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2015
ISSN 2177-1383
Diretoria de Editoração:
Amanda Pontes Soares Fernandes
Anna Beatriz Alves de Oliveira
Bruna Brandl Cañete
Carolina Faria Collier de Oliveira
Flávia Monique da Silva Veras
Izalúcia Lopes Medeiros
Jéssyka Byanca Basílio Moreira
Mariana Rocha Sousa Severino
Rômulo Guilherme F. Santos
Yasmin Tomaz Cabral
Professores Orientadores:
Morton Luiz Faria de Medeiros
Patrícia Borba Vilar Guimarães
Fotografia:
Catarina Santos
Edição e Diagramação:
Paulo André Magalhães
EDITORIAL:
LITERATURA E DIREITO
1 INTRODUÇÃO
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públicas mal planejadas e executadas de modo falho.
Dentre os inúmeros entraves enfrentados pelos seus cidadãos, é possível altear a falta
de equipamentos públicos de qualidade, causa de impedimento para grande parte de a popula-
ção dispor das garantias estatais básicas – postos de saúde e escolas dotados de uma estrutura
digna, por exemplo - além de tornar impalpável o acesso das classes mais baixas ao lazer e ao
entretenimento, colocando em cheque uma série de Direitos Sociais elencados no artigo 6º, da
Constituição Federal Brasileira de 1988.
Busca-se então, através do presente trabalho, tratar da relevante questão do desenvol-
vimento urbano nacional, cujas chagas afetam grande parte das cidades do país, fomentando o
debate acerca do tema, de modo a possibilitar a tomada de conhecimento por parte da popula-
ção. Para que tal objetivo possa ser alcançado, além das disposições iniciais acerca do direito à
cidade e seus elementos, o trabalho contará com o exemplo do Arena do Morro, equipamento
construído no bairro de Mãe Luíza, zona leste da cidade de Natal/RN, comunidade na qual o
Núcleo Urbano do Programa de Educação Popular em Direitos Humanos - Motyrum, vem rea-
lizando suas atuações durante o ano de 2015.
1 ALVES, José Augusto Lindgren. A Habitat II e as encruzilhadas de Istambul. In: ALVES, José Augusto Lindgren. Relações interna-
cionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: Ibri, 2001. p. 249. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=z2LLE3uEhOIC&printsec=frontcover#v=onepage&q&f;=false>. Acesso em: 29 maio 2015.
2 CORREIA, Paulo V. D.. Introdução: O Solo, as Políticas e o Planeamento Municipal. In: CORREIA, Paulo V. D.. Políticas de Solos no
Planeamento Municipal. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. Cap. 1, p. 15.
3 Artigo 1º. O parcelamento do solo para fins urbanos será regido por esta Lei.
Parágrafo único - Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão estabelecer normas complementares
relativas ao parcelamento do solo municipal para adequar o previsto nesta Lei às peculiaridades regionais e
locais.
Artigo 4º. Os loteamentos deverão atender, pelo menos, aos seguintes requisitos:
I - as áreas destinadas a sistemas de circulação, a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como
a espaços livres de uso público, serão proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou
aprovada por lei municipal para a zona em que se situem.
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da Lei abarca a revogação parcial dos Decretos-Lei 58/37 e 271/67 por uma ótica pública sobre o
parcelamento do solo, mediante a figura do Estado como o maior interessado na ocupação ade-
quada do espaço urbano, atribuindo direitos e deveres à relação entre a coletividade e o priva-
do4. É importante ressaltar que desde 1934, a Constituição Brasileira já carregava a concepção
de função social da propriedade, de modo que torna possível perceber que mesmo anterior ao
ano de 1988, a legislação já dispunha de modo característico sobre a questão do uso e ocupação
do solo.
Contudo, somente após a consolidação da Constituição Federal Brasileira de 1988 foi
possível tal feito, sendo então implantados, no Capítulo II “Da política urbana”, do Título VII
“Da ordem econômica e financeira” os artigos 182 e 183. Os dispositivos trazem encaminha-
mentos no que diz respeito ao desenvolvimento urbano, à função social da cidade e à gestão
democrática do espaço urbano dando margem ao desenvolvimento da Lei nº 10.257/2001, o
Estatuto da Cidade que versa sobre as diretrizes gerais da política urbana, dando abertura à
solidez do Direito à Cidade5.
Nesse aspecto, a Constituição Federal Brasileira de 1988 designada no cenário de esta-
belecimento do Estado Democrático de Direito, no qual prevalecem os direitos de solidariedade
e a grande influência dos direitos sociais, traz consigo um enraizamento da função social da
propriedade inicialmente semeada em 1934.
Esse conceito, fortemente debatido nas discussões referentes à distribuição das ter-
ras do país, abarca a função do solo como um vetor da vida em sociedade convergente a uma
perspectiva de direitos fundamentais. Dessa forma, a nossa legislação considera as terras “im-
produtivas” como um obstáculo aos cidadãos desprovidos de poder aquisitivo suficiente para
adquirir uma propriedade, comprometendo a garantia do seu direito fundamental à moradia e
da sua dignidade.
Aliada a essa ideia, perceber a função social da cidade, parte do entendimento de que
o Estado deve dispor o solo à sua função, propiciando para além da moradia em si, o uso devido
de terrenos públicos para a construção de equipamentos sociais visando o bem-estar coletivo.
Por conseguinte, a construção desses equipamentos, deverá estar de acordo com as necessida-
des e costumes dos cidadãos, assim como, com as potencialidades do espaço a ser utilizado
(SANT’ANNA, 2011, p. 119).
Tais elementos podem ser aferidos a partir do planejamento urbano na personificação
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Estado no que diz respeito à alteração do espaço urbano, trazendo limites urbanísticos a serem
observados, além de correlacionar concepções importantes, atribuindo uma “função social”
para além da propriedade em si, enxergando o ambiente da “cidade”.
Nessa perspectiva, consonante a Habitat I, devido ao cenário de aumento da urbani-
zação em todo o globo, a Habitat II, em 1996, foi realizada em Istambul, tendo como produto
final a elaboração da Agenda Habitat. Visto a demanda do cenário internacional pelo reforço
à primeira Conferência, em 1976, no objetivo de consolidar uma visão social sobre a cidade,
foi estabelecida a Agenda como um plano estratégico contendo mais de 100 compromissos e
600 recomendações adotadas por 171 países7, sob dois pilares: garantir uma moradia adequada
para todos, ao passo do desenvolvimento dos assentamentos humanos, mediante planejamento
urbano, acesso a serviços e infraestrutura básicos.
moradores do bairro, o ginásio nomeado por “Arena do Morro” - inclusive ganhador do prêmio
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“Edificação do Ano 2015”12 na categoria esportiva em premiação promovida pelo portal britâ-
nico Archdaily.
Importa ressaltar, assim, que a Arena do Morro conquista esse papel fundamental
junto à comunidade, em virtude da Lei nº 4.663/95 que concebe o bairro de Mãe Luíza como
Área Especial de Interesse Social (AEIS). Por conseguinte, a legislação vigente tendo em vista
a produção, manutenção e recuperação de habitações de interesse social, permite aos cidadãos
de uma localidade privilegiada na cidade de Natal, a proteção sobre o seu direito à moradia de
forma plena.
Em suma, a disponibilização de uma comunicação prévia até a conclusão do projeto
permitiu o surgimento de uma identidade dos cidadãos daquela localidade com a obra, de modo
valorizá-la e cuidá-la pelo atendimento de seus anseios por direitos básicos inerentes a qualquer
cidadão brasileiro. Por intermédio da Lei nº 4.663/95, é possível consolidar o Direito a Cidade
dos moradores à medida que se fortalece o elo existente perante a sua propriedade, ao seu bairro
e aos equipamentos sociais ali presentes.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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dade por muito tempo estão forçosamente presentes na atualidade prejudicando a plenitude da
consecução de direitos deliberados no ordenamento jurídico brasileiro; porém, valorações essas
que não são definitivas.
REFERÊNCIAS
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma crítica ao planejamento e a gestão urbanos.
6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. 556 p.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro, 2001. 144 p.
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Recebido em 03 maio 2015
Aceito em 03 maio 2015
1 INTRODUÇÃO
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O estudo sobre o direito à cidade não é recente e nem privilégio da doutrina jurídi-
ca, constituindo-se objeto de análise por parte da Sociologia e da Geografia, como no caso do
sociólogo francês Henri Lefebvre1 e do geógrafo inglês David Harvey2; que nos trazem ideias
* Doutora em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFRN (Área de concentração: Urbanização, Projetos e Políticas Físico-Territoriais),
com estágio de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra-Portugal; Mestre em Direito Público – DPU/UFRN;
Graduada e Especialista em Serviço Social – DESSO/UFRN.
1 Considerado pioneiro no estudo do tema, na obra Le droit à la ville, publicada em 1968.
2 Entendemos que os fundamentos da concepção de Harvey sobre o tema, sobre o qual vem tratando em entrevistas concedidas a partir
de 2006, podem ser encontrados em sua obra Espaços de Esperança. Trad. De Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São Paulo:
Edições Loyola, 2004.
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essenciais sobre o tema, convergentes na compreensão de que o direito à cidade se coloca como
uma construção coletiva, como um direito à produção do espaço.
No Brasil, a busca pela efetivação da justiça social no meio urbano, que impulsionou a
luta pela reforma urbana (ainda na década de 60), teve frutos concretos ao final do período da
Ditadura Militar, a partir da discussão da questão urbana no âmbito do Movimento Nacional
pela Reforma Urbana – MNRU (criado em 1985), cujo ideário teve rebatimento na Assembleia
Nacional Constituinte (1987-1988); vindo dar origem ao Capítulo da Política Urbana na Consti-
tuição Federal de 1988.
O amadurecimento do ideário do direito à cidade ocorreu com a edição do Estatuto da
Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), que trouxe diretrizes e instrumentos voltados a garantir a
função social da cidade e da propriedade urbana, a regulação pública do solo, ao enfrentamento
de distorções do crescimento urbano e à construção democrática das cidades; positivando um
novo direito no ordenamento jurídico brasileiro: o direito às cidades sustentáveis.
A experiência brasileira de buscar o reconhecimento do direito à cidade, a partir de
uma ação política em defesa da implantação da plataforma da Reforma Urbana, contribuiu para
o debate internacional sobre o direito à cidade; que se materializou na Carta Mundial pelo Di-
reito à Cidade, finalizada em 20053 e à qual o Governo Brasileiro aderiu em 2006.
Contudo, observando-se o cenário das cidades brasileiras em 2015 constata-se um gra-
ve quadro de insustentabilidade urbana. Colapso de água em um expressivo número de cidades
(com enfoque para São Paulo e várias cidades do Nordeste), risco de apagão elétrico, aumento
do calor, explosão da violência urbana, enchentes e deslizamentos de terras, falta de mobili-
dade, ausência de moradia digna e adequada para grande parte da população, insuficiência de
saneamento ambiental, dentre outros graves problemas socioambientais urbanos, fazem parte
da experiência cotidiana nas cidades brasileiras.
Paralelamente, nos últimos anos houve um gradativo aumento da renda das classes
sociais de menor poder aquisitivo, com consequente e progressivo acesso ao consumo; o que, no
entanto, não veio acompanhada do acesso ao direito à cidade sustentável e aos direitos urbanos
que ele comporta (direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura
urbana, aos transportes e aos serviços urbanos, ao trabalho e ao lazer)4.
Diante desse cenário e da percepção de que “algo está fora do lugar”, o presente artigo
traz à tona alguns fundamentos doutrinários e legais que possibilitam compreender esse novo
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contexto em que se insere a busca pela garantia dos direitos urbanos e apontar trilhas para o en-
frentamento do déficit de implementação do direito à cidade sustentável positivado na legisla-
ção brasileira desde o ano de 2001 e, em sua essência, compreendido, como direito à produção
e fruição do espaço.
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2 O DIREITO À CIDADE – IDEIAS ESSENCIAIS
Nesse sentido, para Lefebvre (2008) a busca pelo direito à cidade se identifica com
a luta pelo direito de criação e plena fruição do espaço social. Compreendendo o exercício da
cidadania muito além do direito de voto e expressão verbal, o sociólogo francês defende uma
forma de democracia direta, que se efetive pelo controle direto dos indivíduos sobre a forma
de habitar a cidade, produzida como obra humana coletiva. Visto sob essa perspectiva ativa, o
direito à cidade é posto como um direito à produção do espaço.
Em momento mais recente, David Harvey, geógrafo marxista, passa a tratar do direito
à cidade, cuja busca pela efetivação deve se colocar, segundo o mesmo, como objeto de luta de
vários movimentos sociais.
Constituído a partir da ideia do estabelecimento de um controle democrático sobre os
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vamente. Assim, considera que “reclamar o direito à cidade é reclamar ter voz ativa sobre
os processos de urbanização, por meio dos quais nossas cidades são feitas e refeitas de uma
maneira fundamentalmente radical” (HARVEY, 2009)
Desse modo, para Harvey, “o direito à cidade não é simplesmente o direito ao que já
existe na cidade, mas o direito de transformar a cidade em algo radicalmente diferente” (HAR-
VEY, 2009). Integrada nessa percepção está a ideia de que a cidade deve ser vista “não como
uma cidade de fragmentos, mas como um corpo político, como uma “entidade que tem um ca-
ráter, um papel a desempenhar na divisão internacional do trabalho” (HARVEY, 2006) e que,
portanto, pode (e mais ainda, deve) ser produzida coletivamente a partir das ideias e ideais dos
sujeitos que participam ativamente dessa produção; não sob a visão do solo como mercadoria
(como forma essencial de reprodução da lucratividade do capital) mas, a partir de uma visão de
transformação humanizadora, como espaço de materialização dos princípios de justiça social
e ambiental. Nessa construção teórica, importante compreender o pensamento de Harvey sobre
dois modos diferentes de como a cidade pode ser produzida:
Em Nova York, por exemplo, temos um prefeito, Michael Bloomberg, que tem uma
visão de conjunto da cidade e a está implementando. Aponta para fazer de Nova York
uma cidade competitiva em relação ao interesse da classe capitalista transnacional.
Não é exatamente autoritário, mas diz estar acima da política. Está investindo na
cidade e tem muitos projetos de desenvolvimento; preocupa-lhe a qualidade de vida,
ainda que não para toda a população. A está convertendo numa cidade muito atrativa
para o capital financeiro e para os turistas. Sei que isto é um problema, mas o que
quero dizer é que ao menos tem uma visão da cidade em seu conjunto e a está levando
a cabo sob essa perspectiva de classe. Nosso problema é porque não podemos fazer
algo similar desde uma perspectiva de classe alternativa. Há casos. Por exemplo:
pode-se fazer muitas críticas a Porto Alegre, mas ali houve uma tentativa de olhar a
cidade em seu conjunto. Através da elaboração participativa do orçamento podemos
envolver toda a população nas decisões da construção da cidade. É uma boa ideia.
Traz problemas, evidentemente, mas ao menos nessa instância não se tem um
movimento social num bairro e outro num outro bairro, mas que diz: pensemos a
cidade em seu conjunto, vejamos como ela funciona e nos encarreguemos dela6.
Tal compreensão da cidade (como corpo político), sob uma perspectiva alternativa,
suscita a constatação de que:
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A partir de tais ideias, que consideramos essenciais para discutir o direito à cidade
sustentável no ordenamento jurídico brasileiro, passamos a compreender a trajetória do tema
no Brasil.
A ideia sobre a efetivação da justiça social no meio urbano remonta à década de 1960,
quando, no Governo do Presidente João Goulart, foi elaborado o Projeto de Reforma Urbana
abortado com o regime militar instalado no país no período de 1964 a 1985, que veio impedir
qualquer discussão pública desse projeto emancipatório.
A recomposição do campo da Reforma Urbana veio ocorrer a partir da perspectiva
da elaboração da nova Constituição, o que ocorreu em meados dos anos 1980, ao término do
governo do general João Batista Figueiredo, com a eleição do primeiro presidente civil desde o
Golpe de 1964.
A concepção progressista da Reforma Urbana amadureceu entre meados e o fim da
década de 1980, propiciado pela constituição do Movimento Nacional pela Reforma Urbana,
esta compreendida como:
7 Grande parte da análise ora realizada é encontrada em nosso livro Meio Ambiente e Moradia: direitos fundamentais e espaços especiais
na cidade. Curitiba: Juruá, 2012.
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que a maioria das organizações sociais até então existente.” (SANTOS JÚNIOR, 2008, p. 146).
No contexto da elaboração da Constituição de 1988, cujos trabalhos ocorreram no
período entre 1986 a 1988, o Movimento Nacional pela Reforma Urbana teve um papel funda-
mental ao apresentar proposição de Emenda Popular com mais de 130 mil assinaturas, com a
proposta de introdução de um capítulo sobre Política Urbana. Tal proposição foi parcialmente
aproveitada pela Assembleia Nacional Constituinte, vindo dar origem aos artigos 182 e 183 da
Carta Maior, que constituem o Capítulo da Política Urbana.
Ressalta-se que, em seu artigo 182, a Constituição Federal trata das funções sociais da
cidade e da garantia do bem estar dos habitantes como objetivos da política de desenvolvimento
urbano.
Ainda que não tenha acolhido integralmente o que propunha aquela Emenda Popular,
a instituição de um capítulo específico para a “Política Urbana”8 foi considerado um enorme
avanço no texto constitucional, aliado à expressa referência ao “direito urbanístico” (art.24, I), à
imposição da responsabilidade compartilhada entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios, para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições
habitacionais e de saneamento básico (art.23, IX); além da vinculação do direito de propriedade
à sua função social (art.5º, incisos XXII e XXIII).
Merece destaque o fato de que, logo no início de seu texto (artigo 1°, III), a Carta Mag-
na de 1988 estabeleceu que a dignidade da pessoa humana (valor sobre o qual se assentam os
direitos humanos fundamentais) se constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito. Em seguida (no art.3°), a Constituição definiu os objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, dentre os quais se inclui: a construção de uma sociedade livre, justa e so-
lidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução
das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem-estar de todos, excluída qualquer
forma de discriminação.
Coube ao Estatuto da Cidade, que entrou em vigor em 10 de julho de 2001 (Lei Federal
n. 10.257), regulamentando o capítulo constitucional da Política Urbana, instituir um impor-
tante arsenal normativo capaz de municiar a Reforma Urbana em muitos de seus propósitos,
especialmente na implementação de políticas focadas na redução da desigualdade social (onde
o acesso à terra urbanizada e bem localizada para produção de política habitacional se constitui
elemento essencial) e na construção democrática das cidades.
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8 Com as importantes disposições ali contidas, incluindo instrumentos urbanísticos, como o parcelamento, edificação e utilização
compulsórios, o IPTU Progressivo no Tempo e a desapropriação com títulos da dívida pública; além da usucapião especial urbana e a
concessão de uso especial.
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priedade urbana” (artigo 2º, caput).
Tal assertiva se comprova logo ao tomarmos contato com as diretrizes gerais da Po-
lítica Urbana (art.2º) que estabelecem a garantia do direito a cidades sustentáveis; a gestão
democrática; a integração de políticas públicas, privadas e sociais, visando o interesse social;
o planejamento do desenvolvimento das cidades de modo a “evitar e corrigir as distorções do
crescimento urbano e os efeitos seus efeitos negativos sobre o meio ambiente” (Lei nº 10.257,
resumo do art. 2º); a oferta de equipamentos urbanos e comunitários, serviços públicos e de
transporte de qualidade e a ordenação e controle do uso do solo, visando principalmente que a
propriedade cumpra sua função social.
Observando-se o conteúdo do referido artigo, vê-se que a articulação das temáticas
ambiental e social no meio urbano (compatibilizando a “Agenda Verde”9 e a “Agenda Mar-
rom”10) não expressamente tratada pela Constituição de 1988, foi amplamente considerada no
Estatuto da Cidade; trazendo elementos essenciais de articulação, quais sejam: a função social
da cidade, a função social da propriedade (em sua acepção socioambiental) e o direito à cidade
sustentável.
Assim ocorreu, vez que durante a construção do Estatuto da Cidade aprofundou-se a
problemática socioambiental nas cidades brasileiras, resultado de um modelo econômico que
primou pelas reformas estruturais de caráter neoliberal, tendo início no governo Collor de Melo
(1989) e consolidando-se nos dois períodos sucessivos de governo de Fernando Henrique Car-
doso (1995/1998 e 1999/2002).
No contexto de um novo paradigma criado a partir da Constituição de 1988, denomi-
nado, conforme Santos Júnior, de cidade-direito, “que tem se caracterizado pela construção de
diagnósticos críticos da questão urbana brasileira e pela proposição de estratégias de um pro-
jeto alternativo de cidade” (SANTOS JÚNIOR, 2008, p. 146), foi criado, no âmbito federal, o
Ministério das Cidades (2003) e o Conselho Nacional de Cidades (2004), voltados a colocar em
prática no Brasil um novo projeto de cidade, na qual a sustentabilidade e a gestão democrática
fossem elementos centrais.
Registra-se, entretanto, que, a partir de 2005, quando o então Presidente Lula precisou
ampliar sua base no Congresso após a crise do mensalão, e trocou o comando do Ministério da
Cidades (substituindo o Ministro Olívio Dutra11), essa Pasta, criada (sob o paradigma da Refor-
ma Urbana) com objetivo de exercer papel coordenador do governo federal na formulação de
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políticas urbanas para melhorar a distribuição dos recursos aos municípios, teve seus objetivos
limitados pela ausência de uma estratégia para as cidades, como analisa o Professor Luiz Cesar
de Queiroz Ribeiro12; passando a se colocar, essencialmente, como o órgão federal viabilizador
9 Como também foi denominada a Agenda 21, aprovada na Conferência do Rio (1992).
10 Denominação atribuída à Agenda Habitat aprovada na Conferência de Istambul (1996).
11 Ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra (PT), escalado como o primeiro Ministro das Cidades.
12 In: RODRIGUES, Alexandre. Com dificuldades de responder a demandas, Ministério das Cidades atrapalha Dilma: Pasta foi esvazia-
da ao ser entregue ao PP e perdeu força. O Globo, 02 ago. 2014. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/brasil/com-dificuldades-de-res-
ponder-demandas-ministerio-das-cidades-atrapalha-dilma-13474201#ixzz3Y9cXcdXN>. Acesso em: 22 abr. 2015
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de grandes obras urbanas, como aquelas integrantes do Programa de Aceleração do Crescimen-
to - PAC, especialmente em decorrência da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016,
e do Programa Minha Casa Minha Vida.
Contudo, permeando todo esse contexto destaca-se o direito à cidade sustentável, po-
sitivado no sistema jurídico brasileiro através do Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º (inciso I),
e compreendido como “direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraes-
trutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes
e futuras gerações”. Destaca-se que o mesmo Estatuto estabelece que a Política Urbana tem
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana.
Criado está um novo direito em nosso ordenamento jurídico que, nos termos contidos
na definição legal, reúne direitos fundamentais (como moradia, trabalho, lazer e outros) aliados
a importantes condições para a garantia do bem estar dos habitantes das cidades; tendo como
base aquelas normas básicas e fundamentais contidas na Constituição Federal.
Nos termos postos por Cavalazzi, a cidade sustentável seria aquela onde se concretiza
a compatibilização dos princípios de justiça distributiva com o equilíbrio das relações de todos
os atores sociais; implicando o “desenvolvimento econômico compatível com a preservação
ambiental e a qualidade de vida dos habitantes; em uma palavra, equidade”. (CAVALAZZI,
2007, p.69)
Considerando a abrangência do direito a cidades sustentáveis, de modo a albergar
outros tantos direitos referentes à qualidade de vida nas cidades, podemos dizer que as normas
destinadas a implementar, em todos os níveis da Federação, políticas públicas referentes à mo-
radia e terra urbana, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e serviços
públicos, e ao trabalho e lazer, se constituem, em nosso ordenamento jurídico, instrumentos
viabilizadores da efetivação daquele direito.
Merece destaque o fato de que todo esse ideário, inicialmente posto na Constituição de
1988 e após, no Estatuto da Cidade, teve um forte rebatimento nas constituições estaduais e leis
orgânicas municipais editadas a partir de 1988, assim como nos planos diretores e leis de caráter
local ou estadual, resultando em muitos avanços na produção normativa referente ao acesso ao
direito à cidade (ainda que pontualmente) (SANTOS JÚNIOR, 2008). Importante destacar a
campanha do Plano Diretor Participativo lançada pelo Ministério das Cidades, no ano de 2005,
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com o apoio do Conselho de Cidades, havendo um forte enfoque integrado das temáticas social
e ambiental urbana, nos termos postos no Estatuto da Cidade.
Como consequência, um grande número de cidades brasileiras elaboraram seus Planos
Diretores com fundamento nesse novo paradigma; trazendo, ao menos a nível normativo, im-
portantes instrumentos para o tratamento da questão urbana (com destaque à democratização
do acesso à terra e aos direitos urbanos).
No âmbito nacional, a partir de 2005 foram elaboradas várias políticas destinadas a
garantir a efetivação de direitos urbanos; destacando-se: a Lei 11.124/2005 (Política Nacional de
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Interesse Social); a Lei 12.587/2012 (Política Nacional de Mobilidade Urbana); Lei n°11.445/2007
(Política Nacional de Saneamento Básico); a Lei nº. 12.187/2009 (Política Nacional sobre Mu-
danças Climáticas) e Lei 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos). No campo da
moradia foi instituído o Programa Minha Casa Minha Vida (através da Lei 11.977/2009); que,
embora não tenha se apresentado como solução para garantia de moradia digna e adequada para
uma grande parcela da população de baixa renda, traz como mérito um amplo regramento do
instrumento da regularização fundiária.
Por outro lado, registra-se, até o momento, a realização de cinco Conferências Nacio-
nais das Cidades (2003, 2005, 2007, 2010 e 2013); com os seguintes temas e lemas: 1ª. “Cidade
para todos: “Construindo uma política democrática e integrada para as cidades”; 2ª. “Construin-
do uma política nacional de desenvolvimento urbano: Reforma Urbana: cidade para todos”; 3ª.
“Desenvolvimento Urbano com Participação Popular: avançando na Gestão Democrática das
Cidades”; 4ª. “Cidades para todos e todas com gestão democrática, participativa e controle
social: avanços, dificuldades e desafios na implementação da Política de Desenvolvimento Ur-
bano” e 5ª. “Quem muda a cidade somos nós: Reforma Urbana Já. Todas essas Conferências
Nacionais possuem eventos preparatórios (também em formato de Conferência) a nível estadual
e municipal. Diante desse cenário, parafraseamos Ermínia Maricato (2013) na constatação de
que “nunca fomos tão participativos”!
Recentemente, após vários anos de discussão, foi aprovado o Estatuto das Metrópoles
(Lei Federal n. 13.089/2015), voltado a enfrentar os diversos problemas comuns que envolvem
as regiões metropolitanas, através do estabelecimento de
Explicitado todo esse quadro normativo, que qualifica o ordenamento jurídico brasi-
leiro no que se refere à disciplina legal da cidade e do urbano, é importante verificar o debate
sobre o direito à cidade no âmbito internacional.
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humanos.
Nesse sentido, cabe destacar o Tratado sobre a questão urbana, denominado “Por Ci-
dades, Vilas e Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis”, elaborado na “Conferência da
Sociedade Civil Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”, durante a ECO-92, e a “2ª Confe-
rência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos” - Habitat II.
Naquele Tratado o direito à cidade é concebido como
O mesmo documento também compreende, segundo Saule Júnior (2006), a gestão de-
mocrática da cidade, como a forma de planejar, produzir, operar e governar as cidades e povoa-
dos, submetida ao controle e participação da sociedade civil, destacando-se como prioritários o
fortalecimento e autonomia dos poderes públicos locais e a participação popular.
Importante considerar que, no referido Tratado, a função social da cidade (que no
Brasil passou a ser princípio constitucional da Política Urbana) pressupõe: o uso socialmente
justo do espaço urbano para que os cidadãos apropriem-se do território, democratizando seus
espaços de poder, de produção e de cultura, dentro de parâmetros de justiça social e da criação
de condições ambientalmente sustentáveis. (SAULE JÚNIOR, 2006).
A ideia de internacionalização do direito à cidade foi objeto das discussões travadas
no Fórum Social Mundial13, no ano de 2001; onde foi lançada a proposta de elaborar uma “Carta
Mundial pelo Direito à Cidade”14. O principal objetivo do processo de construção dessa Carta
Mundial15 é disseminar a concepção do direito à cidade como um novo direito humano16 com
base numa plataforma de reforma urbana para ser implementada pelos países, visando a modi-
ficar a realidade urbana mundial mediante a construção de cidades justas, humanas, democrá-
ticas e sustentáveis.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
13 O Fórum Social Mundial surgiu, em 2001, como contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, que há mais de 20
anos reúne os representantes dos países mais ricos do mundo com o objetivo de discutir os rumos do capitalismo e reafirmar o modelo eco-
nômico liberal. O Fórum Social Mundial constitui-se num “espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formu-
lação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, ONGs e outras organizações da sociedade civil que
se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. Após o primeiro encontro mundial,
realizado em 2001, se configurou como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais.”
Carta de Princípios do Fórum Social Mundial obtida no site http://www.forumsocialmundial.org.br acessado em 18 de julho de 2008.
14 A primeira versão da Carta teve como subsídios a “Carta Européia dos Direitos Humanos na Cidade”, elaborada pelo Fórum de Au-
toridades Locais, em Saint Dennis, em maio de 2000, e o Tratado “Por Cidades, Vilas e Povoados, Justos, Democráticos e Sustentáveis”.
15 Discutida no Fórum Social das Américas (Quito-2004), Fórum Mundial Urbano (Barcelona-2004) e Fórum Social Mundial (Porto
Alegre-2005).
16 Associado ao reconhecimento institucional desse pretendido novo direito humano, nos organismos das Nações Unidas (como a Agência
Habitat, PNUD, Comissão de Direitos Humanos), bem como nos organismos regionais (como a Organização dos Estados Americanos).
24
No V Fórum Social Mundial (Porto Alegre – 2005) foi aprovada uma última versão
da “Carta Mundial pelo Direito à Cidade”17 onde, podemos dizer, estão contidas prescrições
fundamentais quanto ao direito à cidade nessa nova perspectiva18.
Em sua primeira parte (que prescreve disposições gerais) aquela Carta Mundial traz
a compreensão do direito à cidade e seus princípios fundamentais e estratégicos, quais sejam:
exercício pleno a cidadania e a gestão democrática à cidade; função social da cidade e da pro-
priedade; igualdade e não discriminação; proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis;
compromisso social do setor privado e impulso à economia solidaria e a políticas impositivas e
progressivas.
Na segunda parte de seu texto, de forma bastante e democrática, a Carta trata dos
“direitos relativos ao exercício da cidadania e da participação no planejamento, produção e
gestão da cidade”; dispondo sobre o planejamento e gestão das cidades, a produção social do
habitat; o desenvolvimento urbano equitativo e sustentável, o direito à informação pública, a
liberdade e a integridade, a participação política, o direito à associação, reunião, manifestação
e uso democrático do espaço público urbano, o direito à justiça, a segurança pública e a convi-
vência pacífica solidária e multicultural.
Na terceira parte, cuidou a Carta de tratar do direito ao desenvolvimento econômico,
social, cultural e ambiental das cidades, dispondo, dentre outros, sobre o direito à água, à mo-
radia e ao meio ambiente.
Por fim, a Carta dispõe sobre as obrigações e responsabilidades do Estado na pro-
moção, proteção e implementação do direito à cidade, sobre as medidas de implementação e
supervisão do direito à cidade, sobre as formas de lesão do direito à cidade, assim como de sua
exigibilidade; para concluir, com os compromissos provenientes do documento, tanto no que se
refere às redes e organizações sociais, aos governos nacionais e locais e aos organismos inter-
nacionais.
Da leitura das disposições contidas naquele documento, constata-se sua tendência a se
tornar uma cartilha a ser seguida no caminho da construção, em caráter mundial, de cidades
justas, humanas, democráticas e sustentáveis; confirmando a ideia do direito à cidade como
o direito à participação no planejamento, produção e gestão da cidade; em outras palavras: o
direito à produção e fruição do habitat (na concepção de Henri Lefebvre, 2008) e o poder da
sociedade sobre a formulação dos processos coletivos de urbanização (nos termos postos por
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
17 O texto da Carta pode ser encontrado em vários sites que tratam da questão urbana, dentre os quais destacamos http://www.conferen-
cia.cidades.pr.gov.br/download/documentos/carta_mundial_direito_cidade.pdf.
18 Importante nesse tema é a análise de Saule Júnior, Nelson. O Direito à Cidade como condição para cidades justas, humanas e
democráticas obtido no sítio http://www.polis.org.br acessado em 7 de julho de 2008.
25
5 ALGUMAS CONSTATAÇÕES QUANTO AO DÉFICIT DE IMPLEMENTAÇÃO DO
DIREITO À CIDADE SUSTENTÁVEL
Na atualidade, grande parte das cidades brasileiras (com ênfase às capitais), se veem
incapazes de enfrentar os graves problemas socioambientais que perpassam o seu território; o
que revela uma evidente falta de implementação da legislação existente (garantidora de direitos
urbanos) e a ausência de capacidade institucional por parte das gestões municipais.
Sem intenção de esgotar, nesse momento, a série de problemas de ordem institucional
ou político-administrativa que influencia, direta ou indiretamente, para que as nossas cidades
se tornem mais insustentáveis progressivamente, e ciente de que, nos termos considerados por
David Harvey (2004, 2009), o solo urbano é, muitas vezes, considerado como mercadoria (es-
sencial de reprodução da lucratividade do capital), é possível pontuar, ainda que em caráter
preliminar e de modo não aprofundado, algumas constatações que nos permitem evidenciar o
déficit de implementação do direito à cidade sustentável, a partir de fatos que demonstram a fal-
ta de efetividade de alguns direitos urbanos, como: mobilidade, moradia, infraestrutura urbana
e saneamento ambiental (todos inseridos no rol contido no art.2º, inc.I, do Estatuto da Cidade).
No campo do direito à mobilidade, a prioridade dada ao transporte individual e aos
veículos motorizados (automóvel e motocicletas) nas cidades brasileiras19, revela uma baixa
atenção, por parte das gestões (federal, estaduais e municipais), ao direito à mobilidade e aces-
sibilidade universal e a vários princípios, diretrizes e objetivos postos na Política Nacional de
Mobilidade Urbana, voltados ao desenvolvimento sustentável das cidades (nas dimensões so-
cioeconômicas e ambientais), à redução das desigualdades e promoção da inclusão social e do
acesso aos serviços básicos e equipamentos sociais; o que coloca o país diante de uma notória
crise de mobilidade urbana20.
No que tange ao direito ao saneamento básico21, ainda que nas cidades brasileiras se
registre aproximadamente 91,9% dos domicílios ligados à rede de abastecimento22, segundo
dados do Censo 2010, notória é a crise hídrica23 pela qual passam diversas cidades brasileiras
(destacando-se São Paulo) ao mesmo tempo em que se registra estarmos muito longe da univer-
salização quando se trata de esgotamento sanitário. Como resultado, temos graves problemas
ambientais e sanitários vivenciados por uma grande parcela da população (notadamente de
baixa renda, que possui sérios problemas de habitabilidade).
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
No âmbito da questão da moradia, embora se registre que uma parte dos empreendi-
19 Consequência da opção política do Governo Federal pela diminuição do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, associada ao
aumento da renda de parte da população.
20 Na atualidade, muitos tem sido os estudos realizados sobre a matéria. A esse respeito, ver RODRIGUES, Juciano Martin. Cri-
se de mobilidade urbana: Brasil atinge marca de 50 milhões de automóveis. Observatório das metrópoles. Disponível em: <http://
www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_content&view=article&id=1772%3Acrise-de-mobilidade-urbana-
-brasil-atinge-marca-de-50-milhoes-de-automoveis&catid=34%3Aartigos&Itemid=124&lang=pt>. Acesso em: 22 abr. 2015.
21 Que, nos termos da Política Nacional de Saneamento Básico (Lei Federal n. 11.445/2007), abrange o abastecimento de água, esgota-
mento sanitário, drenagem e manejo de águas pluviais e limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos
22 Considerando o abastecimento de água por poço, a cobertura chega a aproximadamente 97,4% (CENSO, 2010)
23 Que envolve a escassez de água tanto em termos de quantidade como de qualidade.
26
mentos do Programa Minha Casa Minha Vida se destina à população de baixa renda, consi-
derando ter sido o mesmo motivado pela opção do Governo Federal de oferecer apoio ao setor
imobiliário em face da crise econômica de 2008, a destinação de projetos àquela população é
bem inferior do que o necessário (considerando o enorme déficit habitacional desse segmento
social), estando o Programa prioritariamente destinado à população que possui acesso formal
ao mercado imobiliário.
Ademais, ainda com relação à moradia (digna e adequada), direito fundamental dessa
população de baixa renda, muitas vezes não se observa uma devida atenção aos direitos à mo-
bilidade, ao lazer, à infraestrutura e aos serviços públicos que, no âmbito do direito à cidade
sustentável, possuem essa população desfavorecida socioeconomicamente, mantendo-se sua si-
tuação (histórica) de segregação territorial; o que, muitas vezes, acaba por refletir no aumento
dos índices de violência urbana.
Em paralelo, no âmbito da aplicação do princípio da função social da propriedade, não
se observa, por parte das Gestões municipais, a implementação dos instrumentos urbanísticos,
postos na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores, voltados
a evitar a subutilização e ociosidade de terrenos e imóveis urbanos, como o parcelamento, edi-
ficação e utilização compulsórios; IPTU Progressivo no Tempo e desapropriação com títulos da
dívida pública; dentre outros instrumentos previstos naquele Estatuto e Planos.
Também com relação ao princípio da função social da propriedade, abrangendo tanto
a propriedade privada como a propriedade pública (o que exige a incorporação da nova con-
cepção de cidade e de propriedade posta no ordenamento jurídico brasileiro), não se verificam
maiores avanços no âmbito do Poder Judiciário; que, em geral, se mantém preso a uma visão
patrimonialista, individualista e utilitarista do direito de propriedade24.
Nesse contexto, lembre-se que o valor do solo urbano (das propriedades urbanas) é
determinado pela ação do Estado, a partir da infraestrutura construída, equipamentos comuni-
tários, serviços públicos, definição de índices urbanísticos e de possibilidades de uso do solo.
Na medida em que a cidade é construída e transformada, valores vão sendo agregados ao solo,
beneficiando os proprietários, sem que seus titulares tenham contribuído financeiramente para
tanto; o que, conforme dispõe o art.2º, inc.XI, do Estatuto da Cidade, exige do Estado a apli-
cação dos instrumentos postos na legislação para recuperar essas mais valias25. Contudo, essa
obrigação de recuperação dos investimentos públicos não tem merecido a atenção devida por
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
24 Inúmeras decisões judiciais em conflitos fundiários no Brasil retratam essa realidade. O conhecido “Massacre de Pinheirinhos”,
ocorrido em 2012 em São Paulo, se coloca como exemplo emblemático dessa realidade.
25 A esse respeito, ver Gaio (2015, p.12).
26 Como vimos, postas na Constituição Federal de 1988, regulamentadas pelo Estatuto da Cidade (através de seus princípios, diretrizes
e instrumentos) e incorporadas aos Planos Diretores municipais.
27
corrigir distorções do crescimento urbano e possibilitando que a cidade e a propriedade possam
cumprir sua função social, de modo com que sejam atendidos os direitos urbanos (que possuem
sua maior expressão no direito à cidade sustentável), e garantidos os canais de participação,
através dos quais a sociedade pode (e deve) influenciar diretamente na construção de políticas
públicas voltadas à efetivação desses direitos (o que coloca em prática a ideia do direito à cidade
como produção e fruição do espaço urbano), por outro, o que se observa é que grande parte
dessas normas continua aprisionada aos textos legais.
Constata-se, nesse contexto, que o planejamento urbano, em grande parte das cidades
brasileiras, é substituído ora pela imposição de atender interesses pontuais e específicos volta-
dos para a lógica mercadológica de utilização do espaço urbano27, ora por interesses pontuais
da gestão da ocasião, ora pela conjugação de ambos os interesses. Nesse cenário coloca-se o
processo de flexibilização da legislação efetivadora de direitos urbanos, a que denominanos
flexibilização in pejus28 , compreendida como o processo de fragilização de normas protetoras
de direitos em favor de interesses econômicos privados (geralmente imobiliários). A isso se
acresce a falta de capacidade institucional das Administrações municipais de regulamentar e
aplicar a legislação urbana29.
Em suma, pode-se dizer que, em que pese estar presente, no ordenamento jurídico
brasileiro, todo um arsenal legislativo necessário para que as cidades e propriedades (públicas
e privadas) possam cumprir sua função social, e que seja garantida a efetivação do direito à
cidade sustentável, evidencia-se, no âmbito dos Poderes Públicos um quadro de evidente desar-
ticulação, desatenção e despreparo no sentido de garantir a efetivação desse direito.
Partindo desse forte arsenal de normas jurídicas que amparam o direito à cidade e o
direito à cidade sustentável, que tem em sua essência o direito à produção e fruição coletiva do
espaço social, ciente da lógica mercadológica que, em grande medida, guia a atuação do Poder
Público sobre os espaços urbanos e visualizando o cenário atual das cidades brasileiras, onde
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
27 Tal quadro se coaduna, em âmbito global, com a mudança na orientação das políticas urbanas e planejamento para as cidades, ocorrida
a partir da década de 1990 do século XX e início do século XXI (intensificação do processo de globalização da economia), que levou a uma
retração de políticas voltadas para uma gestão pública, democrática e descentralizada, e a condução do planejamento e gestão urbana com
base em preceitos neoliberais, que conduzem o gerenciamento da cidade conforme os mecanismos de controle da empresa urbana. Essa
objetiva e sucinta visão é trazida por Façanha (2007, p. 199). Tratamos sobre a questão em nosso livro Meio Ambiente e Moradia: direitos
fundamentais e espaços especiais na cidade, Juruá. 2012.
28 Expressão latina que pode ser traduzida como “para pior” ou “em prejuízo de”.
29 Tais questões foram objeto de estudo de nosso tese de Doutorado intitulada “Espaços especiais em Natal (moradia e meio ambiente):
um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de proteção aos direitos fundamentais na cidade contemporânea”, defendida
no mês de dezembro de 2010 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU) na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN) e com realização de estágio de doutoramento na Universidade de Coimbra, com apoio da Comissão de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Em nossos livros “Meio Ambiente e Moradia: direitos fundamentais e espaços
especiais na cidade” e “Espaços Especiais Urbanos: desafios à efetivação dos direitos ao meio ambiente e à moradia” tratamos dessas
questões; sendo, no segundo deles, tratado do caso específico da cidade de Natal.
28
fica evidente que “distribuição de renda não resolve a injustiça urbana”30, aqui nos propomos
a contribuir, lançando algumas ideias voltadas à construção de caminhos para enfrentamento
do descompasso pontuado.
Diante da inevitável percepção de que a questão urbana e a participação popular na
gestão das cidades não se incorporaram aos debates da classe política e da sociedade em geral,
é imprescindível pontuar, em um primeiro momento, a urgente necessidade de enfrentar o anal-
fabetismo urbanístico (nos valendo de expressão comumente utilizada por Ermínia Maricato)
que assola a população brasileira (inclusive a classe política e jurídica). Impressiona que, após
quatorze anos da vigência do Estatuto da Cidade31 e diante de todo um debate internacional
sobre o direito à cidade, esse novo direito (e os direitos urbanos que o mesmo reúne), não tenha
sido assimilado pela sociedade em geral, gestores, legisladores e operadores do Direito.
Tal constatação se revela, por exemplo, ao se observar a falta de discussão sobre a
questão urbana no debate político eleitoral; tomando-se como exemplo as eleições ocorridas
no ano de 2014, especialmente para o cargo de Presidente da República; e, mais recentemente,
as grandes manifestações de rua ocorridas em todo o país em 2013 e 2015. Por outro lado, não
se pode omitir alguns exemplos opostos, onde, ciente de seu direito à produção e fruição dos
espaços urbanos, comunidades assumiram um papel protagonista em face de empreendimen-
tos e iniciativas públicas consideradas ilegais e ilegítimas, como no movimento Ocupe Estelita
(Recife)32 e nas ações promovidas pelos Comitês Populares nas cidades-sedes da COPA DO
MUNDO DA FIFA 2014 realizada no Brasil33.
Nesse caminho, se coloca a ideia da construção de um Urbanismo Popular; tema que,
perpassando as áreas de conhecimento inter-relacionadas com a cidade e o urbano, tenha como
essência a facilitação da compreensão das questões urbanas (e normas correlatas) por parte da
população em geral. É preciso que as pessoas tenham a clara compreensão quanto à relação
dos problemas que enfrentam em sua vida cotidiana na cidade com a legislação existente, sua
alteração e sua implementação (ou a omissão do Poder Público nessa tarefa). Por exemplo, é
essencial que se compreenda que o aumento do coeficiente de construção (o “quanto” se pode
construir) em determinada área da cidade, pode significar problemas de engarrafamento no
30 MARICATO, Ermínia. Cidades no Brasil: Sair da perplexidade e passar a ação! Aula inaugural da Pós Graduação Arquitetura e Ur-
banismo na UFSC-201. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GPcrGAX_Dj4
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
31 E todo o arsenal de princípios, regras e instrumentos que o mesmo comporta, na direção de enfrentar o quadro de insustentabilidade
urbana posto nas cidades brasileiras.
32 Movimento popular organizado em face do Projeto Novo Recife, empreendimento imobiliário (que prevê a construção de 12 edifícios
com até 40 andares) do Consórcio Novo Recife (formado pelas construtoras Moura Dubeux, Queiroz Galvão, G.L. Empreendimentos e
Ara Empreendimentos) em uma área de 10 hectares (o Cais José Estelita, na bacia do Pina, no centro da cidade). O vídeo, “Recife, cidade
roubada”, elaborado pelo Movimento Ocupe Estelita, apresenta bem o caso.
33 Em razão de fatos ocorridos nas cidades-sede para viabilizar as obras e ações desse megaevento esportivo (como remoções de famílias
para realização de obras; repressão a ambulantes, trabalhadores informais e população de rua; endividamento público; violação de direitos
de crianças e adolescentes; falta de transparência e acesso à informação; dentre outros), a partir de 2010, foram formados Comitês Populares
em cada cidade-sede, integrantes da Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (ANCOP), que passaram a realizar ações de en-
frentamento a violações de direitos humanos. Informações sobre a matéria podem ser encontradas em http://www.portalpopulardacopa.org.
br/index.php?option=com_content&view=article&id=382&Itemid=288. Registra-se que, em Natal, as ações do Comitê Popular, obtiveram
importantes resultados, onde destaca-se a modificação de projeto viário que previa a desapropriação e remoção de um grande número de
famílias (denominado Corredor Estrutural Oeste) e a não realização, também de projeto viário, com fortes impactos ambientais, econômi-
cos e sociais (popularmente conhecido como Projeto da Roberto Freire).
29
trânsito, de extravazamento de esgotos, de falta de água ou de energia se a área não tiver a in-
fraestrutura necessária para comportar essa sobrecarga. Que existem meios legais para obrigar
o proprietário de terrenos vazios (que podem trazer problemas à comunidade vizinha) a dar o
devido uso à área, e que a omissão do mesmo poderá levar à desapropriação do imóvel e sua
utilização em prol da projetos públicos voltados à comunidade. Ou, ainda, que a realização de
alguns projetos públicos ou privados, sem a realização de estudos legalmente obrigatórios (de
impacto ambiental ou de impacto de vizinhança, por exemplo), podem causar danos ambientais
e sociais irreversíveis. Nesse contexto, a discussão (em linguagem acessível, clara e simples)
dos orçamentos e prioridades de investimentos públicos na efetivação dos direitos urbanos se
colocam como aspectos centrais.
Indo além da participação da sociedade nos órgãos de controle social e nos orçamentos
participativos (em geral, em ambos os casos, fragilizada por questões de legitimidade), mas sem
menosprezar sua importância, o mecanismo de criação de assessorias técnicas voltadas à “po-
pularização do conhecimento sobre as questões e direitos urbanos” (especialmente, por parte
da Arquitetura e Urbanismo e do Direito), no âmbito das instituições de ensino e dos Poderes
Públicos, se colocam como importantes iniciativas; sem descurar do papel das organizações e
dos movimentos sociais na popularização desse mesmo debate34.
Nessa análise se suscita a compreensão da função social das profissões; que, notada-
mente no âmbito das instituições públicas de ensino, deveria ser posta como princípio a guiar,
especialmente, as atividades e projetos de extensão35.
No âmbito do Poder Executivo, é imperioso que seja dada a devida atenção e impor-
tância a um planejamento urbano permanente e de longo prazo (como Política de Estado e não,
de Governo), com a implementação de uma estrutura de gestão que possibilite a efetivação das
normas (regras e princípios) e instrumentos contidos nos Planos Diretores e outras leis de uso
e ocupação do solo. Nesse sentido, a Política Urbana, que deve ser executada pelos municípios
segundo comando constitucional, tem que ser capaz de enfrentar as urgentes questões urbanas
(visando, em sua essência, reduzir os níveis de injustiça social no meio urbano); não ficando sob
o âmbito da discricionariedade da Gestão local, cujos objetivos de Governo se alteram a cada
quatro anos.
É preciso que a Gestão Pública tenha a capacidade e determinação de implementar
os instrumentos urbanísticos, postos na Constituição Federal de 1988, no Estatuto da Cidade
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
e nos Planos Diretores, voltados a fazer com que as propriedades cumpram sua função social,
como determinado pela Constituição Federal de 1988. Diante de um grande número de imóveis
urbanos não utilizados ou subutilizados, por exemplo, é cogente e urgente que as Administra-
ções municipais deem efetividade aos instrumentos do parcelamento, edificação e utilização
34 Como exemplo dessa contribuição social citamos a produção do documento intitulado Carta de Natal, a partir do Seminário
“Desenvolvimento Local e Direito à Cidade”, organizado, em 2015, pelo Centro Pastoral de Nossa Senhora da Conceição (Mãe Luiza),
movimentos sociais organizados da cidade, moradores e entidades de bairros comprometidos com as lutas sociais coletivas.
35 Essa visão já é encontrada no Programa Motyrum de Educação Popular em Direitos Humanos – Núcleo Urbano, Projeto de Extensão
realizado no âmbito da UFRN.
30
compulsórios; IPTU Progressivo no Tempo e desapropriação sanção.
Por outro lado, considerando os investimentos públicos que ocorrem em determinadas
áreas da cidade e valorizam os imóveis ali situados, é obrigatória (nos termos postos no art. 2º,
incisos IX e XI, do Estatuto da Cidade) a recuperação das mais valias urbanas a fim de benefi-
ciar outras áreas da cidade ainda sem infraestrutura e àquelas voltadas a garantir moradia digna
à população de baixa renda. Para tanto, o Estatuto da Cidade traz os instrumentos da outorga
onerosa do direito de construir e da alteração de uso (quando se transforma uma área rural em
urbana, por exemplo) e resgata a importância do instituto tributário da contribuição de melho-
ria; cuja implementação é pífia na esmagadora maioria das cidades brasileiras. A isso se acresce
o fato de que, muitas vezes, os valores obtidos da aplicação do instrumento da outorga onerosa
do direito de construir, por exemplo, não são direcionados aos Fundos de Urbanização, instru-
mentos financeiros voltados a gerir as mais valias urbanas em prol de projetos que beneficiem
áreas mais carentes das cidades (do ponto de vista social e de infraestrutura urbana). Diante
dessa realidade, cabe a população provocar a devida atuação dos Poderes Públicos.
Nesse cenário, destaca-se que o direito à cidade sustentável pressupõe o direito ao pla-
nejamento urbano36, que se constitui obrigação/dever inarredável do gestor público e que, por-
tanto, deve ser objeto de um amplo controle social. Nesse sentido, os segmentos da sociedade
devem buscar os espaços de participação existentes (órgãos colegiados de política urbana, que
devem estar em funcionamento e constituídos legal e legitimamente; a realização de audiências
ou consultas públicas e conferências; tudo conforme prevê o art.43 do Estatuto da Cidade),
de modo a contribuir diretamente tanto na construção coletiva das Política Urbana e políti-
cas setoriais, como na sua implementação e acompanhamento; o que vem efetivar o princípio
democrático e da participação (gestão democrática da cidade)37. Por outro lado, se impõe ao
Poder Público o dever correlato de consideração das manifestações e proposições populares38,
de modo com que a participação da sociedade no planejamento e gestão urbana não seja consi-
derada apenas uma formalidade, mas que, através de uma efetiva participação, possa a mesma
exercer o seu direito à produção dos espaços sociais.
Um outro aspecto que merece enorme atenção nesse debate (pela total correlação com
a matéria em pauta) é a questão do financiamento privado das campanhas políticas; vez que,
como é de conhecimento público, muitos legisladores e agentes políticos (do Poder Executivo),
se elegem com grande apoio financeiro de empresas (geralmente empreiteiras de obras públicas,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
empresas de lixo e de transportes); que, após a eleição daqueles que apoiaram, buscam recupe-
rar o “investimento” realizado.
Ainda com relação à eleição de membros do Legislativo e do Executivo, é essencial
que seus aspirantes tenham, perante a sociedade, um claro e objetivo posicionamento sobre as
36 Que alberga o direito fundamental à boa administração (FREITAS, 2007) e o direito à continuidade das políticas pública
(FERNANDES e DOLABELA, 2009).
37 Ver DUARTE, 2012, p.179-182.
38 Idem
31
questões urbanas e as normas e direitos relacionados; o que deverá se servir a uma posterior
cobrança por parte dos eleitores (alfabetizados urbanisticamente); titulares do direito à cidade
sustentável e aos direitos urbanos nele contidos.
No âmbito do Judiciário e da formação dos profissionais do Direito, que irão aplicar
as normas jurídicas que amparam o direito à cidade sustentável, urge uma específica forma-
ção. Sendo o Direito Urbanístico, um recente ramo jurídico, que não se constitui disciplina
obrigatória nos cursos de Direito, é urgente e necessário, por parte dos operadores jurídicos, o
conhecimento das regras, princípios e instrumentos voltados a garantir que a propriedade e a
cidade cumpra sua função social, e que seja garantido a todos, incluindo as presentes e futuras
gerações (como expressamente prescreve o Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º, inc.I), o direito
a cidades sustentáveis.
Ciente de que longo é o caminho a ser percorrido e grandes são os obstáculos a serem
enfrentados, entendemos que o mérito de todos aqueles que saíram do analfabetismo urbanís-
tico é ganhar novos parceiros na busca pelo direito à produção e fruição dos espaços urbanos
de modo a possibilitar que a sociedade, através de seus diversos grupos sociais, exercem seu
legítimo poder sobre a formulação dos processos coletivos de urbanização.
REFERÊNCIAS
DUARTE, Marise Costa de Souza. Espaços especiais urbanos: desafios à efetivação dos
direitos ao meio ambiente e moradia. Letra Capital: Rio de Janeiro, 2011.
questão. In: LIMA, Antônia Jesuíta de. (org). Cidades brasileiras – atores, processos e
gestão pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p.199-212.
32
GAIO, Daniel. A interpretação do direito de propriedade em face da proteção
constituconal do meio ambiente urbano. Rio de Janeiro. Renovar, 2015.
HARVEY, David. A Justiça Social e a Cidade. Prefácio e Trad. de Armando Corrêa da Silva.
São Paulo: Hucitec, 1980.
_____. Espaços de Esperança. Trad. de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves, São
Paulo: Edições Loyola, 2004.
_____. Conferência proferida no Seminário “Lutas pela reforma urbana: o direito à cidade
como alternativa ao neoliberalismo”. Fórum Social Mundial, 2009.
______ Reforma Urbana: desafios para o planejamento como práxis transformadora. In:
COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (Orgs). Planejamento Urbano no
Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. p.136-155.
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à
gestão urbanos. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
33
FACETAS DO DIREITO À CIDADE
Para o direito à cidade ser assegurado, é necessário um esforço coletivo. Ao Poder Pú-
blico cabe à adoção de medidas voltadas a efetivar a função social da cidade e da propriedade,
assim como a promoção de políticas urbanas qualitativas de mobilidade, saneamento básico,
segurança, estrutura educacional, centros de saúde, cultura, lazer, e demais direitos.
* Discente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cursando o 7º período. Editora-geral da Revista
FIDES. Estagiária do Ministério Público Estadual.
** Discente do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 6º período. Editora-geral da Revista FIDES.
Estagiária do Ministério Público Estadual.
34
Em contrapartida, à população cabe a busca pela efetivação dos direitos urbanos e
atenção às normas de Política Urbana e Ambiental, na medida em que o território urbano deve
ser utilizado de forma justa e democrática e o meio ambiente deve ser utilizado de forma sus-
tentável e consciente em benesse da própria coletividade. Essa postura pode ser atendida com
a ocupação regular do solo, a devida destinação do lixo produzido, consumo equilibrado de
energia, a não contaminação dos recursos hídricos, bem como a contenção de desperdícios,
entre outras condutas.
Observe-se, com efeito, que o Direito Urbanístico, através do acesso à cidade, traz à
tona a concretização dos preceitos constitucionais já consolidados no texto normativo. Cabe ao
Poder Público o papel protagonista no desenvolvimento urbano e o dever de garantir os direitos
que se efetivam no território da cidade, a fim de que todos possam viver dignamente, com segu-
rança e mínimas condições de conforto.
Assim sendo, imprescindível se faz a consagração das diretrizes asseguradas pela
Constituição Federal de 1988 relativas à segurança, educação, assistência médica, mobilidade
urbana, acesso a centros culturais e de lazer, além de centros de velório, creches para crianças,
casas de idosos, entre outros direitos. Saliente-se, enfaticamente, que essas são garantias que
apenas embasam as condições mais simplórias de vida - que se revelam em legítimos direitos
sociais - não constituindo, nenhuma das áreas apontadas, em supérfluos.
No entanto, destaca-se que, apesar de serem direitos básicos e conferidos pela norma
de maior importância no sistema jurídico brasileiro, percebe-se que as referidas garantias não
são fornecidas como deveriam. Tal afirmação pode ser constatada pela ausência de saneamento
básico em grandes partes da cidade, pela precariedade no transporte público, bem como pelos
problemas de abastecimento de água. Sendo assim, é de fundamental importância a discussão e
ampliação de conhecimento sobre tema para que a população obtenha maior compreensão das
questões urbanas e, com isso, ganhe mais consciência dos seus direitos e deveres.
Portanto, toda a sociedade deve sempre buscar realizar debates e contribuir diretamen-
te na construção das políticas públicas, bem como acompanhar o seu processo de efetivação. O
Poder Público, por sua vez, se encontra obrigado a possibilitar a participação da sociedade, com
o intuito de garantir a aplicabilidade de suas propostas e, em conformidade com a lei, buscar a
concretização do direito à cidade para todos.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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“A CIDADE”
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Recebido em 16 abr. 2015
Aceito em 18 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
para os conflitos fundiários. Enquanto não ocorre a criação desses novos órgãos, a matéria é
tratada de forma difusa nas diferentes varas e câmaras.
Em muitas decisões, o fundamento ainda está baseado em uma concepção patrimo-
nialista de defesa da propriedade privada em prejuízo do direito à moradia, mesmo quando
* Advogado. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Ceará. Mestrando em Direito Urbanístico pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor universitário (graduação e pós-graduação). Membro fundador do Ins-
tituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS. Secretário Executivo do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico – IBDU
(gestão 2014/2015).
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demonstrado que a propriedade não atende às exigências de função social. Nesse cenário, o
presente artigo tem por objetivo aprofundar o debate acerca da efetivação dos direitos à cidade
e à moradia adequada nos casos de conflitos fundiários urbanos levados ao conhecimento do
Poder Judiciário.
milhões de pobres estão distribuídos nas cidades do mundo em condições indignas de vida. A
expansão urbana não beneficiou todos os habitantes de maneira igualitária. Isso faz com que
existam profundos contrastes entre condições extremamente diferentes, convivendo e entrando
em choque no interior da mesma cidade.
Estima-se que um terço dos habitantes das cidades está em favelas e assentamentos
informais. O número de pessoas morando nessas condições aumentou de 760 milhões, em 2000,
para 863 milhões, em 2012 (UNITED NATIONS, 2014). Portanto, o processo de urbanização
mundial tem como marcas profundas a precariedade e a informalidade da ocupação do solo.
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No caso brasileiro, seguindo a tendência latino-americana, o processo de industrializa-
ção e urbanização ocorre há mais de meio século, tendo motivado um intenso fluxo migratório
do campo para as cidades. Como consequência, o país experimenta uma concentração de 84%
(oitenta e quatro por cento) de sua população em áreas urbanas (IBGE, 2010).
O aumento da população urbana, entretanto, não teve uma resposta satisfatória em
relação à oferta de solo urbanizado, com adequadas condições de infraestrutura, transporte e
moradia digna. Assim, a ocupação desordenada do território passou a ser regra e a precarieda-
de das condições de moradia, uma realidade bastante presente na vida dos habitantes de baixa
renda. “Excluída do mercado e das políticas públicas, a maior parte da população brasileira ‘se
vira’ ocupando terras que, em geral, são inadequadas para ocupação, construindo ali suas pró-
prias casas, num processo lento, com parcos recursos” (MARICATO, 2009, p. 273-4).
O déficit habitacional no país, em 2012, era de 5,79 milhões de unidades, sendo 700 mil
só na região metropolitana de São Paulo (IBGE, 2012). Mesmo com o Programa Minha Casa,
Minha Vida, esses números não estão sofrendo uma redução significativa, o que revela que a
problemática da moradia no país não é uma simples questão de falta de casas. Existem compo-
nentes urbanísticos e fundiários definidores do déficit habitacional que não são afetados pelos
programas governamentais de construção de moradias.
De acordo com os dados do Censo 2010, o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE)
identificou 6.329 (seis mil, trezentos e vinte e nove) aglomerados subnormais em todo o país,
nos quais estão localizados mais de três milhões de domicílios1. Uma maior parcela desses aglo-
merados está localizada na Região Sudeste do país – 49,8% (quarenta e nove vírgula oito por
cento) dos domicílios nessa condição –, cujas cidades apresentam mais de 33% (trinta e três por
cento) de seu território ocupado por tais setores. Mas, nesse ponto, também as Regiões Norte e
Nordeste merecem destaque, com altos percentuais de áreas de ocupação informal, 27,5% (vinte
e sete e meio por cento) e 26,7% (vinte e seis vírgula sete por cento), respectivamente (IBGE,
2010). Para ROLNIK, (2000, p.2):
1 Conforme a metodologia utilizada pelo IBGE, aglomerado subnormal “é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades
habitacionais (barracos, casas, etc.) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período
recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e/ou densa. A identificação
dos aglomerados subnormais é feita com base nos seguintes critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de
propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez
anos ou menos); e b) Possuir pelo menos uma das seguintes características: urbanização fora dos padrões vigentes - refletido por vias de
circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos;
ou precariedade de serviços públicos essenciais, tais quais energia elétrica, coleta de lixo e redes de água e esgoto” (IBGE, 2013, p. 18).
39
O urbanismo de risco, citado por Raquel Rolnik no trecho acima, é aquele que impõe
uma condição de precariedade aos moradores de determinadas áreas, mas também à toda a
cidade. Aos primeiros, em relação às condições inadequadas de ocupação do território, à in-
segurança da posse, ao desconforto da casa, à ausência de espaços públicos para a prática de
atividades de lazer, aos longos e demorados deslocamentos. E, em relação à cidade, esse tipo de
urbanismo produz os elevados índices de violência, congestionamento, valorização excessiva da
terra e desigualdades (ROLNIK, 2000).
Do ponto de vista fundiário, pode-se concluir que a maior parcela da população brasi-
leira construiu sua moradia em imóveis que não estão registrados como sendo de sua proprie-
dade. Em outras palavras, a posse tem sido um fator muito mais determinante do que a proprie-
dade privada no estabelecimento da habitação.
Contudo, do ponto de vista jurídico, a propriedade privada ainda é o grande balizador
das relações, orientando a atuação da Administração Pública e do Poder Judiciário. Assim, per-
cebe-se um descompasso entre a realidade urbana brasileira e os institutos jurídicos manejados
para solução dos conflitos.
Em pesquisa realizada pelo Instituto Polis em parceria com o Instituto Brasileiro de
Direito Urbanístico (IBDU) e o Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES) no âmbito
do projeto “Diálogos sobre a Justiça”, da Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da
Justiça, foram analisados casos de conflitos fundiários em São Paulo, Porto Alegre e Fortaleza.
Os pesquisadores identificaram que todos os municípios possuíam em comum uma latente e
constante atmosfera de conflito causada pela segregação espacial ou ambiental. Conforme o
entendimento de Nelson Saule Junior e Daniela Libório Di Sarno (2013, p. 25) sobre o tema:
Esse olhar ampliado sobre os conflitos fundiários põe a cidade em perspectiva no seu
todo, como em uma escala cartográfica menor. Por isso, não se refere a um caso específico, mas
sim a um contexto geral de tensão social que reflete a disputa pela cidade.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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Assim, a base das desigualdades sócio-territoriais urbanas está na questão fundiária.
É ela que determina, por exemplo, a oferta de moradia para os diversos segmentos. O preço da
terra funciona, dessa maneira, como um condicionante muito concreto na definição do lugar dos
pobres e dos ricos. E, como a valorização imobiliária tem relação direta com a oferta de servi-
ços e infraestruturas, restam para a população mais carente os espaços que não são apropriados
pelos demais grupos, em geral, áreas com restrições ambientais e urbanização precária.
É esse o contexto amplo que impulsiona e motiva os casos de disputa pela terra. Cer-
tamente, ele não explica todas as especificidades de cada situação, o que é compreensível dada
a escala em que as leituras são realizadas. Mas, esse olhar tem relevância na medida em que
permite uma visualização do conjunto, trazendo elementos e atores que não aparecem quando
o foco é o conflito concreto.
Ainda que existam milhares de casos envolvendo conflitos fundiários urbanos nos
tribunais brasileiros, não há uma disposição legal capaz de caracterizá-los. A matéria é tratada
apenas pela Resolução nº 87/2009 do Conselho Nacional das Cidades, que recomenda ao Minis-
tério das Cidades a instituição de uma Política Nacional de Prevenção e Mediação de Conflitos
Fundiários Urbanos.
Segundo seu art. 3º, essa Resolução define conflito fundiário urbano como sendo
A esse conceito corresponde aquilo que a pesquisa sobre Soluções Alternativas para
Conflitos Fundiários Urbanos nominou de conflito fundiário em sentido estrito (SAULE JU-
NIOR; DI SARNO, 2013). Tratam-se de situações concretas em que os sujeitos podem ser indi-
vidualizados e identificados. Existe um bem em disputa por partes nomináveis em um determi-
nado período. Em outras palavras, os elementos constitutivos do conflito não são abstratos nem
hipotéticos, mas sim pessoas ou grupos reais que litigam por um espaço determinado.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Para a configuração de um conflito como fundiário urbano é preciso, pois, que exista
uma disputa pela posse ou propriedade de um imóvel urbano. Essa relação se estabelece entre
partes nomináveis, indivíduos ou grupos, devendo ser uma questão coletiva. Portanto, uma con-
trovérsia envolvendo apenas um indivíduo em cada polo da relação caracteriza uma demanda
em torno de direitos na esfera privada, o que não permite inferir que se trata de um conflito
fundiário.
Ainda, a Resolução nº 87/2009 propõe um nítido recorte em relação aos sujeitos envol-
vidos no conflito, estabelecendo que, em um dos polos, estejam famílias de baixa renda ou gru-
41
pos sociais vulneráveis. Nesse último caso, fiam contemplados os segmentos discriminados por
questão de gênero, raça, etnia, origem, orientação sexual ou outros fatores de vulnerabilidade.
Por seu turno, a outra parte, aquela que disputa a terra em oposição às famílias de bai-
xa renda ou grupos vulneráveis, tanto pode ser constituída por pessoas físicas, pessoas jurídicas
de direito privado ou pessoas jurídicas de direito público. Dessa forma, os conflitos tanto podem
emergir de uma intervenção do Poder Público que resulte na necessidade de deslocamento com-
pulsório de famílias, quanto de relações privadas. Mas, em todos os casos, existe um contexto
urbanístico mais amplo que coloca a questão sob o ângulo da coletividade.
São diversas as vias processuais utilizadas para que o conflito fundiário urbano che-
gue ao Poder Judiciário. Por vezes, a controvérsia se coloca no âmbito de ações possessórias
ou petitórias, mas não é incomum que estejam revestidas sob a forma de ações civis públicas,
desapropriações judiciais, ações demarcatórias, usucapião ou concessão de uso especial para
fins de moradia. Em razão dessa variação de meios processuais, não há uniformidade de regras
de competências entre os órgãos judiciais, de forma que a matéria é processada e julgada por
diferentes varas e câmaras – direito privado, fazenda pública, meio ambiente.
Considerando a multiplicação de remoções forçadas, que não solucionam, mas acirram
a violência urbana, urge a implementação de medidas pelo Poder Judiciário para melhor anali-
sar, bem como prevenir e mediar tais conflitos.
proposta pelo Direito Urbanístico. Não se trata de inviabilizar a aplicação da legislação vigente,
mas de compatibilizar a interpretação jurídica com os marcos constitucionais, incluindo ele-
mentos que estão sendo sistematicamente ignorados pelos tomadores de decisão, tais como o
direito à moradia adequada e as exigências de função social da propriedade.
42
versal dos Direitos Humanos de 1948, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
de 1966, do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 e da Con-
venção Americana de Direitos Humanos de 1969, dentre outros. Entretanto, o direito à cidade
só emerge explicitamente em um documento internacional na Carta Europeia de Salvaguarda
dos Direitos Humanos na Cidade (Saint-Denis, 2000), que concebe o espaço urbano como “um
espaço coletivo que pertence a todos os seus habitantes que têm direito a encontrar as condições
pra sua realização política, social e ecológica, assumindo deveres de solidariedade”.
Já pela via dos movimentos populares, organizações não governamentais, associações
de profissionais, fóruns e redes da sociedade civil, merece destaque a Carta Mundial pelo Direi-
to à Cidade, cuja redação foi consolidada no V Fórum Social Mundial em 2005.
Nas suas disposições gerais, a Carta Mundial pelo Direito à Cidade traz o delinea-
mento mais preciso do que se entende por esse direito, definindo-o como sendo “o usufruto
equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia e justiça social”.
Trata-se de um direito coletivo que viabiliza o pleno exercício do direito à livre autodetermina-
ção e a um padrão de vida adequado. Assim, seus princípios norteadores são: o exercício pleno
da cidadania e a gestão democrática da cidade; as funções sociais da cidade e da propriedade; o
direito à igualdade e à não discriminação; a proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis;
o compromisso social do setor privado; e o impulso à economia solidária e a políticas imposi-
tivas e progressivas.
Ao tratar do conteúdo desse direito, Letícia Osório (2006, p. 195) afirma que:
[...] Esse direito busca reverter a predominância dos valores econômicos sobre as
funções sociais da cidade. O direito à cidade é interdependente a todos os direitos
humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui os
direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais. Inclui também
o direito à liberdade de reunião e organização; o direito ao exercício da cidadania e
da participação no planejamento, produção e gestão da cidade; a produção social do
habitat; o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural; o respeito
aos imigrantes e a garantia da preservação e herança histórica e cultural. O direito
à cidade inclui também o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio,
ao desfrute e preservação dos recursos naturais e à participação no planejamento e
gestão urbanos.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
43
em prol do bem coletivo e sem qualquer forma de discriminação (art. 3º). Assim, é impossível
conceber a realização de uma vida urbana digna sem a efetivação dos direitos fundamentais
consagrados na Constituição, como as liberdades individuais, a moradia adequada, a saúde, o
lazer, o acesso à renda e ao trabalho e o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Como reflexo das normas constitucionais, o direito à cidade encontra previsão especí-
fica na Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), cujo artigo 2º estabelece como diretriz da política
urbana a “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana,
à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços pú-
blicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Com isso, o Brasil confere
juridicidade e exigibilidade a esse direito, obrigando a sua efetivação como diretriz primeira da
política urbana. Na concepção de Nelson Saule Júnior (2007, p.50):
44
direito subjetivo e que o Direito Privado moderno se desenvolveu sob uma ótica puramente
individualista. Compreendia o direito subjetivo como “o poder que corresponde a uma vontade
de se impor como tal a uma ou várias vontades, quando quiser uma coisa que não está proibida
pela lei” (DUGUIT, 1920, p. 26). No caso da propriedade privada, essa noção confere ao indi-
víduo poderes para se opor aos demais e ao Estado, permitindo que utilize seu patrimônio em
benefício próprio da forma que lhe aprouver. Nesse sentido, o Código Civil Napoleônico definia
a propriedade em seu art. 544 como “o direito de gozar de uma coisa da maneira mais absoluta”.
A leitura feita por Duguit é corroborada por Paolo Grossi (2006), que aponta como
uma das características marcantes da propriedade moderna a sua abstração. Para o autor, toda a
lógica do pensamento liberal dos séculos XVIII e XIX para justificar a livre iniciativa estava as-
sentada na possibilidade de qualquer cidadão tornar-se proprietário, de forma que, aos poucos,
já não havia grande diferença entre o “meu” e o “mim”. O conteúdo passou a ser um acidente,
importando menos do que a relação em si. Estando desvinculada dos bens, a propriedade pas-
sou a um plano de valor fundamental, direito inviolável e sagrado conforme estabelecido pela
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 42) destaca outro aspecto distintivo da proprie-
dade moderna, qual seja a exclusividade ou, como prefere chamar, o monopólio do uso da terra.
A propriedade é vista pela tradição moderna como o “puro direito subjetivo, ou seja,
um interesse juridicamente protegido, que confere uma gama de poderes ao seu titular e corre-
latos deveres, a serem prestados ou observados por terceiros não-proprietários” (LOUREIRO,
2003, p. 41). Nesse sentido, é um direito oponível a toda a sociedade - oponibilidade erga omnes
– pois impede que os demais indivíduos interfiram nos direitos do proprietário. Ao exercício
do direito de propriedade, portanto, não caberiam limites ou, quando houvesse, seriam muito
excepcionais.
Tal concepção de propriedade, como um direito individual que confere amplos e ple-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
nos poderes a seus titulares, estabelece limites para o Estado no exercício da função de plane-
jamento do território. Como lembra Peter Marcuse (2008, P. 13), “[a] proteção dos valores da
propriedade historicamente tem sido uma das forças propulsoras do planejamento urbano: esta-
va na raiz da legislação de zoneamento (zoning) nos EUA, e é sempre uma questão primordial
nas audiências que tratam dos planos de uso do solo”.
Para Duguit (1920), contudo, essa noção de direito subjetivo individual não condizia
com a realidade social, devendo ser superada. Defendia que o direito de usar determinado bem,
na verdade, não decorre do poder, mas sim do dever de fazê-lo. Consequentemente, o abandono
45
ou o uso contrário ao interesse geral não poderiam ser admitidos, devendo o Estado punir o
proprietário omisso e obrigá-lo a dar uma destinação adequada ao bem. Trata-se não apenas
de estabelecer imposições negativas ao exercício do direito, evitando os abusos e excessos pre-
judiciais a terceiros, mas de verdadeiras imposições positivas, que inibem a não utilização e a
especulação imobiliária. Para Duguit (1920, p. 184), com efeito:
Esse pensamento coincide com o desgaste pelo qual passou o liberalismo no início
do século XX e com a ascensão do Estado Social de Direito, cujas Constituições consagra-
vam direitos sociais e coletivos. A propriedade privada, diante desse contexto, não ficou ilesa
às transformações da época. A Constituição Alemã de 1919, por exemplo, estabeleceu que “a
propriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no
interesse social” (art. 153, §2º).
No Direito brasileiro, os ideais do liberalismo levaram à edição da Lei nº 601, de 1850,
conhecida como Lei de Terras. A norma acabou com o sistema de sesmarias, legitimando os
casos de ocupação existentes com títulos de propriedade. Aquelas terras não ocupadas ou cuja
ocupação não fora legitimamente comprovada passaram ao domínio do Estado, sendo consi-
deradas devolutas. Essa propriedade era inviolável, comportando apenas uma possibilidade de
perda, nos casos de desapropriação, quando garantida a indenização.
Apenas com a Constituição de 1934 é que a propriedade passa a se submeter ao inte-
resse social e coletivo (art. 113). Da mesma forma, a Constituição de 1946 estabeleceu que o uso
da propriedade deveria ser condicionado ao bem-estar social (art. 147). E a expressão “função
social da propriedade” foi utilizada pela primeira vez na Constituição de 1967 (art. 157, §1º).
Em todos os casos, porém, o contexto social e os regimes políticos não permitiram a ruptura do
paradigma da propriedade como direito individual pleno e absoluto.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Foi apenas com a Constituição de 1988 que o princípio da função social da propriedade
ganhou o relevo que apresenta atualmente. Uma primeira inovação foi o fato de a função social
da propriedade ter sido tratada no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais (art. 5º, XXIII),
enquanto as constituições anteriores a previam apenas no capítulo referente à ordem econômica.
Atualmente, ela é também um dos princípios orientadores da ordem econômica (art. 170, III), da
política urbana (art. 182) e da política agrícola e fundiária (arts. 184 e 186).
Embora tenha mantido a concepção de propriedade como um direito individual, a
Constituição de 1988 não a considera mais como sendo absoluto. Nesse sentido, ainda que não
tenha substituído totalmente o paradigma do direito subjetivo individual pelo da função social,
46
como propunha Duguit, a Constituição inaugurou novos paradigmas conformadores da pro-
priedade, impondo uma conciliação entre o interesse individual e o interesse da coletividade.
No tocante à propriedade urbana, a Constituição, ao contrário do que fez ao disciplinar
a propriedade rural, não estabelece parâmetros explícitos que caracterizem o cumprimento de
sua função social. Delegou aos municípios, por meio de seus planos diretores o papel de estabe-
lecer as condições que determinam a função social em cada caso.
É certo que, como princípio jurídico, a função social da propriedade apresenta uma
tessitura aberta com grau de abstração e generalidade maior do que as regras, inexistindo uma
fórmula rígida sobre seu conteúdo. Isso não significa que seja um conceito absolutamente vago
e impreciso, sujeito a qualquer tipo de interpretação.
Por isso, não se pode afirmar, que as leis municipais gozam de liberdade absoluta no
que diz respeito ao estabelecimento do conteúdo jurídico da função social da propriedade. É
necessário considerar as diretrizes da política urbana, em especial o adequado aproveitamento
do solo, o atendimento às demandas sociais por moradia digna, a proteção ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, o combate à especulação imobiliária e a correção das distorções
do crescimento urbano.
Como salienta Nelson Saule Junior (2007, p. 42), “como meio de atender a função so-
cial da propriedade na formulação e implementação das políticas urbanas, deve prevalecer o in-
teresse social e cultural coletivo sobre o direito individual de propriedade, e sobre os interesses
especulativos”. Esse é o fundamento orientador da Lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade -,
que regulamenta o Capítulo da Política Urbana da Constituição de 1988, estabelecendo “normas
de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem
coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art.
1º, § único).
Contudo, ainda que haja uma consolidada construção teórica sobre a função social da
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
propriedade, ela ainda não tem sido um fator determinante nas decisões judiciais relativas aos
conflitos fundiários urbanos.
Como bem assevera Marcos Alcino de Azevedo Torres (2010, p. 345), “não haverá
choque entre propriedade e posse, se a primeira estiver cumprindo sua função social, uma vez
que é pela posse que se cumpre tal função. Tal hipótese seria de posse-conteúdo do direito de
propriedade regularmente exercido”. Mas, quando o titular da propriedade se mantém inerte,
mantendo o imóvel apenas como um investimento, e terceiros, sem o seu consentimento, bus-
cam efetivar a função social por meio da posse do imóvel, surgem os confrontos.
47
A posse enquanto fenômeno social merece proteção estatal, pois é ela que “permite
a proteção do ‘ser’ nas exigências mínimas da vida em sociedade, [sendo] instrumento essen-
cial de satisfação de necessidades humanas, seja ela exercida em razão da titularidade ou não”
(TORRES, 2010, p. 376). E, no conflito entre os direitos de posse e de propriedade, deve pre-
valecer aquele que estiver cumprindo a sua função social, pois esta é a garantia de um sistema
equânime na sociedade com visão para a efetivação do direito social de moradia (ALFONSIN,
2004).
Portanto, a propriedade sem função social perde a proteção do sistema jurídico, e a
posse se destaca enquanto instrumento de erradicação de pobreza e das desigualdades sociais.
Desse modo, para justificar a prevalência da posse funcionalizada sobre a propriedade desfun-
cionalizada é necessário interpretar o direito civil à luz da Constituição (ROMEIRO; FROTA,
2015).
Um primeiro aspecto relevante em relação aos conflitos fundiários urbanos diz respei-
to à excepcionalidade de qualquer medida que determine o deslocamento forçado das famílias
envolvidas. A Lei 11.977/2009 reforçou a concepção já presente no Estatuto da Cidade de que
a regularização fundiária é um direito da população. E, como princípio orientador, referida lei
estabeleceu a “ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prio-
ridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitabilidade
e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental” (art. 48, I).
O “princípio da permanência” deverá sempre ser considerado pela Administração Pú-
blica e pelo Poder Judiciário nos casos de conflitos fundiários urbanos. Os deslocamentos in-
voluntários jamais poderão ser a regra. E, quando necessários, deverão observar os preceitos
da Política Urbana e assegurar a proteção dos direitos da população envolvida. Em hipótese
alguma, o ordenamento jurídico brasileiro tolera a prática das remoções forçadas e violentas.
Os deslocamentos e reassentamentos devem ser negociados democraticamente com a população
envolvida e oferecer respostas adequadas do ponto de vista urbanístico.
Contudo, se imprescindível o deslocamento das famílias de baixa renda envolvidas no
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
conflito fundiário, é fundamental que essa medida não acarrete violações de direitos humanos.
Portanto, devem ser instituídos parâmetros para monitoramento e avaliação das medidas judi-
ciais e/ou ações públicas que determinem o deslocamento dessa população.
Em primeiro lugar, há uma série de impactos sociais que deverão ser sopesados pelo
magistrado na análise de cada situação, devendo verificar a repercussão de uma eventual deci-
são de reintegração de posse ou similar. Nesse sentido, é importante considerar a extensão do
impacto em relação à quantidade de famílias afetadas. Certamente, conflitos envolvendo gran-
des coletividades possuem uma complexidade maior e demandam uma série de medidas para
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evitar que a remoção repercuta em novas ocupações precárias. Isso não significa que conflitos
fundiários com um pequeno número de famílias seja facilmente solucionado, mas apenas que
as repercussões da decisão terão outra magnitude, afetando a dinâmica da cidade de forma não
tão profunda.
Ainda em relação à população envolvida nos conflitos fundiários, é preciso assegurar
tratamento prioritário para crianças, adolescentes e idosos, conforme preconizado pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, respectivamente. Em muitas situações, o
deslocamento de famílias resulta em graves problemas em relação ao atendimento nos equi-
pamentos de saúde e de educação pública, provocando descontinuidade na prestação desses
serviços. Isso faz com que surjam violações reflexas na vida de crianças, adolescentes e idosos.
Outro aspecto quase nunca considerado nas decisões judiciais diz respeito ao acompa-
nhamento das famílias após a reintegração ou remoção. Em regra, os magistrados preocupam-se
em decidir o litígio imediato, deixando de lado os conflitos criados pela própria decisão judicial.
Ao determinar a desocupação de um imóvel, não se posicionam sobre o destino das famílias.
No caso de conflitos fundiários gerados por obras públicas, é preciso verificar se há
previsão de reassentamento e se as unidades habitacionais contemplam a diversidade das for-
mações familiares e as necessidades de grupos vulneráveis, como pessoas com deficiência.
Deve-se considerar também o grau de inserção urbana do novo local de moradia. Nes-
se ponto, a localização do empreendimento que receberá as famílias é um aspecto importante.
Grandes distâncias geram novos problemas em relação à mobilidade, acesso a serviços públicos
e disponibilidade de emprego, o que é também uma violação do direito à moradia adequada.
Outra questão relativa ao reassentamento diz respeito ao cronograma das obras, de
forma que haja uma coordenação entre o deslocamento das famílias e a solução definitiva. Isso
evita medidas paliativas e provisórias, como o aluguel social, que impõe uma situação de inse-
gurança e instabilidade para as famílias.
Do ponto de vista da adequação jurídica, é importante garantir que as famílias tenham
amplo acesso à justiça, o que implica em assessoria técnica gratuita e oportunidade de defesa
em todas as etapas das ações judiciais. Nesse aspecto, o deferimento de liminares sem a audição
das famílias ou grupos implicados não é a melhor alternativa, gerando mais problemas do que
soluções. Ademais, sob a ótima estritamente processual, uma medida liminar de reintegração
de posse ou remoção não atende à exigência de reversibilidade imposta pelo art. 273, §2º, do
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
2 O Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105, de 16 de março de 2015, mantém a exigência em seu art. 300, §3º.
49
exercida pelos ocupantes. Nesse caso, a regularização fundiária apresenta-se como solução mais
correta e adequada na sistemática da ordem jurídico-urbanística respaldada pela Constituição
de 1988. Essa é também a orientação do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da
Organização das Nações Unidas, por meio do Comentário Geral nº 7, que trata da proteção da
moradia nos processos de remoções forçadas.
Por fim, uma medida importante é a constituição de instâncias e fóruns para negocia-
ção coletiva. Nesse sentido, ainda que o Município não componha o litígio formalmente, deverá
participar da sua solução, pois, como discutido acima, trata-se de uma tensão surgida pelo con-
texto de exclusão sócio-territorial.
As vias de negociação – mediação e conciliação – permitem um diálogo mais ajustado
à natureza dos conflitos fundiários, permitindo que se discutam todos os aspectos e repercus-
sões das medidas. Isso assegura que as soluções contemplem diferentes interesses que não
seriam sequer avaliados pelo magistrado em uma decisão monocrática.
REFERÊNCIAS
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Napoléon. 2. ed. Trad. Carlos G. Posada. Madrid: Francisco Beltran, 1920.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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Ricardo Marcelo Fonseca. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
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Demográfico 2010: aglomerados subnormais: informações territoriais. Rio de Janeiro: IBGE,
2013.
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Janeiro: FGV, 2008.
SAULE JUNIOR, Nelson. Direito Urbanístico: vias jurídicas das políticas urbanas. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007.
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função social. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juri, 2010.
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Nations, 2014. Disponível em: <http://esa.un.org/unpd/wup/Highlights/WUP2014-Highlights.
pdf.>
52
Recebido em 11 mar. 2015
Aceito em 12 mar. 2015
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
dade; a falta de previsão de áreas para o lazer; a incapacidade do Estado de planejar e de prever
políticas alternativas para a população carente; as diferenças abissais que separam as áreas do-
tadas de infraestrutura e as áreas periféricas,- que abrigam grande parte da população carente;
* Possui graduação em Bacharel Em Direito pela Universidade Federal do Pará (1991), Especialização em Direito Ambiental pela Univer-
sidade Federal do Pará (1993), Especialização em Educação Ambiental pela Universidade Federal do Pará (1996) e Doutorado em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco (2001) e Investigação Pós-Doutoral na Universidade Carlos III de Madri na Espanha, junto ao
Departamento de Direito Público Comparado e ao Instituto Pascual Madoz. Atualmente é Promotora de Justiça do Ministério Público do
Estado do Pará e Professora da Universidade da Amazônia e da Universidade Federal do Pará (Graduação e Pós-Graduação). Tem experiên-
cia na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Ambiental, Direito Urbanístico,
Direitos Humanos e Introdução à Ciência do Direito.
53
a pobreza, a criminalidade e a insegurança são temas recorrentes e ainda sem solução quando
se pensa a problemática urbana.
No entanto, ainda que passemos por uma crise conjuntural e complexa, fruto da glo-
balização econômica, de um modelo de desenvolvimento transnacional que tem por consequên-
cias sociais negativas o aumento das desigualdades, que se perfazem nos espaços urbanos sob
as formas de desigualdades econômica, sócio espacial, política e ambiental, o Direito continua
a ser importante instrumento para o combate às desigualdades, pois deve servir como “vetor”
para a implementação de políticas que venham a garantir o acesso à moradia digna, à circulação
digna, ao trabalho, aos serviços de infraestrutura essenciais à sadia qualidade de vida, o acesso
aos equipamentos públicos e aos espaços de lazer, à proteção ao meio ambiente, ao patrimônio
histórico-cultural, à biodiversidade, à sóciodiversidade.
Vale dizer que a promoção do bem-estar para os espaços urbanos pressupõe também
a promoção do bem-estar para os espaços rurais, pois não há como existir melhor qualidade de
vida sem um planejamento adequado e sem um ordenamento jurídico eficaz que possa abranger
as intrínsecas e recorrentes influências que existem entre o binômio rural e urbano.
Segundo Carvalho (1988, p. 36):
Para o eficaz enfrentamento dos desafios que são vivenciados nos espaços urbanos e
que possuem direta relação com os espaços rurais, é preciso de uma vez por todas abraçar os
valores que a nova ordem urbanística, forjada no texto constitucional de 1988, traz.
Apesar do texto constitucional tratar da necessidade de concretização da dignidade,
da igualdade, do desenvolvimento sustentável, da proteção ao meio ambiente, da utilização da
propriedade consoante as funções sociais da cidade, da necessidade da criação de espaços polí-
54
ticos participativos para a definição das prioridades e de políticas para as áreas urbanas e rurais,
nenhum desses valores expressos no texto constitucional e no conjunto normativo infraconstitu-
cional se tornará concreto nem garantirá a justiça social se os inúmeros problemas decorrentes
da ocupação e da organização do solo urbano não forem solucionados a partir de um coerente
planejamento que esteja concatenado com a nova ordem constitucional urbanística.
Significa dizer que a implementação do direito à cidade sustentável, a garantia do
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento, ao transporte, ao lazer, direitos expressos no
Estatuto da Cidade (artigo 2º, inciso II, Lei 10.257/2001), marcos direcionadores para o desen-
volvimento de políticas públicas, dependem de um eficaz planejamento.
Se o texto constitucional determina que as políticas públicas para os espaços urbanos
dependem do planejamento e que o plano diretor é instrumento básico para a política de de-
senvolvimento e de expansão urbana, os administradores municipais devem seguir o comando
constitucional e utilizar-se do plano diretor como principal instrumento para a realização dos
objetivos e das políticas públicas para os espaços urbanos.
O plano diretor é a “mola mestra” do processo de planejamento e desenvolvimento
urbano no âmbito municipal, mas sua existência e finalidade não estão desconectados da reali-
dade e dos interesses nacionais. Em verdade, a necessidade de que o plano diretor traga normas
impositivas, cogentes, para o uso da propriedade privada, com critérios e obrigações para o
cumprimento da função social da propriedade, tem direta relação com os interesses urbanísti-
cos nacionais, pois o plano diretor, por meio de suas metas, de seus princípios, deve expressar
as diretrizes e as normas que orientarão os programas e políticas no âmbito municipal.
As orientações contidas no plano diretor são direcionadas tanto ao âmbito público
quanto ao âmbito privado. As normas referentes aos âmbitos econômico, educacional, à saúde,
à assistência social, ao patrimônio cultural, à habitação, ao lazer, à infraestrutura, ao meio am-
biente, ao esporte, ao lazer, à mobilidade urbana, à acessibilidade, ao ordenamento territorial, à
criação e manutenção de áreas verdes, dentre outros temas, são verdadeiros compromissos. No
entendimento de Nelson Saule Júnior (1998. p. 38)
“O Município, através de Lei Orgânica, deve dispor sobre o Plano Diretor, definindo
as responsabilidades do Poder Executivo e Legislativo, em especial sobre o processo
legislativo: prazo para sua elaboração e aprovação, procedimento nas Comissões
permanentes, quórum para a deliberação, mecanismos de participação popular (por
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Saule Júnior (1997, p. 230) argumenta que o plano diretor é ferramenta para a efeti-
55
vação da cidadania e da dignidade humana, que são verdadeiros fundamentos do Estado De-
mocrático de Direito. Nesse sentido, a concretização da dignidade humana em todas as suas
dimensões pressupõe, quando se pensa na organização do espaço, a existência de processo de
planejamento que tenha por finalidades precípuas o cumprimento das funções sociais da cidade
e da função social da cidade, considerando que essas funções devem ser efetivadas consideran-
do o princípio da igualdade.
O planejamento é a base para a atuação política nos espaços urbanos. Sem planejamen-
to não há como se realizar a organização do espaço, não haverá parâmetros para intervenção do
Estado na ordem econômica, de forma a moldar a utilização da propriedade tendo em vista o
cumprimento de sua função social (artigo 170, CF). Somente por meio do planejamento é que se
poderá concretizar os valores expressos no texto constitucional e se garantirá a justiça social por
meio de políticas inclusivas que assegurem o desenvolvimento humano, o equilíbrio ecológico e
a dignidade humana para todos os que habitam em espaços urbanos e rurais.
Ao tratar da obrigatoriedade de existência e de implementação do Plano Diretor, afir-
ma Carneiro(1998, p. 40-1):
muitos planos diretores são verdadeiras “cópias” de outros planos, que servem tão-somente
como conteúdo “formal” para a justificação da existência de uma política urbana, quando, na
verdade, essa falta de correlação com a realidade é um problema político de grande monta, pois
a falta de planejamento também é uma opção política!
O plano diretor – como lei e plano - deve expressar programas que revelem compro-
missos para ações de governo, que tenham por objetivo planos e metas direcionados à realidade
municipal, o que depende terminantemente de conhecimento da realidade, de diagnósticos, de
análises sobre a realidade municipal e de busca de alternativas para as políticas municipais, tudo
56
considerando os problemas, as potencialidades que o município apresenta, as características de
sua população e os problemas crônicos que enfrenta. Não há possibilidade de qualquer sucesso
para um plano diretor totalmente incongruente com a realidade municipal!
De nada adianta um belo plano diretor, com diretrizes e compromissos progressistas,
se essas metas e diretrizes para o planejamento se mantiverem tão somente no âmbito do dis-
curso político.
Outro problema que tem direta relação com a efetividade do plano diretor para a orga-
nização do espaço é a necessária regulamentação dos institutos nele contidos.
No caso do município de Belém, a Lei nº. 8.655, de 30 de julho de 2008, que dispõe
sobre o plano diretor, para sua plena efetividade, depende da regulamentação de grande parte
dos instrumentos nele dispostos.
As diretrizes para a política habitacional, a criação e implementação de zonas espe-
ciais de interesse social, inclusive as zonas especiais de interesse social de vazios urbanos, o
direito de preferência, o parcelamento, urbanização e edificação compulsórios, a dação em pa-
gamento, o consórcio imobiliário, a outorga onerosa do direito de construir, a outorga onerosa
de mudança de uso, o estudo de impacto de vizinhança, as operações urbanas consorciadas são
instrumentos que ainda estão dependendo de regulamentação para a sua aplicação.
O Ministério Público do Estado do Pará expediu recomendação para que o prefeito
municipal envidasse esforços para, em caráter de urgência, enviar projetos de lei específicos
para a implementação dos instrumentos urbanísticos previstos no Plano Diretor. Referida reco-
mendação ressaltou a importância da democracia deliberativa para a criação, debate e imple-
mentação dos institutos que ainda carecem de legislação específica para serem implementados.
