340/2006, a Lei Maria da Penha,
destinada ao combate da violência doméstica e familiar contra a mulher6.
A lei ficou conhecida por esse nome, em razão do paradigmático caso da bioquímica
nordestina Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica depois de ter sido agredida
diversas vezes e baleada, em 1983, pelo ex-marido, condenado somente em 2002, quando o
crime estava por prescrever e após decisão em Corte Internacional. Essa legislação, que neste
ano de 2019 completou 13 anos, possibilitou muitos avanços, especialmente políticas públicas
no enfrentamento à violência doméstica e familiar, no seio das Delegacias Especiais de
Atendimento às Mulheres7.

4
PIOVESAN, Flávia. Igualdade, diferença e direitos humanos. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo
Wolfgang (Coord.) Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J.J. Gomes
Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 320.
5
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA).Convenção Interamericana para prevenir, punir
e erradicar a violência contra a mulher. Disponível em:
http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/m.Belem.do.Para.htm. Acesso em set. 2019.
6
BRASIL. Lei Nº 11.340, DE 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso
em set. 2019.
7
ALMEIDA, Tânia Mara Campos de Almeida; PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Violência Doméstica e
Familiar contra mulheres pretas e pardas no Brasil: Reflexões pela ótica dos estudos feministas latino-americanos.
Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.2, n.2, Dossiê: Cultura e Política, dez. 2012. Disponível em:
file:///C:/Users/STI/Downloads/21941-Texto%20do%20artigo-82693-1-10-20130308%20(1).pdf. Acesso em set.
2019. p. 47-48.
134

Após a consolidação da Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher no âmbito


doméstico e familiar passou a ser mais discutida no país. Fruto desse maior debate sobre a
temática, em 2015, a Lei nº 13.104/2015 alterou o Código Penal, para acrescentar o feminicídio
como circunstância qualificadora do crime de homicídio e incluir o feminicídio no rol de crimes
hediondos8. Essa norma diz respeito ao homicídio praticado contra mulheres em razão do
gênero, fazendo parte, portanto, desse arcabouço legal de leis que centralizam a
vulnerabilização da mulher na sociedade (patriarcal) brasileira.
Embora se reconheça a extrema importância desses marcos normativos para a
centralização da violência de gênero no ordenamento jurídico, observa-se que a complexidade
social no Brasil nem sempre é contemplada pelas leis vigentes. A generalidade da norma, muitas
vezes, acaba por olvidar as especificidades das mulheres e peculiaridades inerentes a sua
condição social e raça, por exemplo. Insta pôr à luz que “Ao lado do direito à igualdade, surge,
também como direito fundamental, o direito à diferença. Importa o direito à diferença e à
diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial”9. Historicamente, as mulheres negras
ocupam um lugar desprivilegiado na sociedade, tendo suas demandas subalternizadas. O
próximo tópico do artigo fará esse corte racial, discutindo as violências diuturnas sofridas pelas
mulheres negras no país.

2 A INTERSECÇÃO DE RAÇA, CLASSE E GÊNERO NO CENÁRIO DE VIOLÊNCIA


CONTRA MULHERES NO BRASIL

Apesar da proteção legal internacional, do amparo constitucional e infraconstitucional


de combate à violência contra a mulher, muitas mulheres negras seguem sendo silenciadas,
violentadas e mortas no Brasil. A presente edição do Atlas da Violência, organizada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum brasileiro de Segurança
Pública, indica que houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017. Ao
todo, 4.936 (Quatro mil novecentas e trinta e seis) mulheres foram mortas, o maior número
registrado desde 2007. O mesmo estudo aponta que 66% das mulheres assassinadas no país, em
2017, foram mulheres negras. Enquanto a taxa de assassinato de mulheres negras cresceu quase

8
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro
de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio,
e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm Acesso em set. 2019.
9
PIMENTEL, Silvia; PIOVESAN, Flávia. A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade
internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 103.
135

