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ISSN 2358-3223

Revista Nacional de
Direito de Família e Sucessões
Ano IX – Nº 52
Jan-Fev 2023

Classificação Qualis/Capes: A4

Editor
Fábio Paixão

Coordenador
Mário Luiz Delgado

Conselho Editorial
Álvaro Villaça Azevedo – Águida Arruda Barbosa – Cibele Pinheiro Marçal Tucci
Débora Brandão – Débora Gozzo – Fernanda Tartuce – Gilberto Fachetti Silvestre
Guilherme Calmon Nogueira da Gama – Jones Figueirêdo Alves – Luis Felipe Salomão
Maria Helena Braceiro Daneluzzi – Marília Xavier – Pablo Malheiros da Cunha Frota
Paula Victor (Portugal) – Rodolfo Pamplona Filho – Rodrigo Mazzei
Rodrigo Toscano de Brito – Rui Portanova – Ursula Basset (Argentina)

Colaboradores deste Volume


Aloísio Alencar Bolwerk – Amanda Danyane de Almeida Silva
Ana Raquel Fortunato dos Reis Strake – Anna Beatrice Silva Dantas
Augusto Passamani Bufulin – Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas
Eroulths Cortiano Junior – Felipe Varela Caon – Fernanda Bissoli Pinho
Fernanda Tartuce – Layssa Gabrielly B. Garcia Ramos – Marcos Paulo Bianchini
Paulo Mayerle Queiroz – Rebeca Nogueira Verbicaro – Renato Horta Rezende
Rodrigo Mazzei – Schamyr Pancieri Vermelho – Silvia Felipe Marzagão
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões
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Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões


v. 1 (jul./ago. 2014)-.– Porto Alegre: Magister, 2014-
Bimestral. Coordenação: Mário Luiz Delgado.

v. 52 (jan./fev. 2023)
ISSN 2358-3223

1. Direito de Família – Periódico. 2. Direito de Sucessão – Periódico.

CDU 347.6(05)
CDU 347.65(05)

Ficha catalográfica: Leandro Lima – CRB 10/1273


Capa: Apollo 13

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Carolina Scatena do Valle, Cassio Sabbagh Namur, Cibele Pinheiro Marçal Tucci, Clarissa Bernardo, Cláudia Stein Vieira, Débora
Brandão, Débora Gozzo, Fernanda Tartuce, Flávio Murilo Tartuce Silva, Gabriele Tusa, Jones Figueirêdo Alves, José Fernando Simão,
Marco Antonio Fanucchi, Maria Fernanda Vaiano S. Chammas, Mário Luiz Delgado, Natalia Imparato, Renata Mei Hsu Guimarães,
Renata Silva Ferrara, Silvano Andrade do Bonfim, Valeria Lagrasta Luchiari.

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Sumário
Doutrina
1. Os Direitos da Personalidade e o Direto das Famílias: Pontos de
Convergência
Felipe Varela Caon e Silvia Felipe Marzagão............................................................... 5
2. Eficácia do Pacto Antenupcial como Contrato de Convivência
Eroulths Cortiano Junior e Paulo Mayerle Queiroz.................................................... 29
3. Empresas Familiares, Sociedades Limitadas e Impacto Econômico Positivo da
Mediação Empresarial Familiar
Fernanda Tartuce, Rebeca Nogueira Verbicaro e Ana Raquel Fortunato dos Reis Strake.... 53
4. Artigo 390 do Novo Código de Normas da Corregedoria-Geral de
Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – Provimento
nº 87/2022: Genuína Expressão dos Anseios Sociais, sem o Necessário
Poder Normativo: Agente de Mudanças ou Apenas um Intensificador de
Instabilidades?
Ana Raquel Fortunato dos Reis Strake....................................................................... 78
5. Nem Isso, Nem Aquilo. Art. 1.698 do Código Civil como Modalidade
Especial e Autônoma de Intervenção de Terceiros
Augusto Passamani Bufulin e Schamyr Pancieri Vermelho........................................ 104
6. Da Monogamia à Boa-Fé Objetiva: Breves Considerações para o
Reconhecimento das Uniões Familiares Poliamorosas
Aloísio Alencar Bolwerk e Layssa Gabrielly B. Garcia Ramos.................................. 118
7. (Im)Possibilidade de Reconhecimento de União Estável no Metaverso
Renato Horta Rezende e Marcos Paulo Bianchini.................................................... 133
8. A Valorização das Quotas Sociais e a sua Projeção para a Sucessão Causa
Mortis, o Divórcio e a Dissolução da União Estável
Rodrigo Mazzei e Fernanda Bissoli Pinho............................................................... 152