A falta de efetividade do plano diretor e de seus instrumentos impossibilita a concre-
tização de uma de vida digna. O município - em razão da falta de regulamentação dos instru-
mentos acima citados - perde a oportunidade de intervir para definir o cumprimento da função
social da propriedade e para o desenvolvimento das funções sociais da cidade; descura de sua
precípua função de criar um projeto de cidade com maior justiça social, qualidade de vida e
equilíbrio ecológico. Inúmeros direitos como direito à habitação, aos serviços básicos, à loco-
moção, à existência de espaços públicos com qualidade, a proteção às minorias e aos hipossu-
ficientes, o direito à circulação são valores que jazem nos textos legais pela falta de consciência
e de vontade política dos órgãos públicos, o que gera, como consequência, verdadeira ingover-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
57
3 O DESAFIO DA DEMOCRATIZAÇÃO DAS POLÍTICAS URBANAS PARA A
ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO
Como bem ressalta Alckmin Filho (2002, p. 98), foi a Constituição de 1988 que veio
consolidar as bases jurídicas para atuação dos poderes municipais. De fato, os municípios, a
partir da Constituição Federal de 1998, passam a ter autonomia financeira, administrativa e
organizacional.
O texto constitucional dotou os municípios de autonomia e capacidade de gestão, as-
sim como criou as inúmeras atribuições e competências para o trato da questão urbana. A Carta
Magna avançou significativamente no que pertineà participação popular e o fortalecimento do
poder local. A partir da leitura do texto constitucional, o desenvolvimento urbano só pode ser
realizado com a democracia participativa.
O desafio da democratização tal qual a regulamentação dos instrumentos dispostos no
plano diretor, depende de vontade política dos governantes, de uma correta atuação do poder le-
gislativo no sentido de fazer cumprir os mandamentos do texto constitucional, e acima de tudo,
de um verdadeiro controle político a ser realizado pelos próprios cidadãos.
Há alguns anos, Sposati (2002, p. 73-80), ao tratar das dificuldades para a descentrali-
zação municipal e para a democratização da gestão urbana do município de São Paulo, chamava
atenção para a escassa participação popular no processo de planejamento e no processo de fis-
calização das ações do poder público. A falta de controle social sobre as ações do poder público
se dava justamente pela falta de regulamentação de mais de trinta e um artigos contidos na Lei
Orgânica de São Paulo, todos eles referentes à democratização e à gestão da cidade.
Alertava Sposati (2002, p. 73-80) que o capítulo das disposições transitórias da Lei
Orgânica Municipal determinava prazo de dois anos para a regulamentação de dispositivos que
tratavam da participação no planejamento da fiscalização, para o plebiscito para obras de valor
elevado, audiência pública para moradores atingidos por obras de grande vulto, possibilidade
do contribuinte para questionar a legitimidade das contas do poder público, produção do plano
diretor, criação de sistema de planejamento e sistema de informações, criação subprefeituras,
preservação de áreas de riscos, relatório de impacto de vizinhança, criação de sistema de gestão
de qualidade ambiental, dentre outros instrumentos. O prazo legal, à época de sua pesquisa, já
havia se exaurido sem que os instrumentos tivessem sido regulamentados.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
58
O Ministério Público Federal, por meio de Ofício PR/PA/CHEFIA nº 072/2007, enca-
minhou representação informando sobre possíveis irregularidades no processo de aprovação
do plano diretor do município de Belém junto à Câmara Municipal. Diante do teor da denúncia
que informava que o processo de elaboração do texto do plano diretor não estaria permitindo o
debate democrático, no âmbito da Câmara municipal, e que se estaria subtraindo do texto mu-
nicipal instrumentos importantes dispostos no Estatuto da Cidade, como o estudo de impacto
de vizinhança, o IPTU progressivo, a outorga onerosa, o zoneamento especial, o macro-zonea-
mento, o Ministério Público do Estado do Pará recomendou à Câmara Legislativa Municipal de
Belém, na pessoa de seu Presidente, o fiel cumprimento dos artigos 182 e 183 da Constituição
Federal, bem como os mandamentos expressos no Estatuto da Cidade, especificamente no que
tange à abertura de debates dentro do processo legislativo, garantindo canais de participação a
todos.
Face à recomendação, inúmeras audiências públicas foram programadas no município
de Belém, tendo em vista propiciar o debate sobre o conteúdo existente no projeto de lei enca-
minhado pelo Prefeito municipal, que tratava do plano diretor.
Sabe-se que a gestão democrática da cidade deve ser estruturante das políticas ur-
banas, pois ao estar expressa em dispositivos federais, ratifica o sentido e a conformação do
Estado Democrático de Direito que pretende a realização da igualdade, com base na vivência
da democracia. Deve, portanto, o poder público municipal atuar para dar cumprimento ao ideal
democrático por meio da implementação de políticas públicas, da proposição de projetos de leis,
de planos e de programas para o desenvolvimento urbano, que dependerão desse diálogo entre
Estado e sociedade, dessa “concertação de interesses” (Lei 10.257/2001, artigo 43).
Se o texto constitucional trata da cooperação de associações representativas da socie-
dade civil no planejamento municipal, a lei orgânica municipal deve conter os instrumentos
que possibilitem a gestão participativa, a participação popular no processo de desenvolvimento
urbano (CF, artigo 29, inciso XII), estabelecendo ainda as regras de procedimento para que haja
a cooperação da sociedade no planejamento local, na elaboração do plano diretor e de todos
os demais planos municipais que fazem parte do processo de planejamento e desenvolvimento
urbanos. Somente assim se poderá dar efetividade ao texto da Constituição Federal, pois nele a
participação popular apresenta-se como requisito imprescindível, necessário para a validação e
a eficácia dos atos do poder público.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
59
Esses direitos só podem ser efetivamente garantidos com democracia. Consoante Mer-
cado (1995, p. 113), a democracia é o regime político necessário para a introdução de formas
de controle e de direcionamento sobre a economia de forma que a sociedade possa controlar as
decisões econômicas em consonância com os interesses sociais. Nesse sentido, as instituições
precisam forjar novos vínculos sociais, de forma que os indivíduos atuem em sociedade e pos-
sam verdadeiramente participar dos projetos políticos estatais.
O Direito e o planejamento democrático se perfazem em proposta como forma de en-
frentamento dos inúmeros problemas vivenciados nos espaços urbanos e rurais, o que depende
da consolidação de espaços deliberativos, do acesso à informação e da transparência dos atos
do poder público.
senvolvimento das funções sociais da cidade para garantir o bem-estar de seus habitantes. Em
razão do interesse local e da possibilidade de resolver diretamente os problemas vivenciados
pelos cidadãos, deve o poder local ter a possibilidade de buscar soluções e atuar de forma pre-
ponderante, isto é, dando-se prioridade à atividade administrativa municipal em detrimento das
atividades estatais e nacionais quanto ao tema objeto de conflito administrativo. Este raciocínio
deflui de sua larga autonomia e da ampla gama de atribuições constitucionais que lhe foram
conferidas (aos municípios), bem como da necessária descentralização de funções dispostas no
texto constitucional em razão da necessidade de consecução do federalismo cooperativo.
60
Neste sentido, no que tange à gestão comum de interesses nacionais, cabe ao órgão
federal a cooperação administrativa, atuando suplementarmente ou subsidiariamente à atuação
estatal. Essa atuação de órgão da administração federal não pode ser conflitiva, superposta,
estando condicionada à atuação dos Estados para o trato da matéria. Objetiva tão somente su-
prir as deficiências, falhas, omissões ocorridas na atuação administrativa, que originariamente
pertencem aos Estados-Membros.
O artigo 23 da Constituição Federal, que tem por objetivo a cooperação e a interde-
pendência de funções e atividades na Federação, expressa a necessária harmonia num sistema
de repartição de atribuições e atividades de forma a que não exista conflito, superposição de
atividades, simultaneidade de ações que podem ser contraditórias. O referido dispositivo objeti-
va atuação lógica, racional, consentânea com os princípios e objetivos da República Federativa,
por meio de atuação adequada de cada esfera federativa.
No que tange às políticas sobre saúde, desenvolvimento urbano e meio ambiente, ob-
serva-se, no entanto, que essas políticas, estruturadas sob sistemas nacionais de distribuição
de competências, não traduzem a necessária harmonia e integração de ações para resolução de
questões comuns a todas as esferas federativas, dentre as quais também destacamos a neces-
sidade de uma política de desenvolvimento urbano integrada, consubstanciada em objetivos,
estratégias, parcerias e ações integradas em prol do desenvolvimento sustentável.
Em se tratando de políticas de saúde, de ensino, de proteção ao meio ambiente, nesta
inserida a necessidade de consecução de espaços urbanos sustentáveis, não existe o estabe-
lecimento de relações adequadas e congruentes entre distintas esferas federativas, elementos
indispensáveis para a realização de políticas estáveis e coerentes à implementação de desenvol-
vimento urbano que cumpra com as funções e objetivos dispostos no texto constitucional.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
61
Alex Fiúza de Mello (2007, p. 16) afirma categoricamente que a região enfrenta o
dilema amazônico. E de forma contundente, afirma o autor que o problema amazônico é um
problema acima de tudo político. Para Alex Fiúza de Mello, a Amazônia se apresenta como
um dos principais centros das atenções mundiais em razão de suas riquezas naturais, de sua
biodiversidade, de suas jazidas minerais, de seus recursos hídricos. E é justamente em razão
de sua importância estratégica para o Brasil e para o mundo que os desafios para o novo século
precisam ser enfrentados pelos atores políticos e por instituições, “... sob pena do processo de
transformação em curso resultar em mais um ciclo de exploração econômica concentradora de
riquezas e socialmente excludente” (Fiúza de Mello, 2007, p. 19-20).
Para o autor, somente existirá um salto civilizatório e de exercício da soberania, “...
se existir uma vontade política comprometida com um verdadeiro projeto de nação, com um
democrático e inclusivo pacto federativo e com o futuro dos brasileiros que habitam o norte do
país” (Fiúza de Mello, 2007, p. 21). E vaticina: “Não haverá futuro para a Amazônia sem desen-
volvimento científico e tecnológico com inflexão e sustentação a partir de dentro da região”(-
Fiúza de Mello, 2007, p. 16-17).
O Direito, portanto, deve ser importante aliado nesse processo de democratiza-
ção e de inclusão social. Porém, os municípios brasileiros precisam assumir e exercer as atri-
buições institucionais decorrentes do texto constitucional, das normas infraconstitucionais, de
leis orgânicas, pois a construção do Estado Democrático é um processo, constante vir a ser, e
deve ser o jogo democrático o mecanismo por meio do qual se busque dissipar as desigualdades
sócio espaciais por meio de um planejamento coerente, integrado e compatível com a realidade
de cada município.
REFERÊNCIAS
ALCKMIN FILHO, Geraldo. Recuperar São Paulo: uma alternativa possível. In:
CALDERÓN, Adolfo e Ignacio; CHAIA, Vera. Gestão municipal: descentralização e
participação popular. São Paulo: Cortez, 2002.
BELÉM. Lei 8.665, de 30 de julho de 2008, que institui o Plano Diretor do município de
Belém.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
62
CARVALHO, Horácio Martins. Introdução à teoria do planejamento. São Paulo: Brasiliense,
1988.
63
Recebido em 04 mar. 2015
Aceito em 10 maio 2015
1 INTRODUÇÃO
suas periferias. Com isso, as inúmeras aspirações sociais e, acima de tudo, as inúmeras carências
decorrentes desse processo, tem caracterizado uma constante e crescente urbanização da pobreza.
A migração em massa das pessoas que moram no campo para as cidades levou ao aumen-
to de moradias informais e precárias, destituídas de mínimas condições de habitabilidade. Saltam
aos olhos a proliferação de assentamentos sobre encostas, à beira dos rios, córregos, nas áreas de
* Técnica em Edificações pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte e Graduanda em Direito, na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 10º período.
64
proteção ambiental, com precariedades urbanísticas, sem saneamento básico, com altas vulnerabi-
lidades sociais e riscos ambientais, entre outros graves problemas.
Nesse contexto, a racionalização e organização dos espaços físicos e demográficos me-
rece especial atenção do Poder Público, a fim de fomentar o planejamento do desenvolvimento
da urbe como forma de garantir à grande população menos privilegiada o direito à uma moradia
digna.
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 182, ao atribuir aos municípios a responsa-
bilidade na definição de suas políticas de desenvolvimento urbano, com a finalidade de ordenar o
pleno incremento das funções sociais das cidades, a partir da implementação do plano diretor, deu
um passo importante para enfrentar este desafio.
Em decorrência, surgiu o Estatuto das Cidades (Lei Federal n º 10.257/01), reforçando o
papel do plano diretor como instrumento fundamental de planejamento sustentável das cidades
(com observância da função social da propriedade e da cidade).
Considerando os dispositivos legais supra declinados, compreende-se que o ordenamento
jurídico brasileiro, ao traçar suas diretrizes para a política urbana, define, como ponto essencial,
a garantia do cumprimento da função social da propriedade e aponta, como instrumento funda-
mental para atingir essa meta, o plano diretor, cujas exigências irão indicar como será exercido o
direito individual de propriedade dentro de um contexto que não inviabilize o acesso aos espaços
habitáveis daquela expressiva maioria da população vulnerável economicamente.
Evidencia-se, assim, a importância do tema frente à imperatividade da norma legal que
define a obrigatoriedade de aprovação do plano diretor para grande parte dos municípios do país.
Sem ter a pretensão de esgotar a matéria – evidentemente complexa – propõe-se, este
texto, a fazer uma análise sobre as questões mais emergentes que dizem respeito ao plano diretor,
trazendo à lume explanações sobre sua definição, conteúdo, forma de elaboração e como este pode
servir de instrumento para o planejamento sustentável das cidades, que significa obter crescimento
econômico necessário, garantindo a preservação do meio ambiente e o desenvolvimento social
para o presente e para as futuras gerações.
O plano diretor é um instrumento de planejamento urbano que tem por finalidade orien-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
65
propriedade.
Do ponto de vista físico, incumbe ao plano diretor ordenar a utilização do solo municipal,
considerando o território do município como um todo (art. 40, § 2º, do Estatuto das Cidades). Isto
significa que deve, o planejamento municipal, ser feito sobre o território global do município, tanto
da área urbana quanto da rural, já que o crescimento da cidade geralmente ocorre em direção à
zona rural.
Fazer planejamento territorial é definir o melhor modo de ocupar o território de um mu-
nicípio, prevendo os pontos onde se localizarão atividades, e todas as formas de uso do espaço,
presentes e futuros.
É primordial, em qualquer cidade, que se tenha conhecimento da estrutura fundiária local
e suas tendências de desenvolvimento. Partindo deste conhecimento, cada município deve esco-
lher, dentre os instrumentos oferecidos pelo Estatuto da Cidade, aqueles que mais venham a favo-
recer a inclusão social, criando condições que viabilizem o financiamento do ordenamento urbano.
Estes instrumentos jurídicos, são, por exemplo, a outorga do direito de construir, o exercício do
direito de preempção, a utilização adequada de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), as
operações urbanas consorciadas, a possibilidade de criação de Zonas Especiais de Interesse Social
(ZEIS) para regularização fundiária, utilização compulsória de imóveis considerados subutiliza-
dos, dentre outros.
Sendo assim, o plano diretor deve projetar, a longo prazo, a possibilidade de uso do solo
para fins de edificações residenciais, para ruas e espaços livres, assim como o solo destinado a
uso industrial e comercial. Poderá, inclusive, definir a formação de núcleos fabris, reservando área
específica na cidade para construção de polos industriais, caso isso seja aconselhável diante da
realidade local.
No que concerne às previsões definidas como “conteúdo mínimo” do plano diretor, há
que se considerar que nem sempre o município sentirá necessidade de se utilizar dos instrumentos
jurídicos elencados no inc. II, do art. 42 do Estatuto das Cidades (direito de preempção, operações
urbanas consorciadas, etc.), especialmente se for ele de pequeno porte. No entanto, parece-nos
que a determinação do Estatuto da Cidade é de ordem imperativa, sendo obrigatória a previsão da
possibilidade da utilização de tais instrumentos quando da elaboração do plano, ao menos no que
diz respeito à definição dos locais, dentro da política de zoneamento urbano, em que será viável
sua aplicação, a qual poderá ser melhor explicitada, posteriormente, em lei municipal específica.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
No que concerne aos objetivos a serem atingidos, o plano diretor estabelece normas de
ordenação do território municipal a orientarem a realização das diversas atividades a serem execu-
66
tadas no meio urbano, fixando as diretrizes do desenvolvimento e expansão urbana do Município.
Sua principal proposta é construir cidades com qualidade urbana para todos, onde o acesso à terra
urbanizada seja um direito dos que habitam na cidade. Trata, no seu contexto, de direitos como
habitação, saneamento básico e transporte urbano, visando, sobretudo, a preservação da qualidade
ambiental das cidades.
Com efeito, não pode este se afastar da população a que se destina. A concepção do Plano
Diretor tem que ser fruto de mecanismos democráticos, que possibilitem a prática da gestão com-
partilhada, com a participação direta do povo no planejamento urbano, fundamento constitucional
que trouxe a possibilidade da participação da sociedade civil organizada na gestão democrática das
políticas públicas, como poderosa forma de controle social.
Objetiva, ainda, ser uma ferramenta viva, verdadeira e legítima para enfrentamento das
injustiças relativas ao acesso à cidade sustentável que o modelo de desenvolvimento econômico-
-social legou para parcela das atuais gerações e que não podem prosperar para as gerações futuras.
É, em suma, um instrumento através do qual o poder público municipal, agindo
estritamente dentro de sua esfera de competência (art. 30, inc. VIII, e art. 182, § 1º, ambos da
Constituição Federal), estabelece as regras para o adequado controle do uso, parcelamento e
ocupação do solo urbano.
Assim, a função social da cidade poderia ser alcançada, fundamentalmente, pela adoção
das metas indicadas no plano diretor, bem como pela viabilização das propostas do Projeto de Lei
775/83, voltado a se constituir a Lei de Desenvolvimento Urbano. Em que pese tal projeto não ter
sido aprovado; alguns de seus dispositivos foram incluídos no Estatuto da Cidade.
O Estatuto da Cidade consagra, em seu art. 2º, II, a gestão democrática da cidade como
diretriz geral para a implementação da política urbana, além de dedicar um capítulo inteiro a este
67
tema, disposto nos arts. 43, 44 e 45.
Consagrando, assim, a prerrogativa de envolvimento da sociedade no processo de cons-
trução e controle dos instrumentos urbanísticos, o Estatuto da Cidade acaba por transformar a
participação pública como preceito básico para a gestão do espaço urbano.
No art. 43 são descritos alguns dos mecanismos de garantia da gestão democrática das
cidades, tais como: a) órgãos colegiados de política urbana, b) realização de debates, audiências e
consultas públicas, c) realização de conferências sobre assuntos de interesse urbano e, d) iniciativa
popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
Sendo, o Plano Diretor, o instrumento de planejamento e expressão das políticas públicas
urbanas, consolidando-se como um dos principais elementos para a consecução do desenvolvi-
mento equilibrado das cidades, a concepção de gestão democrática acaba sendo a este incorporada.
Neste mesmo sentido, prescrevem Ribeiro e Cardoso (2003, p.96-97):
A tarefa de planejar a cidade passa a ser função pública que deve ser compartilhada pelo
Estado e pela sociedade – co-responsáveis pela observância dos direitos humanos e pela
sustentabilidade dos processos urbanos. A gestão democrática é o método proposto pela
própria lei para conduzir a política urbana.
Nesse sentido, o art. 40, parágrafo 4º, do Estatuto da Cidade, contém os preceitos que irão
concretizar a participação pública na elaboração e fiscalização da implementação do Plano Diretor,
consolidando-o como um planejamento participativo.
As formas de participação descritas no mencionado artigo são:
De uma maneira geral, as formas de participação pública previstas para o Plano Diretor
podem ser divididas em duas perspectivas, quais sejam: o envolvimento efetivo e intervenção nas
decisões e o acesso às informações produzidas e conhecimento a respeito do processo. Na sua pri-
meira vertente, a participação consagra aos indivíduos a possibilidade de influenciarem diretamen-
te no processo de elaboração do Plano Diretor, o que resulta no direito de qualquer cidadão reque-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
rer a realização das audiências públicas a serem promovidas pelo Poder Público e delas participar.
Em contrapartida, a participação pública no âmbito do Plano Diretor pressupõe a apro-
priação, por parte do cidadão, do conhecimento sobre as informações inerentes à vida na cidade,
como atividades, serviços, planos, recursos, sistema de gestão, formas de uso e ocupação do espa-
ço urbano.
Por este motivo é que o Plano Diretor assume o contorno de instrumento fundamental
para a realização do direito à cidade. Construído de forma democrática e participativa é ele que
irá trazer para a realidade os anseios e desejos da população das diferentes regiões da cidade e dos
68
segmentos sociais que ocupam e desenvolvem suas atividades no espaço urbano.
Devido a este fato, a participação é prevista (art. 2°, II, do Estatuto da Cidade) como dire-
triz geral da política urbana, devendo ser aplicada na formulação, execução e acompanhamento do
Plano Diretor, bem como na própria gestão da cidade.
Deste modo, produzido coletivamente através da participação popular, o Plano Diretor
serve como um catalisador dos anseios de todas as camadas sociais, abrindo possibilidade de solu-
ções diversas que atentem às singularidades e necessidades de cada grupo social.
Para que atenda às reais necessidades do planejamento local, o plano diretor deverá ser
elaborado após um detalhado trabalho de levantamento das atuais condições de ocupação do solo
do município, que reflita um conhecimento de sua estrutura fundiária e demais particularidades
geográficas e sociais, de sorte que, com base nesse levantamento, sejam deliberadas as estratégias
aptas a transformar, para melhor, a realidade existente.
Como já exposto, é de fundamental importância, no processo de elaboração e discussão
do plano diretor, que seja assegurada a participação da comunidade, através de audiências públicas
previamente agendadas às quais deve ser dada a oportuna publicidade, garantindo o conhecimento
de todos os segmentos da sociedade civil das discussões travadas no processo de definição das
prioridades a serem consideradas pelo plano.
Esse processo participativo deve ser garantido tanto pelo Poder Executivo quanto pelo
Poder Legislativo Municipal, sob pena de invalidade do respectivo processo legislativo, contra o
qual pode ser suscitada a inconstitucionalidade e a ilegalidade (por ofensa ao disposto no art. 40, §
4º, do Estatuto da Cidade) do ato legislativo.
O gestor público municipal que, intencionalmente, deixar de proceder à elaboração do
plano diretor (nos casos do art. 41, incisos. I e II, do Estatuto da Cidade), ou que deixar de proceder
à sua revisão (art. 40, §3º, do mesmo diploma legal), estará incorrendo nas sanções cominadas no
art. 12, inc. III, da Lei nº 8.429/92, por prática de ato de improbidade administrativa previstas no
art. 11, inc. II, da Lei nº 8.429/92, combinado com o art. 52, inc. VII, do Estatuto da Cidade.
O Parquet, por sua vez, no exercício de sua atribuição de zelar pela proteção da ordem
urbanística, visando assegurar o fiel cumprimento das obrigações impostas pelo Estatuto da Cida-
de, deve manter rigoroso trabalho de fiscalização junto aos Poderes Legislativo e Executivo muni-
cipais. Esta fiscalização deve ser orientada no sentido de observar-se a adequação da condução do
processo de elaboração do plano diretor, naqueles municípios que ainda não o têm, bem como em
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
acompanhar o processo de revisão dos planos diretores já existentes, a fim de que sejam garantidos
também a publicidade dos atos praticados pelos agentes políticos locais, e a efetividade da partici-
pação da sociedade local no curso desses processos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
69
priedade e da cidade, sendo, na essência, um instrumento de planejamento urbanístico que define
a divisão e as formas de ocupação dos espaços habitáveis da cidade, considerando-se o território
urbano e rural do município.
Conclui-se, portanto, destacando a importância do Estatuto da Cidade, que veio propor-
cionar aos municípios uma melhoria na qualidade de vida de seus habitantes, buscando o cresci-
mento urbano sem agredir o meio ambiente e considerando o objetivo de inclusão social. A cidade
é o lugar onde reside grande parte da população, onde se desenvolvem atividades e funções nas
quais vários segmentos sociais atuam como atores. É um espaço democrático no qual os direitos
devem ser respeitados e garantidos pelo Poder Público, mas também defendidos pela comunidade
que habita e desenvolve suas atividades na cidade.
Portanto, nesse processo de transformação da cidade, a população é parte fundamental na
construção de um ambiente sustentável. Considerando que a elaboração das normas urbanas e suas
mudanças têm o intuito de oportunizar melhores condições de vida e de realização das atividades
sociais, a sociedade tem papel primordial nas etapas desse processo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos. 2 ed.
Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2002.
GENZ, Karin Sohne. O Plano Diretor como Instrumento de Política Urbana. Disponível em:
<http://www.mprs.mp.br/urbanistico/doutrina/id492.htm>. Acesso em: 16 de set 2014.
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; CARDOSO, Adauto Lúcio. Reforma Urbana e Gestão
Democrática: promessas e desafios do estatuto da cidade. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
SILVA, Carlos Henrique da. Plano Diretor: teoria e prática. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva,
2008.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2010.
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Recebido em 21 abr. 2015
Aceito em 09 maio 2015
* Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e
coordenador do grupo de pesquisa “Transformações estruturais do Direito Urbanístico brasileiro contemporâneo”; Correio eletrônico:
alexmagalhaes@ippur.ufrj.br
** Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica – RJ e bolsista do grupo de pesquisa “Transformações estruturais do Direito
Urbanístico brasileiro contemporâneo”; Correio eletrônico: laurecaalves@gmail.com.
*** Graduanda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense e bolsista do grupo de pesquisa “Transformações es-
truturais do Direito Urbanístico brasileiro contemporâneo”; Correio eletrônico: angelcosta@id.uff.br
**** Advogada. Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico, Direito Constitucional e Direito Processual Civil. Mestranda em Plane-
jamento Urbano e Regional pelo IPPUR-UFRJ. Correio eletrônico: jullyuff@gmail.com
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1 INTRODUÇÃO
lojas e marcas já teriam manifestado interesse em alocar-se no futuro shopping, que se situaria
na Avenida Presidente Kennedy, uma das principais vias que cruza o centro da cidade caxiense,
conforme ilustra a imagem abaixo, figurativa da construção projetada.
Através de análise dos documentos apresentados pela empresa ABL Shopping, res-
ponsável pelo projeto do empreendimento, pelo movimento FORAS, e pela Prefeitura de Duque
de Caxias, pudemos destacar alguns pontos para reflexão e problematização a respeito do caso.
Assim, o presente artigo visa analisar as vicissitudes do processo do licenciamento do empreen-
dimento aqui identificado, bem como discutir os meios e as técnicas utilizadas pela empresa
72
construtora, a fim de concretizar o empreendimento, além de considerar o papel desempenhado
pela chamada “sociedade civil”, no conflito suscitado pela tramitação dos pedidos de licença
ambiental e edilícia para sua instalação. Trata-se de um conflito que consideramos bastante re-
presentativo dos atuais dilemas que envolvem o desenvolvimento das cidades brasileiras, tema
que alcançou status constitucional em 1988, quando a carta magna brasileira, pela primeira vez,
recepciona um capítulo destinado à política urbana, sendo seguida, nos anos seguintes, pelas
cartas estaduais e municipais.
somente superado pela capital.2 Cortado pela Rodovia Washington Luís (a BR-040), que liga o
Rio de Janeiro a Brasília, e também favorecida por sua relativa proximidade em relação a capital
fluminense, o município caxiense tem recebido expressivos investimentos industriais, públicos
e privados, desde sua origem, passando pelas indústrias automobilística, petroquímica e mo-
1 Calculada em mais de 3 milhões de habitantes, sendo que mais de 800 mil destes residem em Duque de Caxias (o que corresponde a
mais de 5% da população do estado), conforme dados do Censo / IBGE de 2010.
2 O ORÇAMENTO fiscal de 2013, da Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, estimou a receita bruta desse município em quase 2
bilhões de reais. Capital: mercado e negócios, São Paulo, 10 jun. de 2013. Disponível em:<http://www.jornalcapital.jor.br/materias/3970-ar-
recadacao-de-duque-de-caxias-ja-passou-de-r-1-bilhao.html>. [acesso em 1º/03/2015]
73
veleira. A Refinaria de Duque de Caxias (REDUC), unidade da Petrobrás instalada em 1961,
converteu o município em um dos mais importantes polos industriais do país. No entanto, seja
em termos de acesso ao mercado de trabalho, seja em termos de acesso a serviços públicos e a
equipamentos de educação, cultura e lazer, o município ainda depende fortemente da capital, o
que permite a conclusão de que entre eles ainda vigora a clássica relação centro-periferia, não
obstante as transformações que esta vem sofrendo.
O Centro de Duque de Caxias, onde se pretende implantar o empreendimento em ques-
tão, é conhecido por sua grande área comercial, que atende não só aos moradores dessa região,
como também aos de vários bairros vizinhos, e até mesmo de bairros do subúrbio do município
do Rio de Janeiro, em busca das variedades e do bom preço.
Muito próximo ao sítio destinado ao empreendimento encontra-se o Calçadão, uma
área exclusiva para pedestres, cercada de lojas e galerias comerciais, composto por segmentos
da Avenida Nilo Peçanha, Rua Manuel Correia, Rua José de Alvarenga e Rua André Rebouças,
e que tem como principal atrativo as atividades de serviços, alimentação e vestuário.
A preocupação dos comerciantes locais, com a chegada de um grande Shopping Cen-
ter localizado tão próximo do Calçadão e das outras diversas ruas de lojistas, e ainda com a
proposta de atingir o mesmo público – ou segmento socioeconômico – é que os consumidores
se voltem em sua maioria para o Shopping, já que fatores “óbvios”, como o calor e o excesso de
pessoas nas ruas do Calçadão, tornem o novo empreendimento mais agradável e atrativo. A des-
vantagem competitiva dos lojistas tradicionais tende a se agravar em função de outros fatores
como a propaganda, que inexiste para esse grupo, de forma unificada, ao contrário do shopping,
diariamente glamourizado nos grandes veículos de marketing.
Um estudo realizado pelo Professor Marcelo Gomes Ribeiro (RIBEIRO, 2014),3 levan-
tou uma breve caracterização do perfil regional do munícipio de Duque de Caxias, a partir da
participação populacional, número de domicílio, renda média e renda mensal total, de modo a
demonstrar o potencial econômico desse município. Nele, os grupos (ou as classes) de renda
mais frequentes dentre a população são: C1 (26,5%), C2 (23,3%) e D (22,9%), cuja renda é
apontada no quadro abaixo.
74
centram 61% das atividades existentes. Tais atividades também são o foco do novo empreendi-
mento, que também oferecerá atividades de lazer e hotelaria.
Ainda de acordo com o estudo de Ribeiro (2014), seria possível a implantação de um
shopping Center de pequeno porte, porém deve-se revisar a análise mercadológica apresentada
pela empresa construtora, por ela ter desconsiderado estudos mais consistentes sobre o poten-
cial construtivo, como:
• O município de Duque de Caxias participa com apenas 4,6% da renda total da
Região Metropolitana, mesmo concentrando 7,3% de sua população;
• A taxa de crescimento anual da população de Duque de Caixas é de apenas
0,98%, abaixo, portanto, da taxa de reposição.
Como a análise do potencial de mercado não deixa clara a metodologia utilizada, fica
difícil avaliar se a inserção desse empreendimento potencializa a dinâmica econômica da região
onde se pretende que seja instalado ou se isso acarretará em fechamento de lojas e comércios de
rua já existente, tal como já se verificou com relação a algumas atividades “de rua” na cidade
do Rio de Janeiro, como é o caso emblemático dos cinemas.
“Entre os três modelos de veículos adotados como referência para o estudo, a empresa
consultora, alegando ser o modelo mais recente, preferiu considerar tão somente
as estimativas do modelo da CET-SP (2011). Ressalte-se que o modelo escolhido
foi desenvolvido para a capital paulista, cujos shoppings centers apresentam
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
75
Kennedy, que, como facilmente percebido pelos usuários que circulam no local, já tem uma
movimentação normalmente muito lenta, mesmo sem o shopping.
A empresa apresenta o fluxo de carros do local e propõe uma mudança do mesmo, con-
tudo nenhum deles estabelece uma solução para a absorção desse impacto negativo. Em ambas
as opções ilustradas abaixo o fluxo vai para a Av. Presidente Kennedy.
Além dos problemas com congestionamentos, também deve ser considerada a altera-
ção da qualidade do ar, pelo excesso de lançamento de monóxido de carbono (CO), gerado pela
grande quantidade de veículos automotores retidos por longos períodos no entorno do empreen-
dimento, alterando o clima e originando ilhas de calor.
No estudo de Martins (2014), ele concluiu que, do ponto de vista morfológico, o em-
preendimento se revela com uma volumetria que contrasta significativamente com o seu entor-
no.
Por exemplo, a lateral do empreendimento voltada para a Rua Belisário Pena, apesar
de consumir quase todo o quarteirão, será ocupada por empena cega da fachada principal, não
contendo sequer vitrines voltadas para o passeio público. Desse modo, não manterá nenhuma
relação com seu entono imediato e, logo, o espaço público perde a função de acesso lindeiro (ao
longo de sua extensão), concentrando-se o acesso de pedestres a dois únicos pontos do edifício,
pontos esses distantes entre si.
Isto tende a diminuir a percepção de segurança pública ao longo da via por parte da
população, não servindo o empreendimento para valorizar a vida comunitária em seu próprio
perímetro.
da obra, no âmbito das quais foi promovido corte de mais de uma centena de árvores que per-
meavam o imóvel indicado para abrigar o empreendimento, realizado em junho de 2014, e com
evidências de irregularidade.
O que ocorreu foi um progressivo afundamento do piso, verificado pelos buracos na
quadra, que chegavam a aproximadamente 25 a 30 cm de profundidade. Da mesma forma,
apareceu na extremidade de um dos muros, junto à quina dos fundos do terreno, uma trinca
horizontal. A origem dessas rachaduras, assim como o “piso oco”, deve-se, provavelmente, ao
rápido e recente afundamento do solo. Tanto a quadra quanto o muro estão perdendo sustenta-
76
ção. Acredita-se que a poda da vegetação do terreno vizinho expôs o solo, que é de topografia
inclinada, e agora há uma nova erosão, que não existia devido à proteção arbórea.
Na extremidade oposta do terreno encontra-se a Igreja Matriz de Santo Antônio, que
também é outra edificação que provavelmente sofrerá danos físicos e paisagísticos, em função
do tamanho desproporcional do empreendimento em questão, já que também ficará contígua a
ele e que, em sua lateral também será erguida parede com empena cega, de altura superior ao
topo da Igreja, o que bloqueará toda a sua visibilidade, oriundas de simulação elaborada a partir
dos parâmetros construtivos de ambas edificações.
6 Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Urbanismo, Processo administrativo nº 018.363/13, fls. 10, certidão nº 650/2013,
expedida a requerimento de Julio Cesar Vieira França.
77
1. representa forma ultra-intensiva de aproveitamento do solo, com área edificada
equivalente a quase sete vezes a área do terreno;
2. agrava o adensamento de área indiscutivelmente saturada, conforme tacitamente
reconhecido no Plano Diretor;
3. substitui as poucas casas térreas - ou, no máximo, com sobreloja - e centenas de
árvores existentes no terreno por uma edificação de mais de 20 pavimentos;
4. promove fortíssimo adensamento sem que tenham sido previamente ampliadas
as redes de macrodrenagem, esgotamento e abastecimento d’água, além do
sistema viário;
5. instala edificação de altíssima intensidade precisamente ao lado de uma das
edificações mais emblemáticas do município - a Catedral de Santo Antônio - sobre
cujo valor histórico, cultural, religioso, paisagístico e afetivo para o município e
região também já foi reconhecido no Plano e na legislação municipal, e que restará
inevitavelmente “escondida”, “diminuída” e “encurralada” por uma estrutura de
volume excepcionalmente maior do que ela (e do que todo o entorno), tal como
nas simulações apresentadas nesse estudo.
Tal ordem de coisas impõe a compreensão das licenças urbanísticas demandadas pelo
empreendedor jamais como ato jurídico vinculado da administração, e, logo, direito líquido e
certo do empreendedor, em função, por exemplo, da já certificada compatibilidade do uso pre-
tendido com a legislação municipal que estabelece o zoneamento, mas sim como ato discricio-
nário. Isto porque há um conjunto de outras circunstâncias, de hierarquia superior, a serem con-
sideradas no processo decisório a cargo do município, tais como as diretrizes estabelecidas pelo
Plano Diretor para as macrozonas em que se dividir o território do município, além daquelas
outras sistematizadas no presente estudo. Nesse sentido, cabe invocar o magistério de diversos
autores, desde o seminal – e já clássico! – estudo de José Afonso da Silva (SILVA, 1998) até a
recente monografia de ROCCO (2009).
Tratam-se de normas que adquirem prevalência sobre as vetustas concepções do
“direito de construir”, concebido aos moldes civilistas, uma vez que constituem “exigências
fundamentais de ordenação da cidade”, estabelecendo o modo como “a propriedade urbana
cumpre a sua função social” (art. 182, § 2º, da Constituição da República). O procedimento
administrativo de licenciamento do empreendimento permite ao administrador público aferir
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
78
estabelecer o controle do adensamento urbano.
Nesse sentido, há que se atentar para o seu Anexo IX, que admite o coeficiente máximo
de aproveitamento do terreno de 2,4 na área do empreendimento em questão. Considerando-
-se que a área do imóvel que abrigará o referido estabelecimento é de 11.718,72 m², o máximo
de área construída licenciável nessa macrozona seria de 28.124,93m², resultante da multiplica-
ção da área do terreno pelo coeficiente máximo admitido no Plano. No entanto, observamos
que o projeto de edificação do shopping, nos termos da licença de construção outorgada em
23/08/2012,7 possui uma A.T.C. de 71.880,69m², área que excede em mais de duas vezes e meia
(255,6% para ser exato) o limite legalmente estabelecido, configurando um aproveitamento
bruto do terreno de incríveis 6,13.
Como é de comum conhecimento, o coeficiente de aproveitamento máximo definido
no Plano Diretor é insuperável, não podendo ser ultrapassado mesmo mediante pagamento de
contrapartida por parte do interessado, limite acima do qual o espaço aéreo adquire a carac-
terística de área non aedificandi. Admitir o oposto, seria flexibilizar todo o planejamento da
cidade e ensejar a sua compra pelos agentes com poder econômico.
Por todas essas razões, parece inescapável a adequação do projeto em questão às nor-
mas do Plano Diretor referentes ao controle do adensamento urbano excessivo, o que, aliás, é
uma das diretrizes do próprio Estatuto da Cidade - art. 2º, VI, alíneas “b”, “c” e “d”.
Já houve tempo que causava certa estranheza, senão resistência, falar em avaliação de
impactos ambientais no âmbito do processo de instalação de empreendimentos inseridos em
áreas urbanas, visto que, em geral, tais áreas já se encontram bastante antropizadas, tomadas
por construções e com pouquíssimas áreas verdes. As exceções ficavam por conta, logicamente,
dos casos onde houvesse algum aspecto natural (como o relevo ou a existência de cursos d’água,
por exemplo) que atraísse a proteção das normas ambientais “puras”, se é que assim podemos
classificá-las.
Esse aparente afastamento, ou ao menos subsidiariedade, das normas ambientais em
relação às atividades e relações desenvolvidas no meio urbano há muito já foi superado pela le-
gislação, doutrina e jurisprudência, especialmente a partir da Constituição Federal de 1988, que
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
criou as condições que, eventualmente, estariam ausentes, no sentido de que a tutela ao meio
ambiente permeasse também toda a regulação da construção e desenvolvimento dos espaços
urbanos e das relações de convivência social nas cidades.
Em outras palavras, a partir da Constituição Federal de 1988, a cidade passa a ter
natureza jurídica ambiental, deixando de ser observada, pelo plano jurídico, tão somente com
7 Conforme Secretaria Municipal de Planejamento, Habitação e Urbanismo, Processo administrativo nº 35.803/2012, p. 107 e 108, alvará
de licença nº 126, solicitado por Luis Carlos Jorge Romeiro.
79
base nos regramentos adaptados aos bens privados ou públicos, para ser disciplinada em face
da estrutura jurídica do bem ambiental de forma mediata, e de forma imediata, tudo isto em
decorrência das determinações constitucionais contidas nos arts. 182 e 183 da CF (FIORILLO,
2010, p. 445).
A cidade hoje é compreendida dentro do próprio conceito de meio ambiente. É o meio
ambiente artificial, que abrange o espaço urbano construído, consistente no conjunto de edifi-
cações e equipamentos públicos (FIORILLO, 2010, p. 72). Pode-se dizer que o ambiente cons-
truído consubstancia ainda os esforços e as conquistas da população e suas condições de vida
e de trabalho, onde o desperdício ou mau aproveitamento do espaço, da matéria e da energia
constitui um desajuste ambiental (FIORILLO, 2010, p. 347 e 355).
Nesse contexto, a variável ambiental vem sendo cada vez mais introduzida na realida-
de municipal, a fim de assegurar a sadia qualidade de vida para o homem e o desenvolvimento
de suas atividades produtivas. Exemplo disso é a inserção de princípios ambientais em Planos
Diretores e leis de uso do solo, bem como a instituição de Sistemas Municipais de Meio Am-
biente e a edição de Códigos Ambientais municipais (MILARÉ, 2011, p. 351).
Em relação ao cabimento e abrangência do licenciamento ambiental, a regra geral é
que a implantação de qualquer atividade ou obra efetiva ou potencialmente degradadora do
meio ambiente deve submeter-se a análise e controle prévios, para efeitos de autorização/licen-
ciamento, onde serão verificados possíveis riscos e impactos ambientais a serem prevenidos,
corrigidos, mitigados e/ou compensados.
O meio ambiente urbano, no entanto, tem sua dinâmica própria, de modo que as exi-
gências ambientais que lhe são aplicáveis não são as mesmas que gravam os empreendimentos
e as outras interferências do homem nas áreas com fortes características de elementos naturais
(MILARÉ, 2011, p. 507). Da mesma forma, o licenciamento ambiental das principais atividades
observadas nas cidades terá que observar e atender às particularidades intrínsecas a essa dinâ-
mica, que é bem própria.
Isso não significa, porém, que, nas cidades, não possa haver empreendimentos com
potencial de causar impactos ao meio ambiente de magnitude igual, ou mesmo superior, à ins-
talação de uma unidade industrial, por exemplo. É o que ocorre justamente quando estamos
diante da instalação de um grande shopping center, como no caso em comento, o qual não causa
apenas uma alteração visual no local, mas traz outros importantes impactos ambientais agre-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
gados, tais como corte de vegetação, aumento da demanda por abastecimento de água potável,
geração de grande quantidade de resíduos sólidos, impactos viários, etc.
A avaliação ambiental de empreendimentos próprios do meio urbano é um ponto no
qual os órgãos licenciadores ainda têm muito a evoluir, posto que seu corpo técnico em geral é
capacitado com foco na avaliação de impactos causados por atividades industriais, que não são
muito comuns nos centros urbanos, até mesmo por questões de logística e segurança técnico-
-operacional.
Nesse contexto, a Avaliação de Impactos Ambientais (AIA) se destaca como impor-
80
tante instrumento de planejamento e controle que decorre do princípio jurídico da considera-
ção do meio ambiente na tomada de decisões, comunicando-se com a elementar obrigação de
obrigação de se levar em conta o fator ambiental em qualquer ação ou decisão que possa causar
sobre ele qualquer efeito negativo. Vale destacar que a Avaliação de Impactos Ambientais, en-
quanto instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), não se confunde com o
Estudo de Impacto Ambiental (EIA), que é uma ferramenta do licenciamento ambiental e uma
modalidade de Avaliação de Impactos Ambientais (MILARÉ, 2011, p. 464-5).
Um desdobramento ou modalidade de Avaliação de Impactos Ambientais, e que tem
papel fundamental na avaliação de impactos ambientais de empreendimentos desenvolvidos
nos centros urbanos, consiste precisamente no Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), que
também é um instrumento associado à PNMA (embora não conste explicitamente no texto
legal com esse nome). O Estudo de Impacto de Vizinhança, então, se aplica para o estudo de
impactos ambientais urbanos, cujos efeitos podem ser estritamente localizados no tecido urbano
ou, ainda, podem se estender para um âmbito maior, impactando também sistemas viário e de
tráfego urbano, por exemplo.
A elaboração do Estudo de Impacto de Vizinhança é fundamental no âmbito do licen-
ciamento ambiental e urbanístico de empreendimentos urbanos, não apenas como alternativa de
avaliação de impactos, mas também por seu caráter pedagógico e por ser um instrumento para
a mobilização e a participação comunitária (MILARÉ, 2011, p. 507).
Seguindo a mesma lógica do Estudo (prévio) de Impacto Ambiental (EIA), que cer-
tamente é o mais conhecido dos instrumentos de Avaliação de Impactos Ambientais, os docu-
mentos relativos ao Estudo de Impacto de Vizinhança deverão ter publicidade e permanecer
disponíveis para consulta de qualquer interessado, de modo a suscitar e possibilitar a mobiliza-
ção da comunidade e a participação democrática desejada pelo Estatuto da Cidade (MILARÉ,
2011, p. 676).
Feita esta breve contextualização acerca da importância e, mais que isso, da impres-
cindibilidade de uma avaliação de impactos ambientais adequada ao se analisar a viabilidade
socioambiental de determinado empreendimento proposto para área urbana, serão apresentados
a seguir alguns pontos do processo de licenciamento ambiental do empreendimento objeto deste
estudo que, ao menos à primeira vista, se mostraram deficientes nesse fundamental aspecto.
O empreendimento em comento está sendo licenciado pelo órgão ambiental municipal
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
em virtude de seu enquadramento como atividade de impacto ambiental baixo e local pela le-
gislação vigente. Na forma do disposto no art. 1º, da Resolução CONEMA nº 42/2012, conside-
ra-se impacto ambiental de âmbito local qualquer alteração direta ou indireta das propriedades
físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, que afetem a saúde, a segurança e o bem-estar
da população; as atividades sociais e econômicas; a biota; as condições estéticas e sanitárias
do meio ambiente; e/ou a qualidade dos recursos ambientais, dentro dos limites do Município.
Nos termos da mesma norma, não se considera de âmbito local o impacto ambiental
quando: (i) sua área de influência direta ultrapassar os limites do Município; (ii) atingir ambiente
81
marinho ou unidades de conservação do Estado ou da União, à exceção das Áreas de Proteção
Ambiental; (iii) a atividade for listada em âmbito federal ou estadual como sujeita à elaboração
de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e respectivo relatório de impacto ambiental (RIMA).
Referido processo de licenciamento ambiental foi instaurado em outubro de 2012, me-
diante requerimento direto de Licença de Instalação (LI), sendo apenas posteriormente con-
vertido em requerimento de Licença Ambiental Prévia (LP), que é a licença adequada para a
fase preliminar do planejamento do empreendimento, aprovando sua localização e concepção,
atestando sua viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a se-
rem atendidos nas próximas fases de sua implementação, nos termos da Resolução CONAMA
nº 237/97.
Pela previsão contida no art. 28 da Lei Municipal nº 2.022/2006, o executivo municipal
somente pode expedir alvará de localização e licença de construção e de funcionamento, ou
quaisquer outras licenças solicitadas por atividades potencial ou efetivamente poluidoras, me-
diante apresentação das licenças ambientais. Essa disposição, ao que parece, não foi observada
no caso em tela, uma vez que o Alvará de Licença para construção do empreendimento foi con-
cedida ao interessado quase dois anos antes da emissão da Licença Ambiental Prévia.
Pelo histórico de análise registrado no processo de licenciamento ambiental, até a con-
cessão da Licença Ambiental Prévia, também não se verifica muita importância à efetiva ava-
liação dos impactos ambientais relacionados à instalação do Shopping Center, muito embora o
mesmo pretenda ocupar área central do município de Duque de Caxias, onde já são observados
graves problemas de mobilidade urbana, abastecimento de água e grande fluxo populacional.
A dificuldade relatada pelo FORAS para ter acesso ao conteúdo do processo de li-
cenciamento ambiental do empreendimento e a outros documentos que, a rigor, deveriam ser
de acesso público, como o Estudo de Impacto de Vizinhança, por exemplo, bem como a não
realização/convocação de audiência pública pelo ente municipal licenciador, igualmente sinali-
zam deficiências no cumprimento da legislação, agora quanto à participação da comunidade na
discussão e análise do projeto de instalação do empreendimento em questão.
Importante notar que a própria Secretaria Municipal de Meio Ambiente, em parecer
elaborado por sua equipe técnica em março de 2013, aponta diversos impactos do empreen-
dimento que deveriam ser considerados na análise de sua viabilidade socioambiental. Nesse
parecer, por exemplo, há registro de realização de vistoria onde foi constatada grande extensão
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
ocupada por vegetação bastante densa e característica de sucessão média ou média avançada, o
que demandaria a realização de vistoria confirmatória conjunta com o INEA, que não ocorreu
até aqui.
Foi também observado no parecer que os danos ambientais relacionados à implantação
do empreendimento podem vir a ser de média magnitude regional, tendo em vista que a su-
pressão de vegetação interfere no microclima da região e o volume de resíduos a serem gerados
pelo corte do terreno. A equipe técnica do órgão municipal destacou ainda o impacto viário na
região a ser causado pela movimentação do solo, com previsão de constantes congestionamen-
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tos, sendo registrado que, após a conclusão do empreendimento, o impacto será causado pelo
aumento de veículos.
Também vale mencionar a preocupação registrada no parecer em relação à drenagem
pluvial e ao esgotamento sanitário da região do empreendimento, sendo destacado que a rede
existente não suportará a vazão da água de chuva relacionada à área de impermeabilização, o
que demandará um “forte investimento na área do Centro”, para macrodrenagem e até mesmo
inclusão de caixa de retardo no projeto do Shopping; etc.
Em relação à área de grande extensão ocupada por vegetação (também citada no pa-
recer), reside nesse aspecto uma das principais deficiências observadas quanto à avaliação dos
impactos ambientais do projeto em questão. Isso porque a referida cobertura vegetal, que confi-
gurava um espaço de área verde sem similar no centro do município de Duque de Caxias, já foi
suprimida pelo empreendedor durante o período da Copa do Mundo de 2014, de forma ilegal e
praticamente clandestina.
Pode-se de dizer que a supressão dessa vegetação se deu de forma ilegal e ilegítima
em razão dos diversos vícios verificados no processo onde foi emitida a respectiva Autorização
de Supressão de Vegetação. Dentre os vícios verificados, destacamos os seguintes: 1) a data do
parecer de supressão é posterior à data de emissão da autorização; 2) o próprio órgão municipal
emitiu Auto de Notificação, determinando a suspensão da Autorização de Supressão de Vege-
tação, embora posteriormente tenha voltado atrás nessa decisão.
Alem disso, não consta no processo qualquer registro de que tenha sido solicitada a
anuência prévia do INEA (órgão ambiental estadual) para a emissão da Autorização de Supres-
são. Tal anuência prévia se fazia necessária no caso em razão de haver indícios da presença de
resquício de Mata Atlântica no local, segundo os levantamentos de dados realizados na área
antes da supressão. Nesse caso, a legislação vigente prevê que a supressão somente pode ser
autorizada pelo órgão municipal mediante anuência prévia do INEA, fundamentada em parecer
técnico, na forma do art. 5º, do Decreto Estadual nº 42.050/2009, com a alteração trazida pelo
Decreto Estadual nº 42.440/2010, e do art. 14 da Resolução CONEMA nº 42/2012.
Outro ponto que merece atenção é a diferença de diagnóstico entre o primeiro Re-
latório Técnico de Inventário Florestal, apresentado em agosto de 2012 pela empresa ideali-
zadora do empreendimento, e o Censo Florístico – Parecer Técnico, contratado pela mesma
empresa, datado de agosto de 2013. Tais documentos possuem inconsistências em aspectos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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Supressão, de modo que a inconsistência de diagnóstico anteriormente relatada, sem dúvida,
pode ter comprometido, também nesse aspecto, a avaliação realizada pelo órgão ambiental mu-
nicipal quanto aos impactos ambientais do empreendimento.
legislação municipal. É o caso, por exemplo, da Portaria SMMAA nº 011, de 17/12/2012, cujo
art. 2º, I, exige autorização do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente (CONDEMA)
8 Com relação à exigibilidade de audiência pública no caso concreto em questão, não há como deixar de levar
em consideração, na esfera tanto jurídica quanto de gestão pública, o fato da coleta de quase 6.000 assinaturas de
moradores de Duque de Caxias, que se declararam contrários ao empreendimento em questão, comprovadas em
juízo e junto ao MP/RJ pelo movimento FORAS. Trata-se de fato determinante da realização de audiência pública
por iniciativa do próprio município, independente de qualquer solicitação expressa, uma vez que incontestável
que não se trata de projeto consensual entre a população a ser impactada por ele, sem falar no caráter pedagógico,
informativo e preventivo de futuros conflitos que a referida audiência pode desempenhar.
84
para “supressão igual ou superior a dez indivíduos arbóreos, dentro dos limites do 1º distrito”,
devendo, ainda, a compensação dessa supressão dar-se a uma distância de no máximo 300 me-
tros do local onde ocorreu a supressão.
É o caso, ainda, do Plano Diretor de Duque de Caxias, cujo art. 9º, acima citado, acres-
ce a exigência de oitiva do Conselho Municipal de Desenvolvimento da Cidade de Duque de
Caxias (CONCIDADE), que deve ser notificado para manifestar a respeito da licença requerida,
no âmbito do processo administrativo, antes da tomada de decisão por parte do órgão licencia-
dor. Trata-se de providência inarredável, dados os termos do Plano Diretor, o caráter cogente de
suas normas, o seu status constitucional, bem como a relevância constitucional dos princípios
da transparência e da participação popular, que regem toda a gestão da coisa pública e que en-
contram nessa exigência uma das formas de sua satisfação.
Reforça-se a exigibilidade de tal etapa do licenciamento na medida em que o Plano
Diretor - art. 130, I - delegou poderes ao Prefeito para compor e instalar o CONCIDADE por
meio de Decreto, bem como assinou-lhe, para tanto, um prazo de 90 dias, a contar da vigência
do Plano, prazo já ultrapassado há mais de sete anos, sem que tenha sido atendido, induzindo-se
à hipótese do não comprometimento do Poder Executivo municipal com a implementação do
Plano Diretor, repita-se, “o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão ur-
bana”, nos termos da carta republicana de 1988, e reiterada pela Constituição Estadual de 1989.
Em face da ausência desse Conselho, em virtude da injustificável mora do Poder Exe-
cutivo quanto à sua instalação, a única conclusão que se nos afigura possível, diante dos fatos,
é a da inviabilidade jurídica da concessão de licença ambiental pelo município, ao menos na
hipótese prefigurada no art. 9º do Plano Diretor, que se aplica ao caso concreto sob exame,
que, como já dito, é a das operações de movimentação de terra - tais como aterro, desaterro e
“bota-fora” - para execução de obras públicas ou privadas. Nesse caso, a competência para o
licenciamento se deslocaria para o Estado do Rio de Janeiro, em caráter supletivo, solução pre-
conizada pelo art. 15, II da Lei Complementar Federal nº 140/2011.
Aliás, este é outro ponto em que resta ferido o devido processo legal no caso em ques-
tão, uma vez que, em nenhum momento, foram ouvidos os órgãos ambientais dos demais entes
federativos - Estado do Rio de Janeiro e União Federal - que não têm competência originária
para o licenciamento em questão, podendo, no entanto, manifestarem-se no processo de ma-
neira não vinculante (art. 13, § 1º, da LC 140/2011), o que a doutrina majoritária tem entendido
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
como poder-dever do órgão licenciador competente, e não como faculdade discricionária, dada
a relevância do direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao prin-
cípio da cooperação federativa.
Em síntese, constata-se, nos processos administrativos relacionados ao caso,9 o não
atendimento dos procedimentos acima elencados, incidindo em grave violação da cláusula
constitucional do devido processo legal, uma vez que em todos se encontra patenteada a emis-
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são de diversas licenças - de construção, prévia, de supressão de vegetação, de escavação e
terraplanagem - antes da conclusão de todas as etapas inerentes e obrigatórias ao processo de
licenciamento.
Isto sem falar a outros problemas dessa mesma ordem, como o não acesso público à
integra dos processos em curso10, a não abertura de oportunidade para que a coletividade possa
se manifestar formalmente no âmbito dos mesmos, além da inconsistência da numeração dos
processos, que possuem folhas faltantes e em duplicidade, como verificado a partir da docu-
mentação entregue aos representantes do movimento FORAS.
Outro aspecto do caso sob exame, que também consideramos atentatório à cláusula do
devido processo, diz respeito ao modo como foi aplicado o instrumento da outorga onerosa do
direito de construir.
Trata-se de instrumento previsto no Plano Diretor - artigos 79 a 81 - e regulamentado
pelo Decreto nº 6.200, de 30/05/2012. Desde logo, diga-se que tal formato é incompatível com
o disposto no Estatuto da Cidade, em especial em seu art. 30, que exige que tal regulamenta-
ção - rectius, o regramento das condições da outorga, definindo fórmula de cálculo, modos de
pagamento, casos de isenção e destinação dos recursos, o que, a rigor, excede o que costuma
se definir como o exercício do mero “poder regulamentar” - se dê forçosamente mediante lei
municipal específica. Assim, fica o Decreto municipal nº 6.200/2012, a despeito de seu conteú-
do, exposto a ser arguída a sua ilegalidade, em face da lei nacional de desenvolvimento urbano.
Já no que tange ao conteúdo desse decreto, registre-se, apenas ad argumentandum, a
obscuridade da fórmula de cálculo adotada em seu art. 5º, que não permite ao intérprete en-
tender, com clareza, como se objetivam cada um dos seus respectivos componentes, sem falar
no fato de que a definição de um deles fica delegada a ato da Secretaria Municipal de Obras,
agravando ainda mais o problema que antes assinalamos, relacionado à violação do princípio
da legalidade.
No entanto, no caso em questão, paradoxalmente, é um outro aspecto que mais nos
causa espécie. Conforme informações extraídas do processo administrativo 17.113/2012, o em-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
10 Nos documentos repassados ao movimento FORAS faltam várias páginas dos processos em curso.
11 Abstrairemos, aqui, da complementação de valores que ocorreu a posteriori, por irrelevante para o argumento ora desenvolvido.
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rosa foi recolhida antes mesmo da regular tramitação e apreciação dos competentes pedidos de
licença urbanística e ambiental. Ora, em nossa compreensão, a legislação determina que suceda
precisamente o oposto: o recolhimento da outorga onerosa pressupõe processo de licenciamento
concluído, com decisão favorável e condicionantes atendidos, do contrário não há projeto viável
a ser executado. Em não havendo projeto viável a ser executado, nada justifica o recolhimento
da contraprestação devida à municipalidade pelo exercício da faculdade de edificar. Em outras
palavras, antes que se constitua juridicamente um direito de construir em favor do empreende-
dor, resta indevido o pagamento de qualquer contraprestação a administração a pretexto dessa
mesma causa.
A outorga onerosa seria comparável, nesse sentido, à obrigação do loteador em trans-
ferir ao município uma certa parcela da gleba objeto do projeto de loteamento, o que deve fazer,
do mesmo modo, a título de contraprestação à coletividade, exigível em nome da qualidade de
vida na cidade e como captura parcial da valorização que decorre do aproveitamento do terre-
no, tal como facultado pela legislação. Ora, o loteador somente perde as áreas objeto de doação
compulsória a partir do momento em que não somente o projeto de loteamento é licenciado pelo
município, mas, também, levado a registro. Assim, não há hipótese do pagamento de qualquer
contraprestação antes da regular análise e aprovação do projeto de loteamento e emissão de
licença em favor do empreendedor.
Não há como suceder de modo diferente no caso da outorga onerosa. Somente após a
conclusão, com êxito, do licenciamento poderia o empreendedor ser regularmente notificado a
recolher a contraprestação devida, sendo possível, aí sim, atribuir à sua eventual mora o efeito
de revogação automática da licença. Admitir a possibilidade de subversão dessa ordem - como,
concretamente, o fazem os artigos 2º e 3º, caput, do Decreto 6.200/12 - seria solução incompa-
tível com a finalidade e a função do licenciamento, no qual, como antes sustentamos, não há
direito líquido e certo em favor do empreendedor à obtenção da licença requerida, a não ser
que partamos de ultrapassadas noções de gestão da cidade em moldes privatistas, nos quais o
ente público não passa de mero “carimbador” dos projetos privados de uso do espaço público
urbano, como é o caso de seu espaço aéreo. A legislação brasileira em vigor, sabiamente, vai
em outra direção, mandando, inclusive, aos órgãos licenciadores que considerem a chamada
“opção zero”, isto é, a hipótese de não execução do projeto para o qual se requer a licença - vide
art. 5º, I, da Resolução CONAMA nº 1, de 1986.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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Decreto 6.200/12, ora questionado, foi editado poucos dias após o requerimento de licença por
parte da ABL, induzindo-se à crença de que foi feito à vista especificamente do caso desse em-
preendimento, vulnerando-se o crucial princípio da impessoalidade na gestão da coisa pública.
Em outras palavras, o procedimento institucionalizado pelo Decreto 6.200/12 sugere
um processo de compra de licenças por parte do empreendedor ou, no mínimo, de substituição
concreta do licenciamento pelo recolhimento da outorga onerosa, que acaba valendo como se
fosse licença urbanística e ambiental. Ocioso arrematar que isso atinge as próprias noções de
moralidade e de finalidade públicas, além de reafirmar o esvaziamento concreto do processo de
licenciamento em sua função de avaliação e decisão, à luz do interesse público, a respeito de
empreendimentos de impacto ambiental significativo.
Uma das estratégicas políticas de atuação do FORAS foi a de buscar levar ao judiciário
os questionamentos de ordem jurídica que tinha a respeito do projeto em questão. Neste senti-
do, encontram-se em tramitação, na data da conclusão do presente estudo, três processos que
judicializam o conflito.
A primeira medida tomada foi representar junto ao Ministério Público estadual, atra-
vés do seu órgão de tutela coletiva, a fim de que se instaurasse um Inquérito Civil. Essa repre-
sentação noticiava a intenção de construção do Shopping e as irregularidades de que se tinha
conhecimento no processo de licenciamento. Deu-se mais ênfase à falta de publicidade dos
atos administrativos, à concessão de uma licença e ao recolhimento de pagamento relacionado
ao exercício do direito de construir (“outorga onerosa do direito de construir”, nos termos do
Estatuto da Cidade) sem a apresentação dos estudos urbanos e ambientais previstos em lei e
à necessidade de proteção da Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto, edifício vizinho à futura
construção, que é prédio de interesse histórico e tem sobre si pedido de tombamento em tra-
mitação há algum tempo junto à Prefeitura de Duque de Caxias, porém, ainda não apreciado.
Ainda sem notícias de real providência por parte do Parquet estadual, ajuizou-se, atra-
vés de uma associação integrante do FORAS, uma vez que este não possui personalidade ju-
rídica, uma Ação Cautelar Inominada, com pedido de liminar, distribuída em 16/06/2014 para
a 1ª Vara Cível de Duque de Caxias,12 em desfavor do Município de Duque de Caxias e da em-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
presa ABL Shopping. A ação pede, em sede de antecipação de tutela, a suspensão da eficácia
da Licença de Constrição até a decisão do processo de tombamento da Escola Municipal Dr.
Álvaro Alberto e até que sejam apresentados o Estudo de Impacto de Vizinhança, o Estudo de
Impacto Ambiental e seus respectivos Relatórios. No mérito, o pleito é pela anulação da Licença
de Construção. A ação aponta, como causa de pedir, os mesmos problemas relatados na Repre-
12 Processo nº 0034147-96.2014.8.19.0021, que pode ser acompanhado através do link: http://www4.tjrj.jus.br/consultaProcessoWebV2/
consultaMov.do?v=2&numProcesso=2014.021.033071-5&acessoIP=internet&tipoUsuario=
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sentação. Intimado o Ministério Público Estadual, para atuar no processo como fiscal da lei,
este entendeu ser o caso de abrir um Inquérito Civil Público para analisar melhor a existência
das irregularidades ventiladas no processo judicial. Quanto à Ação Cautelar, determinou o juízo
que o pedido liminar somente será apreciado quando da resposta de ambos os réus e de nova
promoção ministerial, o que ainda não ocorreu.
O alhures citado Inquérito Civil (nº MMPRJ 2013.00467420) discutiu bastante o pro-
cedimento de concessão da licença e a validade dos estudos prévios, sem, no entanto, chegar
a qualquer conclusão. Importante citar que este IC mistura uma investigação já feita sobre um
outro projeto de shopping que se pretende construir, diverso do empreendimento questionado
pelo FORAS e localizado em região completamente diversa do município de Duque de Caxias,
às margens da Rodovia Washington Luís.
Como mais um instrumento para tentar evitar o avanço das obras, o FORAS, nova-
mente através de uma das associações que o integram, impetrou um Mandado de Segurança
com pedido de liminar.13 A autoridade coautora apontada foi o Secretário do Meio Ambiente,
Agricultura e Abastecimento, e o ato impugnado foi a supressão total de 167 (cento e sessenta e
sete) árvores no terreno onde se pretende construir o shopping, sendo algumas destas árvores,
espécies nativas da Mata Atlântica. A ilegalidade da supressão é latente e transparece nos as-
pectos já elencados no capítulo anterior.
Assim, o mandamus distribuído no dia 07/11/2014 para a 6ª Vara Cível de Duque de
Caxias,14 objetiva, liminarmente, a suspensão das próximas etapas de instalação do Shopping,
pedido este a ser confirmado quando da apreciação do mérito. O juízo limitou-se, em um pri-
meiro momento, a requerer comprovação dos requisites necessárias à concessão da gratuidade
de justiça e, uma vez atendida essa exigência, a remeter os autos ao Ministério Público, sem se
manifestar sobre a medida liminar requerida. O Parquet devolveu o processo com uma mani-
festação que o juízo determinou que se atenda. No entanto, como este despacho não foi ainda
publicado, não se sabe o teor da promoção ministerial15.
O processo (até aqui) mais eficaz, no sentido de ter permitido, ainda que timidamente,
alguma apreciação do mérito do conflito, talvez seja a Ação Civil Pública proposta pelo Mi-
nistério Público Estadual através de seu órgão de Tutela Coletiva.16 O objeto dessa Ação é a
proteção da Escola Municipal Dr. Álvaro Alberto. Advoga-se que esta, mesmo sem ser um bem
tombado, merece proteção. É que a Lei Orgânica duquecaxiense prevê, de maneira inovadora,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
proteção integral aos bens de valor histórico, mesmo que não haja processo de tombamento.
Uma das medidas protetivas que então seria automaticamente estabelecida consistiria, preci-
samente, na preservação do entorno desse bem, num raio mínimo de 50m (cinquenta metros),
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o que impediria, portanto, a construção de um grande edifício, que violaria o entorno do bem
tombado e a ambiência cultural aí concebida.
Cabe ressaltar que um dos grandes motivadores da propositura desta Ação foi a pres-
são popular liderada pelo FORAS, que insistiu para que o órgão estatal, na qualidade de fiscal
da lei, se posicionasse diante deste conflito urbano. Uma vez marcada a data para a primeira
audiência de conciliação no âmbito desse processo, envolvendo Ministério Público, ABL Sho-
pping e o Município, o FORAS diligenciou no sentido de que outro de seus integrantes deman-
dasse o ingresso no feito como terceiro interessado, habilitando-se assim a intervir no deslinde
da ação. No entanto, para surpresa de todos, antes mesmo da audiência de conciliação, as partes
se reuniram, sem a presença do FORAS ou de qualquer representante da sociedade civil, e fir-
maram acordo com o propósito de encerrar a lide.
Tal acordo, feito na forma de um Termo de Ajustamento de Conduta, prevê, em aper-
tada síntese, que a ABL Caxias Empreendimentos e Participações S.A.: (1) reparará qualquer
dano que seja causado à Escola durante a construção; (2) custeará as obras de manutenção, res-
tauração e conservação da Escola e; (3) submeterá ao Ministério Público o projeto de engenha-
ria do Shopping. Já o Município de Duque de Caxias se comprometeu a não conceder qualquer
nova licença – urbanística ou ambiental – que acarrete impactos negativos à preservação da
Escola. Tendo em vista a Transação feita pelas partes, o processo foi retirado de pauta e o juízo
determinou que as partes se manifestassem acerca do pedido de ingresso no feito do SEPE, es-
tando os autos remetidos ao Parquet estadual. As petições do FORAS questionando a validade
do Termo de Ajustamento de Conduta, por falta de oportunidade para que ele, e a sociedade
civil em geral, se pronunciasse sobre a Transação, antes de sua homologação, ainda não foram
juntadas aos autos.17
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A título de avaliação preliminar, os autores deste estudo entendem que o caso sob exa-
me é bastante ilustrativo das grandes dificuldades e obstáculos à efetividade da política urbana
traçada em sede constitucional, em que pese o fato de estar em vigor há mais de um quarto de
século.
Muito embora tenha sido “decantada em verso e prosa” por juristas, juízes, autorida-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
des governamentais, lideranças políticas, etc., os seus resultados efetivos, no âmbito das políti-
cas urbanas atualmente praticadas, ainda se mostram significativamente limitados, no sentido
da realização de suas pautas fundamentais: o direito à cidade (amplamente compreendido), a
função social da propriedade e a gestão urbana em bases justas, democráticas, transparentes,
participativas e sustentáveis.
À luz do caso estudado, pode se afirmar que, no “ frigir dos ovos” da tomada de deci-
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sões, acabam falando mais alto interesses não condizentes com os princípios e valores que vêm
sendo consagrados no âmbito do “novo direito urbanístico brasileiro”, emergente no período
pós-88. Os apelos relacionados ao desenvolvimento econômico, ao aumento de arrecadação, à
geração de empregos, mesmo quando de muito discutível factibilidade e confiabilidade (como
nos parece ser o caso!), acabam funcionando como imperativos absolutos. Ganham muito mais
força quando a eles se articulam os símbolos de modernidade, progresso e “urbanidade” vendi-
dos pelo mercado capitalista contemporâneo. E aqui não chegamos sequer a falar dos aspectos
criminógenos que ainda envolvem a operação da administração pública, tais como os benefícios
ilícitos oferecidos aos gestores de todos os níveis, pelos detentores do poder econômico interes-
sados em grandes empreendimentos privados. Não é de se descartar a possibilidade da atuação
desse fator, primeiramente, em função de sua generalização, e, em segundo lugar, em face das
suspeitas que emergem do cipoal de graves irregularidades encontradas no caso estudado.
No dia-a-dia de muitas administrações públicas, ainda hoje, reproduz-se – lamentavel-
mente! – a clássica relação autoritária entre Estado e sociedade, agravada quando, do lado da
sociedade, apresentam-se movimentos populares, representativos de segmentos sociais subal-
ternizados, com baixo capital político e/ou econômico.
Reproduz-se, também, a violação sistemática da ordem jurídica, que se mostra sem
força suficiente para coibir os abusos de poder praticados pelos encarregados da gestão da
coisa pública. Tais violações – insistimos, lamentavelmente! – não têm encontrado controle
adequado por parte dos órgãos encarregados de sua fiscalização e sanção, desde órgãos do
chamado “controle interno”, ou do poder legislativo (e órgãos de contas incumbidos de lhes
auxiliar), chegando até o próprio poder judiciário, passando pelo Ministério Público. No caso
aqui estudado, observa-se que, nem mesmo após a instauração de diversas medidas judicias e/
ou de apuração dos fatos, se pôs cobro às inúmeras e graves irregularidades vislumbradas nos
processos administrativos em andamento, que constituem a face visível da legitimação dos
grandes empreendimentos, tais como aquele objeto do presente estudo. Ao contrário de coibir
as irregularidades aqui escaneadas, e de exigir as respectivas responsabilidades, os aludidos
órgãos parecem ratifica-las e legitimá-las, desestimulando a população a resistir aos interesses
que movem o Estado e os agentes econômicos, de cuja articulação emerge um bloco hegemôni-
co que parece desconhecer qualquer tipo de limite. Mais do que nunca, parecemos estar diante
de evidências eloquentes do que há algum tempo vem sendo estudado sob o conceito de estado
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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jurídica quanto do aparelho do Estado, o que alguns designam como “mundo institucional”. Ao
longo das atividades realizadas em parceria com o movimento FORAS, pudemos testemunhar
o crucial papel pedagógico que este vem exercendo no município duquecaxiense – e, hoje, até
mesmo fora dele! – servindo como canal para fazer despertar na população a percepção tanto da
gravidade da questão urbana contemporânea, quanto dos direitos urbanos – e humanos! – que
vem sendo violados.
Assim, se algum papel a universidade pública tenciona desempenhar no sentido da rea-
lização do projeto constitucional, ao menos naquilo que ele tenha de efetivamente democrático
e de justiça socioespacial, não nos resta dúvida de que o seu caminho é o de estreitar os seus la-
ços com movimentos dessa natureza, desenvolvendo e repensando, a partir de uma interlocução
renovadora com esses agentes sociais, os seus projetos de ensino, pesquisa e extensão.
REFERÊNCIAS
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 11. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18. ed. São Paulo:
Malheiros, 2010.
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: a gestão ambiental em foco. 7. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2011.
ROCCO, Rogério. Estudo de impacto de vizinhança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 1998.
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Recebido em 22 abr. 2015
Aceito em 23 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
O Brasil vive hoje uma expectativa muito grande, de entrar para o rol dos países tidos
como desenvolvidos. Ter ficado por décadas sob o rótulo de “país em desenvolvimento” sempre
incomodou as elites e os governantes brasileiros. Sem sombra de dúvidas o Brasil hoje é uma
grande potência econômica, tendo superado recentemente, em termos de PIB, a Inglaterra,
ocupando atualmente o posto de sexta maior economia do mundo. No entanto, afastando-se dos
principais centros econômicos e financeiros do país, percebe-se mais nitidamente que se trata
de um país de desigualdades. Desigualdades estas que se manifestam em diversas frentes, tais
como saúde, educação, moradia, previdência, meio ambiente, lazer, cultura, entre outras.
Serão abordadas neste breve ensaio questões relacionadas ao sistema público de educa-
ção existente no Brasil, mostrando como este não está sendo apto a erradicar a pobreza, a mar-
ginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais deste país, do modo que deveria
fazer para dar cumprimento ao preceituado no artigo 3º, inciso III da Constituição brasileira.
Na exposição que será feita a seguir, abordaremos inicialmente a questão dos direitos humanos
e seu grande propósito, qual seja, a realização da dignidade da pessoa humana, para em seguida
tratar do direito humano à educação e também da questão da educação, como instrumento de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
* Doutorando em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa (Portugal), Mestre em Direito Constitucional pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
** Aluno do Doutorado Direito Constitucional pela Universidade de Buenos Aires (Argentina), Mestre em Direito Público pela Universida-
de Federal do Rio Grande do Norte, Professor do Curso de Direito da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
93
levando em consideração as perspectivas do desenvolvimento econômico e do desenvolvimento
social. No entanto o amadurecimento da discussão ocorre com a discussão final sobre as pers-
pectivas para um Brasil com educação de qualidade.
Sabe-se que as revoluções, americana (1776) e francesa (1789), além da segunda guerra
mundial (1939-1945) foram os principais motores que levaram ao impulsionamento da positiva-
ção dos direitos humanos nos principais textos constitucionais do mundo ocidental. Trata-se de
direitos imprescindíveis para que se tenha um mínimo de dignidade humana1. Segundo amplo
entendimento da doutrina, os direitos humanos, quando positivados nas Leis Fundamentais dos
Estados recebem a denominação de direitos fundamentais2. Por esta razão, pode-se afirmar que
os direitos fundamentais são, na verdade, direitos humanos positivados.
É possível também afirmar que todos os direitos fundamentais são direitos humanos
(direitos dos homens), mas nem todos os direitos humanos são fundamentais, pois neste último
caso dependerá de ser assim considerado por cada ordenamento jurídico (por cada Estado).
Ademais, as normas de direitos humanos possuem um caráter universal, ou seja, é aplicável a
todos os povos da Terra. Por esta razão chamam-na de normas supranacionais, e têm como base,
Tratados e Convenções internacionais.
Sobre esta questão, o professor Jorge Miranda destaca que em direito internacional,
tende a prevalecer o termo: direitos do homem – ou o termo proteção internacional dos direitos
do homem – em parte, por assim, ficar mais clara a atinência dos direitos aos indivíduos, e não
aos Estados ou a outras entidades internacionais, e, em parte, por ser menos extenso o desenvol-
vimento alcançado e procurar-se um “mínimo ético” universal ou para-universal. (MIRANDA,
2008, p.15)
Não se vê propósito maior nos direitos humanos senão na proteção do indivíduo contra
posições autoritárias do Estado e até mesmo de outros indivíduos em prejuízo de sua dignidade.
Outra característica dos direitos humanos é que são inalienáveis3, ou seja, os indiví-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 Segundo Eliane Ferreira de Sousa, a categoria dignidade pode ser compreendida como qualidade daquele que é digno, superior, merece-
dor de respeito e de consideração. A dignidade humana não pode ser mensurada em valor monetário, não pode ser substituída por qualquer
outra coisa. Apesar disso, há dificuldade em se dar uma densidade jurídica ao conceito de dignidade humana. Qual seria seu conteúdo?
Sem dúvida, respeito à vida, à integridade física e psíquica, à consciência, a intimidade, o direito de ir e vir, à liberdade de expressão, de
pensamento, de criação, de associação, de opinião, entre outros. (SOUSA, 2010, pág. 32.)
2 Sobre esta questão Ingo Sarlet explica: “Em que pese sejam ambos os termos (‘direitos humanos’ e ‘direitos fundamentais’) comumente
utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é de que o termo ‘direitos fun-
damentais’ se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de deter-
minado Estado, ao passo que a expressão ‘direitos humanos’ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se
àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter
supranacional (internacional)”. (SARLET, 2006, p. 35 e 36.)
3 Consta do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1949 que: “Considerando que o reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo, (...)”.
94
duos beneficiários destes direitos não podem deles dispor em favor de quem quer que seja, sem
que haja violação à sua dignidade pessoal. Este fato por si só revela a dimensão destes direitos
no contexto de qualquer ordem estatal.
Neste país de desigualdades, uma das poucas opções lícitas para que um “excluído”
possa ser incluído no sistema produtivo nacional é através do acesso a uma educação de quali-
dade que possibilite a tal indivíduo a superação dos obstáculos que o separa de uma vida digna.
Em face desta realidade, discorreremos nos itens a seguir sobre a importância vital da educação
como instrumento capaz de transformar a realidade do país e de proporcionar o amadurecimen-
to da democracia e da cidadania, indispensáveis para a garantia de uma ordem jurídica justa e
sustentável.
4 Constituição da República Portuguesa – “art. 73: 1. Todos têm direito à educação e à cultura; 2. O Estado promove a democratização da
educação e das demais condições para que a educação, realizada através das escolas e de outros meios formativos, contribua para a igual-
dade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito
de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na
vida coletiva”.
95
abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao
desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo
educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exer-
cício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do
ideal democrático (MELLO FILHO, 1986, p. 533).
Diante das considerações feitas até então acerca da educação, percebe-se seu nítido
formato de direito humano, uma vez que atrelada ao direito à educação estão outros direitos
econômicos e sociais, o que faz deste um centro irradiador de conhecimentos que permitem às
pessoas, de um modo geral, verem concretizados outros direitos, sociais ou econômicos.
Trata-se, pois, a educação, como um direito fundamental de segunda geração. Como se
sabe, a ideia maior que subjaz à concepção dos direitos de primeira geração é liberdade. No caso
dos direitos fundamentais de segunda dimensão (ou geração), a ideia central é a igualdade5.
Através de intervenções estatais na ordem social, o Estado buscava equilibrar a balança que se
desequilibrara sob a batuta do liberalismo pós-revoluções burguesas dos séculos XVIII e pós-
-revolução industrial. Entre as intervenções que se mostraram necessárias havia o investimento
em um ensino público de qualidade, como forma de garantir a inserção de grupos e classes
sociais menos favorecidos no mercado de trabalho.
A distinção doutrinária que se faz entre o que seriam direitos humanos e o que seriam
direitos fundamentais está pautada em sua materialização ou não de seus comandos normati-
vos. Os direitos fundamentais são aqueles direitos considerados como indispensáveis para uma
determinada ordem estatal, e, por tal razão, são inscritos na normal fundamental do Estado,
sua Constituição. Desta forma, direitos fundamentais são aqueles direitos positivados na ordem
constitucional, ou seja, delimitados pela cultura e costumes de uma determinada sociedade,
por intermédio dos responsáveis pela feitura deste documento. Já os direitos humanos consti-
tuem todos aqueles direitos intimamente ligados ao valor dignidade da pessoa humana. Estes
direitos são universais, ou seja, não estão vinculados aos costumes e cultura de determinadas
sociedades. Por esta razão, os direitos humanos são inalienáveis, ou seja, não estão à disposição
exclusiva do constituinte. Diante desta explicitação, percebe-se que os direitos humanos são
mais amplos. No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 coloca de forma bem clara ser
a educação um direito fundamental.
Neste sentido, como bem recorda Motauri Ciocchetti de Souza, o direito à educação
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
5 “A igualdade passa a ser um elemento qualificador e essencial da democracia, e acima de tudo, sua acepção substancial, princípio de
superação de obstáculos de ordem econômica e social. O princípio da igualdade reclama a ideia de responsabilidade social e integrativa dos
titulares de direitos, a partir de uma concepção proporcional, sendo sua aplicação um elemento para o balanceamento das relações sociais
e jurídicas, impedindo-se que as desigualdades, por não terem um tratamento diferenciado e proporcional à desigualdade, traduzam uma
efetiva desigualdade nas relações jurídicas.” (SCHÄFER, 2005, pág. 27).
96
1988 prescreve a educação como direito de todos e dever do Estado e da família. Em face destas
considerações conclui este autor que o art. 205 contém uma declaração fundamental que, com-
binada com o art. 6º eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem (SOUZA,
2010, p. 19-20).
Por se tratar de um direito humano fundamental, a educação deve ser promovida pelo
Estado de modo que o mínimo existencial possa ser assegurado à população brasileira. Neste
sentido, o mínimo existencial representa o conjunto de condições que propiciam a realização de
uma vida digna, ou em outros termos, que proporcionam a satisfação das necessidades básicas
da população de modo a se garantir um mínimo de felicidade. Inserida neste diapasão, a educa-
ção se impõe como um dos elementos que constituem este mínimo existencial, na medida em
que se coloca como pré-requisito essencial para a realização e aprimoramento de outros direitos
fundamentais.
Sobre a questão do mínimo existencial, no que toca ao sistema educacional brasileiro,
Eliane Ferreira de Sousa destaca que apesar de sua inquestionável importância se faz neces-
sária a existência de condições materiais para sua efetivação. Segundo esta autora, no Brasil,
por exemplo, o mínimo tem sido ignorado pelas autoridades estatais, como no caso do direito
à educação fundamental, cuja parcela integrante do mínimo existencial não está somente para
atender aos ditames da Constituição, mas porque a educação é pré-requisito para a concretiza-
ção de outros direitos fundamentais (SOUSA, 2010, p. 30).
Ainda segundo a supracitada autora o direito à educação fica ainda mais latente quan-
do se constata que a Carta de 1988 elevou o direito à educação ao status de direito público sub-
jetivo. Nesse contexto, o sentido de realização deste direito é forte a ponto de afastar qualquer
recusa do Estado em efetivá-lo. E não basta só a garantia do direito à educação, fazem-se neces-
sárias ações paralelas que permitam à sociedade as condições de chegar até a escola e manter-se
nela, bem como a asseguração de sua qualidade pelo Estado (SOUSA, 2010, p. 30).
saberemos o bastante. O que pode existir, na prática, é que algumas pessoas são mais expe-
rientes do que outras, seja em termos de termos de conhecimentos técnicos, seja em termos de
convivência prática com determinadas áreas do conhecimento.
Na concepção de Paulo Freire ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as pos-
sibilidades para a sua própria produção ou sua construção (FREIRE, 1996, p. 47). O conheci-
mento não é transferido, e sim, produzido, sendo resultado da troca de experiências e de saberes
entre professores e alunos. Neste diálogo entre educador e educando, o primeiro deve conduzir
os debates no sentido de que sejam fixados valores éticos sobre o papel de cada pessoa na socie-
97
dade e sobre a responsabilidade que deve permear a relação dos homens com seus semelhantes
e com o meio ambiente.
A origem da palavra ética vem do grego “ethos”, que quer dizer o modo de ser, o
caráter. Os romanos traduziram o “ethos” grego, para o latim “mos” (ou no plural “mores”),
que quer dizer costume, de onde vem a palavra moral. Tanto “ethos” (caráter) como “mos”
(costume) indicam um tipo de comportamento propriamente humano que não é natural, o ho-
mem não nasce com ele como se fosse um instinto, mas que é “adquirido ou conquistado por
hábito”. Portanto, ética e moral, pela própria etimologia, diz respeito a uma realidade humana
que é construída histórica e socialmente a partir das relações coletivas dos seres humanos nas
sociedades onde nascem e vivem (DHNet, 2012).
A ação educativa se concretiza através de um processo de troca de saberes e de inte-
rações orientadas com vistas à construção do conhecimento. Neste contexto, as sementes da
democracia e da ordem devem ser plantadas e cultivadas, com vistas à formação não apenas
de um bom aluno, mas à formação de um cidadão consciente e atuante. Sobre o processo edu-
cacional, Motauri Ciocchetti de Souza explicita que este consiste na transmissão de valores e
de experiências entre as gerações, permitindo às mais novas alcançar perfeita interação social,
propiciando-lhe meios e instrumentos para que possam manter, aprimorar e, posteriormente,
retransmitir a seus sucessores o arcabouço cultural, os valores e os comportamentos adequados
à vida em sociedade e indispensáveis para o processo de evolução social rumo a um efetivo Es-
tado Democrático de Direito, que deve ter por premissa, a consagração da dignidade da pessoa
humana. Ainda segundo este autor , a educação é o próprio pilar que justifica e mantém a estru-
tura social ou qualquer núcleo de convivência humana, desde grupos de amigos até o próprio
Estado (SOUZA, 2010, p. 09-10).
Diante destas considerações, comete-se ao educador o papel de trabalhar valores éticos
a serem assimilados pelo educando, de modo que este perceba a sua condição e a sua função
na sociedade, fato este que por si só trará inúmeros benefícios não só à pessoa do educando
como para toda a sociedade. O povo brasileiro precisa despertar, abrir os olhos para a realidade
na qual está inserido e somente a educação pode atuar eficazmente neste sentido. Quando isto,
enfim, acontecer, os frutos reais de uma democracia madura e qualificada surgirão.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 3º, inciso II dispõe que constitui obje-
tivo fundamental da República Federativa do Brasil, entre outros, garantir o desenvolvimento
nacional. O que seria tal desenvolvimento? Entende-se aqui que o desenvolvimento ali enuncia-
do é aquele capaz de assegurar à população brasileira condições mínimas para a realização do
princípio da dignidade da pessoa humana6.
6 Para Flávio Augusto de Oliveira Santos, “dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca e distinta reconhecida em cada ser
98
Neste sentido, desenvolvimento seria a realização, no contexto social, de todos os prin-
cípios, políticas e planos sociais e econômicos, com vistas à formação de um quadro geral de
atendimento às necessidades básicas da população brasileira.
Os números recentes, diuturnamente apresentados nos meios televisivos e informacio-
nais, revelam a dimensão do desenvolvimento econômico do Brasil. O país, classificado como
potência emergente na década de 1980 hoje se firma entre os países mais desenvolvidos do
mundo ao ponto de se sugerir (ideia levantada pela comunidade científica) o surgimento de um
novo “bloco” econômico mundial denominado BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul). Este desenvolvimento aqui apontado, como se percebe, está inserido no contexto econômi-
co, apenas e tão somente. As desigualdades sociais, apesar das melhoras observadas na última
década, ainda são muito presentes na vida de milhões de brasileiros.
Neste sentido, pode-se afirmar que o país que atrai investidores do mundo inteiro, o
país das oportunidades de negócios é também o país do analfabetismo (real e funcional), o país
da violência (em seus principais centros urbanos), enfim, é o país campeão dos contrastes e das
tensões sociais. Como então iniciar o processo de mudança? Cremos que a solução para estes
problemas esteja no investimento em um sistema de educação pública de qualidade, que saiba
identificar e valorizar os potenciais de cada pessoa, segundo suas virtudes e qualidades inatas.
A valorização dos alunos, aliada a uma política de combate às drogas nas comunidades farão
uma verdadeira revolução social no Brasil.
Sobre a questão da limitação da concepção de desenvolvimento à seara econômica,
Amartya Sen chama a atenção para o fato de que os fins e os meios do desenvolvimento reque-
rem análise e exame minuciosos para uma compreensão mais plena do processo de desenvol-
vimento; é sem dúvida inadequado adotar como nosso objetivo básico apenas a maximização
de renda ou de riqueza, que é, como observou Aristóteles – meramente útil e em proveito de
alguma coisa. Pela mesma razão, o crescimento econômico não pode sensatamente ser conside-
rado um fim em si mesmo. O desenvolvimento tem de estar relacionado, sobretudo, com a me-
lhora da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos. Expandir as liberdades que temos
também permite que sejamos seres sociais mais completos, pondo em prática nossas volições,
interagindo com o mundo em que vivemos e influenciando este mundo (SEN, 2000, p. 29).
A esta altura, convém recordar que o Estado não existe como um fim em si mesmo.
Deve antes assumir o papel de agente transformador das realidades fáticas com vistas à reali-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
zação do bem comum, sendo este o principal interesse a impulsionar o fenômeno estatal. So-
mando-se a esta perspectiva Sahid Maluf assevera que o Estado, por sua natureza, não poderia
ser admitido como instituição destituída de finalidade. Negar finalidade ao Estado seria negar o
próprio Estado, descambando-se para o terreno das teorias anarquistas de Max Stirner, Bakuni-
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um com-
plexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante ou desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos
demais seres que integram a rede da vida.” (SANTOS, 2011. Pág. 29).
99
ne, Jean Grave e outros. Este mesmo autor continua afirmando que o Estado é o meio pelo qual
a nação procura atingir seus fins. Não pode, pois, possuir fins outros que não sejam os da nação,
que lhe dá causa, que determina a sua organização e que traça as diretrizes de sua atividade
(MALUF, 1991, p. 309).
Tratando da mesma questão, Dalmo de Abreu Dallari muito bem pontua que o Estado,
como sociedade política, tem um fim geral, constituindo-se em meio para que os indivíduos e as
demais sociedades possam atingir seus respectivos fins particulares. Assim, segundo este dou-
trinador, pode-se concluir que o fim do Estado é o bem comum, entendido este como conceituou
o Papa João XXIII, ou seja, o conjunto de todas as condições de vida social que consintam e
favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana (DALLARI, 1995, p. 91).
Nesta reflexão acredita-se que há sim um direito subjetivo ao desenvolvimento, uma
vez que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III afirma que a República
Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento,
entre outros, a dignidade da pessoa humana. Isto porque não há como garantir a realização
deste fundamento Estatal sem que haja o desenvolvimento econômico e social proclamado no
texto constitucional.
100
ria mostrou que todos os países que experimentaram acelerados processos de desenvolvimento
econômico nos últimos anos tiveram investimentos maciços em educação. A China hoje, em
fase de crescimento econômico acelerado, sabendo o que deve ser feito, tem investido grande-
mente na qualificação de sua população. O resultado será um crescimento econômico sustentá-
vel, ou seja, um crescimento econômico que se manterá por décadas e décadas, mesmo diante
das oscilações naturais do mercado.
Neste sentido, percebe-se claramente que a educação constitui a base para que haja um
desenvolvimento nacional sustentável. Para tanto, se faz necessário que os governos, federal,
estadual e municipal abandonem a hipocrisia das estatísticas que mascaram a realidade do ensi-
no no Brasil, as quais revelam apenas que um número considerável de alunos foram aprovados
e conduzidos para séries seguintes, sem, contudo, haver um compromisso com a melhoria, em
termos qualitativos, do ensino nos níveis fundamentais, médio e superior.
7 Quem conhece a sala de aula em escolas públicas no Brasil sabe que ali estão reunidas pessoas com as mais diversas bases familiares:
101
ta a estas perguntas formam um quadro que revelará as perspectivas do país para as próximas
décadas. Parece que a China entendeu bem este “dever de casa” e o resultado esta ai para todos
verem, a China hoje é a maior economia do globo e experimenta as maiores taxas de crescimen-
to econômico do mundo8.
A efetivação de políticas pública de ensino de qualidade constitui, como se observa,
um imperativo para a inclusão social de milhões de brasileiros, dotando-os de capacidade técni-
ca e científica que os oportunize bons postos de trabalho, o que por sua vez lhes garantirá uma
vida digna.
O Brasil não pode se furtar a este dever, já que a Lei Fundamental do país, em diversas
dispositivos proclama como essenciais a realização da dignidade da pessoa humana, a garan-
tia dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, incisos III e IV), a garantia do
desenvolvimento nacional, com a erradicação da pobreza e a marginalização e a redução das
desigualdades sociais e regionais.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, verifica-se que não há alternativa para o Brasil a não ser investir
maciçamente em um sistema educacional de qualidade que possibilite ao povo brasileiro o
acesso a um sistema de ensino de qualidade que valorize as potencialidades dos alunos, que pro-
porcione uma vida digna aos professores deste sistema, que possibilite uma maior integração da
família ao convívio familiar. Para tanto o Estado tem um extenso “dever de casa” para cumprir.
A questão da educação no Brasil perpassa por uma problemática muito mais ampla.
A violência está embutida nas escolas públicas brasileiras. As estatísticas estão à disposição de
quem queria comprovar. Em muitas escolas os professores não conseguem cumprir com seus
cronogramas de atividades e com seus planos de ensinos, pois são ameaçados constantemente
por alguns alunos. Em casos como estes não é incomum a relação entre consumo de drogas e
tal indisciplina. O fato é que este o ambiente de estudo está se tornando um ambiente de hosti-
lidades, onde o que menos se valoriza é o processo educativo como um todo.
O Brasil, ao romper com o regime ditatorial a que esteve sujeito por 20 (vinte) anos
elaborou um texto constitucional onde a participação popular e da sociedade em geral repre-
senta a razão de ser das políticas públicas estatais. Este constitui, como se observa, o principal
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
pessoas que querem estudar, pessoas que ainda não tem consciência da importância do ensino, pessoas desmotivadas, pessoas que estão ali,
apenas e tão somente por uma questão de obrigação (para manter determinados benefícios como a bolsa escola, etc.), enfim, o quadro é de
uma variedade de pessoas e de condições de vida que às vezes torna difícil a simples tarefa de conduzir uma aula.
8 Segundo consta em matéria publicada na revista Veja, a China sacrifica as ideologias sempre que elas conflitam com a busca de resulta-
do. Na educação, isso se expressa na definição do papel do professor. A China se deu conta de que precisava de professores bons e em grande
quantidade. Dadas suas carências, montou um sistema em que o professor sai da faculdade mediano, e então é constantemente trabalhado e
ajudado para que consiga ministrar aulas excepcionais. Um sistema em que os bons professores e as boas escolas subjugam os maus mestres
das escolas ruins. Os chineses entenderam que é melhor ter quarenta alunos com um bom professor do que duas turmas de vinte, uma bem
ensinada e outra sob a batuta de um incapaz. O professor é o centro gravitacional de todo o sistema. Pragmatismo, meritocracia, professores
bem formados e premiados com dinheiro pelo bom desempenho, estudantes disciplinados e motivados por suas famílias. Essa é a fórmula
do combustível da arma secreta chinesa para conquistar o mundo: a educação (Educação na China. Revista Veja. São Paulo. Disponível em:
<http://veja.abril.com.br/tema/educacao-na-china>. Acesso em 01 de fevereiro de 2012.).