30%, a de mulheres não negras subiu somente 4,5%. Diante desse alarmante cenário, o próprio
relatório conclui que a problemática é fruto da dificuldade de o Estado brasileiro em garantir a
universalidade de suas políticas públicas10.
Analisar a não universalidade das políticas públicas e legislativas, ou seja, pensar o
porquê uma parcela significativa de mulheres não é contemplada pelas previsões protetivas,
assim como, refletir o contexto da violência contra a mulher negra na contemporaneidade, é
revisitar a história racista e sexista do Brasil. O inegável passado colonial do país cunhou as
relações sociais que hoje são palpáveis.
Nesse sentido, a escravidão conferiu aos negros a representação de “[...] povos sem fé,
lei ou rei, descrição esta que os caracterizava a partir da noção de falta, basilar na construção
da imagem do negro como inferior em relação ao branco”11. Tal narrativa foi contada sob as
lentes europeias, sendo as invasões no solo latino-americano retratadas, na hegemônica história
contada pelos dominadores, como um favor aos denominados selvagens, que deveriam ser
civilizados em nome do “progresso” da nação.
De acordo com Boaventura de Sousa Santos, “O pensamento moderno ocidental é um
pensamento abissal”, que diz respeito à coexistência de dois lados da linha e para além dela há
apenas a inexistência, invisibilidade e ausência não-dialética12. “Em cada um dos dois grandes
domínios – a ciência e o direito – as divisões levadas a cabo pelas linhas globais são abissais
no sentido em que eliminam definitivamente quaisquer realidades que se encontrem do outro
lado da linha”13
Essa linha abissal, pôs a mulher branca como o marco zero, como reflexo geral da
categoria “mulher”. E, do outro lado, estão as mulheres não brancas, ocupantes de posições
subalternas socialmente. Esse entrelaçamento histórico de subjugação conferiu alguns estimas
para as mulheres negras. Lélia Gonzales denomina o racismo como a neurose cultural brasileira
que produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular. Com base nisso, propõe
observar a questão da mulher negra sobre a noção de mulata, doméstica e mãe preta14.

10
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA
PÚBLICA. Atlas da Violência 2019. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo, 2019. p. 35-39.
11
STREVA, J. M.. Colonialidade do ser e Corporalidade: o racismo brasileiro por uma lente descolonial.
Antropolítica: Revista Contemporânea de Antropologia, 2016. p. 27.
12
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes.
In: SOUSA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula G. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
p. 24.
13
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes.
In: SOUSA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula G. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
p. 26.
14
GONZALES, Lélia. RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, 1984. p. 224.
136

À mulher negra alguns postos foram atrelados, como cozinheira, faxineira, servente,
trocadora de ônibus ou prostituta. Isso está amplamente difundido nos meios de comunicação
em massa e imaginário popular. Atribui essas noções à perspectiva de consciência e de
memória. A primeira vinculada à alienação e ao esquecimento. A segunda ligada ao não-saber15.
Logo, invisibilizam-se as peculiaridades dessas mulheres negras, que são, justamente, as mais
vulnerabilizadas socialmente. Um passado que é esquecido, apesar de deixar marcas no
presente, tem suas feridas largadas à negligência e ao desconhecimento.
Ao analisar o lugar das mulheres negras no labor, é possível observar esse movimento
de afastamento das demandas das mulheres brancas, em especial pertencentes à elite, da
realidade das mulheres negras, exploradas e coisificadas nesse duro processo de escravidão.
Verifica-se através do estudo de Angela Davis, que às mulheres negras nunca foi conferido o
mito da fragilidade feminina, sendo que sua mão-de-obra escrava foi utilizada desde os
primórdios da moderna civilização. Apesar da autora tratar sobre o contexto norte-americano,
a realidade brasileira da época se assemelha à estadunidense nesse ponto: “O sistema escravista
definia o povo negro como propriedade. Já que as mulheres eram vistas, não menos do que
homens, como unidades de trabalho lucrativas, para os proprietários de escravos elas poderiam
ser desprovidas de gênero”16. Nessa mesma esteira,

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a


proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estão falando?
Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente
majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos
tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam
durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras,
quituteiras, prostitutas... [...] Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de
engenho tarados. Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou
mulatas tipo exportação.17

Dessa maneira, observa-se que diferente da história das mulheres da elite,


majoritariamente brancas, as mulheres negras sempre laboraram, à época da escravidão foram
exploradas e trabalhavam tanto quanto os homens, não enfrentando o estigma de delicadas ou
submissas aos maridos, ficando restritas ao âmbito privado, mas tendo sua mão-de-obra
subjugada nesse sistema de produção exploratório.