Jurisprudência Comentada
1. Superior Tribunal de Justiça – Adoção. Destituição do Poder Familiar e
Abandono Afetivo. Cabimento. Exame das Específicas Circunstâncias
Fáticas da Hipótese. Criança em Idade Avançada e Pais Adotivos Idosos.
Ausência de Vedação Legal que Deve Ser Compatibilizada com o Risco
Acentuado de Insucesso da Adoção. Notória Diferença Geracional.
Necessidade de Cuidados Especiais e Diferenciados. Provável Ausência
de Disposição ou Preparação dos Pais. Ato de Adoção de Criança em
Avançada Idade que, Conquanto Louvável e Nobre, Deve Ser Norteado
pela Ponderação, Convicção e Razão. Consequências Graves aos
Adotantes e ao Adotado. Papel do Estado e do Ministério Público no
Processo de Adoção
Relª p/o Ac. Minª Nancy Andrighi.......................................................................... 173
– STJ Fixa Indenização por Danos Morais em Decorrência do
Abandono Afetivo dos Pais Adotivos em Relação à Criança Adotada
Amanda Danyane de Almeida Silva, Anna Beatrice Silva Dantas e
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas................................................................. 196
Doutrina

Os Direitos da Personalidade e o Direto das


Famílias: Pontos de Convergência

Felipe Varela Caon


Advogado; Mestre em Direito Privado pela UFPE; Doutorando
em Direito Civil pela PUC-SP; e-mail: fvcaon@gmail.com.

Silvia Felipe Marzagão


Advogada; Mestre em Direito Civil pela PUC-SP; Presidenta
da Comissão Especial da Advocacia de Família e Sucessões da
OAB/SP; e-mail: silvia@sfem.com.br.

RESUMO: Este artigo objetiva realizar a análise, não conclusiva, de questões


afetas aos direitos da personalidade, dentro do contexto das relações familiares,
levando em consideração alguns casos paradigmáticos e julgados relacionados a
cada um dos tópicos. Observando a questão da tutela do ser, segundo a ótica do
direito civil constitucional, analisa os direitos da personalidade e a sua extensão
dentro do contexto do estudo do direito das famílias, com destaque ao nome
(caso dos transexuais/transgêneros), imagem, privacidade e intimidade (casos do
sharenting), honra (caso da indenizabilidade dos danos morais, no caso de infide-
lidade) e integridade física (casos de procedimentos de reafirmação de gênero).

PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil Constitucional. Direitos da Personalidade.


Famílias.

SUMÁRIO: 1 Introdução: a Tutela do Ser no Direito Brasileiro e o Direito


Civil Constitucional. 2 Personalidade e Direitos Dela Decorrentes. 3 Direitos da
Personalidade, um a um: Aspectos Polêmicos e Experiência nos Tribunais; 3.1
Direito à Vida e à Integridade Física: Casos da Esterilização e dos Procedimentos
de Reafirmação de G�������������������������������������������������������
ênero; 3.2 Direito ao Nome: Caso dos Transexuais/Trans-
gêneros; 3.3 Direito à Imagem, à Intimidade e à Vida Privada: Caso do Sharenting;
3.4 Direito à Honra: Caso da Indenizabilidade dos Danos Morais, no Caso de
Infidelidade. 4 Considerações Finais. 5 Referências Bibliográficas.

1 Introdução: a Tutela do Ser no Direito Brasileiro e o Direito Civil


Constitucional
Muito embora a tutela do ter seja de extrema importância ao direito
brasileiro, especialmente ao direito civil, o vértice do ordenamento jurídico
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
6

pátrio está no ser, quando se tem como valor máximo no sistema a tutela da
pessoa humana, expresso no art. 1º, III, da Constituição da República1.
Tendo em vista que a tutela da existência e de todos os seus meandros
se reveste de status constitucional, os direitos ligados à personalidade, essen-
cialmente aqueles listados no inciso X do art. 5º da Constituição Federal
(intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas), terão proteção plena.
De fato, após o advento da Constituição Cidadã, ao direito privado se
passou a incorporar de maneira ainda mais evidente contornos constitucionais.
Podemos dizer, desse modo, que o direito civil que trate das questões ligadas
à personalidade é direito privado constitucional. E não poderia ser diferente,
diante da evidente estruturação que a Constituição Federal concede a toda a
sistemática jurídica.
A análise da questão ligada à personalidade e aos direitos a ela inerentes,
assim, sempre deverá ser verificada sob aspectos constitucionais. E, desse
modo, como a Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana
como um de seus valores primordiais (art. 1º, III), a proteção aos aspectos da
personalidade necessariamente deve ter essa perspectiva. Com efeito:
“A ampliação da tutela da pessoa nas relações privadas se intensificou espe-
cialmente nas últimas décadas, quando a agenda do Direito Civil assumiu
como prioritária a tarefa de repensar seus instintos tradicionais de modo a
adequá-los ao comando constitucional de 1988, que tem na dignidade da
pessoa humana um dos fundamentos da República.”2