102
desafio do Estado brasileiro até o presente momento, pois não basta oportunizar a participação
da população nos processos deliberativos das políticas públicas, mas aumentar o nível destes
debates, das proposições e das cobranças. E isto só se faz a contento com uma melhoria no sis-
tema educacional em geral.
Como já referimos em linhas passadas a Constituição brasileira de 1988, em seu artigo
205 dispõe que a educação é um direito de todos e um dever do Estado e da família e deverá ser
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento
da pessoa, seu prepara o para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Neste
sentido, deve o Estado, a família e a própria sociedade fazer cada um a sua parte em prol da
construção de uma sociedade mais esclarecida, que seja ciente de seus direitos e dos seus deve-
res, que lute pela realização da justiça, enfim, que tenha voz ativa nos processos de elaboração
e execução das políticas públicas que visam cumprir os objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, enunciados no artigo 3° da Carta de 1988.
Sem as transformações aqui sugeridas não há que se falar em democracia plena, nem
em cidadania real, mas tão somente pode-se falar de uma democracia e de uma cidadania sim-
bólicas, ou seja, tipos incompletos de democracia e de cidadania que não se prestam a viabilizar,
em níveis aceitáveis e esperados, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil
e a realizar o princípio que constitui o fundamento de todo o sistema internacional de proteção
aos direitos humanos, a saber, o da dignidade da pessoa humana. Ademais, como já referido
em linhas passadas, o Estado deve funcionar como um meio (e não como um fim em si mesmo)
eficaz de realização dos direitos indispensáveis ao desenvolvimento da personalidade humana,
dentre os quais a educação ocupa lugar de destaque.
REFERÊNCIAS
CAIRNCROSS, Frances. Meio ambiente: custos e benefícios. São Paulo: Nobel, 1992.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 19. ed. São Paulo:
Saraiva, 1995.
MALUF, Sahid. Teoria geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1991.
MELLO FILHO, José Celso de. Constituição federal anotada. 2. Ed. São Paulo: Saraiva,
1986.
103
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. tomo IV - direitos fundamentais. 4. ed.
Coimbra: Coimbra editora, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2006.
SEN, Amatya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do país.
São Paulo: Saraiva, 2010.
SOUZA, Motauri Ciocchetti de. Direito educacional. São Paulo: Verbatim, 2010.
104
A EXPANSÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
* Pós-Doutor pela Universidade de Bordeaux-Monstesquieu IV. Professor da Universidade de Pernambuco. Procurador do Estado.
Advogado. Membro da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB.
1 Ensina Pontes de Miranda: “Anteriormente, nos comentários ao início do Código de Processo Civil, ao tratarmos do princípio da
pretensão processual dirigida ao Estado, frisamos que a expressão “jurisdição”, no sentido de todo o poder público, seja legislativa, seja
judiciária, seja executiva, revela conteúdo medieval. O sentido exato é o de poder dizer o direito (dicere jus),razão por que se há de exigir o
pressuposto conceptual de julgamento, de “dizer” (dictio) qual a regra jurídica, o ius, que incidiu” (MIRANDA, 1997, pág. 78).
105
mericanos, ou jurisdiccion de la constitución como denominam os espanhóis, ou verfassungs-
gerichtsbarkeit, como denominam os alemães, configura-se de difícil definição, haja vista que
já na sua formação abriga dois conteúdos semânticos de difícil precisão: jurisdição e Constitui-
ção. No seu sentido objetivo a dificuldade é estabelecer o que é uma matéria constitucional, pois
essa é ampliada por uma Lei Mater de extensão analítica como a brasileira, por motivo de se
tentar garantir uma determinada estabilidade jurídica. Do ponto de vista subjetivo, a dificuldade
consiste em delimitar a extensão de quem pode exercê-la, com a finalidade de evitar choques
entre as instâncias diversas, em virtude de que o ordenamento brasileiro permite o seu exer-
cício, tanto através do Supremo Tribunal Federal, quanto das instâncias judiciárias inferiores.
Biscaretti di Ruffia, que foi professor na Universidade de Milão, afirma que em senso
objetivo a jurisdição constitucional abrange as funções constitucionais que têm a finalidade
tutelar os direitos e interesses pertinentes à matéria constitucional; em senso subjetivo, está a
indicar um órgão diverso da magistratura ordinária, para exercer essa função, geralmente com
um procedimento diferente do utilizado pela jurisdição comum (afirmação válida apenas para
os países que instituíram um tribunal constitucional) (RUFFIA, 1965, pág. 556).
Segundo Pedro Cruz Villalón, a jurisdição constitucional passou por um processo de
desenvolvimento para assumir a sua atual feição. A derivação mais antiga da jurisdição consti-
tucional é aquela política, denominada de jurisdição política, encontrada nos países europeus,
que tem um nascimento anterior à jurisdição jurídica. Ela tinha a finalidade de pacificar as
relações entre os sujeitos políticos, representantes de uma estruturação de poder, através do
arbitramento das suas litigâncias por uma câmara ou uma assembléia. Em um segundo momen-
to, ela se encontra preocupada em sedimentar a sua supralegalidade, estabelecendo que as leis
infraconstitucionais devem se subordinar aos parâmetros da Constituição, firmando o controle
de constitucionalidade. E em um terceiro momento, ela é associada à jurisdição dos direitos
fundamentais, configurando-se como um instrumento para a sua concretização, realizando o
reforço da tutela de determinados direitos (VILLALÓN, 1999, págs. 489-491).
O conceito de jurisdição constitucional, algumas vezes, é estabelecido com a mesma
definição de garantias constitucionais, refletindo que o seu escopo maior é assegurar os direi-
tos fundamentais. Nessa perspectiva, a extensão do conceito de jurisdição constitucional se
resume a garantias constitucionais, para simbolizar a importância que os direitos fundamentais
assumem no ordenamento jurídico. Essa perspectiva, ao restringir a amplitude do conceito de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
jurisdição constitucional, descura importantes esferas de sua atuação, o que não contribui para
a sua integral percepção.
A jurisdição constitucional é a função estatal que tem a missão de concretizar os man-
damentos contidos na Constituição, fazendo com que as estruturas normativas abstratas pos-
sam normatizar a realidade fática. Esta exprime a intenção de estabilizar as relações sociais,
de acordo com os parâmetros da Carta Magna, evitando o risco do arrefecimento de sua força
normativa.
Esse conceito, como a terminologia já esclarece, tem como finalidade a concretização
106
das normas contidas na Constituição Federal, impossibilitando a sua atuação na concretização
de normas infraconstitucionais. Esta última função pode ser implementada pelas instâncias
ordinárias do Poder Judiciário.
Destarte, seu alcance abrange toda a prestação jurídica compreendida nos dispositivos
constitucionais, garantindo o princípio da universalidade de jurisdição e, conseqüentemente,
resguardando o Estado Democrático Social de Direito. Se a jurisdição constitucional não for
realizada segundo os parâmetros do regime democrático e dos direitos fundamentais ela deixa
de ser um esteio do Estado Democrático Social de Direito e passa a ser uma chancela da arbi-
trariedade.
Com o advento do Estado Social o conceito de jurisdição constitucional tem sofrido
substanciais modificações, apartando-se de sua definição tradicional de jurisdictio, fundada no
direito positivo, formatada dentro da distinção entre produção normativa e aplicação judicial.
A jurisdição constitucional ganha novo relevo com as demandas sociais de um Estado cada vez
mais complexo, que exige um direito principiológico, decretando a falência da exclusividade do
Direito legislado, levando em conta princípios que mantêm a sincronia do ordenamento com
a sociedade. Há um maior espaço de elaboração para as decisões judiciais, sendo os juízes le-
vados muitas vezes a colmatar uma lacuna jurídica, para manter a eficácia da Constituição e a
completude do ordenamento jurídico.
Apesar de a jurisdição constitucional ganhar mais força nos países que instituíram um
Tribunal Constitucional específico, na sistemática adotada pelo Brasil, em que o Supremo Tri-
bunal Federal tanto exerce a jurisdição constitucional, quanto funciona como última instância
da jurisdição ordinária, ela também exerce uma importante função, no sentido de assegurar
proteção para os dispositivos constitucionais, velando pela sua concretização.
A jurisdição constitucional compreende, além do controle de constitucionalidade, a
regulamentação do processo de impeachment; os conflitos de atribuições; as garantias pro-
cessuais contidas na Constituição; a tutela dos direitos fundamentais; a estruturação do Poder
Judiciário; o delineamento do sistema federativo de Estado; a criação de partidos políticos; as
normas do regime político etc. Dentre todas essas atividades, uma das mais relevante, de forma
clara, é o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, com a finalidade de garantir
a supralegalidade das normas constitucionais.
De forma esquemática, podemos dizer que a jurisdição constitucional compreende as
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
107
2 DENSIFICAÇÃO DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL
2 “Qualquer um que analisar atentamente os poderes que formam um Estado poderá perceber que em uma
Constituição em que eles sejam rigorosamente separados, o poder que apresenta um menor perigo para os direitos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
políticos sancionados pela Carta Magna será sempre o Judiciário, pela própria natureza das funções que ele
desenvolve, haja vista que ele terá sempre as menores prerrogativas para obstacular ou afrontar os outros poderes.
O Executivo, de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. O Legislativo,
de fato, além de gozar dos predicados inerentes a um poder, dispõe também da espada. Ele não apenas tem a
bolsa, mas, absolutamente, estabelece as normas que delineiam os direitos e os deveres de cada um dos cidadãos.
O Judiciário, ao contrário, não pode influenciar nem com a espada nem com a bolsa, não pode administrar nem a
força nem a riqueza da sociedade e não pode proferir alguma decisão que seja verdadeiramente auto-executável”
(HAMILTON, 1980, págs. 218-219).
3 “Os americanos entregaram aos seus tribunais um imenso poder político; todavia, obrigou-os a atacar a lei
apenas com meios jurídicos, dessa forma diminuíram em muito o perigo deste poder. Se os juízes pudessem se
pronunciar contra uma lei de maneira teórica e geral; se pudessem tomar a iniciativa de censurar os legisladores,
tornando-se partidário do interesse de algum partido, poderiam excitar todas as paixões que dividem o país e
poderiam fazer parte dessa luta” (TOCQUEVILLE, 1999, pág. 104).
108
2-4).
O fator que mais força exerce para o alargamento da atuação da jurisdição constitucio-
nal é o fortalecimento dos direitos fundamentais, que ocorre de forma global, principalmente
nas democracias ocidentais. Quanto maior for o recrudescimento dos direitos fundamentais,
maior deverá ser a atuação da jurisdição constitucional para garantir a sua concretização. Ao
mesmo tempo em que esta é uma de suas funções é uma forma de legitimar a expansão de sua
atuação, além de garantir um direcionamento para a sua atuação.
Um maior aumento do âmbito de atuação da jurisdição constitucional também depen-
derá do grau de preparo e do teor de reputação que gozam os seus membros. Quanto mais bem
fundamentadas forem suas decisões e maior notoriedade de conhecimentos tiverem os seus
componentes, maior serão a sua aceitabilidade no meio jurídico. De igual modo, no tocante à
honorabilidade dos juízes, esta deve ser impecável, tanto na sua conduta pessoal como profis-
sional.
A expansão da atuação dos tribunais constitucionais não é apenas um fenômeno res-
trito à jurisdição constitucional, ocorrendo com o Poder Judiciário também em sua esfera or-
dinária. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte e a magistratura sempre desempenharam um
papel ativo na sociedade, inclusive construindo a doutrina do judicial activism; na Alemanha,
há vários posicionamentos do Tribunal Constitucional assegurando a concretização dos direitos
fundamentais; na Espanha, além das firmes decisões do seu Tribunal Constitucional, pode ser
mencionado o caso do pedido de extradição de Pinochet; na Itália, a campanha promovida nos
anos noventa contra a corrupção política e a máfia; na França, o combate aos desmandos polí-
ticos etc.
Na esfera penal a atuação da jurisdição constitucional e do Poder Judiciário tem se
mostrado bastante desenvolvida, principalmente nos países europeus. Nessa função há uma
recuperação de vetores éticos da política, como o princípio da moralidade, do interesse público
etc. A jurisdição constitucional e o Poder Judiciário nesses casos são chamados a intervir para
assegurar a substancialização da seara política, mediante princípios ético-morais, ao mesmo
tempo em que contribuem para suprir o déficit de legalidade que existe no gerenciamento da
coisa pública.
Nos países periféricos, que não têm uma longa tradição de respeito às leis, a jurisdição
constitucional nunca desempenhou o seu papel de forma autônoma. Na maioria dos países, ela
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
sempre foi atrelada à elite política e econômica, servindo como um órgão que tem a missão de
chancelar as decisões políticas. Todavia, mesmo com essa limitação, em virtude dos fenômenos
anteriormente mencionados, tanto nacionais como internacionais, assiste-se nos países periféri-
cos, de forma paulatina, ao fortalecimento da jurisdição constitucional como forma de propiciar
uma maior proteção às disposições jurídicas, principalmente às normas constitucionais.
Essa extensão na atuação da jurisdição constitucional e do próprio Poder Judiciário
tem gerado atrito com os demais poderes, o que motiva o Poder Legislativo a formular vários
projetos legislativos com o desiderato de podar as prerrogativas dos tribunais constitucionais
109
e da magistratura, em sentido geral. Mas, mesmo que os projetos de lei sejam concretizados, a
amplitude da atuação das Cortes Constitucionais e dos Tribunais não será arrefecida, em pri-
meiro lugar, porque há uma crise no arcabouço normativo, fruto da sociedade pós-moderna, que
cada vez exige leis mais flexíveis. E em segundo lugar, porque diante da caótica e abundante
produção legislativa faz-se necessário, cada vez mais, uma interpretação técnica para saber qual
a disposição normativa que vai ser aplicada ao caso concreto. Essa produção caótica esquece
de uma parêmia clássica do processo legislativo: de que as leis devem ser simples e claras,
construídas de maneira a mais precisa possível, a fim de evitar problemas na sua interpretação
(CARBASSE, 1998, pág.293).
Como a tendência das disposições normativas é a de ser mais genérica e abstrata para
atender às necessidades da coletividade, o alcance da extensão das decisões da jurisdição cons-
titucional e do Poder Judiciário, de uma forma geral, não tenderá a diminuir, o que se leva a
buscar uma limitação legal para essa atuação e uma fundamentação de legitimidade, que possa
colocar essas importantes decisões sob o controle da população.
O aumento da atuação do Poder Judiciário, como um todo nas sociedades ocidentais,
tem levado muitos autores a sustentar que está ocorrendo uma involução no Estado Democrá-
tico Social de Direito, transformando-se em um Estado Jurisdicional, em decorrência de que o
Judiciário e os tribunais constitucionais não adquirem sua legitimidade diretamente do sufrágio
universal.
Outra conseqüência dessa tendência é uma maior regulamentação da esfera política,
ou seja, uma jurisdicização da política, com o objetivo de atrelá-la ao bem comum e permitir
uma licitude dos pleitos.4 Porém, quando os tribunais constitucionais começam a se imiscuir
em assuntos políticos, ocorre de igual forma uma politização desses órgãos. Em muitas de suas
decisões resta evidenciada uma nítida opção ideológica, em que a matriz política resta clarivi-
dente. O risco é que a criação de uma justiça política, passe a decidir de acordo com as suas
conveniências ideológicas, em detrimento da Constituição.
O incremento na atuação do Poder Judiciário e, principalmente, da jurisdição consti-
tucional não significa, por si só, em uma vantagem ou desvantagem. Se ele se transformar em
um instrumento de produção normativa, sem o estabelecimento de parâmetros com a sociedade,
através de uma legitimação auto-referencial, baseada em procedimentos judiciais, será uma
atuação danosa, que afetará o regime democrático e os direitos fundamentais. Entretanto, se
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
essa atuação servir para o desenvolvimento do sistema de freios e contrapesos, com o escopo
de garantir os direitos fundamentais e o aperfeiçoamento do regime democrático, será uma
atividade benéfica e ensejará a real concretização de um Estado Democrático Social de Direito.
4 “A transformação da política em direito vem, digamos de forma paulatina, sendo criada não pelo legislador antecipadamente, mas pelos
magistrados diante do caso singular, como lex specialis. É um tipo de produção normativa que se denomina de criação jurídica do Direito”
(CALAMANDREI, 1965, pág.642).
110
3 A TENSÃO ENTRE O POLÍTICO E O JURÍDICO
harmônica, com seus campos de atuação delimitados. O primeiro, como é legitimado direta-
mente pelo princípio da soberania popular, tem a função de representar os interesses da maioria;
o segundo, que não pode ser legitimado diretamente pela soberania popular, tem o escopo de
concretizar os mandamentos constitucionais, protegendo os interesses da minoria que encontra
respaldo na Constituição. Ambos devem exercer as suas atividades em sincronia para que tanto
5 “Em primeiro lugar, parto do princípio de que existe a possibilidade de um verdadeiro conflito entre a função fiscalizadora do Tribunal
Constitucional e a função do legislador: essa possibilidade existe, desde logo, porque o Tribunal Constitucional tem poderes para controlar
efectivamente o respeito pelo princípio da constitucionalidade, mas existe sobretudo na medida em que se entenda que o legislador não é
um mero executor da Constituição” (VIEIRA DE ANDRADE, 1995, pág. 76).
111
a maioria quanto a minoria tenham seus direitos preservados.
Tanto o Poder Legislativo como o Supremo Tribunal Federal são órgãos importan-
tíssimos para o aperfeiçoamento da democracia brasileira, ajudando a encontrar soluções que
possam resolver o grave problema de exclusão social que aflige a sociedade brasileira. A grande
conexão entre esses dois órgãos deve ser estabelecida no sentido da defesa dos direitos fun-
damentais, que é o requisito essencial para a construção da sociedade desejada por todos os
brasileiros.
O problema consiste em como delimitar o espaço de atuação da jurisdição constitu-
cional e do Poder Judiciário para que o espaço político não seja arrefecido, porque de acordo
com o posicionamento defendido por Oppenheim toda interpretação judicial é uma forma de
criação normativa (OPPENHEIM, 1995, pág.293). Quando há uma decisão judicial, segundo o
mencionado autor, há uma produção jurídica, que adentra na competência do Poder Legislativo,
e, portanto, causa um arrefecimento da seara política, o que ocasiona um conflito entre essas
duas dimensões.6
A função da jurisdição constitucional não é a de criar normas constitucionais, caben-
do-lhe interpretá-las, se bem que é difícil distinguir quando há a realização de uma produção
jurídica ou uma interpretação judicial, por isto, que a composição do órgão que exerce a juris-
dição constitucional deve ser a mais democrática possível.
Embora seja oportuno frisar novamente que analisar a natureza da interpretação ju-
dicial foge dos limites estipulados para o tema proposto, o que não quer dizer que toda inter-
pretação judicial possa ser considerada como uma criação normativa, nem que o risco de se
adentrar na esfera política esteja afastado. A função da jurisdição constitucional é aplicar os
dispositivos normativos contidos na Constituição, o que, em decorrência da própria natureza da
sua atividade, implica em um grande teor de discricionariedade, devido às várias possibilidades
de aplicação da norma.
A relação entre o Direito e a Política configura-se como uma das relações mais tensas
existentes no Estado Democrático Social de Direito. A política simboliza as decisões tomadas
pela sociedade com a finalidade de alcançar os objetivos escolhidos pela sua população, tendo
como uma de suas principais característica a discricionariedade de sua escolha. O Direito tem
como uma de suas principais características, de modo inverso, a previsibilidade de sua normati-
zação. Assim, devido ao caráter diverso de suas principais características, o Direito e a Política
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
6 Também defende a mesma premissa Eugenio Bulygin: “A cognição legal é limitada pela determinação do
conteúdo estipulado pelo princípio geral aplicado ao caso concreto, mas como existem várias possibilidades de
aplicação, nas quais o juiz pode escolher uma para incidir no caso proposto, então, diversas normas podem ser
criadas do mesmo princípio geral [...] desde que todas elas estejam se desenvolvendo dentro dos parâmetros da
norma geral, o ato de escolher uma dentre essas possibilidades não é um ato de cognição, mas um ato de criação:
é uma decisão política” (BULYGIN, 1995, pág. 14).
7 “O problema política-direito no marco do Estado como forma política é insolúvel teoricamente. Não admite mais soluções do tipo
prático. Pois, por uma parte, é inegável que o Estado é o ente criador do Direito e não é, portanto, possível a submissão do criador a criatura
de forma integral. Por outro lado, tão pouco cabe dúvidas de que a sociedade civil sobre a qual se eleva o Estado é uma sociedade que tende
112
Essa possibilidade de tensão entre a seara política e a seara jurídica tem gerado uma
oposição contra uma maior atuação da jurisdição constitucional.8 Devido à experiência do New
Deal, em que a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucionais várias de suas me-
didas, setores políticos ligados mais ao espectro da esquerda, que defendem uma intervenção
do Estado na economia para garantir o desenvolvimento econômico e assegurar direitos so-
ciais, vêem com uma certa desconfiança o aumento da atuação da jurisdição constitucional,
pelo fato de que esse órgão não conta com a legitimação direta da soberania popular, podendo
se constituir em um órgão autônomo e passar a decidir independente dos anseios sociais. Na
Grã-Bretanha, Suíça e nos países Escandinavos os partidos socialistas e trabalhistas apenas
recentemente vêm admitindo uma maior atuação da jurisdição constitucional (VALLINDER,
1995, págs. 20-21).
A política, em uma concepção habermasiana, deve ser entendida como um locus onde
se desenvolvem as relações vitais do senso ético, uma forma de reflexão sobre os nexos deon-
tológicos da sociedade, impondo aos cidadãos a consciência de sua dependência recíproca. O
espaço público deve se regulamentado no sentido de propiciar uma maior densidade dos prin-
cípios éticos. A regulamentação da esfera política, assim, deve ser implementada pelos agentes
políticos que foram votados pelo povo e não pelos membros que compõem o órgão que exerce
a jurisdição constitucional.
Vários autores consideram que a delimitação entre a política e o direito pode ser faci-
litada pelo legislador constituinte. Se o texto constitucional for escrito de forma precisa, sem o
recurso de termos vagos ou ambíguos, a atuação da jurisdição constitucional poderá ser melhor
definida, impedindo a prática de decisões políticas porque a estrutura do seu texto permite an-
tever um direcionamento das decisões. Se, ao contrário, o texto constitucional não for escrito de
forma precisa, agasalhado muitas normas programáticas, haverá a ausência de uma definição
para a atuação da jurisdição constitucional, o que ensejará a prática de decisões judiciais de
cunho político.9
Esse tipo de afirmação, de que a demarcação entre a política e o direito pode ser rea-
lizada pela construção de mandamentos constitucionais de forma precisa, padece de elementos
fáticos para a sua fundamentação. Primeiro, porque qualquer texto normativo pode ser objeto de
análise, podendo-se modificar o seu conteúdo normativo, mediante o método hermenêutico uti-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
a se configurar como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas e tende , assim, inequivocamente à substituição do poder arbitrário e
imprevisível por um poder regrado e controlável. Nenhum destes dois elementos podem ser suprimidos. Ambos coexistem mais ou menos
de forma harmoniosa ou contraditória, mas sempre em tensão. Nesse contexto é que se instalam as relações entre a política e o direito.
Sim, é possível submeter por completo o Estado ao Direito, também é possível estruturar inteiramente um Estado à margem do respeito às
normas jurídicas. Todavia, o que interessa é ressaltar os seguintes extremos: 1) que as sociedades estatais têm oferecido ao longo da história
da humanidade exemplos tanto de melhor controle do poder político pelo Direito, conhecido hasta la fencha (democracias ocidentais),
como a subtração mais bruta do poder do Estado do controle das normas jurídicas (ditaduras fascistas); 2) que a justiça constitucional é
o instrumento histórico mais desenvolvido que se tem conhecimento ate hoje para a justificação da política” (ROYO, 1988, págs. 14-15).
8 Esclarece Pizzorusso: “Se analisarmos os problemas do Poder Judiciário em uma perspectiva não exclusivamente italiana, devemos
nos interrogar, infelizmente, das razões por que muitos países apresentam, especialmente na segunda metade do século XX, um crescente
papel exercido pelos órgãos jurisdicionais ou órgãos independentes e as reações que este processo determina”. PIZZORUSSO, Alessandro.
Giustizia e Giudici. Disponível na Internet: http://www.associazionedeicostituzionalisti.it. Acesso em: 04/03/2004.
9 A exemplo de Danilo Zolo, Javier Perez Royo etc.
113
lizado. A norma jurídica mais precisa pode ser modificada por recursos hermenêuticos. Depois,
é praticamente impossível a elaboração de uma Constituição sem a utilização de princípios, que
pela sua própria natureza, apresentam uma densidade semântica aberta. Por fim, a utilização de
normas programáticas configura-se de suma importância, principalmente em países periféricos,
onde esse instrumento jurídico se mostra eficaz para a concretização dos objetivos estabeleci-
dos pelos legisladores constituintes, representando as mais legitimas aspirações da sociedade.
De forma precisa, Torbjörn Vallinder define o processo de judicialização da política:
“A expansão da atuação dos tribunais e dos juízes acarreta a conseqüente redução de atuação
das esferas política e administrativa, isto é, a transferência da produção normativa do Poder
Legislativo, do Executivo e das agências administrativas para os tribunais; significa da mesma
forma a expansão do método de produção normativa da jurisdição constitucional e do Poder
Judiciário para fora de sua seara de atuação específica. Portanto, pode-se dizer que o processo
de judicialização da política essencialmente consiste em modificar o procedimento de alguma
coisa para a forma de um procedimento judicial” (VALLINDER, 1995, pág. 13).
Torbjörn Vallinder elaborou um interessante quadro comparativo mostrando as dife-
renças de resolução dos conflitos pela Suprema Corte norte-americana e pelo Poder Legislativo.
Com relação aos participantes, no primeiro atuam duas partes e um terceiro que é o juiz, no
segundo, atuam diversas partes. Referente ao método de trabalho, a Suprema Corte realiza
um processo ouvindo os argumentos das partes para depois valorá-los; no Poder Legislativo o
método é o da negociação, através de compromissos pactuados, geralmente efetuados fora do
alcance da opinião pública. Quanto ao processo de produção normativa, o primeiro o realiza
sob a decisão imparcial de um juiz, e o segundo através do princípio majoritário. Com relação
ao modo de concretização de suas decisões, a Suprema Corte os realiza por intermédio da
apreciação de um caso particular, prestando atenção aos precedentes judiciais, principalmente
aos relacionados ao judicial review, já o Poder Legislativo concretiza suas decisões através de
normas genéricas e abstratas. Inerente às implicações das decisões tomadas, o primeiro as es-
tabelece diante dos casos concretos e dos dispositivos normativos inerentes à matéria, enquanto
o segundo as estabelece de acordo com os valores preponderantes na sociedade (VALLINDER,
1995, pág. 14).
Como o regime democrático foi transformado em um dogma em grande parte dos paí-
ses e a expansão da atuação da jurisdição constitucional não é sustentada de forma direta pelo
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
princípio da soberania popular, a maior crítica que se faz contra o processo de judicialização é
que ele afronta a democracia. Muitos doutrinadores, a exemplo de Ingeborg Maus, consideram
o processo de extensão da jurisdição constitucional uma ameaça contra o regime democrático,
o princípio majoritário e o princípio da responsabilidade popular, no sentido de que o povo pode
escolher os seus representantes.
Acontece que em um Estado Democrático Social de Direito as decisões políticas, para
serem aplicadas, devem contar com a legitimação da população, por intermédio de instrumen-
tos, principalmente da democracia participativa. Já as decisões da jurisdição constitucional e do
114
Poder Judiciário não se amparam de forma direta no sufrágio universal, mas de forma objetiva
têm a missão de concretizar os dispositivos da Constituição Federal. O ponto em comum entre
a seara jurídica e a política é o respeito pelos mandamentos constitucionais e pelas normas do
ordenamento jurídico, de uma forma geral. Portanto, a relação entre a política e o direito não
será sempre conflitiva porque as duas searas devem subordinar as suas atuações aos manda-
mentos constitucionais.
Quanto maior forem a falta de sintonia dos representantes políticos com os anseios
da sociedade, a presença de corrupção para a tomada de decisões e o imobilismo causado pelo
antagonismo social, menor será a legitimação da classe política. Por outro lado, quanto maior
for a reputação dos membros do órgão que exerce a jurisdição constitucional e maior o grau
técnico de suas decisões, maior será o seu grau de credibilidade e maior serão as possibilidades
de legitimação de sua atuação. Como conclusão, depreende-se que a debilidade dos agentes
incumbidos de proferir as decisões políticas pode favorecer uma maior atuação da jurisdição
constitucional nesta seara.
Para que haja o desenvolvimento do Estado Democrático Social de Direito de forma
harmônica, sem o conflito dos poderes estabelecidos, as decisões políticas têm que se ater aos
parâmetros legais e as decisões jurídicas não podem extrapolar os seus limites e desempenhar o
papel reservado aos atores políticos, principalmente, a jurisdição constitucional que exerce um
grande poder pelo seu papel de intérprete máximo da Carta Magna. A jurisdição constitucional
tem a importante missão, dentro de uma sociedade pluralista, de demarcar os limites de inci-
dência das decisões políticas, para que os princípios almejados pelos legisladores constituintes
sejam preservados. O que não quer dizer que ela não deva direcionar o desenvolvimento de suas
atividades pelos dispositivos contidos na Constituição.
Uma das causas que mais influenciam a expansão da jurisdição constitucional no cam-
po das decisões políticas é a paulatina perda de legitimidade do processo político. A complexi-
dade do debate político, o poder econômico, a falta de locais para o debate público, bem como
a concentração dos meios de informação são algumas das razões para a perda de legitimidade
dos representantes populares. Como a classe política se apresenta distante da população, a atua-
ção da jurisdição constitucional é vista como um avanço, principalmente se o seu objetivo for
concretizar um direito fundamental.
Já que é quase impossível encontrar limites precisos à separação entre a seara política
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
e a seara jurídica, de melhor alvitre seria solidificar a consciência de respeito aos dispositivos
constitucionais, especialmente às normas relativas aos direitos fundamentais e que tanto o Po-
der Legislativo quanto o órgão que desempenha o exercício da função, pudessem fiscalizar a
atuação dos órgãos estatais para saber se eles se adequam ou não aos ditames da Constituição.10
10 “E o que será no futuro? As perspectivas são claramente diferentes de país para país, dependendo da tradição constitucional e da situação
política. Portanto, não se pode definir se o desenvolvimento do processo de judicialização será revertido ou mesmo paralisado. Apresenta, no
momento, alguma expansão, como no leste europeu. A Hungria, por exemplo, promulgou uma declaração de direitos e instituiu um tribunal
Constitucional. Em contra partida, regimes ditatoriais têm sido estabelecido fora do mundo ocidental. No final, em muitos países, um novo
equilíbrio pode ser obtido entre os direitos dos cidadãos e os direitos e obrigações da maioria” (VALLINDER, 1995, pág. 24).
115
A essência da crítica exposta contra a jurisdição constitucional é a falta de legitimida-
de popular para amparar as suas decisões. O erro desse argumento é que a jurisdição constitu-
cional não é ontologicamente contraditória ao regime democrático, muito pelo contrário, pode
se constituir em um importante instrumento para o seu aperfeiçoamento. O órgão que exerce a
máxima função judicante pode ser formado com a participação dos poderes estabelecidos, o que
evita que ele perca o laço com os interesses da sociedade. Como sustenta Neal Tate, o princípio
democrático se configura como um dos requisitos para o processo de judicialização, existindo
uma relação bilateral entre o princípio democrático e a jurisdição constitucional (TATE, 1995,
pág. 29).
A tensão entre o universo político e a jurisdição constitucional, em decorrência da
taxionomia de cada uma dessas searas e da densidade de poder que representam, jamais pode
ser prefixada de forma rígida, entretanto, essa indeterminação pode ser arrefecida pela revalo-
rização da supremacia das normas constitucionais, pela especificação do “conteúdo mínimo”
dos direitos fundamentais e pela sua consolidação por intermédio do entrenchment. Atrelando
essa maior atuação da jurisdição constitucional a missão de efetivar os direitos fundamentais,
os confrontos entre a seara política e a jurídica será muito menor.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
116
tos fundamentais.
A jurisdicização constitucional não é um mal em si, mal é a ausência de legiti-
midade de suas decisões, a afronta de postulados constitucionais ou o cerceamento dos direitos
fundamentais. As decisões judiciais têm que ser tomadas a partir de um processo que promova
amplas discussões na sociedade para que ela possa realizar a formação política de um consenso,
tomando como parâmetro as normas jurídicas.
Como conclusão pode-se afirmar que a jurisdicização constitucional não é intrinseca-
mente contrária ao regime democrático, seu funcionamento, tomando como parâmetro a Cons-
tituição, ajuda a fortalecer a participação popular nas decisões políticas e incentiva a consoli-
dação da democracia. Fazendo parte os direitos inerente à cidadania da quinta dimensão dos
direitos fundamentais e sendo esses direitos uma das bases da legitimação da jurisdição cons-
titucional, não pode haver anacronismos entre a tutela da Constituição e a participação política
dos cidadãos, já que um constitui pressuposto do outro.
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Law. Giappichelli: Torino, 1995, pág.14.
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Torino: Giappichelli, 1995, pág.293.
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VILLALÓN, Pedro Curz. La Curiosidad Del Jurista Persa, y otros estudios sobre la
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FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
118
Enviado em 16 mar. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
* Professor de Filosofia da Educação do Curso de Pedagogia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Coorde-
nador e Professor de Ética da Especialização em Gestão da Educação da PUCRS. Advogado; Bacharel, Licenciado e Mestre em Filosofia,
na área de Ética e Filosofia Política; Doutorando em Filosofia da Educação pela PUCRS. E-mail: pedro.savi@acad.pucrs.br.
119
dos “operadores do Direito” realizam o seu “papel processual”. Todo o procedimento judicial
já foi pensado. Todos os atos processuais já foram pré-vistos. Pelo princípio da legalidade, tão
caro e efetivamente importante ao Direito e ao Estado Democrático de Direito, não poderia ser
diferente. A pré-visão é uma segurança às partes no processo judicial. A burocracia, enquanto
procedimento especializado, é apresentada como necessária.
Contudo, e esse é o ponto, a falta de capacidade, quiçá até mesmo de oportunidade,
para a realização de uma verdadeira e efetiva crítica, de uma apropriada reflexão sobre o que
é justiça e, talvez, principalmente, sobre o que não é justiça, permite que o processo e que a
burocracia sirvam muito mais como um mecanismos de (re)produção de injustiça do que de
produção da mais pálida representação de justiça.
Nesse contexto, no qual as relações mais concretas são esterilizadas e tratadas como
se fossem um mero produto de uma racionalidade já pensada, o judiciário e o processo buro-
crático, como inquestionáveis produtos prontos de uma razão instrumentalizada, efetivamente
podem produzir algum resultado diverso daquele que foi concebido junto com eles? Qual o
espaço que efetivamente existe no interior de um procedimento já pensado para a realização de
alguma justiça? Ainda além, e essa talvez seja a questão sintética fundamental, o procedimento
concebido racionalmente, capaz de fabricar tantos bens de consumo, pode, também, “fabricar
a justiça”?
O presente artigo, portanto, é uma reflexão filosófica sobre Direito, burocracia, pro-
cesso, e sobre o seu sentido e, por óbvio, sobre a questão da justiça. É uma reflexão sobre a
violência da burocracia processual e o sufocamento do instante presente, pensado como único
momento possível para a construção de alguma justiça.
conhecimento geral das condições da vida, mas algo de muito diverso: o saber ou a
crença em que, se alguém simplesmente quisesse, poderia, em qualquer momento,
experimentar que, em princípio, não há poderes ocultos e imprevisíveis, que nela
interfiram; que, pelo contrário, todas as coisas podem – em princípio - ser dominadas
mediante o cálculo. Quer isto dizer: o desencantamento do mundo. (WEBER, 1917,
p. 13)
120
Horkheimer vão afirmar que “O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade
torna-se suspeito para o esclarecimento” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19).
No projeto do desencantamento do mundo, a racionalização passou a ser entendida
como o processo que consistia em uma sistematização, intelectualização, especialização, tecni-
ficação e objetivação crescentes em todos os âmbitos da vida. Racionalizar significaria produzir
um processo calculável e previsível.
A submissão da realidade à calculabilidade e previsibilidade prometidas pela raciona-
lidade despertou o interesse dos Estados, pois a burocracia poderia ampliar as suas esferas de
atuação e de intervenção sobre as mais diferentes necessidades vitais, e do poder econômico
dominante no então crescente capitalismo burguês moderno, visto que passou a haver a necessi-
dade de racionalização dos recursos humanos e de sua utilização. Zygmunt Bauman vai afirmar
sobre a aplicação universal da razão que:
121
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20).
“...onde o juiz como num Estado burocrático com suas leis racionais, é mais ou
menos um autômato regido por artigos, ao qual se enfiam guoela abaixo as atas dos
processos juntamente com os custos e honorários, e ele devolve a sentença junto com
um arrazoado mais ou menos convincente, isto é, sua atividade é de toda forma, de
um modo geral, previsível” (WEBER, 1993, p. 44).
O Direito passa a ser visto como algo desprovido de toda e qualquer santidade, na me-
dida em que se assume como um aparato racional e técnico que pode ser orientado à busca de
qualquer fim. E as inerentes especialização e tecnicização burocráticas contaminam o Direito
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de forma a cada vez mais torná-lo afastado e incompreensível para a maior parte dos leigos.
Essa é uma das características da racionalização: a esterilização de qualquer ferramenta que se
encontre fora da razão dominante.
Esse afastamento cada vez maior entre Direito, justiça e a massa de pessoas, repre-
senta, desde a perspectiva que aqui nos interessa, a grande denúncia realizada por Adorno e
Horkheimer na Dialética do esclarecimento no sentido de que o esclarecimento se torna, nova-
mente, mito.
Com efeito, o esclarecimento produziu seus próprios mitos: a ciência, o capitalismo, o
122
positivismo, o Direito burocratizado etc. De acordo com Adorno e Horkheimer (1985, p. 24), “o
preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exer-
cem o poder”. O esclarecimento, enquanto repetição, apresenta-se cada vez mais semelhante à
mitologia, transformando o pensamento em mera tautologia, em razão instrumentalizada.
O mito grego poderia ser representado pela crença da realização da justiça pela deusa
Diké. O esclarecimento, que veio para desencantar a mitologia e que prometeu a realização da
justiça pela operação burocrática, apenas substituiu a deusa em sua tarefa mitológica de realizar
a justiça. O tarefa ética de cada um foi terceirizada ao Estado com base na crença de um Direito
burocratizado capaz de “fabricar” justiça.
123
ça etc. também é a instituição que providenciará a justiça.
Contudo, a justiça, da mesma forma que a vida, demanda uma resposta imediata e só
encontra sua possibilidade de ocorrência no tempo presente. Em contrapartida, a pesada es-
trutura necessária ao Estado Moderno, por motivos óbvios sobre os quais não se faz qualquer
juízo, mas apenas mera constatação, não permite que a emergência do instante presente seja
prontamente atendida. A emergência da necessidade de justiça para o instante presente é gentil-
mente (muitas vezes, mesmo sem gentileza) convidada a entrar na fila e aguardar o término do
procedimento burocrático racionalmente instrumentalizado para atendê-la.
Se, por um lado, a burocracia representa o necessário estabelecimento de regras obje-
tivas para a consecução de um determinado objetivo num Estado de Direito, por outro lado a
burocracia representa o afastamento da solução das demandas no único momento de passível
solução. E, na maioria das vezes, esse afastamento afigura-se como deliberado fator de dificul-
tação da verdadeira justiça (e da própria vida) na medida em que transfere a responsabilidade
dos indivíduos envolvidos na relação presente para uma resposta posterior de responsabilidade
do Estado.
A responsabilidade de tratamento justo (ético) que deveria fundamentar a relação entre
os indivíduos é substituída pela racionalidade representada pela técnica do Direito em estabe-
lecer um procedimento supostamente capaz de produzir o mesmo resultado da relação singular
em um momento posterior, qual seja, a justiça. Nesse contexto, a justiça se subsume ao Direito
e o procedimento se justifica pelo procedimento. O espírito domesticado dos indivíduos e a
limitação à técnica dos atores do Direito faz com que o procedimento assuma, mesmo sem que
os envolvidos percebam, o papel de ator principal.
A expectativa dos leigos injustiçados é instigada ainda mais em função da crescente
complexidade das demandas sociais contemporâneas que são diretamente refletidas em um
aparato jurídico cada vez mais complexo, técnico, por consequência, afastado e de difícil com-
preensão pelos cidadãos comuns que necessitam recorrer ao Direito.
O procedimento que promete transformar processo (quantidade) em justiça (qualida-
de), ao mesmo tempo em que antecipa a relação presente pelos procedimentos burocratizados,
substitui o acontecimento da relação singular do instante presente pela verdade/justiça dita pelo
Estado ( jurisdictio).
Esse procedimento burocratizado é caracterizado pela inerente especialização das ta-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
refas, acompanhada pela substituição da qualidade humana pela posição ocupada na relação bu-
rocrática, sufocando a ocorrência do instante e impedindo o estabelecimento da relação dialéti-
ca qualificadamente humana e singular. A complexidade do humano é violentada à opacidade
da razão instrumentalizada. O heterogêneo é igualado, homogeneizado e a relação humana se
resume a atingir o objetivo da operação burocrática. Em Bauman:
124
da tarefa à sua frente. A moralidade resume-se ao comando para ser um bom, eficiente
e diligente especialista e trabalhador (BAUMAN, 1998, p. 126).
Uma vez que a injustiça passa pela grande máquina de produção da chamada justiça
estatal, o heterogêneo é transformado pelo procedimento racionalizado em homogêneo. A pro-
va de que a justiça estatal afirma promover tal transformação fica evidenciada, por exemplo,
quando os danos físicos ou morais são indenizados pelo dinheiro e a sociedade despida de senso
crítico aceita e repete, fortalecendo o mito, que a justiça foi feita. Ou seja, a dor, o sofrimento, a
perda etc. das mais diversas origens e com as mais diversas causas são igualados pela máquina
estatal de fabricação da justiça na medida em que se aceita que possam ser reparados por uma
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
única substância mágica, que é sempre igual, variando apenas em sua quantificação.
Entretanto, a evidência cabal de que o judiciário não produz justiça (também de que
não existe justiça restaurativa), reside no fato de que a verdadeira justiça só existe no evita-
mento da ocorrência da injustiça. A verdadeira justiça seria a recomposição da exata situação
antes do fato danoso, contudo, isso não é possível pela absoluta irrecuperabilidade do instante.
As feridas saram, mas as cicatrizes permanecem, dando o indicativo de que a injustiça não foi
simplesmente apagada e de que a justiça não foi produzida pelo processo burocrático.
Com base nos argumentos expostos, parece-nos razoável afirmar que o resultado do
processo judicial não pode ser chamado de justiça. A falta de clareza conceitual quanto à pa-
125
lavra justiça, parece-nos decorrente da manutenção de sua vinculação à ideia de justiça re-
parativa, presente já em Aristóteles, por exemplo na Ética a Nicômaco. Contudo, o conceito
de justiça reparativa, que em verdade não passa de mera expiação, de indenização do dano, é
demasiadamente estreito para a riqueza e importância do significado de tal palavra para a so-
ciedade contemporânea. Ou seja, o conceito, o anseio e a expectativa da sociedade pela maior
abrangência de significado da palavra justiça é infinitamente maior do que a real possibilidade
concebida, mas não assumida, pela própria razão técnico-burocrática. Isso se deve ao fato de
que, firmemente defendida pela bandeira da produção da justiça, a operação burocrática esta-
belece e justifica seus procedimentos desumanizados pelos quais se movimenta pretensamente
em direção à realização da justiça.
Diante da realidade social injusta, a expectativa e os anseios da sociedade por justiça
são habilmente conduzidos para a resposta estatal, apresentada como sendo a única possível. Os
burocratas de plantão, esterilizados pela técnica e devotos do processo, respondem ao clamor
social com mais Direito, em um movimento de retroalimentação tão sedutor quanto perigoso:
causa, mas sim com base nos momentos presentes pelos quais se move. Reiteramos: não é racio-
nalmente justificável que a velocidade do processo seja determinada pela gravidade do crime,
pois, por mais rápido que seja, jamais alcançará o instante passado que lhe serviu de estopim.
E é exatamente nessa intercambialidade das substâncias, pela impossibilidade de
transformar o tempo perdido em dinheiro, o sangue derramado em reclusão, que a burocracia
revela sua violência. O pedido social por justiça é respondido com mais Direito; e quanto maior
o Direito maior a possibilidade de controle social e injustiça. Nesse sentido, Bauman escreve
sobre a utilização da violência dissipada na atividade burocrática:
126
O uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso quando os meios são
submetidos a critérios instrumentais e racionais e, assim, dissociados da avaliação
moral dos fins… todas as burocracias são boas nesse tipo de operação dissociativa.
Pode-se mesmo dizer que dele provêm a essência da estrutura e do processo
burocráticos e, com ela, o segredo desse tremendo crescimento potencial mobilizador
e coordenador e da racionalidade e eficiência de ação, alcançados pela civilização
moderna graças ao desenvolvimento da administração burocrática. A dissociação
é, de modo geral, resultado de dois processos paralelos, ambos centrais ao modelo
burocrático de ação. O primeiro é a meticulosa divisão funcional do trabalho
(enquanto adicional à – e em suas consequências distinta da – linear graduação do
poder e subordinação); e o segundo é a substituição da responsabilidade moral pela
técnica (BAUMAN, 1998. 122).
Da mesma forma que quando buscamos entender com maior clareza o significado de
uma palavra recorremos à sua etmologia, quando procuramos entender o significado do Di-
reito e, por consequência, sua pretensa intenção de realizar justiça, devemos buscar na origem
de sua instauração o seu verdadeiro intento: “A venda sobre os olhos da Justiça não significa
apenas que não se deve interferir no Direito, mas que ele não nasceu da liberdade” (ADORNO;
HORHEIMER, 1985, p. 27).
Uma reflexão comprometida sobre a origem do aparato processual burocratizado reve-
la, sem maiores dificuldades, que o Direito não nasceu de um anseio por justiça, mas foi produ-
127
zido por uma necessidade de controle:
Como falar em uma justiça construída e mantida por essa operação burocrática? Assim
como os procedimentos burocratizados escondem o objetivo existente por detrás das condu-
tas alienadas, mas tecnicamente especializadas, o conceito da justiça produzida pelo Direito
pertence ao Estado e não é compartilhado, sequer entendido pelos indivíduos que compõem a
sociedade.
mesma ressalva que se faz com relação ao uso do modelo de racionalidade científico-matemá-
tica que fundamenta a sociedade contemporânea, podemos fazer com relação ao Direito: assim
com a matemática é uma ferramenta adequada para resolver problemas matemáticos, o Direito
se afigura como uma ferramenta adequada para a resolução de questões jurídicas.
Assim como os deuses mitológicos possuíam habilidades sobre-humanas de criar subs-
tâncias concretas, o Direito contemporâneo, produto da razão instrumental, roubou a espada
empunhada pela deusa Diké (e a sua atribuição) para, assim, fazer justiça. Como forte evidência
da correção do argumento de Adorno sobre o caráter mitológico da razão, temos que o Direito
128
mitologizado é apresentado como capaz de solucionar questões que literalmente fogem de sua
jurisdição, criando justiça. Sob a proteção de tal poder mitológico, que convém apenas àqueles
que pretendem conservar a realidade social injusta, o verdadeiro Direito é violentado por um
número cada vez maior de leis que se anunciam capazes de resolver, por exemplo, questões so-
ciais e econômicas, fabricando justiça.
A sobrecarga decorrente dessa crença mitológica acaba por subverter o procedimento
jurídico-burocrático para, falsamente, tentar contemplar situações que estão fora do seu âmbito.
Quando os familiares e amigos de mais uma vítima da violência, de qualquer espécie, vão às
ruas com faixas, pedindo justiça, será que seu pedido é realmente por justiça e o Direito tem
alguma relação com a verdadeira solução de tal situação? O resultado do procedimento buro-
crático (do Direito, em última análise) é capaz de responder ao clamor social por justiça? Se a
relação humana subjacente não foi justa, o produto de um procedimento instrumentalmente
racionalizado de (re)construção de um instante passado pode ser entendido como realização do
valor “justiça”?
A injustiça presente na relação humana subjacente é utilizada como elemento justifica-
dor da aceleração e da suposta simplificação do processo burocrático que visa à construção, à
realização, de alguma coisa que se convencionou chamar de justiça. Nessa medida, o processo
nunca se mostra tão rápido quanto o necessário para que a “justiça seja feita”. E tal sentimento
é facilmente compreensível quando, mediante a desmitologização do Direito como deus criador
da justiça, compreendemos que o processo jamais será tão rápido a ponto de “fazer a justiça”,
pois tal fato decorre de uma impossibilidade ontológica: de um processo racionalizado (quanti-
dade) produzir um valor (qualidade).
Quando se acredita que o processo é o instrumento pelo qual a justiça realmente será
construída, realizada, a relativização de garantias individuais tem lugar, os ritos processuais
são encurtados, a construção de escolas perde a prioridade diante da necessidade mais urgente
da construção de presídios e a sociedade que clama por justiça recebe mais controle estatal.
O sistema se alimenta dele mesmo. Quanto mais o Direito falha em sua impossível missão de
produzir justiça, tanto mais a sociedade clama por um Direito ainda maior. Novamente: como
se uma questão qualitativa pudesse ser resolvida quantitativamente.
Por isso a grande dificuldade das pessoas entenderem a “lentidão do processo”, pois
elas esperam que a decisão judicial “faça justiça”, como se houvesse um processo racional de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
manufatura da justiça. Contudo, o processo cada vez mais quer-nos parecer um caminhão de
bombeiros que somente sai às ruas depois de iniciado o fogo, parado no trânsito da hora do rush
até o seu motor ferver, em ruelas semelhantes aos estreitos caminhos burocráticos, enquanto
seu destino inevitavelmente é consumido pelo fogo.
Ora, a justiça, por mais inapresentável que permaneça, não espera. Ela é aquilo que
não deve esperar. Para ser direto, simples e breve, digamos isto: uma decisão justa é
sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais rápido possível. Ela não pode se
permitir a informação infinita e buscar o saber sem limite das condições, das regras
129
ou dos imperativos hipotéticos que poderiam justificá-la (DERRIDA, 2007, p. 51).
130
que a destruição de sua casa seja indenizada com papel e não entende que o mesmo poder de
abstração que criou o vil metal não vai recriar a natureza destruída?
Tudo isso não nos quer parecer mera casualidade. Por um lado, a origem do Direi-
to está fortemente arraigada à conservação de uma condição dominante. O Direito foi criado
pela violência, enquanto força, e se mantém pela violência espalhada homeopaticamente nas
diversas estruturas burocratizadas existentes. Por outro lado, as pessoas são empurradas pela
sensação de falta de tempo na contemporaneidade. O dia que começa com o despertador, tem
hora marcada para todas as atividades. Os encontros só acontecem com hora marcada e com o
conteúdo previamente definido.
Nesse contexto, a ocorrência de um instante original tem sua possibilidade sufocada, e
substituída pela ditadura do relógio e dos compromissos externos. Ninguém tem tempo para se
preocupar com nada além do provimento das necessidades reais materiais de sustento próprio
e da sua família e da realização das necessidades criadas no mercado de consumo. Um Direito
viciado em suas origem e conservação acompanhado da esterilização das relações pela neces-
sidade de provimento das mais básicas necessidades de sobrevivência é a fórmula perfeita para
a manutenção da dominação da maioria pelos grandes poderios econômicos.
E a farsa é tão perfeitamente concebida que a maioria dominada não cansa de clamar
por mais Direito. Quanto mais injustiça há, mais Direito pede a maioria dominada. E quanto
mais Direito se produz, mais eficaz se torna a dominação, menos espaço resta para a vida não
regulada pelo Estado, única oportunidade de ocorrência da verdadeira justiça – a ética funda-
mental das relações verdadeiras entre humanos e entre esses e o mundo em que vivem – que
evita o inútil acionamento do Direito.
O mito de uma justiça produzida pelo Direito perdurará enquanto os indivíduos que
formam essa caricatura de sociedade permanecerem separados uns dos outros e alienados de
si mesmos pela fulminante e inapelável necessidade impositiva da dependência e submissão
de sua sobrevivência ao dinheiro, elemento abstrato relativizador do caráter ético que deveria
imperar nas relações humanas. E nessa luta pela sobrevivência, a técnica se apresenta como o
caminho a ser percorrido em busca do dinheiro que garantirá a sobrevivência. Aos indivíduos
homogeneizados pela necessidade do dinheiro conquistável pela técnica, resta apenas a conve-
niência de uma justiça tão artificial, opaca e sem graça quanto o conceito de pôr do sol quando
comparado à experiência real, impossível de ser suficientemente representada, de um entarde-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
cer.
Despido o Direito de seu caráter mitológico e apresentadas as limitações de suas ver-
dadeiras possibilidades, o encaminhamento para a questão da justiça, objeto do próximo capí-
tulo, passa muito mais pela valorização do instante presente como sendo o momento do estabe-
lecimento da verdadeira dialética com o encontro real, legítimo tribunal de justiça.
131
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
E exatamente pelo fato de que nem o mundo nem a justiça são passíveis de sumbmis-
são ao Direito, ou à ordem jurídica, que a responsabilidade é de cada indivíduo em realizar a
crítica. Quanto mais emancipados, valendo-se de expressão de Adorno, forem os indivíduos,
menos Estado, menos Direito e menos violência, serão necessários; pensamento ilustrado pelo
pensamento de Henry Thoreau:
Eu aceito com entusiasmo o lema que afirma: “O melhor governo é aquele que
menos governa”; e gostaria de vê-lo posto em prática de forma sistemática. Uma vez
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
posto em prática, ele acabaria resultando em algo que também acredito: ‘O melhor
governo é aquele que não governa’; e quando os homens estiverem preparados, será
exatamente este o tipo de governo que irão ter (THOREAU, 1991, p. 5).
132
truturas seja, sem a outra, não tem sentido. Assim, nem mesmo a mais perfeita racionalização
do primeiro produzirá o segundo. São substâncias diferentes que, conquanto só tenham sentido
reunidos, não são intercambiáveis.
Com tudo isso, defendemos três argumentos: (a) que a justiça pode apenas ser cons-
truída na imediata emergência do instante presente, na singularidade da relação não antecipada
pelo preconceito da razão instrumental ou pelas fórmulas e regras burocráticas; (b) que nenhum
procedimento racional pode (re)construir a justiça ausente na relação; e (c) que, além disso, a
burocracia processual, na pretensa tentativa de (re)construir justiça, acaba por promover mais
violência, além daquela que culminou com a instauração do processo.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Tradução de Iraci D. Poleti, São Paulo, Boitempo,
2004.
133
THE (IN)JUSTICE OF BUREAUCRATIZED LAW
134
Recebido em 28 abr. 2015
Aceito em 30 abl. 2015
* Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNI-RN. Especialista em Direito Constitucional pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Direito Previdenciário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de
Jesus. Advogado. E-mail: marcyolima@hotmail.com
** Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (1997). Tecnóloga em Processamento de Dados pela Universidade Federal
da Paraíba (1989); Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2008). Mestre pelo Programa Interdisciplinar em
Ciências da Sociedade, na área de Políticas Sociais, Conflito e Regulação Social, pela Universidade Estadual da Paraíba (2002). Doutora em
Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande (2010). É Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte. E-mail: patriciaborb@gmail.com
135
impacto da desigualdade social e econômica entre negros e brancos.
Na atualidade, as políticas de cotas raciais são instituídas e caracterizadas como ações
afirmativas que visam à redução das desigualdades, sejam elas sociais, econômicas e educa-
cionais, já que corrige injustiças históricas provocadas pela escravidão na sociedade brasileira,
tendo em vista que negros e índios sempre tiveram menos oportunidades de acesso à educação
superior e, consequentemente, ao mercado de trabalho.
Indiscutivelmente, não peçam aos movimentos de inserção de negros e índios que
abandonem suas políticas efetivas em troca de espera. Não esperem a acomodação na espe-
rança de equiparação da formação escolar dos alunos oriundos de escolas públicas em relação
aos oriundos de escolas privadas. A exclusão de negros e índios nas universidades públicas é
latente. A comunidade indígena e negra no Brasil necessita de aplicação de medidas imediatas,
independente se for para reparação do mal que se faz até hoje a esta comunidade ou se para
realmente começamos a dar um fim a exclusão dos mesmos no ensino superior brasileiro.
O segundo argumento que trata acerca da desigualdade social evidencia que o pobre
não consegue ingressar em uma universidade pública, entretanto, mesmo entre os pobres, o
número de negros e índios pobres está em 47% acima dos brancos, segundo dados do IBGE, ou
seja, existem mais pessoas miseráveis negras do que brancas, e entre estas, os negros são os que
percebem menor salário e possuem menor poder aquisitivo. A remuneração é diferente entre
negros e brancos. A maioria (na realidade minoritária) dos alunos oriundos de escolas públicas
que conseguem ingresso em uma universidade pública no Brasil são brancos, o que mostra que
mesmo aqueles que conseguem vencer a diferença, ainda assim, os negros são minoria.
Nesse sentido, não se sustenta o falacioso discurso dos opositores de tal medida de
que, alguns candidatos optam pelo sistema de cotas não para contornar a segregação racial, mas
apenas para buscar um acesso mais fácil ao ensino superior, na medida em seria transferido
para o ensino superior um problema de competência escolar que o governo deveria resolver na
educação básica e profissionalizante, em escolas públicas.
Vocês que estão aí sentados e que estudam em uma universidade pública ou privada,
repare a sua volta e vejam a gritante diferença entre o número de negros, índios e brancos. De-
sigualdade social? Também, mas, sobretudo, muita desigualdade racial presente.
Em um Estado Democrático de Direito, as cotas raciais são tidas como uma reparação
contra a condição histórica inferior do negro e do índio, não nos parecendo razoável nem mes-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
mo proporcional, a ideia de que biologicamente somos todos iguais e por isso não se poderia
estabelecer as cotas, pois tanto o negro, quanto o índio, para ingressar em uma universidade
pública só precisariam de um pouco mais de esforço e dedicação.
Assim, tal argumento soa ao absurdo, na medida em que dada essa injustiça histórica,
nada mais justo do que haver uma reparação de tal situação, pois existe uma dívida com o índio
e o negro e uma necessidade urgente de que ela seja reparada.
É notório que somos muito parecidos geneticamente falando, entretanto, ao contrário
da “democracia biológica”, o preconceito e o racismo no Brasil estão pautados pela cor que o
136
índio e o negro traz em sua pele e não no sangue que corre em suas veias. Assim, o sistema de
cotas raciais foi estruturado como uma forma de combater a herança escravagista do século XIX
no país.
O direito fundamental à educação, consubstanciado no princípio da dignidade huma-
na, foi inserido na Constituição como um dos direitos sociais a serem assegurados pelo Poder
Público de forma ampla e igualitária, tendo em vista o dever de garantia do mínimo existencial.
Inegavelmente, para fazer valer prerrogativas constitucionais e para que o Estado aten-
da aos anseios sociais em uma época de conflito de ideologias e representatividade, a sua atua-
ção deve estar fundamentada na Constituição e nos princípios constitucionais que ajudam na
sua interpretação e aplicação.
Dessa maneira, há a preocupação na criação e aplicação de normas materialmente
justas e moralmente éticas. Não basta, pois, a criação da norma, esta deve estar vinculada a
proteção da dignidade da pessoa humana.
Ademais, o princípio da isonomia deve ser aplicado e interpretado não sob a vertente
da igualdade formal (todos são iguais perante a lei), mas sobretudo, sob o prisma da igualdade
real, material e/ou efetiva, tratando os iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual na
medida da sua desigualdade.
Realmente, devemos caminhar para a construção de um ensino de base (ensino fun-
damental e médio) de qualidade. Todavia, não podemos esquecer da condição histórica inferior
do negro e do índio em nossa sociedade, ao passo que estes, mesmo após a escravatura, ainda
continuaram marginalizados, sendo negados acessos aos melhores postos de trabalho, sendo
vítimas do preconceito velado da sociedade, possuindo, até hoje, indicadores sociais inferiores
aos brancos.
Sem sombra de dúvidas, acreditamos plenamente que o ensino no Brasil deva ser re-
pensado e reformulado com um todo, com o planejamento e execução de políticas públicas
sociais e econômicas voltadas para a concretização dos direitos fundamentais dos indivíduos,
como a formulação e implementação de ações afirmativas no âmbito da educação voltadas aos
negros, índios e grupos discriminados e menos favorecidos economicamente e culturalmente,
garantindo, assim, uma melhoria na qualidade do ensino aplicado a comunidade menos favore-
cida economicamente, que é maioria neste país.
Portanto, mudar essa triste realidade do ensino educacional público no Brasil é um ob-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
137
IV, CF). Assim, a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205, CF).
Na verdade, o que não podemos aceitar é que a espera da realização disto sufoque a
questão da segregação racial nas universidades públicas brasileiras. Assim como os negros,
os índios e minorias também discriminadas devem lutar pela concretização de seus direitos,
reivindicando-os e fazendo valer suas vozes, sobretudo no que tange a concretização do direito
fundamental e social à educação. Aqueles que insistem em perguntar, para seus padrões de
cores, somos classificados como brancos e não estamos legislando em causa própria, mas, so-
bretudo, em função daquilo que consideramos justo.
138
Recebido em 04 maio 2015
Aceito em 04 maio 2015
1 INTRODUÇÃO
Uma análise produtiva da temática que se pretende tratar no presente texto requer,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de início, que sejam verificados, ainda que de modo sucinto, o contexto histórico, a criação e
o desenvolvimento do sistema europeu de proteção aos direitos humanos, implementado logo
após o final da 2ª Grande Guerra, uma vez que restou cabalmente evidenciada a necessidade de
mecanismos eficazes de garantia da vida e da dignidade da pessoa humana. Isto porque após o
139
final deste triste episódio da história mundial, constatou-se, obviamente, que o genocídio e a ex-
terminação maciça de povos e minorias deveriam ser amplamente combatidos, principalmente
em relação ao continente europeu, palco dessa sangrenta passagem.
A compreensão do sistema europeu exige que se enfatize o contexto dentro do qual
ele emerge, isto é, um contexto de ruptura e de reconstrução dos direitos humanos, marcado
notadamente pela busca de integração e cooperação dos países europeus, bem como de consoli-
dação, fortalecimento e expansão de seus valores, dentre eles a proteção dos direitos humanos.
Antes do aparecimento do sistema regional de proteção dos direitos humanos, a preo-
cupação sistemática com a proteção desses direitos dá ensejo ao sistema global de proteção,
que foi arquitetado e vem sendo desenvolvido e implementado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) desde o final da 2ª Guerra Mundial até os dias atuais. O documento que lhe deu
origem foi a Carta da ONU, de 1945, sendo desenvolvido posteriormente com a proclamação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, no ano de 1948.1 Referida Declaração foi comple-
mentada ulteriormente, material e processualmente, por dois Pactos internacionais que foram
concluídos em Nova Iorque, no ano de 1966, que foi o Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse conjunto
de textos internacionais tem sido referido como Carta Internacional dos Direitos Humanos,
compondo o denominado sistema global de proteção de tais direitos.
O sistema regional de proteção dos direitos humanos, por sua vez, surgido logo após
a instituição do sistema global, como o próprio nome sugere, está afeto a distintas regiões
do globo, sendo que a sua estruturação fica a cargo de organizações continentais específicas.
Atualmente, o Conselho da Europa (CE) estrutura o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos
Humanos; a Organização dos Estados Americanos (OEA), o Sistema Interamericano de Pro-
teção dos Direitos Humanos; e a União Africana (UA) cuida do Sistema Africano de Proteção
dos Direitos Humanos, sendo três, portanto, os sistemas regionais de proteção existentes, que
buscam internacionalizar a tutela dos direitos humanos no plano regional. (MENEGUETTI,
2013 p. 92)
Verifica-se então que na atualidade coexistem, numa relação de complementariedade,
os sistemas globais e regionais de proteção dos direitos humanos.
Nesse contexto, são pertinentes as considerações feitas por Flávia Piovesan, uma vez
que a autora, embora afirme que um sistema regionalizado de proteção aos direitos humanos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
deva estar integrado com o sistema universal de proteção desses direitos (que é o sistema insti-
tuído no âmbito das Nações Unidas, abrangendo um grande número de países-membros), divi-
1 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada por repre-
sentantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela Assembleia Geral das
Nações Unidas em Paris, em 10 de Dezembro de 1948, através da Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral como uma norma comum a
ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos. Desde sua adoção,
em 1948, a DUDH foi traduzida em mais de 360 idiomas – o documento mais traduzido do mundo – e inspirou as constituições de muitos
Estados e democracias recentes. A DUDH, em conjunto com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois Protocolos
Opcionais (sobre procedimento de queixa e sobre pena de morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
e seu Protocolo Opcional, formam a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/decla-
racao/>. Acesso em 30 abr. 2015.
140
sões regionalizadas com a finalidade de especificar a atuação protetiva são, consideravelmente,
um meio muito mais eficaz a ser perseguido na busca de sua efetivação. (2014, p. 95-106). Nesse
sentido, Rhona K. M. Smith, ao apontar as vantagens dos sistemas regionais de proteção dos
direitos humanos, quando comparados ao sistema global, destaca que
Portanto, o presente texto busca focar, em linhas gerais, o estudo do Sistema Europeu
de Direitos Humanos, analisando sua criação, evolução e aperfeiçoamento ao longo do tempo,
bem como o funcionamento de seu principal órgão, a Corte Europeia de Direitos Humanos.3
2 Acerca das ainda incipientes iniciativas de criação de sistemas árabe e asiático de proteção dos direitos humanos, vide comentários de
Flávia Piovesan in: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 55 e ss.
3 Para um estudo aprofundado sobre o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos, onde são abordados de maneira ampla tanto a
Convenção Europeia como a Corte Europeia de Direitos Humanos vide: FØLLESDAL, Andreas; PETERS, Birgit; ULFSTEIN, Geir. Constituting
Europe: The European Court of Human Rights in a National, European and Global Context. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
141
2 A CONVENÇÃO EUROPEIA PARA A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E
LIBERDADES FUNDAMENTAIS
Com todo o horror propiciado pela 2ª Grande Guerra e com a ruína do continente Eu-
ropeu, buscou-se um modelo de proteção aos direitos dos povos, que foi entendido como uma
esperança de união dos países em busca da reconstrução da Europa.
Assim, em 05 maio do ano de 1949, alguns países se reuniram na cidade de Londres
para fundar o Conselho da Europa, uma organização europeia criada para promover e desen-
volver a cooperação intergovernamental e interparlamentar no continente europeu. Na ocasião
estavam presentes os representantes da Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Irlanda, Itália,
Luxemburgo, Noruega, Reino Unido e Suécia. Foi escolhida como sede do Conselho a cidade
francesa de Estrasburgo.
Dessa reunião nasceu o referido Conselho, bem como o seu estatuto que, contudo,
não disciplinava como seria a atuação específica dos países na proteção à vida e à dignidade
da pessoa humana, nem dispunha sobre os direitos e as garantias fundamentais a serem propi-
ciados. Desse modo, sobreveio a ideia necessária de se criar uma convenção regional europeia,
com o intuito de especificar detalhadamente os mecanismos de atuação na proteção dos direitos
humanos, exercido por cada ente soberano no continente europeu.
Foi criada, portanto, a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e
Liberdades Fundamentais4, instituída na cidade de Roma, no dia 04 de novembro de 1950, que
foi tida como o tratado internacional regente do Sistema Europeu de Direitos Humanos e como
“documento constitucional da ordem pública europeia”. (SHAW, 2010, p. 266) Esse importante
instrumento protetivo dos direitos humanos entrou em vigor no plano internacional em 3 de
setembro de 1953, quando atingiu o número de dez Estados europeus que a ratificaram, uma
exigência que foi prevista em seu art. 59, § 2º. Sua principal finalidade é disciplinar as diretrizes
mínimas referentes à proteção dos direitos da pessoa humana, garantindo os instrumentos para
sua aplicação.
A Convenção também institucionaliza um compromisso dos Estados europeus em
cumprirem efetivamente as normas protetivas da pessoa humana, não adotando quaisquer con-
cepções contrárias em seus respectivos ordenamentos jurídicos internos. Também determina a
submissão dos países europeus à Corte Europeia de Direitos Humanos, órgão criado para atuar
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
caso haja o desrespeito às normas impostas pela Convenção. O espírito que norteia a Convenção
parece ter sido bem captado por Clare Ovey e Robin White (2002, p. 114) ao afirmarem que:
4 Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. Disponível em: <http://www.echr.coe.int/
Documents/Convention_POR.pdf>. Acesso em 30 abr. 2015.
142
como subsidiária das instituições do sistema nacional de proteção ao apreciar casos
de violação a direitos humanos”. (livre tradução)
tantes documentos criados no âmbito da ONU para a proteção dos direitos humanos no plano
global, conforme já se enunciou.
De início, com a finalidade de monitorar os direitos previstos na Convenção e de-
senvolver métodos eficazes na produção de resultados protetivos dos direitos consagrados, a
Convenção instituiu três órgãos distintos, cada um com competências específicas previamente
instituídas: a Comissão Europeia de Direitos Humanos, a Corte Europeia de Direitos Humanos
e o Comitê de Ministros (do Conselho da Europa).
Portanto, um dos órgãos da Convenção, criados inicialmente, foi a Comissão Europeia
143
de Direitos Humanos, que tinha uma competência semijudicial. A sua função era analisar as
queixas ou comunicações apresentadas pelos Estados-membros do sistema europeu e também
pelos indivíduos (ONGs ou grupos de indivíduos), acerca de uma violação da Convenção, bus-
cando resolver o problema de uma maneira mais informal e conciliatória, privilegiando-se a
busca pela solução rápida. A Comissão realizava uma espécie de juízo de admissibilidade das
petições protocoladas, atuando como instrumento de filtragem para decidir quais petições se-
riam consideradas admissíveis. Também atuava propondo aos litigantes soluções pacíficas dos
conflitos e também aplicando medidas protetivas de caráter preliminar. Caso restassem infru-
tíferas as tentativas de conciliação e solução dos litígios, à Comissão cabia submeter o caso à
Corte Europeia, outro órgão da Convenção.
Um dos órgãos mais importantes criados no bojo da Convenção foi a Corte Europeia
de Direitos Humanos, instituída em 20 de abril de 1959, cuja função é jurisdicional (ou judi-
cial), tendo como tarefa precípua, a aplicação das disposições da Convenção (julgando os casos
lesivos à vida e à dignidade da pessoa humana que importem em violações de direitos humanos)
e a cominação de eventuais sanções aos países violadores dos direitos humanos protegidos,
realizando assim o juízo de mérito no tocante às violações de direitos humanos no âmbito do
sistema europeu.
Contudo, conforme exposto adiante no tópico relativo ao aperfeiçoamento do sistema
regional de proteção ora estudado, em razão do Protocolo n. 11, adicional à Convenção Eu-
ropeia, profundas alterações foram realizadas no âmbito do Sistema Europeu de Proteção de
Direitos Humanos, dentre eles a extinção da Comissão e da Corte inicialmente criados (que
atuavam em tempo parcial) e o surgimento de uma nova Corte Permanente e agora única (art.
19 da Convenção, emendado pelo Protocolo n. 11), com competência obrigatória (art. 32) para a
realização dos juízos de admissibilidade e de mérito dos casos que lhe são submetidos.
Atualmente essa nova Corte5, instituída a partir de 01 de novembro de 1998, é compos-
ta por juízes6, cujo número é equiparado aos Estados partícipes da Convenção (art. 20). O tempo
de mandato de cada juiz corresponde a 9 (nove) anos, não sendo reelegíveis (art. 23, 1 – com a
redação que lhe foi dada pelo Protocolo n. 14). Os juízes deverão gozar da mais alta reputação
moral, bem como reunir as condições requeridas para o exercício das importantes funções
judiciais a serem desempenhadas, devendo ser tidos como jurisconsultos de reconhecida com-
petência (art. 21, 1). Vale destacar ainda que os juízes exercem suas funções a título individual
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
(art. 21, 2) e, durante o respectivo mandato, não poderão exercer qualquer atividade incompatí-
vel com as exigências de independência, imparcialidade ou disponibilidade, exigidas por uma
atividade exercida em tempo integral (art. 21, 3). Embora a Convenção não tenha estabelecido
nenhuma regra no tocante à idade mínima para a ocupação do cargo, dispôs que o mandato dos
5 Da forma como restou estruturada em razão dos Protocolos adicionais à Convenção, que alteraram a redação de diversos dispositivos
originários, conforme comentado mais adiante no texto.
6 De acordo com o art. 22 da Convenção “os juízes são eleitos pela Assembleia Parlamentar relativamente a cada Alta Parte Contratante,
por maioria dos votos expressos, recaindo numa lista de três candidatos apresentados pela Alta Parte Contratante”.
144
juízes cessará logo que estes atinjam a idade de 70 anos.7 Os juízes permanecerão em funções
até serem substituídos, sendo que depois da sua substituição, continuarão a ocupar-se dos as-
suntos que já lhes tinham sido cometidos (art. 23, 3).
A estrutura da Corte, envolvendo seus órgãos internos, bem como as respectivas atri-
buições e competências de cada um está estabelecida pelos arts. 24 e ss. da Convenção, poden-
do-se destacar a existência de uma Secretaria (art. 24), de uma Assembleia Plenária (art. 25),
de Tribunais Singulares, Comitês, Seções e de um Tribunal Pleno (art. 26). Conforme explica
Malcolm N. Shaw, “para examinar os casos a ele propostos, o Tribunal pode reunir-se em comi-
tês de três juízes, em seções de sete juízes ou num tribunal pleno de dezessete juízes”. (SHAW,
2010, p. 267)
A Corte Europeia possui duas competências distintas. A primeira delas é de caráter
consultivo (art. 47 e 48) e consiste na emissão de pareceres sobre questões jurídicas relativas à
interpretação da Convenção e dos seus protocolos, sempre que assim for solicitado pelo Comitê
de Ministros. A segunda função, de caráter contencioso (art. 32), diz respeito ao processamento
dos casos que são submetidos à Corte para julgamento, tendo como ato final sentenças profe-
ridas nos casos específicos, que terão caráter vinculante e natureza declaratória. Isto porque a
Corte declara se o Estado feriu ou não os princípios da Convenção Europeia, devendo, depen-
dendo do caso, serem aplicadas as sanções cabíveis.
Vale ainda ressaltar que, nos termos do art. 32 da Convenção, a competência do Tri-
bunal abrange todas as questões relativas à interpretação e à aplicação da Convenção e dos
respectivos protocolos que lhe sejam submetidas nas condições previstas pelos seus arts. 33, 34,
46 e 47, aduzindo-se que o Tribunal decide sobre quaisquer contestações à sua competência.
Em relação ao terceiro órgão, o Comitê de Ministros (do Conselho da Europa), trata-se
de um órgão diplomático, nascido antes mesmo da Convenção Europeia e que foi por ela tido
como um órgão de supervisão (art. 46).
Nesse sentido, o Comitê exerce uma função de supervisão das decisões da Corte, já que
o entendimento que se tem no âmbito do Sistema Europeu é de que a supervisão das sentenças
da Corte deve estar afeta a um órgão com composição política capaz de convencer os Estados a
dar melhor cumprimento a tais decisões. (TRINDADE, 2003, p. 124-125) Essa função fica evi-
denciada quando a própria Convenção dispõe que as resoluções amigáveis de questões que lhe
são submetidas, deverão ser encaminhadas pelo Tribunal ao Comitê de Ministros, que “velará
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
pela execução dos termos da resolução amigável tais como constam da decisão” da Corte (art.
39, 4), o mesmo ocorrendo em relação às decisões definitivas, que deverão ser transmitidas pela
Corte ao Comitê, que velará pela sua execução (art. 46, 2).
7 Nos termos do art. 23, 4 da Convenção, “nenhum juiz poderá ser afastado das suas funções, salvo se os restantes juízes decidirem, por
maioria de dois terços, que o juiz em causa deixou de corresponder aos requisitos exigidos”.
145
Desde a sua criação, o Sistema Europeu de Proteção dos Direitos Humanos vem evo-
luindo no intuito de oferecer cada vez mais, uma melhor proteção à pessoa humana e à sua dig-
nidade no tocante aos casos de violações de direitos humanos perpetradas pelos Estados-parte
da Convenção Europeia. Portanto, a partir desse ponto, cuida-se de analisar em linhas gerais
a evolução e o aperfeiçoamento do sistema ora em estudo, demonstrando-se, inclusive, o apri-
moramento ocorrido na esfera processual (Protocolos n. 8, 9 e 11), pertinente à restruturação
dos órgãos da Convenção, bem como à resolução dos conflitos no âmbito da Convenção e da
Corte Europeia, sempre com vistas a tornar mais eficazes os seus instrumentos e mecanismos
de proteção.
Para atingir tal finalidade, importantes documentos foram editados desde a criação do
sistema europeu, recebendo o nome de Protocolos, e que constituem instrumentos adicionais à
Convenção. Acerca deles, é feliz a síntese de Mazzuoli (2011, p. 53-55), que em poucas linhas
demonstra a evolução do Sistema por meio desses instrumentos, tecendo os seguintes comen-
tários:
(...) a fim de alargar o seu rol normativo originário foram concluídos no sistema
regional europeu (...) vários protocolos à Convenção Europeia que preveem direitos
substantivos, a saber: direito de propriedade, à instrução e de sufrágio (Protocolo 1);
proibição da prisão civil por dívidas, liberdade de circulação, proibição da expulsão
de nacionais e proibição da expulsão coletiva de estrangeiros (Protocolo 4); abolição
da pena de morte em tempo de paz (Protocolo 6); adoção de garantias processuais na
expulsão de estrangeiros, garantia ao duplo grau de jurisdição em matéria criminal,
direito à indenização em caso de erro judiciário, o princípio do non bis in idem e o
princípio da igualdade conjugal (Protocolo 7); direito à não discriminação (Protocolo
12), e; abolição completa da pena de morte, mesmo em situações de exceção (Protocolo
13). Tais protocolos cumprem o papel de ampliar o corpo normativo da Convenção,
a fim de deixá-la sempre viva e atualizada com a evolução dos tempos (...) Por sua
vez, o Protocolo 2, dispôs sobre a função consultiva da Corte Europeia de Direitos
Humanos (...) os demais protocolos (de números 3, 5, 8, 9, 10 e, especialmente, o de n.
11) vieram introduzir modificações de ordem processual e orgânica nos mecanismos
de proteção da Convenção, a fim de fortalecê-los e torná-los mais operativos.
146
Trindade (2003, p. 131), consagrou “o direito de acesso direto dos indivíduos à Corte Europeia
para a esta submeter determinados casos, já considerados pela Comissão”, ou seja, já filtrados
por ela e que tenham sido objeto de relatório dela, o que sem dúvida foi “um passo significativo
para o fortalecimento da posição do indivíduo no contencioso internacional dos direitos huma-
nos, mediante a asserção do seu locus standi no procedimento perante a Corte Europeia”.
Apesar de o Protocolo n. 9 possibilitar ao indivíduo o peticionamento perante a Corte,
o Sistema Europeu ainda carecia de aprimoramentos, o que ocorreu com a entrada em vigor do
Protocolo n. 11, um marco para a evolução da Corte Europeia de Direitos Humanos.
São duas as principais modificações produzidas pelo referido Protocolo na estrutura
do Sistema Europeu: a) conforme já mencionado anteriormente, houve a substituição, tanto da
Comissão como da Corte Europeia (órgãos originários criados pela Convenção), por uma nova
Corte, de caráter permanente, com competência para realizar os juízos de admissibilidade e de
mérito dos casos de violações de direitos humanos previstos na Convenção que lhe forem sub-
metidos (art. 19 da Convenção, emendado pelo Protocolo n. 11); b) e a autorização automática8
para que indivíduos, grupos de indivíduos e organizações não governamentais tenham acesso
direto à Corte, sem a necessidade de um órgão intermediário para a análise da admissibilidade
da petição – papel que era desempenhado pela Comissão (art. 34 da Convenção, emendado pelo
Protocolo n. 11).
Nesse sentido, Cançado Trindade (2003, p. 139) afirma que com as referidas mudan-
ças, “buscou-se fortalecer os elementos judiciais do sistema europeu de proteção e agilizar o
procedimento (evitando os atrasos e duplicações que se mostraram inerentes ao regime jurídico
anterior)”, alimentando-se a “esperança no sentido de que o novo mecanismo do Protocolo 11,
tendo a Corte como órgão jurisdicional único, fomentaria o desenvolvimento de uma jurispru-
dência protetora homogênea e claramente consistente”.
Assim, atualmente a Convenção Europeia admite petições interestatais e individuais,
uma vez que, pelo seu art. 33, qualquer Estado-membro pode ajuizar ação contra outro Estado-
-membro.
Ainda sobre os mecanismos de aperfeiçoamento do Sistema Europeu, importante res-
saltar o Protocolo n. 14, que entrou em vigor em 1º de junho de 2010, concebido com a finalidade
de desafogar a sobrecarga de processos e trabalhos da Corte, bem como do Comitê de Minis-
tros, visando-se uma melhor efetivação dos serviços prestados. Reforçando a capacidade de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
filtragem da Corte, o Protocolo permite que um juiz singular decida sobre a inadmissibilidade
das petições e sobre seu arquivamento, decisão esta que passa a ser definitiva, nos termos do art.
27 da Convenção, com a redação que lhe foi dada pelo art. 7º do Protocolo.9
8 Conforme explica Malcolm N. Shaw, “originalmente, o direito de petição individual só era admitido se o Estado requerido houvesse
declarado, em obediência ao antigo artigo 25, que reconhecia a competência da Comissão para receber tais petições. Depois da entrada em
vigor do Protocolo XI, esse direito é automático”. (2010, p. 270) O autor também ressalta que “o sistema da Convenção não contempla uma
actio popularis ou ação popular. Os indivíduos não têm o direito de suscitar questões abstratas; devem alegar ter sido vítimas da violação
de um ou mais direitos previstos na Convenção”. (2010, p. 271)
9 Para um estudo pormenorizado acerca das mudanças e inovações trazidas pelo Protocolo n. 14, v.g., a questão da filtragem dos casos,
147
3 A PROCESSUALÍSTICA DAS PETIÇÕES PERANTE A CORTE EUROPEIA
O procedimento perante a Corte Europeia de Direitos Humanos tem início com uma
petição estatual ou individual que lhe é apresentada. Denomina-se queixa estadual a comuni-
cação de um Estado perante a Corte, sobre violações de direitos humanos praticadas por outro
Estado (art. 33). Por outro lado, é chamada de queixa individual a comunicação promovida por
um particular-vítima, grupo de particulares ou uma organização não governamental, a respeito
da violação das normas da Convenção por parte de um Estado soberano (art. 34).
Para promover a queixa, o legitimado pode dirigir-se diretamente ao Tribunal sediado
na cidade de Estrasburgo. O processo é público (art. 40, 1), devendo ser garantido o contraditó-
rio e a ampla defesa (art. 38), salvo nos casos em que o Tribunal Pleno determinar, de maneira
diferenciada, em virtude de conjuntura excepcional (art. 40, 1). Pelo fato de os processos serem
públicos, é garantido a qualquer pessoa ou entidade o acesso aos documentos e petições (art.
40, 2).
É possível que a vítima, pessoa física, apresente sua própria queixa sem advogado, o
que não é, no entanto, recomendado, em face das complexidades que determinados casos po-
dem apresentar. Ademais, a representação por advogado será obrigatória para as audiências e
para o momento posterior, depois de a queixa ser declarada admissível.
Importante frisar que os queixosos hipossuficientes podem utilizar-se da assistência
judiciária, criada pelo Conselho da Europa. Este mecanismo tem a finalidade de proporcionar
o devido acesso à justiça no âmbito do Tribunal, àqueles que não possuem condições de fazê-lo
sem prejuízo de seu sustento ou de sua família. Assim, se o queixoso “considera que os seus di-
reitos em matéria de assistência judiciária foram violados, tem assim a possibilidade, sob certas
condições, de submeter a questão ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”.10 Ainda sobre
a assistência judiciária, cumpre salientar que somente a Alemanha não é signatária do acordo
europeu que proporciona este direito.
As línguas oficiais empregadas na sistemática dos trabalhos da Corte são o francês e
o inglês, mas as queixas podem, perfeitamente, serem ofertadas nas línguas oficiais dos Esta-
dos-membros. Admitida a petição da queixa, o processamento se dará perante o francês/inglês,
salvo se o Presidente do Tribunal Pleno permitir a língua pátria do Estado.11
As condições de admissibilidade de um caso perante a Corte Europeia estão previstas
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
as novas Câmaras, o novo “terreno” da admissibilidade, as mudanças peculiares relativas aos casos repetitivos etc., vide: FØLLESDAL;
PETERS; ULFSTEIN, 2013, p. 33-42.
10 A assistência judiciária é um direito fundamental reconhecido pelo Conselho da Europa. Disponível em: <http://ec.europa.eu/civiljus-
tice/legal_aid/legal_aid_int_pt.htm>. Acesso em 30 abr. 2015.
11 Direitos Humanos. Conselho da Europa, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: História, Organização, e Processo. Disponível em:
<http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em 30 abr. 2015.
12 A questão do esgotamento das vias recursais internas foi bem ventilada pela Corte no caso Akdivar e outros vs. Turquia.
148
data da decisão interna (do Estado-parte) definitiva; c) não ser anônima a petição; d) não ser a
petição idêntica a outra anteriormente analisada pela Corte ou já submetida a outra instância
internacional de inquérito ou de decisão e não contiver fatos novos capazes de ensejar uma
nova apreciação (requisito da inexistência de litispendência internacional); e) não ser a petição
incompatível com o disposto na Convenção ou em seus Protocolos (inexistência de incompati-
bilidade ratione temporis, personae e materiae); e f) não ser manifestamente infundada ou de
caráter abusivo. (SHAW, 2010, p. 271-272; PIOVESAN, 2014, p. 122-123)
A petição inicial dirigida à Corte deverá constar no polo passivo o Estado-parte a
quem se imputa a violação de algum dos dispositivos da Convenção ou de seus respectivos
Protocolos. Se declarada inadmissível uma petição, contra essa decisão não caberá qualquer
recurso, conforme se verá a seguir.
No tocante ao juízo de admissibilidade realizado por Juízes Singulares, a queixa po-
derá ser recusada (declaração de inadmissibilidade ou determinação de arquivamento13) por
decisão de um juiz singular, sempre que essa decisão puder ser adotada sem a necessidade de
um exame complementar (art. 27, 1), caso em que será definitiva (art. 27, 2). Sendo admitida a
queixa, ela será encaminhada a um dos Comitês ou Seções para apreciação do caso (art. 27, 3).
Em relação ao juízo realizado pelos Comitês, ao receber uma petição individual, de-
terminado Comitê pode declará-la inadmissível ou arquivá-la, sempre que esta decisão puder
ser adotada sem a necessidade de um exame complementar (art. 28, 1, “a”). Em havendo juris-
prudência pacificada pela Corte ou se for um caso de simples solução, é possível a prolação de
sentença de plano (art. 28, 1, “b”). O Comitê poderá ainda declarar a admissibilidade da petição
e proferir uma sentença quanto ao fundo da questão que lhe foi submetida (decisão de mérito),
sempre que a questão subjacente ao assunto e relativa à interpretação ou à aplicação da Con-
venção ou dos respectivos Protocolos for já objeto de jurisprudência bem firmada do Tribunal
(art. 28, 1, “b”). Em todos esses casos a decisão do Comitê será definitiva (art. 28, 2).
Em não havendo uma decisão de fundo pelo Comitê, na forma e nos casos descritos no
parágrafo anterior, e em havendo a admissibilidade da petição, importa ressaltar que a Conven-
ção estabelece que a Corte (Seção ou Tribunal Pleno) deverá proceder a uma apreciação contra-
ditória do assunto que lhe foi submetido, em conjunto com os representantes das Partes e, se for
caso disso, realizar um inquérito para cuja eficaz condução os Estados interessados fornecerão
todas as facilidades necessárias (art. 38). As Partes poderão, em qualquer assunto sub judice,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
apresentar as provas que entenderem pertinentes e participar da audiência que será pública (art.
36, 1). É admitida a intervenção de terceiros (art. 36, 2), sendo facultado ao presidente da Corte,
no interesse da boa administração da justiça, convidar qualquer Estado-parte da Convenção ou
pessoa interessada, desde que não sejam partes no processo.
13 O art. 37 da Convenção trata do arquivamento de uma petição dispondo que “1. O Tribunal pode decidir, em qualquer momento do
processo, arquivar uma petição se as circunstâncias permitirem concluir que: a) O requerente não pretende mais manter tal petição; b) O
litígio foi resolvido; c) Por qualquer outro motivo constatado pelo Tribunal, não se justifica prosseguir a apreciação da petição. Contudo,
o Tribunal dará seguimento à apreciação da petição se o respeito pelos direitos do homem garantidos na Convenção assim o exigir. 2. O
Tribunal poderá decidir – se pelo desarquivamento de uma petição se considerar que as circunstâncias assim o justificam”.
149
Não havendo decisão anterior sobre a admissibilidade (nos termos dos arts. 27 e 28) e
nenhuma sentença tiver sido proferida nos termos do art. 28, uma Seção poderá decidir quanto
à admissibilidade e à questão de fundo (mérito) das petições individuais (formulada nos termos
do art. 34) ou estaduais (formulada nos termos do art. 33), podendo separar a questão de fundo
da questão de admissibilidade (art. 29, 1). A Seção poderá ainda encaminhar a questão meritória
à Grande Câmara (Tribunal Pleno), quando se tratar de caso que importe em interpretação da
Convenção e seus Protocolos ou se a solução de um litígio puder conduzir a uma contradição
com uma sentença já proferida pelo Tribunal (art. 30). Este é o órgão responsável por garantir
a uniformização das decisões do Tribunal, servindo como um guardião da Convenção, sendo
equiparado, v.g., às Supremas Cortes dos países. Nesse sentido Flávia Piovesan (2014, p. 120)
esclarece que a “Corte simboliza hoje a Corte Constitucional da Europa, exercendo profunda
autoridade jurídica e moral no que tange aos regimes democráticos do continente”.
O Tribunal Pleno, por sua vez, deverá se pronunciar sobre as petições formuladas nos
termos dos arts. 33 ou 34, sempre que a Seção tiver cessado de conhecer de um assunto nos
termos do art. 30 da Convenção ou se o assunto lhe tiver sido cometido nos termos do artigo 43
(art. 31, “a”). Também deverá se pronunciar sobre as questões submetidas ao Tribunal pelo Co-
mitê de Ministros, nos termos do artigo 46, 4 (art. 31, “b”), devendo ainda apreciar os pedidos
de parecer formulados nos termos do art. 47 (art. 31, “c”).
Importa destacar que em qualquer momento do processo, a Corte poderá colocar-se à
disposição dos interessados com a finalidade de se alcançar uma resolução amigável da questão
que lhe foi submetida, inspirada no respeito aos direitos humanos, como tais reconhecidos pela
Convenção e por seus Protocolos (art. 39, 1). Em sendo alcançada uma resolução amigável, em
um procedimento que será confidencial (art. Art. 39, 2), a Corte arquivará o assunto, proferindo,
para o efeito, uma decisão que conterá uma breve exposição dos fatos e da solução adotada (art.
39, 3). O cumprimento do acordo alcançado será supervisionado pelo Comitê de Ministros (art.
39, 4).
Obviamente, não se chegando à uma resolução amigável da questão, a Corte deverá,
observado o princípio do devido processo legal e demais princípios de Direito Internacional,
proferir uma decisão de fundo, resolvendo o mérito da questão que lhe foi submetida.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
150
definitivas a) se as partes declararem que não solicitarão a devolução do assunto ao Tribunal
Pleno; b) três meses após a data da decisão, se a devolução do assunto ao Tribunal Pleno não
for solicitada; e c) se o coletivo do Tribunal Pleno rejeitar a petição de devolução formulada nos
termos do art. 43 da Convenção (art. 44, 2).
Conforme se vê, dentro do prazo de três meses a contar da data da decisão proferida
por uma Seção, qualquer das partes poderá, em casos excepcionais, solicitar a devolução do
assunto ao Tribunal Pleno. Nesse caso, um coletivo composto por cinco juízes do Tribunal
Pleno14 aceitará a petição, se o assunto levantar uma questão grave quanto à interpretação ou
à aplicação da Convenção ou dos seus Protocolos ou ainda se levantar uma questão grave de
repercussão geral. Se o coletivo de juízes aceitar a petição, o Pleno deverá se pronunciar sobre
o assunto, sendo que a decisão ocorrerá também por maioria e será definitiva (art. 43).
As decisões do Tribunal (Seção ou Tribunal Pleno) são definitivas (art. 44, 1) e juri-
dicamente vinculantes e obrigatórias para os Estados requeridos (art. 46, 1), que deverão dar
seguimento e cumprimento, no âmbito de seu direito interno, ao conteúdo da decisão prolatada,
uma vez presente a coisa julgada. A decisões definitivas serão publicadas (art. 44, 3) e deverão
ser fundamentadas (art. 45, 1).
No tocante às espécies de provimentos jurisdicionais emanados da Corte, um vasto rol
de medidas gerais ou específicas podem ser determinadas, tanto de cunho pecuniário como de
natureza extrapecuniária.
Se a Corte declarar que houve a violação da Convenção ou de seus Protocolos e se o
direito interno do Estado requerido não permitir senão parcialmente remediar as consequências
da violação ocorrida, a Corte atribuirá à parte lesada uma justa reparação, se assim entender
necessário (art. 41). Portanto, embora a natureza da decisão seja declaratória – no sentido de
afirmar se a Convenção e seus Protocolos foram violados ou não (DUPUY, 2004, p. 244), nos
termos do referido dispositivo convencional, a Corte poderá proferir uma decisão determinando
o pagamento de uma indenização pecuniária, que terá como finalidade compensar um dano
material ou moral sofrido pela vítima, bem como ressarci-la pelos gastos que teve com o pro-
cedimento judicial interno (ocorrido no âmbito do direito doméstico de seu país) e com aquele
ocorrido no âmbito do sistema da Convenção.
No tocante aos comandos extrapecuniários contidos na decisão da Corte, o conteúdo
das obrigações de fazer ou não fazer que podem constar da decisão é bastante abrangente e
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
diversificado, v.g., a Corte poderá impor ao Estado a obrigação de promover adequações legis-
lativas (criação, extinção ou modificação de leis internas) ou mesmo reformas administrativas
no âmbito de seu direito interno; determinar alterações nas práticas dos órgãos jurisdicionais
internos do país; impor ao Estado a obrigação de investigar fatos, julgar e, se o caso, punir os
responsáveis por violações de direitos humanos no âmbito interno dos Estados; determinar a
14 Esse coletivo de cinco juízes do Tribunal Pleno é composto pelo presidente do Tribunal, pelos presidentes de Câmara, com exceção
do presidente da Câmara à qual pertence a Seção que proferiu o acórdão, e por um outro juiz, escolhido, através de um sistema de rotação,
entre os juízes que não participaram nas deliberações da Seção que proferiu o acórdão.