15
GONZALES, Lélia. RACISMO E SEXISMO NA CULTURA BRASILEIRA. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, 1984. p. 226-228..
16
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Traduzido por Heci Regina Cadiani. São Paulo: Boitempo, 2016. p.
17.
17
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de
uma perspectiva de gênero. In: Racismos Contemporâneos, Rio de Janeiro:Takano Editores, 2003. p.2.
137

Posteriormente, trabalharam e ainda trabalham para subsistência própria e de seus


familiares. Ocupavam e ainda ocupam postos de subalternização, estando subjugadas por uma
estrutura que inferioriza seus serviços e existência em geral. Salienta-se que as mulheres
socioeconomicamente marginalizadas estão situadas na base da pirâmide socioeconômica,
estando subordinadas estruturalmente. Isso denota a confluência entre gênero, classe e raça18.
Trata-se de uma tríade de vulnerabilizações, que não se excluem, somam-se. A sujeição
a trabalhos precarizados e ocupação social de subalternidade, demonstradas na falta de acesso
à políticas públicas, moradia, saneamento básico e escolaridade, por exemplo, orientam
posturas e práticas violentas contra as mulheres negras. Essa delicada situação vem sendo pauta
de denúncias e articulações dos movimentos sociais.
Citam-se como exemplo de proposição de se articular e fundir, a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD),
assinada pelo Brasil em 1966 e aqui em vigor em 1982. A Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra Mulher (CEDAW), assinada pelo Brasil em 1981 e
ratificada em 1984, no documento Mulher Negra: Sujeito de Direitos e as Convenções para a
Eliminação da Discriminação, apresentado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), ONU Mulher (antiga UNIFEM) e a ONG AGENDE – Ações
em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento – em 2006, que possui o grande mérito de inscrever
o sofrimento de longa duração de um grupo de mulheres da sociedade brasileira no repertório
dos direitos humanos19.
As atuações dos movimentos sociais brasileiros demonstram uma eficácia política nas
suas ações, havendo o entendimento dos indivíduos enquanto cidadãos destinados aos
exercícios das práticas, reflexões e debates na condução de assuntos políticos20. Os processos
de democratização, sob o viés das teorias críticas e discursos emancipatórios, reforçam o
compromisso da sociedade civil enquanto projeto cultural e político de reconstrução da esfera

18
CRENSHAW, Kimberle W. A intersecionalidade entre na Discriminação de Raça e Gênero. In: VV.AA.
Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004. p. 13-14.
19
ALMEIDA, Tânia Mara Campos de Almeida; PEREIRA, Bruna Cristina Jaquetto. Violência Doméstica e
Familiar contra mulheres pretas e pardas no Brasil: Reflexões pela ótica dos estudos feministas latino-americanos.
Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.2, n.2, Dossiê: Cultura e Política, dez. 2012. Disponível em:
file:///C:/Users/STI/Downloads/21941-Texto%20do%20artigo-82693-1-10-20130308%20(1).pdf. Acesso em set.
2019. p.61.
20
PAOLI, Maria Célia. Movimentos Sociais, Cidadania, Espaço Público: Perspectiva brasileiras para os Anos 90.
Revista Ciência de Ciências Sociais. São Paulo, v. 33, p. 115-162, out. 1991. p. 131.
138

público no Estado de Democrático de Direito, fazendo emergir umas novas práxis


constituinte21.
Fazer ecoar as demandas sociais nos esforços legislativos, é papel do Direito, visto de
maneira crítica e contra hegemônica. Para que as leis vigentes atendam às particularidades das
mulheres negras, documentalmente as mais atingidas pela violência sistêmica e letal, que
intersecciona gênero, raça e classe, salientam-se os estudos Decoloniais como possíveis aportes
epistemológicos de sustentação para uma nova forma de ver e fazer o Direito.