A ideia deste estudo, portanto, até mesmo por estarmos em um siste-


ma jurídico aberto, é analisar o viés jurisprudencial da tutela dos direitos da
personalidade (com as possíveis convergências com o direito das famílias),
sob o princípio do direito civil constitucional, já que:
“Faz-se necessário, então, buscar nos ‘Princípios Gerais do Direito’ as ba-
ses da compreensão e aplicação de um direito mais justo. Se uma lei não
estiver em consonância com os princípios gerais do direito, os julgamentos
não serão verdadeiramente justos. É que ‘a significação lógica das leis e sua
virtude plasmadora das relações sociais pode ir, e geralmente vai, muito
além do que pensaram e previram os que formavam’.”3

1 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 3.
2 CASTRO, Thamis Dalsenter Viveiros de. Desafios para a tutela do Direito de não saber: corpo, autonomia e priva-
cidade. In: TEPEDINO, Gustavo; MENEZES, Joyceane Bezerra de. Autonomia privada, liberdade existencial e direitos
fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 191.
3 KOHLER. Ueber die interpretation von Gesentzen. In: Zeitschrift f.d. Priv. und off. Recht d. Gegenwart, Bd. XIII, Viena,
1885. In: DEL VECHIO, Giorgio. Princípios gerais do direito. Tradução de Fernando de Bragança. Belo Horizonte:
Leider, 2003. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2016.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 7

A proposta é que se caminhe, sempre, no sentido da individuação de um


sistema do direito civil harmonizado com os valores constitucionais – e, antes
de tudo, ao valor da pessoa humana –, na redefinição dos fundamentos dos seus
institutos, destacando os seus perfis funcionais, e na adequação das técnicas e
conceitos tradicionais, renovando a argumentação jurídica, a partir da proposição
de uma teoria de interpretação respeitosa da legalidade constitucional4.
E, nesse contexto, não se deve olvidar que, conforme leciona Mário
Luiz Delgado, a tutela das emanações da personalidade deve ser aplicada in-
distintamente, tanto nas relações dos indivíduos frente ao Estado como nas
relações entre particulares, inclusive nas relações internas da família5.

2 Personalidade e Direitos Dela Decorrentes


Tal como conceituam Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carolina
Brochado Teixeira, personalidade é a possibilidade de alguém de participar de
relações jurídicas, decorrente da qualidade inerente ao ser humano que lhe
confere a titularidade de direitos e deveres, constituindo-se seu viés subjetivo6.
Nos termos do art. 2º do Código Civil, a personalidade civil da pessoa
começa do nascimento com vida. Desde a concepção, contudo, a lei põe a
salvo os direitos do nascituro.
Podemos afirmar, assim, que o marco inicial para o início da personali-
dade é o nascimento com vida. Desse modo, ao eleger o marco inicial para o
início da personalidade, parece-nos que o direito brasileiro se filia à corrente
natalista (e não concepcionista ou da personalidade condicionada), muito
embora não exista consenso sobre o tema.
A ausência de consenso decorre do fato de que, mesmo o Código Civil
tratando do nascimento com vida como princípio da personalidade, não há
desproteção ao nascituro, que tem direitos reconhecidos e protegidos pelo
ordenamento. É que ao nascituro são assegurados os direitos à doação, ao
reconhecimento à vocação hereditária, ao reconhecimento de paternidade
antes do nascimento e, além disso, a tutela da sua honra e moral.
No julgamento do Recurso Especial 1.487.089/SP, o E. Superior Tribu-
nal de Justiça pôde enfrentar a questão em ação indenizatória promovida pela
cantora Wanessa Camargo e seu marido Marcus Buaiz. No feito, a cantora e

4 PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do direito civil na legalidade constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.).
Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 8.
5 DELGADO, Mário Luiz. Direitos da personalidade nas relações de família. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
FAMÍLIA, 5., 2005, Belo Horizonte. Anais (...). Belo Horizonte: IBDFAM Nacional, 2005. p. 42.
6 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; MENEZES, Joyceane Bezerra de. Gênero, vulnerabilidade e autonomia: repercussões
jurídicas. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 353.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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seu marido pleiteavam, em nome próprio, e em nome do filho nascituro, in-


denização contra supostas ofensas perpetradas pelo humorista Rafinha Bastos.
De fato, o Superior Tribunal de Justiça arbitrou indenização em prol de
menor incapaz maculado em sua honra durante a gestação da sua mãe, enquan-
to era nascituro. O julgado ratificou a posição do E. TJSP que considerou o
nascituro com capacidade ativa de ser parte em juízo para pleitear indenização:

“AÇÃO INDENIZATÓRIA. NASCITURO. ILEGITIMIDADE ATIVA.