151
realização de ato público de reconhecimento da responsabilidade estatal, com a presença de
altas autoridades do país e das vítimas; determinar que o Estado promova programas de capa-
citação de pessoal voltados ao aperfeiçoamento da tutela de direitos protegidos pela Convenção
etc. Nesse sentido, Flávia Piovesan (2014, p. 125) elenca algumas medidas que têm sido deter-
minadas pela Corte, tais como:
a alteração da law on contempt of court no Reino Unido – Sunday Times vs. United
Kingdom; mudanças afetas às regras de correspondências de presos – Silver e
outros vs. United Kingdom; alteração em procedimentos criminais – Assenov e
outros vs. Bulgária; abolição de punição corporal na Isle of Man — Tyrer vs. United
Kingdom; abolição de punição corporal em escolas – Campbell e Cosans vs. United
Kingdom; discriminalização da prática consensual homossexual na Irlanda do Norte
– Dudgeon vs. United Kingdom; alteração de regras imigratórias discriminatórias –
caso Abdulaziz, Cabales e Balkandali vs. United Kingdom.
Conforme se verifica, no âmbito daquilo que tem sido denominado pela doutrina como
medidas de satisfação e garantias de não-repetição, reside a possibilidade de determinação
de um vasto rol de medidas gerais ou específicas, consistentes em obrigações de fazer ou não
fazer, visando a cessação da violação de direitos humanos, bem como a sua não-repetição e a
satisfação dos direitos das vítimas lesadas.
Vale ressaltar que no entendimento da Corte, os Estados-partes são, em princípio, livres
no tocante à escolha dos meios pelos quais deverão cumprir a decisão da Corte que entender no
sentido de que houve violação a direito enunciado na Convenção. Esta discricionariedade, no
que tange à forma de executar a decisão, reflete a liberdade de escolha concernente à primeira
obrigação consagrada pela Convenção aos Estados-partes, que é a obrigação de assegurar os
direitos e liberdades nela garantidos (art. 1º). Nesse sentido, acerca da obrigação prevista no art.
1º da Convenção Flávia Piovesan (2014, p. 112) destaca que
152
de interpretação dessa decisão, poderá dar conhecimento à Corte, a fim que ela se pronuncie
sobre essa questão de interpretação, sendo que a decisão de submeter a questão à apreciação do
Tribunal será tomada por maioria de dois terços dos seus membros titulares (art. 46, 3).
Por outro lado, sempre que o Comitê considerar que um dos Estados-membros se recu-
sa a respeitar uma sentença definitiva num litígio em que esta seja parte, poderá, após notifica-
ção desse Estado e por decisão tomada por maioria de dois terços dos seus membros titulares,
submeter à apreciação do Tribunal a questão sobre o cumprimento, por esse Estado, da sua
obrigação, em conformidade com a responsabilidade que foi assumida ao ratificar a Convenção
(art. 46, 4).
O art. 54 da Convenção estabelece que “nenhuma das disposições da presente Conven-
ção afeta os poderes conferidos ao Comitê de Ministros pelo Estatuto do Conselho da Europa”.
A importância e autoridade dada ao Comitê tanto pelo Estatuto do Conselho da Europa como
pela Convenção, enquanto órgão político e diplomático, tem ensejado uma atuação muito sa-
tisfatória no papel que lhe foi designado (PIOVESAN, 2014, p. 130), já que a pressão exercida
sobre os Estados-membros da Convenção no tocante ao cumprimento das decisões emanadas
da Corte tem produzido resultados. Nesse sentido, Flávia Piovesan (2014, p. 131) esclarece que:
o sistema europeu tem revelado alto grau de cumprimento das decisões da Corte, seja
por envolver países que tradicionalmente acolhem o princípio do Estado de Direito,
seja por expressar a identidade de valores democráticos e de direitos humanos
compartilhados por aqueles Estados na busca da integração política, seja ainda
pela credibilidade alcançada pela Corte, por atuar com justiça, equilíbrio e rigor
intelectual.
Por fim, conforme explica a autora, “em caso de não cumprimento da decisão da Corte,
a sanção última a ser aplicada ao Estado violador é a ameaça de expulsão do Conselho da Eu-
ropa, com fundamento nos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho”. (PIOVESAN, 2014, p. 130)
cedimento decisório, bem como alguns comentários acerca de alguns casos por ela decididos,
a fim de que se possa aferir as principais características da sua atuação prática na proteção e
salvaguarda de importantes direitos consagrados na Convenção.
No tocante à principiologia adotada pela Corte Europeia na hermenêutica dos direitos
previstos na Convenção, Flávia Piovesan (2014, p. 114-118) destaca quatro princípios merecedo-
res de destaque, em razão de sua relevância.
O primeiro princípio a ser destacado é o da interpretação teleológica da Convenção,
que traduz a busca de realização de seus objetivos e propósitos. (OVEY; WHITE, 2002, p. 27)
153
Nesse sentido, a Corte tem entendido que determinados artigos da Convenção devem funcionar
como verdadeiros guias norteadores de sua interpretação, v.g., os arts. 31 a 33, que estabelecem
as atribuições e a competência da Corte para análise de qualquer caso relativo à violação de
todo e qualquer direito previsto na Convenção. No entendimento da Corte, torna-se necessária
a obtenção da interpretação mais apropriada com vistas à implementação dos objetivos e alcan-
ce dos propósitos da Convenção, o que implica no afastamento de leituras interpretativas que
restrinjam o alcance das obrigações assumidas pelos Estados-partes. (OVEY; WHITE, 2002,
p. 35) A própria Corte Europeia também já asseverou que a “Convenção deve ainda ser inter-
pretada, tanto quanto possível, em harmonia com os outros princípios de direito internacional”.
(SHAW, 2010, p. 266)
Um segundo princípio que merece destaque e assume importância na desempenho das
tarefas da Corte é o princípio da interpretação efetiva, segundo o qual o Tribunal, no exercício
de suas funções, deverá conferir aos dispositivos elencados na Convenção, a maior efetividade
possível em cada caso concreto, buscando sempre assegurar à vítima de uma violação dos di-
reitos previstos na Convenção, o pleno acesso a soluções e remédios práticos e efetivos e não
apenas a soluções teóricas ou ilusórias, esvaziadas de conteúdo concreto. Conforme destacam
Andreas Føllesdal, Birgit Peters e Geir Ulfstein (2013, p. 10, 18), várias disposições da Conven-
ção preveem a necessidade de uma implementação efetiva dos direitos nela previstos, inclusive
o seu próprio preâmbulo clama pelo reconhecimento e pela observância efetiva desses direitos,
que serão melhor preservados por uma “democracia política efetiva”.
O terceiro princípio que merece destaque em razão de sua relevância é o princípio da
interpretação dinâmica e evolutiva da Convenção Europeia. Por ele, a Corte Europeia deverá
sempre considerar as mudanças sociais e políticas ocorridas no âmbito do continente europeu,
a fim de realizar uma adequada interpretação de todos os direitos e garantias previstos na Con-
venção.
Nesse contexto, Andreas Føllesdal, Birgit Peters e Geir Ulfstein (2013, p. 21) explicam
que a Convenção é considerada pela Corte um “instrumento vivo”, razão pela qual em suas
atividades, ela busca desenvolver as normas da Convenção, v.g., por meio da análise compara-
tiva da lei e da prática dos Estados-membros, respeitando os limites de proteção dos direitos
humanos protegidos, bem como os interesses dos Estados. A concepção que se tem é de que o
real alcance e o significado dos direitos consagrados não podem restar confinados e estagnados
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
15 Para uma visão aprofundada acerca da Convenção como um organismo vivo, seu significado e legitimidade vide: FØLLESDAL; PE-
TERS; ULFSTEIN, 2013, p. 106-141.
154
o autor que “essa abordagem se aplica não somente aos direitos substantivos protegidos pela
Convenção, mas também às disposições que regem o funcionamento dos mecanismos de garan-
tia desses direitos”. (SHAW, 2010, p. 266)
Por fim, merece destaque o princípio da proporcionalidade, um quarto princípio de
uso recorrente pela Corte Europeia no desenvolvimento de suas atividades. (FØLLESDAL;
PETERS; ULFSTEIN, 2013, p. 10-11) Cabe aqui destacar-se que se trata de um princípio de
aplicação comum tanto no âmbito do direito interno dos Estados como no plano internacional.
Genericamente, o princípio da proporcionalidade pressupõe existir uma razoável re-
lação de proporcionalidade entre os meios empregados e o fim a ser alcançado, devendo-se
sempre proibido os excessos. No contexto da Convenção, o que se busca por meio da aplicação
desse princípio aos casos decididos pela Corte é o “justo equilíbrio entre as demandas do inte-
resse geral da comunidade e as demandas de proteção de direitos fundamentais individuais”.
(PIOVESAN, 2014, p. 116) Conforme explicam Andreas Føllesdal, Birgit Peters e Geir Ulfstein
(2013, p. 19), a proporcionalidade mede a intensidade das limitações aos direitos humanos indi-
viduais e avaliam o equilíbrio entre os interesses de um determinado Estado-parte da Conven-
ção e os interesses do indivíduo, no bojo de um caso concreto.
Obviamente o papel desse princípio será de maior relevância em áreas nas quais a
Convenção expressamente permite restrições de direitos, pois nos casos em que a própria Con-
venção permitir a restrição de direitos, essa “restrição deverá ser efetuada pelo Estado em prol
de uma finalidade legítima, ser adequada em seus propósitos e estritamente necessária”. (PIO-
VESAN, 2014, p. 117)
A atividade desenvolvida pela Corte Europeia de Direitos Humanos tem sido muito
intensa nos últimos anos, principalmente após as reformas e modificações produzidas pelos
Protocolos anteriormente comentados, que tiveram o condão de aperfeiçoar o sistema, facili-
tando o acesso à Corte, que por sua vez tem decidido sobre uma ampla diversidade de assuntos
envolvendo dos direitos protegidos pela Convenção Europeia.
Não caberia aos propósitos do presente texto proceder à uma análise exaustiva da
imensa gama de casos que têm sido decididos pela Corte. Contudo, alguns sucintos comentários
acerca da casuística que envolve a atividade do Tribunal na proteção dos direitos humanos no
continente europeu são pertinentes.
No exercício de suas atividades, a Corte já foi chamada a lidar com diversos casos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
16 Por exemplo, o caso Al-Adsani vs. Reino Unido – 35763/97 [2001] ECHR 761 (21 November 2001).
155
como uma norma de jus cogens, ou seja, uma norma imperativa de direito internacional geral.17
Em um caso entre Irlanda vs. Reino Unido, v.g., a Corte entendeu e julgou no sentido
de que as técnicas de interrogatório (cinco técnicas) usadas pelas forças britânicas na Irlanda
do Norte representavam um tratamento desumano e degradante, implicando em uma violação
do art. 3º da Convenção.
Em um caso julgado em julho de 2013, entre Douglas Vinterm, Jeremy Barber e Peter
Moore vs. Reino Unido, a Corte condenou o país em decorrência do rigor de sua legislação
sobre a prisão perpétua. Decidiu-se que os três detentos submetidos a esta sanção padeciam de
tratamento considerado desumano e degradante, tendo em vista a irreversibilidade da prisão.18
No julgamento, os juízes consideraram que todos os condenados têm de ter uma possibilidade
clara de, algum dia, ter a sua punição revista.
Ainda sobre os tratamentos desumanos e degradantes, inclui-se a questão da pena de
morte. O caso mais famoso, emblemático e controverso apreciado pela Corte foi Söring vs. Rei-
no Unido19, que não apreciou a questão da pena de morte em si, mas in casu, entendeu-se que
não haveria possibilidade de extradição de Söring para os Estados Unidos, levando em conside-
ração as consequências que iria suportar se retornasse à América (v.g., o método de execução,
as circunstâncias pessoais do detido, a desproporcionalidade da sentença para a gravidade do
crime e as condições de detenção). A Corte decidiu que nesse caso a pena de morte seria um
tratamento cruel. Mais tarde, Söring foi extraditado, entretanto, os Estados Unidos se compro-
meteram a garantir-lhe uma vasta gama de direitos, a fim de que ele não fosse submetido à pena
de morte. Na mesma linha a Corte decidiu, no caso Jabari vs. Turquia, que a deportação para o
Irã de uma mulher que correria o risco de ser apedrejada seria violação do art. 3º da Convenção.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos também já apreciou a questão das penas de
caráter corporal. O caso Tyrer vs. Reino Unido20 foi emblemático. O menino cometeu um crime
aos 15 (quinze) anos de idade e foi condenado a uma pena corporal correspondente a 3 (três)
chicotadas, que foram efetuadas em uma Delegacia de Polícia. A Corte decidiu, por 6 (seis)
17 A norma de jus cogens está prevista no art. 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CVDT): “Art. 53. Tratado em
Conflito com uma Norma Imperativa de Direito Internacional Geral (jus cogens). É nulo um tratado que, no momento de sua conclusão,
conflite com uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de Direito
Internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados como um todo, como norma da qual ne-
nhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por norma ulterior de Direito Internacional geral da mesma natureza”. André
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de Carvalho Ramos (2011, p. 445-446) conceitua como norma imperativa de Direito Internacional (também denominada norma cogente
ou norma de jus cogens) como “aquela que contém valores considerados essenciais para a comunidade internacional como um todo, o que
lhe acarreta superioridade normativa no choque com outras normas de Direito Internacional”. Esclarece ainda o autor que “pertencer ao
jus cogens não significa ser considerada tal norma como obrigatória, pois todas as normas internacionais o são: significa que, além de
obrigatória, a norma cogente não pode ser modificada ou eliminada, a não ser que a tal modificação ou eliminação sejam oriundas de norma
imperativa posterior”. Para uma melhor compreensão do tema, vide também: RODAS, João Grandino. Jus Cogens em Direito Internacio-
nal. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/66736/69346>. Acesso em 30 abr. 2015; TOMUSCHAT, Christian;
THOUVENIN, Jean-Marc. The Fundamental Rules of the International Legal Order: Jus Cogens and Obligations Erga Omnes. Martinus
Nijhoff Publishers, 2006; BAPTISTA, Eduardo Correia. Ius Cogens em Direito Internacional. Lisboa: Lex, 1997. Vide também decisão
proferida no caso n. IT-95-17/I-T, (1999), in International Legal Materials, julgado em 10 de Dezembro de 1998.
18 Reino Unido é condenado na Corte Europeia de Direitos Humanos por rigor em prisão perpétua. Disponível em <http://operamundi.
uol.com.br/conteudo/noticias/29902/reino+unido+e+condenado+na+corte+
europeia+de+direitos+humanos+por+rigor+em+prisao+perpetua.shtml>. Acesso em 30 abr. 2015.
19 Documento número 14038/88, julgado 07 de Julho de 1989.
20 Documento número 5856/72, julgado no dia 25 de Abril de 1978.
156
votos a 1 (um), pela ilegalidade da pena, que foi entendida como degradante. Por outro lado, na
análise do caso Costello-Roberts vs. Reino Unido21, a Corte entendeu que a punição não feria,
propriamente, o art. 3º da Convenção. No caso, a mãe denunciou o Reino Unido, tendo em vista
que sua filha, de 7 (sete) anos, se sujeitou a uma pena corporal em uma escola privada, de acordo
com as regras de disciplinas existentes.
A Corte também já apreciou diversos casos envolvendo a questão das condições dos
presídios europeus. No caso Aleksandr Novoselov vs. Rússia22, a Corte entendeu, pela primeira
vez, que a conjuntura apresentada pelo sistema prisional na cidade de Novorossiysk, onde o
indivíduo cumpria pena, era considerado um tratamento degradante. Na decisão desse caso,
a Corte também citou precedentes do Comitê Europeu para a Prevenção da Tortura acerca da
superpopulação carcerária.
Em McCann vs. Reino Unido, a Corte, por apertada maioria, decidiu que a matança
de três membros de uma unidade do Irish Republican Army (IRA) ou Exército Republicano
Irlandês, pelas forças de segurança britânicas, por suspeita de estarem envolvidos na instalação
de uma bomba em Gibraltar, constituía uma violação do direito à vida previsto no artigo 2º da
Convenção. Em outro caso, o Tribunal julgou que o direito à vida, garantido pelo referido art.
2º, acarreta para os Estados a obrigação de tomar medidas adequadas para a proteção da vida
dentro de sua jurisdição, conforme se vê no caso LCB vs. Reino Unido.
No caso Brogan e outros vs. Reino Unido, a Corte concluiu que o período de detenção
de pelo menos quatro dias, sem oportunizar ao detento o direito de ter contato com um juiz ou
outro órgão jurisdicional, determinado pela legislação antiterrorista britânica, constituía viola-
ção da Convenção.
Cuidando de questões envolvendo a discriminação, no caso Marckx vs. Bélgica, a
Corte ressaltou que a legislação belga que discriminava os filhos ilegítimos violava os arts. 8º
(direito ao respeito à vida privada) e 14 (proibição de discriminação) da Convenção.
No tocante à discriminação quanto à orientação sexual, no emblemático caso Dud-
geon vs. Reino Unido, a Corte considerou que a legislação aprovada no século XIX, para cri-
minalizar atos homossexuais masculinos na Inglaterra, País de Gales e na Irlanda, também
violava os referidos arts. 8º e 14 da Convenção.23 Como consequência dessa decisão, a prática
consensual homossexual masculina foi descriminalizada na Irlanda do Norte, em outubro de
1982. Vale ressaltar que o comportamento homossexual feminino nunca foi considerado crimi-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
157
sexuais nas Forças Armadas, mediante investigação de sua vida privada e sexualidade, também
constituía uma violação aos referidos arts. 8º e 14 da Convenção.
No caso Young, James e Webster vs. Reino Unido, a Corte julgou que a dispensa de fer-
roviários de seus trabalhos, em razão da recusa de filiação a um sindicato no Reino Unido, cons-
tituía fato passível de gerar indenização, outorgando esse direito aos trabalhadores demitidos.
A Corte também já decidiu que, em determinadas circunstâncias, um Estado teria a
obrigação positiva de conduzir um inquérito ou investigação oficial eficaz em casos de morte
de um indivíduo em decorrência do uso da força por parte de agentes do Estado, como se pode
verificar no caso McCann vs. Reino Unido.
Em julgamento ocorrido em novembro de 2013, no caso Vallianatos e outros vs. Gré-
cia, Corte Europeia apreciou um dos principais casos relativos ao direito dos homossexuais,
concernente na possibilidade de pessoas do mesmo sexo constituírem união estável, sem que o
Estado venha a interferir negativamente nesse sentido. Analisando a questão, entendeu a Corte
que o direito de constituir família é universal e deve ser zelado pelo Estado em relação a todos
os seus cidadãos, independente de condição sexual. A Corte asseverou ainda que o Estado deve
aceitar e reconhecer esta maneira de formação familiar (família homoafetiva), de modo que,
só pode, por lei, restringir direitos, caso constate-se argumentos razoáveis. Se não for o caso,
estar-se-ia diante de um tratamento discriminatório. Importante acrescentar que a Corte funda-
mentou em parte o seu entendimento, justamente em decorrência de posições distintas adotadas
por países como a Grécia e a Lituânia, que restringem os direitos aos casais heterossexuais.24
Também no ano de 2013 a Corte foi chamada a se manifestar sobre a polêmica ques-
tão que envolve o suicídio assistido, no caso Gross vs. Suíça. Apreciando o caso de uma idosa
de 82 anos, que pleiteava o direito de internar-se em uma clínica para sofrer a eutanásia, sob a
alegação de que, embora não estivesse doente, sua idade avançada era um percalço para suas
atividades rotineiras e contribuía para as diversas limitações físicas que estava a experimentar,
impedindo-a de gozar a sua vida com dignidade, a Corte entendeu que o direito de morrer deve-
ria ser concedido a toda pessoa capaz de discernimento e consciente de sua conduta, restando o
Estado a impossibilidade de intervir nesses casos, sob pena de violação do art. 8º da Convenção.
A questão ainda deve ser julgada pelo Tribunal Pleno.25
Em 2014, a Corte foi chamada a decidir um importante caso envolvendo questões re-
lativas à ofensas morais e o direito de reparação em razão dessas ofensas, veiculadas em sítios
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
24 Vallianatos and Others v. Greece (Applications nos. 29381/09 and 32684/09).
25 Court agrees Grand Chamber hearing for Swiss ‘right to die’ complaint. Disponível em: <http://www.humanrightseurope.org/2013/10/
court-agrees-grand-chamber-hearing-for-swiss-right-to-die-complaint/>. Acesso em 30 abr. 2015.
158
tificados para retirar tais comentários e quedavam-se inerte, a Corte decidiu no sentido de que o
portal deve sempre manter um filtro para os comentários feitos pelos usuários, com a finalidade
de impedir certas manifestações que possam denegrir a imagem e a honra de alguém.
A era digital certamente ainda vai proporcionar à Corte o julgamento de questões bas-
tante complexas, tais como o desafio de decidir se o impedimento dos presos ao uso da internet
viola o direito de acesso amplo e irrestrito à informação e se a prisão justifica a limitação na
liberdade de expressão, conforme previsto no art. 10 da Convenção. Nesse sentido, aguarda
julgamento o caso Henrikas Jankovskis vs. Lituânia.26
Por fim, ainda quanto ao tema relativo às decisões emanadas da Corte Europeia de
Direitos Humanos, importante acrescentar a situação peculiar ocorrente na Rússia, país esse
que tem grande dificuldade em adequar seu ordenamento jurídico aos entendimentos exarados
pelo Tribunal Europeu. Dentre os países submetidos à jurisdição da Corte, a Federação Russa é
um dos que mais encontra complicações na efetivação das decisões, uma vez que possui regra-
mento jurídico interno que muitas vezes entra em choque com os direitos humanos previstos na
Convenção.27
No caso Kostantin Markin vs. Rússia, apreciado pela Corte em 2010, foi decidido que
a lei russa que impede a licença paternidade aos pais militares é discriminatória, uma vez que a
mesma regra permite a concessão da benesse às militares do sexo feminino, infringindo, assim,
o artigo 14 da Convenção. Outro julgado digno de nota e que foi decidido pela Corte é o caso
Shtukaturov vs. Rússia, apreciado em 2008. A decisão abordou a questão acerca da interdição
de uma pessoa e sua submissão a um hospital de custódia, tendo a Corte decidido no sentido de
que as diretrizes utilizadas pela Federação Russa no tocante a tais casos não eram compatíveis
com os padrões europeus.
Evidente, portanto, a divergência de posicionamentos entre a Corte Europeia de Direi-
tos Humanos e a Federação Russa, no que diz respeito às situações que envolvem a concepção
da dignidade da pessoa humana, uma vez que, enquanto existe a atitude de se preservar cada
vez mais sua essência, percebe-se que ainda há países que possuem sistemas arcaicos que em-
pregam conjunturas medievais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
26 Corte Europeia julga se preso pode usar Internet. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jan-06/curte-europeia-julga-preso-
-direito-acesso-internet>. Acesso em 30 abr. 2015.
27 Nesse sentido, vide interessante e elucidativo texto: ISSAEVA, Maria; SERGEEVA, Irina; SUCHKOVA, Maria. Execução das de-
cisões da Corte Europeia de Direitos Humanos na Rússia: Avanços recentes e desafios atuais. In: Sur – Revista Internacional de Direitos
Humanos. Edição v. 8, n. 15, Jan/2011. Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/15/1000166-execucao-das-decisoes-
-da-corte-europeia-de-direitos-humanos-na-russia-avancos-recentes-e-desafios-atuais>. Acesso em 30 abr. 2015
159
constituiu a mola propulsora para o nascimento e o desenvolvimento de sistemas protetivos de
direitos humanos fundamentais, tanto no plano global como em âmbito regional.
Assim, ao lado do sistema universal de proteção dos direitos humanos, arquitetado no
âmbito das Nações Unidas, surgiram os sistemas regionais de proteção, sendo que o sistema
regional europeu foi o primeiro a ser instituído, em 1950.
Em sendo o objeto de estudo do presente texto, o Sistema Europeu de Proteção dos
Direitos Humanos foi analisado, levando-se em consideração seus principais aspectos, sem
obviamente pretender-se realizar um estudo exaustivo da temática proposta, o que não caberia
dentro dos limites que se impõem à espécie de texto ora produzido.
Como tratado regente desse sistema, foi analisada a Convenção Europeia de Direitos
Humanos, documento mais importante e a base de todo o sistema regional de proteção aos di-
reitos humanos do velho continente, onde se pôde verificar a sua estrutura, os direitos que con-
sagra, bem como os órgãos que a compõem, com destaque para a Corte Europeia de Direitos
Humanos. Também foram tecidas várias considerações pertinentes, relativas aos importantes
documentos internacionais, denominados Protocolos, que tiveram a importante função de aper-
feiçoar o sistema europeu de proteção dos direitos humanos.
Em relação ao principal órgão da Convenção, restou analisada a estrutura da Corte
Europeia de Direitos Humanos, onde foi possível se verificar os órgãos que a compõem, sua
competência e aspectos relativos à processualística estabelecida pela Convenção para o trâmite
dos casos que lhe são submetidos. Também foram analisados os princípios mais importantes
utilizados pela Corte na interpretação da Convenção e dos direitos nela consagrados.
Por fim, por meio da análise ainda que perfunctória de alguns casos que têm sido de-
cididos pela Corte, verificou-se a importância do Sistema Europeu de Proteção aos Direitos
Humanos na atualidade. O que foi possível perceber por meio dos diversos julgados analisados
é que o valor supremo do ser humano enquanto tal, bem como a sua dignidade, têm sido cada
vez mais buscados em sua essência, ainda quando se trate de indivíduos que tenham sido con-
denados criminalmente em seu país de origem ou em outros países.
Desta forma, verifica-se que a interpretação teleológica, efetiva, evolutiva e dinâmica
da Convenção, que tem sido levada à efeito pela Corte, tem proporcionado uma grande abertura
em sua natureza protetiva, ampliando-se a eficácia dos direitos protegidos, justamente com a
finalidade de conter arbitrariedades estatais e, com a observância do princípio da proporciona-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
lidade, proporcionar a devida reparação nos casos de violações dos direitos consagrados pela
Convenção.
Embora tenha sido o palco dos embates mais sangrentos da história da humanidade e
das piores violações do direito à vida e à dignidade humana, parece que o continente europeu
tem experimentado enfim, graças ao sistema regional de proteção de direitos que conseguiu
instituir, um novo tempo! Um tempo onde as barbáries são coibidas, os abusos são reprimidos,
a discriminação é amordaçada e a desigualdade é atenuada. Um tempo onde violações de direi-
tos importam em justa reparação, ainda que não seja mais possível se alcançar o status quo. O
160
importante mesmo é continuar progredindo!
REFERÊNCIAS
BAPTISTA, Eduardo Correia. Ius Cogens em Direito Internacional. Lisboa: Lex, 1997.
Corte Europeia julga se preso pode usar Internet. Disponível em: <http://www.conjur.com.
br/2013-jan-06/curte-europeia-julga-preso-direito-acesso-internet>. Acesso em 30 abr. 2015.
Court agrees Grand Chamber hearing for Swiss ‘right to die’ complaint. Disponível em:
<http://www.humanrightseurope.org/2013/10/court-agrees-grand-chamber-hearing-for-swiss-
right-to-die-complaint/>. Acesso em 30 abr. 2015.
Direitos Humanos. Conselho da Europa, Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: História,
Organização, e Processo. Disponível em: <http://www.gddc.pt/direitos-humanos/sist-europeu-
dh/cons-europa-tedh.html>. Acesso em 30 abr. 2015.
ISSAEVA, Maria; SERGEEVA, Irina; SUCHKOVA, Maria. Execução das decisões da Corte
Europeia de Direitos Humanos na Rússia: Avanços recentes e desafios atuais. In: Sur –
161
Revista Internacional de Direitos Humanos. Edição v. 8, n. 15, Jan/2011. Disponível em:
<http://www.conectas.org/pt/acoes/sur/edicao/15/1000166-execucao-das-decisoes-da-corte-
europeia-de-direitos-humanos-na-russia-avancos-recentes-e-desafios-atuais>. Acesso em 30
abr. 2015
OPERA MUNDI. Reino Unido é condenado na Corte Europeia de Direitos Humanos por
rigor em prisão perpétua. Disponível em: <http://operamundi.uol.com.br/conteudo.
162
PROTECTING HUMAN RIGHTS IN THE EUROPEAN CONTINENT: BRIEF
NOTES
163
Recebido em 15 abr. 2015
Aceito em 4 maio 2015
Até 1990, a Justiça criminal brasileira seguia (ferreamente) o modelo conflitivo (clás-
sico), que pressupõe investigação, denúncia, processo, ampla defesa, contraditório, produção de
provas, sentença, duplo grau de jurisdição, etc. Praticamente, estava vedado qualquer tipo de
negociação entre a acusação e a defesa. Não que um corréu não pudesse delatar seu comparsa;
isso sempre foi possível; mas não se falava em novo paradigma de Justiça (mudanças pontuais
não alteram o paradigma). Em 1990, com a lei dos crimes hediondos, foram ampliadas as pos-
sibilidades de delação premiada (mas ainda não se falava em novo paradigma).
Mudança relevante no cenário aconteceu, verdadeiramente, com o advento da Lei dos
Juizados Criminais (Lei 9.099/95), que rompeu o velho paradigma conflitivo nas infrações de
menor potencial ofensivo (infrações com pena não superior a dois anos). Desde 1995, os dois
subsistemas convivem, cada qual tendo validade num determinado âmbito da criminalidade. O
importante é que o sistema de Justiça negociada nunca foi declarado inconstitucional pelo STF.
O oposto da Justiça conflitiva é a Justiça consensuada (que prega a resolução alterna-
tiva do conflito penal). Dentro do guarda-chuva “Justiça consensuada” é necessário distinguir
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
quatro subespécies: (a) Justiça reparatória (que se faz por meio da conciliação e da reparação
dos danos – juizados criminais; crimes ambientais-TAC); (b) Justiça restaurativa (que exige
um mediador, distinto do juiz; visa a solução do conflito, que é distinta de uma mera decisão);
(c) Justiça negociada (onde se encaixa a plea bargaining, tal como nos EUA – 97% dos casos
* LUIZ FLÁVIO GOMES, jurista e diretor-presidente do Instituto Avante Brasil (membro do MCCE).
** MARCELO RODRIGUES DA SILVA, advogado, especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura e especialista em
Direito Contratual pela PUC-SP.
164
são resolvidos pela negociação, de acordo com o juiz federal norte-americano Jeremy D. Fogel,
em entrevista para o Conjur) e (d) Justiça colaborativa (que é subespécie de Justiça negociada,
caracterizando-se por premiar o criminoso quando colabora consensualmente com a Justiça
criminal).
2 SISTEMA NORTE-AMERICANO
A Justiça consensuada (1) veio para ficar (nisso consiste o processo de norteamerica-
nização da Justiça criminal), ou seja, pelo que é possível perceber vai se firmando a cada dia
como novo paradigma da Justiça criminal; (2) implica necessariamente na existência de uma
pluralidade de ordenamentos jurídicos (onde se permite a Justiça negociada há uma prolifera-
ção de microssistemas jurídicos); (3) destaque merece, no sistema norte-americano, o instituto
da plea bargaining, que exige a declaração de culpabilidade do agente - guilty plea; (4) a plea
bargaining é diferente da plea of nolo contendere, que vale no Brasil para os juizados criminais:
neste sistema o réu não admite sua culpabilidade, mas, ao mesmo tempo, não quer contender,
não quer litigar, por isso aceita a transação; a plea bargaining tem como subespécie o approve-
ment, que consiste na impunidade de um agente pelo testemunho dado, ou seja, pela colabora-
ção dada; neste caso o sujeito não é sequer processado, tal como se permite agora na Lei 12.850,
art. 4º, § 4º; (5) não se pode confundir a Justiça negociada (consensuada) com a mera confissão
do crime (que no sistema nacional é circunstância atenuante, nos termos do art. 65, III, “d”, do
CP); (6) a plea bargaining norte-americana se divide em charge bargaining (negociação sobre
a imputação; troca-se uma acusação maior por uma menor, por exemplo), sentence bargaining
(negociação sobre a pena e demais consequências do delito) e negociação mista (as duas coisas
ao mesmo tempo); (7) a plea bargaining existe no sistema norte-americano desde o final do sé-
culo XIX; (8) incontáveis razões levaram à sua adoção, destacando-se: o excesso de processos,
amplo poder discricionário ao MP, complexidade do tribunal do júri, satisfação dos interesses
dos atores processuais (excesso de trabalho com escassez de meios, pessoas e recursos, racio-
nalização do trabalho; ganho de honorários mais rápido; evitar penas mais severas; excesso de
trabalho dos defensores públicos, previsibilidade do resultado do processo, “crime wave” dos
anos 60 nos EUA, reconhecimento da plea bargaining nos anos 70 pela Suprema Corte etc.); (9)
dentre as razões da Justiça negociada nos EUA cabe destacar a ampla discricionariedade do MP
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
165
das provas, incluindo as das investigações paralelas, permitidas no sistema norte-americano);
(13) à plea bargaining se aplica a teoria dos jogos, ou seja, se um delata, a posição mais favo-
rável é a de todos delatarem; (14) a Justiça negociada dos EUA prevê uma série de garantias:
documentação das negociações (em audiência aberta- in open court), presença de advogado,
supervisão de um juiz (neste ponto nosso sistema é distinto); (15) quanto aos requisitos de va-
lidade da negociação cabe elencar os seguintes: capacidade do acusado, declaração informada,
declaração voluntária (nenhum tipo de coação ou ameaça), existência de base fática (que possa
derrubar a presunção de inocência); (16) exige-se a homologação do juiz; (17) cabe revogação da
negociação por vício da vontade (ameaça, constrangimento, violência) e impugnação por vícios
precedentes (provas ilícitas, por exemplo); (18) outras críticas ao instituto da negociação crimi-
nal são as seguintes: desjudicialização do conflito (o acordo se faz entre a acusação e a defesa,
cabendo ao juiz a homologação), erosão do princípio acusatório (ou seja, do velho processo con-
flitivo), erosão das garantias da defesa, aplicação desigual da lei penal, desconformidade com
os fins da pena; (19) em virtude de todas as críticas, fala-se sempre em abolição do sistema ou
regulação mais detalhada ou ainda em reforma (que significaria mais informação ao réu sobre
as provas em poder do MP, novo papel para a vítima, mais participação do juiz, evitar o máxi-
mo possível o acordo com réu em prisão preventiva, abolir qualquer tipo de coação, alteração
do quadro punitivo em geral); (20) a plea barganining triunfou nos EUA, mas continua sendo
muito complicado dizer que também triunfaram a Verdade, a Igualdade e a Justiça1.
3 SISTEMA BRASILEIRO
A colaboração premiada não é instituto exclusivo da Lei 12.850/2013. Este mesmo ins-
tituto é também tratado em outros diplomas sob a denominação “delação premiada”, tais como:
a) Artigo 8º, parágrafo único da Lei 8.072/1990;
b) Artigo 159, § 4º do CP (extorsão mediante sequestro);
c) Artigo 25, § 2º da Lei 7492/1986 (crimes contra o sistema financeiro nacional);
d) Artigo 16, parágrafo único da Lei 8.137/1990 (crimes contra a ordem econômica e
financeira);
e) Artigo 1º, § 5º da Lei 9.613/1998 (com redação dada pela lei 12.693/2012);
f) Artigos 13 e 14 da Lei 9.807/1999;
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 Ver sobre o tema ALBERGARIA, Pedro Soares de. Plea bargaining: aproximação à justiça negociada nos E.U.A. Coimbra: Alme-
dina, 2007; BITTAR, Walter Barbosa; PEREIRA, Alexandre Hagiwara (colaborador). Delação premiada: direito estrangeiro, doutrina e
jurisprudência. 2. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; GARCÍA ESPAÑA, Elisa. El premio a la colaboración con la
justicia: especial consideración a la corrupción administrativa. Granada: Comares, 2006; GOMES, Luiz Flávio. “Delação é coisa de cana-
lha?” Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, ano IX, n. 53, Porto Alegre: Magister, abr./maio 2013, p. 62-64; MAYNARD,
Douglas W. Inside plea bargaining: the language of negotiation. New York: Plenum Press, 1984; PINTO, Ronaldo Batista. A colaboração
premiada da Lei n. 12.850/2013. Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal, ano X, n. 56, Porto Alegre: Magister, out./nov.
2013, p. 24-29; QUEZADO, Paulo; VIRGINIO, Jamile. Delação premiada. Fortaleza: Gráfica Editora Fortaleza, 2009; RIQUERT, Mar-
celo Alfredo. La delación premiada en el Derecho Penal: el “arrepentido”: una “técnica especial de investigación” en expansión. Buenos
Aires: Hammurabi, 2011; RODRÍGUEZ GARCÍA, Nicolás. La justicia penal negociada: experiencias de derecho comparado. Salamanca:
Universidad Salamanca, 1997.
166
g) delação via acordo de leniência prevista nos artigos 86 e 87 da Lei 12.529/2011;
h) Artigo 41 da Lei 11.343/2006 (tráfico de entorpecentes).
Antes do advento da Lei 12.850/2013, entendia-se que o instituto era previsto com con-
tornos de norma geral na Lei de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas – 9.807/1999
(arts. 13 e 14)-, pois os requisitos gerais estavam previstos nesta lei, sendo que a temática espe-
cial era tratada na Lei 9.034/1995, art. 6º (combate ao crime organizado); Lei 9.613/1998, art. 1º,
§ 5º (com a redação conferida pela Lei 12.683/2012) (lavagem de dinheiro); Lei 8.072/1990, art.
8º, parágrafo único (crimes hediondos); Lei 8.137/1990, art. 16, parágrafo único (crimes contra
a ordem tributária); Lei 7.492/1986, art. 25, § 2º (crimes contra o sistema financeiro nacional);
Código Penal, art. 159, § 4º (extorsão mediante sequestro); e Lei 11.343/2006, art. 41 (tráfico de
drogas). Esta posição de que a Lei 9.807/1999 tratava-se de norma geral de regulação da delação
premiada era inclusive a posição sufragada pela 4ª Turma do STJ2. Veja-se:
167
da sua efetiva colaboração resulta a apuração da verdade real.
9. Ofende o princípio da motivação, consagrado no art. 93, IX, da CF, a fixação da
minorante da delação premiada em patamar mínimo sem a devida fundamentação,
ainda que reconhecida pelo juízo monocrático a relevante colaboração do
paciente na instrução probatória e na determinação dos autores do fato delituoso.
10. Ordem concedida para aplicar a minorante da delação premiada em seu grau
máximo; a informação disponível não será considerada para fins de contagem de
prazos recursais.
A delação premiada da Lei 9.807/1999 pode ser aplicável a quaisquer crimes, inclusive
culposos, observados os requisitos legais, e ressalvada a legislação específica sobre delação/
colaboração.
A Lei 12.850/2013 é muito mais detalhista quanto ao procedimento da colaboração
premiada quando comparada à Lei 9.807/1999. A Lei 12.850/2013 disciplinou vários aspectos
procedimentais, tais como: a impossibilidade de participação do juiz nas negociações realizadas
entre as partes, a forma de homologação do acordo de colaboração pelo juiz, a possibilidade de
retratação da proposta e suas consequências jurídicas, etc.
Assim, surge o seguinte questionamento: A Lei 9.807/1999 deixou de ser norma geral,
abrindo-se espaço para a Lei 12.850/2013 ser o novo paradigma procedimental para a realização
de delações premiadas?
Muito embora a lei 12.850/2013 não tenha revogado as demais leis 3, ela pode servir
como norma geral de regulamentação do instituto no que diz respeito aos seus aspectos proce-
dimentais. Neste mesmo sentido leciona Eduardo Luiz Santos Cabette e Marcius Tadeu Maciel
Nahur (2014, p. 182):
168
“Diálogo” surge com o objetivo de fornecer ao intérprete uma nova ferramenta hermenêutica
hábil a solucionar o conflito entre as leis de um mesmo ordenamento, ultrapassando os critérios
tradicionais de solução de antinomias, sendo plenamente passível de utilização no âmbito penal
(muito embora no Brasil só se tenha notícias de sua utilização no âmbito do direito privado).
O diálogo das fontes ampara o entendimento no sentido que quando duas regras de di-
ferentes ramos no direito regem o mesmo fato, haverá possibilidades de o juiz, por meio de seu
papel consolidador do sistema, escolher por aquela que mais ampara os direitos fundamentais,
ainda que configure norma de natureza geral diante de norma de natureza especial.
Assim sendo, as normas de delação premiada devem complementar-se umas às outras,
no que lhes forem compatíveis, mantendo-se um diálogo sistemático de coerência, ou seja, é
necessário que essa complementação se dê de forma coerente com o sistema em que cada uma
se encontra inserida.
Destarte, plenamente possível que, por exemplo, se aplique o procedimento de forma-
lização do acordo da colaboração premiada da Lei 12.850/2013 (que deve ser escrito e obede-
cer aos requisitos do artigo 6º desta lei) às outras normas que não disciplinaram tal procedi-
mento4 (tais como as Leis 8.072/1990, 7.492/1996, 9.807/1999, 9.613/1998, 11.343/06, 8.137/1990,
12.529/2011 e artigo 159, § 4º do Código Penal), pois além do fato de trazer segurança ao réu
colaborador/delator, respeita-se a garantia constitucional do devido processo legal.
De outro lado, como já afirmado, por certo que deve tal diálogo das fontes manter um
sistema de coerência (diálogo sistemático de coerência). Destarte, se uma organização crimi-
nosa pratica o crime de lavagem de capitais, não haveria que se falar em necessidade de obten-
ção de algum dos resultados previstos no artigo 4º e incisos da Lei 12.850/13 para se falar em
concessão do prêmio previsto no artigo 1º, § 5º da Lei 9.613/98 com relação a este crime, pois a
Lei de 9.613/98 exige como requisito do recebimento do prêmio que o delator leve ao resultado
da identificação dos autores, coautores ou partícipes “ou” (conjunção alternativa) que leve à
localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime, ao passo que a Lei 12.850/13 (artigo
4º, inciso I) exige a soma desses dois resultados para a obtenção do prêmio (identificação dos
demais coautores e partícipes da organização criminosa “e” das infrações penais por eles pra-
ticadas).
Entende-se também que as outras legislações de delação premiada podem complemen-
tar a Lei 12.850/2013. Veja-se que o artigo 4º da Lei de Organizações Criminosas (LOC) reza
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
que o juiz poderá, em razão do acordo de colaboração (alcançado um dos resultados elencados),
reduzir a pena em até 2/3, não fixando, portanto, um patamar mínimo de redução da pena (o que
poderia levar ao absurdo de o juiz poder reduzir a pena em apenas 1 dia, por exemplo).
Salienta-se que todas as outras leis que tratam do instituto da delação premiada trazem
um patamar mínimo de redução da pena (qual seja: 1/3). Desta forma, para se manter a coerên-
4 Neste mesmo sentido EUGÊNIO PACELLI DE OLIVEIRA (2014, p. 857): “Até por ausência de especificação das demais leis acerca
da matéria, o procedimento de formação da homologação do acordo de colaboração previsto na lei 12.850/13 poderá ser aplicado àquelas
hipóteses, desde que compatíveis com as regras de proteção à testemunha previstas na lei n. 9.807/99”.
169
cia do sistema, é necessário que haja complementação da Lei 12.850/2013 pelas demais normas
especiais sobre o instituto, devendo o quantum mínimo de redução da pena ser também de 1/3
na LOC (lei de organizações criminosas). Há controvérsia doutrinária neste ponto, que será
abordada quando tratarmos dos prêmios relativos à colaboração premiada.
Alguns institutos preveem que a delação deve ser espontânea (ex vi, Lei 7.492/86,
9.613/1998 e 8.137/1990) e outros preveem que a delação deve ser voluntária (ex vi, Lei
12.850/2013, 8.072/1990, 9.807 etc.). A diferença é que o ato espontâneo é aquele em que a
intenção de praticá-lo nasce exclusivamente da vontade do colaborador, sem interferência ex-
terna. Já o ato voluntário permite que o agente colabore por interferência alheia. Neste ponto,
também entendemos que deve haver uma uniformização dos institutos pelo intérprete, pois se
até com relação à organização criminosa (socialmente mais grave) permite-se que a colaboração
premiada seja voluntária, não há motivos para se exigir que as delações premiadas dos outros
diplomas normativos sejam espontâneas.
Ademais, os direitos do colaborador previstos no artigo 5º da Lei 12.850/2013 devem
ser aplicados a todos os outros diplomas normativos que cuidam de delação premiada.
O Diálogo das Fontes insere-se dentro do contexto de constitucionalização do direito
penal (direito penal constitucional), pois possibilita que as leis penais respeitem a carta de di-
reitos fundamentais.
5 ASPECTOS CRÍTICOS
Com a Lei 12.850/13 o instituto da colaboração premiada (da qual a delação é uma mo-
dalidade) recebeu tratamento jurídico meticuloso, sempre procurando preservar a autonomia da
vontade, o que significa que ela necessariamente deve vir ancorada na liberdade de negociar ou
não negociar, na presença de advogado. A ausência de liberdade para negociar constitui um dos
motivos para se declarar a nulidade do ato colaborativo. De forma alguma se justifica qualquer
tipo de coação ou extorsão para se obtê-la (sob pena de nulidade do ato).
Muito menos se justifica o uso da prisão ou de qualquer outro tipo de ameaça para essa
170
finalidade5. Quando isso ficar comprovado é claro que a colaboração premiada não terá nenhum
valor jurídico (gerando a nulidade de todos os atos fundados nela ou decorrentes diretamente
dela). Pode-se extrair do bom humor de André Karam Trindade e Lênio Streck que o passarinho
para cantar não precisa estar preso. A prisão não pode ser instrumento para o acusado “abrir o
bico” 6.
Nada impede a decretação de prisão cautelar ou de medidas cautelares diversas da
prisão se presentes os requisitos legais. A possibilidade de manter o colaborador na prisão está
estampada no artigo 15 da Lei 9807/1999, que deve dialogar com a Lei 12.850/2013, pois esta
última elenca em seu artigo 5º, inciso I como seu direito: “usufruir das medidas de proteção
previstas na legislação específica;”. A legislação específica que alude o dispositivo é o artigo 15
da Lei 9807/1999, que estabelece o seguinte: “Serão aplicadas em benefício do colaborador, na
prisão ou fora dela, medidas especiais de segurança e proteção a sua integridade física, consi-
derando ameaça ou coação eventual ou efetiva”.
O juiz deve funcionar como o semáforo do sistema: se der luz verde para arbitrarie-
dades ou se ele mesmo é o responsável por elas, violado resulta o Estado de Direito; se usar a
luz vermelha para as arbitrariedades estará convalidando o instituto da colaboração dentro dos
contornos do Estado democrático de Direito (restando, nesse caso, apenas a discussão sobre a
eticidade do instituto).
Verifica-se na prática que a colaboração premiada é utilizada como principal carta de
um baralho, incrementando ainda mais a ideia de que processo penal seja um jogo, como prega
Gregorio Robles (2014, p. 15), em que a sorte e a performance dos jogadores em face do Esta-
do Juiz podem ser determinantes no resultado final do processo penal. Neste jogo processual,
como bem leciona Alexandre de Morais da Rosa (2014, p. 33):
5 Vale lembrar triste episódio em que o Procurador da República MANOEL PASTANA afirmou servir a prisão preventiva de estímulo
ao encarcerado para realizar o acordo de colaboração premiada, que será citado ipisis literis: Manoel Pastana (Procurador da República):
“além de se prestar a preservar as provas, o elemento autorizativo da prisão preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
diante da série de atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a colaborar com o desvendamento dos ilícitos
penais, o que poderá acontecer neste caso, a exemplo de outros tantos”. Segundo declarou Manoel Pastana, em entrevista exclusiva ao
sítio Consultor Jurídico, o direito precisa evoluir. “A figura da delação premiada é recente no direito penal brasileiro. Por isso, diante de
uma regra que fala da conveniência da instrução de forma abstrata como causa para a prisão preventiva, é possível se interpretar que uma
dessas conveniências seja forçar o réu a colaborar”, enfatizou. O procurador disse que seus pareceres corresponderam ao que chamou de
“entendimento avançado” do artigo 312 do Código de Processo Penal e se baseou no item que autoriza a prisão preventiva para conveniên-
cia da instrução criminal. Mas assegurou que não distorceu os fatos quando defendeu tal entendimento. Segundo o procurador Pastana, as
prisões devem ser mantidas diante da “conveniência da instrução processual”. Diz ele: “A conveniência da instrução criminal mostra-se
presente não só na cautela de impedir que investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso do paciente, mas também na
possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil
nos últimos tempos”. Pastana também discute a possibilidade de a prisão preventiva ser transformada em alguma das medidas cautelares
previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. Mas ele acredita que, “por razões óbvias, as medidas cautelares alternativas à prisão
são inadequadas e impróprias”. (PASTANA, Manoel. Parecer da Procuradoria da República da 4ª Região no Habeas Corpus 5029050-
46.2014.404.0000 – Caso “Lava-jato”).
6 STRECK, Lênio; TRINDADE, André Karam. O passarinho para cantar precisa estar preso. Viva a inquisição! Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2014-nov-29/diario-classe-passarinho-pra-cantar-estar-preso-viva-inquisicao>, 29 nov. 2014. Acesso em: 02 mar. 2015.
171
Nossas instituições (a exemplo da Polícia, Ministério Público e Judiciário) estão dando
um tratamento matemático às investigações, adotando a Teoria dos Jogos (de John von Neu-
mann e Oskar Morgenstern)7, o que torna sua atividade mais científica e menos intuitiva8. Ao
oferecer a todos os investigados a possibilidade de redução de pena por colaboração premiada,
as autoridades recorrem à teoria dos jogos, mais especificamente a algo parecido com a pro-
blemática do “Dilema do prisioneiro” (originalmente formulado por Merrill Flood e Melvin
Dresher)9. O dilema do prisioneiro dito clássico funciona da seguinte forma:
“Dois suspeitos, A e B, são presos pela polícia. A polícia tem provas insuficientes para
os condenar, mas, separando os prisioneiros, oferece a ambos o mesmo acordo: se um
dos prisioneiros, confessando, testemunhar contra o outro e esse outro permanecer
em silêncio, o que confessou sai livre enquanto o cúmplice silencioso cumpre 10
anos de sentença. Se ambos ficarem em silêncio, a polícia só pode condená-los a 6
meses de cadeia cada um. Se ambos traírem o comparsa, cada um leva 5 anos de
cadeia. Cada prisioneiro faz a sua decisão sem saber que decisão o outro vai tomar, e
nenhum tem certeza da decisão do outro. A questão que o dilema propõe é: o que vai
acontecer? Como o prisioneiro vai reagir?”
A posição mais vantajosa para cada acusado, considerando as escolhas dos outros en-
volvidos (equilíbrio de Nash10), passa a ser falar tudo o que sabe. Isso permite não só avançar
mais nas investigações como também instruir melhor o processo. Sem a colaboração premiada,
a posição de equilíbrio era ficar calado e contar com a incapacidade da polícia de coletar provas
suficientes para a condenação 11. Muitos dos acusados na Operação Lava Jato (escândalo da Pe-
trobras) continuam apegados a esta última perspectiva (até o momento deste artigo). Mas outros
já delataram (como foi o caso de Paulo Roberto Costa, Youssef, ex-diretores da Camargo Corrêa
etc.). O que se depreende da teoria dos jogos é o seguinte: se um dos implicados colaborarem/
delatarem, o melhor resultado para todos é fazer a mesma coisa. Quem colabora/delata recebe
prêmios; quem não colabora nem delata recebe o peso da lei sem diminuições de penas.
Não havendo nenhuma colaboração premiada, melhor é manter os acordos de silêncio
(a omertà). Porque eles dificultam a descoberta de provas (gerando, em regra, a impunidade
de todos). É a melhor estratégia para todos os investigados. Quando um dos participantes da
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
7 A formalização da Teoria dos Jogos ocorreu com a publicação da obra “Theory of Games and Economic Behavior” (Teoria dos Jogos e
Comportamento Econômico), elaborada por John Von Neumann e Oskar Morgenstern, que alvitraram a existência de situações de conflito,
tomada de decisões e desenvolvimento de estratégias. Neste sentido, os teóricos de jogos analisam o comportamento de determinados
indivíduos e organizações, partindo do pressuposto de que as estratégias escolhidas por estes serão as mais racionais, e, por conseguinte,
melhores.
8 SCHWARTSMAN, Hélio. O dilema dos prisioneiros. Folha de São Paulo, 18 nov. 2014.
9 Idem.
10 O equilíbrio de Nash representa uma situação em que, em um jogo envolvendo dois ou mais jogadores, nenhum jogador tem a ganhar
mudando sua estratégia unilateralmente.
Para melhor compreender esta definição, suponha que há um jogo com “x” participantes. No decorrer deste jogo, cada um dos “x” parti-
cipantes seleciona sua melhor estratégia, ou seja, aquela que lhe traz o maior benefício. Então, se cada jogador chegar à conclusão que ele
não tem como melhorar sua estratégia dadas as estratégias escolhidas pelos seus “x” adversários (estratégias dos adversários não podem ser
alteradas), então as estratégias escolhidas pelos participantes deste jogo definem um “equilíbrio de Nash”.
11 SCHWARTSMAN, Hélio. O dilema dos prisioneiros. Folha de São Paulo, 18 nov. 2014.
172
organização criminosa delata, em busca de benefícios jurídicos (de prêmios), o jogo se inverte:
é melhor também fazer acordo com a Justiça (porque nesse caso o silêncio será bastante preju-
dicial). Na fase judicial (já iniciada) saberemos se as delações são ou não verdadeiras, se haverá
mesmo recuperação ou não de dinheiro. Uma coisa é certa: se isso prosperar, haverá um “efeito
dominó”, gerando colaborações premiadas sequenciais, pois todos os investigados vão querer
delatar para também colher benefícios penais. Haverá um nítido efeito viral, apesar de todas as
críticas (sobretudo contra os abusos nas prisões preventivas).
A Justiça criminal brasileira mudará de paradigma (sai do modelo conflitivo para en-
trar de vez no modelo consensual, em todos os crimes, o que é juridicamente possível combi-
nando-se a Lei 12.850/2013, da organização criminosa, com a Lei 9.807/1999, de proteção às
vítimas e testemunhas), surgindo um processo penal colaborativo movido pelos interesses das
partes, de forma a se chegar o mais próximo possível da verdade (sabendo-se que a verdade real
é uma utopia).
A busca incessante da verdade (um dos postulados do garantismo) não resta prejudi-
cada com a colaboração premiada, pois o artigo 4º, § 16 da Lei 12.850/2013 traz que “nenhuma
sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente cola-
borador”. O fato de haver colaboração premiada não dispensará jamais uma atividade cognitiva
exauriente que demonstre que a tese acusatória é infinitamente mais plausível que a tese defen-
siva, pois do contrário deverá haver absolvição. Não será imputado ao delatado qualquer ônus
sem que se tenha apurado minimante a pertinência do fato jurígeno ensejador daquele ônus.
É fundamental, portanto, que a colaboração prestada em sede de inquérito seja
confirmada em juízo, porque do contrário haverá meros indícios que, por si só, não arrimam
uma condenação, exceto se a colaboração permitiu carrear provas cautelares, antecipadas ou
irrepetíveis (periciais), a fundamentar a condenação.
Neste mesmo diapasão, a máxima efetividade, contraditório e ampla defesa exauriente
restam preservados. O fato de existir um acordo de colaboração premiada não afastará a diale-
ticidade do processo, de modo que a sentença seja síntese do contraditório e da ampla defesa.
Por fim, a colaboração premiada pode ser amoral. Não é necessário que exista concor-
dância absoluta entre preceitos morais e jurídicos – nem jurídicos-penais. Paulo Queiroz (2014,
p. 62-63), brilhantemente, traz os seguintes argumentos para confirmar este raciocínio:
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
a. não existem fenômenos morais, mas uma interpretação moral dos fenômenos
(Nietzsche) e, pois, múltiplas formas de expressão da moral (12);
b. o direito é, no fundo, uma dimensão do poder, razão pela qual pode ser
eventualmente imoral inclusive, relativamente a uma determinada perspectiva
ou sistema moral, tal como ocorre com o instituto da colaboração premiada e a
12 A propósito, Kelsen (2003, p. 71) escreveu: “se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o direito
deve ser moral, isto é justo, apenas pode significar que o direito positivo deve corresponder a um determinado sistema de moral entre os
vários sistemas morais possíveis”
173
figura do agente infiltrado;
c. a moral pressupõe, em princípio, espontaneidade, diversamente do direito, que
não pode existir senão por meio da violência, isto é, por meio da possibilidade
de recurso à força (coercibilidade). E mais: em razão de seu caráter subsidiário,
a intervenção do direito penal só se justifica quando fracassam outras formas de
prevenção e controle social, aí incluída a intervenção moral;
d. se a moral persegue o aperfeiçoamento ético do homem, o direito, como
instrumento de controle social formal, objetiva tornar possível a convivência
social, independentemente da adesão moral de seus destinatários.
REFERÊNCIAS
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175
Recebido em 04 mar. 2015
Aceito em 05 mar. 2015
* Victor Miguel Barros de Carvalho. Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista do Programa de
Recursos Humanos ANP / PRH nº 36. vicmig@hotmail.com. Caixa Postal, 1685. UFRN Campus. CEP 59.078-970. Natal-RN.
** Anderson Souza da Silva Lanzillo. Professor Assistente do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. adv.andersonss@gmail.com. Caixa Postal, 1685. UFRN Campus. CEP 59.078-970. Natal-RN.
*** Patrícia Borba Vilar Guimarães. Professora Adjunta do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. patriciaborba@ufrnet.br. Caixa Postal, 1685. UFRN Campus. CEP 59.078-970. Natal-RN.
176
1 INTRODUÇÃO
No atual momento histórico existe uma tendência cada vez maior de crescimento da
chamada Economia Criativa (HOWKINS, 2007; FLORIDA, 2007). No Brasil, atividades eco-
nômicas que se encaixam neste conceito têm dado grande impulso ao crescimento da econo-
mia. São atividades que exploram os ramos da cultura, da inovação, dos produtos intelectuais
(HOWKINS, 2013), que se baseiam no compartilhamento, na velocidade de transformação, na
dinamicidade de seus processos (REIS, 2008).
Entretanto, tais atividades, imbuídas da marca da novidade, desenvolvem-se sem pos-
suir leis ou marco jurídico específico que as regulem. Assim, por muitas vezes acabam inob-
servando certos preceitos como o dos direitos autorais. É nítida a necessidade de revisão e
recriação de tais marcos regulatórios (ORTELLADO, 2012).
Este trabalho pretende, então, de forma breve, tratar do conceito de economia
criativa e sua relação com o direito. Ressalta-se a relação entre economia e direito para a rea-
lização da pesquisa do tema em foco. Ambos os temas (economia e direito) vivem em uma in-
trincada dinâmica de reciprocidade, e devem ser tidos como um todo, enxergados com um olhar
mais amplo – olhar esse que não os afastem, mas os separem e definam apenas para melhor
compreendê-los (NUSDEO, 2001). Assim, tentamos tratar destes assuntos tão criteriosamente
for possível dentro da brevidade que nos propomos.
Iniciamos com a conceituação da Economia em sua concepção tradicional e
também naquilo que se convencionou chamar de Economia Criativa, fazendo, logo após, um es-
boço comparativo entre esses dois modelos, explicitando os pontos considerados mais relevan-
tes. Tratamos, posteriormente, com mais atenção a situação da Economia Criativa, procurando
expor a sua abrangência e suscitando a questão de esta ser uma extensão do modelo tradicional
ou se a mesma configura, de fato, uma economia nova.
No capítulo seguinte, discorremos introdutoriamente sobre os Direitos de Autor e
como este é um exemplo de regulação exercido pelo Direito dentro da Economia Criativa. Por
fim, concluímos com as ideais auferidas ao longo do estudo.
177
mica seria, então, aquela aplicada na escolha de recursos para o atendimento das necessidades
humanas. Seria mesmo a administração da escassez (ibid.). Assim, a economia existe porque
os recursos são sempre escassos frente à grande variedade de necessidades humanas. As rela-
ções em sociedade então, no âmbito da economia, se criam, desenvolvem-se e se multiplicam
em face destes dois pressupostos. No mesmo sentido escreve Howkins (2013), afirmando que a
economia é ainda um sistema para a produção, troca e consumo de bens e serviços.
Outro conceito importante delineado por Nusdeo é o de bem econômico, que é todo
aquele dotado de utilidade e cujo suprimento seja escasso. Em poucas palavras, todo bem útil
e escasso é considerado um bem econômico. É preciso, ainda, explicitar o conceito de valor
na economia, que difere daqueles considerados como ético-filosóficos. Valor, tema fulcral da
economia, relaciona-se à consciência de falta, de escassez. Os bens têm valor na medida em
que cumprem um papel no mundo (ibid., 2001). O valor econômico condiciona-se, também, ao
tratamento a ele dado pelas instituições vigentes em cada país e em cada época – leia-se, pelo
tratamento dado a eles pelo Direito.
criatividade e que possui valor econômico (ibid.). Assim, para este autor, “a Economia Criativa
consiste nas transações contidas nesses produtos criativos”.
Outros autores, ainda, apontam a Economia Criativa como sendo algo mais amplo e
abrangente que o modelo tradicional; uma vertente que se encontra entre os setores da economia
da cultura e indústrias criativas. Uma economia baseada em recursos intangíveis, que, além de
cultura, conhecimento e criatividade, engloba os ativos intangíveis, a experiência e a diversida-
de cultural (DEHEINZELIN, 2012).
Economia Criativa parece rimar ainda com ideias como as de conectividade, interação,
compartilhamento, inovação; relaciona-se às novas mídias, novas tecnologias, ao empreende-
178
dorismo e a mudança de padrões. Ela difere dos modelos tradicionais, no sentido de romper
com velhas formas e fórmulas, dando um gás novo às dinâmicas. Como defende Florida (2011),
a ascensão da Economia Criativa “alterou as regras do jogo do desenvolvimento econômico”.
Aparenta ser um marco, um ponto de mudanças, pois tem a chance de romper com a
mentalidade mercadológica em vigência, tentando combinar as mais avançadas capacidades
tecnológicas e de gestão com habilidades artísticas (ANNUNZIATA, 2012). É um momento
singular da economia, no qual processos se dinamizam, se tornam mais céleres e eficientes;
contam mais com a criatividade e inovação do que com fórmulas pré-definidas e processos
engessados. Florida (2011, p. 56) é taxativo:
Parece ser necessário, antes de começar a tecer um quadro comparativo, atentar para
os institutos nos quais se apoiam e as bases de sustentação de cada modelo de economia. O
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
179
pios como o do compartilhamento, da abundância, do livre acesso, da participação e interação
(STANGL, 2012).
As organizações presentes no modelo tradicional foram desenhadas para obstruir, di-
recionar, aprisionar e disciplinar a interação, não para deixá-la fluir – característica que surge
essencial para a Economia Criativa. Esta tece redes e altera o padrão engessado de organização
no sentido de mais distribuição, mas não de adotar um novo tipo de organização ou uma nova
ferramenta (FRANCO, 2012). Um padrão de organização mais distribuído do que centralizado
configura um ambiente mais favorável à interação. Um ambiente mais interativo aumenta as
chances de inovação – e esse deveria ser o objetivo dos que querem estimular a criatividade e
fomentar a Economia Criativa (ibid., 2012).
Assim, é perceptível uma nítida contraposição entre o modelo econômico tradicional e
o que se chama de Economia Criativa. A propriedade privada e suas consequências econômicas
e jurídicas vão de encontro à tendência de compartilhar, de cocriação e inovação; a regulação,
a promoção do acesso exclusivo, choca-se com um espírito de liberdade frente às normas, de
promoção ao livre acesso; a vontade de manter determinado bem ou produto em estado de es-
cassez, incutindo-o valor, contrasta com a abundância e a capacidade de renovação de recursos
na Economia Criativa – recursos estes, em sua maioria, culturais e intelectuais. Howkins (2013)
exemplifica: enquanto que os institutos de propriedade intelectual fornecem um conjunto de
critérios excludentes e protetores, o mercado, as atividades criativas na prática, apresentam
outros diferentes.
Parece mesmo haver uma mudança de paradigmas em curso. Onde antes Economia e
Política se organizaram em torno dos recursos materiais, finitos e escassos, como terra, ouro ou
petróleo, se organizam agora em torno dos recursos intangíveis, como cultura, conhecimento e
experiência, que são infinitos, renováveis e podem representar uma economia de abundância,
baseada em modelos de colaboração (DEHEINZELIN, 2012). Citando Rifkin, Dowbor (2008)
afirma que a Economia Criativa, a economia do conhecimento, vem para mudar a nossa relação
com o processo econômico em geral. Estaríamos passando de uma era em que havia produtores
e compradores, para uma era em que há fornecedores e usuários. Existe maior descentralização,
maior compartilhamento e participação – uma mudança profunda no perfil dos atores econô-
micos.
O modelo econômico tradicional, modelo de finitude, cria uma economia da escassez,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
baseada na competição. A Economia Criativa, como se viu, vai a sentido oposto: os recursos
são intangíveis, imateriais, e podem se multiplicar e distribuir mais livremente – justamente por
isso, a natureza de sua economia é diferente (HOWKINS, 2013). Logicamente, a concepção de
valor que se tinha no modelo tradicional fica deslocada dentro do âmbito da Economia Criativa
– o valor agora se baseia em outros princípios. Quando, no século passado, as batalhas se davam
em torno da propriedade dos bens de produção, se deslocam agora para a área da economia da
criatividade (DOWBOR, 2008).
180
2.4 Abrangência da economia criativa
Um modelo pode ser encarado como uma simplificação radical da realidade, amparado
por certos aspectos e variáveis com a finalidade de explicar um determinado fenômeno (NUS-
DEO, 2001). Então, em que modelo se encaixa a Economia Criativa? Ou cria ela um novo?
Seria a Economia Criativa um “braço”, uma vertente do modelo econômico tradicional ou seria
mesmo um novo campo, uma nova forma de Economia, um novo conjunto de indústrias?
Esta é uma questão que merece um maior estudo para ser respondida. Há, na literatura,
opiniões nos dois sentidos. Os posicionamentos estudados, entretanto, parecem sugerir que a
Economia Criativa está lançando os alicerces de um novo modelo econômico.
Existem autores que dizem ser a Economia Criativa um conjunto formado pelas in-
dústrias criativas (FONSECA, 2012), que possuem grande capacidade de dinamizar setores
tradicionais e têm impacto direto na competitividade da economia como um todo. Indústrias
criativas seriam aquelas que produzem riqueza, geram emprego e valor através da exploração
da criatividade e da produção intelectual.
A Economia Criativa é definida ainda como uma forma de dar atenção ao processo de
diferenciação e valorização da matéria para a informação, para o produto cultural (STANGL,
2012), como um processo de transição de modelos. Indo na contramão da tendência da Econo-
mia Criativa, os representantes do modelo tradicional ainda tentam manter sua importância,
através do controle do acesso à informação e cercando seus processos criativos sob a máscara
da exclusividade (STANGL, 2012).
A Economia Criativa está associada ainda a um segmento altamente educado da força
de trabalho (FLORIDA, 2011). Profissionais como artistas visuais, arquitetos, músicos e jorna-
listas, mas também áreas ligadas às novas tecnologias, tais como a programação web e o design
de interfaces (ANNUNZIATA, 2012). Apesar disto, ela não exclui profissões essenciais aos
negócios nascentes, como a Administração, o Marketing e a gestão de capital.
Assim, poderia se dizer que a Economia Criativa seria um novo modelo de se fazer a
economia, baseada em princípios diferentes daqueles do tradicional, sustentada por novas mí-
dias, meios de comunicação e novas tecnologias; uma economia que valoriza o capital cultural
e intelectual que se produz e reproduz de maneira fluida, dinâmica e abrangente.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
181
um conjunto de normas de várias naturezas, tutelando bens jurídicos diversos, que precisa ser
adaptado para o reconhecimento de situações e urgências que esse tema vem a requerer (OR-
TELLADO, 2012).
A Lei brasileira de Direitos Autorais, a Lei Federal nº 9.610/98, nesse aspecto, encon-
tra-se desatualizada e não oferece subsídios jurídicos suficientes às atividades da Economia
Criativa – antes sendo um empecilho do que um fator de desenvolvimento desta. O Direito,
portanto, não tem acompanhado as mudanças trazidas pela Economia Criativa e suas diversas
implicações. Exemplo disto é o caso dos direitos de propriedade intelectual, regulados igual-
mente pela Lei Federal nº 9.610/98, que não contempla, por exemplo, o compartilhamento on-li-
ne de obras científicas, artigos e livros, prática esta promovida e valorizada no contexto atual.
Howkins endossa: “muitos governos que foram rápidos na promoção da internet são lentos em
ajustar suas leis de direitos autorais para tratar da cópia digital” (2013).
Segundo Dowbor (2008), a premissa básica quanto aos bens intelectuais é a de que se
tratam de bens de domínio público, que devem circular para o enriquecimento da sociedade.
Para este autor, a figura da apropriação privada, através de copyrights ou patentes, asseguraria
apenas direito temporário, pois isso estimularia as pessoas a produzir inovações e enriquecer
ainda mais a sociedade em termos culturais e científicos. Howkins (2013) explica que o uso de
patentes demonstra a “predileção dos governos e indústrias pela privatização dos produtos cria-
tivos” – a vontade de estender os direitos de propriedade privada sobre os produtos criativos.
Para Dowbor (2008) todo o conceito de propriedade intelectual deveria repousar, por-
tanto, não no conceito de propriedade em si, mas na utilidade deste controle em termos de gerar
mais riqueza cultural para todos.
Tendo em mente aquilo que já foi dito (que existe um momento de transição), podemos
entender o conflito que existe neste âmbito da economia – conflito que merece atenção e estudo
aprofundado.
O modelo tradicional, burocrático, busca travar a fluidez dos bens intelectuais, tecno-
lógicos e culturais. Impedir a livre circulação de ideias e de criação artística tornou-se um fator,
por parte das corporações, de pedidos de maior intervenção do Estado (DOWBOR, 2008). Por
exemplo, a patente, uma vez concedida, não obriga o seu detentor a fazer nada em especial, mas
impede que qualquer outro o faça – impede que se trabalhe em cima daquele ideia, que se inove
(HOWKINS, 2013).
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Assim, o Estado passa a intervir, seja através de leis ou regulamentos, para atender à
vontade do poder econômico. Os mesmos interesses que levaram a corporação a globalizar o
território para facilitar a circulação de bens, levam-na a fragmentar e a dificultar a circulação
do conhecimento (DOWBOR, 2008), de forma que o controle sobre estas atividades seja maior,
e, consequentemente, o lucro conseguido.
A evolução tecnológica, com suas novas mídias e novas formas de comunicação ins-
tantâneas, torna os bens culturais cada vez mais acessíveis, rompendo barreiras de ordem espa-
cial e burocrática; as leis, por pressão organizada dos intermediários, daqueles interessados em
182
manter o controle sobre a produção intelectual, evoluem no sentido oposto, para cada vez mais
dificultar o acesso aos bens intelectuais e culturais (ibid., 2008). Em vez de se adaptar às novas
tecnologias e buscar outra forma de agregar valor, estes setores tradicionais buscam travar o seu
acesso e formas de criminalizar o seu uso (ibid., 2008).
A capacidade de garantir a recompensa financeira por uma ideia é fundamental; o pro-
blema é que a atual legislação de direitos de propriedade intelectual é profundamente criticável
quanto ao balanço entre empresas e consumidores; entre países desenvolvidos e em desenvol-
vimento; e inadequada a muitos dos negócios criados pelas tecnologias digitais (FONSECA,
2012).
A realidade é que ao aplicar à Economia Criativa leis derivadas do modelo econômico
tradicional, que valoriza a propriedade privada e sua proteção exarcebada, desequilibra-se radi-
calmente o processo de criação. Este conflito de ordem jurídica prejudica ambos os lados – tanto
os ditos inovadores, quanto os detentores dos direitos autorais. É preciso enfrentar este hiato
crescente entre o que as tecnologias permitem e o que a lei proíbe (DOWBOR, 2008).
Como exemplo disto, podemos esboçar a situação na qual determinado sujeito, preci-
sando adquirir um exemplar de livro já esgotado, deve, para conseguir a reimpressão ou reedi-
ção, a autorização expressa do autor ou detentor dos direitos sobre o referido livro. Não obtendo
sucesso pela via legal, suponhamos que o sujeito então fotocopia o livro – prática essa consi-
derada ilícita, como determina o inciso VII do artigo 5º da Lei Federal nº 9.610/98: configura a
“contrafação – reprodução não autorizada”.
O que se vê na prática (e isto é notório) é a contrafação se dando não somente através
da fotocópia, mas também por meio digital, através de compartilhamento pela internet e outros
meios. Tal fato expressa a incapacidade da legislação autoral existente em atender as necessida-
des surgidas com a Economia Criativa.
Muitos produtos criativos, embora não todos, qualificam-se como propriedade inte-
lectual; ela, como a propriedade material, pertence a alguém, diferenciando-se desta última
por ser intangível (HOWKINS, 2013). E um exemplo que demonstra claramente a Economia
Criativa em curso, atendendo as demandas existentes e inobservando preceitos da propriedade
intelectual de bens intangíveis é o caso das lojas de camisetas personalizadas online. Basta
acessar a página na web de três lojas razoavelmente populares no Brasil (http://www.camisete-
ria.com/, http://www.redbug.com.br/home e http://chicorei.com/) e observar a comercialização
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de camisetas contendo personagens, marcas e figuras advindas dos mais variados segmentos:
cinema, séries de televisão, videogames, desenhos animados, bandas e conjuntos musicais, ato-
res e músicos famosos, etc.. Nenhuma das três lojas apresenta sua política de direitos autorais, e
dificilmente estão pagando alguma coisa para os detentores de copyright e direitos autorais das
figuras que aparecem em suas estampas.
Isto é, de todo, ruim? As lojas estão, certamente, criando empregos, gerando renda e
movimentando a economia do lugar onde tem sede física. Em duas delas (redbug e camiseteria),
quem decide o produto a ser confeccionado é o próprio consumidor, ao votar em modelos “x”
183
ou “y”; isto gera economia de recursos e certeza de vendas para a empresa e garantia de satis-
fação por quem compra o produto. Uma delas (camiseteria) trabalha com uma política de envio
e recompensa: um artista/designer/consumidor envia seu trabalho/desenho para o site e recebe,
em troca, dinheiro e produtos da própria loja.
O fato é que existe uma demanda por produtos intelectuais e culturais e esta está sendo
suprida, mesmo sem a devida regulação jurídica. Isto revela o problema de uma legislação pen-
sada em um tempo que não abarcava a gama de possibilidades de acesso hoje existentes, tempo
no qual o acesso a bens intangíveis era limitado e passível de maior controle.
Assim, percebe-se o conflito existente entre as leis existentes no âmbito do Direito
Autoral e a dinâmica proporcionada pela Economia Criativa. O que se tem pela frente são
menos apelos dramáticos à lei e à ética, e mais bom senso na redefinição das regras do jogo
(DOWBOR, 2008).
Faz-se necessária uma análise mais detalhada e, porque não dizer, justa, dos processos
regulatórios sobre a propriedade intelectual. É necessário buscar um equilíbrio entre o que a lei
diz e o que a Economia Criativa proporciona. Faz necessário a ponderação sobre a proteção do
autor de inovações, os diversos intermediários e, sobretudo, o interesse final de toda criação,
que é o enriquecimento cultural e científico de toda a população.
O fato de bens culturais e educacionais tornarem-se quase gratuitos e muito mais aces-
síveis graças às novas tecnologias não deve constituir um drama e sim uma imensa oportunida-
de. O acesso a trabalhos científicos, a artigos, a vídeos, a músicas e a recursos em multimídia
dos mais diversos tipos deveria ser enxergado não com os olhos de uma ditadura, que suprime o
acesso, mas sim de forma ponderada, de maneira a facilitar seu acesso. Parece ser esse o desafio
maior a ser enfrentado: a gestão da informação e do conhecimento, e a distribuição equilibrada
dos direitos (DOWBOR, 2008).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho buscou trazer uma visão primeira sobre a relação Direito versus Eco-
nomia Criativa, expondo a questão dos Direitos de Autor como um caso prático da regulação
jurídica neste setor da economia.
Ficou claro em nosso entendimento, após a breve análise de conceitos sobre Economia
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
em sua concepção tradicional e a que se chama de Criativa, que se vive um momento de mu-
danças de paradigmas. Um momento no qual as velhas soluções não atendem aos novos pro-
blemas e conflitos. A Economia Criativa traz consigo uma nova forma de encarar os processos
econômicos e de atribuição de valor; novos atores econômicos e novos produtos. Faz-se lógica a
necessidade de encontrar soluções apropriadas em face das questões daí advindas.
Pareceu-nos, também, que a Economia Criativa, seja ela um braço do modelo tradicio-
nal ou uma nova economia, “veio para ficar”. Sendo um segmento que traz novas dinâmicas e,
com elas, um potencial imensurável de novas possibilidades, influirá também no Direito. Este,
184
por sua vez, deve buscar adaptar-se às novas realidades advindas a Economia Criativa. Adap-
tar-se às novas tecnologias, aos fluxos e processos cada vez mais instantâneos e fluídos; talvez
através da criação de leis e regulamentos que compreendam as novas tecnologias, as novas
dinâmicas – novos paradigmas.
O Direito, assim, tem a difícil tarefa de buscar o equilíbrio entre lei e desenvolvimento
dentro da Economia Criativa: é preciso atentar para a preservação do direito cabível a seus res-
pectivos, sem, no entanto, segurar ou retesar o movimento fortuito promovido pela economia
da criatividade. Deve atentar para a hipossuficiência do cidadão comum, do consumidor de
propriedade intelectual, do indivíduo que busca o acesso à cultura, frente aos interesses dos
setores tradicionais e grandes corporações, que buscam manter sua hegemonia e controle sobre
tais produtos; assimilar o nascimento de novos atores econômicos e suas novas relações.
Talvez, para este impasse, a saída do direito seja “sair”. Deve, certamente, evitar o
vácuo legislativo; mas não pode, para tanto, por a cabrestos a Economia Criativa e seus partici-
pantes, sob pena de aleijar o desenvolvimento econômico por ela proporcionado.
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STANGL, A. McLuhan e o Link da Alegria Criativa. In: FONSECA, Ana Carla. et al.
Economia criativa: um conjunto de visões [recurso eletrônico] São Paulo: Fundação
Telefônica, 2012. 170p, recurso digital.
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NOTAS ACERCA DO CRIME DE FURTO DE COISA COMUM
Christiano Fragoso*
1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
O art. 156 CP estabelece uma forma privilegiada de furto, quando a coisa subtraída
é um bem comum ao agente e à vítima. Tal disposição, como admite Hungria (1958, p. 49), é
“uma reprodução do art. 627 do Código Penal italiano” de 1930. Em nosso direito anterior, não
havia tal privilégio; ao contrário, o art. 334 do CP de 1890 estabelecia que havia furto simples,
mesmo que “a coisa pertença a herança ou comunhão em estado de indivisão”.
Um fragmento de Paulo (“rei hereditariae furtum non fit”, no Digesto 47, 19, 6) indica
que, no antigo direito romano, o coerdeiro que subtraía bens da herança indivisa não cometia
crime de furto; mas aos prejudicados cabia a actio expilatae hereditatis, para a reparação do
dano. Essa modalidade de privilégio é desconhecida de diversas legislações.
Embora alguns autores, como Fiandaca e Musco (1996, p. 94), discutam a legitimidade
do privilégio (entendendo que não haveria menor periculosidade social nem menor intensidade
de dolo em quem furta coisa comum), é inegável a menor gravidade intrínseca à conduta de
subtrair coisa de que se é, em parte, dono.1 Por isso, penso que, embora na operatividade prática
do sistema penal as criminalizações secundárias por este tipo penal sejam pouco frequentes (o
que parece denotar que, em regra, eventuais conflitos a ele possivelmente subsumíveis estejam
sendo dirimidos por vias extrapenais), é salutar e justo que se mantenha um tratamento jurídico
menos gravoso do que o do furto comum. Por sua proximidade com alguns crimes contra o pa-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
trimônio, esse tipo penal, ademais, permite, como se verá, importantes discussões dogmáticas
e político-criminais.
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2 OBJETIVIDADE JURÍDICA
Os bens jurídicos que podem ser violados, com a prática da conduta típica, são
a copropriedade, a posse legítima e a detenção legítima. Alguns autores (MIRABETE, 2003,
p. 235; BITENCOURT, 2008, p. 61) falam apenas em propriedade e posse legítima, enquanto
outros (GRECO, 2012, p. 50; PRADO, 2000, p. 384.), mantendo a propriedade e a posse, não
mencionam o requisito de legitimidade desta última; e, por fim, há quem só se refira, generica-
mente, a patrimônio (JESUS, 1997, p. 331).
Na medida em que o sujeito é, por igual, proprietário da coisa, não se poderia dizer
que a conduta típica viola, pura e simplesmente, a propriedade; viola-se, mais precisamente, a
copropriedade. O advérbio “legitimamente” impõe que se reconheça que a tipicidade da conduta
exige que se trate de posse legítima: isto repercute, portanto, para delimitar o bem jurídico que
pode ser violado. De outro lado, também há tipicidade se se trata de mera detenção legítima
(eis que a lei usa o verbo “detém”, e não “possui”); assim, se alguém, por permissividade ou
tolerância do proprietário ou do possuidor, detém legitimamente uma coisa (e, portanto, não
tem a posse, CF. art. 1.208, Código Civil), essa relação fático-jurídica que se estabelece entre o
detentor e a coisa também pode ser violada pela prática da conduta típica.
Tem-se, aqui, um crime próprio, eis que o tipo exige, do sujeito ativo, qualidades es-
peciais. Somente o condômino, o sócio ou o coerdeiro pode ser sujeito ativo deste crime. Essa
condição é elementar e indeclinável, transmitindo-se, todavia, ao partícipe que não a detenha
(art. 30, CP). Correlatamente, o sujeito passivo será o condômino, sócio ou coerdeiro. O terceiro
que legitimamente tenha a posse ou a detenção da coisa, mesmo que não detenha uma dessas
qualidades (condômino, sócio ou coerdeiro), também pode ser sujeito passivo.
4 TIPO OBJETIVO
fato de alguém e submetê-la ao próprio poder de disposição. Como bem diz Heleno Fragoso, “é
irrepreensível a lição de Mezger, que define a subtração como o rompimento do poder de fato
alheio sobre a coisa e o estabelecimento de um novo. Constitui pressuposto do fato, evidente-
mente, que o agente não tenha a posse ou a livre disposição da coisa, isto é, a disponibilidade
não sujeita à vigilância do titular de direito patrimonial em relação à mesma” (FRAGOSO,
1995, p. 191).
Subtrair exige conduta ativa; assim, o crime é comissivo, só se comete por ação. Diver-
sos autores (GRECO, 2012, p. 51) admitem que o crime seja praticado por omissão, “desde que
188
o agente goze do status de garantidor”, muito embora ninguém forneça exemplos ou discuta ca-
sos concretos (que, aliás, a jurisprudência também não contempla); não há, a meu ver, subtração
por omissão: o que pode ocorrer, conforme o caso, é a configuração de outro delito patrimonial
(p.ex., estelionato [art. 171 e seus parágrafos, CP]).
O objeto material deve ser uma coisa, ou seja, um bem. Uma pessoa viva não é uma
coisa; portanto, a subtração de uma pessoa (ou de partes dela) não pode, jamais, constituir crime
de furto. É, todavia, crime de subtração de incapazes o ato de “subtrair menor de dezoito anos
ou interdito ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou de ordem judicial”
(art. 249, CP).
Embora o tipo não mencione expressamente, a coisa comum, como é da própria natu-
reza do furto, deve ser móvel. Coisa móvel é aquela coisa que pode ser movida de um local para
outro, desprezadas as ficções da lei civil. Bens imóveis não podem ser objeto de crime de furto.
São imóveis “o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente” (art. 79, Código
Civil); portanto, a árvore, o arbusto, a planta rasteira, ainda quando resultantes do trabalho do
homem, são imóveis por natureza (PEREIRA, 2013, p. 349).2 Os Tribunais têm, todavia, acei-
tado que árvores extraídas do solo ou frutos de árvores podem ser objeto de furto (RT 581/441,
RTJ 86/791). A planta (ainda que de grande proporção), cultivada em vaso, não é bem imóvel.
Bens móveis, por sua vez, são “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por
força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômica” (art. 82, Código Civil).
Em matéria penal, não valem as ficções jurídico-civis que transformam bens que, por
natureza, são móveis, em bens imóveis: p. ex., “as edificações que, separadas do solo, mas con-
servando a sua unidade, forem removidas para outro local”, ou “os materiais provisoriamente
separados de um prédio, para nele se reempregarem” (CF. art. 81, I e II, CC) são, por ficção,
para fins jurídico-civis, bens imóveis, mas continuam a constituir, para fins jurídico-penais,
bens móveis. Assim, para o direito penal, é simplesmente “tudo o que possa ser transportado
de um lugar para o outro” (FRAGOSO, 1995, p. 317), descartadas as ficções legais.
A lei civil ainda trata dos chamados bens móveis por determinação legal (PEREIRA,
2013, p. 355): para “efeitos legais”, seriam bens móveis, “as energias que tenham valor eco-
nômico” (art. 83, I, CC), “os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes”
(art. 83, II, CC) e “os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações” (art. 83, III,
CC). Os direitos autorais (art. 3.°, L. 9.610/1998 e os direitos decorrentes da direitos decorrentes
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de propriedade industrial (art. 5.°, Lei 9.279/1996) também são, por ficção, considerados bens
móveis. Para fins jurídico-penais, essas ficções não prevalecem3 (PRADO, 2000, p. 202-203);
para o Direito Penal, é indispensável que o objeto da conduta seja um bem corpóreo ou que, ao
menos, seja e esteja fisicamente apreensível. Bens incorpóreos ou que não sejam e estejam pas-
síveis de apreensão física não podem ser objeto de crime de furto. Gases são bens incorpóreos,
2 A retirada de árvores, todavia, pode constituir, como se sabe, crime ambiental (cf. art. 39, L. 9.605/98, se for “floresta de preservação
permanente”).
3 No mesmo sentido, referindo-se ao art. 83, II, CC.
189
mas, se estiverem confinados a recipientes que possam ser apreendidos e deslocados, podem ser
objeto de crime de furto de coisa comum.
A coisa deve ser comum, “isto é, deve pertencer a mais de uma pessoa, que pode so-
bre ela exercer direito limitado pela propriedade dos demais” (FRAGOSO, 1995, p. 204). Se a
coisa for alheia, o crime é, por evidente, o de furto simples — art. 155 CP (e não o de furto de
coisa comum), desde que conjugado ao dolo próprio daquele crime. Se a coisa for própria, não
há crime algum, salvo a possibilidade de configuração do crime do art. 346 CP.
Como leciona Caio Mário da Silva Pereira, “dá-se condomínio, quando a mesma coisa
pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o
todo e cada uma das partes” (PEREIRA, 2013, p. 1510). Herança é o patrimônio de um falecido
que se transmite aos seus herdeiros. Com a morte de alguém, estabelece-se, entre os seus her-
deiros, um estado provisório de comunhão, que só finda com a partilha, que conferirá, a cada
herdeiro, sua cota individual e concreta (NORONHA, 1963, p. 305). Coerdeiro é aquele que tem
direito a uma parte ideal de uma herança.
Sócio é uma pessoa física ou jurídica que detém cotas do capital social de uma pessoa
jurídica; para fins de furto de coisa comum, interessa apenas a pessoa física. Esse é o conceito
de sócio de direito. O dispositivo também abarca a sociedade de fato; assim, se duas pessoas são
sócias, de fato, nos direitos de propriedade de algum bem móvel, também se aplica o presente
artigo.
Discute-se, na doutrina italiana (cujo art. 627 tem redação idêntica), se é imprescin-
dível, para a configuração deste delito, que a comunhão da coisa decorra especificamente da
condição de “co-proprietário, sócio ou coerdeiro”, ou se tal comunhão poderia decorrer de
outra relação jurídica (p.ex., co-legatário). Pagliaro, embora diga que incluir o “co-legatário”
violaria o princípio da legalidade, opina, atento à equidade, no sentido de que, no direito penal,
devem prevalecer, sobre a linguagem técnica, os significados que a linguagem comum atribui às
expressões linguísticas; por tal motivo, considerando que “un ‘collegatario’ non è, nel linguag-
gio comune, figura diversa dal ‘coeredere’”, admite caracterizar-se o furto de coisa comum, e
não o furto simples (PAGLIARO, 1997, p. 515). Não me parece haver violação ao princípio da
legalidade; a hipótese simplesmente não foi prevista, o que configura lacuna, que pode ser in-
tegrada por analogia in bonam partem; admitir a prevalência da linguagem comum não parece
ser a melhor técnica.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Se os bens pertencem a uma sociedade que não detenha personalidade jurídica, os au-
tores, em geral, se pronunciam pela configuração do delito de furto de coisa comum. Candente
controvérsia se estabelece se o furto é praticado por cotista de uma sociedade legalmente consti-
tuída, contra o patrimônio da própria sociedade: discute-se se há furto de coisa comum (art. 156
CP) ou furto simples (art. 155 CP). A questão assume grande importância, eis que, na hipótese
de prevalecer a interpretação de trata-se de furto simples, podem ser aplicadas as respectivas
qualificadoras e majorante.
Nelson Hungria (1958, p. 438-449), um dos autores do Código Penal, defendia que se
190
configura furto de coisa comum, assim se manifestando: “o direito penal, essencialmente rea-
lístico, é infenso às ficções ou abstrações do direito civil ou comercial. Na realidade prática,
não obstante o princípio de que societas distat a singulis, o patrimônio que serve ao fim comum
é condomínio ou propriedade comum dos sócios. E isto mesmo reconhece o nosso próprio Cód.
Civil (artigo 1.373). O artigo 156 (reprodução do art. 627 do Cod. Penal italiano) não distin-
gue entre sócio e sócio. É inquestionável que, se quisesse fazer distinção, teria acrescentado à
palavra sócio a cláusula ‘salvo em se tratando de sociedade com personalidade jurídica’. Não
fez, nem podia fazer tal distinção, pois, de outro modo, estaria infringindo o ‘ubi eadem ratio,
ibi eadem dispositio’.”4 Rogério Greco defende que essa interpretação se impõe porque “o sócio
se sente dono do patrimônio de sua empresa, que inclusive foi idealizada por ele” (2012, p. 53).
Embora com importantes restrições adiante esclarecidas, a razão está com a corrente
dominante, inaugurada no Brasil por Magalhães Noronha, e que defende que a hipótese é de
furto simples (art. 155 CP). Ainda que seja verdade que a lei se refere, sem distinguir, a sócio,
também é verdade que a lei exige que se trate de coisa comum. Não há dúvida alguma de que,
para fins extrapenais (civis, tributários, etc.), os bens formalmente incorporados ao patrimônio
de uma sociedade legalmente constituída são bens próprios da sociedade; os sócios da socie-
dade são meros proprietários de cotas ou de ações da sociedade (conforme a forma societária),
não sendo proprietários (nem coproprietários) dos próprios bens. Esses bens são da sociedade, e
são assim considerados pelos demais ramos do direito. Essas considerações, por implicarem que
as coisas de uma sociedade são alheias em relação ao sócio, levam à conclusão de que o sócio
que furta coisa da sociedade pratica crime de furto simples; nesse sentido se orienta a maioria
da doutrina (NORONHA, 1963, p. 306; FRAGOSO, 1995, p. 204; MIRABETE, 2003, p. 235;
BITENCOURT, 2008, p. 62; DUTRA, 1955, p. 149; PRADO, 2000, p. 384), e da jurisprudência
(TJSP, 2.ª C. Crim., Ap. 16.087, des. Bernardes Junior, j. 24.04.47, RT 168/492).
Não me parece que essa solução necessariamente viole, como diz Hungria, a regra
lógica da ‘ubi eadem ratio, ibi eadem dispositio’: a sociedade formalmente constituída, a cujo
patrimônio tenham sido formalmente incorporados bens, não está na mesma posição que a so-
ciedade que não detém personalidade jurídica.
De lege lata, é possível adotar duas importantes restrições a essa interpretação: pri-
meira, caso a coisa não tenha sido formal e expressamente — i.e., por um ato jurídico solene —
incorporada ao patrimônio da pessoa jurídica, não se configura o crime de furto simples, mas o
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
furto de coisa comum (a circunstância da transferência propriedade de bens móveis se dar pela
mera tradição, não exigindo ato solene, não ilide o fato de que a incorporação de um bem móvel
ao patrimônio de uma sociedade exige ato solene); e segunda, no caso de empresa individual de
responsabilidade limitada (introduzida pela lei 12.441, de 2011, cf. art. 980-A e segs., Código
Civil), não há crime contra o patrimônio, eis que o único sócio é dono da totalidade das cotas
sociais. De lege ferenda, seria desejável que a redação do art. 156 CP fosse alterada para incluir
191
a subtração praticada por sócio contra o patrimônio de sociedade simples ou de responsabilida-
de limitada de que faça parte.5
Na medida em que o tipo exige a legitimidade de quem detém, não há o crime de
furto de coisa comum, se a posse ou detenção é ilegítima.6 Assim, se um condômino, coerdeiro
ou sócio subtrair a coisa comum a quem não a detém legitimamente, não pratica este crime.
Se o próprio agente tiver a posse da coisa comum, não há o crime de furto de
coisa comum. Na lição comum dos autores (FRAGOSO, 1995, p. 203-204; ESTEFAM, 2010 p.
381; GRECO, 2012, p. 54; MIRABETE, 2003, p. 235; BITENCOURT, 2008, p. 61; JESUS, 1997
p. 322; HUNGRIA, 1958 p. 49; DUTRA, 1955 p. 147) e para alguns julgados (TJRS, 1.ª Câmara
Criminal, Ap. n.° 17.147, des. Oldemar Toledo, j. 10.06.59, RF 192/409), configurar-se-ia, nessa
hipótese, o delito de apropriação indébita (art. 168 CP).
Não se pode concordar com essa lição: primeiramente, porque o art. 168 CP
exige expressamente que se trate de coisa alheia, e coisa comum não é coisa alheia (a literali-
dade da lei é o limite máximo de expansão interpretativa criminalizante); e, em segundo lugar,
a hipótese se aproxima, muito mais, dos casos dos incisos I e II do art. 169 CP, eis que, nesses,
trata-se de apropriação de uma coisa que cabe, em parte, ao agente (no caso de tesouro achado
em prédio alheio, deve haver, por lei, divisão paritária entre o proprietário do prédio e quem o
achou, cf. art. 1.264, Código Civil) ou cujo achado cria direito a recompensa de 5% do valor e
indenização de despesas (no caso de achado de coisa perdida, quem restitui tem esses direitos,
cf. art. 1.234, Código Civil).
Isso mostra que a lei trata, com menor severidade, apropriações de coisas co-
muns, não se justificando uma equiparação de uma apropriação de coisa comum, aliás viola-
dora do princípio da legalidade, ao art. 168 CP (por violar a vedação de analogia e por violar a
literalidade da lei). A hipótese de apropriação de coisa comum é de atipicidade penal, por não
haver criminalização específica, resolvendo-se a questão na esfera cível7; equiparar a um dos
incisos do art. 169 CP ainda seria, por igual, analogia vedada, mas, certamente, menos pior do
que — como a maioria dos autores — enquadrar a hipótese no art. 168 CP.
No caso em que o agente emprega violência ou grave ameaça para obter a posse da
coisa comum, dizem os autores que a hipótese seria de roubo (art. 157 CP). Heleno Fragoso
(1995, p. 204) chega a dizer que “essa solução é inteiramente pacífica”; e Bitencourt (2008, p.