3 A EPISTEMOLOGIA DECOLONIAL NO ENFRENTAMENTO CRÍTICO À


VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NEGRAS

O grupo Colonialidade/Modernidade, foi sendo paulatinamente estruturado por vários


seminários, diálogos paralelos e publicações. No ano de 1998, um importante encontro apoiado
pela CLACSO e realizado na Universidad Central de Venezuela, reuniu pela primeira
importantes pesquisadores. Em 1999, ocorreu na Pontificia Universidad Javeriana, Colômbia,
um simpósio internacional. Já nos anos 2000, ocorreram sete reuniões/eventos oficiais do
grupo, cujos pesquisadores expoentes são Dussel, Mignolo, Quijano, Grosfoguel, Walsh,
Maldonado-Torres e A. Escobar, entre outros22.
Estabeleceram que, atualmente, persiste a colonialidade no âmbito do ser, do saber e do
poder. A colonialidade figura-se como um fenômeno muito mais complexo que o colonialismo,
operando em um padrão de poder que atua na naturalização de hierarquias territoriais, raciais,
culturais e de dominação23. O giro Decolonial, por conseguinte, é a propositura de uma
desobediência epistemológica24, de ruptura com o pensamento e dominação de matriz
eurocêntrica colonial. Logo, é uma configuração de conceituação por si mesma “outra”, que
procura reconceitualizar os espaços, mirando uma civilização alternativa25.

21
SILVEIRA, Héctor. El cuarto poder y la protección de lo común. Revista Crítica Penal y Poder, Universidad
de Barcelona. Barcelona, n. 12, p.1-33, mar. 2017. p.5.
22
BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Rev. Brasileira de Ciência Política, Brasília, n.
11, p. 89-117, ago. 2013. Disponível
em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010333522013000200004&lng=en&nrm=iso.
Acesso em out. 2019.
23
RESTREPO, Eduardo. ROJAS, Axel. Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos. Popayán,
Samava. 2010. p. 15.
24
MIGNOLO, Walter. Pensamento decolonial, desprendimiento y apertura. In.: MIGNOLO, Walter (org.). Habitar
la frontera: sentir y pensar la descolanialidad. Barcelona: CIDOB, 2015.
25
WALSH, Catherine. Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento “otro” desde
la diferencia colonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramón (orgs). El giro decolonial.
Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre
Editores; Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia Universidad Javeriana,
139

A observação da violência contra a mulher negra no Brasil, tem intrínseca ligação com
a colonialidade. A subalternização das mulheres negras nos mais diversos âmbitos sociais,
também se reflete nas violências sofridas por essas mulheres. Mesmo que exista um arcabouço
legal de proteção e enfrentamento à violência em razão de gênero, elas são invisibilizadas nesse
processo de aplicação da lei, uma vez que estão no outro lado da linha abissal, tendo suas
peculiaridades silenciadas pelo Direito hegemônico, o que é demonstrado numericamente nas
pesquisas de coleta de dados.
Boaventura esclarece a necessidade de um pensamento alternativo de alternativas, um
pensamento pós-abissal26. Somente dessa forma que se teria a chance de contemplar um maior
número de diversidades na efetivação de Direitos e políticas públicas, sem o abismo social
maniqueísta.
Mignolo27, muito bem assevera que de nada adianta a teorização da Decolonidade se os
estudiosos não seguirem a vanguarda dos movimentos sociais. Dessa forma, não se
desconsideram os processos de resistência e denúncias articuladas pelos movimentos sociais
até então. Muito pelo contrário, deve-se alinhar essas experiências com as teorizações
inovadoras dessa nova episteme, oriunda da região marginal do globo, a fim de efetivar esse
modelo de compreensão do mundo.
Os movimentos sociais, desde o fim da década de 1980 e meados da década de 1990,
vêm ganhado força no país. Essas articulações sociais criaram o terreno para que fossem
elaborados novos paradigmas normativos. Todavia, muitas especificidades não são
contempladas por esse avanço, sendo os estudos Decoloniais uma teoria que pode vir a propiciar
o engajamento da doutrina com a prática insurgente dos movimentos sociais.
O desafio institucional apresenta-se em dois níveis. O primeiro, diz respeito aos
processos de mudança nos paradigmas disciplinares no campo jurídico de formação
universitária e profissional, que atinge as mentalidades, os valores e as ideias. O segundo

Instituto Pensar, 2007. Disponível em: http://www.unsa.edu.ar/histocat/hamoderna/grosfoguelcastrogomez.pdf.