Inocorrência. Inteligência do art. 2º do CC. Capacidade ativa, de ser parte;
estar em juízo. Nascimento com vida que leva à investidura na titularidade
da pretensão de direito material exposta na inicial.”

Segundo o julgado, os comentários jocosos feitos pelo humorista em


questão foram tidos como suficientes também para macular a honra do nas-
cituro, razão pela qual a criança, agora nascida, faria jus à indenização:

“Neste iter, verifica-se das conclusões externadas pelas instâncias prece-


dentes que o comentário tecido pelo acionado em veículo de comunica-
ção televisivo de âmbito nacional, dando conta de que o protagonista da
manifestação gostaria de manter relações sexuais com a esposa do outro
personagem do diálogo, além do próprio nascituro, é reprovável, agressivo
e grosseiro, sendo efetivamente causador de abalo moral.”7

Já no tocante aos embriões, há grande divergência no campo jurídico.


Há quem entenda serem eles comparados aos nascituros, sem qualquer dis-
tinção, estando englobados na proteção contida no art. 2º do Código Civil.
Para outros, existiria essa mesma proteção.
A discussão mais profunda que se teve sobre o tema foi a travada na
ADI 3.510, julgada improcedente para reconhecer a constitucionalidade do
art. 5º da Lei da Biossegurança Nacional. Tal preceito permite a realização de
pesquisas e terapias com o uso de células-tronco de embriões humanos, desde
que sejam embriões inviáveis ou congelados há mais de três anos.
Por ocasião do julgamento, duas correntes principais se destacaram.
A primeira delas dá ao embrião status de pessoa. Para essa corrente, não se
poderia utilizar as células troncos, pois seriam retiradas de um ser humano
em estágio de embrião. Já a segunda corrente, que nos parece mais acertada,

7 BRASIL. Supremo Tribunal Justiça. Recurso Especial nº 1.487.089/SP. Recurso Especial. Ação de indenização por danos
morais. Comentário realizado por apresentador de programa televisivo, em razão de entrevista concedida por cantora
em momento antecedente. Instâncias Ordinárias que afirmaram a ocorrência de ato ilícito ante agressividade das
palavras utilizadas e, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana, determinaram a responsabili-
zação civil do réu pelos danos morais suportados pelos autores, aplicando verba indenizatória no montante de R$
150.000,00 (cento e cinquenta mil reais). Irresignação do réu. Relator: Sr. Ministro Marcos Buzzi. Disponível em:
https://www.stj.jus.br/static_files/STJ/Midias/arquivos/Noticias/REsp%201487089.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.
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entende que o embrião, por si só, não é dotado de vida humana. Só será se
houver intervenção para tanto, com implementação no útero materno e de-
senvolvimento regular da gestação.
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar improcedente a ADI, por fim
consagrou que o embrião não é entidade dotada de personalidade, já que:
“Se é assim, ou seja, cogitando-se de personalidade numa dimensão biográfi-
ca, penso que se está a falar do indivíduo já empírica ou numericamente agre-
gado à espécie animal-humana; isto é, já contabilizável como efetiva unidade
ou exteriorizada parcela do gênero humano. Indivíduo, então, perceptível
a olho nu e que tem sua história de vida incontornavelmente interativa.
Múltipla e incessantemente relacional. Por isso que definido como membro
dessa ou daquela sociedade civil e nominalizado sujeito perante o Direito.”8

Nesse mesmo sentido, aliás, é o Enunciado nº 2 da I Jornada de Direito


Civil: “Sem prejuízo dos direitos da personalidade nele assegurados, o art. 2º
do Código Civil não é sede adequada para questões emergentes da reprogené-
tica humana, que devem ser objeto de Estudo próprio”. Parece-nos bastante
acertado o posicionamento da Corte Suprema, porquanto mostra-se inviável
tutelar o embrião congelado – ser ainda totalmente alheio ao que pode vir a
um dia ser vida humana viável – como se já fosse nascituro.
Já quanto à criança, não há dúvidas que é ser humano dotado de per-
sonalidade. E, como tal, tem tutelados todos os direitos inerentes à pessoa
e sua dignidade. Aliás, vale pontuarmos que, por ser humano em formação,
merece tutela ainda mais eficaz e evidente, que deve ser garantida não só por
seus pais e responsáveis, mas também por toda a sociedade e pelo Estado:
“Com a Constituição Federal de 1988 e a consagração da Doutrina de
Proteção Integral, delineada pela Lei nº 8.069/90, reconfigura-se a visão
sobre a criança e o adolescente, que passam a ser considerados como
sujeitos de direitos na ordem jurídica brasileira. As relações entre pais e
filhos também passam a ser pautadas em tais premissas, de modo que a
autoridade parental, neste contexto, confere aos pais não apenas um direito,
mas, sobretudo, um dever que deve ser exercido em consonância com o
melhor interesse dos filhos.”9