61) defende essa posição, “independentemente da natureza comum do objeto material da sub-
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tração”.8 Não se pode concordar com essa solução. Coisa comum não é, repita-se, coisa alheia,
5 Quanto a sociedades anônimas (que, dos seis tipos de sociedades, está, junto com a sociedade simples e a sociedade de responsabilidade
limitada, entre os tipos mais frequentes), não é razoável, mesmo de lege ferenda, que o mero fato de alguém ser acionista dessa pessoa ju-
rídica, que apresenta peculiaridades importantes (tendo, p.ex., que publicar balanços e, se tiver capital aberto, tendo ações em Bolsa), possa
fundamentar enquadramento do tipo penal autônomo menos grave.
6 No mesmo sentido: (NORONHA, 1963 p. 308); (JESUS, 1967 p. 332).
7 Weber Martins Batista entende que “o fato caracterizará o crime de apropriação indébita, previsto no art. 168 do Código Penal, pois
não existe a figura da apropriação indébita de coisa comum”, embora diga que “no máximo, e se for o caso, poderá beneficiar-se o agente
da regra do art. 170, que estende àqueles crimes o disposto no art. 155, § 2°, ou seja, que consagra a apropriação indébita privilegiada”
(1995, p. 191-192).
8 WEBER M. BATISTA, justificando a solução, diz que “o bem é alheio, ainda que apenas em parte e, por outro lado, o Código não
192
que o art. 157 CP também exige. Coisa alheia é a coisa que, nem mesmo em parte, é própria.
O CP argentino, reconhecendo o problema, estabelece que há roubo quando a coisa é “total o
parcialmente ajena” (art. 164), expressão que nossa lei não adota. A violência ou grave ameaça
não ficará, por evidente, impune, mas não se pode sacrificar o princípio da legalidade; a meu
ver, a hipótese é de concurso formal de crimes, entre o furto de coisa comum e o crime relativo
à violência ou à grave ameaça (ameaça, lesão corporal etc.).
A majorante (§ 1.°), a minorante (§ 2.°) e as qualificadoras (§§ 4.° e 5.°) do furto simples
(art. 155 CP) não se aplicam ao furto de coisa comum, pelo simples fato de que sua posição
topográfica indica se referem tão somente àquele delito.9 O parágrafo § 3.°, do art. 155, CP, que
equipara “à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico” não
se aplica, pelos mesmos motivos topográficos, ao art. 156 CP; isto pode levar, sem dúvida, uma
situação iníqua, que, todavia, não pode ser suprida pelo intérprete sem ferir o princípio da le-
galidade.
5 TIPO SUBJETIVO
me de exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP); nesse sentido: TJRS, 1.ª C. Crim.,
des. Oldemar Toledo, Ap. 17.147, j. 10.06.59.
O agente deve subtrair a coisa comum, para si ou para outrem. Assim, se se prova que
o agente furtou a coisa para uso momentâneo e pretendia imediata devolução, a hipótese é de
furto de uso de coisa comum (que não constitui crime). Não se devendo aplicar, aqui, os rigores
contempla, como tipo especial, menos grave, a figura do roubo de coisa comum” (1995, p. 192).
9 Assim, no mesmo sentido, mas referindo-se expressamente apenas às qualificadoras. (BITENCOURT, 2008, p. 63); (DUTRA, 1955, p.
151); (HUNGRIA, 1958, p. 49).
193
da configuração do furto de uso para as hipóteses em que se trata de coisa alheia: é que o mero
uso é, certamente, um dos poderes que o coproprietário inequivocamente tem.
6 CONSUMAÇÃO E TENTATIVA
O critério, aqui, tem de ser o mesmo do furto simples (JESUS, 1997, p. 332). A consu-
mação do crime ocorre, a meu ver, quando o agente adquire, ainda que momentaneamente, a
posse mansa e pacífica da coisa comum. Considerar consumado o delito pela mera retirada da
possibilidade de disposição do bem por parte da vítima constitui tornar o furto de coisa comum
um crime de perigo.
A questão do momento consumativo do furto ensejou, historicamente, diversas teo-
rias, designadas por expressões latinas: a teoria da contrectatio, a teoria da amotio, a teoria da
ablatio, etc., que muitas vezes são mencionadas sem que se tenha a noção de que se referem a
outros ordenamentos jurídicos, nos quais o furto era conceituado diferentemente.
O furto, a meu ver, se consuma apenas com a posse mansa e pacífica da coisa. Essa era
a orientação predominante da doutrina e de nossos tribunais, até fins da década de 1980. Pri-
meiramente quanto ao roubo10 e só muitos anos depois quanto ao furto11, os tribunais, todavia,
têm considerado que a consumação da subtração ocorreria no momento em que a vítima perde o
poder de disponibilidade sobre a coisa ou de disposição da coisa. Essa nova orientação — clara-
mente centrada na vítima — é altamente criticável, pois antecipa o momento consumativo (tor-
nando, p.ex., consumado o caso em que há perseguição e recuperação da coisa) e transforma,
como bem dizia Nelson Hungria, o crime de furto em um direito penal de perigo, endurecendo
o sistema. Influenciados pelos tribunais, diversos autores passaram a endossar a nova orientação
pretoriana. Na prática da maioria dos casos, isto representa, p.ex., reputar consumado o delito
de furto, mesmo quando o furtador não saiu das vistas da vítima e está sendo perseguido.
A corroborar a tese de que o crime de furto só se consuma com a posse mansa e pa-
cífica da coisa, podem ser trazidos, ainda, três argumentos: (i) primeiramente, uma das carac-
terísticas da posse é a aparência de propriedade (que dificilmente pode-se dizer existente, se
ao agente está sendo perseguido); (ii) se a consumação ocorre quando a vítima perde o poder
de disponibilidade sobre a coisa, um terceiro que só adere à empreitada criminosa durante a
perseguição não seria punido por furto, mas apenas por receptação, ou favorecimento real ou
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pessoal, conforme o caso (é que não há concurso de agentes se um dos agentes adere ao crime
após a consumação); e (iii) se o furto se consuma com a perda, pela vítima, do poder de dispo-
nibilidade sobre o bem, a agressão cessa nesse momento, dificultando inclusive a justificação,
pela legítima defesa, de eventual conduta da vítima para recuperar o bem.
Ademais, especificamente quanto ao crime de furto de coisa comum, antecipar o mo-
10 Leading case, no âmbito do STF: Pleno, RE 102.490/SP, min. MOREIRA ALVES, j. 17.09.87.
11 São diversos os acórdãos, tanto no STF quanto no STJ; ad exemplum: STF, HC 89.958, 1.ª T., rel. Pertence, j. 03.04.07; STJ, HC 152.051/
MG, rel. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, 5.ª T., j. 07.12.10.
194
mento consumativo para o momento em que o outro condômino, sócio ou coerdeiro, que legiti-
mamente detenha a coisa, não tivesse a possibilidade de disposição do bem representaria odiosa
antecipação da consumação, levando à criminalização de hipótese em que não haveria ilícito
algum. Lembre-se de que o coproprietário tem direito de uso da coisa.
Se o agente só tirar a coisa comum, sem deter a posse mansa e pacífica, haverá crime
tentado. A tentativa se inicia, a meu ver, no momento em que o agente inicia o rompimento do
12
poder de disposição da vítima sobre a coisa. Na medida em que o coproprietário tem direito ao
uso da coisa, as hipóteses de início da execução devem, por igual, ser avaliadas com cuidado.
O art. 156, § 2.°, estabelece que “não é punível a subtração de coisa comum fungível,
cujo valor não excede a quota a que tem direito o agente”. Bens fungíveis são “os móveis que
podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade” (art. 85, Código Ci-
vil). Se a coisa comum é fungível e seu valor não excede a quota legítima do agente, diz a lei que
a subtração “não é punível”. A matéria é mantida na esfera exclusivamente cível; tem-se, aqui,
claramente, uma manifestação dos princípios da subsidiariedade e da intervenção mínima.
Há discrepância (embora não haja verdadeira discussão) acerca da natureza jurídica
da hipótese instituída nesse dispositivo legal. A definição não é irrelevante, eis que pode ter
importância para casos de concurso de agentes e de erro. Hungria dizia que “o fato deixa de
ser punível (§ 2.° do art. 156), embora persista como objetivamente antijurídico, tanto assim
que não desaparece como ilícito civil” (HUNGRIA, 1958, p. 49). Magalhães Noronha fala em
isenção de pena (1963, p. 308). Heleno Fragoso e Julio Mirabete só afirmam que, nessa hipó-
tese, “o fato será impunível”, sem esclarecer-lhe a natureza jurídica (FRAGOSO, 1995, p. 204;
MIRABETE, 2003, p. 236).
Damásio de Jesus assevera que “não se trata de causa de isenção de pena, como pre-
tendem alguns autores. Na verdade, a norma penal permissiva diz que ‘não é punível a subtra-
ção’. Fato impunível em matéria penal é fato lícito. Note-se que o legislador não diz que não é
punível o agente, mas sim que não é punível a subtração. Trata-se, em face disso, de subtração
lícita. Temos, então, causa de exclusão da antijuridicidade e não de isenção de pena” (1997,
p. 332-333). Cezar R. Bitencourt, sem tecer maiores considerações, a considera uma “espécie
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
195
de pena ou uma escusa absolutória, pelo fato de que, subjacentes à abdicação de punição penal,
não se encontram motivos de impossibilidade ou de exigibilidade de comportar-se de acordo
com o direito, nem de mera inconveniência de impor-se pena, mas sim razões que indicam falta
de conflitividade e de lesividade. Ademais, considerar a hipótese uma mera causa de isenção
de pena ou escusa absolutória poderia representar, com clara iniquidade, isenção apenas para
o agente que tivesse direito à quota, mas não a um co-autor ou a um partícipe que o auxiliasse,
além de dificultar sobremaneira o reconhecimento de hipóteses de erro.
As referências à fungibilidade da coisa e ao fato de o valor não exceder a quota legíti-
ma do agente indicam que a lei reconhece a ausência de conflitividade e de lesividade contidas
na conduta formalmente típica, não, podendo, portanto, ser elevada à condição de uma conduta
típica. A hipótese aqui, a meu ver, é de ausência de tipicidade material ou, na dicção de Zaf-
faroni, Batista, Alagía e Slokar, de ausência de tipicidade conglobante (2010, p. 212) Heleno
Fragoso, em lição que favorece essa solução, diz que, na hipótese do art. 156, § 2.°, CP, “o dano
é desprezível, relacionando-se apenas com o interesse do condomínio ou da sociedade” (FRA-
GOSO, 1995, p. 204). Magalhães Noronha, citando Manzini, fala aqui em “mancanza di danno
penalmente valutabile” (1963, p. 309). O próprio Hungria admite que não ocorreria, na hipótese,
“dano relevante” ou não estaria presente “a gravidade que informa o ilícito penal patrimonial”
(1958, P. 50). Só não há injusto penal por ausência de tipicidade, mas a ilicitude não está ex-
cluída, permitindo consequências em outros ramos do direito. Essa solução favorece, ainda, a
extensão do dispositivo ao co-autor e ao partícipe que não detenha a condição pessoal exigida
pelo tipo, e permite tratamento mais equânime à hipótese de erro.
A circunstância de a lei penal usar o termo “punível” não deve impressionar, por dois
motivos. Primeiro, porque a tipicidade, no sentido que hoje a conhecemos, nasceu, no começo
do século XX, de uma costela da categoria da punibilidade13 (“ameaçada com pena”), e tal con-
ceito ainda não havia sido albergado pela maioria da doutrina italiana no momento da edição do
Codice Penale de 1930 (que foi o modelo de nosso art. 156, e também se referia a non punibile);
e, segundo, porque, à época da edição do Código Penal, a tipicidade ainda era um conceito for-
mal, neutro e avalorado (i.e., ainda não havia se materializado14).
Se a coisa for fungível (mas seu valor exceder a quota-parte a que o agente teria direito)
ou se for infungível (ainda que tal coisa não exceda tal quota-parte), não se aplica a excludente
de tipicidade material. A fungibilidade não fica condicionada à vontade do agente, mas pode
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
ocorrer fungibilidade em função de acordo de vontades. A doutrina tem considerado que, mes-
mo em se tratando de bem fungível, se o agente escolhe a melhor parte, há crime (JESUS, 1997,
13 Antes da obra pioneira de ERNST BELING, os autores falam em ação antijurídica, culpável e ameaçada com pena, que englobava a
previsão de pena e a possibilidade jurídica de imposição de pena.
14 Apenas a antijuridicidade havia se materializado, a partir de 1905, na obra de FRANZ V. LISZT, que distinguia entre antijuridicidade
formal e antijuridicidade material, ressaltando que aquele era o limite infranqueável desta. A perversão dessa relação pelos juristas nazis-
tas levaria à compreensão do perigo de admitir-se a categoria da antijuridicidade material, levando a que houvesse uma materialização da
tipicidade, que, como se sabe, é conceito umbilicalmente ligado ao princípio da legalidade, sendo, portanto, algo mais difícil — embora não
impossível — sua perversão.
196
p. 333).
Tem, a meu ver, razão Heleno Fragoso, ao afirmar que: “A controvérsia sobre a cota
de cada sócio, condômino ou herdeiro, se não for de difícil solução poderá ser resolvida pelo
juiz criminal, consoante a regra do art. 93 CPP. A dúvida sobre a condição de sócios, herdeiro
ou condômino, porém, constitui questão prejudicial, que somente no juízo cível poderá ser
resolvida, suspendendo o juiz criminal o curso do processo (art. 92 CPP). Se a ação for praticada
em qualquer das circunstâncias que qualificam o furto, não haverá qualquer alteração na
configuração jurídica do crime, devendo reconhecer-se, em qualquer caso, a infração do art.
156 CP”.15
Comina-se pena sensivelmente inferior à do furto simples. Aqui, são cominadas, alter-
nativamente, pena privativa de liberdade (de detenção), de 6 meses a 2 anos, ou pena de multa.
A ação penal é pública, dependendo, todavia, de representação da parte ofendida.
Como bem lembra Magalhães Noronha, andou bem o legislador, eis que “no delito em espécie,
a ação penal pode ser mais nociva ao lesado do que o próprio crime. A publicidade do processo
pode abalar o crédito da sociedade, ou os interesses do condomínio, ou o nome dos coerdeiros”
(1963, p. 308).
REFERÊNCIAS
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Paulo: Saraiva, 2008.
DUTRA, Mário Hoeppner. O furto e o roubo. São Paulo: Max Limonad, 1955.
FIANDACA, Giovanni; MUSCO, Enzo. Diritto Penale: Parte Speciale. Vol. 2, Bolonha,
Zanicchelli, 1996.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte especial. Vol. 1. 11ª ed. Revista e
atualizada por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
197
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. Vol. 3. 9ª ed. Niterói: Impetus,
2012.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. vol. 7. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
1958.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal. 2.° volume. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1963.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. vol. 2. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal: parte geral, parte especial. 4ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 4: direitos reais. 21ª ed.
Revista por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 6: direito das sucessões.
20ª ed. Revista por Carlos Roberto Barbosa Moreira. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
PRADO, Luiz Régis. Curso de Direito Penal. vol. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
198
Recebido em 07 abr. 2015
Aceito em 29 abr. 2015
O poder surge como uma grande agência administradora dos medos naturais do ser
humano, que acabam assim por justificar o curso dos discursos criminológicos (ZAFFARONI,
2005, p. 4). Se fôssemos buscar o tronco-mãe de todas as agências penais modernas chega-
ríamos até a inquisição, não apenas marcando o exercício do poder sobre um tipo de mulher
perigosa, mas preparando terreno para domínio dos homens (ZAFFARONI, 2005, p. 18). Como
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
primeira agência de controle, a inquisição instaura um discurso criminológico que cai sobre a
mulher ainda de forma concentrada e não fragmentada.
A inquisição opera uma grande agência punitiva, que somente posteriormente vem a se
fragmentar, dando cria a uma ninhada de agências que lutarão por desenvolver seus próprios es-
paços para crescimento. É dizer, os inquisidores ainda reúnem as funções das agências médicas,
199
investigativas, instrutoras, policiais, julgadoras, legisladoras e acadêmicas. A partir da frag-
mentação desse poder muitos novos órgãos menores com especialização e discursos próprios
surgirão e assim conheceremos os órgãos acusadores, investigadores, julgadores, defensores e
assim por diante, cada qual desenvolvendo seu próprio discurso.
Segundo Zaffaroni (2005, p. 9), que apresenta esse curso da evolução do poder puniti-
vo, as agências não se orientam em torno de um discurso comum, mas se colocam em um palco
de disputa, em que vencerá essa competição aquela agência mais funcional ao poder. Quanto
mais funcional o discurso, mais poder adquire a agência, mas nenhuma construção teórica de-
saparece na criminologia; continuam todas aí, mais ou menos praticadas, com maior ou menor
audiência.
Mesmo assim, o criminólogo argentino antecipa que o poder punitivo nem sempre
existiu como nós o conhecemos. Ao longo da história, ele apareceu e desapareceu como ferra-
menta de solução de conflitos, tendo firmação definitiva apenas após o séc. XII, a partir do que
chamou de confisco da vítima, ou seja, quando a vítima começa a desparecer como principal
gestor do conflito para dar lugar a magistrados. No lugar da vítima, o poder político (Estado)
passa a agir por si próprio, fazendo assim que o político também seja poder punitivo, dando o
aspecto político ao que antes era apenas força (ZAFFARONI, 2005, p. 11).
Uma vez estabelecido o controle sobre as mulheres, o poder punitivo se assenta na
missão principal de controlar os homens jovens e adultos, restando o controle de mulheres,
crianças e idosos à contenção o poder patriarcal. Ainda que as relações de poder tenham se
tornado infinitamente complexas na sociedade moderna, essa articulação principal se mantém
com maior ou menor ênfase (ZAFFARONI, 2005, p. 17), tanto que a prisão ainda continua sen-
do um espaço onde encontramos basicamente homens jovens e adultos.
200
Sabendo que essas dimensões se imbricam, pretendemos de início seguir o raciocínio
investigando apenas a primeira dessas dimensões, numa perspectiva estritamente marginal, ou
seja, entendendo o curso do poder punitivo e a sua incapacidade de articular um discurso único.
A par disto, devemos entender que a convergência para o discurso repressor decorre mesmo de
uma imbricação em que uns discursos prevalecem sobre os outros, decorrente de uma funcio-
nalidade ao poder.
Assim, podemos afirmar que a grandeza sistêmica do cárcere em países como o Brasil
congregam muitas agências sob um discurso destacadamente repressor, as quais não estariam
exatamente articuladas para uma finalidade humanitária. Parece ser preferível tratar de “de-
sarticulação sistêmica”, por meio de que se faz notável um propósito implícito. Nessa forma
articulação invertida está a chave para entender a disfuncionalidade das agências para cumprir
a realização dos direitos humanos e, ao mesmo tempo, a funcionalidade para efetivamente en-
tender a predominância dos discursos repressores.
Nesse processo, aflui que o Estado levanta prisões como quem levanta sepulturas. Na
América Latina, dentre as inúmeras causas por trás da administrativização do Direito Penal e
expansão prisional, está um discurso autoritário de negação da autonomia dos presos em favor
de explicar o problema da prisão sem o ser humano dentro dela, isto é, compelindo a gestão da
matéria a partir da dimensão meramente consumidorista. Essa política de imposição de silêncio
aos presos costuma aparecer limpidamente em momentos de críticos, como motins e rebeliões.
Uma rebelião pode ser uma ocasião ímpar para compreender as representações do
sistema penitenciário em meio às dimensões sistêmicas, consumidoristas e atuariais. Nesses
momentos de revolta em que autoridades e presos tomam o palco da disputa por poder, er-
guem-se os discursos que negam as negociações verdadeiras como também surgem as falsas
promessas de novos investimentos na humanização da prisão, como se isso fosse possível. No
transcurso da onda de violência que transborda no sistema penitenciário durante o ápice das
rebeliões, é preciso chamar a atenção para o despreparo com que os assuntos são levados sem
nenhuma reflexão criminologicamente fundamentada. No estudo da gestão das rebeliões, a
despeito da natural (des)articulação das agências punitivas, os discursos que são levados a cabo
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
ajustam-se perfeitamente à única finalidade de controlar a crise, como se tudo aquilo fosse
passageiro e existisse saída digna para o Estado que nunca deu ouvidos a quem historicamente
negou direitos.
Antes de qualquer motim, a normalidade da prisão pode ser apenas uma aparência.
Isso implica dizer que a crise no cárcere não tem transitoriedade. Os discursos consumidoristas
que surgem em momentos de grande crise apenas ocultam a etiologia da violência estrutural na
prisão. Não é necessário fazer distinção entre aspas da falsidade das ações dissimuladoras que
ocorrem em momentos de rebelião, que fingem a articulação do sistema penal em torno de um
201
único discurso. Chegam helicópteros; forças policiais externas são convocadas; comitês de ges-
tão de crise fazem reuniões; secretários dão entrevistas; diretores de unidades prisionais entre-
gam seus cargos, tudo para dar sinais aos consumidores que as agências estão meticulosamente
unidas para conter a eventualidade de um combate disfuncional meramente momentâneo.
202
cessos reais para a resolução da questão?
18) As Metas do Conselho Nacional de Justiça estão sendo cumpridas pelos órgãos judi-
ciais?
19) O Estado assegura condições para que Universidades Públicas participem a realizar
ações de extensão na prisão?
Evidentemente não temos espaço para discutir todas essas perguntas, mas neste ins-
tante precisamos saber apenas que as eventuais respostas serão suficientes para demonstrar não
apenas a desarticulação das agências penais, mas sobretudo como inexiste um sistema penal
verdadeiro pautado por valores humanos e protetivos dos direitos fundamentais.
De fato, a única articulação que existe passa pelos conceitos de segurança e ordem.
Em momentos de rebelião ou atos de incentivo ao motim, quando as dimensões sistêmicas e
consumidoristas acham-se sobrelevadas, todas as questões estruturais que envolvem a prisão
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
são substituídas por um discurso agregador e funcional, quase que exclusivamente focado na re-
tomada do controle e, em casos mais graves, sem qualquer chance para uma verdadeira negocia-
ção com os rebelados. Nesses momentos únicos, conhecemos a política criminal sem máscaras,
quando então as agências aparecem legitimadas apenas pela preleção de ordem e segurança,
quase sem espaço para discutir direitos.
Em momentos de crise, o Direito que está ao lado do Estado brota pela força quase
bruta, passando uma linha demarcatória entre a ordem e a negociação sincera que reconheça
os rebelados como titulares de direitos. Nessa política de imposição do silêncio, negar a “nego-
203
ciação” significa entregar-se à violência acreditando que o agressor não tem nada importante
para dizer simplesmente por ser agressor. A chave para conhecer a negação de direitos está na
maneira como a negociação desenvolve em uma ótica da ordem pela ordem, baseada no temor
e ameaça de punições disciplinares e consequências após o término do motim.
Não quero dizer que rebelados devam ser isentos de responsabilidades ou que os danos
e consequências de seus atos não devam ser apurados. A responsabilidade faz parte de um pro-
cesso de conscientização coletiva, tanto para membros das agências, como para rebelados. De
nossa parte, digo que em momentos de tensão, todo controle em excesso gera reação inversa, e
quanto mais controlamos, mais criamos tuneis invisíveis para a incerteza e danos. Certamente
será útil que o negociador perceba que todo sistema de controle é uma perda de tempo ou de di-
nheiro quando ignora a realidade de que a prisão nunca esteve sob controle do Estado. Inexiste
outra coisa a ser dita a não ser que de nada adianta encontrar culpados ou fazer bodes expiató-
rios para retomar a ordem pela instalação do terror.
204
público e liberdade privada, entre defesa social e direitos individuais. O problema
da legitimação ou justificação do direito penal, conseqüentemente, ataca, na raiz,
a própria questão da legitimidade do Estado, cuja soberania, o poder de punir, que
pode chegar até ao ius vitae ac necis, é, sem sombra de dúvida, a manifestação mais
violenta, mais duramente lesiva aos interesses fundamentais do cidadão e, em maior
escala, suscetível de degenerar-se em arbítrio. A falta de correspondência entre
culpados, processados e condenados, e, em particular, a “cifra da injustiça”,
formada pelas, ainda que involuntárias, punições de inocentes, cria, de outra
parte, complicações gravíssimas e normalmente ignoradas ao problema da
justificação da pena e do direito penal. Se, com efeito, os custos da justiça e aqueles
opostos da ineficiência podem ser, respectivamente, justificados em modo positivo,
ou tolerados com base em doutrinas e ideologias de justiça, os custos da injustiça,
por seu turno, são, neste diapasão, injustificáveis, consentindo ao direito penal que
os produz apenas uma justificativa eventual e negativa, ancorada nos custos maiores
que, hipoteticamente, a falta de um direito penal e das suas garantias acarretaria.
Porém, a cifra da injustiça, como facilmente perceptível na análise até o momento
realizada é principalmente, o produto da carência normativa ou da não efetividade
prática das garantias penais e processuais, que acabam por prestar-se ao arbítrio e ao
erro (grifamos).
Para começar a pesquisar essa cifra de injustiça ou esse déficit de justiça, será útil
investigar não apenas as garantias penais e processuais asseguradas na lei, mas como o Estado
monitora o sistema de execução penal para adequar o seu funcionalmente às garantias. Chamo
atenção para a importância, v. g., do sistema de controle de penas, das correições, dos mutirões e
inclusive do acesso às revisões criminais ou interposições de habeas corpus. Independentemen-
te das garantias, são indicadores da existência de controles das cifras de injustiça no cárcere,
por exemplo, o Sistema Nacional de Acompanhamento de Penas instituído pela Lei 12.714/2012
e a realização de frequentes mutirões carcerários, além dos diversos programas do Governo
Federal e do Conselho Nacional de Justiça para área carcerária.
Para esse efeito, no âmbito das alternativas à prisão, é importante saber se existe em
funcionamento um Sistema de Controle do Cumprimento das Medidas e Penas Alternativas,
que permita o acompanhamento dessas sanções, corrigindo o déficit de injustiça, na medida em
que faça acompanhamento e a fiscalização das garantias durante o cumprimento das medidas e
penas alternativas. Também cabe dimensionar como acontece o controle das penas alternativas
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
205
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para resumir a problemática exposta até aqui, é preciso entender que o sistema penal
germina na Inquisição, a partir de quando opera uma fragmentação contínua dos discursos
criminológicos em torno das agências médicas, investigativas, instrutoras, policiais, julgadoras,
legisladoras e acadêmicas, ou seja, o curso da evolução do poder punitivo não se dá sob a orien-
tação de um discurso único. O aparente discurso prevalente nada mais é do que um disfarce,
circunstancial na verdade, porque de fato nenhuma construção teórica desaparece no curso da
criminologia.
A partir do confisco da vítima, o principal gestor do conflito passa a ser o Estado, cujas
agências conferem aspecto político ao que antes era apenas força e é assim que o poder punitivo
acaba por se estabelecer para controlar homens, fazendo isso por meio de inúmeros discursos,
em que uns prevalecem sobre outros, conforme a funcionalidade de cada momento.
Em qualquer ângulo de vista sobre o assunto, a uma conclusão chegaremos: momentos
de crise, especialmente as rebeliões carcerárias, são fundamentais para a disputa de poder das
agências e a funcionalidade circunstancial dos discursos, tudo isso para fazer crer que elas estão
unidas em torno de um saber cientificamente preparado. Isso cai por terra a partir de um conjun-
to de indicadores capazes de revelar a falsidade dos discursos humanitários, triturados em uma
máquina cujo funcionamento opera quase exclusivamente para transformar o homem em suco.
A deslegitimação do cárcere vem à luz com a cifra de injustiça do sistema, essencial-
mente seletivo e precarizado em garantias, não somente confundindo ou transformando culpa-
dos com inocentes, mas aprofundando o desespero em torno das diferenças e radicalização dos
discursos.
REFERÊNCIAS
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paulo Zomer e
outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
206
THE THEORY OF PRISON AND YOUR SUPPOSED SYSTEMIC GREATNESS
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Recebido em 15 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
* Bacharel em direito, graduado pela UFRN, e pós graduando em Gestão Empresarial pela FGV.
208
do pelo Direito Romano é o da equidade, que consiste no tratamento justo mesmo em situações
de ausência normativa. Com base nesse, o princípio da boa-fé se desenvolveu e hoje se mostra
como um norte de suma importância para diversas espécies de relações jurídicas, como a rela-
ção de consumo – objeto de estudo deste trabalho acadêmico.
2 BREVE HISTÓRICO
Destarte, para uma breve perspectiva histórica, pode-se inferir que a boa-fé tem in-
fluência e origem na Fides do Direito Romano. Essa era uma qualidade imprescindível do bom
romano e tem como base o cumprimento de um juramento ou um pacto (CASTRO, 2010).
Com o passar do tempo, a fides evoluiu em conformidade com a modificação dos
instrumentos jurídicos e a evolução do pensamento por influências filosóficas que, por muitas
oportunidades, veio a suprimir a lacuna entre o direito e os institutos normativos positivados.
Assim surgiu a bona fides, princípio geral que norteia as relações interpessoais, cuja base eti-
mológica remonta a lealdade e confiança.
Seguindo uma linha cronológica, mais precisamente na França do pós Revolução Fran-
cesa, a boa-fé fora bastante desenvolvida, tendo como marco principal o Código Napoleônico
de 1804, obra que o próprio Napoleão considerou como a mais importante de sua carreira como
estadista (CASTRO, 2010). Esse código teve forte inspiração no Direito Romano e sua impor-
tância pode ser verificada a partir dos vários códigos civis que o tiveram como modelo.
A título de exemplo, a boa-fé pode ser verificada no Código Civil francês de 1804 em
seu artigo 550, que aduz: “o possuidor está de boa-fé quando possui como proprietário, em vir-
tude de título translativo de propriedade cujos vícios ignore”.
Em seguida, temos o Direito Alemão como um grande contribuinte no desenvolvi-
mento da boa-fé, cuja ideia fora formulada em treue und glauben (lealdade e confiança). Ainda,
ressalta-se que o seu caráter objetivo que foi desenvolvido tem reflexos na Escola da Exegese do
Direito Germânico (GOMIDE, 2009). Nesse sentido, tem-se o parágrafo 242 do Código Civil
Alemão (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch) que traz: “o devedor está adstrito a realizar a presta-
ção tal como exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”.
Na Common Law, estrutura de ordenamento cuja fonte primária do direito é a juris-
prudência, a presença da boa-fé difere dos demais sistemas de Civil Law, cuja principal fonte
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
do direito é o texto normativo. Isso se percebe quando, na fase pré-contratual, não há o dever
geral de as partes negociarem com boa-fé (a desnecessidade de uma parte expor às outras ques-
tões importantes) tendo como justificativa a autonomia privada caracterizada na liberdade de
contratar.
No Brasil, o primeiro texto a trazer o princípio da boa-fé foi o Código Comercial de
1850. Naquele dispositivo era possível identificar um caráter interpretativo e integrador da boa-
-fé nas cláusulas contratuais, verificado, por exemplo, no artigo 131 que traz:
209
Sendo necessário interpretar as cláusulas do contrato, a interpretação, além das regras
sobreditas, será regulada sobre as seguintes bases: [...] 1.4 – a inteligência simples e
adequada, que for mais conforme à boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do
contrato deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras.
210
3 BOA-FÉ SUBJETIVA E BOA-FÉ OBJETIVA
De início, é válido dizer que a boa-fé é um dos princípios contratuais de maior desta-
que no cenário atual. Por isso, é importante frisar que existem duas formas em que a boa-fé se
expressa e que em nada se confundem; são elas a boa-fé objetiva e a subjetiva.
A boa-fé trazida pelo Código de Defesa do Consumidor é a objetiva, diversa da subje-
tiva.
A boa-fé subjetiva trata da consciência ou não de um fato pela pessoa, sendo levada
em consideração pelo direito para os fins específicos da situação regulada. É o que se tem, por
exemplo, no artigo 1201 do Código Civil, que traz em seu caput: “é de boa-fé a posse, se o pos-
suidor ignore o vício, ou obstáculo que impede a aquisição da coisa”.
Outrossim, diz-se que a boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa sobre
um fato modificador, impeditivo ou violador de direito. É o que se tem no artigo 1561 do Có-
digo Civil, quando trata dos efeitos do casamento putativo. Desse modo, segundo Nunes (2011,
p. 658), “é, pois, a falsa crença de uma situação pela qual o detentor do direito acredita na sua
legitimidade porque desconhece a verdadeira situação”.
Assim, a boa-fé subjetiva remete a estado de consciência ou a convencimento indivi-
dual da parte ao agir em conformidade ao direito. Diz-se subjetiva, pois, na aplicação da norma,
o intérprete deve considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico
ou de íntima convicção (GONÇALVES, 2011).
Por sua vez, a boa-fé objetiva é uma regra de conduta que, consiste no dever das par-
tes agir com honestidade, lealdade, retidão e em consideração para com os interesses do outro
contraente, sobretudo no sentido de não deixar de fornecer informações relevantes a respeito do
objeto e conteúdo do negócio (GONÇALVES, 2011), a fim de se equilibrar as relações de consu-
mo, por exemplo. Nesse mesmo sentido, Braga Netto (2012, p. 63) entende como sendo “o dever
imposto a quem quer que tome parte em relação negocial, de agir com lealdade e cooperação,
abstendo-se de condutas que possam esvaziar as legítimas expectativas da outra parte”.
Desse modo, a boa-fé objetiva funciona como um standard, um modelo jurídico que se
reveste de várias formas para uma atuação refletida, na qual um age pensando no seu parceiro
contratual e respeitando os seus interesses, expectativas e direitos, pautada na honestidade e
lealdade, cooperando para o cumprimento do contrato e a realização do interesse de ambos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
(MARQUES, 2006).
Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel e leal e em
respeito mútuo entre as partes contratantes. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso,
sem lesionar ninguém, cooperando sempre para atingir o fim pretendido do contrato, realizando
os interesses das partes.
211
A doutrina não é unânime em apontar as funções da boa-fé. Mas, em linhas gerais,
identificam-se três: diretriz hermenêutica; criação de deveres jurídicos anexos; e limitação dos
direitos subjetivos. Tais funções interligam-se e servem para melhor delimitar a aplicação do
princípio.
Como diretriz hermenêutica, a boa-fé objetiva estabelece que se deva interpretar os
contratos em consonância com uma esperada lealdade e honestidade das partes. Nesse ponto,
verifica-se a influência direta da eticidade que se espera dos participantes da relação. Quanto
a isso, merece destaque o artigo 113 do Código Civil, cujo teor põe que os negócios jurídicos
devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração, e o artigo 47 do
Código de Defesa do Consumidor, que trata da interpretação mais favorável ao consumidor das
cláusulas contratuais.
Em relação à criação de deveres anexos, a boa-fé se constitui numa fonte autônoma,
isto é: os deveres não decorrem exclusivamente da relação obrigacional, independem da mani-
festação de vontade dos contratantes, levando-se em consideração também as circunstâncias e/
ou fatos referentes ao contrato (AGUIAR JÚNIOR, 2011). Tais deveres estão relacionados com
informação, cuidado, segurança e cooperação.
A título de exemplo, são deveres anexos das partes: indicar alteração de endereço,
telefone e outros meios de contato, principalmente nos vínculos contratuais, de modo a evitar
dificuldades de cumprimento das obrigações; evitar danos à integridade moral e física do con-
sumidor; informar que haverá uma mudança substancial num modelo de carro, com potencial
desvalorização do modelo antigo (BENJAMIN, 2012).
Quanto à terceira função, a boa-fé serve como limite para o exercício de direitos sub-
jetivos. Tal função tem por escopo limitar o exercício do direito das partes para que estas não
incorram em práticas abusivas. Esta função é disposta no artigo 187 do Código Civil, que aduz:
“também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Dessa forma, funciona como parâmetro para verificar a conduta das partes de modo
a concluir pela arbitrariedade e do abuso de direito (BENJAMIN, 2012), não podendo o con-
sumidor valer-se das regras do Código de forma dissoluta, com intuito de locupletamento, por
exemplo (NUNES JÚNIOR, 2009).
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
212
5.1 A norma do Artigo 4º do Código de Defesa do Consumidor
O princípio da boa-fé constante no artigo 4º da Lei nº 8.078/90 tem como função via-
bilizar os dispositivos constitucionais que versem sobre a ordem econômica, compatibilizando
interesses aparentemente antagônicos, como a proteção do consumidor e desenvolvimento eco-
nômico e tecnológico.
A primeira consideração a ser feita está pautada no fato de a boa-fé aparecer como
princípio orientador da interpretação, e não como cláusula geral para a definição das regras de
conduta. É uma referência para a interpretação e aplicação do Código, o que, segundo Aguiar
Júnior (2011), seria até de certo modo dispensável, pois não se concebe sociedade organizada
com base na má-fé, não fosse a constante conveniência de acentuar a sua importância.
Em seguida, o princípio da boa-fé destacado no inciso III é tido como um critério
auxiliar para a viabilização dos ditames constitucionais sobre a ordem econômica. Com isso,
promove a harmonização entre consumidores e fornecedores, entre prestação e contraprestação.
Busca-se uma relação contratual justa e, segundo Nunes (2011, p. 660), isso quer dizer que “a
boa-fé não serve tão somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a
interpretação garantidora da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princí-
pios constitucionais do art. 170 sua razão de ser”.
Desse modo, a aproximação da ordem econômica e da boa-fé serve para realçar que
esta não é apenas um conceito ético, mas também econômico, relacionado com a funcionalida-
de do contrato e sua finalidade socioeconômica.
Constata-se de pronto que a Lei nº 8.078 trouxe no rol exemplificativo das nulidades do
artigo 51 a cláusula incompatível com a boa-fé no inciso IV, sendo nula de pleno direito a que
estabeleça obrigações consideradas iníquas, abusivas que coloque o consumidor em desvanta-
gem exagerada.
O entendimento do inciso completa-se com o disposto no §1º do referido artigo, por-
quanto se presume exagerada a vantagem que ofende os princípios fundamentais do sistema
jurídico em que está inserida, que restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à
natureza do contrato de modo a distorcer o equilíbrio contratual ou ameaçar o objeto do caso, e
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
213
ção dos deveres decorrentes dos princípios da boa-fé, do equilíbrio ou da equidade”, segundo
Miragem (2008, p. 224-225).
Nesse ponto, as funções da boa-fé objetiva (critério hermenêutico, criação de deveres
anexos e limitação do exercício de direitos) têm enorme importância e devem ser trazidas a
exame para verificar a nulidade, ou não, de cláusulas contratuais (BENJAMIN, 2011).
Ademais, em decorrência do princípio do equilíbrio econômico do contrato, veda-se
cláusula que imponha desvantagem exagerada ao consumidor, buscando a justiça contratual e
vedando abuso na fixação das obrigações do contratante.
Desse modo, observa-se que tal dispositivo depende de esforço hermenêutico para um
devido cumprimento no caso concreto, cabendo ao magistrado a análise de eventual nulidade de
cláusula contratual fundada no artigo 51, IV. A responsabilidade do Judiciário é, portanto, mais
intensa, de modo a afastar as críticas de subjetivismo e arbitrariedade na análise de abusividade
das cláusulas contratuais (BENJAMIN, 2011).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
214
Assim sendo, não restam dúvidas acerca da dimensão que alcança o aspecto da boa-fé,
nomeadamente nas relações de consumo.
REFERÊNCIAS
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. A boa-fé na relação de consumo. In: Doutrinas
Essenciais: direito do consumidor. v. 1. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e do Brasil. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: parte geral. v.1. 8. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais. v.3. 8. ed.
São Paulo: Saraiva, 2011.
Contratos no código de defesa do consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
MIRAGEM, Bruno. Direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
2011.
NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano; MATOS, Yolanda Alves Pinto Serrano de. Código de defesa
do consumidor interpretado: doutrina e jurisprudência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
215
THE IMPORTANCE OF THE GOOD FAITH IN THE RELATIONS OF CONSUMP-
TION
ABSTRACT: This paper presents considerations about the good faith and
its importance in the relations of consumption. Since the historical aspects
to the analyses of Brazilian’s law in the Consumers’ Bill of Rights, reiterat-
ing the ideals of honesty and loyalty between the parts and reaffirming the
importance of the good faith in the relations of consumption. Also, it treats
about the difference between the subjective good faith and the objective good
faith, showing which one of them is used in the relations of consumption. The
methodological procedure used was the bibliographic research in printed and
electronic media, specially the consumers’ law literature, giving base to this
entire paper.
Keywords: Good faith. Brazilian consumers’ bill of rights. Relation of con-
sumption.
216
Enviado em 15 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiária no Ministério Público do Trabalho.
** Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário no Ministérios Público Estadual.
217
tindo-lhe certa discricionariedade na interpretação e aplicação das normas.
A hermenêutica constitucional é, portanto, técnica indispensável para que o juiz com-
preenda as particularidades do caso concreto de modo que a interpretação e aplicação das nor-
mas se coadunem com a Constituição e deem maior efetividade aos direitos fundamentais.
Nesse contexto neoconstitucional que dotou de força normativa a Constituição, os
princípios nela estabelecidos consagraram-se como normas jurídicas. Em decorrência disso,
surge o neoprocessualismo, corrente na qual o juiz passa a aplicar os princípios norteadores da
Constituição ao processo de forma imediata.
Sendo assim, é preponderante o papel do magistrado na reconstrução do processo civil
à luz da Constituição. Sua função é zelar pela efetividade da tutela do direito material de acordo
com as normas constitucionais e pela proteção dos direitos fundamentais, garantindo, inclusive,
um ideal sopesamento desses direitos no caso de conflito entre eles.
Dito isto, o direito a uma tutela jurisdicional não está relacionado, exclusivamente, ao
direito de ter sua petição lida e apreciada pelo Poder Judiciário. O artigo 5º, inciso XXXV da
Constituição: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”,
deve ser entendido de forma ampla, como um direito, a todos conferido, de não somente ter
acesso à justiça, mas da garantia de uma tutela adequada, efetiva e tempestiva, pautada no
direito ao devido processo legal e, como dito supra, nos ditames constitucionais pertinentes. É
por esta razão que a tutela do direito não deve se restringir ao seu aspecto formal, mas à sua
realização material quando necessária. Destarte, o direito à execução é corolário ao direito de
acesso à justiça, estando umbilicalmente interligados.
Nesse sentido, vislumbra-se a necessidade de relativização da impenhorabilidade, de
modo a garantir a efetividade do processo executivo e consequentemente do direito de acesso à
justiça do credor, embora se busque não interferir no mínimo existencial protegido pelas regras
do instituto da impenhorabilidade.
Trata-se de uma ponderação dos interesses em análise, não menosprezando a proteção
à dignidade da pessoa humana tutelada pelas regras de impenhorabilidade, mas garantindo o di-
reito do credor no processo executivo de ver seus direitos de propriedade, de crédito e de acesso
à justiça atendidos quando inescrupulosamente o devedor se utiliza da má interpretação norma-
tiva para não cumprir com suas obrigações. As circunstâncias do caso concreto, para tanto, são
imprescindíveis para aferir a necessidade de relativização da garantia da impenhorabilidade.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
218
A obrigação, quando não adimplida, gera a responsabilidade do devedor. Sendo assim,
a responsabilidade só surge diante do não cumprimento voluntário da obrigação, sujeitando o
patrimônio do devedor/terceiro, ou, em casos excepcionais, sua vontade/liberdade, ao cumpri-
mento da prestação em legítima execução forçada (DIDIER JÚNIOR e outros, 2013).
O artigo 591 do CPC/73, agora na novel forma do artigo 789, do CPC/15 (Lei nº 13.105,
de 16 de março de 2015), contempla norma básica da responsabilidade executiva preceituando
que “o devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de
suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei”. Destarte, o patrimônio do devedor é a
garantia comum de seus credores. Para complementar essa regra fundamental, é necessária uma
interpretação em conjunto com o artigo 790, inciso III do CPC/151 para se entender que os bens
do devedor, ainda que estejam em poder de terceiros, respondem à execução.
Quanto à alteração textual e material contido no CPC/15 em face do CPC/73, no que
tange a penetração no patrimônio atingido pela responsabilidade do devedor, observa-se que
o legislador ampliou a proteção ao direito do credor, trazendo à baila mais coberturas legais
contra tipos comuns de fraudes através de cláusulas de inalienabilidade, aquelas dispostas no
artigo 790, inciso VI, e de responsabilidade da pessoa jurídica, inciso VII do mais atual CPC.
A responsabilidade do devedor é primária, posto que, como obrigado e responsável, o
seu patrimônio é o primeiro a ser executado. Há situações, entretanto, que a responsabilidade
da obrigação pode recair sobre bens de terceiro (responsabilidade secundária). Nesses casos o
terceiro responde pela dívida, apesar de não a dever.
Chama-se atenção também ao fato dos bens do devedor tanto presentes como futuros
responderem pela execução. Dessa forma, os bens integrantes do patrimônio do executado res-
pondem pela execução ainda que eles não existam no momento da constituição da obrigação,
sendo incorporados posteriormente. Mesmo que não haja na esfera patrimonial disponível do
devedor nenhum bem que possa ser executado na fase de execução, o processo será suspenso2
e retomado se, dentro do prazo prescricional, surgir bens disponíveis à satisfação do crédito.
Assim, a execução é, em regra, real, pois recai sobre o patrimônio do devedor. A
exceção a esse princípio é a prisão civil como coerção pessoal para a execução da prestação
pecuniária de alimentos.
A penhora é o ato pelo qual se dá a satisfação direta ou indireta da pretensão do exe-
quente. O crédito executado é satisfeito diretamente através da adjudicação de um bem como
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 Art. 790. São sujeitos à execução os bens: III - do devedor, ainda que em poder de terceiros.
2 À luz do disposto no art. 791, III, do antigo CPC/73, agora na redação ampliativa do artigo 921, inciso III do CPC/15 e art. 40 da Lei
6.830/80 (Lei de Execução Fiscal).
219
Entretanto, a submissão do patrimônio do devedor não é absoluta, uma vez que há os
casos de impenhorabilidade definidos por expressa determinação legal que excluem certos bens
da responsabilidade patrimonial. A impenhorabilidade de certos bens é uma restrição à tutela
executiva, justificada pela proteção que se deve ter com alguns bens jurídicos relevantes, como
a dignidade do executado e o direito ao patrimônio mínimo.
Tal instituto protetivo contido no artigo 649 do CPC/73 contempla, de acordo com
Araken de Assis (2010), o benefício de competência, decorrente da proteção à dignidade da
pessoa humana. Este entendimento merece respaldo na atualização feita na forma do artigo 833
do CPC/15, que obedece aos mesmos ditames constitucionais, mesmo com a ampliação do rol,
redução dos valores impenhoráveis em poupança e expansão da penhorabilidade de vencimen-
tos e congêneres que ultrapassem a soma de cinquenta salários mínimos.
A impenhorabilidade só poderá existir através das “restrições estabelecidas em lei”,
conforme a parte final do artigo 591 do CPC/73, sendo este o princípio da tipicidade da impe-
nhorabilidade (ASSIS, 2010). Tal dispositivo, com nova redação no art. 789 do CPC/15, mante-
ve-se materialmente igual. Desta forma, o CPC/15 e a Lei 8.009/90, por exemplo, prescrevem
um rol de bens que são considerados absoluta ou relativamente impenhoráveis, coadunando
com a tipicidade apontada pelo ilustre doutrinador mencionado. Apesar de formal e material-
mente possível, não se mostra viável a ampliação das regras de impenhorabilidade, de forma a
tornar o que seria exceção em regra. Porquanto, a regra é a penhorabilidade de todos os bens do
devedor, sem que haja discriminação entre eles, desde que haja valor econômico.
Neste ínterim, a proteção ao devedor conferida pelas regras de impenhorabilidade é,
contudo, limitativa da satisfação do crédito pelo credor, que se vê cada vez mais em dificuldade
para conseguir executar o devedor. Em decorrência disso, uma liberalização exagerada miti-
garia o direito à tutela jurisdicional do credor que busca a satisfação do seu crédito e só pode
contar com o patrimônio daquele que lhe deve (DINAMARCO, 2009).
A impenhorabilidade é um direito subjetivo do executado que pode ser renunciada se o
bem impenhorável for disponível. Afinal, sendo o bem alienável extrajudicialmente, não haveria
por que não sê-lo judicialmente, mesmo nos casos de benefício de competência (DIDIER JÚ-
NIOR e outros, 2013). Nesse caso, o executado poderá abdicar do privilégio e nomear tais bens
à penhora ou deixar de alegar a impenhorabilidade na primeira oportunidade que lhe couber
falar nos autos ou nos embargos à execução (ASSIS, 2010).
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
220
ção, conforme será mais bem ilustrado adiante.
nibilizadas ao intérprete ferramentas para a solução do aparente embate. Tal necessidade surge
na satisfação de diversos princípios intrínsecos à Constituição, ligados à não contradição e aos
princípios da unidade e da máxima efetividade das normas Constitucionais, não devendo restar
silente a jurisdição à luz da Constituição (DWORKIN, 2005).
Portanto, admitindo-se que a solução de conflito de regras se dá, primordialmente,
pela preponderância de uma regra em detrimento da outra, em qualquer nível de controle de
constitucionalidade, resta elucidar como se dá a colisão de princípios de direito fundamental.
Os princípios de Direito Fundamental nos remetem, de acordo com o gênero “princí-
221
pio”, à máxima efetivação de todo o bloco de direitos fundamentais em colisão, sendo necessá-
ria uma análise de todo conjunto de princípios relevantes para a interpretação e manifestação
do resultado que propiciar a melhor solução. De tal forma, na colisão entre o princípio A e B,
caso entenda-se a preponderância de A sobre B, este último não é inválido, apenas cede diante
da precedência de A na condição de fundo, isto é, o peso do princípio determina-se diante do
caso concreto.
Imprescindível sedimentar que estabelecer a razão da norma a ser considerada no caso
concreto é resultado de uma ponderação que tem como córtex a razoabilidade e a proporcionali-
dade dos direitos em jogo. Imerge-se, desta forma, na teoria dos princípios e na máxima da pro-
porcionalidade que, reciprocamente, tornam-se condições existenciais uma da outra (ALEXY,
2011). Convém destacar que a distinção nos institutos da razoabilidade e da proporcionalidade
é tema que admite controvérsia, tendo na escola alemã e americana diversos contrapontos na
definição e aprofundamento do assunto, principalmente no que se refere à proporcionalidade
em sentido estrito e amplo. Trata-se de celeuma terminológica que não afeta diretamente a
ponderação em si, apesar de dever ser encarada cientificamente com escopo de esclarecer suas
singularidades no sistema hermenêutico, segundo Sarlet (2012).
Como conclusão, no caso concreto de colisão de princípios de Direito Fundamental, a
princípio, será determinada a razão da norma através da ponderação dos princípios envolvidos,
conformando-se a proporcionalidade nas suas vertentes de adequação, da necessidade e da pro-
porcionalidade em sentido estrito. Contudo, ressalva-se o apontado por Bonavides (2011) quanto
à prejudicialidade que os excessos dessa interpretação constitucional conferem à hermenêutica
do juiz, tendo como consequência de um desprendimento da razoabilidade ou exagero político
o enfraquecimento ou até mesmo a desintegração da Constituição.
cumpridas – abstém-se aqui da discussão dos motivos do devedor –, ficando o credor sem a
sua justa prestação em face da negativa de cumprimento por parte do devedor. Cabe, assim, ao
detentor deste direito de receber, recorrer ao sistema judiciário, para que, restando comprovado
seu crédito e a não quitação, possa existir a incidência do braço forte do Estado sobre o indiví-
duo na forma do processo de execução.
Temos assim o contexto ao qual está intimamente ligado o instituto aqui em tela, qual
seja, a impenhorabilidade. Tal instituto pode ser entendido como a previsão correta do legisla-
dor de determinar no código de processo civil situações onde o braço do Estado, movido pela
222
jurisdição provocada pelo credor, esbarrará em limitação posta por si mesmo. Isto é, o próprio
ordenamento determina uma espécie de reserva a suas próprias ações, resguardando o mínimo
de um rol de direitos amparados na Constituição.
Assim, expressam-se não só a proteção ao corolário máximo de nossa Constituição,
qual seja, a dignidade da pessoa humana, como também diversos outros direitos fundamentais
à liberdade dos indivíduos e a não intervenção do Estado, que garantem a manutenção do prin-
cípio da igualdade. Não suficiente, contribui na tutela de outros direitos fundamentais sociais,
estando todo este bloco protegido em função de se preservar o mínimo existencial para uma
vida digna, reflexo de um Estado igualitário.
Em suma, o mínimo existencial se constitui como a presença sem a qual, à luz dos
direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana está comprometida de tal forma que não
se pode considerar as condições de vida do indivíduo como dignas, restando como afronta aos
objetivos da Constituição e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito.
Percebe-se então que o mínimo existencial decorrente da impenhorabilidade, na ver-
tente que convir ao caso concreto, reflete a tutela de um bloco de direitos fundamentais que, em
nosso ordenamento, restam imprescindíveis. Em hipótese, caso reste frustrada a execução de
um determinado bem, por razão de ser considerado, à luz do código já supracitado, impenhorá-
vel, teríamos de fato a proteção do direito fundamental ao qual o referido bem está condiciona-
do, de tal forma, o que resta protegido é a finalidade do bem em função da garantia mínima da
norma de direito fundamental. Destarte, a não ação do poder Estatal reforça e resguarda, como
estado de liberdade, outra vertente das normas fundamentais, as de status positivo.
Assim, resguardar o mínimo existencial é medida que promove maior efetividade a
toda normatividade de direitos fundamentais, dos mais diversos gêneros. De tal modo, resta a
impenhorabilidade como tutela de direitos fundamentais, seja na garantia mínima de manifes-
tação da vontade das partes (artigo 833, inciso I do CPC/15), ou no resguardo de bens que estão
vinculados a direitos fundamentais de outros sujeitos da esfera familiar do proprietário (artigo
1º da Lei nº 8.009/90), ou mesmo na proteção dos meios de desenvolvimento social, intelectual
ou profissional do que está sofrendo os efeitos da execução (artigo 833, inciso V do CPC/15).
Deve-se pontuar, entretanto, uma distinção entre o mínimo existencial e o mínimo
vital, uma vez que este é a composição de direitos mínimos que garantem tão somente a susten-
tação do ser como unidade biológica de vida, sendo parte imprescindível na concessão de um
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
mínimo existencial. Este último teria a concepção do indivíduo como ser social, que não pode
ter uma vida digna somente com acesso àquilo que se mostra biologicamente indispensável,
sendo necessários outros direitos, tais como educação, desenvolvimento cultural e social, direi-
to à jurisdição, direito ao trabalho, dentre outros direitos que podem ser compreendidos neste
rol de mínimas condições para o indivíduo existir e coexistir com dignidade.
Sedimenta-se assim, que o bem a ser protegido pela impenhorabilidade não representa
em si só o objetivo deste instituto. Todavia, o que parece mais lógico e sensato é analisar-se a
finalidade do bem como materialização de um direito fundamental, e este sim seria o objeto de
223
proteção pelo instituto da impenhorabilidade.
Constituição, artigo 5º, inciso LXXVIII4. Para tanto, o processo tornou-se único, sincrético,
cabendo apenas falar em fases de conhecimento e fase de execução, de forma que a tutela juris-
dicional seja obtida no bojo de um único processo. Assim, o processo de execução contempla
o direito de ação que deve não só declarar o direito, como selecionar meios para que este seja
3 Art. 797. Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal, realiza-se a execução no interesse do
exequente que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados.
4 Artigo 5º, inciso LXXVIII - A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios
que garantam a celeridade de sua tramitação.
224
efetivamente satisfeito.
Portanto, o direito fundamental à tutela executiva decorre da garantia do devido pro-
cesso legal e dos princípios constitucionais da inafastabilidade da jurisdição e da razoável du-
ração do processo, com o fim último de conceder efetividade à execução civil e consagrar o
direito de ação a partir da garantia do procedimento, da espécie de cognição, da natureza do
provimento e dos meios executórios adequados.
5 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana.
225
tucionalidade em tese. É esse o entendimento esposado por Didier Júnior (2013) que acrescenta
ainda a dimensão objetiva dos direitos fundamentais como justificadora da necessidade pelo
magistrado do controle de constitucionalidade em concreto.
Destarte, manifesta-se a dimensão objetiva dos direitos fundamentais na sua segunda
vertente que é a necessidade de irradiação de seus efeitos por todo o ordenamento (DIMOULIS;
MARTINS, 2012). Vincula-se, dessa forma, a decisão do juízo a uma análise constitucional do
caso concreto, não sendo coerente, à luz da própria constituição, afastar da resolução da lide
todo o bloco de constitucionalidade que ampare os direitos fundamentais em tela.
Nesse mesmo sentido, Marcelo Lima Guerra afirma:
Deste modo, entende-se que o problema não está na restrição legal do direito do credor,
mas sim na utilização de uma regra abstrata e absoluta em um inquestionável conflito de direi-
tos fundamentais. Isso porque haveria uma clara afronta aos preceitos constitucionais, negan-
do-se a supremacia da Constituição e sua força normativa, ao solucionar um conflito de direitos
fundamentais sem extrair de algum deles certo grau de efetividade, anulando-o por completo
em decorrência do outro. Conforme já exposto, os princípios são mandamentos de otimização e
devem ser cumpridos na maior medida possível de acordo com as condições do caso concreto,
permitindo-se, assim, seu cumprimento em diferentes graus.
Nesse sentido, não se faz razoável a aplicação de forma absoluta das regras de impe-
nhorabilidade contidas na Lei nº 8.009/90 que em seu artigo 1º giza que:
Dessa maneira, verifica-se que não há no dispositivo, nem ao menos na Lei, nenhuma
restrição quanto aos imóveis de elevado valor, porém não seria concebível que o acesso à Justiça
fosse obstado por um devedor que viva em uma mansão luxuosa e se esconde por trás de uma
proteção ao bem imóvel de família. Nesse caso, o devedor estaria muito além do que se justifi-
caria proteger, resultando em um privilégio inconstitucional para ele.
Da mesma forma, em outro exemplo está também a situação da impenhorabilidade dos
226
salários disposta no CPC/15 em seu artigo 833, inciso IV que apregoa a impenhorabilidade dos
vencimentos, subsídios, salários, remunerações, soldos, proventos de aposentadoria, pensões,
pecúlios e montepios assim como quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas a
prover o devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profis-
sional liberal. Não se podia aceitar tamanho absurdo de se reconhecer a impenhorabilidade de
salários de valores elevados em detrimento do direito do credor de receber o que lhe é devido.
Dessa forma, estaria se permitindo o enriquecimento ilícito do devedor, o que foi combatido
com considerável precisão por parte do legislador do CPC/15, na ampliação das exceções a essa
modalidade de impenhorabilidade, prevendo a disponibilidade desses valores quando ultra-
passem a quantia de cinquenta salários mínimos. Tal medida ajuda a promoção do direito do
credor, mas não soluciona toda a problemática acerca deste tema.
Por outro lado, como destaca Didier Júnior (2013), as regras de impenhorabilidade
contidas no CPC/73 estão repletas de conceitos jurídicos em branco como “médio padrão de
vida” e “elevado valor”, que na confecção do CPC/15 foram mantidas praticamente na íntegra
com a redação do art. 833, inciso II6. Correta a posição do legislador em manter a restrição des-
sas regras sem precisar valores, cabendo ao magistrado, no caso em concreto, aferir quanto aos
princípios em conflito qual se sobreporá.
O que se defende é o uso da técnica da ponderação na aplicação da regra da não exe-
cução do bem em tese impenhorável (como por exemplo, o bem imóvel de família), quando este
possuir um valor econômico que extrapole o limite do razoável, a fim de não se constituir um
privilégio do devedor em detrimento do direito do credor. Isso porque afetaria sobremaneira os
princípios éticos, morais e jurídicos a não efetivação do processo de execução quando se sabe
que o credor tem reservas financeiras, mas não paga o credor por estar acobertado pelas regras
de impenhorabilidade absoluta.
Nesses casos, entende-se que não estaria havendo a aplicação correta do princípio do
mínimo existencial, na medida em que não existe, em concreto, razão ensejadora para utiliza-
ção em absoluto da proteção abarcada pelas regras de impenhorabilidade. Deve haver nessa
situação a aplicação do princípio da adequação, em que os direitos fundamentais para serem
protegidos devem ser alcançados por meios aptos e necessários.
O valor do bem pode, no caso concreto, estar deveras desvencilhado de seu cunho
finalístico, conferindo ao instituto da impenhorabilidade aspecto inconstitucional, por ferir de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
morte o princípio da igualdade, concedendo uma vantagem desmerecida a uma das partes.
Esclarece-se através do seguinte exemplo: O executado “B” possui casa de luxo em valor exa-
cerbado, que supre demasiadamente o seu direito e de seus familiares à moradia e à vida digna.
Não seria uma casa com valor reduzido, obedecida as proporcionalidades e o juízo razoável,
suficiente para a mesma finalidade? De forma tal a promover, pela diferença patrimonial dos
6 Art. 833. São impenhoráveis: II - os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os
de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida.
227
bens, a justa execução pretendida pelo exequente “A”?
Não é despiciendo destacar que a dignidade da pessoa humana deve ser vista no caso
concreto de forma dúplice, ou seja, tanto para o devedor como também para o credor. A partir
desse pressuposto, pode-se entender o direito a uma tutela jurisdicional efetiva como decorrente
da dignidade da pessoa humana.
Diante disso, o artigo 805 do CPC/15 ao garantir que “Quando por vários meios o exe-
quente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o
executado”, não se está obrigando que a penhora seja feita ao bem de valor menor para garantir
a dignidade do devedor, mas sim que seja realizada, dentre todos os meios efetivos à satisfação
integral do direito do credor, a que melhor proteja o direito do devedor ao mínimo existencial.
Sendo assim, primeiramente busca-se a penhora do bem que satisfaça à tutela executi-
va e depois se escolhe, dentre estes, o de menor onerosidade à dignidade do executado, garan-
tindo-se, portanto, a proteção da dignidade do executado, e não do seu patrimônio.
Ademais, a dignidade da pessoa humana do credor, assim como seu direito ao mínimo
existencial, também serão atingidos quando se observar no caso concreto um prejuízo significa-
tivo, material e/ou moral, causado pelo inadimplemento do devedor. Desse modo, haverá que se
discutir o direito da dignidade da pessoa do credor, não podendo o mínimo existencial ser visto
apenas pelo lado da parte devedora.
Portanto, o credor que não recebe o valor do seu título executivo e que ora pleiteia
judicialmente o seu restabelecimento pela tutela executiva, também pode estar em situação que
precise ter seu mínimo existencial garantido, devendo lhe ser assegurado a garantia de receber
o que lhe é devido para, consequentemente, garantir a dignidade da sua pessoa humana.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
mente protegido dos efeitos da execução, uma vez que a finalidade a qual este se vincula é o
que nos remete ao direito fundamental arguido na colisão, isto é, não há de se conceber bem
absolutamente não penhorável sem estabelecermos o seu valor diante de sua finalidade.
Portanto, tal temática extrapola o universo teórico, fincando-se no campo dos casos
concretos, visto que a finalidade do bem em análise está, obrigatoriamente, atrelada à realidade
da vida do executado, de como suas garantias fundamentais estão relacionadas aos fins do bem
em tela, suas influências, e em suma, sobre o quão imprescindível é tal item na manutenção de
sua vida digna.
228
Ademais, prevê-se que a discricionariedade concedida ao julgador no comando legal
já mencionado é, na sua real face, reforço da obrigação de aplicar-se a normatividade consti-
tucional, sendo assim o magistrado age como vetor para se aferir a relação “valor do bem x
finalidade de direito fundamental”, munido de sua subjetividade, mas guiado pelos preceitos
constitucionais de razoabilidade e proporcionalidade.
De tal forma, finda-se a presente abordagem reiterando a relatividade necessária na
análise do instituto da impenhorabilidade, afastando toda e qualquer proteção desnecessária –
aos critérios já mencionados – que, no que tange a relação processual e a relação extrajudicial,
refletiria grave violação ao princípio da isonomia. Apontando-se que não foram suficientes os
passos em direção ao maior equilíbrio dos direitos aqui em questão com a nova redação do
CPC/15 quanto a esta temática, mas que muito do que se podia criticar no antigo código foi
alterado.
Portanto, entender a impenhorabilidade como um instituto que protege toda a estrutura
das relações dos indivíduos e, também, mecanismo de manutenção das obrigações estatais na
concessão de direitos de status positivo e negativo é medida de maior equidade, sendo manifes-
tação rica de princípios constitucionais, que permite o ordenamento incidir sobre os indivíduos,
promovendo o que lhe é de mais fundamental e esperado: Justiça.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
ASSIS, Araken de. Manual da execução. 13. ed. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2010.
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Juspodivm, 2013. 5 v.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria geral dos direitos fundamentais. 4. ed.
São Paulo: Atlas, 2012.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.
DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
229
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos
direitos fundamentais numa perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2012.
ABSTRACT: This article is scoped to elucidate the problem about the insti-
tute of unseizability regarding its application in concrete cases and the need
to have it as a reflection of the entire constitutional rules,taking as a parameter
an unavoidable need to counteract the fundamental rights of both sidein the
execution process: the protection of debtor’s dignity and the executive jurid-
ical protection of the creditor.The article also uses concepts found in the bra-
zilian doctrine and in the classic German doctrine, as identifiers of the form
of fundamental rights in vector of unseizability Institute.
Keywords: Unseizability. Judicial executive. Collision of Fundamental Right
Principles. Existential minimum. Equality.
230
Recebido em 13 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
231
Em regra, essa norma não comporta exceções - não se olvide como uma delas o modelo
alternativo de resolução de controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis, introduzi-
do no ordenamento brasileiro pela Lei nº 9.307/96, conhecida como Lei da Arbitragem-, e tem
como destinatário não somente o legislador, mas todos, de modo geral, que não podem impedir
ou dificultar sobremaneira o acesso ao Judiciário. Assim sendo, dessume-se desse princípio que
o sistema constitucional brasileiro extirpou, por exemplo, a figura da jurisdição condicionada
ou instância administrativa de curso forçado, consagrada na EC nº 1/69 (art. 153, § 4º) que res-
tringia o amplo acesso ao Poder Judiciário.
Com o advento da “cláusula de acesso à justiça”, não mais é possível se invocar a
necessidade de prévio esgotamento das vias administrativas como obstáculo à provocação do
Judiciário, conforme assentado pacificamente pela jurisprudência pátria. Em resumo, levar uma
demanda à apreciação desse Poder para a obtenção de uma tutela preventiva ou repressiva se
tornou tarefa menos complexa e burocrática na nova ordem constitucional vigente.
Entretanto, como típico no universo jurídico como um todo, esse direito individual de
matiz constitucional, que inclusive ostenta a qualidade de cláusula pétrea, é mitigado por uma
previsão também advinda do constituinte originário (não havendo, portanto, que se falar em
inconstitucionalidade) constante do art. 217, §§ 1º e 2º, a qual se refere ao caso específico da
Justiça Desportiva.
Vislumbra-se, assim, que o constituinte entendeu por bem resguardar a totalidade da
atuação da Justiça Desportiva em detrimento do direito à provocação do Judiciário, o que pode
ser justificado por uma série de motivos, os quais reivindicam uma análise mais pormenoriza-
da das idiossincrasias dessa Justiça independente que rege as relações jurídicas existentes nas
atividades do desporto.
Não é tarefa fácil conceituar a Justiça Desportiva, principalmente por mesclar sua
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
232
Justiça Desportiva, com enfoque nas suas mais decantadas funções institucionais. Estas estão
essencialmente conectadas ao interesse público ínsito ao desporto, enquanto direito constitucio-
nal de cada indivíduo, muito embora seja ela absolutamente desvinculada do Estado.
A Justiça Desportiva foi criada, como já ressaltado, pela Constituição Federal de
1988, precisamente no art. 217, que reservou a sua disciplina orgânica e institucional à legisla-
ção ordinária. Nesse sentido, observe-se sua redação:
Desta feita, coube à Lei Federal nº 9.615/98- Lei Geral sobre Desportos (a famosa Lei
Pelé) o estabelecimento de disposições sobre o funcionamento e a competência do “Poder Judi-
ciário Desportivo”, o que foi realizado no capítulo VII do indigitado diploma.
A Lei Pelé reforçou a sua competência já atribuída pelo texto constitucional de apenas
processar e julgar infrações disciplinares e às competições desportivas. Outrossim, descreveu
as espécies de penas que podem ser aplicadas pelos órgãos componentes da Justiça Desportiva,
enunciou vedações como a proibição de aplicação de penas aos menores de 14 anos, de que atle-
tas não profissionais sejam condenados ao pagamento de penas pecuniárias, bem como definiu
quais os órgãos judicantes desportivos e as respectivas formas de indicação e nomeação de seus
membros, prazo máximo de seus mandatos e efeitos dos recursos, por exemplo.
De forma abreviada, a Justiça Desportiva pátria é composta por três órgãos, quais
sejam: o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD- 3ª instância) que atua na jurisdição
desportiva1 das entidades nacionais de cada desporto (a exemplo da Confederação Brasileira de
Futebol) e detém competência recursal para os processos desportivos julgados pelos tribunais
regionais ou estaduais; o Tribunal de Justiça Desportiva (TJD- 2ª instância), o qual funciona
junto às entidades regionais ou estaduais; e as Comissões Disciplinares (1ª instância) que exer-
cem seus desígnios na jurisdição desportiva de entidades municipais e possuem a competência
de julgar as questões previstas nos Códigos de Justiça Desportiva.2
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 Termo empregado para distinção em relação à jurisdição estatal comum exercida pelo Poder Judiciário
2 O Código Brasileiro de Justiça Desportiva - CBJD, criado em 2003, é o diploma que define os processos desportivos (disciplinar ou
especial), prazos, nulidades, provas, sessão de instrução e julgamento, recursos, medidas disciplinares, enfim, todo o procedimento a ser
adotado por órgãos e membros da Justiça Desportiva.
233
Mas, como se não bastasse isso, o constituinte foi além e dotou essa justiça pri-
vada (de feição administrativa, ressalte-se) de uma garantia essencial que em muito facilitou sua
atuação nas causas desportivas disciplinares e de competição: a necessidade do prévio esgota-
mento das instâncias como condição sine qua non para provocação da Justiça Comum.
Conforme já abordado, essa prescrição constitucional entra aparentemente em des-
compasso com a garantia fundamental da inafastabilidade da jurisdição (art. 5, XXXV da CF),
a qual tem como um de seus corolários lógicos a desnecessidade do exaurimento das vias ad-
ministrativas, fenômeno, em regra, tido pacificamente como inútil pelos tribunais brasileiros.3
Todavia, a Justiça Desportiva não pode ser equiparada às vias administrativas ordi-
nárias, porquanto sua especialização e exclusividade reivindicam um tratamento diferenciado.
É dizer: a Justiça Desportiva goza da garantia do prévio exaurimento das suas instâncias por
motivos próprios, inerentes à sua criação e funcionamento, os quais serão explicados indivi-
dualmente nas epígrafes que seguem.
Imagine-se o hipotético caso de um atleta que fosse denunciado por ofender o árbitro
e os familiares deste em uma partida válida por campeonato nacional. Se o processo fosse dis-
tribuído para a Justiça Comum a qualquer momento, isto é, independente do exaurimento das
instâncias desportivas, e, dessa forma, fosse seguido todo um procedimento ordinário com pra-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
zo para contestação, produção de provas, audiência, fase de sentença e etapa recursal, ter-se-ia
uma situação insustentável. Provavelmente a decisão judicial definitiva só seria proferida, para
subsequente cumprimento, muito tempo após o término da competição, o que afastaria drasti-
camente a efetividade da sanção aplicada ao atleta.
3 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 839322/ MA. Primeira turma. Rel. Min. Marco Aurélio. Data do julgamento: 07/10/2014. DJ
14/10/2014 ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO. EXAURIMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA. PRESSUPOSTO INDISPENSÁVEL
À AFERIÇÃO DO INTERESSE DE AGIR DO BENEFICIÁRIO – IMPROCEDÊNCIA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONHECI-
MENTO E PROVIMENTO. 1. Não há previsão, na Lei Fundamental, de esgotamento da fase administrativa como condição para aquele
que pleiteia o reconhecimento de direito ter acesso ao Poder Judiciário. Ao contrário da Carta pretérita, a atual não agasalha cláusula em
branco, a viabilizar a edição de norma ordinária com disposição em tal sentido.
234
Ainda como reforço ao princípio da celeridade, o constituinte se preocupou, como
colocado pelo doutrinador e procurador do STJD do futebol e do voleibol Paulo Schmitt (p.
20, 2004), em delimitar o prazo de 60 (sessenta) dias para o deslinde da causa desportiva. Tra-
ta-se essa delimitação temporal de medida de extremo valor, porque em não sendo observada,
o constituinte entende que ocorre violação do princípio da prestação jurisdicional desportiva
célere. Nesse caso, é perfeitamente cabível o ingresso de ação junto ao Poder Judiciário, não
havendo que se falar em desrespeito ao art. 217 §1º da Constituição Federal de 1988.
Percebe-se, destarte, que a celeridade reivindicada para a resolução dos litígios despor-
tivos é uma das principais razões pelas quais se faz necessário o esgotamento de toda a Justiça
Desportiva antes de eventual acionamento judicial.4
Na realidade, a Justiça Desportiva revela-se como meio ideal para solução de conflitos
estabelecidos no âmbito desportivo, pois permite a solução rápida e devidamente
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
4 Relevante não olvidar que o recurso ao Poder Judiciário não prejudica os efeitos desportivos das decisões proferidas pelos Tribunais de
Justiça Desportiva, conforme dicção do art. 52 § 2º da Lei Pelé.
235
tempo julgando casos de cartão vermelho de jogador, quando é cediça a existência de todo um
aparato especializado, voltado para o desempenho de funções dessa natureza.
Uma das grandes mazelas do Direito brasileiro é exatamente a sobrecarga do Judiciá-
rio, de modo que deduzir em juízo comum causas desportivas sem ao menos exaurir os órgãos
criados unicamente com o intuito de apreciá-las só contribui para o agravamento dessa situação.
É “nadar contra a maré” de desafogamento do Judiciário brasileiro, que tem recorrido a diversos
meios recentemente, tanto legais quanto jurisprudenciais, como a conciliação, a mediação e as
súmulas vinculantes para atenuar o excesso de processos sob apreciação judicial.
torna-se bem mais simples aos seus julgadores (auditores, predominantemente) a sistematização
dos seus julgamentos, favorecendo uma produção mais efetiva e célere de decisões.
Em contrapartida, os juízes comuns geralmente não detêm um conhecimento satisfa-
tório para enfrentar questões estritamente referentes à temática desportiva, muito em função
da ausência do Direito Desportivo nas grades curriculares das graduações e pós-graduações e
nos programas das disciplinas para concursos da magistratura. Trata-se de uma questão lógica:
se o juiz não é bem preparado para julgar determinada matéria, tende a proferir decisões mais
propensas a anomalias e equívocos.
Ilustrando a problemática, o professor Álvaro Melo Filho (2003, p. 9-10) apresenta
exemplos de tutelas jurisdicionais que consubstanciam verdadeiras aberrações jurídicas em
face do Direito Desportivo, enquanto ramo autônomo detentor de um regime jurídico próprio:6
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
5 Expulsões de atletas, condutas imorais durante ou logo após as partidas em relação ao adversário, os árbitros ou os torcedores, jogadas
violentas etc.
6 A existência de um regime jurídico desportivo independente é defendida por Paulo Schmitt (p. 2, 2004)
236
imparcialidade do árbitro.
Art. 52
(...)
§ 2º O recurso ao Poder Judiciário não prejudicará os efeitos desportivos validamente
produzidos em consequência da decisão proferida pelos Tribunais de Justiça
Desportiva.
O indigitado Paulo Schmitt (2007, p. 46) endossa essa tese ao pontificar precisamente
que:
237
cialização e celeridade exigidas pelo processo jus-desportivo.
Infere-se da presente disposição um salutar intento dos CBJD em conferir maior efe-
tividade ao comando constitucional do art. 217 § 1º, mediante sua conversão em modalidade de
infração referente à Justiça Desportiva7. A cominação de uma pena estritamente desportiva (a
exclusão do campeonato ou torneio) cumulada com uma pena pecuniária às associações despor-
tivas infratoras foi medida acertada, porquanto oferece meios perfeitamente compatíveis com
os desideratos concomitantes de prevenção e reparação pugnados pela norma.
No entanto, muito embora seja extremamente elogiável a previsão do art. 231 do CBJD,
como toda norma, ela está sujeita a descumprimentos. E, no seu caso em particular, eles têm
sido frequentes. A título de exemplo, só no mês de agosto de 2014, cinco clubes de futebol
foram a julgamento na primeira instância do STJD por irem à Justiça Comum na tentativa de
reformar o resultado de decisões tomadas pela Justiça Desportiva: Icasa-CE, Tiradentes-CE,
Botafogo-PB, CSP-PB e Cianorte-PR8. Destes, só o último foi absolvido, pois o Tribunal en-
tendeu que o clube esgotou as instâncias desportivas. Os outros foram sumariamente punidos
com a exclusão dos campeonatos que disputavam ao tempo do julgamento, cumulada com a
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
aplicação de multas que variaram entre R$ 10.000,00 (dez mil reais) e R$ 50.000,00 (cinquenta
mil reais) - Tiradentes e CSP não disputavam nenhum campeonato na época do julgamento e
culminaram sendo punidos apenas pecuniariamente-. O caso do Botafogo paraibano, inclusive,
é emblemático, porque o clube não ingressou com ação na Justiça Comum, mas se valeu de uma
238
ação protocolada por um vereador torcedor do clube.9
Tais exemplos não tiveram tanto destaque na imprensa, muito em função do fato de
não terem sido protagonizados por clubes de maior expressão no cenário nacional, como Fla-
mengo e Fluminense, os quais igualmente contaram com ações de torcedores que acionaram
a Justiça Comum para a obtenção de liminares em benefício dessas associações, porém, sem
maiores explicações, não foram processados nem levados a julgamento, segundo matéria ele-
trônica publicada na ESPN.10 Essa é uma questão bem polêmica e que suscita as mais diversas
teorias em torno de seu debate. Entretanto, não é este o espaço mais adequado para as comple-
xas reflexões que tal assunto demanda.
O certo é que a Justiça Desportiva brasileira não está sendo coerente na aplicação do
art. 231 do CBJD, na medida em que não o tem aplicado de forma uniforme e isonômica a todas
as associações desportivas. Se assim o fizesse, com o rigor que demonstrou em episódios espo-
rádicos como tal os supramencionados, times de grande apelo popular, midiático e financeiro,
como os cariocas destacados, poderiam sofrer consequências drásticas e as discussões sobre a
necessidade de exaurimento da Justiça Desportiva seriam ainda mais potencializadas.
decisões finais proferidas por órgãos jurídicos da FIFA e por Confederações, Membros ou Li-
9 TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014 Dis-
ponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23 dez.
2014.
10 TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014.
Disponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23
dez. 2014.
11 O TAS/CAS é um tribunal independente de qualquer organização desportiva, com sede em Lausanne (Suíça). Contando atualmen-
te com 300 árbitros de 87 países, escolhidos por sua especialização em arbitragem e direito desportivo, ele tem como função facilitar a
resolução de disputas jus-desportivas mediante a arbitragem ou a mediação, por meio de normas processuais adaptadas às necessidades
específicas do mundo do esporte.
239
gas, deverá ser remetido ao TAS/CAS, nestes termos:
tituição Federal de 1988, já colacionado supra, cuja redação é enfática em atribuir à lei a regu-
lamentação da Justiça Desportiva. A lei em questão a que coube essa incumbência é a Lei nº
240
9.615/98 (Lei Pelé) que, ao instituir normas gerais sobre o desporto, dispôs em seu art. 52 que a
Justiça Desportiva é composta apenas pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), Tri-
bunais de Justiça Desportiva (TJDs) e pelas Comissões Disciplinares. A esse respeito, veja-se:
Nesse mesmo sentido, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) assim dispõe:
8 CONSIDERÇÕES FINAIS
O constituinte originário teve uma boa razão para mitigar o famigerado e aclamado
princípio da inafastabilidade da jurisdição ou do direito de ação, insculpido por ele próprio no
rol dos direitos fundamentais do art. 5º da Constituição Federal de 1988. Sim, ele, ao vislumbrar
a necessidade e importância de criar uma Justiça especializada na apreciação das matérias con-
15 Decisão esta que precisa ser dada no prazo máximo de 60 (sessenta) dias contados da instauração do processo, conforme o já abordado
art. 217 §2º da CF.
241
cernentes à disciplina e à competição desportivas, entendeu que para que ela pudesse exercer
seus desideratos a contento, deveria contar com a garantia de seu prévio esgotamento, o que ine-
vitavelmente, à primeira vista, confronta com o amplo direito de pleitear perante o Judiciário.
Entretanto, foi uma escolha sapiente do constituinte. Afinal, as peculiaridades da Jus-
tiça Desportiva a diferenciam de todas outras vias administrativas comuns. A necessidade de
celeridade nos julgamentos, o direito material aplicável bem específico que reivindica conheci-
mento vasto e aprofundado de seus aplicadores e o concomitante escopo de desafogar o Judiciá-
rio das altas cargas de processo fazem do direito desportivo um ramo do Direito especial, com
um regime jurídico próprio e independente e que, assim sendo, requer uma Justiça Desportiva
ampla e autônoma para a sua devida tutela.
Não obstante, a Justiça Desportiva não pode ser morosa, inerte ou relapsa. Suas deci-
sões definitivas para os casos postos a sua apreciação precisam ser dadas em até 60 (sessenta)
dias, em respeito ao comando constitucional- sob pena do feito poder ser levado à Justiça Co-
mum- e em obediência ao dinamismo imanente às práticas e competições desportivas.
O prévio exaurimento das instâncias desportivas ganhou tanta notoriedade que seu
descumprimento foi convertido em infração pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva, pre-
cisamente no seu art. 231. A violação desse mandamento originalmente constitucional (art. 217
§1º) implica em sanções de grande impacto às entidades do desporto violadoras: a exclusão de
competições e a aplicação de vultosas multas. E, mesmo assim, têm sido reiterados os casos
de transgressões, os quais nem sempre têm recebido o mesmo tratamento por parte dos órgãos
desportivos competentes, sobretudo do STJD o que, de certo modo, tem provocado certas dis-
córdias e questionamentos.
Certo mesmo é que a Justiça Desportiva precisa fazer jus à enorme confiança que lhe
foi depositada pelo constituinte originário, a ponto de lhe assegurar o exaurimento de todas as
suas instâncias (o qual se dá após julgamento pelo pleno do STJD e não pelo TAS/CAS, como
defendem alguns doutrinadores), e, por meio dos seus órgãos, julgar sempre as causas referentes
à disciplina e à competição desportivas de forma coerente, uniforme e, acima de tudo, justa,
como almejado pela Constituição Federal de 1988.
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Disponível em: <http://globoesporte.globo.com/futebol/times/icasa/noticia/2014/08/por-
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242
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em: 20 dez. 2014
PUGLIESE JR., Roberto; GOMES, Emerson. Justiça Desportiva. Disponível em: <http://
www.pugliesegomes.com.br/?p=article&id=191>. Acesso em: 18 dez. 2014.
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TORRE, Pedro Henrique. Por acionar Justiça Comum, Icasa e Botafogo-PB são excluídos das
Séries B e C. ESPN, 29 ago. 2014. Disponível em: <http://espn.uol.com.br/noticia/436177_por-
acionar-justica-comum-icasa-e-excluido-da-serie-b-pelo-stjd>. Acesso em: 23 dez. 2014.
ABSTRACT: The Sports Justice was created from apart the Judiciary to an-
alyze jus-sporting matters autonomously. In this goal, the constituent assured
the need of prior exhaustion of sports resources as an indispensable condition
for the deduction in common courts of cases related to discipline and sport-
ing competition, even mitigating the constitutional principle of non-keeping
away jurisdiction. Therefore, the present study aims to analyze the relevance
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
243
Recebido em 12 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Se na Idade Moderna vigia a máxima de que “The king can do no wrong” em um pe-
ríodo em que o Estado não se responsabilizava por qualquer ato ilícito ou ingerência indevida
da Administração Pública, hodiernamente, as condutas praticadas por agentes públicos no exer-
cício de suas atribuições devem, certamente, ser imputadas ao Estado. Isto é, o Poder Público
tornou-se, em regra, objetivamente responsável – leia-se, sem a necessidade de comprovação
de dolo ou culpa – por qualquer dano advindo direta ou indiretamente da Administração, com
* Graduando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Estagiário da Defensoria Pública do Estado do Rio
Grande do Norte (DPE/RN).
244
fulcro na teoria do risco administrativo.
Sem embargos, certas situações tomaram contornos distintos da regra geral. Há casos
em que, para responsabilizar a Administração, é necessária a comprovação da conduta culposa
do órgão publico. Há também singularidades que ensejam a invocação do instituto da responsa-
bilidade subsidiária: o Estado apenas responde pelo inadimplemento após a tentativa frustrada
do cumprimento junto ao devedor principal.
Sob esse paradigma se arquiteta a responsabilidade civil do Estado por dívida traba-
lhista contraída por empresa terceirizada pela Administração. Essa, antes objetiva, com fulcro
no artigo 37, III, § 6 da Constituição Federal de 1988, transformou-se a partir do entendimento
sedimentado com o atual teor da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho, passando o Es-
tado a figurar como responsável subsidiário pelos encargos laborais, desde que constatada sua
negligência na fiscalização dos pagamentos do prestador de serviços.
Nesse cenário - a despeito das vozes que criticam a opção pela responsabilidade sub-
sidiária, afirmando que esta se afina aos ideais da teoria da irresponsabilidade – não houve
severas mudanças quanto à segurança e efetividade gozadas pelo trabalhador em relação ao
cumprimento das obrigações empregatícias, seja através da classe patronal ou da pessoa jurí-
dica de direito público. Houve, na verdade, a tentativa de desonerar o Estado que, muitas ve-
zes, sem qualquer justificativa plausível, figurava na lide pelo abuso da empresa contratada.
Nada obstante, a prática forense tem demonstrado que esse fim colimado pelo Poder Público
- o erário - destoa dos resultados práticos obtidos. O Estado continua a ser grande responsável
pelo inadimplemento, haja vista o conceito amplo da culpa in vigilando1 da administração, e
as empresas continuam se valendo dessa prerrogativa para evitar o pagamento e, assim, esqui-
var-se de suas obrigações empregatícias. Em síntese, objetivando um louvável fim, qual seja o
adimplemento trabalhista, a jurisprudência elegeu meios inidôneos que, concomitantemente,
garantem abrigo à má-fé de empresas e dão eco a um Estado ‘’segurador’’ do segmento privado.
O presente trabalho, partindo da premissa do valor substancial do crédito trabalhista,
pretende debater sobre alternativas à problemática em questão, que permitam o pagamento dos
trabalhadores sem a necessária intervenção estatal. Nessa esteira, será resgatado o conceito de
responsabilidade civil, bem como suas ligações com o fenômeno da terceirização. Após tal exa-
me, com fulcro no entendimento sumulado pelo Tribunal Superior do Trabalho, serão discutidos
os motivos pelos quais as empresas continuam a negligenciar seus pagamentos. Mais que isso,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
serão ventiladas propostas de mudança que possam, efetivamente, amenizar a sobrecarga in-
devida imputada ao Poder Público face ao notório abuso das empresas prestadoras de serviços.
1 O vocábulo “in vigilando” tornou-se expressão frequente na prática forense, motivo pelo qual é mister fazer menção a sua nomenclatura
latina originária. Neste caso, trata-se da responsabilidade de “vigia” do Estado em fiscalizar as atividades das prestadoras de serviços pú-
blicos, em especial no tocante as relações trabalhistas envolvidas.
245
Não restam dúvidas que certas condutas de agentes públicos no exercício de suas fun-
ções desembocam em danos, de natureza patrimonial, aos administrados. Trata-se de situações
lesivas que merecem o devido reparo pelas vias jurisdicionais ou mesmo por meios adminis-
trativos. É sobre esse panorama que se desenvolve o tema da responsabilidade civil do Estado,
estudado a seguir.
A compreensão do vocábulo responsabilidade, como explica Carvalho Filho (2014,
p.551), indica a ideia de resposta. No âmbito da responsabilidade civil, essa resposta está inseri-
da nas relações de direito privado, tendo como pressuposto um dano indenizável. Isto é, surge, a
par de atitudes lesivas, a necessidade de contraprestações econômicas com o escopo de garantir
o ressarcimento.
Nesse pórtico, desde já se faz também necessário tecer a diferença entre obrigação e
responsabilidade. Nas lições de Sérgio Cavalieri Filho (2012, p.3), obrigação é sempre um dever
jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo consequente à violação do
primeiro. De toda sorte, ambos se relacionam intimamente, haja vista a responsabilidade surgir
essencialmente da obrigação frustrada.
Com efeito, o descumprimento de uma obrigação, por um indivíduo, garante o lastro
jurídico necessário e suficiente para que o lesado ingresse com uma ação indenizatória judi-
cial. É o que prescrevem os artigos 186 e 927 do Código Civil de 2002, os quais contemplam o
instituto da responsabilidade entre os particulares. Porém, em se tratando de uma relação entre
Estado e indivíduo, o dano cometido pela Administração ensejaria a mesma resposta que o pre-
juízo oriundo de um particular?
De antemão, é imprescindível esclarecer que a responsabilidade estatal possui funda-
mentos próprios, que a singulariza em relação à responsabilidade de particulares. Haurindo a
temática, explica Celso Antônio Bandeira de Mello (2009, p.987):
pública seria irrisório e por inteiro insuficiente para resguardo de seus interesses e
bens jurídicos.
Nesse contexto, insta consignar que o instituto da responsabilidade estatal, nos moldes
supramencionados, perfez longa caminhada histórica até alcançar tal padrão. Sobre o tema,
José Afonso da Silva (2005, p.349) remonta as origens do instituto: “O dever de indenizar pre-
juízos causados a terceiros por agentes públicos foi por longo tempo recusado à administração
pública. Predominava, então, a doutrina da irresponsabilidade da Administração, sendo que os
particulares deveriam suportar os prejuízos.” É esse o cerne da teoria da irresponsabilidade do
246
Estado, em que, conforme mencionado, os reis não cometeriam erros. O Estado não seria res-
ponsabilizado por qualquer conduta, por mais que essa se mostrasse manifestadamente ilegal.
Gradativamente, a teoria da irresponsabilidade foi sendo substituída, e, ao Estado, foi
imputado o dever de indenizar. Passou a vigorar a teoria da responsabilidade subjetiva, também
denominada de teoria da responsabilidade com culpa ou teoria civilista.2 A despeito de algumas
condutas ainda tidas por absolutamente intocáveis – como os atos de império – surgiu a figura
do ato de gestão, cujos danos decorrentes deveriam ser arcados pelo Poder Público. (CARVA-
LHO FILHO, 2014) No entanto, ainda mostrava-se árdua a distinção de ato de império e ato de
gestão, o que, constantemente, gerava indignação dos particulares, movidos pela ânsia de verem
seus direitos contemplados.
Nessa linha histórica, a partir de meados do Século XX, passou a prevalecer a teoria da
responsabilidade objetiva, ou teoria da responsabilidade sem culpa. Essa, nos dizeres de Celso
Antônio Bandeira de Mello (2009, p. 441), significa que, para pleitear eventual indenização pelo
Estado, não há obrigatoriedade na verificação da culpa ou dolo, tampouco da licitude ou ilicitu-
de da conduta. Basta a comprovação da relação causal entre o fato e o dano.
Não é demais ressaltar que essa teoria representa, até hoje, alicerce fundamental do Es-
tado Democrático de Direito. Maximiza a proteção conferida aos particulares, ampliando subs-
tancialmente as prerrogativas do administrado, hipossuficiente na relação com o ente estatal.
Outrossim, a responsabilidade objetiva do Estado ampara-se na teoria do risco administrativo.3
Leia-se: porquanto as atividades normais da Administração gerem riscos de dano à comuni-
dade, visto que as atividades são exercidas em favor de todos, não haveria condão em imputar
a apenas alguns os ônus gerados, razão pela qual o Estado deveria suportá-los, a despeito de
culpa. (CAVALIERI FILHO, 2012) A culpa é crucial, apenas, para eventual ação de regresso
contra o agente responsável.
Em suma síntese, a Constituição Federal de 1988 dá vazão atualmente à teoria da res-
ponsabilidade objetiva, com pontuais temperamentos. Fundamenta-se, em resumo, na posição
hierárquica do administrado, inferior frente ao Estado, com fulcro na tese de que os órgãos
públicos têm personalidade jurídica, sendo assim, responsáveis civilmente. Ademais, inexiste
necessidade de comprovação de dolo ou culpa do agente, devendo ser constatadas apenas a
conduta, o dano e o nexo causal, ressalvado o direito de regresso contra o agente. Por fim, as
condutas podem ser comissivas ou omissivas que, a despeito de entendimentos em contrário do
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
2 Nesse contexto, o Código Civil de 1916 (Bevilácqua), em seu art. 15, aduzia: As pessoas jurídicas de direito público são civilmente
responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou
faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.
3 É fundamental percebermos que a teoria do risco administrativo não se confunde com a teoria do risco integral. Essa, independente-
mente da participação do lesado no dano, coloca o Estado como verdadeiro indenizador universal. Segundo os adeptos dessa teoria, em
elucidativo exemplo dado por Carvalho Filho (2014, p.557) o Estado deveria indenizar até mesmo quando um indivíduo se atirasse delibe-
radamente em uma viatura pública. As gritantes injustiças dessa teoria, contudo, não conseguiram abrigo no ordenamento brasileiro, que
comporta uma série de exceções, a exemplo do caso fortuito, de força maior ou culpa exclusiva da vítima. Complementando, Yussef Cahali
(1995, p.40) afirma que “o risco administrativo é qualificado pelo seu efeito de permitir a contraprova de excludente de responsabilidade,
efeito que se pretende seria inadmissível se qualificado como risco integral, sem que nada seja enunciado quanto à base ou natureza da
distinção.”
247
Superior Tribunal de Justiça, parecem caminhar uníssonas pelos trilhos da responsabilidade
objetiva haja vista os recentes precedentes do Supremo Tribunal Federal.
doutrina sobre esse fenômeno: “O modelo trilateral de relação socioeconômica e jurídica que
surge com o processo terceirizante é francamente distinto do clássico modelo empregatício, que
se funda em relação de caráter essencialmente bilateral.”
Destarte, há um liame que vincula as três partes dessa relação: o Estado, tomador de
4 Pincelando rapidamente o instituto, é útil recordar que a terceirização tem como marco um processo de descentralização das atividades
da Administração Pública, nitidamente presente a partir da década de 1980, no Brasil. Isso porque esse modo de contratação, sob o prisma
do ente público, torna o aparato público, além de mais eficiente, menos custoso. É, segundo Di Pietro (2008), uma tendência à privatização,
com a quebra dos monopólios estatais e delegação de serviços a particulares.
248
serviços; a empresa privada contratada, prestadora de serviços, e o operário, objeto de todo esse
complexo jurídico. Constatada tal relação, portanto, torna-se pujante a necessidade de estabe-
lecer precisamente até que ponto será possível responsabilizar o Estado por eventuais danos
acometidos pela empresa prestadora de serviços, no fito de que o empregado não permanece à
míngua de seus proventos, de cunho eminentemente alimentar.