Acesso em abr. 2019. p.47; 59.
26
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos
saberes. In: SOUSA SANTOS, Boaventura; MENESES, Maria Paula G. Epistemologias do Sul. São Paulo:
Cortez, 2010. p. 41.
27
MIGNOLO, Walter. COLONIALIDADE: O LADO MAIS ESCURO DA MODERNIDADE. Revista
brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092017000200507&lng=en&nrm=iso. Acesso
em mai. de 2019. p. 6.
140

relaciona-se com a democratização das relações sociais de gênero no campo da atuação jurídica,
atingindo a constituição de uma vontade política28.
Os estudos Decoloniais são um movimento de busca por outras alternativas, que põem
em xeque as estruturas rigidamente sedimentadas do Direito. Trata-se de uma quebra de
paradigma, que destaca sujeitos e demandas historicamente silenciados, a fim de realizar uma
ruptura social, promovendo o Bem Viver na busca de soluções alternativas às mazelas
originadas pelo colonialismo.

CONCLUSÃO

Com a constitucionalização da igualdade e o compromisso internacional firmado na


Convenção de Belém de 1994, o Brasil sedimentou a importante Lei Maria da Penha há 13
anos. Tal norma foi de extrema relevância para que novos marcos legais pudessem ser
consolidados, assim como, estipulou um novo paradigma que centralizou a questão da violência
doméstica e familiar na agenda política do país.
Inúmeros avanços foram conquistados a partir daí, como políticas públicas e delegacias
especializadas. No entanto, o recorte racial merece destaque, pois os dados apontam para uma
realidade assustadora: mais da metade das mulheres assassinadas são negras, e enquanto há um
aumento de menos de 5% nos casos letais de mulheres não negras, o aumento para mulheres
negras é de quase 30%.
A falta de alcance desse arcabouço legal para as mulheres negras, em especial as mais
vulneráveis socioeconomicamente, não é mera coincidência. Há um histórico colonialista, de
subjugação e invisibilização das mulheres negras enquanto sujeitas de direitos. A intersecção
raça, classe e gênero deve ser vista com olhares atentos, para que a generalidade da lei não siga
negligenciando a existência e sobrevivência das mulheres pretas e pardas.
Isso vem sendo denunciado pelos movimentos sociais, que através de suas articulações
e insurgências, muitas vezes têm o retorno normativo. Para que as demandas de mulheres negras
estejam em consonância com a eficácia dos instrumentos de proteção às mulheres como um
todo, aporta-se a necessidade de confluir os movimentos sociais com o Direito. Além disso,
fazer ecoar as vozes silenciadas historicamente, na falta de reconhecimento da mulher negra
como cidadã.

28
BANDEIRA, Lourdes. Três décadas de resistência feminista contra o sexismo e a violência feminina no
Brasil: 1976 a 2006. Sociedade & Estado, Rio de Janeiro, 2009. p. 424.
141

Por isso a importância dos estudos Decoloniais. Tal epistemologia propõe-se a ouvir os
subalternizados e promover a busca por uma sociedade alternativa, outra. A fim de dispor de
mecanismos de enfrentamento e superação das marcas coloniais de poder, saber e ser presentes
na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

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Doméstica e Familiar contra mulheres pretas e pardas no Brasil: Reflexões pela ótica dos
estudos feministas latino-americanos. Crítica e Sociedade: revista de cultura política. v.2, n.2,
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da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e
da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher;
dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera
o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em set. 2019.

______. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o art. 121 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7
de dezembro de 1940 - Código Penal, para prever o feminicídio como circunstância
qualificadora do crime de homicídio, e o art. 1º da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, para
incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Disponível em:
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144

ANEXO - FOTOS: I CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO, GÊNERO E


CONEXÕES

I CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO, GÊNERO E


CONEXÕES ENGLOBA EXPERIÊNCIAS NO COMBATE À
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.
Realizado em 15.10.19
145

PALESTRANTES
146
147
148

DIRETORIA E COMISSÃO ORGANIZADORA E CONVIDADOS

JORGE FARA - VICE-PRESIDENTE DA OAB/RS

ROSÂNGELA MARIA HERZER DOS SANTOS –DIRETORA-GERAL DA ESA/OAB/RS


149

CAROLINA DUTRA NORMEY - COORDENADORA DA COMISSÃO


ORGANIZADORA DO CONGRESSO

PALESTRA COM ANA CAROLINA LISBOA A ÚLTIMA DO CONGRESSO


150

TATIANA BASTO - DELEGADA

ADVOGADAS DA COMISSÃO ESTADUAL DA MULHER ADVOGADA


151

INTEGRANTES DA COMISSÃO ORGANIZADORA


152

MIGUELA ALVES
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