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510/DF. Constitucional. Ação Direta
de Inconstitucionalidade. Lei de Biossegurança. Impugnação em bloco do art. 5º da Lei nº 11.105, de 24 de março
de 2005 (Lei de Biossegurança). Pesquisas com células embrionárias. Inexistência de violação do direito à vida.
Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins terapêuticos. Desca-
racterização do aborto. Normas constitucionais conformadoras do direito fundamental a um avida digna, que passa
pelo direito à saúde e ao planejamento familiar. Descabimento de utilização da técnica de interpretação conforme
para aditar à lei de biossegurança controles desnecessários que implicam restrições às pesquisas e terapias por elas
visadas. Improcedência total da ação. Relator: Min. Ayres Britto. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em: 23 jan. 2023.
9 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 65.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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Ligados à personalidade e ao que realmente é a essência do ser huma-


no, estão os direitos da personalidade. Os direitos que decorrem da proteção
prevista no Código Civil, no Livro I, Capítulo II – direitos da personalidade
– referem-se ao aspecto físico (corpo), moral (honra, identidade, pessoal, etc.)
e intelectual (liberdade de pensamento, autoria científica, etc.)10.
Por serem direitos ligados ao que há de mais humano na pessoa, pos-
suem características bastante concretas, especialmente tuteladas para a sua
mais plena garantia. Nos termos do art. 11 do Código Civil, os direitos da
personalidade são irrenunciáveis e intransmissíveis, sofrendo, assim, limitações
à sua fruição para a garantia de sua plena proteção. De fato:

“Como manifestações essenciais da condição humana, os direitos da perso-


nalidade não podem ser alienados ou transmitidos a outrem, quer por ato
entre vivos, quer em virtude da morte de seu titular. Nascem e morrem com
aquela pessoa, não podendo ser cedidos, doados, emprestados, vendidos
ou recebidos por herança. Não podem, igualmente, ser objeto de renúncia
geral e permanente. Afinal, as situações existenciais encontram a sua razão
de ser na realização de ser do interesse do titular, sendo dele indissociável.”11

Muito embora existente no ordenamento a previsão expressa que im-


pede a transferência e a renúncia dos direitos da personalidade, evidente que
são possíveis limitações a tais circunstâncias voltadas aos aspectos patrimoniais
desses direitos. Assim, uma pessoa pode transmitir a outra o direito à veicula-
ção de sua imagem, por exemplo, mas sempre em caráter não permanente e
ilimitado. Nesse sentido, aliás, é o Enunciado nº 4 da I Jornada do Conselho
da Justiça Federal, que estabelece: “Art. 11. O exercício dos direitos da per-
sonalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente
nem geral”.
Parece-nos bastante razoável tal interpretação e possibilidade. Imagine-
mos, por exemplo, a gravidade das limitações que um cantor sofreria em seu
ofício se não pudesse comercializar, justamente, o produto de seu labor: sua
voz. Não parece ter sido esse o espírito da norma civil ao falar em intrans-
missibilidade, sendo perfeitamente cabível a concessão de parte dos direitos
da personalidade no aspecto patrimonial.
Importante pontuarmos, outrossim, que os direitos da personalidade,
embora listados na Constituição Federal, não são taxativos, podendo outros
serem incorporados a esta categoria. Assim, demais direitos ligados à condição
humana propriamente dita podem ser tidos como direitos da personalidade

10 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 188.
11 SCHREIBER, Anderson et al. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 14.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 11

e gozar de proteção neste sentido. Para fins deste estudo, analisaremos o


posicionamento dos Tribunais naqueles direitos constantes na Carta Magna:
direito à vida e à integridade física, direito ao nome, direito à imagem, à honra
e à intimidade, tentando mostrar alguns pontos de convergência com o direito
das famílias. Vejamos, assim, um a um.