O tema, contudo, foi palco de incisivas críticas. A doutrina afirmava, com razão, que
esse modelo gerava situações absurdas, em que o Estado arcaria com a desídia da iniciativa
privada, assumindo a responsabilidade da má-fé, negligência e dos danos oriundos da empresa
terceirizada. Dessa maneira, a matéria voltou a ser analisada, com a Ação Declaratória de Cons-
titucionalidade 16/2010, de modo que a referida responsabilidade singrou do mero dano para
a necessária constatação de culpa do órgão público. Assim, conforme ensina Delgado (2012,
5 Súmula nº 256
249
p. 447): “Com a decisão do STF, afastando a responsabilidade objetiva do Estado em casos de
terceirização, o Tribunal Superior do Trabalho promoveu ajustes na Súmula 331.[...] que deu
resposta a alguma das críticas que se faziam ao texto da Súmula 256.”
Com maior ênfase, o Min. Relator César Peluzo6 decidiu ainda esclarecer:
O objeto de toda a controvérsia que orbita esse estudo é a prestação de um serviço for-
necido por um trabalhador. Por óbvio, malgrado seja imprescindível observar o tema pela ótica
do Estado, é ainda mais relevante proteger o operariado, que é, naturalmente, a parte menos
favorecida na tríade estabelecida. Afinal, conforme é cediço na doutrina laboral, a Justiça do
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Trabalho deve verificar, no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato
de trabalho. (DELGADO, 2012, p. 193)
Ora, se o trabalhador, usualmente, é vítima do poder imperial ainda arraigado na clas-
se patronal, o solapamento de seus direitos e garantias é ampliado no processo de terceirização.
O empregado é visto como uma ferramenta descartável e em abundância, cuja utilização é fruto
6 Supremo Tribunal Federal. ADC 16/DF. Pleno. rel. Min. Cezar Peluso, Julgado em 24.11.2010. Publicado no DJe em 09.09.2011
7 Súmula nº 331
250
único do fim lucrativo da atividade empresária. Não à toa o presidente da ANAMATRA, Rena-
to Henry Sant’Anna, considera que a Constituição Federal de 1988, porquanto institui preceitos
como a dignidade da pessoa humana e a valorização do emprego, deveria impedir o processo
de terceirização. O magistrado afirma ainda que, em audiências, é usual que o prestador de
serviços não mencione sequer o nome do trabalhador, limitando-se ao termo ‘’terceirizado’’, o
que torna clara a relação unicamente mercantil então estabelecida.8
Diante disso, é necessário proteger sobejamente o trabalhador. Melhor: é primordial
compreender o direito fundamental ao salário do empregado. Afinal, trata-se de um mínimo
substancial a uma vida honrosa e decente para o trabalhador. Desta feita, não estão os dizeres de
Maranhão (1978, p.182), nesses termos: ’’o salário é a contraprestação devida pelo empregador
correspondente à prestação de serviço pelo empregado. Mas, sendo meio de subsistência de um
ser humano e, dada, por isso, a concepção social do salário’’.9
Reside nesse caráter alimentar do crédito trabalhista a necessidade de ser considerado,
inclusive, um crédito preferencial. Possui prioridade em caso de falências, bem como podem
ensejar a quebra dos dogmas da impenhorabilidade. Isto é, tem forca para ir além dos obstácu-
los jurídicos que possam surgir. É um bem que deve ser priorizado, sem desprezar as demais
modalidades de crédito existentes.
Em razão disso, é certo que a verba alimentar deve prevalecer em detrimento da negli-
gência do prestador de serviços. É um direito fundamental que deve, a todo custo, ser resguar-
dado. Trata-se de uma garantia de sotaque social, cuja ausência pode destruir vidas e famílias.
A título de exemplificação, a relevância do crédito trabalhista é tamanha que, conforme se
depreende de aresto do Tribunal Superior do Trabalho10, a declaração da prescrição do crédito
não pode ser feita de ofício pelo juiz, cabendo tal ônus a parte, como corolário da proteção à
hipossuficiência do trabalhador.
Desse modo, é assaz compreensível a preocupação do Poder Publico, na esfera legisla-
tiva e judiciária, de intensificar a sua proteção, levando a efeito a responsabilização subsidiária
do Estado por eventual inadimplemento. Logo, por mais que o Estado venha a segurar os pre-
juízos da contratada, é ainda mais relevante - no balizamento dos direitos - primar pela verba
alimentar do trabalhador, cujos serviços foram fielmente prestados.
Não se nega, então, que o fim almejado é brilhante. Garantir ao operariado seus pro-
ventos é um avanço na concepção de uma Justiça laboral com força social, que possa contem-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
8 BARBOSA, Rogério. Terceirizado deve ter os mesmos direitos do terceirizado. Conjur, São Paulo, 4 out. 2011. Disponível em http://
www.conjur.com.br/2011-out-04/terceirizado-mesmos-direitos-trabalhador-contratado, Acesso em 30 nov. 2014
9 O termo salário será utilizado de modo amplo, abrangendo todo o crédito trabalhista.
10 TST - RECURSO DE REVISTA RR 1269002220095120012 126900-22.2009.5.12.0012
Data de publicação: 01/07/2013
Ementa: RECURSO DE REVISTA. PRESCRIÇÃO - DECLARAÇÃO DE OFÍCIO - ARTIGO 219 , § 5º , DO CPC - INAPLICABILIDADE
NO PROCESSO DO TRABALHO. A aplicação do artigo 219 , § 5º , do Código de Processo Civil não é compatível com o direito processual
do trabalho, em face da natureza alimentar dos créditos trabalhistas, bem como da observância do princípio da proteção ao hipossuficiente.
Precedentes da SBDI-1. Recurso de revista conhecido e provido
251
promover maior equilíbrio na relação laboral, essa merece sérios temperamentos.
Isso porque o conceito de culpa in vigilando é extenso e, por consequência, desemboca
quase sempre na responsabilização estatal. Em grande parte dos casos, sendo constatado o ina-
dimplemento, de prontidão o Juízo já considera a culpa do órgão fiscalizador.11 Afinal, parte-se
da premissa de que se inexiste pagamento, inexiste também o zeloso acompanhamento da exe-
cução do contrato, conforme preleciona a Lei de licitações (8.666/93). Em termos pragmáticos,
essa fiscalização, na verdade, reside apenas no mundo deontológico – “dever ser” – não sendo
posta comumente em prática.
Entretanto, deixam de observar os juízes que há meios diversos que culminam no mes-
mo resultado. Há alternativas que garantem o salário do contratado e, simultaneamente, deixam
de “punir” o Estado pela má prestação do serviço e por sua falta de fiscalização. Quer dizer:
não se trata de uma relação bilateral de exclusividade. É possível, em termos hermenêuticos,
manter ambos os interesses vivos, de modo menos oneroso ao Poder Público, que seria indicado
apenas em último caso.
Por fim, é crucial reiterar: não se pretende negar, com essa exposição, a necessidade
de um Estado ativo na efetivação de direitos, tampouco negar a sua responsabilização em vias
jurisdicionais. O que se pretende, por ora, é demonstrar que há soluções menos onerosas aos
cofres públicos, que podem evitar o abuso das prestadoras de serviços. Essas, mais do que nin-
guém, são responsáveis pelo inadimplemento. Sendo assim, o deslinde dessa controvérsia deve
exaurir mais possibilidades para que, só então, seja possível atingir a enseada pública. Sob essa
conjuntura, surge a necessidade de esgueirar-se em um estudo mais profundo sobre as medidas
alternativas à responsabilidade subsidiária do Estado.
É pragmática a decisão que chama o Estado para a lide no fito de garantir o adimple-
mento do trabalhador. Porém, antes de se chegar a tal ponto, é necessário extrair da prestadora
de serviços o máximo possível para a quitação do débito, haja vista a sua posição de devedor
principal no plano jurídico da terceirização.
Para tanto, é necessário ir além de certos obstáculos jurídicos impostos à execução
dos créditos. Não deve o julgador, na análise do caso concreto, se limitar à figura da empresa
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
prestadora de serviços cujas condutas, em muitos casos, estão eivadas de completa má-fé. Desse
modo, entre as medidas alternativas mais arrazoadas, certamente, está a desconsideração da
personalidade jurídica (disregard doctrine) da empresa prestadora de serviços.
11 A gestão de contratos é um serviço geral de administração dos instrumentos contratuais, a fiscalização remete-se à atividade mais
pontual e especializada, para cujo desempenho é indispensável que a Administração Pública designe formalmente um agente, com co-
nhecimento técnico suficiente. Tal agente - fiscal - com o auxílio das normas pertinentes à contratação, deverá desempenhar minuciosa
conferência qualitativa e quantitativa dos serviços contratos objeto do contrato, bem como fiscalizar o pagamento dos encargos trabalhistas
e seus consectários, em relação aos funcionários da contratada, evitando futuras condenações da Administração pública com base na res-
ponsabilidade solidária/subsidiária. (CUNHA, 2011, p. 137).
252
Grosso modo, a desconsideração da personalidade jurídica é a desconstrução de uma
ficção jurídica – no caso, da atividade empresária – para que, com o objetivo de adimplir com
certas dívidas, a execução de um crédito possa transpassar barreiras formais entre a pessoa fí-
sica do administrador e a pessoa jurídica dirigida. Assim, conforme elucida Cavalcante Koury
(2003, p.86):
o prestador de serviços, pessoalmente, tenha maior cautela para, em tempo certo, proceder ao
pagamento de seus funcionários.
Com essa tese, repise-se, nada obstaria que – desde que não fosse suficiente o pa-
trimônio pessoal do empregador – o Estado surgisse subsidiariamente para o adimplemento.
Porém, a ordem preferencial seria primeiramente, com razão, o patrimônio da pessoa física do
12 Superior Tribunal de Justiça – Quarta Turma/ REsp 1.111.153/RJ/ Relator: Ministro Luis Felipe Salomão/ Julgado em 06.12.2012/
Publicado no DJe em 04.02.2013
253
empregador. Dessa forma, a responsabilidade estatal avançaria a passos largos para, de fato,
uma posição subsidiária na lide, clamando-se, previamente, que o responsável direto pelo ina-
dimplemento fosse desprotegido do falso véu da personalidade jurídica.
A outro giro, surge outra possibilidade, menos incisiva, mas que poderia, desde que
bem modelada, ensejar grandes mudanças. Atualmente, a ação regressiva é o meio cabível para
que o Estado cobre do agente público culpado o dano causado. No entanto, essa ação de regres-
so é, de fato, suficiente?
A responsabilização pessoal do agente público, à primeira vista, poderia cultivar tam-
bém benefícios. Diante dessa sanção, a atuação do funcionário estaria menos passível de con-
luios com o prestador de serviços. Outrossim, caso a sistemática propusesse uma maior parti-
cipação do agente público responsável, esse certamente prestaria seu serviço com mais zelo e
atenção, porquanto figurar na lide fosse custoso e degradante para esse servidor.
Ademais, é necessário levar mais a fundo as sindicâncias contra os culpados pela au-
sência de vigilância. É imprescindível que o agente público esteja ciente da sua função, sendo
eficiente, efetivo, sem, literalmente, se escorar no Estado face de eventuais prejuízos.
Derradeiramente, eleve-se mais uma vez o valor substancial do crédito trabalhista.
Saliente-se a necessidade de políticas mais enérgicas na tutela dos direitos sociais. Porém, nada
disso impede as mudanças no instituto da responsabilidade do Estado. É crucial que o magistra-
do perceba as minúcias do caso concreto e, protegendo o cofre da sociedade, evite que o Estado
funcione como segurador do segmento privado ou de seus próprios funcionários.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
254
Assim, a par de incisivas mudanças, o Judiciário poderia contemplar as verbas traba-
lhistas do operário e, ao mesmo tempo, sancionar o maior responsável pelo inadimplemento.
De todo modo, em última instância, o Poder Público continuaria figurando essa relação, de
modo a não privar, em nenhuma circunstância, o devido pagamento do mínimo substancial ao
trabalhador.
REFERÊNCIAS
CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. 2ª ed. São Paulo: Malheiros,
1995.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. Ed. São Paulo: Atlas,
2012.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 27. Ed. São
Paulo: Atlas, 2014.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 11. Ed. São Paulo: LTr, 2012.
MARANHÃO, Délio. Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas,
1978.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. Ed. São Paulo:
Malheiros, 2009.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. vol. 3. 16ª ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2012. p. 9.
SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2. Ed. São Paulo:
255
Malheiros, 2006.
ABSTRACT: The civil responsibility of the State by the wages of the em-
ployees from providers of public services raises heated debates. As a rule, the
company’s negligence indicates, alternatively, the state responsibility for the
discharge of debts, protecting the worker, whose salary cannot be forgotten.
On other side, the public coffers contracts a lot of debts, which should belong
to the private sector. This paper, analyzing this situation, studies the institute
of the responsibility of the State in outsourcing, with special fulcrum in Prec-
edent 331 of the TST, exposing finally alternatives for today’s ills of the state
responsibility.
Keywords: Civil responsibility. State. Outsourcing. Labor debts. Legal alter-
natives.
256
Recebido em 17 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
ção estatal foi recorrente, em grande parte, através da Petrobras, empresa estatal que exerce o
monopólio da União dessas atividades e, atualmente, ainda é a empresa mais atuante no setor.
Para fins de delimitação do presente estudo, importante destacar as atividades que
formam o setor supramencionado. A Lei nº 9.479/97, em seu art. 6º, XV, delimita que a pes-
quisa ou exploração de petróleo formam o “conjunto de operações ou atividades destinadas a
avaliar áreas, objetivando a descoberta e a identificação de jazidas de petróleo ou gás natural”.
* Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisadora-bolsista pelo Programa de
Recursos Humanos em Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (PRH-36) ANP no biênio 2012-2013.
257
Já o inciso XVI do mesmo artigo aduz que lavra ou produção correspondem ao “conjunto de
operações coordenadas de extração de petróleo ou gás natural de uma jazida e de preparo para
sua movimentação”. As atividades então citadas compõem um setor específico da indústria de
petróleo cuja dinâmica, quanto ao interesse público, aqui será analisada.
O presente artigo propõe-se, portanto, a analisar a presença do interesse público nesse
setor, de forma a destacar se a intervenção estatal nele e a diferenciação do tratamento norma-
tivo dado à Petrobras, em especial com a descoberta dos campos de Pré-sal, correspondem aos
preceitos constitucionais.
Diante disso, inicialmente, cabe aqui analisar sucintamente o conceito de “interesse
público”, de modo a esclarecer o que esse conceito representa na indústria do petróleo, desta-
cando, ainda, quais ou qual interesse público procura-se defender nessa indústria.
Desde logo, enfatiza-se a dificuldade de conceituar o “interesse público” e que, aqui,
não se pretende exaurir o conteúdo do referido conceito, mas, a presente pesquisa destina-se
a, tão somente, delimitá-lo de forma a construir a ideia do que se pode entender por interesse
público nas atividades de exploração e produção da indústria do petróleo nacional, de modo a
identificar tais interesses nesse setor.
1 BRASIL. Constituição (1934) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1934.
2 BRASIL. Decreto-Lei nº 395, de 29 de abril de 1938. Declara de utilidade pública e regula a importação, exportação, transporte, distri-
buição e comércio de petróleo bruto e seus derivados, no território nacional, e bem assim a indústria da refinação de petróleo importado em
258
Na mesma oportunidade, foi criado o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), que deve-
ria assumir tripla função de (i) regular o setor de petróleo, (ii) formular a política nacional desse
setor e (iii) executar diretamente a pesquisa no território nacional.
A primeira descoberta comercial de petróleo no país, em 21 de janeiro de 1939 em
Lobato, Bahia, teve interferência direta do Governo Federal, com o auxílio do Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM).
A ideia de monopólio nacional somente ganhou força durante a vigência da Consti-
tuição de 19463, com o General Horta Barbosa em conjunto com o Centro de Estudo e Defesa
do Petróleo, os quais desenvolveram a ideia da campanha “O Petróleo É Nosso”. Mais tarde, o
presidente Vargas, ao voltar para a Presidência, continuou com a campanha e com a ideia de
ampliar a intervenção estatal no setor.
Assim, Getúlio Vargas, em dezembro de 1951, enviou ao Congresso o Projeto de Lei
nº 1.5164, recomendando a criação de uma sociedade por ações chamada “Petróleo Brasileiro
S.A.”, a Petrobras.
Com base no princípio da indústria nascente5, a Lei nº 2004/1953 foi sancionada, crian-
do a Petróleo Brasileiro S.A. - Petrobras, bem como instituindo o monopólio da União nas ati-
vidades de exploração, produção, refino e transporte do setor de petróleo. A Petrobras nasceu
como uma sociedade de economia mista, a qual cabia o exercício exclusivo do supracitado
monopólio da União6
Como afirma Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, p. 190-194), a sociedade de
economia mista federal é uma pessoa jurídica dotada de personalidade jurídica de Direito Pri-
vado, composta de recursos particulares e advindos de pessoas jurídicas de Direito Público ou
de entidades da Administração indireta, devendo haver prevalência acionária com participação
nos votos da esfera pública. Sua atuação está relacionada com ações e interesses estatais e é ne-
cessária lei para autorizar sua criação. A intervenção estatal dava-se, então, fortemente através
da Petrobras.
André Ramos Tavares (2011, p. 242) afirma que a criação de um monopólio estatal
deve ser baseada na preservação ou na implementação do interesse público, e não objetivar
meramente o lucro. Desse modo, afirma-se que a Petrobras, ao ser criada para exercer uma
atividade monopolizada pela União, deve ter sua atuação voltada para satisfazer um ideal de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
produzido no país, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 30 abr. 1938. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0395.htm#art4>. Acesso em: 09 abr.2014.
3 BRASIL. Constituição (1946). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1946.
4 4BRASIL. Projeto de Lei nº 1.516 de 1951. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 12 dez. 1951. Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD12DEZ1951.pdf#page=58>. Acesso em 01 fev. 2014.
5 “A racionalidade da nacionalização parece muito mais justificada pelo princípio da indústria nascente (construção da grande empresa
nacional do petróleo para enfrentar os desafios necessários e fazer frente à ameaça potencial do capital estrangeiro) e pela percepção do
caráter estratégico para a industrialização do país (a grande aspiração sociopolítica nacional) do que por motivação anti-imperialista”
(TOLMASQUIM, PINTO JUNIOR, 2011, p. 248).
6 BRASIL. Lei nº 2.004, de 3 de outubro de 1953. Dispõe sôbre a Política Nacional do Petróleo e define as atribuições do Conselho Na-
cional do Petróleo, institui a Sociedade Anônima, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília,
04 out.1953. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L2004.htm>. Acesso em: 20 abr. 2015.
259
interesse público.
Ao ser criada, a Petrobras recebeu um patrimônio do CNP equivalente a US$ 165 mi-
lhões (cento e sessenta e cinco milhões de dólares), (SERPLAN/PETROBRAS, 1993, p. 3). O
cenário do início de suas operações era caracterizado por ser restrito ao Recôncavo Baiano e
corresponder a, tão somente, 2% (dois por cento) do petróleo processado no país, o que signi-
ficava apenas 5% (cinco por cento) da demanda nacional (TOLMASQUIM, PINTO JÚNIOR,
2011, p. 246). Portanto, a Petrobras foi criada sendo incumbida de desenvolver o setor petrolífe-
ro brasileiro (GUEDES, 2014).
O foco das atividades da Petrobras, em sua primeira década de existência, foi o de
implantar o parque de refino no país (DIAS, QUAGLINO, 1993, p. 115-118). Com o passar dos
anos e o desenvolvimento de suas atividades, a Petrobras pode, inclusive, galgar passos no mer-
cado internacional de petróleo, competindo com diversas outras empresas. Diante dessa realida-
de, não havia mais que se falar em “indústria nascente”, posto a força empresarial desenvolvida
pela Petrobras.
Junto a isso, com a crise financeira brasileira em meados de 1980 e 1990, a manutenção
do monopólio no setor foi perdendo sua justificativa econômica (FONTES, FONTES, 2013, p.
77). Assim, em 1988, a nova Constituição Federal7 prevê que é papel primordial do Estado atuar
como agente normativo e regulador da atividade econômica, isto é, deve o Estado intervir na
economia, mas não diretamente.
Pela redação da Constituição Federal, o Estado somente poderia explorar diretamente
uma atividade econômica se previsto em texto constitucional ou definido por lei, desde que
tal intervenção seja necessária aos imperativos de segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo.
O texto original dessa Constituição Federal previa o monopólio das atividades de ex-
ploração e produção de petróleo no país, o qual deveria ser exercido por uma empresa estatal,
vendo, inclusive, “ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na
exploração de jazidas de petróleo ou gás natural”.
Contudo, havia forte debate sobre o fim do monopólio exercido pela Petrobras, o que
formou a apresentação, no governo de Fernando Henrique Cardoso, da proposta de flexibiliza-
ção do monopólio da União sobre o petróleo, com base no argumento de insuficiência de recur-
sos financeiros para se investir nas atividades de exploração e produção de petróleo e que fosse
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
7 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
8 Adriana Campos (2007, p. 197) diz, ainda, que como consequência da atuação da Petrobras em regime de concorrência com outras
empresas de petróleo, a estatal brasileira “não teria mais a responsabilidade de prover o abastecimento do mercado interno”.
260
participação nos Leilões da ANP para concessão de blocos petrolíferos no país.
A Lei nº 9.478/97 passou, então, a regulamentar a Emenda Constitucional nº 09/95,
permitindo, através da concessão, precedidas de licitação, as atividades de exploração, desen-
volvimento e produção de petróleo e gás natural9.
As mais recentes alterações no marco regulatório da indústria do petróleo nacional
ocorreram após o descobrimento e viabilidade de exploração das então chamadas de “camadas
do Pré-sal”. Tais alterações ocorreram no sentido de ampliar a intervenção estatal nas atividades
de exploração e produção dessa indústria, inclusive, com a criação de nova empresa estatal, a
Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A.
(PPSA) pela Lei nº 12.304 de agosto de 2010.
Ademais, a Lei nº 12.351, de dezembro de 2010, instituiu o regime de partilha da pro-
dução para os contratos de exploração e produção de petróleo em campos do Pré-sal e em áreas
consideradas estratégicas pelo Conselho Nacional de Política Energética – CNPE10.
As novas leis destinadas à regular as atividades de exploração e produção de petróleo
após a descoberta do Pré-sal garantem, assim, maior possibilidade de intervenção estatal no
setor, bem como dão maior relevância a empresa estatal, Petrobras, já essencial para o desen-
volvimento do setor desde a sua criação.
Deve-se ter em mente que o conceito de interesse público11 pode admitir diferentes
entendimentos em função do “módulo constitucional” em que é encontrado (RODRÍGUEZ-A-
RANA MUÑOZ, 2006, p. 13-14).
Desse modo, atualmente, os parâmetros de aferição do que é interesse público devem
ter por base os princípios informadores do Estado Democrático de Direito (RODRÍGUEZ-A-
RANA MUÑOZ, 2010 citado por CRISTÓVAM, 2013, p. 10), o que induz a assertiva que o
interesse público, na realidade constitucional brasileira, deve ter como pilar os fundamentos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
9 “Art. 23 As atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural serão exercidas mediante contratos de
concessão, precedidos de licitação, na forma estabelecida nesta Lei, ou sob o regime de partilha de produção nas áreas do pré-sal e nas
áreas estratégicas, conforme legislação específica”. Brasil. Lei 9.478/97. Dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas
ao monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo e dá outras providências.
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 6 ago. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
l9478.htm>. Acesso em: 09 maio 2013.
10 BRASIL. Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010. Dispõe sobre a exploração e a produção de petróleo, de gás natural e de outros
hidrocarbonetos fluidos, sob o regime de partilha de produção, em áreas do pré-sal e em áreas estratégicas; cria o Fundo Social - FS e dispõe
sobre sua estrutura e fontes de recursos; altera dispositivos da Lei no 9.478, de 6 de agosto de 1997; e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Brasília, 23 dez. 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/
Lei/L12351.htm>. Acesso em: 14 abr. 2014.
11 Cabe destacar que parte da doutrina recente afirma que o princípio da supremacia do interesse público vem sendo repensado ou, até
mesmo extinto. Neste trabalho, concorda-se com a professora Marina de Siqueira (2012, p. 16), no entendimento que a extinção do referido
princípio parece incompatível com lógica de existência do Direito Administrativo, mas que repensar seu conceito parece ser razoável e
coerente com as atuais diretrizes neoconstitucionalistas.
261
previstos no art. 1º da CF/8812-13, bem como nos direitos e garantias fundamentais (art. 5º da
CF/88), diante de sua importância para concretização do Estado Democrático de Direito14.
O interesse público, de forma ampla, pode ser visto, nas palavras de Celso Antônio
Bandeira de Mello (2012, p. 60,) como “a dimensão pública dos interesses individuais, ou seja,
dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade (entificada juridicamente no
Estado)”. Para o referido autor (2012, p. 59-62), não é verídico o antagonismo entre os interesses
das partes e do todo, de modo que o interesse do todo não pode estar desvinculado dos interes-
ses das partes que o compõe, sob pena de se concluir que o “bom para todos fosse o mal para
cada um” (MELLO, 2012, p. 60).
Nessa perspectiva, deve-se inferir: mesmo que um interesse público seja contraposto a
um interesse particular de um dado indivíduo, enquanto membro do corpo social, este mesmo
indivíduo, visto como componente de uma coletividade, pode estar de acordo com aquele inte-
resse público.
Utilizando-se o exemplo de Celso Antônio (2012, p. 61), explica-se: ainda que nenhum
indivíduo tenha interesse em ser desapropriado, todos os indivíduos são favoráveis à existência
do instituto da desapropriação, o qual pode ser utilizado em prol da sociedade na construção
de ruas, estradas, etc. Assim, depreende-se a noção de que o interesse público é composto por
interesses pessoais em comum de indivíduos enquanto considerados parte de uma coletividade,
membros de uma sociedade.
Diante da referida compreensão sobre o conceito de interesse público, Marçal Justen
Filho (2009, p. 62) alerta que não se deve conceber interesse público como o interesse da socie-
dade, esta entendida como “mero somatório dos indivíduos”, tendo em vista a natureza antide-
mocrática desta compreensão.
De igual modo, defende este autor (2009, p. 64) que não se deve, contudo, simplificar
o entendimento do referido conceito a ideia de que o interesse público seria o interesse comum
e homogêneo da maior parte da população, sob pena de se justificar a opressão e desqualificar
interesses titularizados por minorias (OLIVEIRA, 2006, p. 237).
É preciso, portanto, que o conceito de interesse público seja, como proposto inicialmente,
em conformidade ao entendimento de Rodríguez-Arana Muñoz, alicerçado nos fundamentos
do Estado Democrático de Direito, estando, dessa forma, em consonância aos valores constitu-
cionalmente defendidos.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Dessa forma, defende-se o conceito proposto por Celso Antônio, de que o interesse
público é a dimensão pública dos interesses pessoais dos indivíduos enquanto partícipes da
12 Lembra-se que o Estado Democrático de Direito brasileiro tem como fundamento: “I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade
da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político”.
13 Entendendo “princípios informadores” como aqueles que constituem o alicerce de um instituto ou ramo do direito, depreende-se que
os princípios informadores do Estado Democrático de Direito brasileiro, com base no próprio texto constitucional vigente, seriam aqueles
considerados como fundamentos para a existência de tal Estado, segundo o art. 1º da CF/88.
14 Da mesma forma afirma Gustavo Binembojm (2998, p. 49): “representando a expressão jurídico-política de valores basilares da ci-
vilização ocidental, como liberdade, igualdade e segurança, direitos fundamentais e democracia apresentam-se, simultaneamente, como
fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes do Estado democrático de direito” (grifos nossos).
262
Sociedade15, mas, enfatiza-se que tais interesses tem como base os fundamentos do Estado De-
mocrático de Direito e nos direitos fundamentais.
Em relação à intervenção do Estado na economia, merece atenção o que afirma Calixto
Salomão (2008, p. 23), ao entender que “a definição de interesse público é multifacetada – ora
política, ora econômica”, de forma que não se pode tê-la de maneira precisa, sendo devido a tal
dificuldade a sua importância através do desenvolvimento jurídico.
Ainda assim, o autor (2008, p. 194) aduz que a noção de interesse público deve ter
relação com a ideia de povo, sendo, portanto, o interesse da coletividade, estando, por isso, em
conformidade com a ideia proposta por Celso Antônio. Diante disso, não se procura aqui um
conceito cristalizado, mas uma noção do que é o interesse público, de forma a delimitá-lo e
verificar sua existência no caso concreto.
Necessário destacar, ainda, que apesar de o Estado ser legitimado para a realização
dos interesses públicos (MELLO, 2012, p. 66-67), nem todo interesse estatal corresponde a um
interesse público, uma vez que, sendo pessoa jurídica, o Estado pode ter interesses que lhe são
particulares, assim como as demais pessoas jurídicas16. Deve-se ter em mente que, apesar disso,
o Estado somente poderá defender seus interesses privados quando a realização destes não for
contrária aos interesses públicos “propriamente ditos” (MELLO, 2012, p. 67).
Nesse ponto, é possível diferenciar o interesse público primário do secundário. Segun-
do Luís Roberto Barroso (2009, p. 581-590), enquanto o interesse público primário tem referên-
cia nos anseios sociais, de forma a ser reconhecido como “a razão de ser do Estado”, sintetizan-
do os fins que a ele cabem promover; o interesse público secundário é aquele próprio da pessoa
jurídica de direito público, é, pois, o interesse privado do Estado17. Neste trabalho, trata-se com
maior frequência do interesse público primário, havendo explicações caso seja abordado sobre
o interesse público secundário.
Importante, ressaltar, assim, que o interesse público pode ser compreendido, sucinta-
mente, como o ponto em comum entre os vários interesses públicos e privados, que convergem
e se tornam a perspectiva pública das vontades privadas dos indivíduos que compõem uma
sociedade. Ou seja, pode ser entendido como o ponto de afluência entre os direitos privados de
membros de uma sociedade, ganhando caráter público e, devendo ser, por isso, providos pelo
Estado.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
15 Assim também entende Rosseau (1973 citado por BORGES, 2007, p. 08) que entende interesse público como “vontade geral” e defende
que “só a vontade geral pode dirigir as força do Estado de acordo com a finalidade de sua instituição que é o bem comum. [...] O que existe
de comum nesses vários interesses [públicos e privados] forma o liame social e, se não houvesse um ponto em que todos os interesses con-
cordassem, nenhuma sociedade poderia existir”. Com isso, infere-se que a vontade corresponde às vontades individuais dos que formam
uma sociedade.
16 No mesmo sentido defende Marçal Justen Filho (2009, p. 60), o qual ainda aduz que “o interesse público não pode ser de titularidade
do Estado, mas é atribuído ao Estado por ser público”. De igual modo, José Roberto Pimenta Oliveira (2006, p. 237) sustenta que “nem todo
interesse do Estado tem, pois, o condão de revelar m interesse público”.
17 O referido autor alude ainda que “em ampla medida, [o interesse público secundário] pode ser identificado como o interesse do erário,
que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas”.
263
4 INTERESSE PÚBLICO E A INTERVENÇÃO ESTATAL NAS ATIVIDADES DE
EXPLORAÇÃO E PRODUÇÃO DE PETRÓLEO
Deve-se perceber, diante do então exposto, que há interesses públicos diversos a serem
defendidos pela atuação Estatal. Cabe aqui destacar qual interesse é defendido com o aumento
da intervenção estatal nas atividades de exploração e produção da indústria do petróleo, espe-
cialmente, com as Leis nºs 12.351/2010 e 12.304/201018.
Relembra-se, por oportuno, que desde a sua origem, a Petrobras é uma empresa de
sociedade de economia mista, tendo, portanto, o Estado como seu acionário principal. O art.
173 da Constituição Federal aduz que o Estado somente poderá exercer diretamente atividade
econômica, como a exploração e produção de petróleo, em duas hipóteses: uma seria o caso de
necessidade conforme imperativos de segurança nacional, a segunda tem como base o relevante
interesse coletivo, o qual pode se equiparar ao interesse público (BONFIM, 2011, p. 66)19.
Diante disso, é possível compreender que a justificativa da criação da Petrobras se deu
com base no interesse público. Por consequência, como sociedade de economia mista, represen-
tando a intervenção direta do Estado nas atividades econômicas de exploração e produção de
petróleo, a Petrobras deve atuar, também, com foco no interesse público, não levando em conta,
somente, seus interesses particulares – o que ocorre com maior parte das outras empresas que
atuam nas atividades em questão.
Mas, afinal, qual seria o interesse público que justifica a intervenção estatal sobre e
nas atividades de exploração e produção de petróleo?
20
18 BRASIL. Lei nº 12.304, de 24 de agosto de 2010. Autoriza o Poder Executivo a criar a empresa pública denominada Empresa Brasileira
de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. - Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA) e dá outras providências. Diário Oficial [da] Repúbli-
ca Federativa do Brasil, Brasília, 25 ago. 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12304.
htm>. Acesso em: 15 maio 2014.
19 No mesmo sentido Emerson Gabardo em “Interesse público e subsidiariedade” (2009, p.227).
20 Destaca-se que o Estado tanto regula as atividades do upstream da indústria do petróleo, quanto atua diretamente, através da Petro-
bras.
21 Para mais informações sobre a relevância do petróleo na sociedade atual, acessar o documentário: PETRÓLEO, combustível da vida
moderna. Direção de Marcelo Bauer. [S.I.]: Cross Content, 2011. Disponível em: <http://www.webdocumentario.com.br/petroleo/>. Acesso
em: 30 mar. 2014.
22 Nesse sentido o autor (ROOS, 2013, p. 16) é claro ao afirmar que “a indústria do petróleo produz insumo básicos e de grande im-
portância na estrutura produtiva de economias capitalistas. Desse modo, possui grande peso na matriz insumo-produto [...]. O petróleo é
utilizado economicamente como insumo energético, através de seus combustíveis derivados, e também como um intermediário amplamente
difundido na indústria química”.
264
p. 16). Conforme documento produzido pela Agência Internacional de Energia (AIE, 2012, p.
08), o acesso à energia continua sendo uma questão fundamental para os Estado e, apesar das
novas políticas e do desenvolvimento mundial, o petróleo continua sendo a fonte mais utilizada.
Desse modo, o acesso às fontes de petróleo deve ser reconhecido como uma importan-
te variante na determinação do nível de crescimento e desenvolvimento de uma economia, no-
tadamente por energia e transporte serem insumos essenciais à produção (ROOS, 2013, p. 16).
Os maiores exemplos da importância das fontes de petróleo para um Estado são vistos
em marcos históricos da sociedade recente, como a Crise do Petróleo em 197323, e o caos instau-
rado devido à exorbitante elevação no preço do barril de petróleo24, principalmente, nos países
cuja indústria já era desenvolvida.
Outro exemplo histórico foi o ataque norte-americano ao Iraque em 2003, que, mesmo
tendo sido apresentada outra justificativa para o referido ataque, tal atitude colocou o petróleo
em pauta como uma preciosa fonte de interesse do governo norte-americano (ROOS, 2013, p.
39).
O acesso às fontes de petróleo, portanto, constitui uma questão da geopolítica interna-
cional recorrente. O mercado do petróleo sofre interferências constantes e diretas das relações
internacionais, a própria AIE (2012, p. 02) é clara ao afirmar que “nenhum país é um ‘ilha’ em
matéria de energia”.
Inclusive, importante esclarecer que geopolítica “refere-se à combinação de fatores
geográficos e políticos que determinam a condição de um Estado ou região, enfatizando o im-
pacto da geografia sobre a política” (BRZEZINSKI, 1986 citado por EBRAICO, 2006, p. 35).
Aqui, o fator geográfico em questão é a jazida de petróleo, cuja a existência num dado Estado
interfere diretamente em suas relações econômicas internacionais.
Assim, diante da essencialidade desse bem para o desenvolvimento de uma nação, os
Estados tendem a tentar diminuir a dependência externa do petróleo, sendo uma das soluções
encontradas a dominação estatal dos reservatórios de petróleo através de empresas nacionais25,
como a Petrobras.
Então, reduzir a dependência externa no mercado mundial de petróleo significa garan-
tir à nação o suprimento de energia e combustível (principalmente) suficiente, contínuo e que
cujo valor seja razoável (EBRAICO, 2006, p. 39). A necessidade do suprimento suficiente e con-
tínuo decorre da essencialidade do petróleo para desenvolvimento econômico26 e social de uma
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
nação, já que este bem constitui, como já explanado, insumo imprescindível a cadeia produtiva
e ao uso doméstico (tanto nos objetos pessoais que o petróleo faz parte da composição quanto
23 John V. Mitchell (1997 citado por RODRIGUES DA SILVA, 1998, p. 06) enfatizou que uma das mais fundamentais liberdades de um
Estado é ter a soberania de tolher restrições estrangeiras, sendo essa liberdade que o embargo árabe de 1973 tentou ameaçar.
24 Segundo Roos (2013, p. 27) o preço do barril de petróleo passou de US$ 3 para US$ 12 em três meses.
25 Estudos informam “que mais de 80% dos reservatórios de petróleo do mundo estão sobre o controle direto dos governos e de suas
empresas nacionais de petróleo” (YERGIN, 2010 apud ROOS, 2013, P. 39).
26 Entende Bercovici (2005, p. 45) que o desenvolvimento econômico nacional deve ser visto como “um processo de mudanças endógenas
da vida econômica, que alteram o estado de equilíbrio previamente existente”. Isto é, não é mero crescimento quantitativo, mas deve haver
alteração iniciada internamente numa sociedade e capaz de repercutir em diversos campos.
265
como fonte de combustível de transportes de uso diário).
A necessidade do seu valor ser razoável advém da grande quantidade de petróleo uti-
lizada diariamente por uma Estado27, fazendo com que a receita deste bem seja expressiva na
economia nacional, de modo que um aumento exacerbado em seu valor pode gerar uma crise
econômica num determinado país. No Brasil, por exemplo, segundo a ANP (2012, p. 03), houve
expressivo aumento do consumo de derivados de petróleo no período de 2000 a 2011, chegando,
em 2012, a consumir cerca de 64 mil barris de petróleo por dia (ANP, 2013, p. 32), de modo que
qualquer alteração expressiva no preço do barril iria repercutir na balança comercial do país.
Diante do apresentado, o interesse público defendido na indústria do petróleo é o de-
senvolvimento econômico nacional, que deve ser diferenciado do crescimento, uma vez que este
constitui mero aumento quantitativo, enquanto desenvolvimento “pressupõe sempre a ocor-
rência de mudanças que surjam de dentro para fora do sistema” (RISTER, 2007, p. 18). Ainda,
é preciso ter em mente que a concepção de desenvolvimento pode ser caracterizada por três
dimensões, com base nos ensinamentos de Celso Furtado (2000, citado por RISTER, 2007), fa-
zendo referência ao aumento da eficácia do sistema de produção, à satisfação das necessidades
básicas da população, e a realização de aspirações de grupos sociais.
Ante a apresentação de tais dimensões, é possível inferir a necessidade do petróleo,
como principal fonte de energia da sociedade atual, para que seja impulsionado o desenvolvi-
mento de uma nação, tendo em vista que ele, ao mover indústrias, transportes e, até mesmo, a
vida cotidiana dos indivíduos, está diretamente ligado à eficácia do sistema de produção e às
necessidades básicas da sociedade.
Cabe destacar, ainda, que o desenvolvimento pode ser entendido como “um processo
de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” (SEM, 2000, p. 17), sendo as liber-
dades humanas o fim primordial e o meio principal do desenvolvimento (SEM, 2000, p. 52), daí
a importância de preservar e perseguir formas de garantir tal desenvolvimento.
A garantia do desenvolvimento nacional aqui vista como o interesse público defendido
nas atividades de exploração e produção de petróleo pode ser relacionado, especialmente, com
a soberania nacional, a dignidade da pessoa humana e os valores do trabalho e da livre inicia-
tiva, reconhecidos como fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, como já
afirmado. Explica-se.
A soberania nacional, vista sob seu viés econômico (enfatizado no art. 171, I, da Cons-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
tituição Federal), pode ser compreendida, em apertada síntese, como a “preferência por um de-
senvolvimento nacional” (TAVARES, 2011, p. 140), não sendo absoluta, mas como uma forma
de preservar a autodeterminação do Estado no campo econômico, de forma que este possa se
relacionar com outros Estados e empresas sem a intromissão de entidades financeiras interna-
cionais.
Nesse passo, o mercado internacional de petróleo pode gerar forte dependência esta-
27 Conforme dados da ANP (2013, p. 32) o consumo mundial de petróleo chegou a quase 90 (noventa) milhões de barris por dia.
266
tal em relação às multinacionais produtoras – que controlam o preço do barril do produto-, de
forma que a amenização da dependência do preço internacional do petróleo, através das ações
estatais, constitui forma de preservar a soberania econômica de um país.
A dignidade da pessoa humana28, os valores sociais do trabalho29 e da livre iniciativa30
possuem íntima relação na abordagem apresentada, uma vez que, sendo o petróleo insumo im-
portante, como já ressaltado, para a cadeia produtiva e para a vida cotidiana dos indivíduos, a
garantia mínima de sua produção possibilita e fortalece a produção industrial num país, dando
margem, assim, para que os referidos princípios e postulados sejam efetivados.
Ora, partindo de um raciocínio lógico, percebe-se que sem a possibilidade de desen-
volvimento de qualquer atividade empresarial num Estado, há pouco espaço para o progresso
da livre iniciativa. Sendo rudimentar o mercado desse Estado, com poucas possibilidades de
geração de relações de trabalho, a exploração do trabalhador pode ocorrer com maior frequên-
cia, sendo o valor social do trabalho avariado. Com isso, a dignidade da pessoa humana será
dificilmente resguardada.
Dessa maneira, a intervenção estatal nas atividades de exploração e produção de pe-
tróleo sempre esteve ligada à garantia do abastecimento interno de petróleo, a qual, por sua vez,
relaciona-se com o desenvolvimento econômico nacional, reconhecido, aqui, como interesse
público, comum a todos os indivíduos que compõe a sociedade brasileira.
Não é que a existência de fontes de petróleo em uma nação e a apreensão destas pelo
Estado irá garantir o pleno desenvolvimento econômico de uma nação, mas o eficaz aprovei-
tamento destas fontes pode assegurar ao Estado poder de barganha no mercado internacional,
de modo a proporcioná-lo a possibilidade de efetivar e intensificar sua autodeterminação e sua
soberania interna. Havendo, pois, essa vantagem geográfica numa nação, mais importante do
que o seu simples apoderamento é seu eficiente aproveitamento.
A intervenção estatal faz-se importante nesse setor diante do baixo grau de confiabili-
dade na iniciativa privada de que o desenvolvimento nacional será o interesse primordial dessa
atividade até mesmo em prejuízo à obtenção desenfreada de lucros que corroboram, somente,
com o crescimento econômico. Segundo Aguilar (2009, p. 255), o grau de concentração regu-
latório dá-se, justamente, diante de maior ou menor confiança do Estado “em que os interesses
públicos serão alcançados mediante outorga de liberdade à iniciativa privada”.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
28 Nas palavras de Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves (2010, p. 125) “serve como mola de propulsão da intangibilidade da vida hu-
mana, dela defluindo como consectários naturais: i) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; ii) a admissão da existência de
pressupostos materiais (patrimoniais, inclusive) mínimos para que possa viver; e iii) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e
igualdade. Ou, ainda nas palavras dos autores (2010, p 127), a dignidade da pessoa humana “expressa uma gama de valores humanizadores
e civilizatórios incorporados ao sistema jurídico brasileiro”.
29 Segundo José Afonso da Silva (2009, p. 764), “embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do trabalho humano
sobre todos os demais valores da economia de mercado”, ou seja, como forma de preservar a dignidade da pessoa humana na relações de
trabalho, a constituição, mesmo preservando a economia de mercado, cuida em proteger o trabalhador, destacando seu valor social.
30 Para André Ramos Tavares (2011, p. 234), a livre iniciativa representa a consagração constitucional da economia de mercado, revelan-
do “a adoção política da forma de produção capitalista”. Complementa, afirmando (2011, p. 235) que a liberdade de iniciativa não deve ser
entendida somente como liberdade econômica, mas também, como liberdade de desenvolvimento de empresa, “assumindo todas as demais
formas de organização econômicas”. Ainda, tal princípio impõe a não intervenção estatal, “que só pode se configurar mediante atividade
legislativa que, acrescenta-se, há de respeitar os demais postulados constitucionais e não poderá anular ou inutilizar o conteúdo mínimo
da livre-iniciativa”.
267
O papel da Petrobras, nesse cenário, incialmente, foi o de atestar ao Estado a proprie-
dade das jazidas de petróleo e gás natural, tendo, assim, a atribuição de ampliar e aperfeiçoar
a indústria petrolífera no país, visando, também, a redução da dependência externa do produto
(relembra-se que o mercado de combustíveis nacional, por volta de 1930, era dominado e guiado
por interesses de multinacionais).
Como visto, a estatal brasileira cumpriu sua função e a indústria brasileira evoluiu.
Ocorreu que, ainda assim, o completo monopólio nas atividades de exploração e produção de
petróleo mostrou-se não acompanhar a expansão do consumo nacional, dessa forma, ainda sem
consolidado aparato normativo foram possibilitados os contratos de risco. Posteriormente, o
monopólio foi mitigado constitucionalmente, e empresas internacionais puderam concorrer e
participar dessas atividades. As atividades de exploração e produção continuaram em expansão,
bem como a Petrobras, que passou a atuar internacionalmente, sendo uma empresa reconhecida
não apenas no Brasil.
Com a descoberta do Pré-sal e a possibilidade tecnológica de explorá-lo, o Brasil pas-
sou a ter maior relevância na geopolítica do petróleo (REIS, 2013, p. 03), não garantindo a com-
plementa autossuficiência, mas adquirindo a possibilidade de melhor comercializar no mercado
internacional. Em decorrência disso, depreende-se que há proteção do interesse público aqui
em destaque.
Contudo, ressalta-se, por fim, que a intervenção estatal na defesa desse interesse públi-
co não pode ir plenamente contra os demais preceitos constitucionais (como o da livre concor-
rência e o da isonomia, por exemplo), esvaziando-os.
Por isso, a importância da ponderação: se o legislador optou por mitigar o monopólio
das atividades de exploração e produção de petróleo, deve, pois, respeitar o ordenamento pátrio
referente às atividades econômicas, não desrespeitando por completo outros princípios consti-
tucionais em prol do interesse público que cerca o setor em comento.
Entende-se, pois, que não há esse completo desrespeito, havendo a mitigação de prin-
cípios como o da livre concorrência em detrimento da preservação do interesse público de de-
senvolvimento econômico através da garantia de abastecimento interno de petróleo.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
268
Do estudo apresentado, infere-se que, de forma simples, é possível entender interes-
se público como a convergência entres os direitos privados comuns aos indivíduos enquanto
membros de uma sociedade e que tais interesses devem ser não somente resguardados, mas,
também, promovidos pelo Estado.
Por oportuno, destaca-se que a presente pesquisa destinou-se a destacar qual seria o
interesse público alegado pelo Estado que o faz, desde 1934, apresentar justificativas para in-
tervir numa atividade econômica, a exploração e produção de petróleo em território nacional.
Aplicando, nas atividades de exploração e produção da indústria de petróleo, os con-
ceitos doutrinários então analisados sobre o que seria “interesse público”, compreende-se que o
Estado, ao intervir nesse setor, objetiva resguardar o desenvolvimento econômico nacional que
está diretamente relacionado à garantia do abastecimento interno de petróleo.
Tal desenvolvimento econômico pode ser visto como o desenvolvimento de atividades
empresariais, de gerações de trabalhos e afins, o que pode ser facilmente entendido como inte-
resse dos indivíduos que compõem a sociedade brasileira. Assim, o eficaz aproveitamento das
fontes de petróleo nacionais pode, como explicado, favorecer o poder de barganha do Estado no
mercado internacional, corroborando para o abastecimento interno de petróleo.
Ademais, foi esclarecido que a intervenção estatal no setor é importante devido ao
baixo grau de confiabilidade de que iniciativa privada por si só irá preservar o abastecimento
interno em detrimento da obtenção desenfreada de lucros.
Desse modo, enfatiza-se que as atividades de exploração e produção de petróleo, as
quais podem ensejar no eficaz aproveitamento das fontes de petróleo nacional, contribuindo
para garantir o abastecimento interno, merecem a atenção do Estado, por estarem ligadas ao
desenvolvimento econômico nacional, o qual é caracterizado como interesse público, por ser
algo valioso aos indivíduos enquanto membros da sociedade brasileira.
REFERÊNCIAS
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Quartier Latin, 2011.
269
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TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional Econômico. 3 ed. São Paulo: Método,
2011.
270
PUBLIC INTEREST LIMITS IN UPSTREAM OF OIL INDUSTRY AND THE IM-
PORTANCE OF A STATE-OWNED COMPANY
ABSTRACT: This research analyzes the concept of public interest. Also this
article deals with the history of the most important state-owned company in
the upstream oil industry and emphasizes the importance of this state-owned,
Petrobras. Examines the state intervention in this sector and what is meant by
public interest. The article concludes which public interest is present in the
upstream oil industry.
Keywords: Brazilian oil industry. Public Interest. Upstream.
271
Recebido em 08 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objeto de estudo a aplicação da pena base em vista do art.
59 do Código Penal brasileiro, correlacionada com a temática da subjetividade e motivação
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
* Acadêmico da 5ª fase de Direito do Centro Universitário Católica de Santa Catarina em Joinville. E-mail: indalecio.rocha@catolicasc.
org.br
272
finição de circunstâncias judiciais, fazem-se necessários para melhor entendimento do trabalho.
Nesse sentido, dá-se percepção à possibilidade de exercício da subjetividade judicial.
Num segundo momento, trata-se de elencar a problemática da aplicação da pena. Se o
art. 59 promove maior objetividade e delimita a condenação, a qual já ganhou grandes contor-
nos no enquadramento do modelo tipificado, a subjetividade judicial deverá individualizá-la ao
caso concreto. Consequentemente, se espera que o juiz promova a adequação necessária para
punir de forma justa o agente delituoso em sua especificidade. Isso em virtude da individuali-
zação da aplicação da pena, instituto fundado por necessidades históricas, observando princípio
que recebe mesmo nome.
Contudo, ao tratar-se de subjetividade, se discorre acerca de uma questão epistemoló-
gica antiga, a qual remonta à problemática do sujeito-objeto. Nesse diapasão, tecem-se reflexões
à aplicação da pena em virtude de uma subjetividade judicial pouco consolidada. Atenta-se
que não se discute a legitimidade da possibilidade discricionária judicial, qual não é objeto do
presente texto. O que se pretende, é sim, refletir sobre como pode ser dada a aplicação da pena
e que incidências podem ocorrer em virtude da função jurisdicional e sua subjetividade.
Vê-se que, ao falar sobre consolidação subjetiva, pode-se incorrer em dúvidas. O que
se quer referir é uma contundente, solidificada e prostrada subjetividade no sentindo de capa-
cidade de reflexão do juiz na função jurisdicional. Tem-se que a reflexão poderia acrescentar
numa posição mais solidificada do juiz.
Sem querer cair em paradoxos, foge-se da questão de representatividade da soberania
popular em virtude da aplicação estritamente legal feita pelo juiz. Esta, condizente com a ver-
tente formalista do Direito Penal, fruto do processo legislativo executado por representantes do
povo, não é objeto do presente texto. Não se discute também a legitimidade da soberania po-
pular e a sua existência, mas sim, influências que um populismo jurídico pode ter na aplicação
da pena.
Nessa seara, cabe advertir que ao populismo jurídico acrescenta-se a ideia do senso
comum jurídico, partilhado pela coletividade forense de uma possível classe média intelectual
do Direito. Ao presente trabalho, equiparam-se senso comum e populismo jurídico. Talvez,
ambas as condições de pensamento compartilhem de um mesmo medo, qual se apresenta como
um tipo de caracterização da modernidade líquida ou, como consideram alguns, da Idade Hi-
permoderna.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
273
no pós-iluminismo, que se consubstanciou a ideia da pena fixa. Nesse viés, o arbítrio judicial
que era predominante na Idade Média caiu e começou-se a estabelecer limites para as sanções,
reservando-se nas penas em estrita legalidade. Foi contra esse arbítrio judicial da aplicação da
pena que se ergueu o princípio fundamental da legalidade, pois os juízes medievais representa-
vam um dos maiores males do Direito Penal.
Foi nessa perspectiva de limitação da pena, que se iniciou o movimento liderado por
Beccaria (2012, p. 30), que buscava na extrema legalidade a fundamentação do Direito Penal,
cabendo ao juiz, a simples aplicação da norma penal sancionadora, deixando-se de lado até
mesmo sua interpretação (ou, ao menos se tentava).
Dialeticamente falando, o movimento da história geralmente apresenta-se em uma ten-
são de dois polos (tese e antítese) até que se chegue num meio termo (síntese). De tal forma se
sucedeu com relação à aplicação das penas. Se na Idade Média a pena era aplicada arbitraria-
mente, na Idade Moderna a rigidez do princípio da legalidade atrelada àquele instituto desvela a
precariedade de um sistema positivista rígido. Não se sustentou então a extrema positividade da
inserção da sanção, a qual ganha exemplificação no Código Penal Francês de 1791, que previa
a mera aplicação mecânica do texto legal, mas que em momento não muito distante do século
XVIII, flexibilizaria tal posição.
Nesse sentido se apresentou a fragilidade da inflexibilidade da aplicação penal. Deu-se
conta cedo que “se a indeterminação absoluta não era conveniente, também a absoluta determi-
nação não era menos inconveniente” (BITENCOURT, p. 766, 2013). Em ambos os momentos
perdeu-se em quesitos de Direitos Fundamentais. No primeiro, o arbítrio judicial incidia direta-
mente contra a dignidade humana ao passo que no segundo, a impossibilidade de ajustamento
ou adequação da pena revelava o prejuízo da rigidez mecânica da aplicação normativa, con-
substanciando ao sentenciado uma pena injusta.
Como já exposto, a dialética que é própria da história se apresenta inicialmente sobre
uma tensão. Nesse caso ocorreu igualmente, pois se constatou a necessidade de relativa adap-
tação da aplicação da pena. Não se atendo somente ao arbítrio do juiz, bem como não sendo
determinada absolutamente pela simples aplicação mecânica de ordenamento jurídico positivo,
desvelou-se a possibilidade de uma dosagem da pena. Dessa forma, deu-se grande crédito ao
livre sopesamento judicial, qual foi previsto no Código Penal Francês de 1810.
Nesse diploma, existiam limites mínimos e máximos que possibilitavam a dosagem
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
274
de individualização legislativa A terceira está relacionada com a execução da pena já formula-
da, ou seja, seu cumprimento. (BITTENCOURT, 2013, p. 599). Inicialmente, é importante
diferenciar elementares do crime de circunstâncias do crime, pois estas serão cruciais para a
individualização judicial da pena. O Direito Penal, em função do princípio da legalidade, pode
punir somente condutas ou fatos tipificados em lei. Isso se resume em dizer que deve existir
um tipo penal específico para cada conduta ou fato ilícito. Os fatores que integram o tipo penal
são chamados de elementos essenciais do tipo penal, ou “elementos essenciais constitutivos do
delito” (BITTENCOURT, p. 767, 2013). Os elementos (ou elementares) do crime por sua vez,
são os “dados, fatos, elementos e condições que integram determinadas figuras típicas”. (BIT-
TENCOURT, p. 767, 2013).
Elementos essenciais do tipo é uma parte que configura o tipo penal. Como a própria
denominação esboça, trata-se da parte essencial ou substancial do tipo penal. Entretanto, a fi-
gura típica pode receber colaboração de outros itens que não previstos expressamente em lei,
os quais não alteram a substancia ou a essência do tipo penal, mas, que incidem na dosagem da
pena. A essa possibilidade de levar em consideração itens que circundam os tipos penais, deu-se
o nome de circunstâncias do crime. Por não serem circunstanciais que alteram substancialmente
a estrutura do tipo penal, recebem a característica de acidental, pois não alteram a existência do
tipo, influindo tão somente na medida final (dosagem) da pena (BITTENCOURT, 2013, p. 598).
As circunstancias do crime, segundo Aníbal Bruno (citado por BITTENCOURT, 2013,
p. 588), são itens, fatos ou condições assessórias do tipo penal, que o acompanham, mas não
penetram em sua estrutura conceitual, sendo assim diferenciados dos elementos essenciais
constitutivos do crime. As circunstâncias são algo exterior à figura típica, que redundará e se
acrescentará ao crime já configurado, o qual representará condições de possibilidade de valora-
ção com maior ou menor grau de reprovabilidade de conduta ou do fato ilícito, culposo e típico.
Importante salientar que somente os tipos básicos contêm elementares do crime, já os
tipos derivados contém circunstâncias especiais que, apesar de estarem geralmente expressos
especificamente na lei, não fazem parte essencial, substancial ou constitutivo do tipo penal ou
do crime básico. Isso porque o crime básico é mais genérico e abstrato do que o tipo derivado e,
nesse sentido, este precisa de circunstâncias mais especiais no que diz respeito ao seu conteúdo,
que por vez, é mais especifico do que o tipo básico. Dessa forma, as circunstâncias especiais do
tipo derivado não descaracterizam o tipo básico, sendo ao contrário, pois o especifica.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Nos dizeres de Bittencourt (2013, p. 772), “as elementares são componentes do tipo
penal, enquanto as circunstancias são moduladoras da aplicação da pena, e são acidentais, isto
é, podem ou não existir na configuração da conduta típica”. Por sua vez, Capez, (2011, p. 475)
escreve circunstâncias como sendo “todo dado secundário e eventual agregado à figura típica,
cuja ausência não influi de forma alguma sobre a sua existência”.
Circunstâncias que não constituem nem qualificam o crime, são conhecidas na dou-
trina como circunstâncias judiciais, circunstâncias legais e causas de aumento e de diminuição
da pena. As circunstâncias judiciais são orientações estabelecidas pelo art. 59, as quais dão
275
diretrizes ao juiz para adequação da pena ao delinquente.
Nessa fase é que se inicia o processo de individualização judicial da pena. Trata-se de
circunstâncias judiciais e não circunstâncias legais pela razão de não estarem previstos critérios
taxativos e restritivos legalmente expostos no texto positivo que estipulem a dosagem da pena
especificamente. Assim, com base nas diretrizes do art. 59 do Código Penal brasileiro, o juiz
estabelecerá a dosagem dentro dos limites da pena, dando o caráter objetivista da aplicação
(GRECO, 2011, p. 153).
Esses critérios ou elementos que estão previstos no artigo supracitado, são, como apre-
sentado, chamados de circunstâncias judiciais e estão positivados no Código Penal Brasileiro
da seguinte forma:
276
conotação do que no Realismo Jurídico Norte-Americano, sistema que considera o judiciário
como principal fonte criadora do Direito, enfatizando no sistema do Civil Law a predominação
da lei. Esse aspecto originado de raízes romano-germânicas, o qual atualmente pode ser inter-
pretado sob uma ótica um tanto quanto rudimentar, apresenta um problema da mecanização
legal1.
A própria história demonstra que a mecanização da aplicação da lei não é possível,
pois o Direito enquanto conhecimento cultural é produzido a partir do homem e para o homem,
sendo a lei impossível de prever ou determinar a plenitude de atos, condutas e fatos humanos. A
insuficiência legal é marca para a flexibilização da discricionariedade judicial e é nesse contexto
que se apresenta o art. 59 do Código Penal.
A aplicação mecanizada não condiz com a realidade da vida do Direito. Essa insufi-
ciência possibilitou ao judiciário, por uma atribuição do legislador, estabelecer juízos de valores
que constituirão singularmente a pena-base. Além de o próprio tipo penal especificar e delimi-
tar a sanção, o art. 59 vem a atender ao princípio da individualização da pena, visando melhor
e mais eficaz atendimento tanto ao agente delituoso quanto à sociedade. Apesar de se basear
no princípio supracitado, convém lembrar que os critérios estabelecidos pelo legislador no art.
59 proporcionam maior potencialidade de justiça na aplicação da sentença, se aproximando do
princípio da proporcionalidade.
A individualização da pena passa por um processo de proporcionalização da fixação
da pena, visto que dentro do campo de objetividade traçado pelo tipo penal, há ainda a pos-
sibilidade de manutenção ao caso concreto, feito por um juízo de valor do juiz. Acreditar que
existe juiz despido de ideologias, sendo ele um ser humano divinamente aquém de pensamentos
e opiniões é um erro. Ao se inclinar sobre o Código Penal e aplicar a fixação da lei “objetiva-
mente”, por força da natureza humana o magistrado não estará despido de pensamentos, ideias
ou opiniões.
O jurisdicionado é um ser humano e ao passo que participa dessa condição de existên-
cia, naturalmente pressupõe subjetividade. O debate entre objeto e sujeito, objetividade e sub-
jetividade é antigo dentro do campo da epistemologia ou teoria do conhecimento, apresentando
acentuadas posições diversas durante a história. Convém ressaltar que o problema é tão atual
quanto já fora problematizado.
Se considerar a aplicação da lei formulada por um juiz despido de ideologias, se cairá
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
em enganos. O jurisdicionado sendo alguém que mantêm relações em sociedade, com pessoas
inseridas neste contexto, participará também de ideais coletivos e, assim sendo, dificilmente
conseguirá exprimir algum tipo de signo qual não esteja interligado com alguma fundamenta-
ção ideológica. Mesmo porque não há imparcialidade social, não existe pessoa aquém de opi-
1 Em Direito Penal essas duas vertentes denominam-se formalismo e realismo: “Apesar de inúmeras definições de direito que são con-
cebidas na atualidade, existe a possibilidade de separá-las de acordo com duas grandes vertentes: a formalista e a realista. Aquelas pos-
turas que recriam ou conservam os modelos jurídicos presentes em textos legais são vistas como formalistas, enquanto que as realistas
distanciam-se das propostas legislativas, concentrando a busca de fortalecimento do poder judiciário. Os formalistas, portanto, relevam a
segurança jurídica, enquanto que, para os realistas, a tônica se insere na equidade” (BIANCHINI, p. 23, 2013).
277
niões (salvo exceções), pois caso o sejam, ou serão “portas”, ou serão dominadas por uns ou por
outros. Conhecimento é pressuposto de contundência, evidentemente.
Parece que, ao atribuir-se toda a divindade ao magistrado, acredita-se que esse não en-
tra nesse viés social. A formação jurídica, principalmente a necessária para poder ser investido
na atividade jurisdicional é muito sólida e completa.
A investidura do cargo de magistrado pressupõe estudo. Dessa forma, isto é um crité-
rio delimitador para competência na atividade jurisdicional. Entretanto, a pergunta se formula
de tal forma: qual o este critério delimitador para o início do exercício da atividade jurisdicio-
nal? Não se trata de questões processuais de competência. O debate vai além de questões mera-
mente procedimentais. Com objetividade: a cobrança (critérios delimitadores) para se iniciar na
magistratura fornece subsídios para a atividade jurisdicional?
A prestação jurisdicional está intimamente ligada com o acesso à justiça. Deve seguir
princípios de Direito e promover o bem comum, como também, se atentar aos valores humanos
e tentar alcançar a equidade. Entretanto, parece que os critérios, os requisitos “concurseiros”
para que seja possível o ingresso à magistratura eleva somente uma dimensão do Direito: a nor-
mativa. Posição esta um tanto quanto leiga.
Infelizmente, essa realidade não é específica da magistratura e de seus concursos.
Posto isto, está impregnado quase que numa crise epistemológica contínua demonstrando-se
nas academias, instituições de Direito e no pensamento coletivo jurídico. Os tribunais apenas
adentram numa onda ontológica e deontologicamente inexperiente.
Ao passo que a magistratura deve ser preenchida por pessoas tão somente com domí-
nio da legislação, há uma debilidade propedêutica a essa função, a qual se atribui a uma fra-
gilidade do pensamento coletivo. Desse modo, as ressonâncias que essa postura proporciona a
fixação da pena base só poderiam ser negativas. Partindo-se da ideia que a aplicação do art. 59
do Código Penal depende de uma análise essencialmente subjetiva fica ainda mais comprome-
tido uma sentença justa.
Como já exposto no texto, o pensamento histórico se refaz numa contínua dialética e,
nesse contexto, a aplicação da pena também se insere. O bom emprego do art. 59 não se ade-
qua a dois pensamentos penalistas de extremidades: o abolicionismo penal e o movimento lei
e ordem. O primeiro vislumbra a abolição do Direito Penal, não vendo nessa vertente jurídica
a necessidade para regulação social. O segundo aborda a necessidade de uma legalidade jurí-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
dico-penal mais intensa e rígida, dando entonação à severidade das penas para delituosos. Per-
cebe-se que o domínio do conteúdo propedêutico comporta ao aplicador melhor desempenho,
alcançando dessa forma uma concepção equilibrada do Direito Penal, aproximando-se de uma
pena mais justa (GRECO, 2009, p. 24).
Não se trata de querer expor argumentos a favor de delituosos, ou querer contrapor
expressões de cunho popular como: “adota e leva para casa!”; “bandido bom é bandido morto”;
“lei de talião para bandido”; “tortura contra bandido”; “não tem que prender; tem que mandar
matar”, “direitos humanos para humanos direitos”. Essas expressões só diagnosticam a insegu-
278
rança social que propõe um radicalismo penal baseado num populismo jurídico-penal líquido,
derivado de influências midiáticas sensacionalistas. São expressões do populismo jurídico e não
revelam sentido para o presente trabalho, a não ser pelo seu diagnóstico.
Tratar o Direito apenas sob o aspecto da normatividade é reduzir a existência da vida
do Direito. Isso acarreta em negar fatos e valores que são próprios dos debates jurídicos em
prol de alguma cientificidade ou pureza metodológica pouco consolidada. Importa nesse viés,
lembrar que a norma em si, é um instrumento vazio.
Há uma reflexão bem relevante nesse sentido, qual remete à obra Filosofia do Direito,
de Reale (1999, p. 475). Ao se pensar numa estrutura normativa dotada dos mais requintados e
sistêmicos meios processuais e legislativos possíveis, se pensa numa estrutura super desenvolvi-
da. Não é por menor pensar que um sistema normativo que apresente uma estrutura magnífica,
será totalmente eficiente, pois não há motivos para que não seja. A norma está sistematizada em
prol de todos e para todos e essa estrutura é a mais técnico-científica e mais bem desenvolvida
há tempos e supera estruturas normativas de vários países. Isso seria o ideal.
Interessante notar que o Brasil, não raras vezes, é descrito pelos literatos do Direito
como sendo uma nação que possui as técnicas e meios formais mais desenvolvidos e em prol
dos Direitos Fundamentais. Entretanto, a efetividade da norma vigente não ocorre.
Num plano técnico, alega-se falta infraestrutural estatal, falta de recursos, meios, bu-
rocracia e afins. O que não falta são justificativas. Entretanto, se propõe um pensamento um
tanto diferente: será que a normatividade exposta, que está em busca de valores, de justiça, não
os tem verdadeiramente porque os promulgadores de justiça não os têm também?
Nesse contexto, volta-se à estrutura normativa perfeita. De que adianta o melhor apa-
rato técnico se os valores não conseguirem permear esses meios? Ao passo que o pensamento
coletivo jurídico isola a norma jurídica, perdem-se em dimensões valorativas e de fato. Assim
sendo, não havendo real importância dos valores, essa estrutura fica a exposição. Abertura esta
que será vazia, pois tal extremismo revela uma insuficiência valorativa, a qual, em algum mo-
mento, será preenchida por alguma ideologia.
Lembra-se aqui dos regimes totalitários e a exemplo, o nazismo. Kelsen fora acusado
de trabalhar indiretamente para o Partido Nazista, atuando para que os interesses destes se fun-
dassem numa teoria que conseguisse expor suas ideologias irrefutavelmente (COELHO, 2001,
p. 17). Apesar de o jurista normativista não atuar com esse intuito, sua doutrina fora utilizada
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
279
Sabe-se que o intuito dessa questão é promover a segurança jurídica. Entretanto, per-
cebe-se que, enaltecer a objetividade normativa não é suficiente. A coletividade mental (aqui,
engloba-se o magistrado) não adere à realidade do Direito, mas sim, à parcialidade do Direito.
Não se propõe a crítica de forma imatura. Não se trata de um problema de ordem
técnico, ou uma acusação aos juízes, magistrados. Trata-se de uma verificação problemática
epistemológica. Isso se constata, por exemplo, na forma como é cobrado no concurso público
da magistratura (ou concursos, em geral), sendo um empecilho que injeta essa necessidade de
sanar o intelecto formalmente (legalmente). Entretanto, suprir formalmente revela uma debili-
dade, qual seja material.
Nesse contexto, obviamente quem se presta ao aprendizado conforme dita os concur-
sos, acaba se obrigando a formar uma linha de estudos na dimensão normativa. Dessa maneira,
relega em segundo campo a importância das propedêuticas jurídicas. Não que os concursos
sejam condição para isso, mesmo por que existe uma minoria que vai além. Há quem descons-
trói e ultrapassa a ideia do plano cartesiano, promovendo a atividade criadora Entretanto, um
radicalismo nesse sentido promove a rigidez da capacidade de reflexão.
Streck (2013, p. de internet)2 já denunciava há anos a problemática dos concursos pú-
blicos. Pesquisas da Faculdade Getulio Vargas (FGV) e da Universidade Federal Fluminense
(UFF)3 demonstraram com estudos empíricos a problemática dos concursos públicos serem um
fim em si mesmo, apresentando “ineficiência de fiscalização de competências reais” (TORKA-
NIA, 2013, p. de internet)4. Os estudos para concursos formam profissionais “concurseiros” que,
ao atuar na atividade pela qual prestou o concurso, atuará perante a formação que teve. A lógica
se aplica a diversos outros tipos de exames, mas, não se faz necessário entrar no mérito destes,
ao menos não aqui.
Seguindo o mesmo raciocínio, a má formação que os magistrados adquirem em fun-
ção da necessidade dos concursos, projeta na atividade jurisdicional uma sequela. Percebe-se
que o art. 59 e seus critérios estabelecem campos de subjetividade em quesitos antropológicos,
psicológicos, filosóficos, históricos, sociológicos e que podem até mesmo ter ressonâncias re-
ligiosas. Essas disciplinas raramente são levadas a sério pelos acadêmicos de Direito (também
por diversos professores) e esse pensamento coletivo atinge as Instituições jurídicas (tribunais,
ministérios públicos, além da própria academia). Interessante transcrever um excerto da Teoria
dos Jogos, de Morais da Rosa (2014, p. 10):
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
2 STRECK, Lênio Luiz. Concursos públicos: é só não fazer perguntas imbecis! ConJur – Consultor Jurídico: 2013. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2013-fev-28/senso-incomum-concursos-publicos-nao-oerguntas-imbecis. Acesso em 20 set. 2014.
3 A pesquisa pode ser acessada no seguinte domínio: http://portal.fgv.br/sites/default/files/fgv_lanca_estudo_inedito_sobre_concur-
sos_e_propoe_marco_legislativo_para_selecao_do_funcionalismo_publico.pdf. O estudo em pauta foi objeto de debate no evento “Brasil,
o país dos concursos? Diagnósticos, perspectivas e propostas para o recrutamento no serviço público federal” promovido pelo Centro de
Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV DIREITO RIO e a Universidade Federal Fluminense, que ocorreu no dia 22/02/2013.
4 TOKARNIA, Mariana. Estudo aponta falhas e propõe mudanças nos concursos públicos. Agência Brasil, Brasília, 23 fev. 2013. Dis-
ponível em: <http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-02-23/estudo-aponta-falhas-e-propoe-mudancas-nos-concursos-publi-
cos>. Acesso em: 20 set. 2014.
280
outras áreas e, também, que boa parte dos juristas de ofício são e serão incapazes de
compreender a dimensão filosófica, linguística, sociológica, etc., do que fazem. Aí o
sujeito encontra o paradoxo: se fala com base nos fundamentos da teoria que sustenta
não será entendido, enquanto se facilita os fundamentos, muitas vezes, ganha o
epíteto de impostor. O problema é que o discurso teórico sério não consegue entrar
de maneira justa no círculo hermenêutico (simplificando, pelos ouvidos) da imensa
maioria dos juristas. E essa forma de pensar causa muitas vítimas no processo penal.
pena base geralmente não é analisada de maneira ideal, pois não há subsídios suficientes por
parte do magistrado para tal. Isso é muito importante, pois voltamos ao tema da normatividade
estrutural e sistêmica e a possibilidade da instalação de diversos conteúdos nela.
Como se fosse uma estrutura de canos, qualquer tipo de líquido que adentrasse no
encanamento, tomaria a forma dele, mas seria em essência, a mesma substancia qual adentrou
na estrutura. Vê-se que a forma independentemente de qual, servirá apenas como uma máscara
para a substância ideológica. A analogia é relevante, pois ao tratar da formatação que a liquidez
permite ter, lembra-se remotamente de um “medo líquido”, expressão que dá nome a uma das
281
obras do sociólogo polonês Bauman5.
O juiz, ao projetar suas especulações aos critérios de discricionariedade do art. 59, se
propõe numa verificação propedêutica e dessa maneira fixará a pena base, dando início ao cam-
po delimitador da pena final. A apreciação sistêmica permite ao magistrado uma valoração dos
critérios do artigo em totalidade, porém, qual subsídio possui para poder emitir tal juízo, visto
que seus estudos foram dados numa ordem de decoro legal? Percebe-se, numa primeira vista,
uma debilidade que não se restringe a um simples problema analítico-propedêutico, sendo pou-
co palpável crer que essa apreciação não contém uma índole ideológica. Vale expor o seguinte
trecho:
O juiz, como cientista, quer queira quer não, tem um engajamento pessoal com algum
tipo de valoração [...]. É por isso que não há falar em neutralidade judicial. O juiz que
escreveu um artigo de doutrina sobre determinado tema jurídico, não está impedido
de atuar num feito em que o mesmo tema esteja em questão. Assim também um juiz
negro pode julgar um caso de racismo, uma juíza pode julgar um machista. Por igual,
um juiz homossexual não é suspeito em processo que envolva direitos e obrigações
oriundas de uniões afetivas entre pessoas do mesmo sexo (PORTANOVA, 2003, p.
143).
Trata-se de uma questão simplesmente humana. Todo ser humano ou racional emite
juízos de valor. Entretanto, esses juízos são mais sólidos ao passo que se pressupõe uma forma-
ção consolidada. Nesse aspecto, chega-se ao ponto do presente trabalho, o qual demonstra que
o magistrado, em função de uma má formação, da exaltada normatividade curricular e pouca
atenção dispensada às dimensões valorativa e fática, nos aspectos propostos no art. 59, não tem
capacitação para emitir esses juízos.
Esse fato é perigoso. Como já exposto, juízes são pessoas, humanas e físicas por óbvio.
Pessoas vivem em sociedade e são, em certa medida, seres sociais. O magistrado por sua vez,
5 Para o autor, “o medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem
motivos claros; quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em
toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. ‘Medo’ é o que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou en-
frenta-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance” (BAUMAN, 2008, p.8). A esse conceito de medo, liga-se a ideia de liquidez moderna,
na qual a “vida líquida flui ou se arrasta de um desafio para outro de um episódio para outro, e o hábito comum dos desafios e episódios
é sua tendência a terem vida curta. Pode-se presumir o mesmo em relação à expectativa de vida dos medos que atualmente afligem as
nossas esperanças. Além disso, muitos medos entram em nossa vida juntamente com os remédios sobre os quais muitas vezes você ouviu
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
falar antes de ser atemorizado pelos males que esses prometem remediar.” (BAUMAN, 2008, p. 15). Fechando o raciocínio, interessante
a próxima citação: “O medo é seguramente o mais sinistro dos muitos demônios que se aninham nas sociedades abertas de nossa época.
Mas é a insegurança do presente e a incerteza do futuro que criam e alimentam o mais aterrador e menos suportável de nossos medos. A
insegurança e a incerteza, por sua vez, nascem de um sentimento de impotência: não parecemos mais estar no controle seja sozinhos, em
grupo ou coletivamente, dos assuntos de nossas comunidades, da mesma forma que não estamos no controle dos assuntos do planeta – e nos
tornamos cada vez mais conscientes do que não é provável que nos livremos da primeira desvantagem enquanto permitirmos que a segunda
persista. Para piorar ainda mais nossa situação, carecemos das ferramentas que poderiam permitir que nossa política se elevasse ao nível em
que o poder já se estabeleceu, possibilitando-nos, assim, recapturar e recuperar o controle sobre as forças que moldam nossa condição com-
partilhada, e portanto, redefinir o espectro de nossas opções assim como traçar os limites de nossa liberdade de escolha: o tipo de controle
que atualmente escapou ou foi tirado – de nossas mãos. O demônio do medo não será exorcizado até encontrarmos (ou, mais precisamente,
construirmos) tais ferramentas” (BAUMAN, 2008, p. 167). O sociólogo polonês consegue dar a verdadeira entonação ao que se passa na
atual sociedade. Apesar de muitas pessoas enxergarem no Direito Penal uma dessas ferramentas, ou mesmo um remédio para um tipo de
medo, importante frisar que se entende aqui que não o é. Não é com legislações penais ou com políticas criminais mais rígidas que se terá
o controle da situação, pois o problema escapa a eficácia do Direito Penal, tornando-o sem credibilidade se aplicado dessa forma. Há um
ditado qual diz que a cada escola aberta, fecha-se uma prisão. Aqui se estabelece o mesmo raciocínio: a melhor ferramenta é a educação,
em todos seus aspectos, dando ouvidos sempre a reflexão crítica.
282
estará inserido numa classe social e, não raras vezes, em função da investidura, insere-se à elite
social, partilhando da ideologia dessas.
Nesse ponto que importa então pensar e refletir, pois ao juiz que está inserido em de-
terminada classe e partilha do pensamento coletivo dessa classe, certamente apresentará sua
posição nas análises que o art. 59 permite fazer, por mais que se pense numa ordem formalista
do Direito. Não se trata de críticas vagas de que à magistratura não se tem forte formação, mas
sim que, ao passo que essas análises se dão num viés de pensamento de uma classe, abra-se
caminho para uma imposição.
Talvez, a consolidada formação daria subsídios para que fosse possível uma análise
racional por parte do estado - magistratura, Ministério Público, etc. Um dos mais recorrentes
argumentos contra quem defende o garantismo penal é: “e se sua filha fosse “estrupada”? Você
não iria querer vingança”? Essa situação fora levantada por Aury Lopes Junior, no XIII Con-
gresso Brasileiro de Direito Penal & Psicologia Criminal – Grandes crimes, grandes mentes
criminosas, o qual apresentou a seguinte resposta: “claro que eu iria querer vingança. Naquela
situação, eu poderia ser irracional, mas o Estado não”. Entretanto, parece que a função jurisdi-
cional quer promover um falso tipo de justiça.
Gomes (2013, p. 393), ao tecer algum tipo de aproximação com o populismo penal,
acaba por considerar um tipo de “método (ou discurso ou técnica ou prática) hiperpunitivista
que se vale (ou que explora) o senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas gera-
das pelo delito e pelo medo do delito [...]”. Parece que o autor utilizou bem o termo “hiperpuni-
tivista” quando comparado com a ideia de sociedade hipermoderna de Lipovetsky (2004, p. 53),
autor este que diagnostica a existência de modelos cotidianos hiperintensificados:
283
do Direito Penal e toda sua maximização6. O juiz, ao refletir sem os devidos subsídios, julga
conforme o populismo jurídico que também faz parte de sua classe. A esse fato se soma a ques-
tão do medo, pois ao se tratar dessa forma, o próprio juiz incorpora as ideias de sua classe nos
juízos valorativos judiciais e isso se dá numa adequação ao pensamento coletivo de sua classe.
Trata-se de uma “substância” ideológica que se insere na normatividade da magistratura e que,
apesar de ganhar essa forma da normativa, expressa o ideal da classe em que o magistrado se
encontra. Não raras vezes, juízes fazem parte de uma classe elitista, dominante na sociedade.
Interessante apresentar o seguinte pensamento de Cirino dos Santos (2013, p. 379):
Verifica-se então a existência estreita entre o discurso da tolerância zero com a capa-
cidade de tratar o delituoso como um inimigo do Estado, pois ao dar essa perspectiva à pessoa
delinquente, os Direitos Fundamentais não são importantes. O Direito Penal do inimigo desvela
um verdadeiro raciocínio de estado de guerra (GRECO, 2009, p. 18), que pode ser aplicado aos
delituosos numa tentativa legitimadora de ideologia.
Por isso a necessidade de reflexão e estudos reiterados, contínuos, tentando superar o
senso comum penal, identificado por Wacquant (1999, p. 11) 7, ou mesmo ultrapassar a classe
média intelectual, identificada por Streck (2014, p. de internet) 8. Em tese, talvez o que se deva
pensar é numa mudança de encarar o mundo do Direito. Dessa forma, nota-se uma proble-
mática também advinda das Instituições de Direito e ressalta-se aqui a academia com uma
responsabilidade maior. Sendo uma agência de reprodução ideológica - o termo não é utilizado
necessariamente com sentido pejorativo - conforme aponta Zaffaroni (2014, p. 33), a academia
é o cerne desses debates e é nela que se deve iniciar a mudança.
Em geral, além de uma crise institucional, percebe-se uma crise epistemológica
(NETO, MATTOS, 2007, p. 18) no campo do Direito. Para esse veneno, a academia é o melhor
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
6 A seletividade é um fato: “Como se sabe, o Direito penal é seletivo, e tem o seu público alvo, ou seja, a parcela miserável da população.
Essa afirmação é muito fácil de ser comprovada. É só visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem às
classes média ou alta. O número será ridículo. No entanto, pergunta-se: Será que no Brasil ocorre, com frequência, o crime de corrupção?
Será que existem sonegadores? As perguntas poderiam continuar até que abrangêssemos todas as camadas sociais. Contudo, só o pobre, só
o miserável é processado e preso.” in: GRECO, Rogério. A quem interessa uma justiça penal sobrecarregada? 2010. Disponível em: <
http://www.rogeriogreco.com.br/?p=104>. Acesso em 20. set. 2014.
7 WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Trad. de André Telles. Editora: Sabotagem, 1999. Disponível em:<https://www.google.
com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0CCMQFjAB&url=http%3A%2F%2Ffiles.femadirei-
to102.webnode.com.br%2F200000039-62f056357d%2FAs%2520Prisoes_da_Miseria%2520Loic_Wacquant.pdf&ei=B7A1VYrMD_O_
sQTH7IHgAQ&usg=AFQjCNG95XoAZA6cuIo0RNoOxelZ90cA2w>. Acesso em: 2. out. 2014.
8 STRECK, Lênio Luiz. Abandonar as próprias vontades para julgar é o custo da democracia. ConJur – Consultor Jurídico: 2014
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2014-ago-10/entrevista-lenio-streck-jurista-advogado-procurador-aposentado. Acesso em: 23.
set. de 2014.
284
antídoto e a isso só o debate e a reflexão se apresentam como instrumentos. A liberdade de ex-
pressão á um direito fundamental conquistado ao longo da história, com banho de sangue. Não
há motivos para não aproveitá-lo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dessa forma, considera-se a reflexão como a única forma de escape. Percebe-se que a
própria coletividade jurídica, na qual o jurisdicionado faz parte, está inserida no contexto acima
mencionado. Dar-se conta dessa situação é a primeira atitude de mudança.
Até que não se perceba a situação, o instituto qual trata o art. 59 servirá de instrumento
técnico-formal para legitimação de ideologias, atuando de forma a emitir sanções pouco justas,
fazendo a manutenção do ideal da seletividade penal e da guerra contra os inimigos do Estado.
Clamar por mais reflexão além de ser uma busca por humanização, também procura a melhora
da capacidade jurídica de auto-desenvolvimento.
285
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order.
Keywords: Subjectivity. Application. Ideological influences. Forcefulness.
287
Recebido em 11 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
A família pertence à sociedade e o Estado regula essa última. Com isso, o conceito de
família está acompanhado do conceito patrimonial que, ainda hoje, mesmo depois do Estado
social estabelecido com a Constituição Federal de 1988 - a qual preleciona que todos são iguais,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
tendo em vista uma ordem que visa à liberdade equilibrada -, contém resquícios do liberalismo.
Metade do Código Civil que versa sobre direito de família apresenta texto normativo
relativo ao patrimônio. No Estado liberal, a família possuía um viés econômico, consideran-
do os direitos sucessórios do patrimônio. Observa-se a influência desse período nos deveres
* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 7º período. Estagiária da Advocacia Geral da União
(PU/RN). Editora-geral da Revista Pesquisas Jurídicas. Integrante da Base de Pesquisa Direito, Estado e Sociedade. Bolsista do Projeto de
Pesquisa Sistemas Alternativos de Resolução de Conflitos. Integrante do Projeto de Pesquisa Práticas Abusivas e Defesa do Consumidor.
Membro da Simulação de Organizações Internacionais (SOI).
288
impostos pelo Estado quando do matrimônio, determinando exatamente como a pessoa deve
agir na família e como sair dela.
Por outro lado, o Estado social trouxe a proteção estatal para o âmbito familiar, princi-
palmente dos hipossuficientes na família, haja vista o art. 226 da Constituição Federal de 1988
determinar que “a família terá a proteção do Estado”. Além disso, tal dispositivo traz a concep-
ção de família plural que é uma cláusula aberta, de inclusão.
Tendo em vista a instrumentalização da família, que outrora fora instituição, para fins
de proteção, o Estado trouxe a sua repersonalização. Nesse sentido, a afetividade apresenta-se
como valor jurídico, visto que, hoje, a família não visa a patrimonialidade, mas, sim, a felicida-
de e a solidariedade. Daí decorre a ampliação do conceito de família, que resulta nas famílias
plurais.
Desse modo, há diversas formas de constituição da ligação de um ser humano a outro
a partir do reconhecimento da paternidade ou da sua maternidade. Em face disso, este estudo
inicia-se abordando os três critérios harmônicos, porém, não cumulativos, adotados pelo Códi-
go Civil de 2002 para o reconhecimento da paternidade.
Em seguida, busca-se apresentar a influência da Lei Maior na interpretação sistemática
do Código Civil, destacando os entendimentos doutrinários acerca do novo conceito de família
e dos princípios que corroboram com a implantação da multiparentalidade no ordenamento
jurídico brasileiro.
Fixadas as bases sobre as quais estará fundado o estudo, este artigo se encaminhará
para o cerne da discussão à qual se propõe, qual seja: o ser humano constitui-se dos seus laços
afetivos, genéticos e biológicos, não fazendo jus à noção de justiça um destes critérios sobrepu-
jar-se ao outro em se tratando das relações de filiação.
Por fim, realizar-se-á uma breve análise da decisão proferida na Apelação Cível nº
0006422-26.2011.8.26.0286-SP, à luz da teoria tridimensional do direito de família. Diante disso, o
presente trabalho visa demonstrar, por meio de colações doutrinárias e jurisprudenciais, que o orde-
namento jurídico fornece todos os requisitos para a adoção da multiparentalidade, desde a mudança
de paradigma quanto à concepção de família ao tratamento prioritário no Estado Social e Democrá-
tico de Direito destinado às crianças e adolescentes, limitando-se, no entanto, aos efeitos jurídicos (e
patrimoniais) decorrentes de tal medida.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 Enunciado 129 – I jornada de Direito Civil. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 30
out. 2014. p. 21.
289
guéis” e a troca de bebês na maternidade por engano do hospital, os quais permitem a proposi-
ção de ação negatória de maternidade quando provado “a falsidade do termo (do nascimento do
filho), ou das declarações nele contidas” (art. 1608, Código Civil).
Por outro lado, no que tange o reconhecimento da paternidade, o Código Civil de 2002
adotou um tríplice critério determinante para a filiação: presunção legal (art. 1.595), biológica e
socioafetiva (art. 1.593). Os três critérios são harmônicos e independentes, restando a cargo do
juiz fixar no caso concreto a paternidade de acordo com o critério que se sobrepujar. Uma coisa,
portanto, é certa: um critério exclui o outro.
Dessa forma, é eminente no ordenamento jurídico brasileiro os litígios nos casos de
reconhecimento de paternidade de filho já registrado em nome de outrem, uma vez que tornou-
-se comum nas famílias plurais hodiernas o reconhecimento voluntário de filhos pelo caráter
socioafetivo, seja nos casos de adoção à brasileira2 (conduta ilegal), seja nas situações em que o
padrasto almeja reconhecer o filho da sua esposa já registrado no nome do pai biológico (con-
duta atípica).
Nesse ínterim, há uma tese mais recente que traz a pluripaternidade ou multipater-
nidade, também chamada de teoria tridimensional do Direito de Família – assunto que será
detalhadamente abordado mais adiante no trabalho –, que trata da possibilidade de fixação da
paternidade ou maternidade utilizando mais de um critério, simultaneamente. Assim, uma pes-
soa pode ter até três pais: um biológico, um socioafetivo e um pai ontológico; tal como ocorre
na vida real.
O critério presuntivo, elucidado no art. 1.597, do Código Civil, está amparado na velha
máxima latina mater semper certa est et pater is est quem nuptiae demonstrant (a maternidade
é sempre certa, a paternidade é presunção que decorre da situação de casados).
Na letra fria do artigo supra, este critério é exclusivo do casamento, sendo, inclusive,
inaplicável à união estável. Todavia, é razoável sustentar a presunção de paternidade na união
estável devido ao seu caráter constitucional de entidade familiar3.
Dessarte, o Código Civil não apenas prestigiou a presunção de paternidade pelo ca-
samento, mas a ampliou: ela incide tanto na concepção biológica (sexual) como na artificial
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
2 “Reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de ado-
ção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra o menor como seu filho, sem as cautelas judiciais impostas
pelo estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses da criança”. STJ. REsp. 833.712-RS. Terceira Turma. Rel.
Min. Nancy Andrighi. j. 16.05.2007. DJU 04.06.2007.
3 STJ. REsp 1.194.059/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Massami Uyeda. j. 06.11.2012. DJE 14.11.2012.
4 Se subdivide em fertilização in vitro e inseminação artificial. Na primeira o embrião é concebido no laboratório e, na segunda, o mé-
dico trabalha apenas com o sêmen. Ambas podem ser, porém, homólogas (material genético do casal) ou heterólogas (material genético de
terceiro).
290
to) de outrora (TARTUCE, 2014).
Entretanto, o estado de certeza decorrente de mera presunção da paternidade leva ao
estabelecimento de prazos para aquém e para além da constância do casamento. A presunção
(sempre relativa) na fertilização sexual tem início 180 dias após o matrimônio e término 300
dias depois da sua dissolução (DIAS, 2013).
Também os filhos frutos de fertilização homóloga, mesmo que falecido o marido, ou
mesmo que se trate de embrião excedentário, ou seja, os remanescentes que ficam guardados
pelo prazo de 03 anos, conforme estabelece o art. 5º, da Lei nº 11.105/05; e de fertilização hete-
róloga, com prévia autorização do marido (funciona como reconhecimento prévio de filho e de
forma absoluta5), gozam da condição de filho por ficção legal.
Merece destaque a hipótese que versa sobre fertilização de marido falecido. A grande
discussão gira em torno do direito hereditário dos filhos nascidos nessas circunstâncias, pois
o art. 1.798, do Código Civil, possui uma redação genérica ao afirmar que terão legitimidade
sucessória as pessoas nascidas e concebidas.
Segundo Flávio Tartuce (2014), o referido artigo diz respeito apenas à concepção ute-
rina, de modo que o embrião de laboratório seria filho, mas não seria herdeiro. Obviamente, tal
posição não poderia prosperar, haja vista o princípio constitucional de igualdade entre os filhos,
disposto no art. 226, § 6º, da Lei Maior, sendo majoritariamente reconhecido que o embrião
laboratorial (resultado da fertilização in vitro) será herdeiro.
Se a paternidade não for definida pelo critério presuntivo (os pais não forem casados,
por exemplo), o juiz utilizará o critério biológico, ou o socioafetivo. O critério biológico é a de-
terminação da filiação a partir do exame de DNA.
Distingue-se, assim, do parentesco “civil”, em que não se verifica tal transmissão. O
filho biológico tem com o pai um vínculo de parentesco natural, ao passo que o adotivo e o gera-
do por fecundação assistida heteróloga (feita com espermatozoide fornecido por outro homem)
vincula-se ao pai por parentesco civil, no entanto, na prática não há distinção alguma, uma vez
que a Constituição Federal de 1988 preleciona a igualdade entre os filhos (COELHO, 2012, p.
26).
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Em razão dos arts. 231 e 232, do Código Civil, o exame de DNA não é obrigatório,
contudo, nos termos do art. 2º-A, da Lei nº 8.560/92 que consubstanciou a súmula 301 do STJ6,
a sua recusa faz presumir relativamente a paternidade. Salienta-se que a recusa e a consequente
presunção de paternidade não serão sanadas pelo arrependimento posterior, já que constituiria
5 Trata-se do único caso de presunção absoluta de paternidade. O enunciado 111 da I Jornada de Direito Civil consagra que o filho
nascido por força de fertilização heteróloga não pode ajuizar ação de investigação de origem genética. Por fim, a doutrina vem admitindo
a possibilidade de fertilização heteróloga para casais homoafetivos. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.
pdf>. Acesso em: 30 out. 2014. p. 16.
6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 301. Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA
induz presunção juris tantum de paternidade.
291
uma venire contra factum proprium (vedação do comportamento contraditório). Essa presunção,
porém, não pode ser aplicada em outras ações que não seja a ação investigatória de paternidade.
No Brasil, segundo previsão legal do art. 3º, da Lei nº 1.060/50, o exame de DNA é
gratuito para as pessoas beneficiárias da gratuidade judiciária. Todavia, em alguns estados da
federação há uma obstacularização quanto à ausência do pagamento, muito embora esta obri-
gação esteja compelida por lei. Nesses casos, o STJ entende que o juiz decidirá através de prova
testemunhal, já que não houve recusa por parte do réu e não houve a realização do exame:
Com esse fato, houve um desatrelamento entre os conceitos de pai e genitor, de modo
que podem ser pessoas distintas. Nesse sentido, é possível prospectar uma ação de investigação
de paternidade socioafetiva em que não é preciso sequer que o afeto esteja presente no momento
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
da ação, bastando que ele tenha sido a causa determinante da relação, como no caso de adoção
à brasileira, na qual, no momento do divórcio, o pai negue a paternidade do filho.
Os efeitos jurídicos familiares e sucessórios (patrimoniais e pessoais) são fixados, au-
tomaticamente, quando caracterizada a filiação socioafetiva. Se houve paternidade socioafetiva,
o pai deve pagar alimentos, conforme determina o Enunciado 341 da IV Jornada de Direito
Civil: “Para os fins do art. 1.696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação
7 STJ . REsp 557.365-RO. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 07.04.2005. DJU 03.10.2005.
8 STJ. REsp. 878.941-DF. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi.. j. 21.08.2007. DJU 17.9.2007.
292
alimentar” 9.
Ademais, quando estabelecida filiação pelo critério socioafetivo, o filho tem direito
de saber a sua origem biológica. A jurisprudência10 já vinha admitindo essa possibilidade e o
art. 48, do ECA, sacramentou. Ela se dá por meio da ação de investigação de origem genética/
ancestralidade que está fundada na personalidade e não na relação de família, sendo, portanto,
personalíssima, e só podendo ser proposta pelo filho quando este estiver em plena capacidade.
Em suma, a ação investigatória de ascendência genética é a pretensão de obter a afir-
mação da origem genética, sem qualquer efeito sucessório ou familiar (sempre estará fundada
no elo biológico). Inclusive, se o réu se recusar ao exame de DNA, a consequência será a extin-
ção do processo sem resolução de mérito por perda superveniente do interesse de agir. Se ele
realizar o exame e der positivo, será decretada a procedência do pedido para declarar que ele é
genitor, e não pai.
Historicamente, o reconhecimento dos filhos, assunto disposto nos arts. 1.607 a 1.617,
do Código Civil é visto sob a máxima de que os filhos havidos fora do seio familiar tradicional,
isto é, do casamento, não têm os mesmos direitos dos legítimos.