3 Direitos da Personalidade, um a um: Aspectos Polêmicos e


Experiência nos Tribunais

3.1 Direito à Vida e à Integridade Física: Casos da Esterilização e


dos Procedimentos de Reafirmação de Gênero
De todos os direitos da personalidade, o mais genuíno e evidente é o
direito à vida e à integridade física. Nada mais humano que a proteção do
invólucro corporal do ser. Assim, evidente que o legislador não poderia deixar
de tutelar questão de tamanha importância.
A inviolabilidade ao direito à vida está descrita no caput do art. 5º da
Constituição Federal. Além disso, o art. 13 do Código Civil estabelece que,
salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,
quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar
os bons costumes.
Ao proteger a integridade física do ser humano, a legislação trata da intei-
reza da saúde física e mental do ser (aí compreendendo-se o corpo e a saúde do
nascituro), decorrência da higidez física e psíquica que tem direito de ostentar12.
Anderson Schreiber critica o dispositivo legal em comento13. E isso, por-
que da maneira como o legislador trouxe a proteção constante no art. 13, parece
dar ao parecer médico força tamanha que desconsidere por completo qualquer
questão ética ou ligada à autonomia da vontade do titular do direito. Diz ele
também que se depreende do dispositivo legal que eventuais diminuições não
permanentes seriam totalmente admitidas pelo sistema, o que pode ser perigoso
se considerarmos, por exemplo, a utilização do corpo para experimentos volun-
tários que, num primeiro momento, não comportem em danos irreversíveis
imediatos. E, por fim, ao falar em bons costumes, o legislador utiliza uma ideia
vaga e totalmente imprecisa que pode dar margem a grandes celeumas.
É preciso considerar que a proteção ao corpo e a integridade física do ser
humano deve ser considerada sob o viés da autonomia da vontade. Pondere-se,
por oportuno, que a autonomia privada no contexto dos direitos da perso-

12 NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Instituições de direito civil. v. 7. São Paulo: RT, 2017. p. 138.
13 SCHEREIBER, Anderson. Direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 32.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
12

nalidade precisa ser encarada em sua mais moderna tradução, que perpasse
sempre na sua análise associada sob o viés da dignidade e da responsabilidade,
já que é somente com essa trilogia que será possível que cada pessoa construa,
de fato, autonomia em todas as suas potencialidades14.
Nesse contexto que entra em voga a liberdade de planejamento familiar
com a opção pela esterilização. De fato, caberá ao indivíduo e somente a ele a
decisão e o consentimento para o procedimento, sendo vedada a esterilização
compulsória.
Para que se permitisse a realização da esterilização, deve-se ter capacida-
de civil plena; ser maior de 21 anos de idade (a Lei nº 14.443/2022 diminuiu
a idade mínima, de 25 para 21 anos, além de ter revogado o § 5º do art. 10
da Lei nº 9.263/96, que exigia o consentimento expresso dos cônjuges para a
realização do procedimento de esterilização) ou ter, pelo menos, dois filhos
vivos e deve ser observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação
de vontade e o ato cirúrgico. Além disso, dever-se-ia propiciar à pessoa acesso
a serviço de regulação de fecundidade e o aconselhamento por equipe mul-
tidisciplinar, sempre com o objetivo de desencorajar a esterilização precoce.
Tais limitações legais, acertadamente, vêm tendo a sua constituciona-
lidade questionada no STF (ADI 5.911/DF), em razão de elas representarem
ofensas à liberdade individual e constituírem indevida interferência estatal
na autonomia privada do cidadão. A Lei nº 14.443/2022 trouxe avanços, ao
diminuir a quantidade de exigências, como dito acima, mas não foi capaz de
extirpar do texto legal as imposições que caracterizam uma excessiva ingerência
do Estado no âmbito familiar.
Considerando-se o conceito de família eudemonista, que preza pela
autonomia entre os membros, impor que se tenha certa idade ou determina-
do número de filhos para poder realizar-se a esterilização é ferir a liberdade
do indivíduo de controlar o seu planejamento familiar, violando os preceitos
constitucionais que garantem a proteção aos direitos reprodutivos ligados
à livre disposição sobre o próprio corpo e à proteção ao livre planejamento
familiar (§ 7º do art. 226 da Constituição Federal)15-16. Aliás, o próprio texto
constitucional parece ignorar o fato de que não é necessária a existência de

14 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Autonomia existencial. In: TEPEDINO, Gustavo; OLIVA, Milena Donato.
Teoria geral do direito civil: questões controvertidas. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 159.
15 “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...) § 7º Fundado nos princípios da dignidade
da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao
Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva
por parte de instituições oficiais ou privadas.”
16 STRAPASSON, Kamila Maria; BARBOZA, Estefânia Maria de Queiroz. A inconstitucionalidade do condicionamento
da esterilização voluntária ao consentimento de terceiro. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 59, n.
234, p. 139-160, abr./jun. 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/59/234/ril_v59_n234_p139.
p. 156. Acesso em: 23 jan. 2023.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 13

um casal para que haja um projeto familiar. Limitar o planejamento familiar,


impondo-lhe regras de cunho moralista, que restringem a disposição do corpo
parece um equívoco, que, espera-se, há de ser sanado pelo STF, quando do
julgamento da ADI 5.911/DF.
Para o caso de pessoas capazes, a esterilização mostra-se totalmente
possível observados os requisitos acima citados. Haverá questionamento,
todavia, quando tratarmos da esterilização de incapazes.
É que, nessa situação, teremos dois princípios constitucionais se colidin-
do: o da paternidade responsável versus o status constitucional da proteção da
pessoa com deficiência pela Convenção, bem como a previsão legal proibidora
da esterilização compulsória. Não será demasiado pontuarmos que os arts. 227
e 230 da Constituição Federal trazem especial atenção à dignidade aos vul-
neráveis, cujos interesses são tutelados e salvaguardados de maneira especial.
Assim é que, muito embora o Estatuto da Pessoa com deficiência garanta
a plena possibilidade de os vulneráveis decidirem sobre a sua vida sexual e
planejamento familiar, o fato é que os Tribunais têm flexibilizado a aplicação
do estatuto para permitir a esterilização compulsória em casos em que isso
represente maior proteção à pessoa com deficiência. Nesse sentido é o julgado
no Processo 0000991-66.2014.8.26.0654, do Tribunal de Justiça de São Paulo:

“SUPRIMENTO JUDICIAL. Curador provisório que pede a esterilização


da interditada. Acolhimento. Possibilidade. Interpretação histórica e teleo-
lógica do Decreto nº 6.949, que promulga a convenção internacional sobre
direitos das pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo. Decisão
reformada. Recurso provido.”

Pontua o julgador, no voto, que “no caso em tela, o que se percebe é


que a dignidade da pessoa humana deve se sobrepor a simples determinação
de que as pessoas com deficiência podem decidir livremente sobre o número
de filhos que pretendem ter”. E continua: “o que se infere da realidade dos
autos é que deve ser feita uma interpretação teleológica e histórica da norma
determinada pela Convenção ratificada pelo Brasil, no sentido de buscar os
fins sociais e bens comuns da norma e o contexto fático em que a norma foi
editada, para que dessa forma se possa compreender não só o que realmente se
pretendeu vedar e se aplicado o dispositivo se percebe sua eficiência social”17.
Parece-nos acertada a decisão. Muito embora tenha o Estatuto da Pessoa
com deficiência prezado pela autonomia e plena capacidade das pessoas com

17 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Suprimento Judicial nº 0000991-66.2014.8.26.0654. Curador provisório que
pede a esterilização da interditada. Acolhimento. Possibilidade. Interpretação história e teleológica do Decreto nº
6.949, que promulga a convenção internacional sobre direitos das pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo.
Decisão reformada. Recurso provido. Relator: Álvaro Passos. 2014.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
14

deficiência, fica bastante claro que, havendo necessidade de posicionamento


judicial mais paternalista – expressão utilizada por Joyceane Bezerra de Me-
nezes, estudiosa da capacidade e vulnerabilidade – e intervencionista, assim
que deverá agir o julgador.
Outro importante tema a ser considerado são as cirurgias de ressigni-
ficação sexual. Não há dúvidas de que esse procedimento médico- cirúrgico
– que, num olhar simplista e acrítico pode ser considerado mutilação corpo-
ral18 – representa absoluta devolução da dignidade àquelas pessoas que não
se identificam corporalmente com o seu eu subjetivo. Daí porque a cirurgia
é totalmente condizente com o direito à integridade física e a proteção legal
dela decorrente, sendo absolutamente lícita a sua realização:
“Examinando a Resolução CFM nº 1.955/2010 em conjunto com o art.
13 do Código Civil, o leitor poderá facilmente perceber que a cirurgia de
mudança de sexo é lícita no Brasil, desde que o médico ateste o estado
patológico do seu paciente.”19

Nesse ponto, é importante destacar que, em 2019, a Organização Mun-


dial da Saúde (OMS) determinou a retirada da classificação do “transtorno de
identidade de gênero” como transtorno mental, da 11ª versão da Classificação
Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID) e criou um
novo capítulo no documento, dedicado à saúde sexual, em que foi incluída
a questão da transexualidade20. Por essa razão, não é correto dizer que a ci-
rurgia de transgenitalização serve para corrigir uma “doença”, ou um “estado
patológico”, pois, de fato, enfermidade não há. Na realidade, o procedimento
visa a garantir a saúde sexual do indivíduo.
Patologizar a identidade de gênero é desvalorizar a autodeterminação
da pessoa trans, invisibilizando-a e transformando-a em um diagnóstico.
Ao fazer isso, aplica-se a linguagem da correção, adaptação e normalização,
reforçando a ideia de que a experiência identitária pode ser homogeneizada21.
Por essa razão, o procedimento cirúrgico de transgenitalização é de
extrema importância que, ao contrário do que afirmou o TJSP, no julgamento