Isto se deve ao fato das legislações civis brasileiras terem sido influenciadas pelo di-
reito da França. A partir do primeiro Código Civil francês, a dimensão do chefe de família se
expandiu em detrimento dos direitos inerentes a pessoa do filho, uma vez que a investigação de
paternidade era proibida, tanto que o seu precursor, Napoleão Bonaparte, proferiu a frase céle-
bre: “a sociedade não tem interesse em que os bastardos sejam reconhecidos”11.
Com essa frase é possível detectar um histórico de discriminação e certa relação entre
filiação e casamento, de modo que a família constituída pelo casamento era a única a merecer
reconhecimento e proteção estatal, denominada de família legítima por um longo período, tra-
zendo para o conceito de filiação uma concepção à luz do casamento (DIAS, 2013).
Depois disso, passou-se a ter uma visão biológica da filiação: constituía-se o vínculo
entre uma pessoa e aquelas que lhe deram origem. Todavia, esta visão não pôde se manter por
muito tempo, visto que ela passou a sofrer influências da Constituição Federal de 1988, a qual
reconheceu a igualdade entre os filhos, da biotecnologia e das novas formas de arranjos fami-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
liares.
Nesse sentido, hodiernamente, o conceito de parentesco e de filiação está situado mui-
to mais no campo da cultura do que na biologia (LÉVI-STRAUSS, 1982), o que possibilitou,
inclusive, a adoção homoafetiva sob o argumento de que:
9 IV Jornada de Direito Civil. Disponível em: < http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IVJornada.pdf>. Acesso em: 30 out. 2014, p. 12.
10 STJ. REsp 833.712-RS. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 17.05.2007. DJU 04.06.2007.
11 SILVA, André Ribeiro Molhano; et al. Evolução histórica da paternidade no mundo. Disponível em: < http://www.domtotal.com/
direito/pagina/detalhe/29385/evolucao-historica-da-paternidade-no-mundo>. Acesso em: 30 out. 2014.
293
Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da informação, sem fronteiras
ou barreiras, sobretudo as culturais e as relativas aos costumes, onde a sociedade
transforma-se velozmente, a interpretação da lei deve levar em conta, sempre que
possível, os postulados maiores do direito universal12
Com efeito, o conceito de família vem sofrendo mutações na medida em que este
instituto vai se modelando a partir das diferentes necessidades sociais. Tais mudanças fizeram
com que o seu conceito fosse visto mais como um fenômeno cultural e não biológico (LÉVI-S-
TRAUSS, 1986).
Em se tratando dos tempos atuais, “a mais significativa mudança por que passou a
família neste século foi a valorização do elemento afetivo nas relações familiares” (CANOTI-
LHO, 2013, p. 12.199). Dessa maneira, ocorreu uma mudança de paradigma em que a família
passou a ter uma visão instrumental, visando a proteção das pessoas e não o seu núcleo, valo-
rizando, pois, a vontade do ser humano (ampliação da importância da autonomia privada) em
prol da mitigação da intervenção estatal na família.
Em outras palavras, a família agora é instrumental, porque ela não almeja um fim em
si mesma, ou seja, ela existe para proteger as pessoas que a compõem, fugindo da concepção
tradicional cujo fim remetia ao casamento, sexo e patrimônio. Daí os dizeres de Paulo Lôbo
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
(2011, p. 37):
12 STJ, REsp 889.852-RS. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. j. 27.04.2010. DJE 10.08.2010.
294
Busca-se, então, a felicidade e a realização pessoal de cada um dos componentes fa-
miliares que estão ligados por vínculos afetivos e por sua própria manifestação de vontade,
impulsionando uma verdadeira (re)personalização do direito de família, isto é, a volta da prote-
ção da pessoa, de modo que os princípios gerais do Código Civil de 2002 colaboram com essa
proteção.
Assim sendo, a família, hoje, enquanto base de uma sociedade que se propõe a cons-
tituir um Estado Democrático de Direito calcado no princípio da dignidade da pessoa humana,
tem a função de permitir, em uma visão filosófica-eudemonista, a cada um dos seus membros, a
realização dos seus projetos pessoais de vida (GACLIANO; PAMPLONA FILHO, 2012, p.57).
É no momento em que se reconhece a família em nível constitucional que a sua função
social remonta-se à realização existencial do indivíduo (GACLIANO; PAMPLONA FILHO,
2012, p.57-58).
Nesse contexto, surge o direito de família mínimo que nada mais é a intervenção mí-
nima do Estado na família. Dessa forma, o Estado só intervém na relação familiar para garantir
direitos fundamentais, tais quais: dignidade da pessoa humana, afetividade e solidariedade. É o
que dispõe Canotilho (2013, p. 12.199):
unido por eles, constituindo seu único mundo, a família, base da sociedade, sempre foi “(des)
cuidada” tão somente pelo prisma da normatização do mundo biológico.
Deveras, a normatização do direito de família recolhe apenas uma amostra do conceito
de família, qual seja, o biológico, visto que decorre desse preceito a fixação do parentesco, do
direito de herança, da filiação, o poder de família, da guarda, das visitas, enfim, de todos os
direitos do ser humano, e não somente os de família (JULIANI, 2013, p. 30).
No que tange à afetividade, Welter (2012, p. 130) ressalta que:
295
O ser humano deve derrubar esse teto preconceituoso que o encobre (de que na
família há apenas afeto), para que possa obter uma paisagem e uma passagem à
compreensão do ser humano como humano, que, às vezes, está afetivo, mas, outras
vezes, desafetivo.
13 RODRIGUES, Renata de Lima. Multiparentalidade e a nova decisão do STF sobre a prevalência da verdade socioafetiva sobre a
verdade biológica na filiação. Disponível em: <http://www.ibijus.com/blog/12-multiparentalidade-e-a-nova-decisao-do-stf-sobre-a-preva-
lencia-da-verdade-socioafetiva-sobre-a-verdade-biologica-na-filiacao> . Acesso em: 30 out. 2014.
296
permitiu que a filha tivesse o nome da mãe que morreu no parto e o da sua madrasta, possuindo,
portanto, duas mães, conforme decisão proferida na Apelação Cível nº 64222620118260286-SP,
ementada da seguinte forma:
No caso em apreço, a mãe biológica foi vítima de um acidente vascular cerebral, vindo a
falecer três dias após o parto. Posteriormente, o pai biológico conheceu a autora desta ação decla-
ratória de maternidade socioafetiva, que passou a cuidar da criança como se filho dela fosse. Em
meio às circunstâncias, o Relator Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, suscitou que não haveria
qualquer tipo de reprovação social em se declarar legalmente a maternidade socioafetiva conco-
mitantemente com a biológica15.
Ademais, por entender que o artigo 1593 do Código Civil estipula que a filiação não
decorre unicamente do parentesco consanguíneo, que “a formação da família moderna não-con-
sanguínea tem sua base na afetividade, haja vista o reconhecimento da união estável como entidade
familiar (art. 226, § 3º, CF), e a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (art.
227, § 6º, CF).”; além de considerar a equiparação da multiparentalidade à dupla adoção, tendo em
vista a decisão em que o próprio STJ reconheceu a adoção por duas mulheres, diante da existência
de “fortes vínculos afetivos”, o relator da Apelação deu provimento ao recurso e declarou reconheci-
da a maternidade socioafetiva da recorrente16.
A partir do caso em comento, vislumbra-se a consagração dos princípios da dignidade
humana e da afetividade, afastando-se a preocupação inicial com a proteção ao patrimônio,
voltando-se à proteção das pessoas e, por consequência, passando a prevalecer, no âmbito
jurídico, o trinômio amor, afeto e atenção17.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
14 TJ-SP. APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286. Primeira Câmara de Direito Privado. Rel. Alcides Leopoldo e Silva
Júnior. j. 14.08.2012. DO. 14.08.2012.
15 PIOLI, Roberta Raphaelli. Multiparentalidade: é possível ter dois pais ou duas mães no registro civil. Disponível em: < http://dp-am.
jusbrasil.com.br/noticias/100300099/multiparentalidade>. Acesso em: 10 nov. 2014.
16 Atualidades do direito. TJSP reconhece dupla maternidade. Disponível em: < http://atualidadesdodireito.com.br/blog/2012/08/17/
tjsp-reconhece-dupla-maternidade/>. Acesso em: 10 nov. 2014.
17 ZAMATARO, Yves. O reconhecimento da multiparentalidade no direito brasileiro. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/
dePeso/16,MI185307,21048O+reconhecimento+da+multiparentalidade+no+Direito+brasileiro>. Acesso em: 12 nov. 2014.
297
Distante de esgotar a questão, este trabalho buscou analisar a possibilidade de reco-
nhecimento de mais de um pai ou mãe no registro civil, com a produção de todos os seus efeitos
jurídicos, à luz da recente constitucionalização do direito civil, por meio do fenômeno denomi-
nado de instrumentalização da família, no qual importa cada membro cumprir o seu papel no
âmbito familiar.
Por essa ótica, chega-se à conclusão de que a multiparentalidade configura-se como
um instrumento encontrado pelo Estado-Juiz capaz de tutelar todos os laços inerentes ao mun-
do do ser humano, a saber: socioafetivo, biológico e ontológico. Apresentando-se, pois, a teoria
da tridimensionalidade do direito de família como uma solução justa sob a égide dos preceitos
constitucionais.
Tanto é assim que as decisões dos tribunais, aos poucos, vêm se posicionando no senti-
do de reconhecer a multiparentalidade. Ser contrário a isto seria admitir que os efeitos jurídicos
e patrimoniais de tal medida prevalecem sob a proteção do interesse do menor. E pior, seria
menosprezar as situações corriqueiras, deixando-as desamparadas da tutela jurídica.
Desta feita, resta clarividente que a aplicação da teoria da tridimensionalidade do di-
reito de família no âmbito da filiação, por meio do reconhecimento da multiparentalidade e da
coexistência da paternidade socioafetiva com a paternidade biológica representa um avanço
significativo no Direito de Família e alcança o senso de justiça almejado pelo Estado Social e
Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito civil: família e sucessões. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. vol. 6.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
GACLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil:
direito de família – as famílias em perspectiva constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
vol. 6.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. 9. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. vol. 6.
298
e da afetividade. Trabalho de conclusão apresentado ao Curso de Graduação em Direito da
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, fev., 2013. Disponível em: < https://
repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/104296/TCC_Maihara_Gimena_Juliani.
pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 30 out. 2014.
TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo:
Método, 2014. vol. 5.
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Recebido em 5 mar. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
tico. Tal afirmação é atestada pela simples observação da conjuntura político-social que nos
cerca, na qual – visivelmente – o papel da Justiça é tema central, preenchendo cotidianamente
os debates dentro e fora das academias.
Nessa conjuntura, deposita-se, nas chamadas “democracias modernas”, grande espe-
rança, respeito e confiança no papel do magistrado como representante fidedigno do Poder
300
Judiciário, fato que culmina em verdadeiro crescimento do seu papel político-social. Ademais,
atribui-se ao Poder Judiciário um estigma heroico, do qual duas básicas problemáticas são ex-
traídas: i) seus limites ii) sua legitimação.
No presente escrito pretende-se perquirir algumas das nuances que versam sobre os
limites de atuação do Poder Judiciário em confronto com o seu papel de destaque na constru-
ção, concretização e efetivação do Estado Democrático de Direito. Além disso, cumpre destacar
alguns argumentos da (in)existência de legitimidade democrática quando da prática daquilo que
se alcunhou de “ativismo judicial”.
Inicialmente, far-se-á uma análise genérica acerca do surgimento do Estado de Direi-
to, afinal, como será demostrado, é a partir dessa construção política que o papel do Judiciário
passa a merecer acuidade na análise. Posteriormente, baseando-se na construção teórica de
Locke e Montesquieu, situar-se-á o Poder Judiciário quando do início do Estado de Direito.
Dessa forma, tal divagação histórica culmina na análise atual do Judiciário sob a ótica do Es-
tado Constitucional e o consequente enfrentamento das problemáticas acerca da legitimação e
limites do “ativismo judicial”.
Desde que organizada socialmente, sempre consistiu uma inquietude humana a inda-
gação: “é melhor o governo das leis ou o governo dos homens?” (BOBBIO, 2007, p. 95-96).
Nessa perspectiva, máximas como the king can do no wrong (o rei não pode errar),
quod principi placuit leges habet vigorem (o que agrada ao príncipe tem vigor de lei), princeps
a legibus solutus (o príncipe está livre da lei) demonstram que a resposta da questão que inau-
gura o presente tópico, historicamente, consistiu na primazia do “governo dos homens”, em
quase absoluto desrespeito às leis. O monarca encarnava a soberania, não lhe sendo ninguém
superior, “seja por sua alegada origem divina, seja por sua qualidade régia e soberana” (FER-
NANDES, 2010, p. 233-252).
É nesse contexto de demasiada opressão política – no qual a segurança jurídica ine-
xistia, como consequência da concentração de todo poder pelo Estado – que os pensadores
da modernidade estavam inseridos, fato que desembocou numa produção teórica cuja diretriz
mostrava-se voltada à formulação e defesa de formas de governo que impedissem o despotismo.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Nesse sentido, a insegurança promovida por esse tipo de governo arbitrário fez com
que os pensadores da época reformulassem a resposta para a pergunta retromencionada. É a
partir de então que a opção do governo das leis materializou-se, fundamentada nos escritos,
dentre outros, de Locke e Montesquieu.
Assim, com a ascensão das correntes filosóficas que inaugurariam o iluminismo, co-
meça-se a notar a busca racional pela legitimação e pelo exercício do poder. Notadamente, a
partir do século XVIII, as consequências desse racionalismo político já se erigem, inclusive, no
plano jurídico, com a formação das primeiras Constituições escritas no sentido moderno do ter-
301
mo, especialmente nas colônias inglesas na América (SARLET, MARINONI e MITIDIERO,
2012, p. 39).
E, com o surgimento dos Estados Modernos, a figura do monarca todo poderoso dei-
xou de existir, uma vez que essa forma de governo já não mais agradava à burguesia liberal, a
qual impulsionou a criação do modelo institucional com os poderes tripartidos e regidos pelas
normas constitucionais (SARLET, MARINONI e MITIDIERO, 2012, p.47).
Em que pese desde Platão e Aristóteles ser possível encontrar claras manifestações de
adesão ao império legal, é na tradição jurídica inglesa de subordinação à lei que se encontra
a materialização da gênese do Estado de Direito, tal concepção conduz à doutrina do “rule of
Law”, ou governos das leis, consistente na mais pura representação em sentido estrito do Esta-
do de Direito, isto é, o “Estado cujos poderes são exercidos no âmbito de leis preestabelecidas”
(BOBBIO, 2007, p. 96). Acerca desse fenômeno, com primazia atentam Sarlet, Marinoni e Mi-
tidiero (2012, p. 39):
sua mais elementar característica; ii) a divisão dos poderes, técnica voltada, precipuamente, a
extirpar chances de concentração demasiada de poder; e iii) o enunciado e garantia dos direitos
individuais, cujo exemplo latente é o Habeas Corpus Act de 1679.
Como consequência dessa primazia legal, além da garantia daquilo que a lei entoava
enquanto veículo de imperatividade da vontade social, mister seria a institucionalização da
estrutura que assegura tais premissas. Nesse diapasão, o Judiciário sobressai como Poder a ser
analisado para – assim – entender-se o fenômeno jurídico.
302
3 O JUDICIÁRIO NA MODERNIDADE
O perfil do Judiciário na modernidade deve ser entendido de forma reflexa. Isso sig-
nifica que, para se compreender a forma em que o Poder Judiciário se apresenta no referido
contexto histórico, faz-se necessário entender o Poder Legislativo, a dimensão e importância
conferidas à função legiferante.
A princípio, após a queda do sistema monarquista e consolidação do pensamento re-
publicano dos iluministas, sobre a atuação do Poder Judiciário, defendia-se que a possível dis-
cricionariedade do magistrado era sinônimo de tirania, estabelecendo-se, portanto, uma relação
entre liberdade frente à lei como causa e consequência do rejeitado despotismo. Nota-se tal en-
tendimento na passagem de Montesquieu (2000, p. 38) ao afirmar que: “nos Estados despóticos,
não há lei: o juiz é ele mesmo sua própria regra”.
Com esse viés interpretativo dos Poderes, inaugura-se a ideia de um Poder Judiciário,
que – frente ao caráter absoluto que a lei assume – passa a adotar a garantia de imparcialidade
e a extirpação da discricionariedade. Para um aprofundamento de tais aspectos, pontuar-se-ão,
doravante, as principais concepções de John Locke e Montesquieu com o escopo de expor a
construção teórica que em muito influenciou a criação de um dogma sobre a imparcialidade do
juiz.
Nesse cenário, John Locke é considerado por escritores proeminentes da literatura
especializada1 como o primeiro autor moderno que se debruçou no “desenho institucional do
Estado”. Para o pensador inglês (LOCKE, 2001, p. 37), deveria haver: um Poder Supremo, que
é o Legislativo, cuja função é a de constituir leis; o Poder Executivo, destinado a executar aquilo
pensado pelo Legislativo e formalizado em leis; e o Poder Federativo, cuja função voltava-se
para as relações internacionais (guerra e paz, alianças, tratados). Nota-se que, pela teoria loc-
keana, o Legislativo é o poder responsável por assegurar aos homens o desfrute de sua liberdade
(vista como usufruto da propriedade e de sua vida), objetivo este que os leva a abandonar o
Estado de natureza.
Apesar de, na leitura de seus escritos não se encontrar referência direta ao Poder Ju-
diciário, Locke (2001, p. 69) fornece-nos algumas ideias no que tange a sua concepção do sis-
tema judicial. Primeiramente, o mencionado pensador atribui à “inexistência de um árbitro
imparcial” como uma das causas de insegurança e violência no estado pré-político (Estado de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
natureza). Essa assertiva deixa claro que – na concepção lockeana – a resolução dos conflitos
insurgidos na sociedade civil deve se dar mediante a atuação de um árbitro imparcial, sob pena
de cometer-se o erro do Estado de natureza, qual seja, a existência de parcialidade quando dos
julgamentos. Extrai-se daí a busca pelo magistrado politicamente inerte e tolhido de discricio-
nariedade.
Nesse sentido, elucidativa e incontroversa é a passagem da obra de John Locke ao
1 Norberto Bobbio (2007) considera a teoria política lockeana desenvolvida no segundo tratado a primeira e a mais completa formulação
do estado liberal.
303
afirmar que a igualdade só é alcançada “por juízes imparciais e íntegros, que irão decidir as
controvérsias conforme estas leis” (LOCKE, 2001, p.70). Nessa visão clássica, o Judiciário con-
trapõe-se ao Poder Legislativo. Enquanto este é criativo e proativo, aquele é passivo e inerte.
Resta ao juiz, em resumo, dizer o direito existente com vistas à solução do caso concreto. O
temor de Locke é evidente: a lei é a medida que divide a legítima atuação da autoridade e o tão
temido despotismo.
O outro pensador que deve ser lembrado é Charles-Louis de Secondat, ou – como de
conhecimento geral – Barão de Montesquieu. A doutrina de Montesquieu parte da premissa de
que o homem tem natural propensão para abusar do poder quando nele se encontra investido.
Sua concepção afirma ser a concentração do poder um fator determinante para a instalação do
governo despótico, ao passo que sua fragmentariedade, exercido por diversos atores, torna im-
provável a tirania, equilibrando a sociedade e tornando-a livre. “Tudo estaria perdido”, afirma o
pensador referindo-se ao despotismo, “se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais,
ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes” (2000, p. 75).
Essa concepção que o pensador francês ora em tela detinha do Legislativo sofreu ma-
ciça influência de John Locke. Montesquieu (2000) na sua obra, “O espírito das Leis”, ainda que
considere o Legislativo a expressão da vontade popular, reconhece, que assim como os outros
Poderes, deve ser controlado.
Sobre o Judiciário, Montesquieu (2000, p. 78) foi direto: “os juízes da nação são ape-
nas a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados (...)”. Nota-se, novamente, o
repúdio à atividade criativa do magistrado que é mero componente de um Poder “politicamente
nulo”. À guisa de ilustração, vale a menção à obra de Cesare Beccaria (2011, p. 29-30), que –
contemporâneo de Montesquieu, compartilhava dessa desconfiança dos juízes:
O juiz deve fazer um silogismo perfeito. A premissa maior deve ser a lei geral; a
menor, a ação conforme ou não a lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Se o juiz
for constrangido a fazer um raciocínio a mais, ou se o fizer por conta própria, tudo
se torna incerto e obscuro. (...) Nada mais perigoso que o axioma comum, de que é
preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal máxima é romper todos os diques e
abandonar as leis à torrente das opiniões.
por Montesquieu não se erige uma igualdade ou paridade entre eles. Há, tão somente, uma or-
ganização de funções. Embora esse entendimento seja contestado por parcela dos estudiosos,
parece claro, ao afirmar que a expressão política do Judiciário é nula e a ele cumpre apenas apli-
cação estéril da lei, a intenção de Montesquieu em retirar os juízes do panorama político, como
bem sintetiza Ferraz Júnior (2007, p. 15): “ao sublinhar a subsunção como método de aplicação
do direito, neutraliza-se para o juiz o jogo de interesses concretos na formação do direito (se
esses interesses serão atendidos ou decepcionados não é problema do juiz, que apenas aplica a
lei)”.
304
Em síntese, enquanto Locke defende de forma suprema o Legislativo, Montesquieu,
temendo que esse Poder possa se sobrepor ao Executivo (e tão somente ao Executivo, pois, ao
afirmar ser nulo o Judiciário – reitere-se – o pensador desconsidera seu papel político) defende
que este último tenha poder de veto sobre a legislatura, sempre que isso for necessário, o que
permite uma negociação constante entre os dois Poderes.
Nota-se, portanto, que o Poder Judiciário na Modernidade (SOUSA, 1995, p. 9-10) tem
caráter reativo (devendo, sempre, agir somente quando provocado); caráter casuístico (atuando
no plano concreto, específico e individualista); presta veneração absoluta à segurança jurídica
(com extrema observância aos formalismos processuais e total sujeição à coisa julgada). Essas
características, não poderia ser diferente, tornaram politicamente estéreis os tribunais, reduzin-
do (ou mesmo anulando) o peso político do Judiciário frente aos demais Poderes.
têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os
órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências, que visam
ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio
necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio
e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.
Ademais, o início da mutação nos ensinamentos dos estudiosos franceses quanto à or-
ganização dos Poderes do Estado se deu a partir das críticas dos pensadores norte-americanos
federalistas. Segundo Limonge, analisando os textos dos artigos de “O federalista” (LIMON-
305
GE, 2000, p. 243-286), para James Madison e Alexander Hamilton, era inegável que o Poder Le-
gislativo possuía uma preponderância nessa forma de divisão e, mais clara ainda, era a posição
inferior do Judiciário que não detinha instrumentos para, de fato, controlar eventuais abusos
dos Legislativo e Executivo.
Sendo assim, destaca o supracitado autor (2000, p. 249-250), parafraseando Madison
em “Federalista nº.48”, “não se nega que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa ser
eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados”. A limitação
do Poder na forma desejada só pode ser obtida pela contraposição equânime de um pelo outro,
no qual um apresenta reais capacidades de frear os demais.
Para tanto, a concretização dessa reformulação deveria ser inserida à Constituição de
forma que, paritariamente, fossem distribuídas atribuições aos Poderes, conferindo-lhes ins-
trumentos e prerrogativas capazes de impedir possíveis excessos alheios. E uma das inovações
propostas concederia ao antes atrofiado Judiciário foi a capacidade de, proativamente, limitar o
exercício dos outros Poderes com base no texto constitucional.
A partir desse pensamento dos federalistas, o Judiciário recebeu, tendo em vista a sua
ausência de poder de iniciativa (presente nos demais), cuidados especiais para que sua partici-
pação no sistema de freios e contrapesos fosse garantida. É a conclusão que se chega da leitura
do “Federalista nº 78”, no qual, com ênfase, Hamilton atribui à Corte Suprema o poder de in-
terpretação final do texto constitucional (2000, p. 252).
Nesse mesmo diapasão, o mencionado vanguardista também inovou ao defen-
der a inamovibilidade dos juízes, bem como a já mencionada prerrogativa de controle de
constitucionalidade. Assim, a institucionalização do controle de constitucionalidade contribuiu
decisivamente para a politização do direito, ampliando a atuação do Judiciário que deixou de ser
um poder nulo e limitado à aplicação silogística da lei. A partir daí (HAMILTON; MADISON;
JAY, 1979, p. 164): “(...)os tribunais de justiça devem ser considerados como baluartes de uma
Constituição limitada contra as usurpações do poder do corpo legislativo”
Outros dois momentos merecem destaque para demonstrar como o Poder Judiciário
rompeu os dogmas positivistas e traçou sua caminhada para a situação atual. São, pois, os even-
tos históricos da Segunda Guerra Mundial e do Estado de bem estar social.
306
legitimar seus regimes totalitários. Observando tal fenômeno, o constitucionalista Rodrigo Pa-
dilha em seu “Curso de Direito Constitucional” (2014, p. 40) muito bem demonstra, o quanto
Hitler agiu legalmente na execução de suas atrocidades:
Portanto, a aplicação das regras sem uma interpretação crítica, parcial, moral e huma-
nista da situação fática foi instrumento responsável pela legitimação de diversas barbáries como
o extermínio das minorias pelos nazistas. A partir desse momento, ressurge a preocupação de se
evitar a repetição de atrocidades patrocinadas pelos próprios Estados. Novamente, é enaltecido
o papel da Constituição, entretanto, dessa vez é defendida sua aplicação mais concreta tornando
os direitos fundamentais nelas elencados balizadores da atividade estatal.
humana, introduzida pela institucionalização do Estado de bem estar social foi uma inovação
legislativa, que a princípio tratou sobre o direito do trabalho, saúde e segurança social. Com o
passar do tempo, o intervencionismo cresceu na esfera econômica, com o objetivo de eliminar
monopólios, “garantir” a livre concorrência, incentivar a agricultura e melhorar a infraestrutura
dos transportes. As medidas estatais chegaram, então, ao nível de assumirem responsabilidades
na criação de empregos, elaboração de planos de assistência social e financiamento de eventos
artísticos, obras públicas, etc.
Por outro lado, mesmo com a adoção do Estado de bem estar social em muitos países,
a concretização de todas as suas promessas, que foram constitucionalizadas (como aconteceu
307
no Brasil em 1988), não foi tão ampla.
Esse é, na verdade, um fenômeno que está bem longe de ser resolvido e, como grande
parte desses direitos estão previstos nas Constituições, o Judiciário passou a ser buscado pelos
cidadãos como meio de exigir do governo o que a constituição consagrou mas os demais Pode-
res não regulamentaram ou implementaram.
Assim, o pensamento anterior se coaduna com as conclusões dos estudos do sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos (2007, p.17). O Judiciário passou a assumir funções rela-
tivas à prestação social que deveriam ter sido espontaneamente executadas pela administração
pública, tanto é que, em países onde a questão social era efetivada, não aconteceram aumentos
das demandas no Judiciário.
Por esse motivo, a discussão que surge com esse novo papel da Justiça, acarretado pelo
Estado-providência, é até que ponto os juízes podem ser inovadores na interpretação das leis
de cunho garantista, uma vez que, em sua maioria, elas são “programáticas” (no sentido de que
determinam um fim mas não o meio, não no sentido de que elas são apenas planos políticos
ideais), com conceitos vagos e indeterminados, o que exige dos magistrado uma “interpretação
criativa”, nos termos do italiano Mauro Cappelletti (1993, p. 20-21), que, dependendo da sua
intensidade, pode ser equivalente a criação de uma lei.
5 ATIVISMO JUDICIAL
valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois
poderes.”.
Por isso, é importante ressaltar que a origem desse “fenômeno jurídico-político” intitu-
lado de ativismo judicial remonta à já analisada quebra do paradigma positivista e concomitante
intervenção estatal em prol do cidadão (Estado de bem estar social). Contudo, ao contrário do
que se extrai de uma visão imediatista do tema, a gênese do ativismo não está atrelada à con-
cretização, fundamentação e garantia de direitos fundamentais.
A proatividade do Judiciário ora em análise lançou suas bases iniciais no território
308
norte-americano. Nesse primeiro momento, o ativismo mostrou-se conservador, respaldando os
desejos das camadas reacionárias a partir da legitimação da segregação social e da invalidação
de medidas sociais (BARROSO, 2008, p. 7).
O ativismo judicial, destarte, consiste numa forma atuante de interpretar o texto cons-
titucional. É esse o entendimento de Ronald Doworkin (1999, p. 451-453), para quem o ativismo
tem umbilical relação com a concretização dos valores constitucionais. O referido jurista norte-
-americano pontua que a aplicação direta da constituição independentemente da manifestação
do legislador ordinário; a declaração de inconstitucionalidade com base em critérios menos
rígidos; e a imposição de condutas ao Poder Público são claros exemplos do ativismo.
Assim, essa forma ativa do Judiciário interpretar a Constituição, estabelecendo polí-
ticas públicas e garantindo a preponderância constitucional frente às ações (e principalmente
inações) dos outros Poderes, seria irrestritamente benéfica, não fosse o risco que o mau uso dela
representa ao Estado de Direito.
Por outro viés, o próprio Estado de Direito poderia ser afetado caso, mediante a auto-
-contenção judicial, diretrizes e garantias constitucionais restassem ignoradas e transgredidas
por ações ou abstenções dos outros Poderes, sendo sobre essas inquietudes acerca da legitimi-
dade e dos benefícios/malefícios do ativismo que o presente escrito debruçar-se-á doravante.
O ativismo judicial não pode ser considerado lugar comum no contexto de uma demo-
cracia representativa que funcione de forma eficaz. Assim, é sempre elencada a preocupação
de que ocorra uma potencializada “queda de braço” entre os Poderes, fato que – malgrado seja
constatado no contexto político atual – pode criar danos ao Estado Constitucional de Direito e
à sociedade.
De plano, a crítica se apresenta frente à “ultratividade” judiciária que gravita entorno
da tripartição do poder, alegando-se que o Judiciário ativista transpassa a sua esfera de atuação,
interferindo – ilegitimamente – nas atribuições, inclusive constitucionais, dos demais Poderes.
Para os adeptos dessa crítica – portanto – é extremamente perigoso permitir a intervenção
judiciária (ativismo judicial) na competência de outros poderes, havendo – hodiernamente –
verdadeira mácula ao Estado Constitucional de Direito disfarçada pelo discurso da “efetivação
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
dos direitos”. Para tal concepção crítica (a conhecida doutrina da “questão política”), conforme
atenta Costa (2010, p. 59), os juízes, sob o esteio de aplicar a Constituição, negam a ela própria.
Outro argumento contrário à atividade criativa dos juízes, em demasia, permeia o
ponto da legitimidade democrática para a tomada de decisões de políticas públicas. Essa con-
cepção considera que o fato de os magistrados não serem agentes públicos eleitos, não terem
sido – portanto – “batizados pelo voto popular” (BARROSO, 2008, p.18), deslegitimá-los-ia de
tomar decisões negando medidas políticas dos representantes escolhidos democraticamente, ou
impondo deveres a esses.
309
Tal tese se justificaria, pois, quando do proferimento de uma sentença de viés ativista,
restaria suprimida a vontade popular que é representada pelas decisões dos outros dois Poderes,
seja na atividade legislativa, seja na coordenação de políticas públicas. A essa falta de legitimi-
dade democrática para tais ações do Judiciário cunhou-se o termo “dificuldade contramajoritá-
ria” (BARROSO, 2012, p. 38).
Baseada na mesma ideia, surge outra condenação ao ativismo a qual alega que, com
sua ocorrência, o direito torna-se política. A vontade popular (representada pelos poderes elei-
tos) fica subjugada à ideologia respaldada pelo subjetivismo típico do ativismo judicial.
Nesse sentido, é precisa a crítica do professor Lenio Streck (2009)2:
Observa-se que o pensamento dos que criticam a atual situação ativista do Judiciário
ou é lastreado numa ideia antiga, menos fluida, que supervaloriza a tripartição dos Poderes,
semelhante ao defendido pelos iluministas. Ou é demasiadamente positivista e esquece que
qualquer interpretação, inevitavelmente, exige uma criação dos juízes.
arresto, existem três situações em que caberia a intervenção: a) quando a omissão ou a políti-
ca já implementada não oferecer condições mínimas de existência humana; b) se o pedido de
intervenção for razoável, e; c) do ponto de vista administrativo, a omissão ou a política seja
desarrazoada.
Concluiu o Ministro em seu voto que:
2 STRECK, Lenio Luiz. Ativismo judicial não é bom para a democracia. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entre-
vista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul>. Acesso em: 04 abril 2015.
3 STF. ADPF Nº45/DF. Rel. Min. Celso de Mello. j. 29.04.2004. DJU 04.05.2004. Notícia veiculada pelo Informativo/ STF nº 345/2004.
310
[...] implementar políticas públicas não está entre as atribuições do Supremo nem
do Poder Judiciário como um todo. Mas é possível atribuir essa incumbência aos
ministros, desembargadores e juízes quando o legislativo e o executivo deixam de
cumprir seus papeis, colocando em risco os direitos individuais e coletivos previstos
na constituição.
Por outro lado, um aspecto negativo do ativismo seria o fato de sua existência atestar
uma clara necessidade de uma reforma política com o objetivo de que os outros Poderes efeti-
vamente reaproximem-se da sociedade.
Além disso, poderia erigir um pensamento crítico ao ativismo afirmando que ele seria
contra a democracia, pelo fato de um Poder não político e sem representantes eleitos pelo povo
estar tomando decisões, regulando as escolhas dos próprios representantes dos cidadãos. Ocor-
re que, no exercício do ativismo, há sim um controle social, pois a Justiça é regida pelos prin-
cípios da publicidade e necessidade de fundamentação, ou seja, as sentenças de cunho ativista
passam por instrumentos de controle constitucionalmente definidos.
É por isso que a literatura processualista especializada (DIDIER, 2013, p. 321-322;
MARINONI; ARENHART, 2013, p. 407) afirma ser a motivação um dos requisitos essenciais
da sentença com função extraprocessual, uma vez que essa viabiliza o controle das decisões do
magistrado pela via difusa da democracia participativa, exercida pelo povo, afinal, é em nome
deste que a sentença é pronunciada.
Ainda, ao lado da motivação das decisões, a publicidade das mesmas figura como
outra fonte de legitimidade que proporciona o controle pelas partes e pela sociedade dos pro-
nunciamentos judiciais. Fenômeno esse intitulado por Ferrajoli (2002, p. 492) de garantia de
segundo grau ou garantia de garantia, isto é, a participação popular atua como mecanismo de
controle, cobrando a manutenção dos institutos jurídicos garantidores do Estado Democrático
de Direito.
Nesse sentido, a importância de tais requisitos do pronunciamento judicial é tamanha
que, como foi dito, o legislador constituinte sedimentou-os como direitos fundamentais os quais
devem ser respeitados sob pena de nulidade, o que se observa na intelecção do artigo 93, inciso
IX, da Constituição Federal de 1988.
Todavia, ao negarmos o atentado à democracia com base na publicidade e na necessá-
ria fundamentação das sentenças dos magistrados, já esperamos o inevitável contra argumento
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
que defende ser o problema do ativismo, ainda, o subjetivismo presente na fundamentação dos
juízes (STRECK, 2013. p. 62). Sendo assim, para responder a esse questionamento, é necessário
adentrar na etimologia de uma das condutas principais do juiz, a interpretação, e entender que
tal ato é indissociável de uma influencia subjetiva de quem a executa.
Segundo Cappelletti (1993, p. 22), por exemplo, interpretação “significa penetrar os
pensamentos, inspirações e linguagem de outras pessoas com vistas a compreendê-los e - no
caso do juiz, não menos que no do musicista, por exemplo - reproduzi-los, “aplicá-los” e “reali-
zá-los” em novo e diverso contexto, de tempo e lugar”.
311
A interpretação do juiz, entretanto, deve observar sempre as normas constitucionais,
considerando que o Direito posto é formado por um sistema no qual a Constituição Federal de
1988 encontra-se no topo da hierarquia de importância, não só com relação às suas regras como
também aos seus princípios.
Por estar nessa posição proeminente, a Constituição Federal de 1988, além de servir
como norma diretamente aplicável aos casos concretos, representa um conjunto de valores elei-
tos como fundamentais para a coesão social. Assim, pode-se dizer que a Constituição Federal
de 1988 exprime uma ética no sentido de agrupamento de valores voltados para o melhor rela-
cionamento em sociedade.
Por isso, é possível dizer que o juiz está fadado a mostrar seu subjetivismo em suas de-
cisões, mas, quando se utiliza de elementos abstratos na sua fundamentação, ele está vinculado
a uma ética/moral, todavia, não a uma ética/moral subjetiva, criada a partir de sua própria inter-
pretação do que seria moralmente aceito e melhor para a sociedade, mas à ética/moral extraída
da interpretação axiológica e sistemática da Constituição Federal de 1988.
Portanto, se existirem normas jurídicas em desconformidade com a moral, o parâme-
tro para aferir tal desconformidade deve ser os valores constitucionais, valores esses que tam-
bém devem ser aplicados para sanar tal desacordo.
Mostra-se, assim, inevitável e até positivo o subjetivismo limitado pela Constituição
Federal de 1988 quando esse é utilizado para afastar a frieza da regra e aplica a nova norma
formulada com base na interpretação constitucional do caso concreto.
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar dessas posições antagônicas, capazes de gerar acalorados debates com convin-
centes argumentos para ambos os lados, a experiência demonstra que, sempre que houver dois
radicalismos, é preciso construir um ponto de equilíbrio.
Assim sendo, o “meio termo” deve ser a permissão da atuação “ativista” do Judiciário
visando sanar uma política já implementada que não se mostrou suficiente na concretização de
direitos fundamentais ou uma omissão dos outros dois Poderes que esteja desrespeitando dire-
tamente garantias constitucionais.
Então, inserido no presente contexto jurídico neoconstitucional, o qual enaltece a apli-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
cação direta da Constituição e a irradiação dos seus princípios na interpretação das normas de
todo ordenamento, pode-se afirmar que é mais do que necessária a atuação da Justiça constitu-
cional interventora nas situações onde se identificam opções políticas omissivas ou insuficientes
para a proteção dos direitos dos cidadãos.
Todavia, isso não deve servir como justificativa para que toda escolha política tenha
que passar por um filtro de aprovação do Judiciário. Reafirma-se: devem os juízes agir estrita-
mente quando direitos constitucionais estiverem sendo ofendidos por políticas desarrazoadas
ou omissivas.
312
Nessa esteira teórica, não há como olvidar-se dos avanços trazidos pelo fenômeno do
ativismo judicial. A consciência de um Estado de Direito que consagra e efetiva a nova con-
cepção constitucionalista (e a consequente ampliação das conquistas sociais) é suficiente para
justificar a postura atual do Judiciário, que, por sua vez, não pode nem deve restar absolutamen-
te limitado por concepções vetustas da separação de Poderes, dentre outras críticas puramente
teóricas que desconsideram a realidade prática que preserva e oportuniza o exercício de direitos
e garantias fundamentais.
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ABSTRACT: This article aims to analyze the emergence, the historical evo-
lution, the reasons and the effects of the phenomenon, common not only in
Brazil but also abroad, called judicial activism. Therefore, studying the ori-
gins and the transformation of the State of Law, the influence of positivism
and the State’s tripartition, based on the teachings of Modern and contempo-
rary scholars. It is noticed that, currently, that phenomenon is the result of so-
cial demands unmet by the State to end up being pled to the Judiciary which,
in principle, should not intervene in the actions or omissions of the Legislative
and Executive.
Keywords: Judicial activism. State of law. Tripartition of powers. Social un-
met demand. Judiciary.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
315
Recebido em 09 set 2014.
Aceito em 30 abr. 2015.
1 INTRODUÇÃO
* Mestre em Filosofia da Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): Hermenêutica Filosófica. Especialista em Meto-
dologia do Ensino Superior pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e em Penal e Processo Penal pela Faculdade Damásio
de Jesus. Professora de Hermenêutica Jurídica na UNIRB/CESAMA (Faculdade Regional da Bahia RB - Campus de Arapiraca). Analista
Judiciária na Justiça Federal de Sergipe.
316
da mais verdadeira liberdade.
De posse de uma razão instrumental, o homem, em detrimento da inicial proposta con-
tida na supracitada equação iluminista, produziu, através dos tempos, uma crescente perda de
liberdade. Talvez tenha sido essa a mais emblemática das crenças do Aufklãrung (Iluminismo/
Ilustração): aquela segundo a qual, pela aplicação crescentemente especializada da ciência, da
técnica e da razão, o homem tornar-se-ia cada vez mais autônomo e feliz.
À Luz do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, teria sido Kant quem propria-
mente inaugurou a modernidade quando, em 1784, no seu “Que é esclarecimento?” iniciou
um discurso da filosofia como um discurso da Modernidade. Kant entregava ao homem a res-
ponsabilidade de alcançar a sua liberdade através da própria razão. A maioridade somente era
atingida pelo homem através da ação da faculdade da razão. Porém, o “esclarecimento” levou,
contrariamente às promessas de uma humanidade envolta pela “paz perpétua” eloquentemente
formulada por Kant, à escravização do homem ─ déspota de seus semelhantes e cativo de si
mesmo. Tal situação expressa o que Weber chamaria de Sinnverlust ou perda de sentido. A pro-
posta de uma unidade ética, o estabelecimento de uma sociedade equitativa a partir do jargão
kantiano — “Sapere aude!” — terminou por se encaminhar à atomização do homem, separado
dos outros homens e desmembrado, ele próprio, de si.
Nessas palavras iniciais, fica-se inquieto, a partir daquilo que está apresentado no es-
tado de coisas das atuais sociedades, diante de questionamentos como estes: até que ponto as
promessas da modernidade podem ou não ser cumpridas? Que compreensão de ethos pode ser
“recuperada” diante de todo este pathos social? Qual o futuro da humanidade diante de tudo
isso?
Como entender, quiçá explicar, que uma única pessoa, das mais ricas do mundo, dentre
as divulgadas pela revista Forbes, em 2009, como Bill Gates, com um patrimônio somado em
40 bilhões de dólares, tenha uma fortuna pessoal próxima ao PIB da grande maioria dos países
latinos, asiáticos e africanos? Ou, considerar que apenas 44 países dos 192 reconhecidos pela
ONU possuam um PIB superior a 50 milhões de dólares, enquanto todo “o resto” está fadado a
viver com uma soma de riquezas inferior aquelas grandes fortunas particulares? Desemprego,
miséria, inexistência de Sistemas de saúde e de previdência são apenas alguns dos problemas
que os afligem.
Se, no âmbito político das nações desenvolvidas, aumentou o número de bens, valores
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
e tutelas individuais sob a égide dos “direitos humanos1”, nos países latino-americanos o que
vemos é um enfraquecimento crescente das liberdades individuais, dos Estados Nacionais, bem
como, do reconhecimento dos direitos mínimos necessários às populações integrantes.
Nessa inquietude inicial, questiona-se quais são os descortinares históricos na con-
substancialização de um paradigma pós-moderno, que supere as antigas certezas modernas,
1 Usa-se a indicação “direitos humanos” em minúsculo para expressar o conceito “desvirtuado”, da compreensão de humanidade que
desenvolvemos ao longo do texto.
317
as quais não mais acompanham o ritmo das atuais sociedades, angularizadas pelo consumo
desenfreado de bens voláteis e por realidades tão antagônicas.
res de Neumann e von Foerster (Ordem e caos), perpassando pela termodinâmica de Prigogine,
chegando até a teoria do caos organizador, a partir dos trabalhos de David Ruelle.
Dessa forma, a tarefa científica não deve ser a de afastar a desordem de suas teorias,
mas sim, estudá-la. Para além, a concepção de organização não deve ser excluída, entretanto,
deve-se concebê-la e introduzi-la no conteúdo das demais disciplinas. Uma nova consciência
é fatalmente necessária, aquela chamada por Piaget de “o círculo das ciências”, que estabelece
de fato a interdependência das diferentes ramificações científicas. A via de articulação entre
as ciências físicas, biológicas e humanas é um caminho sinuoso, dado que, cada uma delas
318
empreende não apenas uma linguagem própria, mas também, conceitos fundamentais que não
devem ser transferidos de uma linguagem a outra. É, por conseguinte, necessário conservar as
noções chaves que implicariam a interarticulação, através do estabelecimento de um sistema de
cooperação, para mais, de um projeto comum.
Aproximando-se mais do plano sociopolítico que da crítica epistemológica da ciência
moderna, SANTOS (1995, p. 35) afirma que “a transição paradigmática tem vindo a ser enten-
dida de dois modos antagônicos”. O primeiro modo, designado por ele de “pós-modernismo
inquietante ou de oposição” reside numa dupla verificação: a primeira diz que no momento
em que a proposta moderna deixou-se reduzir pelas exigências do capitalismo, sua tarefa (não
cumprida) não alcançará via de realização concreta (SANTOS, 1995, p. 35); a segunda verifica-
ção versa sobre a impossibilidade de se alcançar o cumprimento das promessas modernas em
termos modernos ou segundo os mecanismos desenhados pela modernidade após dois séculos
de relações, promíscuas, entre modernidade e capitalismo (SANTOS, 1995, p. 35). O segundo
modo de tratamento da transição paradigmática, “pós-modernismo reconfortante ou de cele-
bração”, aceita que: o que efetivamente está em crise é a “ideia moderna de que há promessas
trans-históricas a cumprir e, ainda mais, a ideia de que o capitalismo pode ser obstáculo à rea-
lização de algo que o transcende” (SANTOS, 1995, p. 35). Essa segunda versão da transição
paradigmática, na opinião de SANTOS, não tem nenhuma contribuição a receber do Marxismo.
Na feitura deste trabalho, estar-se-á “ultrapassando” a contextualização sociológica da
guinada paradigmática “inquietante ou de oposição” apresentada por SANTOS, consubstan-
cializando-se um produtivo diálogo com o materialismo dialético de Marx e sua compreensão
da humanitas. A “guinada” aqui apresentada dá-se no caminho Ético-Ontológico, na escuta da
colocação heideggeriana [utiliza-se a expressão “Ético-Ontológico”, em letras maiúsculas, por,
como será visto, tratar-se de uma Ética e Ontologia originais]:
Mas, para isto, é naturalmente necessário que a gente se liberte das representações
ingênuas sobre o materialismo e das refutações mesquinhas que pretendem atingi-lo.
A essência do materialismo não consiste na afirmação de que tudo apenas é matéria;
ela consiste, ao contrário, numa determinação metafísica, segundo a qual todo ente
aparece como material para o trabalho. (HEIDEGGER, 1979, p.162)
319
conversação com o marxismo, estabelecer-se-á em um sentido especial2 , encaminhar-se-á na
direção da “afirmação-condicionada” de SANTOS (1995, p. 39): “se é verdade que o marxismo
procura um equilíbrio estável entre estrutura e ação, penso que hoje, sendo incorreto abandonar
de todo a ideia de estrutura, é necessário abertura dos horizontes de possibilidades e a criativi-
dade da ação”. Visto que, é na natureza do que GADAMER chamava de tensão ─ a polaridade
entre a familiaridade, que a tradição ocupa junto a nós, e a estranheza do novo que se baseia
a tarefa hermenêutica. Constituindo o entremeio dos dois polos, supostamente antagônicos, o
verdadeiro locus da hermenêutica. (GADAMER, 1999, p. 442).
Marx, na 6ª tese sobre Feuerbach, adverte que a essência humana é o conjunto das
relações sociais e não uma abstração inerente ao individuo singular, dessa maneira, a essência
humana somente pode ser apreendida como “gênero” (MARX,1991, p. 13). O curso histórico
não se entende como algo fixo, inexorável, mas algo que está em constante vir-a-ser na curva
do tempo. Dessa maneira, Marx “supera” as considerações metafísicas da História, vinculando
o “SER DA HISTÓRIA” à própria ação humana. A história não é uma abstração “oca”, “rare-
feita”, mas a legítima atividade de um sujeito, de um sujeito especial - o homem:
Totalmente ao contrário do que ocorre na filosofia alemã, que desce do céu à terra,
aqui se ascende da terra ao céu. (...) a moral a religião, a metafísica e qualquer
outra ideologia, assim como as formas de consciência que a ela correspondem,
perdem toda a aparência de autonomia. Não tem história, nem desenvolvimento,
mas os homens ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio material,
transformam também seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência
que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. (MARX, 1991, p. 37)
do homem em uma dimensão “mais suprema” que a social (embora não a exclua), a dimensão
do Ser3. Como propriamente alude GADAMER (2002, p. 18), o caminho de sua Filosofia Her-
menêutica procura manter-se no caminho do Heidegger “tardio”. Assim, precisa-se esclarecer
que compreensão do humano em Heidegger apresenta nessa “viravolta” de sua filosofia. Nesse
2 O que trataremos, através da Filosofia Hermenêutica, como estrutura, não se detém apenas ao âmbito empírico das “determinações”
(ordens) sócio-político-econômicas, mas alcança “dimensões mais supremas” de realidade que ainda não se converteram ao âmbito das
relações/ experimentações históricas, como veremos no decorrer deste trabalho.
3 Apesar dessa dimensão do Ser jamais poder ser clarificada como um todo: “O ser enquanto ser que destina verdade permanece oculto”
(HEIDEGGER, 1979, p. 162).
320
momento, para HEIDEGGER (1979, p. 157) o “homem é enquanto ec-siste. A substância do ho-
mem é a ec-sistência, ou seja, a essência do homem é a sua constante abertura ao Ser: “a ec-stá-
tica in-sistência na verdade do Ser”. O que nos faz seres humanos é notadamente essa condição
ec-sistencial, ou seja, este estar postado na clareira do ser: “O homem é o pastor do ser. (...) O
homem é homem enquanto é o ec-sistente. Ele está postado, num processo de ultrapassagem, na
abertura do ser, que é o modo como o próprio ser é” (HEIDEGGER, 1979, p.163 -168).
Por essa ocasião, no caminho dessa essência humana, a condição de estar postado na
clareira do ser (HEIDEGGER, 1979, p. 168), descortina a andança que é ético-ontológica: “Se,
(...) de acordo com a significação fundamental da palavra ethos, o nome Ética diz que medita a
habitação do homem, então aquele pensar que pensa a verdade do ser como elemento primor-
dial do homem enquanto alguém que ec-siste já é em si a Ética originária” (Ibid., p. 170). Nesse
momento, cabe-nos uma reflexão fundamental: O projeto do humanus supõe o acordo previsto
(correspondência) do Dasein4 com o ser, isto é, pressupõe a fidelidade do homem com relação ao
ser no pensamento essencial, ec-sistencial, resultando na “possibilidade de devolver à palavra
humanismo um sentido historial que é mais antigo que seu mais antigo sentido, sob o ponto de
vista historiográfico” (HEIDEGGER, 1979, p.165).
Para HEIDEGGER (1979, p. 162) o marxismo, a partir de Hegel, deu um passo impor-
tante ao reconhecer a apatridade como destino do homem. A historiografia marxista, enquanto
percebe a alienação, atinge uma dimensão essencial da História, torna-se uma historiografia
superior a qualquer outra:
sa maioria dos homens entende esse “eu” como sua personalidade física, material. Analisando a
“realidade”, segundo os caracteres efêmeros da corporeidade, frequentemente, o homem atenta
contra sua própria condição de dasein, ou aquele que está na clareira do ser. Esse critério de ava-
liação não funciona como fonte “suficiente” de valoração para as ações humanas, “autênticas”.
4 Dasein (Ser-no-mundo, eis-aí-Ser, Ser-aí, representam traduções equivalentes) é, em Heidegger, uma entrada, toda inspirada de
cuidado e de sacrifício na felicidade e na alegria da unidade. Para que um ente possa estar presente e mesmo para que possa haver um ser,
a condição de abertura do ser, é necessário o estar do homem já no aí, na clareira, na claridade do ser, modo este como o homem existe,
ec-siste. Não pode haver ser do ente, sem o homem.
321
Esse “homem” é joguete dos caprichos e sensualidades do ambiente físico. Ele não governa sua
alma, mostrando-se inteiramente a mercê dos ventos e das correntezas alheias (exteriores a si
mesmo). Pergunta-se, então: Como poderia ser solidamente “formado” o homem que faz depen-
der a sua formação de algo que não depende (autenticamente) dele?
Há também os que identificam o seu “eu” com a parte psíquica ou mental de sua natu-
reza humana, confundindo o seu verdadeiro “eu” com a zona psíquica, intelectual e mental do
seu ser. Assim, se a sua tela mental estiver sendo influenciada pelos ditames de uma sociedade
que segue determinados tipos de valores, a sua coerência formativa estaria baseada neste alicer-
ce do ambiente social e da própria opinião pública.
De forma resumida, tanto os homens que compreendem o seu “eu” sob o primeiro es-
quema ― da condicionalidade do habitat físico ― tanto aqueles apresentados no segundo mo-
mento — que compreendem seu “eu” em dependência de suas capacidades psico- intelectuais,
incessantemente, aturdidas pelas influências sociais — fazem depender sua “formação” de uma
instância exterior e afastada deles mesmos, dos “seus interesses e perguntas condutoras” (GA-
DAMER,1983, p. 75). A verdadeira formação não é alguma quantidade externa, algum objeto
que o homem aprende externamente; a formação aqui é pensada, através do método hermenêu-
tico, enquanto uma qualidade interna, um sentido que o homem cria dentro de si: “Só teremos
alguma probabilidade de compreender os enunciados que nos preocupam se reconhecermos
neles nossas próprias perguntas. (...) quando alcançada, a compreensão significa uma interiori-
zação que penetra como um novo experimento no todo de nossa própria experiência espiritual”
(GADAMER, 1983, p. 73, 75).
Se a experiência ou o método hermenêutico é o que nos constitui como pessoas, es-
tabelecendo um certo tipo de relação cognoscitiva e moral com o nosso “eu espiritual” ela é,
também, por outro lado, aquilo que, autenticamente, permite desatravancarmo-nos desse “eu”
ou desse ser “Eu”. Esse método torna-nos o que somos ao reconhecer a simultaneidade entre
os nossos sentidos e valores pessoais e o sentido e valores universais e, reconhecendo nossa in-
completude, seres-no-mundo (dasein), em plena jornada evolutiva. Sobre isso, Gadamer (1999,
p. 506) vai dizer que:
322
de direcionamento, por uma tarefa reguladora que orienta o bem agir comum). Não se trata de
determinar jeitos, formas, meios de ação, ou regras coercitivas e dominadoras, paralisando-se
em modelos de ação que devem ser seguidos e copiados, a fim de garantir o sucesso na atividade
envergada. Mas, implica na criação de novos e diferentes modos de ação e possibilidades diante
das situações existenciais, imersas em um espaço-tempo determinado e que suscitam diferentes
gerenciamentos e estratégias. A dimensão ética do método diferencia-se da moral, enquanto
conjunto de regras que coagem a ação, julgando-a segundo valores / imperativos transcendentes
fixos: O certo, o errado. A ética, aqui, diz respeito a nossa relação com o ser, pode-se utilizar,
inclusive, a igualdade Ética originária = Ontologia Fundamental (HEIDEGGER, 1979a, p. 171).
O mundo da técnica usurpou do humano essa abertura à característica ontológica fun-
damental, que nos une a um todo indissociável. Entregou-se a saberes parciais e às especializa-
ções vinculando o poder-fazer humano ao corpo sociopolítico-econômico e suas deliberações.
O conceito de formação e método, nesse escopo, vai além das configurações cognitivo cultu-
rais domésticas. Representa uma ontologia essencial, que não se expropria da condição de lei,
regulando o agir ético da humanidade, sem o qual estaríamos fadados à completa anarquia e
ao niilismo. Somente dentro de uma conjuntura ética universal (ontológica) poder-se-á falar de
uma necessidade fundamental ao humano, de grande representatividade às questões (atuais e
de sempre) da fome, do desemprego, da miséria, da dominação, exclusão, discriminação etc: o
saber ouvir. GADAMER tenta explicar o que significa, no âmbito da sua filosofia essa acurada
“capacidade auditiva” (2002, p. 240-241):
O homem, imbuído do método hermenêutico, percebe que deve tentar resistir à tenta-
ção de substituir essa “postura universal por uma conduta relativa marcada pelas convenções
aturdidas da conveniência social, fechando a porta para aquela serenidade d’alma. Sobre isso
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
GADAMER (2002, p. 154) vai falar da relação entre fé (certeza firme e inabalável) e a com-
preensão (autêntica, hermenêutica), na qual “pode-se dizer que o si-mesmo dos indivíduos, seu
comportamento e sua autocompreensão mergulham numa relação superior que é o verdadeiro
fator dominante”. Contudo, tão bem sabe ele que “é difícil, (...), manter essa visão teológica e
essa experiência religiosa na autocompreensão interna do homem, enquanto essa estiver sob o
domínio da ciência moderna e de sua metodologia” (GADAMER, 2002, p. 155).
A Ilustração trouxe consigo o jargão da modernidade Razão = Igualdade = Liberda-
de = Paz. O homem medieval submisso à natureza, ao mítico, ao despotismo dos Reis e dos
323
Deuses, agora, soergue-se, através do seu exercício racional, da escravidão do habitat natural.
Dominar o mundo, subvertendo-o ao seu controle, por ocasião da ação racional instrumental
(subjetivista - intencional), representou o sinônimo de Progresso e Liberdade. Beneficiando-se
da incessante aquisição do domínio especializado e da maximização dos processos de interven-
ção, o homem julgava-se no caminho da mais verdadeira liberdade. A modernidade, de uma
forma geral, constituiu-se na mais alta crença humana no seu poder “livre” (autônomo) e in-
tencional de intervenção no mundo. De outro lado, no “método hermenêutico”, a liberdade não
se apresenta nos ditames de um arcabouço subjetivista intencional da racionalidade moderna
(Ilustração). Remete a um sentido “pós-moderno” de direcionamento, que prevê “profundas”
consequências éticas. A verdadeira relação humana está viva na entretecida vivência ente-ser.
A grande empreitada de nossa condição humana é reconduzir o olhar do ente para o ser, re-
constituindo a “união” dilacerada pela falta de atenção para com as coisas mais importantes.
Vive-se, pela nossa condição mesma de seres humanos, na relação de proximidade com o ser.
Mas, o dilaceramento da relação causa-efeito distancia a proximidade ontológica. Diminuir a
distância entre homem e ser remete ao método traçado pela filosofia de Hans-Georg Gadamer.
Esse o sentido de pós –moderno expresso nas linhas, que perfazem este texto. Esse “pós” de
pós – moderno remete aquilo que VATTIMO (2002), na introdução (p. VIII) de sua obra “O fim
da modernidade”, entende como uma despedida da modernidade, que volta a tratar a questão
do Ser “como evento, sendo portanto decisivo (...) compreender ‘em que ponto’ nós e ele próprio
estamos. A ontologia nada mais é que interpretação da nossa condição ou situação, já que o ser
não é nada fora do seu ‘evento’, que acontece no seu e no nosso historicizar-se”.
Dessa sorte, no contexto do método gadameriano, não é o sujeito que decide autono-
mamente sobre o seu destino, mas a grande responsabilidade do sujeito humano, enquanto “ente
dos entes”, reside em se ver na relação de correspondência com o ser. Essa correspondência
ontológica foi “usurpada” do humano pelo mundo das relações mais imediatas. Considerando o
divino como a morada do homem, caracteriza-se uma ligação com algo fora dele, mas destinado
a ele (Röhr, 2001, p. 08). Sobre isso, escreve Gadamer, em nosso auxílio:
Nem as extensões do apriorismo kantiano para lá dos limites da “ciência natural pura”
por obra dos neokantianos, nem a nova interpretação das ciências experimentais
modernas podem anular a concepção fundamental de Kant: somos cidadãos de dois
mundos. Estamos, não só do ponto de vista sensível, mas também “supra-sensível”,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
324
da liberdade com o “L” maiúsculo das metanarrativas iluministas. Para experimentar-se a liber-
dade, necessita-se de uma experiência plena e significativa (no sentido de desvelamento do ser),
partindo-se (estando) nas contingências de mundo. Há no interior do homem ― ser-no-mundo
― uma força natural no sentido de pertencer, de ser próprio a alguma coisa, impulsionando-o a
agregar-se a ela: destino significa “atingir e reunir, através do pensar, o que agora é do ser, num
sentido pleno” (HEIDEGGER, 1979, p. 163). Sobre isso, escreve Hans-Georg Gadamer:
Aqui reside, ao fim e ao cabo, a última raiz da liberdade que faz do homem um
homem: a escolha Ele tem de escolher e sabe (...) o que assim pretende fazer: escolher
o melhor e, como tal, o bem, a razão e a justiça. Uma reivindicação desmedida – e,
no fim de contas, sobre humana. O homem, no entanto, deve aceitá-la,porque tem de
escolher. Tal é o abismo da liberdade. O ser humano pode perder o melhor – e mais
ainda: pode fazer o mal em vez do bem, pode confundir o mal com o bem, o injusto
com o justo, o crime com uma boa ação. Eis o que há de verdadeiro na frase de
Sócrates ninguém pratica o mal voluntariamente. (GADAMER, 1998, p. 102)
325
aprende amando” e “Ama-se” amando o mundo; seguindo o “destino” (que é essencialmente
Amor5); “livres”, para segundo a inteireza do verbo “intransitivo” AMAR, caminhar amando:
O verso de Dante
É uma verdade resplandecente,
e curvo-me ante a sua magnitude.
Ouso insinuar,
sem pretensão a contribuir
para que se desvende o mistério amoroso:
lizamos sempre uma espécie de reciclagem. Num sentido bem amplo, gostaria de chamar a isso
“tradução”. Ler já é traduzir e traduzir é traduzir mais uma vez. Pensa-se um instante sobre o
que significa traduzir, isto é, trazer algo morto para uma nova realidade pela leitura compreen-
siva ou quiçá trazer algo que fora expresso numa língua estranha”. Esse sentido de “tradução” é
5 Amor aqui não se refere ao amor romântico, ou qualquer parcialidade do Ser. Amor aqui significa a síntese original na dialética do
Ser. Remete aquela dimensão ontológica que é fonte de todas as formas de entificação ou presentificação no mundo; entende-se como a
totalidade. Dele, diz-nos BUBER (1977, p. 22-23): “Os sentimentos acompanham o fato metafísico e metapsíquico do amor, mas não o
constituem: aliás estes sentimentos que o acompanham podem ser de várias qualidades. (...); mas o amor é um. Os sentimentos, nós os
possuímos, o amor acontece. Os sentimentos residem no homem, mas o homem habita em seu amor”. Nele, no AMOR “se encontra o berço
da verdadeira vida” (BUBER, 1977, p. 16).
326
a base do método hermenêutico ancorado na Filosofia de Hans-Georg Gadamer.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se o pé disser: Porque não sou mão, não sou corpo; não será por isso do corpo? (....)
E se a orelha disser: Porque não sou olho não sou do corpo; não será por isso do
corpo?(...) Se todo corpo fosse olho onde estaria o ouvido? Se todo fosse ouvido,
onde estaria o olfato? (...) Mas agora Deus colocou os membros no corpo cada um
deles como quis. (...) E, se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? (...)
Assim, pois há muitos membros, mas um corpo. (...) E o olho não pode dizer à mão:
Não tenho necessidade de ti; nem ainda a cabeça aos pés: Não tenho necessidade de
vós. (1987, p. 345)
mente” complementam-se, como diz Paulo, no giro teológico, o eu tem sua autoafirmação, sua
função específica e necessária, assim como, participa de um todo e essa participação é impres-
cindível à harmonização ecológica. Segundo, Pelizzoli (1999, p. 69-70):
6 Entre o ser humano e o Ser escancara-se um espaço, esse espaço é a Liberdade. A liberdade é a ligação, a relação efetiva com o ser,
sendo a angústia, o acordo fundamental do ser humano com sua experiência possível ou realizado do ser, enquanto “projeto” (móvel) na
abertura ao ser.
327
O paradigma da tradição a ser questionada como antiecológica é igualmente o que
trouxe problemas éticos ─ problemas de relação e ethos─ pois situa-se desde uma
“grande teoria” que se enquadra como “vontade de domínio” do Outro (mesmo desde
o logos grego) e como afirmação absoluta de um sujeito pretensamente autônomo
e livre (ego) diante da realidade circundante e dos outros (estranhos, fracos,
excluídos...), e se vale do processo de objetificação. No contexto do ecólogo isto é
dito como antropocentrismo exacerbado, não longe da justificação da aristocracia ou
da burguesia. Destoando disto temos outro grande paradigma, que retoma uma visão
mais biocêntrica e ética (...).
REFERÊNCIAS
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FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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Record, 1987.
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Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983.
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328
70, 1998.
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Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002.
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com a colaboração de Karl-Heinz Efken. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.
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Bill Gates volta a ser o mais rico do mundo, diz ‘Forbes’; lista tem 13 brasileiros. SITE UOL
NOTÍCIAS. São Paulo, 11 mar. 2009. Disponível em: <http://economia.uol.com.br/ultnot/2009/03/11/
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ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
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In: Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 1995.
329
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por que é tão difícil construir uma teoria crítica? In: A
crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 2 ed. São Paulo: Cortez,
2000. v. 1.
330
Recebido em 17 fev. 2015.
Aceito em 30 abr. 2015.
1 INTRODUÇÃO
* Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cursando o 8º período.
331
Um dos princípios reconhecidos pela Constituição Federal, importante para o presen-
te trabalho, foi o do pluralismo familiar, que, basicamente, passou a aceitar como unidades
familiares não só aquelas constituídas pelo casamento, mas também as formadas por união
estável e aquelas constituídas por quaisquer dos pais e seus descendentes; ademais, os Tribu-
nais Superiores, impulsionados pelo princípio constitucional do pluralismo familiar, passaram a
reconhecer outros tipos de famílias, como, por exemplo, as famílias anaparentais1 e as famílias
homoafetivas2.
O alargamento do conceito de família inserido no ordenamento jurídico brasileiro pela
Constituição Federal não foi inovação aleatória forçada, mas sim, algo provocado pela mudança
social da acepção de família. O papel do Direito é ser reflexo daquilo que é realidade na socie-
dade em que está inserido em determinada época, por isso, o conceito jurídico de família tam-
bém se transforma com as diversas mutações sociais, de modo a tentar tutelar todas as formas
de organização familiar.
O Direito das famílias, atualmente, considera como requisitos principais para a for-
mação de uma família a afetividade, a estabilidade e a ostensividade. Valorizando mais o in-
divíduo e a intenção do casal do que a formalidade, como ocorria em momentos passados do
ordenamento.
As famílias simultâneas, entretanto, ainda sofrem não só com o preconceito social,
mas também com o preconceito jurídico, uma vez que não são reconhecidas como entidades
familiares, apesar de apresentarem todos os requisitos para que assim fossem.
O não-reconhecimento das famílias simultâneas provém, principalmente, da primazia
dada pela doutrina e pela jurisprudência ao “princípio” da monogamia, meramente infraconsti-
tucional, em detrimento dos princípios do pluralismo familiar e da dignidade da pessoa huma-
na, consagrados pela Constituição Federal.
O presente artigo objetiva explanar a falta de justificativa jurídica para o não-reconhe-
cimento das famílias simultâneas como entidades familiares, bem como apontar a problemática
causada ao alçar algo como a monogamia à categoria de princípio supremo do Direito das fa-
mílias.
1 STJ. REsp 159.851/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. j. 19.03.1998. DJ 22.06.1998.
2 STF. ADI 4277 e ADPF 132. Pleno. Rel. Min. Ayres Brito. j. 05.05.2011. DJ 14.10.2011.
332
portamentais, típicas da vida em sociedade, são fatores que influem diretamente na forma na
qual os indivíduos escolhem se relacionar uns com os outros.
O papel do Direito é servir de reflexo das situações que ocorrem na sociedade em que
está inserido. Ainda que acompanhe tais mudanças lentamente, a legislação e a jurisprudência
de uma determinada época tendem a demonstrar o tipo comportamental das pessoas daquele
período.
Far-se-á a um breve apanhado das modificações sofridas pelo conceito de família, le-
gislativa e socialmente, bem como dos principais acontecimentos que as inspiraram.
333
em sua forma, mas sem qualquer maior preocupação com seus membros.
A dinamicidade intrínseca à sociedade fez com que, aos poucos, houvesse importantes
mudanças normativas no que diz respeito ao Direito das famílias. As mudanças sociais ocorri-
das mundialmente, nas décadas de 60 e 70 – ilustra-se com o advento e popularização da pílula
contraceptiva, a crescente emancipação feminina e os movimentos pela liberação sexual – pro-
vocaram uma necessidade de modificação legislativa. Nesse contexto de mudanças sociais e
crescente globalização, Dias (2013, p. 29) explica que “a sociedade evolui, transforma-se, rompe
com tradições e amarras, o que gera a necessidade de oxigenação das leis.”
No Brasil, em 1962, a mulher emancipou-se de seu marido, com o Estatuto da Mulher
Casada, que garantia a plena capacidade civil da mulher, que a partir daí não mais estava – ju-
ridicamente, ao menos – subjugada à vontade de seu marido.
Em 1977, ocorreu importante afastamento dos dogmas da Igreja e dos ensinamentos
do Direito canônico no que se refere à indissolubilidade do casamento. Em decorrência das
mudanças sociais, com a existência de diversos casais separados de fato e que não encontravam
no Direito o reflexo dessas transformações, foram editadas a Emenda Constitucional de n° 9 e a
Lei 6. 515, que regulamentavam o divórcio.
O Código Civil atual, apesar de ter entrado em vigor em 2003, tem projeto que data de
1975, anterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, que trouxe consigo um turbilhão
de mudanças para todo o sistema jurídico, mudando o foco do ordenamento e trazendo uma
nova gama de princípios com força normativa e eficácia horizontal. Assim, diz-se que o Novo
Código Civil já estava, em sua feitura, antiquado.
Neste sentido, foram feitas adaptações aos princípios constitucionais em forma de
emendas, que, não raras vezes, modificaram o código superficialmente, mas não em sua essên-
cia, tornando-o uma grande colcha de retalhos, que possui, ainda nos dias atuais, dispositivos
que não coadunam com as normas constitucionais.
Entre esse período, com o advento da pílula contraceptiva, deu-se à mulher o poder
tanto de escolha, como de controle quanto à concepção, enfraquecendo, assim, não só o outrora
absoluto poder patriarcal, como também a antes necessária ligação entre casamento e reprodu-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
334
lidade e a clareza necessárias para reger a sociedade dos dias de hoje”, e, por essa falta de har-
monia do Código Civil de 2002 com a sociedade, e também com a Carta Magna, que podemos
dizer que “após a Constituição, o Código Civil perdeu o papel de lei fundamental do direito de
família” (FACHIN citado por DIAS, 2013, p. 30).
335
princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição” (BONAVIDES, 2004,
p. 518).
Essa forma de interpretação decorre da ideia de que uma norma pode ter diversas
interpretações; entretanto, o intérprete que prime pela Constituição e pela sua concretização,
deve sempre escolher a interpretação que mais se coadune com as normas previstas pela Carta
Magna.
3 STJ. REsp 159.851/SP. Quarta Turma. Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. j. 19.03.1998. DJ 22.06.1998.
STF. ADI 4277 e ADPF 132. Pleno. Rel. Min. Ayres Brito. j. 05.05.2011. DJ 14.10.2011.
TJ/SP. APL 64222620118260286. Primeira Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Júnior. j. 14.08.2012. DJ
14.08.2012.
336
estabilidade, o que exclui relacionamentos casuais, episódicos ou descompromissados,
sem comunhão de vida; e (iii) a convivência pública e ostensiva, o que pressupõe uma
unidade familiar que assim se apresenta publicamente. (VECCHIATTI; MARTA,
2007 citado por FIGUEIREDO; MASCARENHAS, 2012, p.10).
4 O “PRINCÍPIO” DA MONOGAMIA
4 STJ. REsp 1157273/RN. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 18.05.2010. DJ 07.06.2010
337
Na doutrina, um dos maiores nomes defensores da monogamia como princípio é Ro-
gério Cunha Pereira, que a considera “ponto-chave das conexões morais das relações amorosas
e conjugais” (PEREIRA citado por FRISON, 2012, p. 88).
Tanto doutrina como jurisprudência pró-supremacia da monogamia a defendem com
as bases supracitadas, como sendo “elemento estrutural” da sociedade e “elemento moral” das
relações conjugais. Não demonstram, entretanto, quais as bases fáticas e jurídicas para alçar a
monogamia a tal nível.
Socialmente, já foi discutida, com a conquista da autonomia entre afeto, casamento,
reprodução e sexualidade, a sociedade passou a organizar suas relações de formas distintas,
com objetivos distintos; e o Direito passou a proteger não mais a família-instituição, mas a fa-
mília-instrumento, aquela que serve como meio de realização dos interesses e desejos daqueles
que dela fazem parte.
A descriminalização do adultério – que se consubstancia em grave violação à acepção
de fidelidade utilizada por doutrina e jurisprudência – é um dos fatos que comprova que a so-
ciedade atual não mais vê a monogamia com tanta sacralidade e importância como a maioria
dos operadores do direito.
No mesmo sentido, a falta de consequências jurídicas para o descumprimento dos de-
nominados “deveres do casamento” serve de comprovação de que, atualmente, apesar de ter-
mos o relacionamento monogâmico como o mais usual entre as pessoas, a sociedade não mais
clama pela sua defesa prioritária.
No tocante à função de “elemento moral” da monogamia, entendemos que o direito
não deve ser palco de defesa de teses unicamente morais, já que o conceito do que é moral ou
não, é extremamente amplo, mutável e plurifacetado; sendo assim não-razoável punir ou negar
direitos a alguém com base unicamente em algo moral, cujo conceito não se consegue delimitar.
Ademais, usar o direito como instrumento para a defesa da moralidade já foi causa de inúmeras
injustiças – ilustramos com os recentes casos das uniões homoafetivas e das uniões estáveis,
que, até recentemente, eram marginalizadas pelo direito com diversos argumentos que perpas-
savam a esfera da “moral” e da supremacia da monogamia. Nesse diapasão:
Por fim, devemos ressaltar que a monogamia não é princípio constitucional e, como
tal, não deve ter primazia quando colidir com princípios que foram consagrados pela nossa
Constituição Federal, como o do pluralismo familiar e o da dignidade da pessoa humana. No
momento constitucional em que estamos inseridos é impensável que se prefira uma regra infra-
constitucional, que, não raro, fere a dignidade da pessoa humana, que tem clara raiz cristã, além
338
de não refletir as necessidades da sociedade moderna, a um princípio de status constitucional.
339
assim como para separação dessa união, bastava a declaração de vontade de ambas as partes.
Era aceita a poligamia e, em algumas tribos, também a poliandria. Nesse diapasão:
A ideia de fidelidade era, portanto, distinta da ideia cristã, que é a acepção utilizada
pela maior parte dos juristas ainda nos dias de hoje– que parte do princípio da monogamia
– sendo assim, o comprometimento de nenhuma das partes ter relações afetivo-sexuais com
outrem. Diferentemente, a fidelidade se baseava no dever de não relacionar-se intimamente com
pessoas distintas daquelas com que se tinha um compromisso. Assim, se casado apenas com
uma pessoa, o indivíduo não deveria relacionar-se intimamente com mais ninguém; porém,
caso a situação fosse de poligamia ou poliandria, esse dever era de não manter contato íntimo
com pessoas que não aquelas com a qual se era casado.
Foi nesse contexto que ocorreu a chegada dos exploradores de Portugal para iniciar a
colonização do Brasil. Através da influência das Ordenações Filipinas na população local e com
a intensificação da presença dos portugueses em condição hierárquica superior aos colonos e a
forte presença pessoal e de costumes da metrópole – com a transferência da Corte portuguesa
para o Brasil com Dom João – pode-se dizer que “foi uma vontade monolítica imposta que
formou as bases culturais e jurídicas do Brasil colônia” (WOLKMER citado por MACHADO,
2012, p. 66).
Os ideais cristãos nos quais se baseava a cultura portuguesa foram inteiramente força-
dos em território brasileiro aos colonos e aos escravos trazidos como mão-de-obra. Aos escra-
vos era negado o casamento, mas era imposta a religião católica. A família da época era rural,
hierarquizada, patrimonializada e patriarcal; ademais, havia forte conexão entre o casamento e
a procriação.
À época da Revolução Industrial, a Europa começou a passar por um momento de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
transformação, que teve grandes impactos na estrutura familiar – que seriam refletidos no Bra-
sil, posteriormente. A família que antes era hierárquica, com o pai como uma figura de autori-
dade absoluta e como único provedor, perdia espaço para um novo arranjo; mulheres e crianças
começaram a trabalhar nas fábricas, tirando a exclusividade de prover da figura paterna, a mu-
lher e os filhos passavam a ter mais direitos dentro do núcleo familiar. Entretanto, permanece a
ideia da monogamia como única forma de organização possível, ainda que dessa forma ocorra
apenas formalmente, uma vez que a realidade fática nos mostra que arranjos que fogem dos
moldes monogâmicos – com ou sem o consentimento do companheiro – não são raros.
É no contexto de término da Revolução Industrial que o Brasil se torna independente
340
de Portugal, em 1822, e inicia o processo de elaboração da sua Constituição, autorizada por D.
Pedro I; até sua outorga, o conjunto normativo português continuou a ser aplicado no território
nacional.
Em 1861, através do Decreto nº 1.144, a hegemonia da Igreja Católica começou a ser
relativizada com o reconhecimento do casamento realizado por autoridades de religiões diver-
sas da católica. Essas religiões necessitavam, entretanto, ser “toleradas” pelo Estado, que era
católico.
Apenas após a Proclamação da República, em 1889, o casamento civil passou a existir,
através do Decreto nº. 181/90. Isso porque a Proclamação da República foi um marco na separa-
ção da Igreja e do Estado, ao menos teoricamente.
Mesmo após a separação formal entre o Estado e a Igreja, os ideais cristãos continuam
sendo mantidos pelos operadores do Direito e pela legislação infraconstitucional. Os valores
que foram inicialmente forçados sobre a população brasileira, passaram a servir como o “pa-
drão” do qual qualquer conduta desviante é jogada à marginalidade. A monogamia é um desses
valores e ainda hoje permanece na jurisprudência brasileira como absoluta, ainda que nossa
Constituição Federal atual não tenha dado nenhum vestígio de reconhecimento da superiorida-
de de tal forma de organização de relacionamentos.
341
Não é justo reconhecer o princípio do pluralismo constitucional, ampliando o conceito
de entidade familiar desde que preenchidos certos requisitos para uns e negar para
outros baseado apenas em um juízo moral de valoração, visto que infringiria o
princípio da igualdade. Na maioria dos casos concretos levados ao Judiciário, as
relações concubinárias preenchem os requisitos da afetividade, estabilidade e
ostensibilidade, merecendo, portanto, proteção jurídica como entidade familiar.
(2008, p. 11).
Com isso, no entanto, não se conclua que, posto a monogamia seja uma nota
característica do nosso sistema, a fidelidade traduza um padrão valorativo absoluto.
O Estado, à luz do princípio da intervenção mínima no Direito de Família, não
poderia, sob nenhum pretexto, impor, coercitivamente, a todos os casais, a estrita
observância da fidelidade recíproca. (2010, p. 443)
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
342
que já era fragilizado em comparação aos outros que o ordenamento e a jurisprudência acham
por bem tutelar.
Ao combater a ideia de que a negação de reconhecimento às famílias simultâneas coíbe
sua prática, Ferraz aponta que a legitimação não traria estímulo à prática, mas o contrário:
Ao contrário da adoção da monogamia como padrão imposto pelo Estado, que, como
discutimos anteriormente, legitima os mais variados prejuízos às pessoas envolvidas em rela-
ções não-monogâmicas, tem-se que ao reconhecer a possibilidade das uniões simultâneas – e,
consequentemente, ao deixar de defender a monogamia como princípio dotado de primazia – as
consequências diretas e indiretas são inócuas, não causam danos ou prejuízos a nenhum dos
envolvidos, ao contrário, traz benefícios à sociedade em geral.
É uníssono na doutrina atual o reconhecimento que o Estado, em sua ânsia de proteção
da família, acaba, por muitas vezes, adentrando de forma exagera na esfera íntima e na liber-
dade dos indivíduos, não raro sufocando a autonomia privada para a formação e organização
das famílias. Nesse sentido, Pereira (citado por Dias, 2013, p.29), ensina “é preciso demarcar o
limite de intervenção do direito na organização familiar para que as normas estabelecidas não
interfiram em prejuízo da liberdade do “ser” sujeito”; ainda, no mesmo sentido, Dias retoma
com muita propriedade questionando que “talvez não existam mais razões, quer morais, religio-
sas, políticas, físicas ou naturais, que justifiquem esta verdadeira estatização do afeto, excessiva
e indevida ingerência na vida das pessoas”.
É imprescindível, portanto, que o Estado recue em suas imposições e controle de modo
a permitir que as pessoas possam, de fato, viver em suas esferas íntimas com liberdade; deven-
do o direito preocupar-se não em oferecer modelos e padrões pré-definidos por dogmas cristãos,
mas proteger e garantir a dignidade da pessoa humana de cada um dos membros das mais varia-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
das formas de família. Pois, na lição de Dias (2013, p. 29), “ainda que tenha o Estado interesse
na preservação da família, cabe indagar se dispõe de legitimidade para invadir a auréola da
privacidade e de intimidade das pessoas.”.
Defensor da superação da monogamia como princípio estruturante do direito das fa-
mílias, Silva (citado por FRISON, 2012, p. 35) afirma que “decretar o fim da monogamia como
princípio jurídico é tornar as relações afetivas mais responsáveis”, isto é, ao retirar do Estado o
papel de decidir qual a forma de organização possível para a constituição de uma família, dá-se
ao casal a liberdade e a autonomia para determinar qual a forma de organização familiar que
343
melhor vai de encontro com seus interesses.
Ainda sobre as vantagens de colocar mais responsabilidade às relações afetivas, temos
que, como muito bem apontado por Ferraz (2008, p.17), “ao contrário do que pregam, se forem
reconhecidos direitos ao concubinato, não haverá estímulo, mas sim mais responsabilidade na
formação de famílias paralelas”, isto porque, nos dias atuais, a pessoa que escolhe iniciar uma
união paralela, geralmente o homem, sabe que, quando houver a dissolução dessa união, não
haverá maiores consequências para ele, pois, ainda que tal relação tenha gerado prole; de acordo
com a jurisprudência majoritária, será reconhecida, no máximo, uma “sociedade de fato” que
traz consequências patrimoniais muito inferiores do que o reconhecimento de uma unidade
familiar, além de ser meramente uma ficção jurídica, uma vez que não se trata de relação obri-
gacional, mas de relação afetiva. Nesse diapasão:
344
detrimento de regras desarmônicas infraconstitucionais.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
345
REFERÊNCIAS
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2013.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Direitos da(o) Amante: na teoria e na prática (dos Tribunais), In:
DIAS, Maria Berenice; BASTOS, Eliene Ferreira; MORAES, Naime Márcio Martins (coord.).
Afeto e Estrutura Familiares. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
SILVA, Amélia Maria Polónia da. Recepção do Concílio de Trento em Portugal: As normas
enviadas pelo Cardeal D. Henrique aos Bispos do Reino, em 1553. Revista da Faculdade
de Letras, Porto, v. 2, n. 2, p.133-143, 1990. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/uploads/
ficheiros/2228.pdf>. Acesso em: 16 nov. 2014.
346
THE UNJUSTIFIABLE NON-RECOGNITION OF SIMULTANEOUS FAMILIES: A
CONSTITUTIONAL ANALYSIS
347
Recebido em 09 fev. 2015
Aceito em 30 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
Uma das discussões que sempre se fez presente quando da análise da intrínseca relação
entre o Direito e a moral diz respeito à delimitação de um limite até o qual é legítimo a uma
sociedade impor sua moral vigente por meio do ordenamento jurídico. Sem se afastar da tese da
separabilidade, o presente trabalho se propõe a analisar um debate entre dois importantes auto-
res ingleses do século XX sobre a questão, o Professor Herbert Lionel Adolphus Hart e Lorde
Patrick Devlin.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
A origem do debate entre Hart e Devlin remete ao ano de 1954, quando foi criado o
Comitê de Transgressões Homossexuais e Prostituição, presidido pelo Lorde Wolfenden (Co-
mitê Wolfenden), com o intuito de analisar a conservadora legislação penal da Inglaterra então
em vigor. Em 1957, o comitê apresentou seu relatório final, sugerindo reformas na lei criminal
* Advogado em São Paulo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo (USP) em 2009.
Pós-Graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (GV-Law) em 2012. Mestrando em Direito Financeiro pela Faculda-
de de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo (USP). Membro da Ordem dos Advogados Brasil, Seção São Paulo
(OAB/SP) desde 2010.
348
inglesa, sendo que, dentre as propostas de alterações apresentadas, destacava-se a descriminali-
zação das práticas homossexuais privadas, realizadas, consensualmente, entre adultos, conside-
radas inofensivas para a sociedade, não mais justificando a coerção penal.
Na análise do relatório Wolfenden, Devlin apresenta seus argumentos no sentido de
que a sociedade tem o direito de impor sua moral compartilhada, bem como deve legislar para
proteger seus institutos sociais valiosos, como forma de preservar seu tecido social de desin-
tegração e decadência. Hart, por sua vez, critica a teoria devliniana por entender não caber ao
sistema jurídico limitar a liberdade individual, punindo imoralidades as quais não gerem danos
efetivos a terceiros.
Não obstante o fato de que o elemento central do presente debate não foi a separabilida-
de entre Direito e moral, nele Hart apresentou importantes aspectos teóricos de seu pensamento
acerca deste assunto, ilustrando sua linha teórica, de cunho mais liberal. Esta linha de raciocínio
foi muito importante no desenvolvimento de sua teoria.
A par deste cenário, no presente trabalho serão tecidas considerações dos argumentos
de Devlin e Hart acerca da discussão em tela, bem como serão analisados alguns conceitos im-
portantes presentes neste debate, os quais também foram desenvolvidos por Hart em suas obras
posteriores, em particular naquelas relacionadas à sua contenda com Lon Fuller.
“we should ask ourselves in the first instance whether, looking at it calmly and
dispassionately, we regard it is a vice so abominable that its mere presence is an
offense. If that is the genuine feeling of the society in which we live, I do not see how
society can be denied the right to eradicate it.”1 (Devlin, 1965, p. 17)
Assim, é importante destacar, inicialmente, que Devlin não discorda do relatório Wol-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 Em tradução livre: “nós devemos nos perguntar em primeiro lugar se, analisando com calma e desapaixonadamente, consideramos um
vício tão abominável que a sua simples presença já é, pura e simplesmente, uma ofensa. Se este for um sentimento genuíno da sociedade em
que nós vivemos, não vejo porque a sociedade não possa ter o direito de erradicar este comportamento.”
349
Para se entender o motivo da discordância de Devlin, bem como seu entendimento
acerca do assunto, é importante ter em vista que, para ele, um dos elementos estruturantes da
sociedade são os preceitos morais comuns nela existentes. Acerca desta ideia devliniana, cha-
ma-se atenção para o trecho a seguir: “every society has a moral structure as well as politician
one: or rather, since that might suggest two independent systems, I should say that the structure
of every society is made up both of politics and morals” 2 (Devlin, 1965, p. 9).
Esta moral compartilhada a qual Devlin se refere configura-se tão importante para a
manutenção da ordem social quanto as instituições políticas, sendo função do Estado agir para
protegê-la, bem como preservar os seus institutos sociais valiosos. Ela é a estrutura, o cimento
da sociedade, devendo ser protegida pelo Direito, sob pena de por em cheque toda a estrutura
do corpo social, ameaçando assim a sua existência.
A partir daí, conforme bem apontado por Ronald Dworkin (1966, p. 988), Devlin de-
senvolve dois argumentos centrais acerca da imposição da moral, entendendo que esta pode ser
considera adequada: i) como forma de autodefesa da sociedade, uma vez que a sociedade não
pode sobreviver sem a preservação e preceitos morais que estão, para a maioria, além da tole-
rância, devendo ser impostos aos que discordam.
No que diz respeito a este primeiro argumento, merece destaque a afirmação de Devlin
(1965, p. 15) de que é função do Direito Penal impor preceitos morais e nada mais; ii) como meio
de proteção de condutas desaprovadas pelos seus membros, com base na moral comum, defendo
seus institutos sociais valiosos.
Da mesma forma, Devlin entende que não são todos os preceitos morais que devem ser
impostos pelo direito, mas apenas aqueles cuja conduta adversa não seja tolerada pela socieda-
de. No processo de determinação dos elementos da moral compartilhada que devem ser objeto
de tutela, é necessária a tolerância da máxima liberdade individual possível, não obstante não
deva haver restrição apriorística do direito da sociedade legislar contra atos imorais, quando
verificada a indignação pública.
Para se aferir a existência de um preceito moral, o método devilinano para tal aferição
não é a realização de uma pesquisa majoritária ou uma consulta popular, mas sim o comporta-
mento do homem apto a compor o júri, ou seja, como um homem padrão, médio e razoável, apto
a compor o júri (Devlin, 1965, p. 15), reagiria à conduta oposta ao comportamento apresentado.
Um preceito moral, segundo Devlin (1965, p. 90), somente pode ser imposto pelo Direito quando
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
este homem razoável não apenas aprovar, mas levar tão a sério o comportamento proposto que
vislumbrar necessária a aplicação de sanção para a conduta adversa.
Interessante notar a influência que a carreira de Devlin nas cortes inglesas em sua
teoria, principalmente em relação à construção de um consenso moral acerca de preceitos sem
os quais, a sociedade teria sua existência, em tese ameaçada. Esta ideia, presente em toda sua
2 Em tradução livre: “toda a sociedade tem uma estrutura moral ao lado de uma estrutura política: assim, ainda que isso possa sugerir
dois sistemas independentes, eu diria que a estrutura de cada sociedade possui uma estrutura política e moral”.
350
teoria, é reconhecida como positiva por outros autores, tais quais Dworkin.
A primeira crítica importante diz respeito ao fato de que Hart, não obstante aceite a
existência de uma moral comum na sociedade, a qual denomina moral positiva, discorda do
entendimento de que estes preceitos morais comuns constituam um elemento sem o qual a so-
ciedade não subsistiria.
O cerne desta crítica é a afirmação de Hart (1963, p. 51) de que o ponto central do
pensamento de Devlin oscila entre o aceitável entendimento de que existe uma moral comum
importante para a sociedade, para a inaceitável proposição de que uma sociedade é idêntica à
moral que reflete. Para Hart (1963, p. 52), este entendimento remete a absurda ideia de que mu-
danças na moral da sociedade equivaleriam à sua extinção e surgimento de outra no seu lugar.
Ademais, este argumento de Devlin, ainda de acordo com a crítica de Hart, não se
baseia em quaisquer evidências empíricas e, mais do que isso, parte de um conceito equivocado
de sociedade. Neste sentido, Dworkin (1966, p. 980) afirma que, para Hart, a teoria devliniana
fracassaria: i) na hipótese de se adotar um conceito parecido com uma noção convencional de
sociedade, porque é absurdo sugerir que toda a prática que a sociedade considera profundamen-
te imoral e repulsiva ameaçaria a sua sobrevivência; ii) caso seja adotado um conceito artificial
de sociedade, tal como a de que esta consista em um complexo particular de ideias defendidas
por seus membros em um dado momento histórico, tornando-se, aqui, intolerável que estes pre-
ceitos morais devam ser preservado pela força decorrente de sua imposição jurídica, o que de
certa forma imobilizaria a moral vigente.
A segunda crítica importante é a discordância de que o Direito Penal deva ser utilizado
como um meio de preservação da moral positiva, não sendo correta a assertiva de que a função
do Direito Penal é de somente impor preceitos morais e nada mais. Importante destacar que,
de acordo com MacCormick (1981, p. 186), esta é a principal crítica que Hart dirige à teoria de
Devlin: “But his more fundamental case is against any version of the view that it is right for
criminal law to be considered as or used as an instrument for upholding the ‘positive morality’
of a society at large, that is, of the dominant section(s) of it, or even of the majority within it” 3.
Hart inicia o desenvolvimento desta crítica afirmando que há duas formas possíveis da
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lei penal tutelar a moral: i) pela coação gerada pelo medo da penalidade, ou seja, pela interfe-
rência que a ameaça da punição tem na conduta humana; ii) ou pela própria aplicação da sanção,
que aqui estaria relacionada com a teoria retributiva da pena. Neste sentido, Neil MacCormick
(1981, p. 187), chama a atenção para a assertiva de Hart de que os indivíduos sobre os quais é
aplicada a lei penal sofrem prejuízos que, caso sua ação não vitime terceiros, podem ser despro-
3 Em tradução livre: “mas a sua crítica mais contundente é contra a versão de que é função do Direito Penal ser utilizado como instru-
mento de manutenção da moral positiva da sociedade, ou seja, de seus setores dominantes ou de sua maioria.”
351
porcionais aos causados com a prática do ato imoral.
Dessa forma, quando analisada a tutela da moral sob a óptica da coação legal, nos
casos em que não está presente a figura da vítima, a imposição termina gerando insatisfação e
infelicidade em razão da inibição dos instintos daqueles sob os quais seria destinada a coação
normativa, havendo prejuízo para aqueles que não pudessem agir segundo a moral comum.
Ademais, para Hart, nestes casos, não há necessariamente valores morais envolvidos, mas sim
noções de tabu e autodisciplina.
No que diz respeito à imposição da moral pela sanção, Hart entende não ser este um
meio adequado para tal, uma vez que não faz sentido a aplicação de sanção sem que haja risco
real de prejuízos ou danos efetivos a terceiros. Esta hipótese seria, de acordo com Hart (1963, p.
59 e 60), apenas justificada pela teoria retributiva da pena, o que levaria a punição a causar um
sofrimento desproporcional para aqueles que sofrem a sanção.
Outra questão que se faz presente dentro desta crítica hartiana é o fato de que Hart
entende que a coibição da prática de ações consensuais que envolvam danos físicos e mentais
às pessoas, não é, necessariamente, resultante de apelo à moral positiva, podendo ser justificada
pelo paternalismo. De acordo com este preceito, o direito deve ser utilizado como meio de se
impedir que alguém atente ou consinta com práticas que, de alguma forma, sejam prejudiciais à
sua integridade física ou psicológica.
Em sua defesa, Devlin (1965, p. 13), refuta o argumento de falta de evidências empíri-
cas de que mudanças na moral compartilhada representam ameaça à sociedade, afirmando ter
havido equívoco interpretativo por parte de Hart, já que ele nunca sustentou que qualquer desvio
moral ameaçasse a existência da sociedade, mas sim que são capazes de pô-la em risco, devendo
estar ao alcance do direito.
Já para Dworkin (1966, p. 991 e 992), esta resposta demonstra que o entendimento do
Comitê Wolfenden, de que existe um domínio da moralidade privada que o direito não deve
intervir, trata-se de uma barreira que não deve ser levantada, uma vez que não deve haver limi-
tação apriorística do direito da sociedade de legislar sobre ações imorais.
Por sua vez, a segunda crítica de Hart, qual seja, sua discordância de que o Direito
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Penal deva ser utilizado como um meio de preservação da moral compartilhada, também é
refutada. Devlin (1965, p. 110) entende que a dissuasão e a punição não são as únicas formas
de ação da lei, a qual também confere a oportunidade de mudança no comportamento, dando a
opção do indivíduo escolher agir conforme os padrões moralmente aceitos.
Ademais, de acordo com Devlin (1965, p. 104), o entendimento de Hart acerca do pa-
ternalismo incorre em dois equívocos: i) o primeiro que o confunde com obrigações morais, das
quais é distinto uma vez que, enquanto este se relaciona com a imposição de atitudes considera-
das benéficas aos indivíduos, aquelas se relacionam com a necessidade da sociedade se prevenir
352
contra danos que vícios de seus membros podem ocasionar; ii) resume o paternalismo à prote-
ção, pelo Estado, do bem-estar somente físico das pessoas, enquanto, na verdade, este tem por
essência a preocupação com o bem-estar integral, abarcando também o seu bem-estar moral.
Por fim, Devlin afirma que Hart, ao escolher os exemplos que servem à sua crítica, o
fez de forma conveniente, escolhendo tão somente aqueles aplicáveis à sua tese, sem analisar
aqueles os quais poderiam ser desfavoráveis ao seu entendimento.
Segundo a análise de Dworkin, Devlin, ao apresentar sua teoria com base no Relatório
do Comitê Wolfenden conclui que o homossexualismo trata-se de um vício que tende a gerar
repulsa social, sendo que a sua mera existência, por si só, representaria não apenas uma ofensa
aos membros da sociedade, mas contra a sua própria existência, não podendo ser negado o di-
reito que o corpo social tem de erradicar tal fato. A posição devliniana, contudo, é apresentada
como hipotética, porque, não obstante tal posicionamento, ele se colocou a favor da alteração da
lei que criminaliza o homossexualismo.
Ainda, Dworkin (1966, p. 989 e 990) entende que Devlin apoia a sua conclusão em dois
argumentos essenciais: (i) existe um padrão moral comum sem o qual a sociedade não pode so-
breviver, sendo seu direito, assim, zelar pela sua própria manutenção por meio da tutela destes
preceitos morais; e, (ii) considerando que existe tal direito por parte da sociedade, a tutela dos
atos que afrontam tais preceitos morais comuns deve dar-se por meio do Direito Penal, positi-
vando-se como criminosas as condutas contrárias a esta moral comum.
Ademais, ainda encontra suporte na tese de que o direito da sociedade de punir as prá-
ticas que afrontam a moralidade não deve ser exercida contra todo e qualquer ato imoral, mas
tão somente contra aqueles que afrontem os valores fundantes de determinada sociedade, ha-
vendo a necessidade de um certo teste empírico para se verificar se a conduta gera na sociedade
intolerância, indignação e repulsa.
Em relação ao primeiro argumento, Dworkin (1966, p. 990 e 991) afirma que a con-
clusão apresentada por Devlin não apresenta evidências empíricas de que o homossexualismo
representa um risco para a sociedade, bem como no que tange a outras questões tidas como imo-
rais, este mesmo teste pode falhar. Tal crítica se aproxima da crítica apresentada por Hart quan-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
353
devendo haver o risco de dano pela prática da imoralidade para justificar a sua tutela. Assim,
considerados os riscos existentes para a sociedade, coibindo a liberdade individual de sua prá-
tica para se manter a estrutura social; (iii) existe uma responsabilidade moral, decorrente da fé
moral dos membros da sociedade, desta se preservar, conservando seus preceitos estruturantes
de forma a possibilitar a sua existência.
Com relação a esta argumentação de Devlin, Dowrkin (1966, p. 990 e 991) afirma que
sua conclusão com base nestes argumentos não é válida, uma vez que se funda em uma inter-
pretação incorreta do que pode ser considerado como uma afronta à moral, configurando-se um
equívoco insanável em sua teoria, uma vez que a moral convencional é mais complexa do que
foi apresentado por Devlin em seu trabalho. Neste sentido, é interessante notar que tal crítica
guarda certa semelhança com a que Hart apresenta a Devlin na hipótese de sua teoria estar
alinhada com a tese extremada, uma vez que esta pressuporia uma visão utópica da sociedade,
não estando os seus requisitos presentes na moral sexual, como se trata a hipótese do homosse-
xualismo.
É interessante destacar de que, ao analisar este ponto do debate, Dworkin (1966, p.
991 e 992) identifica dois problemas na tese de Devlin. O primeiro deles é o de que a partir da
resposta devliniana, a afirmação de que a sociedade tem o direito de fazer valer a sua moral por
meio da lei seria limitada à proposição negativa de que a sociedade nunca possuiria tal direito,
ou seja, em algum momento do argumento, a indignação pública, como um limite ao direito da
sociedade de impor a moral, deixa de existir, passando a não haver mais qualquer limitação para
a tutela da moral.
Já a segunda questão diz respeito ao fato de que não é correta a determinação do posi-
cionamento moral da sociedade somente com base na expressão da maioria acerca de questões
de relevância moral, uma vez que desconsidera o próprio conceito de posicionamento moral
compartilhado, deixando de se embasar em um elemento racional necessário para tal, embasan-
do-se apenas em reações emocionais.
Dworkin está correto ao afirmar que a resposta de Devlin para a crítica de Hart de fato
termina obscurecendo o limite vislumbrado para a tutela da moral, evidenciando uma confusão
conceitual de sua teoria. Também lhe cabe razão no que diz respeito à sua segunda assertiva,
uma vez que, de fato, o método devliniano de determinação dos preceitos morais confundiria
dois conceitos os quais a teoria dworkiniana entende distintos, a saber, convenção e consenso
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
público, sendo que a moral não é constituída por convenções públicas, mas sim por um consen-
so, ideia esta que se encontra presente na teoria de Devlin.
Inicialmente, cumpre destacar que o ponto central do debate entre Hart e Devlin é a
definição de um critério para determinar até que ponto é legitima a imposição da moral pelo
direito e até que ponto este processo é, mais do que legítimo, democrático. Tal identificação é
354
importante para um posicionamento adequado frente aos argumentos em análise.
O cerne do argumento devliniano deve ser aceito com parcimônia, isto porque, confor-
me bem apontado por Hart, não se pode negar a existência de uma moral comum na sociedade,
devendo-se questionar, porém, se esta é de fato necessária à manutenção do tecido social. Da
mesma forma, esta primeira crítica hartiana deve ser vista com cautela, uma vez que atribui a
Devlin um entendimento de que, para este autor, a moral compartilhada se confundiria com a
própria sociedade.
Isto porque, Hart, nesta sua crítica, parte do correto entendimento de Devlin de que a
moralidade é um elemento estruturante da sociedade, para a equiparação desta teoria à tese do
rigor extremo, segundo a qual os preceitos morais são idênticos a esta. Contudo, para Devlin os
preceitos morais são elementos importantes para a sociedade, mas não idênticos a esta, como
faz crer a crítica hartiana.
Desse modo, essa diferença é importante uma vez que afasta a teoria devliniana da
tese do rigor extremo e a aproxima da tese moderada. Prova disso é a aceitação, por Devlin, de
alterações na moral comum, sendo que a tutela dos preceitos morais estruturantes deve ser vista
como um meio de se dificultar, mas não impossibilitar, alterações. Eventual mudança deve ser
acompanhada por modificações na lei, sendo função do legislador verificar se de fato houve a
alteração da moralidade comum. A postura de Devlin diante do relatório Wolfeden, tal qual o
teste da reação do homem apto a compor o júri, ilustram este seu entendimento.
Contudo, ainda que a crítica de Hart não tivesse ido por este caminho, ainda assim está
correta em um aspecto crucial, qual seja, a falta de evidências empíricas de que práticas imo-
rais possam, ainda que potencialmente, ocasionar risco à sociedade. Como bem apontado por
MacCormick (198, p. 188), para Hart não há provas de que a tolerância jurídica de atos imorais
privados, bem como de um pluralismo moral, seja apto a dissolver o tecido social.
Neste sentido, não apenas não há evidências empíricas do fato de que a alteração da
moral positiva ocasione crises sociais, como, pelo contrário, podem ser observadas socieda-
des nas quais os preceitos morais vigentes foram questionados e alterados e se fortaleceram,
adequando-se a novos contextos históricos. O conceito hartiano de moral crítica é importante
instrumento de fortalecimento da sociedade, pois a moral positiva é dinâmica, alterando-se con-
forme o momento histórico, podendo ser fortalecida por meio de uma avaliação crítica.
Outra questão que surge é acerca da função do Direito Penal na sociedade, uma vez
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
que se faz evidente que para Devlin este ramo do direito serve, principalmente, para a imposição
de preceitos morais. Hart, contudo, discorda, afirmando que, não obstante não ser a lei penal
o meio mais adequado para a imposição da moral, existem outros aspectos que servem para
justificar sua aplicação, tal qual o paternalismo, que pode ser utilizado para explicar a tutela do
Estado em relação a ações prejudiciais praticadas com consenso mútuo não se relacionando,
necessariamente, com a noção de moral.
Da mesma forma, é correto o cerne da crítica de Hart de que a imposição da moral pela
lei penal, pela coação ou pela sanção, nos casos em que não pode ser identificada uma vítima,
355
nem a presença de prejuízos reais a terceiros, não gera resultados positivos para a sociedade. O
potencial ou intangível dano à sociedade, vislumbrado por Devlin, não serve como justificativa
de sanções penais em situações nas quais não há a figura da vítima. Ademais, uma repressão
das minorias, que se fazem inofensivos para a sociedade, gera insatisfação e infelicidade nestes
grupos, os quais também são parte da sociedade.
Por fim, entende-se que, com relação ao ataque devliniano de que Hart teria sido sele-
tivo nos exemplos utilizados para ilustrar suas críticas, entende-se correto o ponto de Devlin.
Contudo, este aspecto não macula o cerne das críticas hartianas, uma vez que os problemas
apontados na tese de Devlin podem ser verificados mesmo sem estes exemplos por referirem-se
a equívocos conceituais de sociedade e de posicionamento moral.
Portanto, não obstante algumas críticas à teoria devlinina tenham-lhe atribuído um
sentido equívocado, expuseram, em sua essência, alguns problemas os quais Devlin não conse-
guiu rebater. Deve-se entender como mais correta a teoria de Hart, pois não é apropriada a utili-
zação do sistema jurídico como forma de punir imoralidades as quais não gerem danos efetivos
a terceiros, sob o risco de gerar resultados mais graves negativos na sociedade.
O debate envolvendo Devlin e Hart possui uma interessante relação com a discussão
teórica entre Hart e Fuller, sendo a referida relação importante para delimitar alguns preceitos
teóricos da noção hartiana da separabilidade entre Direito e Moral. Cumpre analisar algumas
questões importantes acerca dos debates envolvendo Hart e Devlin, no que diz respeito à impo-
sição da moral, bem como entre Hart e Fuller, envolvendo a separabilidade entre direito e moral.
Inicialmente, antes de analisar a relação entre estes debates, insta destacar alguns comentários
sobre a teoria fulleriana da relação entre Direito e moral.
De logo, Fuller (1964, p. 5) demonstra que uma das razões de sua insatisfação com a
literatura existente refere-se à falta de clareza ao se definir moralidade, a qual, contrariamente
ao conceito de Direito, cujas teorias são diversas, carece de correta e cuidadosa conceituação.
Segundo a teoria fulleriana (1964, p. 6), para se compreender corretamente o conceito
de moral deve-se inicialmente ter em mente a existência de duas moralidades distintas, a mo-
ralidade do dever (“of duty”) e a moralidade da aspiração (“of aspiration”): i) a moralidade do
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dever relaciona-se a moral religiosa, tal qual presente no Antigo Testamento e nos Dez Manda-
mentos, que condena a conduta humana que desrespeita os preceitos básicos de convivência em
sociedade, podendo ser entendidas como as regras básicas para que seja viável o convívio social;
ii) a moralidade da aspiração é aquela da vida virtuosa por excelência, estando bem exemplifi-
cada na filosofia grega.
Assim, é na moralidade da aspiração em que podem ser localizadas conotações de uma
noção, muda, que se aproxima da do dever, mas que com este não se confunde, uma vez que
aqui vige a concepção de que o ser humano deve agir de forma a demonstrar o seu melhor, ten-
356
do, não obstante seus princípios sejam de certa forma vagos e indeterminados, uma intrínseca
noção de perfeição e infalibilidade que se almeja alcançar.
O que se verifica é que enquanto a moralidade do dever se relaciona com a vida em so-
ciedade, a moral da aspiração refere-se à relação do homem com ele mesmo, ou até mesmo entre
o ser humano e Deus. Analisando a figura da aposta, Fuller (1964, p. 8 e 9) afirma que, enquanto
que sob a ótica da moral do dever o jogo pode ser visto como algo danoso à sociedade, inclusive
passível de proibição por parte da lei, na ótica da moral da aspiração não haveria motivos para
que o Direito se preocupasse com o jogo, olhando os apostadores mais com desdém do que com
reprovação propriamente dita, uma vez que a aposta deve ser entendida não como uma violação
de algum dever moral, mas como uma subutilização das capacidades humanas.
Ademais, segundo Fuller (1964, p. 15 e 16), a moralidade do dever está mais relaciona-
da ao direito do que a moral da aspiração e, em um paralelo econômico, enquanto aquela se re-
laciona com “economia de troca” (“economy of exchange”), esta se relacionaria com a “utilidade
marginal” (marginal utility”). O autor relaciona muito a moral do dever com a “economia de
troca” (“economy of exchange”)¸ e a moral da aspiração com o conceito de “utilidade marginal”
(“marginal utility”) inclusive quando traça suas diferenças.
Contudo, ainda de acordo com Fuller (1964, p. 21 e 22) a moralidade do direito, descrita
pelo autor como a moralidade interna da lei, não deve olvidar-se da moralidade da aspiração sob
pena de não ser reconhecido pela sociedade como tal. Isto porque, a moralidade interna da lei,
muito embora deva ser a resultante de uma conjugação da moralidade da aspiração com o dever,
está mais relacionada à primeira, a qual deve servir como um balizador do sistema jurídico,
possibilitando o seu reconhecimento pela sociedade.
Ao tratar da relação entre a moralidade de aspiração e a moralidade do dever, Fuller
(1964, p. 27) sugere a existência de uma escala, tendo seu início mais baixo, na relação social
entre os indivíduos, ascendendo até o topo, as aspirações mais elevadas em relação ao que o ser
humano entende por excelência.
Por outro lado, deve-se ter bem delimitado estes conceitos de moral, pois, caso a mo-
ralidade do dever ultrapasse sua esfera apropriada, pode haver o sufocamento da inspiração e
espontaneidade humanas. Da mesma forma, se a moralidade da aspiração invadir a província
do dever, os homens podem começar a pesar e qualificar as suas obrigações conforme os seus
próprios padrões, o que poderia inviabilizar o convívio em sociedade. Portanto, verifica-se que
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na moralidade do dever a noção de sanção se faz muito mais presente do que na moralidade da
aspiração, porém, não podendo invadir a seara da aspiração.
Não obstante entender que a noção de moral de dever está mais próxima do conceito
de direito do que a moral da aspiração, Fuller (1964, p. 33) alerta que, para fins de moralidade
interna da lei, faz-se mais presente a ideia de moralidade da aspiração, uma vez que esta deve
estar presente como um balizador do sistema jurídico, possibilitando o seu reconhecimento pela
sociedade.
Ainda segundo Fuller, a moralidade interna da lei pode ser compreendida como uma
357
visão procedimental do Direito Natural, que, na concepção fulleriana, deve ser entendida como
uma expansão do conceito ordinário de Direito Natural. Aplicando este conceito à noção de lei
e do próprio Direito, o autor refuta os defensores da teoria do Direito como forma de regramen-
to coercitivo das condutas sociais, embasadas em comandos de autoridades. Isto porque, para
a teoria fulleriana do Direito, este conceito de ordenamento jurídico termina por servir mais à
estrutura de poder do Estado do que à sociedade.
Aqui se faz presente o ponto fulcral da teoria fulleriana, qual seja, a moralidade interna
do direito, composta por oito princípios que devem ser observados para que as normas possam
ser aceitas pela sociedade, quais sejam: i) generalidade; ii) publicidade por meio da regular
promulgação para que seja dado conhecimento para a sociedade; iii) prospectividade e não
retroatividade, sendo a retroatividade apenas aceita ocasionalmente; iv) clareza, de maneira a
serem compreensivas; v) coerência sintética, ou seja, serem livres de contradições; vi) coerência
lógica, ou seja, não exigir o que não é possível; vii) estabilidade, não sendo modificadas com
muita frequência; e, viii) congruência entre o Direito e a ação oficial.
De acordo com Fuller, não obstante a qualidade inerente da obra de Hart, esta termina
a se alinhar à corrente criticada por aquele autor no texto em análise, uma vez que, ao analisar
o que este autor entende por conceito de Direito, termina por excluir as questões acerca das no-
ções de moral, tanto de dever quanto de aspiração.
Fuller, de tal sorte, entende que um dos elementos necessários para o reconhecimento
do ordenamento jurídico como tal relaciona-se, intrinsecamente, a moralidade interna do di-
reito, bem como da aproximação, o máximo possível, dos oito princípios por ele apresentados.
Conforme será visto a seguir, e neste ponto reside talvez o principal ponto de discordância des-
tes autores.
dárias, sendo as primeiras as responsáveis por impor dever à sociedade, enquanto as segundas
relacionam-se às ideias de reconhecimento, modificação e julgamento, sendo responsáveis pela
atribuição de competência aos agentes estatais para agirem no sentido de criarem e aplicarem as
normas primárias. É neste contexto que surge a norma de reconhecimento.
Fuller (1964, p. 133 e 134) afirma que, em sua análise da regra de reconhecimento, Hart
aparentemente cai em uma armadilha contida no campo da jurisprudência, ignorando questões
fundamentais que embasam o sistema jurídico e que não tem, necessariamente, relação com a
norma de reconhecimento, uma vez que não podem ser simplesmente expressos em termos de
358
dever, ou de capacidade e competência, ignorando questões de cunho sociológico existentes no
Direito.
A questão aqui é que o conceito hartiano deveria ser embasado em uma correlação dos
elementos que embasam o reconhecimento do sistema jurídico pela sociedade às noções intrín-
secas à ordem social, tal qual a moralidade de aspiração. Esta crítica é similar à realizada por
Fuller em outro texto, no qual crítica a teoria de Hart por não se alinhar ao conceito fulleriano
de fidelidade ao direito, que representa outro aspecto ao qual deve servir como reconhecimento
de validade de um determinado sistema jurídico.
Ao rebater esta crítica de Fuller, Hart (2010, p. 397 e 398) retoma o conceito de regra de
reconhecimento, afirmando que esta seria a última no sentido de que fornece uma série de cri-
térios pelos quais, em última instancia, avalia-se a validade das regras subordinadas ao sistema,
sendo a sua existência manifestada no reconhecimento e uso do mesmo conjunto de critérios de
validade jurídica pelos operadores do Direito, bem como da conformidade geral com o Direito
assim identificado. Hart não afasta, porém, a possibilidade da regra de reconhecimento ser ob-
jeto de crítica moral, explicação histórica ou sociológica e outras formas de exame.
No que diz respeito à afirmação de Fuller de que a teoria de Hart incorreria em um
“erro básico” por não se mostrar apta em explicar como é possível manutenção, após a revolu-
ção, de grande parte do Direito privado pré-revolucionário, Hart (2010, p. 402 e 403) responde
que não se se preocupou na análise do fenômeno da revolução, uma vez que, não pretendia tratar
da “persistência do Direito”, mas sim, a intenção de sua obra era a de exibir inadequações da
teoria austiniana segundo a qual o Direito era o comando soberano “habitualmente obedecido”.
Rebatendo a crítica, Hart afirma que a persistência do Direito poderia ser facilmente
explicada se fosse pensada em termos não de hábitos de obediência, mas em termos da regra de
reconhecimento, sendo esta a responsável para apontar o cargo de legislador e não, individual-
mente, para o seu ocupante atual. Assim, a legislação anterior seria aceita como Direito porque
identificada como tal pela regra de reconhecimento aceita. Este fato, contudo, não lida com a
possibilidade de uma ruptura revolucionária do tipo que Fuller vislumbra, no qual há a recepção
de grande parte do Direito privado pré-revolucionário.
Embora Hart não trate desse caso, o autor acredita não haver dificuldades em analisar
estas questões apontadas por Fuller com base na regra de reconhecimento, isto porque, após
uma ruptura revolucionária, sempre ficará incerto quais os critérios que serão usados para de-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
finir o direito, sendo que somente o transcurso do tempo fará com que surja uma uniformidade
na prática de tribunais e legisladores.
Tal desenvolvimento é necessário para permitir a redefinição do direito pós-revolu-
cionário por meio de uma nova regra de reconhecimento. Se não tivesse havido a revolução, a
regra de reconhecimento teria sido identificada como base na provisão geral que qualificava a
sucessão ininterrupta de legisladores. Portanto, após a quebra de regime, a validade da legisla-
ção passa a se basear numa regra de reconhecimento distinta da anterior.
359
9 RELAÇÕES ENTRE OS DEBATES HART-DEVLIN E HART-FULLER
Superadas estas questões iniciais, cumpre analisar a relação conceitual existente entre
os debates Hart-Devlin e Hart-Fuller. A primeira questão cinge-se à crítica dirigida por Hart
(1963, p. 28) à Devlin e Fuller no sentido de que estes autores incorrem no equívoco de argu-
mentar sobre o que direito é, ao invés de fazê-lo sobre o que um sistema jurídico deveria ser,
misturando estas duas esferas as quais deveriam se manter separadas para dar força argumenta-
tiva ao que o direito deveria ser. Esta noção de dever ser deveria ser somente, para Hart (2010,
p. 74 e 75), utilizado nos casos de penumbra, fornecendo um critério, nem sempre moral, para
que se atribua um sentido o qual a norma originalmente não possuía.
O segundo ponto de conexão é o conceito dicotômico de moral adotado por Hart, para
criticar a teoria de Devlin, pois segundo Carla Piccolo (2011, p. 40), há uma distinção entre
moral positiva e crítica, sendo aquela referente às condutas aceitas comumente pela sociedade,
e esta um conjunto de padrões de condutas os quais passaram por uma análise crítica racional,
servindo como um ideal a que a moral positiva deve aspirar.
Conceituação similar se faz presente em Fuller (1964, p. 5 e 6) quando distingue a mo-
ralidade do dever da moralidade da aspiração. A questão aqui é que, tanto Hart, quanto Fuller,
se utilizam deste conceito de moral para rebater as teses de Devlin e Hart, respectivamente,
nos debates protagonizados. Esta similitude entre Hart e Fuller cinge-se apenas a este conceito
dicotômico de moral, pois ambos defendem teses opostas no que diz respeito à separabilidade
entre direito e moral.
Além disso, outras duas conexões podem ser ilustradas através da argumentação a qual
os autores podem traçar a partir dos seguintes questionamentos: a incorporação da moral pelo
Direito facilita a aderência das condutas sociais às normas jurídicas? E, esta incorporação evita,
de alguma forma, a criação de sistemas jurídicos injustos ou imorais?
Para Devlin a moral é elemento importante para dar legitimidade ao direito, uma vez
que, a proteção da moral compartilhada, bem como a proteção de institutos sociais valiosos,
transforma a aderência do comportamento social à legislação algo natural. Por sua vez, no que
tange a possibilidade da incorporação da moral pelo direito evitar a criação de sistemas jurídi-
cos injustos ou imorais, Devlin não apresenta uma resposta, sendo possível inferir, contudo, que
a imposição da moral não afastaria a criação de sistemas jurídicos injustos ou imorais. Neste
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
sentido, chama-se atenção para o seguinte trecho “There are, have been, and will be bad laws,
bad morals, and bad societies (...) bad societies can live on bad morals just as well as good so-
cieties on good ones” 4 (Devlin, 1965, p. 94).
Fuller afirma que existem preceitos morais, os quais denomina moralidade interna, ne-
cessários para se entender o sistema jurídico possível. Verifica-se que a aderência da sociedade
às regras jurídicas e, mais do que isso, a própria legitimidade do direito, esbarram, para Fuller,
4 Em tradução livre: “Existem, existiram e existirão um mau direito, má moral e má sociedade (...) más sociedades podem conviver com
mau direito assim como boas sociedades convivem com bom direito.”
360
na observância desta moralidade interna, ou seja, a moral é elemento fundamental para tal. No
que diz respeito ao segundo aspecto, Fuller entende que a não observância da moralidade inter-
na talvez não impedisse a criação de leis imorais, mas impediria sua eficácia. Não seria possível,
assim, um direito imoral, uma vez que a moralidade seria inerente à sua própria validade.
Tanto Devlin, quanto Fuller entendem a moral como elemento importante, se não ne-
cessário à validade do sistema jurídico e, mais do que isso, deve haver a incorporação de de-
terminados preceitos à ordem jurídica como forma de proteção da sociedade. Contudo, Devlin
distingue-se de Fuller na medida em que aceita aquilo que chama de mau direito e má moral
dando a impressão que entende que a incorporação não necessariamente evita o surgimento de
sistemas jurídicos injustos.
Portanto, a tese de Hart responde negativamente ambas as questões, uma vez que, não
obstante aceite a existência de uma relação entre direito e moral, entende se tratarem de campos
distintos. Conforme apontado por MacCormick (1981, p. 195), Hart defende que as regras jurí-
dicas, como regras sociais que são, têm origens nas práticas sociais dos membros da sociedade,
não sendo a moral uma condição necessária para a validade jurídica. O elemento necessário,
para Hart, é a denominada regra de reconhecimento.
10 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate entre Hart e Devlin, originado em 1954, quando foi criado o Comitê Wolfen-
den, foi um dos mais importantes debates acerca de uma das grandes problemáticas de teoria
geral do direito, qual seja, até que ponto é legítimo a uma sociedade impor sua moral vigente
por meio do ordenamento jurídico.
Desse modo, os argumentos de Devlin são no sentido de que a sociedade tem o direito
de impor sua moral compartilhada, bem como deve legislar para proteger seus institutos sociais
valiosos, como forma de preservar seu tecido social de desintegração e decadência. Hart, por
sua vez, critica a teoria devliniana por entender não caber ao sistema jurídico limitar a liberdade
individual, punindo imoralidades as quais não gerem danos efetivos a terceiros.
Ante o exposto, o entendimento mais correto, é o de que o sistema jurídico não deve
ser utilizado como forma de limitação à liberdade individual, salvo quando a conduta vitimar
terceiros. Esta foi o cerne da linha argumentativa de Hart em seu debate com Devlin, o qual,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
embora não tenha tido como objeto a tese da separabilidade entre direito e moral, foi importante
porque ilustrou alguns conceitos relevantes que Hart desenvolveria posteriormente, principal-
mente nas obras relacionadas ao seu debate com Fuller.
Não obstante o fato de que o elemento central do presente debate não foi a separabilida-
de entre direito e moral, nele Hart apresentou importantes aspectos teóricos de seu pensamento
acerca deste assunto, merecendo destaque: i) separabilidade entre direito e moral, não obstante
exista uma relação entre direito e moral, refletida inclusive no compartilhamento de um voca-
bulário normativo comum; ii) existência e o teor do direito podem ser determinados sem uma
361
necessária referência à moral; e, iii) existência de uma moral positiva, que reflete a moral aceita
em determinada sociedade, bem como de uma moral crítica, fruto de um processo de análise
crítica, que refere-se a um ideal que a moral positiva deve aspirar.
REFERÊNCIAS
DEVLIN, Patrick. The enforcement of morals. London: Oxford University Press, 1965.
DWORKIN, Ronald. Lord Devlin and the enforcement of morals. The Yale Journal, v. 75, n.
6, may 1966.
FULLER, Lon. The morality of law. Revised Edition. New Haven and London: Yale
University Press, 1964.
FULLER, Lon Positivism and fidelity to law – A reply to Professor Hart. Havard Law
Review, n. 630, 1957.
HART, Hebert Lionel Adolphus. Law, liberty, and morality. Stanford: Stanford University
Press, 1963.
HART, Hebert Lionel Adolphus. Lon. L. Fuller: moralidade do direito. In: HART, Hebert
Lionel Adolphus. Ensaios sobre Teoria do Direito e Filosofia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
HART, Hebert Lionel Adolphus. The concept of law. 2. ed. NY: Oxford University Press,
1994
362
THE REFLEX OF THE DEBATE HART DEVLIN IN THE TEORY OF LAW OF
HART
363
Recebido em 13 fev. 2015.
Aceito em 30 abr. 2015.
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo levar à reflexão sobre a pos-
sibilidade da utilização do instituto dos Direitos Humanos como fundamen-
tação para a intervenção nas soberanias dos Estados. Para tanto, valer-se-á
primeiramente das contribuições de Hugo Grotius para a racionalização dos
institutos utilizados nas relações interestatais, bem como das ideias de John
Rawls, e será mostrado como este último põe os Direitos Humanos como ins-
tituto racional, dando-o natureza tanto de princípio quanto de direito.
Palavras-chave: Direitos humanos. Soberania. Direito internacional.
1 INTRODUÇÃO
bem como nos debates sobre seu caráter abstrato, discutindo-se largamente sua subjetividade
frente à sua adequação e aplicabilidade em Estados de diferentes culturas.
No entanto, pouco se tem discutido sobre a natureza racional, geradora do caráter le-
gitimador dos Direitos Humanos para intervenções estatais, dadas as devidas circunstâncias.
Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo refletir sobre a legitimação da utilização dos
Direitos Humanos como fundamento de intervenção na soberania Estatal, tomando primor-
364
dialmente como base o pensamento e as contribuições científicas do pensador Hugo Grotius.
Deter-se-á, sobretudo, no uso da razão nas relações interestatais, sua maior colaboração para o
Direito Internacional, incluindo o uso dos Direitos Humanos como um elemento racional, logo,
legitimador de intervenção nas soberanias dos Estados.
Na sequência, será analisado o trabalho do filósofo americano John Rawls, influente
por meio de seus estudos sobre as políticas internacionais, observando a sua proposição dos
Direitos Humanos como princípio regulador da “sociedade dos povos”. Por fim, será traçado
um paralelo no pensamento dos dois autores, evidenciando, assim, o caráter legitimador dos
Direitos Humanos nas relações entre as soberanias.
Além disso, no primeiro tópico se discorrerá sobre alguns institutos grocianos de gran-
de destaque no meio acadêmico, como o direito da guerra, a sociedade internacional grociana
e seu conceito de soberania. No segundo, serão apresentadas as influências grocianas na produ-
ção acadêmica atual, sobretudo nos estudos das relações internacionais, incluindo os trabalhos
do filósofo John Rawls, sobre quem se abordará a partir do referido tópico até a conclusão do
presente artigo. Será traçado, ainda, um paralelo entre Rawls e Grotius em questões referentes
às suas concepções de sociedade internacional e sociedade dos povos, bem como seus devidos
conceitos de soberania.
Posteriormente, será apresentada a aplicação prática do que foi dito, analisando-se a
Convenção de Viena, e, por fim, postos os devidos argumentos, se concluirá o pensamento res-
saltando a legitimação dos Direitos Humanos como instituto racional para a intervenção estatal.
Finalmente, observa-se a devida relevância que este trabalho tem para contribuir com
os estudos do Direito Internacional, tendo em vista que, inúmeras vezes, os Direitos Humanos
são somente refletidos quando se fala sobre a sua violação por Estados mais influentes em es-
cala global, seja financeiramente ou em qualquer outro aspecto, situações nas quais se discute
apenas qual a sanção mais adequada ao Estado infrator. No entanto, pouco se fala a respeito
do seu caráter racional e, consequentemente, legitimador das devidas intervenções nas relações
interestatais.
Desse modo, acredita-se que no estudo realizado através do presente trabalho, fiquem
esclarecidos e comprovados ao leitor a racionalização deste instituto e os possíveis fins da sua
utilização como justificativa da intervenção estatal.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
De acordo com o avanço de seus estudos, Grotius trouxe novos paradigmas a serem
amplamente abordados nas pesquisas sobre as relações internacionais, tanto em sua época
quanto na atualidade, sendo três os de maior destaque, a saber: o direito da guerra, a sociedade
internacional e o conceito de soberania. Neste tópico, tratar-se-á de cada um, individualmente,
a começar pelo conhecido direito da guerra.
Primeiramente, é válido salientar que Grotius abordou esse tema com muito mais ên-
365
fase em sua obra principal, De Jure Belli ac Pacis (1625), na qual tratou de temáticas como a
justificação da guerra, de como a mesma poderia ser feita, e em quais condições poderia ser
decretada, dentre outras observações deveras válidas. Dessa forma, a principal contribuição de
De Jure Belli ac Pacis foi a concretização de uma análise sistemática no que tange ao tradicio-
nal Direito da Guerra, organizado mediante os princípios do direito natural. Na referida obra,
Grotius discorre tanto sobre a guerra pública, feita sob a autoridade do soberano, quanto sobre
a guerra privada, decretada sem o consentimento ou determinação do Estado, e, assim, discute
a validade de tais guerras em ambos os casos.
Nesse sentido, é notável a proeminência dada por Grotius aos Estados e às autoridades
soberanas, em detrimento do indivíduo particular e dos não-Estados. Por esse motivo, ele decla-
ra que guerras consideradas públicas somente podem ser decretadas por autoridades soberanas,
enquanto que, guerras particulares, decretadas pelos demais, só são propostas em circunstân-
cias anormais. Tais discussões eram bem convenientes numa época em que as nações ainda
buscavam sua homogeneidade e as convenções que estabeleciam direitos para as soberanias
estavam ainda em processo de desenvolvimento (DAGIOS, 2012).
Sobre o direito da guerra, é aduzido que o único motivo para se recorrer à decretação
de uma guerra é a busca por direitos. Nesse contexto, Grotius destaca três motivos de promoção
dessa busca: a autodefesa, a recuperação da propriedade e a punição, cada um deles baseado na
lei natural. Aqui é possível inserir o conceito do jus in bello, presente também na obra de John
Rawls, sobre a qual se debruçará adiante. O citado instituto, presente nos tratados de Direito
Internacional, versa sobre as normas que os soldados devem cumprir em casos de guerra (JOR-
DÃO, 2008, p. 77), definindo quando uma conduta de guerra é louvável, mediante o cumpri-
mento das normas. Os princípios previstos no jus in bello se embasam na ideia de um soldado
em batalha apresentar uma conduta verdadeiramente justa (JORDÃO, 2008, p. 74).
Sobre o jus in bello, aduz Jordão:
Assim como dois adversários em qualquer esporte ou em qualquer disputa justa que
há na vida, os soldados profissionais em guerra, ou até mesmo nos treinamentos nos
quartéis, criam vários tipos de restrições das mais variadas formas. Estas restrições
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
surgem com naturalidade até pelo respeito e pelo “se colocar no lugar do outro”, já
que ambos partilham da mesma profissão. (2008, p. 75)
Além disso, o direito de autodefesa parte do pressuposto de que cada ser humano tem
o direito de preservar sua integridade física contra possíveis lesões. Se a nossa principal preocu-
pação é a de autopreservação, não poderíamos correr o risco de estar entre outras pessoas sem
nos ser garantida a permissão de nos proteger delas. O direito de defesa não abrange somente a
vida, mas o próprio corpo e a propriedade.
Nesse cenário, Grotius aduz que matar em defesa do próprio corpo é justificável, mes-
366
mo se o objetivo do agressor não é matar, mas mutilar sua vítima ou estuprá-la. A afirmação é
feita por não se saber a motivação do agressor, existindo sempre a possibilidade de homicídio,
em qualquer ataque. Para que se possa agir em autodefesa, é dito que se deve observar a seguin-
te condição: de que a agressão é eminente e certa1.
Assim, a propriedade pode ser defendida com força letal, com a restrição adicional de
que tal força seja, de fato, necessária para mantê-la. A recuperação da propriedade não se aplica
somente a bens móveis ou territórios, mas também a direitos sobre pessoas (escravos), direitos
de ações (tais como cumprimento de contratos) e indenizações por perdas e danos2.
Além da autodefesa e da recuperação da propriedade, a guerra pode ser travada a fim
de recuperar direitos ou punir o infrator. Grotius argumenta que esta violação da paz não é uma
providência antissocial (e, portanto, uma violação do direito natural), uma vez que o iniciador
da medida bélica só está exigindo o que a outra parte já deve, logo, não há violação, mas defesa
do sistema de direitos.3
No que tange às conhecidas concepções de guerra justa e injusta no estudo das rela-
ções internacionais, sabe-se que ambas concebem sua evidência pela razão humana, motivo
pelo qual é rejeitada a ideia de que a guerra pode ser justa de ambos os lados, reafirmando-se,
assim, que a mesma pode também ser injusta de ambos os lados. Segundo Grotius, travar guer-
ras justas inclui a defesa da integridade do próprio indivíduo, a proteção da propriedade privada
e a punição por acordos violados, conforme foi dito.4
Além disso, o embate não precisa ser necessariamente travado pelo indivíduo ofen-
dido, mas também pode ser concretizado através de terceiros interessados no bem-estar social
daquele que teve seus direitos violados, caracterizando a noção de ajuda mútua conferida pela
ideia do mútuo parentesco de todos os homens. No direito natural, a conduta justa de guerra
deriva da guerra justa, a qual não tem validade se não tiver por objetivo um motivo justo. Logo,
qualquer ação se torna válida se o objetivo é, de fato, justo. Por fim, a doutrina da guerra justa
foi minimizada e posteriormente excluída do direito internacional, nos séculos XVIII e XIX
(DAGIOS, 2012).
Dando continuidade à análise dos novos paradigmas trazidos por Grotius para o estudo
das relações internacionais, discorre-se agora sobre um instituto utilizado com enorme frequên-
cia: a sociedade internacional grociana.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014.
2 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014.
3 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014.
4 BLOM, Andrew. Hugo Grotius (1583-1645). Disponível em: < http://www.iep.utm.edu/grotius/>. Acesso em: 4 jul. 2014.
367
concepção grociana de sociedade internacional ganha destaque na medida em que é a primeira
a ser organizada de maneira sistemática, considerando uma ampla variedade de conceitos, des-
de o direito privado e público internacional, as relações de Estados independentes, até questões
da paz e da guerra.
Assim, o conceito de sociedade internacional grociana se baseia no chamado solida-
rismo, o qual aduz que os Estados compartilham de uma responsabilidade comum em manter
a sociedade e as instituições contra os desafios que possam ser impostos contra elas. A ideia de
Grotius era a de uma sociedade baseada em normas estabelecidas por seus próprios Estados-
-membros através da deliberação entre estes sobre o que seria considerado mais benéfico para
a sociedade como um todo (DAGIOS, 2012, p. 81). Procedendo desta forma, os integrantes da
sociedade internacional cooperavam para a preservação da paz entre si, além de prevenir as
possíveis interferências lesivas ao direito natural de seus membros.
Nesse sentido, conforme aduz Dagios, “em outras palavras, a sociedade internacional
de Grotius não objetivava o bem para toda humanidade como um todo, mas apenas o bem
daqueles que pertencem a essa comunidade, e o bem da comunidade é pensado apenas quando
isso favorece os próprios interesses” (2012, p. 75), sem se estender em escala global. No entanto,
a sociedade internacional grociana se mostra consideravelmente tolerante com diferentes reli-
giões, bem como com diferentes culturas.
Igualmente, é fundamental relembrar que o conceito de sociedade internacional para
Grotius é de uma sociedade governada por leis estipuladas por seus integrantes, e que tanto
os Estados-membros quanto seus governantes se obrigam baseados nessas normas. Conforme
Dagios (2012, p. 76), “o papel das leis como uma instituição na sociedade internacional foi sis-
tematicamente melhor conduzida por Grotius do que os autores antecessores”.
Dessa forma, Grotius afirma que, mesmo com a independência dos governos centrais,
os Estados integrantes da sociedade internacional não se encontram no estado de natureza, mas
constituem uma comunidade entre si, indo de encontro às ideias de autores que defendem dou-
trinas realistas, que firmam que os Estados se encontravam em estado de natureza, e se achavam
livres para utilizar-se do que fosse necessário para atingir seus objetivos.
Ainda em relação à sociedade internacional, também se pode citar seu caráter univer-
sal, não podendo selecionar seus participantes. A sociedade internacional não seria composta
somente por católicos ou protestantes, mas de toda a humanidade, mediante a ideia de que o di-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
reito natural obriga todos os indivíduos racionais, sem distinção. Logo, tanto governantes quan-
to príncipes participavam de sua formação, porém, não eram os únicos integrantes. Homens
racionais se encaixavam na comunidade, de forma que os mesmos poderiam tranquilamente
requerer direitos que lhe fossem justos baseados nos critérios do direito natural, caso o mesmo
fosse violado de alguma forma.
Aqui se pode ver a clara semelhança da sociedade internacional grociana com a socie-
dade dos povos desenvolvida por John Rawls, por essa também deter caráter universal e tratar
os homens de forma igualitária. Essa questão e outras semelhanças nas obras de Rawls e Grotius
368
serão tratadas, mais detalhadamente, na seção seguinte.
Com isso, vê-se a fundamental importância do trabalho de Hugo Grotius para o desen-
volvimento do Direito Internacional atual, em variados pontos, mas mais precisamente na sua
inserção da fundamentação jurídica e da racionalidade entre as soberanias como fatores regula-
mentadores das relações interestatais.
2.3 Soberania
A concepção grociana define soberano como sendo aquele cujos atos “não dependem
da disposição de outrem, de modo a poderem ser anulados a bel-prazer de uma vontade humana
estranha” (CARISTINA; DOMINGOS, 2013, p. 23). Ao soberano é atribuída a observância de
aspectos advindos do direito natural, do direito civil e do direito das gentes ( jus gentium), tendo
como fim a devida proteção do povo em seu estado social. Dessa maneira, forma-se a base para
seu governo, ou, ainda, para o exercício de sua soberania.
Assim, em Grotius, o soberano é um representante legítimo do povo, não sendo consi-
derado superior aos demais por se encontrar em seu cargo. Logo, suas decisões não devem ser
tomadas a seu alvedrio, mas pautadas nos princípios do direito natural, do qual deve possuir
amplo conhecimento, sempre visando o bem comum da comunidade. Vale salientar que o poder
soberano de governar é denominado, por Grotius, de poder civil (DAGIOS, 2012).
Além da definição da gestão ideal do soberano, convém mencionar a formação desta
sociedade, a qual não advém da vontade do soberano, mas da vontade dos indivíduos em esta-
belecer um governo justo que lhe imponha restrições e lhe conceda direitos dentro da razoabili-
dade. Sendo assim, na concepção grociana, há um interesse comum primário na constituição do
Estado e outorga de poder ao soberano por parte de cada um de seus membros. A formação de
seu Estado não se pauta no medo, como afirma Hobbes, mas na própria vontade dos governados
pelo soberano (DAGIOS, 2012, p.4).
Dessa forma, a união dos indivíduos em prol da formação do Estado suscita a abdi-
cação do bem individual em favor do bem comum por parte dos integrantes da comunidade,
estando suas atitudes pautadas na cooperação mútua e amizade entre os mesmos, o que ilustra
exatamente a figura que Grotius idealizou para o modelo ideal de sociedade, assemelhando-se
às proposições de São Tomás de Aquino e Locke, tendo como pressuposto da vida em socieda-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de a lei do amor, a qual promove a união dos homens como verdadeiros irmãos (CARISTINA;
DOMINGOS, 2013, p.11).
Por fim, é mais do que válido ressaltar as contribuições práticas do conceito de sobe-
rania do pensador de Delft nos estudos das relações internacionais, conforme se verá a seguir.
Dessa forma, a integração magistral de Grotius quanto à independência e à autonomia
do Estado soberano, e os desafios de desenvolver relações juridicamente ordenadas entre os Es-
tados em períodos de guerra e paz demonstram a significativa evolução do Direito Internacional
com um trabalho através dos imperativos do poder soberano e autoridade, com suas devidas
restrições sugeridas pela utilização da razão, e expressos sob a forma do Direito Internacional.
369
Nessa perspectiva, uma das suas maiores contribuições para a compreensão da sobera-
nia foi a introdução da racionalidade através do pensamento jurídico e fundamentação jurídica,
e de que esses podem ser a forma ideal de regulação entre as relações internacionais, o que
trouxe a razão como meio de relação de soberanos entre si.
Finalmente, vê-se o devido reconhecimento dado a Grotius na formação do Direito
Internacional, vez que o pensador inseriu na relação entre os Estados a utilização de elementos
como a razão e a fundamentação jurídica, fatores de enorme importância para o desenvolvimen-
to da regulamentação do campo do Direito entre as soberanias.
Apresentados os novos paradigmas trazidos por Grotius para o estudo das relações
internacionais em um momento mais antigo, serão tratadas neste tópico as contribuições grocia-
nas aplicadas a estudiosos atuais em suas respectivas obras. Abordar-se-á, por último, a obra de
John Rawls, a quem se dará mais ênfase, mediante sua importância no desenvolvimento deste
trabalho, quando tratar-se de temas como sua conhecida sociedade dos povos e seu conceito
de soberania, relacionando-o com Grotius. Por fim, baseado na concepção grociana do uso da
razão nas relações entre soberanos, dissertar-se-á sobre a noção dos Direitos Humanos como
princípio legitimador de intervenção na soberania dos Estados.
John Rawls (1931-2002) é a figura central da filosofia liberal do final do século XX.
Desde que apareceu, sua Teoria da justiça suscitou admiração e rejeição, e reabriu
o debate sobre o lugar dos direitos na sociedade liberal. Rawls propõe um quadro de
reflexão teórico que tenta superar a antinomia clássica entre igualdade e a liberdade. O
sucesso de sua obra está, em grande parte, na sua vontade de encontrar uma via política
média, próxima da social-democracia, que se oponha ao mesmo tempo aos excessos do
“liberalismo selvagem” e aos desvios do “socialismo autoritário”. A melhor maneira de
melhorar a sorte dos indivíduos, para ele é a do reformismo (2007, p. 496).
370
Ademais, o referido estudioso de suma importância, não só no meio acadêmico mas
também na construção do presente trabalho, John Rawls, autor do “Direito dos Povos” (1999),
conforme afirma Sérgio Sérvulo da Cunha, revisor técnico da referida obra,
Portanto, uma das mais conhecidas ideias desenvolvidas por John Rawls em sua obra é
a da “sociedade dos povos”, a qual será explorada na próxima subseção, e com a qual será traça-
do um paralelo em relação à concepção de sociedade internacional de Hugo Grotius.
Rawls inicia seu raciocínio atribuindo à sociedade dos povos um caráter democrático
constitucional razoavelmente justo, ou, simplesmente, liberal. A referida sociedade seria com-
posta por dois povos distintos, como preceitua Jordão:
Ele [Rawls] chamará esse tipo de sociedade de Povos bem ordenados, que por sua vez
serão divididos em dois, a saber: a) Povos Liberais Razoáveis, cujas características
são estas: democracias constitucionais ocidentais e que seguem aos princípios do
Estado democrático de direito; b) Povos Decentes: estes são povos “não liberais”,
mas que tem como base de suas ações políticas os direitos humanos, além do mais,
permitem que os seus cidadãos tenham o direito de serem consultados em decisões
primordiais do Estado. (JORDÃO, 2008, p. 68)
Entretanto, apesar de suas diferenças, os povos que compõem a sociedade dos povos
devem ser razoavelmente justos e decentes, além de honrarem o direito dos povos (também de-
vidamente desenvolvido na obra de Rawls).
Além disso, Rawls também afirma que os membros da sociedade dos povos eram li-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
vres e, sobretudo, iguais, sendo esta a primeira conexão que podemos fazer com o pensamento
de Grotius, no sentido de que, em sua sociedade internacional, os indivíduos eram tidos como
iguais perante as normas formuladas pelos membros da sociedade, sendo sua visão sempre
de proporcionar o bem comum para a comunidade como um todo, e não somente para deter-
minados indivíduos. Como Dagios (2012, p. 75) prescreve: “em outras palavras, a sociedade
internacional de Grotius não objetiva o bem da humanidade como um todo, mas apenas o bem
daqueles que pertencem a essa comunidade, e o bem da comunidade é pensado apenas quando
isso favorece os próprios interesses.” (grifo nosso)
371
Ademais, a obra rawlsiana também aduz sobre o caráter evidentemente pluralista da
sociedade dos povos, vez que afirma que um direito dos povos razoável deve ser aceitável para
povos razoáveis que assim são diversos (RAWLS, 1999, p.15).
Dessa forma, constrói-se uma relação direta com a sociedade internacional de Gro-
tius, uma vez que a mesma não possui restrições quanto à integração dos povos em seu meio,
visto que, conforme Dagios (2012, p. 7), “a sociedade internacional não é composta apenas de
católicos ou protestantes, mas de toda a humanidade, mediante a ideia de que a doutrina moral
abrangente obriga a todas as pessoas racionais, sem distinção”5.
Assim, justamente por possuírem esse caráter pluralista, tanto a sociedade dos povos,
quanto a sociedade internacional grociana não exigiam uma unidade religiosa, mas prezavam
pela tolerância entre os povos-membros de cada sociedade (RAWLS, 1999).
Por último, que se faça menção aos “princípios de justiça” elaborados por Rawls para
a sociedade nacional, primeiro passo para o desenvolvimento do direito dos povos (RAWLS,
1999, p. 47-48), dado seu papel crucial como regulamentadores da sociedade dos povos. Nesse
sentido, afirma Jordão (2012, p. 62-63):
Eis os princípios dos Direitos dos Povos, que serão basilares para a Sociedade dos
Povos:
1. Os povos são livres e independentes, e sua liberdade e independência devem ser
respeitadas por outros povos, ou seja, esse é o princípio da autodeterminação: um Povo
é livre para resolver seus próprios assuntos sem a intervenção de forças exteriores;
2. Os povos devem observar tratados e compromissos;
3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam;
4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção;
5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por
outras razões que não a autodefesa;
6. Os povos devem honrar os direitos humanos;
7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra;
8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos que vivem sob condições
desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e decente.
Tais princípios são apenas formulações gerais que podem sofrer acréscimos, pois
eles são princípios mínimos que norteiam o Direito dos Povos e, assim sendo, não
é permitida nenhuma supressão deles, vindo a se formularem de acordo com a
realidade de cada povo. Além do mais existem alguns princípios que foram colocados
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
por Rawls apenas para que haja uma descrição mais detalhada de outros princípios,
de sorte que eles já seriam autoevidentes numa Sociedade dos Povos.
Após fazer referência à fundamental elaboração dos princípios de justiça, Rawls afirma
que não considera relações com outras sociedades quando se traça a ideia de uma sociedade dos
povos, mas a vê como fechada: os indivíduos entrariam apenas pelo nascimento e sairiam com
5 No entanto, isso não enfraquece o argumento de que Grotius e Rawls partem de um mesmo raciocínio.
372
a morte (1999, p.34).
Nesse sentido, pode-se traçar um último paralelo com a sociedade internacional de
Grotius, que também era idealizada como fechada, fazendo parte dela somente Estados-mem-
bros que tivessem os mesmos interesses e pretensões, auxiliando-se através do solidarismo. A
sociedade internacional grociana não detinha caráter global, conforme Dagios (2012, p. 75), “a
sociedade internacional de Grotius não objetivava o bem da humanidade como um todo, mas
apenas o bem daqueles que pertencem a essa comunidade”.
373
de um governo soberano partia da vontade do povo, e não do próprio soberano como indivíduo
autoritário. Da mesma forma, na sociedade dos povos de Rawls, vê-se seus membros se unindo
por afinidades comuns em prol de seu próprio benefício, porém, sem a presença de qualquer
soberano. Como aduz Jordão:
Mas, é preciso antes esclarecer, e Rawls chama a atenção para isso, que esses
princípios não serão defendidos por um Estado mundial, e ele acredita que se assim
fosse haveria ou uma tirania global, ou uma insegurança permanente e os povos
viveriam num estado permanente de guerra, na busca de sua liberdade e autonomia
(2008, p. 62).
No entanto, nota-se uma nítida semelhança entre ambas as teorias, no sentido de que,
tanto a formação da sociedade internacional de Grotius, quanto a sociedade dos povos de Rawls,
apesar de diferirem no seu conceito de soberania e no próprio modo de aplicação da mesma, têm
o mesmo objetivo final: o de proporcionar o máximo de bem-estar para os povos-membros das
sociedades, através dos recursos disponíveis, dadas as devidas circunstâncias.
3.4 A racionalização dos direitos humanos e sua legitimação como meio de intervenção
estatal
A partir dos estudos feitos para o presente artigo, nota-se, por meio das contribuições
grocianas para os estudos das relações internacionais, no sentido da fundamentação jurídica e
racionalização de institutos pertencentes às relações interestatais, que seu pensamento exerceu
influência também nas ideias de Rawls quanto ao adequado tratamento que deve ser dado aos
Direitos Humanos como instituto. Como consequência desses pressupostos de Grotius6, Rawls
também tratará os Direitos Humanos como instituto racional, discorrendo sobre seu tratamento
dentro da sociedade dos povos.
Assim, tanto a influência grociana, quanto a abordagem racional atribuída aos Direitos
Humanos também por Rawls, acarretam na razoável afirmação de que os Direitos Humanos po-
dem ser utilizados como fundamento para a intervenção estatal, sendo este o assunto principal
do presente subtópico, e sobre o qual se discorrerá.
Nesse contexto, a partir de seus estudos sobre o Direito Natural, Hugo Grotius afirma-
va que o mesmo constituía um princípio basilar, definidor da justiça e da ordem social. Assim,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
6 Vale ressaltar que os direitos humanos não existiam como instituto formalizado nos tempos de Grotius, mas
que sua desenvoltura no estudo do Direito Natural foi de fundamental importância para a formação do conteúdo
dos Direitos Humanos que conhecemos hoje.
374
Dessa forma, conforme supracitado, além de diversas outras colaborações de Hugo
Grotius para os estudos das relações internacionais, fez-se presente a introdução da racionalida-
de no trato entre os Estados, baseada na fundamentação e pensamento jurídicos, o que, em seu
pensar, seria a regulamentação ideal para as relações interestatais. É a partir desse pressuposto
que Rawls constrói seu raciocínio em relação aos Direitos Humanos como instituto racional,
desenvolvendo seu conceito, sua função basilar quanto aos “princípios de justiça” da sociedade
dos povos, bem como sua função limitadora das condutas dos membros da sociedade e seu papel
final numa sociedade dos povos razoavelmente justa.
Em sua obra “O Direito dos Povos”, Rawls conceitua os Direitos Humanos: “Os direi-
tos humanos são uma classe de direitos que desempenha um papel especial num Direito dos
Povos razoável: eles restringem as razões justificadoras da guerra e põem limites à autonomia
interna de um regime” (grifo nosso) (1999, p. 103).
No decorrer de sua obra, Rawls se refere aos Direitos Humanos reiteradas vezes como
“direitos”, o que comprova sua introdução destes como instituto racional das relações interna-
cionais, base do pensamento de Grotius neste sentido, conforme dito anteriormente. Segue-se o
presente estudo ressaltando o papel basilar dos Direitos Humanos frente aos demais “princípios
de justiça” postos por Rawls na sociedade dos povos. Inicie-se pela análise do que são tais prin-
cípios dentro da obra rawlsiana:
Destarte, os princípios de justiça é que irão proteger os interesses, como ele [Rawls]
mesmo diz, ‘de ordem superior dos cidadãos’. Toda ideia de bem será moldada pelos
princípios que darão a base e a fundamentação da constituição liberal e da estrutura
básica da sociedade bem ordenada. Serão as instituições que formalizarão como
os cidadãos deverão se comportar dentro de uma situação limite, como no caso de
uma guerra. Sendo assim, não haverá disputa entre as doutrinas abrangentes, pois
os cidadãos terão apenas que segui-las segundo a sua concepção moral (a primeira
como afirma Rawls), mas sem ferir os princípios de justiça propostos não apenas pelo
Estado doméstico, como também pelos Estados que fazem parte da sociedade dos
povos, pois já fora definido na posição original (JORDÃO, 2008, p. 71).
Assim, concorda-se com Jordão, quando este preceitua que “Rawls coloca como base
de uma sociedade bem ordenada o ideal dos Direitos Humanos. É nele que se fundamentam
todos os oitos princípios de justiça que devem ser obedecidos pelos povos e cujo objetivo maior
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
375
liberdade, e o direito à vida. E quando se fala no direito de guerrear ( jus ad bellum),
é que, comparado aos demais conceitos, os direitos humanos têm um maior destaque.
E isso não é só no sentido de ter preferência, mas também de conduzir os demais: “(...)
a guerra não é mais um meio admissível de política governamental e só é justificada
em autodefesa ou em casos graves de intervenção para proteger os direitos humanos”.
(JORDÃO, 2008, p. 66, 67)
Dar-se-á agora relevância às funções dos Direitos Humanos na sociedade dos povos
rawlsiana, quais sejam, as de limitação do Direito nacional de acordo com os ideais dos Direitos
Humanos, bem como de estabelecimento de um padrão necessário às instituições. Conforme
Rawls aduz em sua obra:
Por fim, no que tange aos Direitos Humanos na obra rawlsiana, o autor estabelece “três
papéis”, entendidos aqui como finalidades, que os mesmos detêm, quais sejam:
376
Desse modo, finda-se este estudo comprovando, através dos pensamentos grocianos até
os filósofos atuais, de que o instituto dos Direitos Humanos, por deter caráter racional, pode ser
um instrumento utilizado como fundamento de intervenção na soberania Estatal.
7 BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dez. 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio
de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66.
8 BRASIL. Decreto Nº 7.030, de 14 de dez. 2009. Promulga a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, concluída em 23 de maio
de 1969, com reserva aos Artigos 25 e 66.
377
dos Estados anuentes com as mesmas. A soberania nacional, aqui representada pela atividade
legislativa, é relativa, uma vez que as obrigações assumidas pelo Estado perante a sociedade
internacional não permitem que o legislador nacional legisle ao seu bel-prazer.
No entanto, vê-se que, apesar de os países não deterem de plena soberania para intervir
nos demais Estados, tendo em vista sua obrigação de estar sempre de acordo com as normas es-
tipuladas nos tratados e convenções internacionais, observa-se que os mesmos podem utilizar-se
de outros meios para intervir nas demais soberanias, sem que haja quebra dos tratados. É o caso
do uso dos Direitos Humanos como um fundamento racional e legitimador para a intervenção
de outras soberanias, como foi posto ao longo do raciocínio no presente artigo.
Dessa maneira, como afirma Jordão (2012, p. 4): “Devemos [...] defender que os Direi-
tos Humanos são a base dos princípios de justiça e, com isso, o principal a ser defendido, pois
ele abrange todos os outros. Em seguida, mostrar-se-á que é ele que serve de justificação para as
intervenções [...] no mundo hodierno” (grifo nosso).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, observa-se que, por ser um assunto de considerável importância no âmbito
atual, as relações interestatais necessitam de institutos e normas racionais baseados na funda-
mentação jurídica, como afirma Grotius, para se regularem plenamente. Nos referidos institutos
incluímos os Direitos Humanos, instrumento legitimador de possíveis intervenções nas sobe-
ranias dos Estados, seja para questões de paz ou de guerra, sem que haja violação de normas
internacionais estabelecidas, graças a seu caráter universal e racional.
Como já foi dito, o Direito Internacional é um instituto de enorme importância, haja
vista que regula as relações interestatais, impondo limites às soberanias em inúmeras questões,
sejam de cunho econômico, político, ou qualquer outro, e assim regulamentando o comporta-
mento dos Estados e a devida organização das relações internacionais entre as soberanias.
À vista disso, foi visto que, segundo Grotius, para que haja um devido regimento uni-
versal com o fim de regularizar as relações entre os Estados, o uso da racionalidade e da fun-
damentação jurídica se faz essencial. Também foi falado que, partindo do pressuposto de que
os institutos utilizados para a regulamentação das relações interestatais devem deter caráter
racional, essa característica também está presente no instituto dos Direitos Humanos, tratados
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
378
nacionais; em seguida fazendo uma ponte com o pensamento rawlsiano em relação ao mesmo
tema, e a forma como os Direitos Humanos são tratados como instituto naturalmente racional.
E, justamente por ter essa nova natureza racional, enxergamos os Direitos Humanos nitidamente
como instituto legitimador de intervenções Estatais, seja para quais fins forem.
REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Renato Fagundes de. Rawls: o poder de soberania na sociedade dos povos.
2009. Disponível em: <http://seer.ucg.br/index.php/fragmentos/article/viewFile/1162/807>.
Acesso em: 10 out. 2014.
RAWLS, John. O direito dos povos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
379
SOVEREIGNTY OF THE STATES
ABSTRACT: This article has the objective of reflecting about the possibility
of using the institute of Human Rights as the basis for a intervention in the
sovereignty of the States. To do so, first we will take the contributions of Hugo
Grotius in the rationalization of institutions used in the interstate relations,
as well as the ideas of John Rawls, and show how he puts the Human Rights
institute as rational, giving to this the nature of principle and right at the same
time.
Keywords: Human Rights. Sovereignty. International law.
380
Recebido em 23 fev. 2015
Aceito em 24 abr. 2015
1 INTRODUÇÃO
* Professor Titular Livre do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordenador do
Programa de Recursos Humanos em Direito do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (PRH-ANP/MCTI nº 36) e do Grupo de Pesquisa
em Direito e Regulação dos Recursos Naturais e da Energia. Email: ymxavier@ufrnet.br
** Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Ca-
tarina (UFSC). Professora colaboradora voluntária vinculada ao Departamento de Direito Público da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Pós-doutoranda em Direito – UFRN – PNPD/CAPES. Email: crisforoni@yahoo.com.br
381
que se tornaram canônicos na filosofia política e jurídica moderna e contemporânea, apontando
para as limitações de cada um desses conceitos quando relacionados à proteção ou promoção
de direitos fundamentais.
Sendo assim, a análise ora proposta será realizada em dois momentos. Primeiramente,
serão apresentadas as concepções de liberdade que se tornaram, em certa medida, clássicas
para se pensar a liberdade, notadamente, o conceito de liberdade dos antigos e dos modernos
de Benjamin Constant, o conceito de liberdade negativa e positiva de Isaiah Berlin, e o conceito
de liberdade como ausência de dominação da teoria republicana.Concomitantemente, serão
tecidas considerações críticas em relação a tais conceitos de liberdade no que diz respeito ao seu
potencial de promoção ou proteção de direitos fundamentais.
A seguir, será apresentado e analisado o conceito de liberdade vinculado ao desenvol-
vimento de Amartya Sen, cotejando-se este conceito com os anteriormente apresentados a fim
de verificar em que medida ele pode ser mais adequado à promoção dos direitos fundamentais.
o exercício coletivo e direto das atividades concernentes aos poderes legislativo, executivo ou
judiciário. Trata-se do direito de deliberar diretamente, de votar as leis, de decidir sobre ques-
tões de Estado como a declaração da guerra e da paz, de celebrar tratados e alianças, de realizar
julgamentos.
Nesse sentido, para acentuar as diferenças entre o modo de vida antigo e o moderno,
Constant ressalta que os antigos eram soberanos nas questões públicas, mas escravos em seus
assuntos privados, uma vez que a inexistência da noção de direitos individuais permitia à co-
munidade política invadir esferas da vida privada dos indivíduos.
382
Os modernos, por outro lado, a partir da afirmação dos direitos individuais, são consi-
derados independentes em sua vida privada tanto da autoridade do Estado quanto da autoridade
de outrem, mas justamente em razão de sua dedicação aos seus interesses particulares deixaram
de lado as questões públicas, relegando-as a representantes, de modo que uma importante esfera
da liberdade – a liberdade política – passa a ocupar um segundo plano (CONSTANT, 1861, p.
536-560).
Ao chamar a atenção para a distinção entre esses dois tipos de liberdade – a liberdade
dos antigos e a liberdade dos modernos – Constant, que não estava muito distante de todos os
eventos da Revolução Francesa, haja vista o texto ser de 1819, buscava apontar para os proble-
mas que podem surgir da tentativa de aplicação de um determinado modo de vida e de deter-
minados valores de uma época à outra, principalmente desconsiderando-se valores e contextos
políticos, geográficos e econômicos. Não se trata, pois, de negligenciar a liberdade política, mas
de fazê-la compatível com outros valores, tais como as liberdades individuais.
Após o ensaio de Constant, o conceito de liberdade dos antigos passa a ser associado
à liberdade política ou ao exercício dos direitos políticos, ao passo que o conceito de liberdade
dos modernos associa-se à liberdade do indivíduo e ao exercício dos direitos individuais.
Já no século XX, em 1958, Isaiah Berlin, de certo modo retomando a discussão trazida
por Constant, mas também tendo em vista o embate no âmbito da teoria e da práxis travado
entre o liberalismo e o marxismo, cunha novos conceitos de liberdade que também se tornaram
clássicos em sua relação com os direitos. Berlin aborda o conceito de liberdade em sentido ne-
gativo e de liberdade em sentido positivo (2002, p. 226-272).
A liberdade em sentido negativo significa não sofrer interferência dos outros, ou seja,
é uma liberdade como não interferência. Assim, quanto mais ampla a área de não interferên-
cia, mais ampla é a liberdade dos indivíduos. Contudo, considerando que a vida em sociedade
exige uma certa intervenção do Estado e do Direito no âmbito da liberdade dos indivíduos para
que a convivência seja possível, o que se discute, desse modo, são os limites dessa área de não
interferência. Surge então a necessidade de traçar uma fronteira entre a área da vida privada e
a autoridade pública. Essa fronteira é representada pelos direitos individuais. Logo, o conceito
de liberdade negativa de Berlin pode ser equiparado ao conceito de liberdade dos modernos de
Constant.
A liberdade em sentido positivo, por sua vez, refere-se ao ideal de autogoverno. Visua-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
liza-se, novamente, muita semelhança com o conceito de liberdade dos antigos apresentado por
Constant. Mas aqui a equiparação ao conceito de liberdade dos antigos não pode ser feita sem
chamar a atenção para algumas modificações importantes. O ideal de participação no governo
e de liberdade política, no entendimento de Berlin, não pode ser completamente desconectado
da liberdade em sentido negativo, isto é, da liberdade como não interferência.
Isso porque a ideia de autogoverno reflete justamente o desejo dos indivíduos de que
sua vontade esteja contida no Direito, ou seja, na autoridade que delimitará o campo deixado
livre de interferência, o campo de sua liberdade e de seus direitos individuais. Resguarda-se
383
aqui a esperança de que a participação dos cidadãos na elaboração da lei e na vida pública possa
evitar intervenções indevidas em sua vida privada.
Berlin, por sua vez, não pensa que os conceitos de liberdade negativa e positiva podem
ser conciliados, mas sim que há ao menos um entrelaçamento entre eles, de modo que não po-
deria haver um ideal de participação política ou de autogoverno que desconsiderasse os direitos
e liberdades individuais.
Os conceitos de liberdade negativa e positiva são também utilizados, no âmbito da
teoria constitucional, quando se analisa as funções desempenhadas pelos direitos fundamentais.
Como sabido, os direitos fundamentais exercem a função de defesa e de prestações.
A função de defesa é desempenhada ao se exigir a obrigação de abstenção, por parte
do Estado e de seus agentes, correspondente a um dever de respeito a determinados bens e in-
teresses dos indivíduos assim como de omissão de interferência na esfera da liberdade pessoal
em determinados casos, ou seja, trata-se dos direitos e liberdades individuais, também conside-
rados direitos de primeira geração ou dimensão.
Já a função de prestação é desempenhada quando se impõe ao Estado o dever de colo-
car à disposição dos indivíduos prestações de natureza material e jurídica, como, por exemplo,
os denominados direitos sociais – saúde, educação, trabalho, assistência social, entre outros,
isto é, os direitos de segunda geração ou dimensão. (SARLET, 2001, p. 01-46; CANOTILHO,
1993, p. 541-547; ALEXY, 2008, p. 180 e ss).
De acordo com o jurista português Joaquim José Gomes Canotilho, a função de defesa
dos direitos fundamentais é desempenhada de dois modos, a saber: num plano jurídico-objeti-
vo, os direitos funcionam como normas negativas para os poderes públicos, proibindo a ingerên-
cia destes no campo da vida privada dos cidadãos; e num plano jurídico-subjetivo, os direitos
servem ao exercício positivo dos direitos fundamentais, ou seja, consistem na liberdade para
exercer o direito de ir e vir, na liberdade para exercer o direito de propriedade, de expressão,
entre outros.
Nesse sentido, Canotilho encontra dentro da função de defesa dos direitos fundamen-
tais uma liberdade positiva. Mas ele considera ainda, dentro do plano jurídico-subjetivo, que a
função de defesa dos direitos fundamentais realiza-se também na medida em que esses direitos
permitem aos indivíduos exigirem omissões dos poderes públicos a fim de evitar violações de
seus direitos. Nesse sentido, fala-se em liberdade negativa (1993, p. 541-547).
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
O sentido atribuído por Canotilho aos conceitos de liberdade positiva e negativa não
coincide com aquele de Berlin. No que diz respeito à liberdade positiva, Canotilho faz uso do
conceito para referir-se, no âmbito de um direito subjetivo, ao exercício de direitos fundamen-
tais com função de defesa protegidos constitucionalmente, ao passo que Berlin se refere à liber-
dade de ação ou de participação política. Quanto ao conceito de liberdade negativa, Canotilho
o localiza no âmbito dos direitos subjetivos, enquanto na definição de Berlin os direitos indivi-
duais conectados com a liberdade negativa, isto é, com o direito de não interferência, podem ser
entendidos tanto no âmbito de um direito objetivo quanto subjetivo.
384
Em síntese, os conceitos de liberdade positiva e negativa, conforme apresentados por
Canotilho, são mais restritivos do que aqueles apresentados por Berlin, haja vista estarem atre-
lados à função de defesa dos direitos individuais, excluindo, em primeira análise, os direitos
políticos. Por essa razão, a associação feita por Berlin, por um lado, entre liberdade negativa e
direitos individuais, e, por outro lado, entre liberdade positiva e direitos políticos, torna-se mais
adequada para a análise da proteção e promoção de direitos fundamentais em geral. Por essa
razão, doravante, os conceitos de liberdade negativa e positiva serão utilizados no sentido a eles
atribuídos por Berlin e não por Canotilho.
Os conceitos definidos por Berlin são pensados principalmente a partir do contexto das
sociedades ocidentais após a II Guerra Mundial. Já era de conhecimento público os excessos co-
metidos tanto pelo nazismo na Alemanha quanto pelo stalinismo na União Soviética, excessos
de governos que objetivaram por meio da política estabelecer ideais de fraternidade/identidade
étnico-racial ou de igualdade de classes, em ambos os casos violando direitos individuais.
É nesse contexto que Berlin afirma não ser admissível a restrição da liberdade indivi-
dual em nome de uma suposta ampliação da liberdade social ou econômica. Ele define a liber-
dade em sentido negativo e positivo como dois conceitos correlacionados, haja vista visualizar
que a própria liberdade em sentido negativo dependerá da possibilidade de participação dos
cidadãos no governo. Governo este responsável por estabelecer normas às quais estarão sub-
metidos os cidadãos, traçando assim, o campo de interferência na vida privada da população.
Assim como as definições de Constant, os conceitos de liberdade negativa e positiva de
Berlin funcionam, respectivamente, para se tratar dos direitos individuais (liberdades de pensa-
mento, expressão, religião, iniciativa, empresa, propriedade, locomoção, integridade física, etc.)
e direitos políticos (direito de participação nos atos de governo, direito de votar e de ser votado,
democracia, etc.), mas não são apropriados para se enfrentar reivindicações de outras espécies
que despontam nas sociedades contemporâneas, sobretudo na segunda metade do século XX.
Tais reivindicações têm como pano de fundo a exigência, para a manutenção das liber-
dades negativas ou mesmo da liberdade positiva, da realização, por parte dos Estados, de um
ideal de igualdade mais substancial, necessário para enfrentar, por exemplo, as questões relacio-
nadas à discriminação em razão de gênero, de etnia, de classe, de credo, entre outras presentes
em sociedades multiculturais e plurais.
Nesse sentido, a promoção de uma igualdade em sentido material pode gerar, em al-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
guma medida, uma redefinição do campo individual deixado livre de interferência e, isso, na
opinião de Berlin, não é uma troca desejada, haja vista considerar que a liberdade individual
não pode ser trocada por igualdade social ou econômica (2002, p. 226-272).
Em resumo, os conceitos de liberdade negativa e positiva, conforme definidos por Ber-
lin, podem ser utilizados para analisar a proteção oferecida pelo Estado, respectivamente, aos
direitos individuais e políticos, mas são insuficientes para se abordar questões relacionadas a
direitos sociais, econômicos e culturais.
Um conceito mais abrangente de liberdade, que pode ser associado à proteção de di-
385
reitos sociais, econômicos e políticos, é o de liberdade como ausência de dominação. Essa
concepção, retomada do republicanismo clássico, volta à cena no final dos anos de 1990 e será
aqui apresentada a partir da obra de Philip Pettit.1
A liberdade como ausência de dominação é apresentada como uma terceira via entre a
liberdade positiva e a liberdade negativa, uma vez que pode carregar em si elementos de ambas,
sendo que o elemento negativo consistiria na ausência de dominação e o positivo, na necessida-
de de resistência diante da interferência arbitrária.
A dominação é definida como uma capacidade de interferir, de modo arbitrário, em de-
terminadas escolhas que o outro pode realizar. A interferência, por sua vez, é algo que sempre
torna a situação do sujeito pior, e ela é arbitrária quando desconsidera a opinião daqueles que se-
rão afetados pelo ato. A dominação consiste na aplicação de uma força ou poder arbitrário sobre
o outro. Aquele que sofre essa força ou poder encontra-se numa posição de vulnerabilidade em
relação à arbitrariedade do outro, como por exemplo, o empregado que sofre abusos e não ousa
reclamar do empregador; ou o devedor que depende da benevolência do agiota ou banqueiro
para não ir à bancarrota; ou ainda, os beneficiários dos programas assistenciais que dependem
da ajuda do Estado para sua própria sobrevivência. A liberdade existe, pois, quando nenhum
ser humano goza do poder de interferência arbitrária sobre o outro (PETTIT, 1999, p. 80 e ss).
A ausência de dominação deve fazer-se valer nas sociedades através de mecanismos
instituídos pelo próprio Estado. Pettit trabalha com duas possibilidades de limitação da domi-
nação. Primeiramente cuida para que a prevenção à dominação seja assegurada constitucional-
mente, através do estabelecimento de limites ao poder de interferência arbitrária dos indivíduos
uns sobre os outros e também do próprio Estado sobre os indivíduos. Pensa ainda que devem
ser estabelecidos poderes recíprocos, de modo que as possibilidades de dominação ou não do-
minação sejam as mesmas entre os indivíduos (1999, p. 87-97).
A partir dessa definição de liberdade, Pettit critica o ideal liberal de liberdade como
ausência de interferência sob o argumento de que se for considerado apenas o desejo do in-
divíduo de “ser deixado sozinho e em paz, em particular por parte do Estado” (1999, p. 177),
estar-se-á beneficiando aqueles que pertencem à categoria dominadora – o patrão, o marido, o
proprietário – e deixando sem voz aqueles que pertencem à classe dominada – o trabalhador, a
mulher, os pobres.
A liberdade definida como ausência de dominação, por outro lado, exige do Estado,
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
1 No final dos anos de 1990, principalmente após a publicação do livro de Philip Pettit “Republicanism: the theory of freedom and
government” em 1997, os conceitos centrais da teoria republicana clássica, tais como o de “virtudes cívicas”, “império do direito”, “supremacia
do interesse público” “liberdade” são revisitados e repensados à luz dos problemas das sociedades contemporâneas, principalmente a partir
de questões concernentes à relação entre indivíduo e Estado, indivíduo e sociedade, democracia e direitos individuais e coletivos. No âmbito
da filosofia e da teoria política podem ser mencionadas as obras de Philip Pettit, Maurizio Viroli, Quentin Skinner, Iseult Honohan e Richard
Dagger. No âmbito da filosofia e teoria constitucional destacam-se os trabalhos de Frank Michelman e Richard Bellamy.
386
testações e denúncias acerca de situações em que um indivíduo ou um grupo se coloque em
uma relação de dominação com o outro. Devem também estabelecer medidas inclusivas e que
assegurem a paridade, como por exemplo, reservar uma porcentagem de vagas em instituições e
cargos públicos e/ou privados para mulheres, negros ou indígenas, ou qualquer outro grupo que
necessite de inclusão social. Por fim, as instituições públicas devem ser responsivas no sentido
de que não basta assegurar às pessoas uma base ou um canal para a contestação sem que seja
também assegurado um foro em que as reclamações recebam a audiência apropriada (PETTIT,
1999, p. 254).
Uma república democrática deve estar aberta às transformações profundas pleiteadas
pelos diversos grupos e, ainda, permitir que as identidades grupais se organizem e coloquem
publicamente seus pontos de vista. É imprescindível que esteja apta para contemplar as contes-
tações rotineiras às decisões legislativas, administrativas e judiciais.
A importância do conceito de liberdade como ausência de dominação pode ser melhor
visualizada a partir de uma situação concreta. Tomando-se como exemplo o acesso ao ensino
superior público no Brasil e a questão racial. Nos termos do artigo 208, V, da Constituição Fede-
ral brasileira, o Estado deve garantir o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e
da criação artística, segundo a capacidade de cada um.” O critério que define o acesso às vagas
ofertadas na rede pública, por conseguinte, é o meritório.
Desse modo, o acesso às vagas ofertadas em instituições públicas estaria aberto a
todos os brasileiros, não haveria, em tese, nenhuma discriminação ou privilégio. Na realidade,
contudo, estudos revelam que a maioria dos estudantes das instituições públicas é de cor/raça
branca e pertence às classes sociais mais abastadas.2Ou seja, constata-se na área da educação
que, em razão de injustiças históricas relacionadas aos negros e pobres, estes se encontram
excluídos do direito à educação em nível superior, não obstante este direito ser oferecido como
uma prestação por parte do Estado.
É nesse sentido que se pode visualizar uma dominação de um grupo (os brancos com
melhores condições socioeconômicas) sobre o outro (os negros e pobres), mesmo que formal-
mente seus direitos sejam protegidos pelo Direito e promovidos pelo Estado.
Sendo assim, a partir da perspectiva da liberdade como ausência de dominação é pos-
sível analisar o modo como estão sendo protegidos direitos sociais, econômicos e culturais de
minorias ou de maiorias sem voz e sem força política, isto é, reconhece-se a possibilidade de
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
haver grupos dominantes e grupos dominados, não obstante a proteção do Estado e do Direito
aos direitos individuais e políticos.
A partir dessa perspectiva de liberdade é possível discutir questões como a discrimi-
nação pautada no gênero, na orientação sexual, em classes sociais, em raça ou etnia e, de modo
geral, qualquer situação em que o direito à igualdade e os demais direitos individuais e políticos
2 Perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação das Universidades Federais brasileiras. ANDIFES. Julho/2011. Disponí-
vel em: <http://www.prace.ufop.br/novo/pdfs/publicacoes/Relatorio%20Nacional.pdf> Acesso em 14 mar. 2014.
387
estejam sendo cerceados por uma relação de dominação.
Na esteira dessa discussão, Philip Pettit, em um texto de 2001, aproximou o conceito
republicano de liberdade como ausência de dominação do conceito de liberdade vinculado ao
desenvolvimento de Amartya Sen.3 De acordo com Pettit, a teoria da liberdade de Sen coincide
com o enfoque republicano de liberdade como ausência de dominação porque ambos exigem
mais do que a mera ausência de interferência (como no conceito liberal de liberdade) e avançam
no sentido de explorar as demandas para uma concepção mais inclusiva de cidadania (2001,
p.1-20).
Contudo, os autores neo-republicanos, e entre eles Pettit, têm recebido críticas em seu
resgate dos ideais republicanos justamente por não terem considerado de modo suficientemente
apropriado um ponto central para os autores republicanos clássico, a saber, a necessidade de se
evitar a concentração do poder político e econômico nas mãos de uma minoria, o que se torna
essencial para que os indivíduos possam exercer suas liberdades. (PINZANI, 2010, p. 267-288).
A partir da perspectiva do enfrentamento dos problemas causados pela concentração
de poder político e econômico, o conceito de liberdade de Amartya Sen talvez seja o mais apro-
priado para se analisar os direitos sociais, econômicos e culturais e os correlatos deveres que
surgem para o Estado com relação aos cidadãos, principalmente tendo-se em mente direitos
como: redução da pobreza, eliminação da fome, instituição de uma renda mínima 4, democrati-
zação do acesso ao trabalho, entre outros, que se encontram abarcados em uma concepção de
liberdade estreitamente conectada ao desenvolvimento (REGO; PINZANI, 2013).
A discussão promovida por Amartya Sen a respeito do conceito e dos papéis da liber-
dade insere-se no contexto de uma discussão bastante ampla e, talvez, a mais importante da fi-
losofia política contemporânea, que é aquela das teorias da justiça. Essa discussão tem início na
segunda metade do século XX, com a publicação por John Rawls, em 1971, de Uma Teoria da
Justiça, obra que tem como objetivo principal desenvolver uma concepção liberal e igualitária
de justiça social (2008). Desde então, teóricos de vieses teóricos bastante distintos (liberais, li-
bertários, comunitaristas, neorrepublicanos, etc) ao travarem um diálogo com as teses de Rawls
oferecem importantes contribuições para o tema da justiça social.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
Em seu livro A ideia de Justiça, Sen identifica, desde o Iluminismo até a atualidade,
duas principais linhas de argumentação racional sobre a justiça, a saber: a abordagem do insti-
tucionalismo transcendental e a abordagem da comparação focada em realizações.
3 Pettit denomina a liberdade na teoria de Amartya Sen como “liberdade como independência.” Embora a nomenclatura seja pertinente,
não se adotará essa nomenclatura e se fará referência ao conceito de Sen, de forma mais abrangente, como um conceito de liberdade
vinculado ao desenvolvimento.
4 A respeito da teoria da liberdade de Sen e a implementação de uma renda mínima no Brasil (Programa Bolsa Família) ver: REGO e
PINZANI, 2013.
388
A abordagem do institucionalismo transcendental foi inaugurada por Thomas Hobbes
no século XVII e seguida pelos demais filósofos denominados contratualistas, notadamente,
John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Immanuel Kant e, hodiernamente, John Rawls. Segundo
Sen, essa abordagem busca encontrar arranjos institucionais justos para uma sociedade e, na
esteira desse objetivo, pretende encontrar a natureza do “justo” ao invés de buscar critérios para
identificar que a alternativa “x” pode ser menos injusta que a alternativa “y” (2011, p. 35 e 36).
A abordagem da comparação focada em realizações, por sua vez, pode ser encontrada
na obra de filósofos como Adam Smith, Marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, Karl Marx
e John Stuart Mill. A metodologia utilizada por essas teorias consiste em efetuar comparações
focadas em realizações, tendo como interesse a remoção de injustiças evidentes do mundo em
que seus idealizadores viviam.
Sen reconhece que a maioria das teorias da justiça modernas e contemporâneas (por
exemplo, aquelas de John Rawls, de Ronald Dworkin ou de Robert Nozick) filia-se à abordagem
institucional transcendental, mas esclarece que a sua teoria da justiça, por outro lado, filia-se
à abordagem da comparação focada em realizações, tendo como objetivo “investigar compa-
rações baseadas nas realizações que focam o avanço ou o retrocesso da justiça” (2011, p. 39).
Desse modo, enquanto uma teoria da justiça de abordagem institucional transcen-
dental busca respostas para a pergunta “o que seriam instituições perfeitamente justas?”, a
abordagem da comparação focada em realizações tenta responder à pergunta “como a justiça
pode ser promovida?”. A diferença principal entre as abordagens, segundo Sen, é que em vez
de focar apenas em instituições e regras, o modelo por ele escolhido concentra-se também nas
realizações que ocorrem nas sociedades envolvidas.
É exatamente na tentativa de responder à pergunta “como a justiça pode ser promo-
vida?” que Sen defende uma concepção de liberdade ampla, na qual a liberdade em uma dada
questão consiste em gozar de preferência decisiva, ou seja, de oportunidade de decidir algo (não
necessariamente de escolha decisiva) em relação a esta questão.5
Tal concepção de liberdade é delineada em vários de seus textos e pode ser melhor
compreendida dentro do que o próprio autor denominou Perspectiva das Capacidades (Capa-
bility Approach), que consiste em uma estrutura para a avaliação do bem-estar individual e da
liberdade para que o bem-estar seja buscado. Essa abordagem proporciona uma base teórica
para a análise das desigualdades, da pobreza e das políticas públicas a partir de dois conceitos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
5 Essa interpretação do conceito de liberdade em Sen é feita por Philip Pettit (2011, 1-20).
6 Capability Approach tem sido traduzido para o português como “perspectiva das capacidades.” Embora os tradutores das obras de
Sen para a língua portuguesa tenham optado pela tradução dos termos “capability” e “functionings” respectivamente por “capacidade”
e “ funcionamentos”, é importante acrescentar ao lado da tradução o termo em seu idioma original a fim de preservar o sentido atribuído
pelo próprio autor a esses termos, tendo em vista que ambos possuem um significado específico e distinto do uso corrente das palavras
“capacidade” e “funcionamentos” na língua portuguesa.
389
ter boa saúde, conseguir evitar a morte prematura) ou complexos, (tais como ser feliz, ter autor-
respeito, tomar parte nas decisões políticas da comunidade, etc.). Elementares ou complexos,
funcionamentos são considerados constitutivos para o bem-estar individual. (SEN, 1992, p. 39;
SEN, 2000, p. 95).
Capacidades, por sua vez, consistem em combinações alternativas de funcionamentos,
configurando propriamente uma espécie de liberdade das pessoas para opinar ou para preferir
entre modos de vida possíveis. Se funcionamentos são constitutivos do bem-estar dos indiví-
duos, capacidades podem ser entendidas como a liberdade dos indivíduos para alcançar o bem-
-estar (SEN, 1992, p. 40-41; SEN, 2000, p. 95).
Andar de bicicleta, por exemplo, pode ser uma espécie de funcionamento. Um executi-
vo que vai de bicicleta ao trabalho por consciência ecológica ou por lazer e um operário que vai
ao trabalho de bicicleta porque não há um sistema de transporte público disponível ou porque
este é ineficiente estão compartilhando o mesmo funcionamento, mas ambos possuem razões e
contextos bastante distintos. O executivo que vai ao trabalho de bicicleta poderia ter feito outras
escolhas para se locomover (como utilizar seu carro ou tomar um taxi), já o operário possui
um leque mais restrito de opções ( funcionamentos). No exemplo dado a liberdade do executivo
é maior que a do operário, justamente porque aquele tinha mais opções do que este. (REGO;
PINZANI, 2013, p. 60).
Na esteira desse raciocínio, podem também ser pensadas questões sociais relevantes:
é diferente quando alguém passa fome porque está fazendo uma greve de fome (uma atitude
política para a qual o grevista teve a oportunidade manifestar sua preferência) e quando alguém
passa fome porque não tem recursos financeiros e nem outros meios de adquirir alimentos,
como no caso da pobreza estrema ou das fomes coletivas em que não há a possibilidade de ma-
nifestação de preferência. Ou, ainda, é diferente quando uma mulher tem inúmeros filhos por-
que não tem condições de evitar a concepção, por imposições sócio-culturais como a religião,
ou por completa ausência de conhecimento de métodos contraceptivos, ou quando os filhos
resultam de uma decisão na qual se pôde preferir ter muitos filhos em detrimento de poucos.
Segundo Sen, a perspectiva das capacidades permite avaliar tanto os funcionamentos
realizados (o que uma pessoa realmente fez) quanto o conjunto de capacidades (suas oportuni-
dades reais, isto é, o que a pessoa é substancialmente livre para fazer).
Mas o que significa ser substancialmente livre? Como pode ser definida a liberda-
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
de em sentido substantivo conforme pensada por Sen? A liberdade substantiva não pode ser
equiparada aos conceitos de liberdade anteriormente analisados, isto é, a liberdade substantiva
não é meramente a liberdade em sentido negativo ou positivo conforme pensada por Berlin (e
também por Constant) e, embora guarde alguma semelhança, vai além do conceito de liberdade
como ausência de dominação da teoria republicana.
Com efeito, é certo que a liberdade substantiva abarca o conceito negativo de liberda-
de, isto é, os direitos e liberdades individuais estão inseridos na concepção seniana de liberdade
substantiva. Em Desenvolvimento como liberdade, Sen afirma que a liberdade está relacionada
390
à expansão das capacidades, ou seja, à ampliação das possibilidades de escolha das pessoas
para levarem a vida que valorizam (2000, p. 32).
Isso não implica, contudo, apenas ausência de interferência do Estado na vida priva-
da dos indivíduos a fim de permitir a liberdade de iniciativa e de empresa, de consciência, de
credo, etc. Significa também que as liberdades políticas de participação nas decisões públicas
devem ser proporcionadas, abarcando, também, uma concepção positiva de liberdade. Segundo
o autor, trata-se de uma “relação de mão dupla”, haja vista que as capacidades “podem ser au-
mentadas pela política pública, mas também, por outro lado, a direção da política pública pode
ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades participativas do povo”. (2000, p. 32).
A visão da liberdade de Sen envolve processos que permitem a liberdade de ação e
de decisão e exatamente por essa razão ele manifesta uma preocupação central em analisar as
oportunidades reais que as pessoas possuem, considerando suas circunstâncias pessoais e so-
ciais.
Nesse sentido, para avaliar as oportunidades reais deve ser levada em consideração
uma série de contingências que podem afetar a vida das pessoas, tais como heterogeneidades
pessoais (idade, gênero, deficiências, saúde, etc), diversidades no ambiente físico (condições
ambientais, climáticas, inundações, secas, etc), variações no clima social (saúde pública, condi-
ções epidemiológicas, ausência ou presença de violência e criminalidade, ensino público, etc),
diferenças de perspectivas relacionais (padrões de comportamento de uma sociedade como
padrões mais ou menos elevados de vestuário e consumo) (SEN, 2011, p. 289 e 290).
A liberdade seria então aquilo que o desenvolvimento deve promover (SEN, 2000, p.
17). Nesse sentido, Sen entende que a liberdade desempenha dois papéis cruciais no conceito de
desenvolvimento, papéis estes relacionados à avaliação e à eficácia.
No que diz respeito à avaliação, o autor entende que o êxito de uma sociedade deve
ser avaliado “primordialmente segundo as liberdades substantivas que os membros dessa so-
ciedade desfrutam” (2000, p. 32). As liberdades substantivas, por sua vez, podem ser definidas
como capacidades elementares, tais como “ter condições de evitar privações como a fome, a
subnutrição, a morbidez evitável e a morte prematura, saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter
participação política e liberdade de expressão, etc.” (SEN, 2000, p. 52).
Tais liberdades são importantes tanto porque aumentam a liberdade global das pes-
soas, quanto porque favorecem a oportunidade de se alcançar resultados considerados valiosos
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
391
tão central para o desenvolvimento. (2000, p. 33).
Nesse contexto, o autor interessa-se pela “condição de agente” do indivíduo, considera-
do como um “membro do público e como participante de ações econômicas, sociais e políticas
(interagindo no mercado e até mesmo envolvendo-se, direta ou indiretamente, em atividades
individuais ou conjuntas na esfera política ou em outras esferas)” (2000, p. 33).
A condição de agente dos indivíduos, o desenvolvimento e a expansão da liberdade
substantiva estão estreitamente relacionados, uma vez que a condição de agente pode ser incen-
tivada e promovida pela ampliação das liberdades substantivas, as quais, por sua vez, dependem
do aumento do leque de opções ( funcionamentos) disponíveis para os indivíduos a respeito de
uma determinada questão relevante. Trata-se, mais precisamente, de aumentar a autonomia dos
sujeitos de direito em questões relevantes para suas vidas.
A condição de agente, assim como a liberdade substantiva, pode ser fomentada a partir
de um conjunto de liberdades chamadas por Sen de liberdades instrumentais, quais sejam: a)
liberdades políticas (trata-se dos direitos relacionados à participação política, desde direitos
básicos como liberdade de expressão e de imprensa, de voto, até oportunidades de participação
mais concreta nas decisões políticas que as afetam); b) facilidades econômicas (consiste na pos-
sibilidade das pessoas terem acesso a crédito e de poderem utilizar recursos econômicos para
propósitos diversos, tais como consumo e produção); c) oportunidades sociais (tais como acesso
ao sistema educacional ou ao sistema de saúde, acesso ao trabalho, etc); d) garantias de trans-
parência (garantias associadas à publicidade e à clareza nos negócios públicos, à possibilidade
de que os cidadãos desempenhem um papel na prevenção da corrupção e na fiscalização dos
investimentos públicos); e) segurança protetora (uma rede de segurança social, com a adoção
de medidas tais como seguro desemprego ou renda mínima, que impedem que as pessoas che-
guem a uma condição de pobreza extrema) (2000, p. 55-57).
Sendo assim, a concepção de liberdade substantiva proposta na obra de Amartya Sen
é mais abrangente que as concepções vistas anteriormente, haja vista abarcar as liberdades
negativas, as liberdades positivas, um ideal de ausência de dominação (de um indivíduo sobre
o outro ou de um grupo sobre o outro) e uma série de medidas que devem ser adotadas pelos
governos a fim de ampliar as oportunidades reais para que as pessoas alcancem aquilo que va-
lorizam.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
392
talhada da economia, é mais apropriado do que o conceito de liberdade republicano para tratar
de questões que envolvem, principalmente, desigualdades socioeconômicas.
A liberdade considerada deste modo, como manifestação de uma preferência decisiva,
não é excludente em relação aos demais conceitos de liberdade acima mencionados. Essa con-
cepção de liberdade abarca a liberdade negativa (os direitos individuais), a liberdade positiva
(os direitos políticos) e certamente a liberdade como ausência de dominação (direitos sociais,
econômicos e culturais), consistindo numa concepção substancial de liberdade. como o próprio
Sen a define.
Tomando-se como referência o conceito substancial de liberdade de Amartya Sen,
pode-se sustentar a responsabilidade do Estado no estabelecimento de um certo nível de igual-
dade, pois sem que seja assegurado aos indivíduos independência, seja em relação a situações
naturais como a fome ou a fecundidade, seja em relação a situações socioeconômicas e culturais
como a dominação de um indivíduo por outro, de uma classe por outra, de um grupo por outro,
não há possibilidade de se gozar uma preferência decisiva.
Desse modo, muitos direitos podem ser associados ao que Amartya Sen chama de
liberdade instrumental, isto é, uma série de direitos e de oportunidades que contribui ou para
promover a capacidade geral de uma pessoa ou para complementar outros direitos e oportuni-
dades.
Em suma, a concepção de liberdade de Amartya Sen, a qual é vinculada à noção de
desenvolvimento, justamente contrapondo-se a uma visão restrita de desenvolvimento atrelado
ao crescimento meramente econômico, mostra que uma sociedade apenas pode ser considera-
da desenvolvida quando promove uma série de liberdades, as quais, por sua vez, demandam a
concretização de uma gama de direitos, tais como ter acesso a alimentação, saúde, educação,
uma renda mínima, entre outros que garantam aos indivíduos a possibilidade de fazer escolhas.
Esses direitos são interdependentes e devem ser realizados concomitantemente. Sua concreti-
zação, entretanto, passa necessariamente pelo enfrentamento da questão da concentração de
poder político e econômico, o que exige uma postura ativa do Estado e do Direito.
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
393
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FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
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técnica Ricardo Doniselli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
394
SEN, Amartya. Inequality Reexamined. New York: Oxford University Press, 1992.
395
POBREZA
nestas lentes
sobressalentes
não passam navios nem aviões
que perturbam o sono das cidades
elas registram o passado presente
de nossas paisagens
algo comum de tão diferente
revelam o amor a tempo esquecido
no baú dos sonhos de todos os livros
referendam o Simples por excelência
que divaga nos morros desta era
nestas lentas
sonolentas lentes
vejo o mundo insensato
cheio de suas coisas
FIDES, Natal, v.6 , n. 1, jan./jun. 2015.
* Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Pesquisador nos Grupos de
Pesquisa “Constituição Federal brasileira e sua Concretização pela Justiça Constitucional”, e “Direito, Estado e
Sociedade”, ambos da UFRN.
396
Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade
w w w. rev is t af i d e s .co m