18 Nesse ponto, vale conferir o Enunciado nº 276 do Conselho da Justiça Federal, que dispõe: “O art. 13 do Código
Civil, ao permitir a disposição do próprio corpo por exigência médica, autoriza as cirurgias de transgenitalização, em
conformidade com os procedimentos estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, e a consequente alteração
do prenome e do sexo no Registro Civil”.
19 SCHEREIBER, op. cit., p. 44.
20 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. OMS retira a transexualidade da lista de doenças mentais. Brasília: Nações
Unidas no Brasil, 2019. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/83343-oms-retira-transexualidade-da-lista-de-
doencas-mentais. Acesso em: 23 jan. 2023.
21 MENEZES, Joyceane Bezerra de; LINS, Ana Paola de Castro e. Identidade de gênero e transexualidade no direito
brasileiro. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 17, p. 17-41, jul./set, 2018, p. 25-26.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 15

da Apelação Cível 1001264-70.2021.8.26.001122, não é meramente estético.


Na realidade, todo e qualquer procedimento voltado à reafirmação de gênero
é fundamental à tutela, efetiva e eficaz, da dignidade humana, e visa a garantir
o exercício pleno da saúde sexual. É tão importante e fundamental, para o
indivíduo, quanto um transplante de um órgão vital, e jamais pode ser con-
fundido com um mero procedimento de embelezamento.

3.2 Direito ao Nome: Caso dos Transexuais/Transgêneros


O nome, quando atribuído a uma pessoa, dá a esse ser humano indi-
vidualidade própria. É pelo nome que a pessoa se distingue das demais, tem
sua personalidade formada de maneira ímpar e singular.
Assim é que, nos termos do art. 16 do Código Civil, se protege o direito
ao nome quando o legislador afirma que toda pessoa tem direito ao nome,
nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
A proteção ao nome também está prevista na Convenção Americana
de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa
Rica, que prevê em seu art. 18 que “toda pessoa tem direito a um prenome
e aos nomes de seus pais ou ao de um deles. A lei deve regular a forma de
assegurar a todos esses direitos, mediante nomes fictícios, se for necessário”.
De fato, a proteção consagrada pela norma legal – tanto no Código
Civil quanto no Pacto de São José da Costa Rica – é o sinal que representa a
pessoa no meio social (o que podemos chamar de nome social), mas também
se estende ao pseudônimo, nome atrás do qual esconde-se o autor de uma
obra cultural ou artística.
O direito ao nome tem alguns aspectos que se subdivide em direito a ter
um nome, a interferir no próprio nome e a impedir o uso indevido por terceiros.
O assunto ganha relevo quando se trata do tema da transexualidade.
Numa sociedade binária, os indivíduos têm os seus gêneros definidos a partir
da simples análise das suas genitálias, e, como consequência disso, têm seus
nomes femininos ou masculinos atribuídos. Acontece que, quando se fala de
gênero, os maniqueísmos vêm sendo superados por espectros, e as identida-
des vêm sendo definidas não por uma característica física, mas a partir de um
processo de autorreconhecimento e autodefinição.

22 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 1001264-70.2021.8.26.0011/SP. Plano de saúde. Negativa
de realização de cirurgia de redesignação sexual. Pleito cumulado com indenização por danos morais. Procedência
decretada. Descabimento. Procedimento meramente estético, sem qualquer comprovação de que sua falta colo-
caria em risco a saúde da beneficiária do plano. Laudos médicos, que ao oposto, atestam que a autora não possui
quaisquer sinais, sintomas ou indícios clínicos de transtorno mental. Adequação do corpo físico da paciente à sua
orientação sexual que não encontra cobertura, em plano voltado à manutenção da saúde. Apelo provido. Relator:
Galdino Toledo Júnior. Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Portal/Neddif/Jurisprudencia/TJSP-
Ap-1001264-70.2021.8.26.0011.pdf. Acesso em: 23 jan. 2023.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
16

“A identidade é o real fator de exteriorização da personalidade, e sendo esta


um elemento psíquico, existem pessoas que, embora sejam transexuais –
possuem o sexo registral diferente daquele com o qual se identifica – não
possuem uma aversão a sua genitália, convivem bem com ela e não têm
como principal problema a sua adequação. A infelicidade desse grupo de
pessoas está na falta de recepção social, o que lhe acarreta situações vexa-
tórias e de total discriminação. A sociedade clama um comportamento da
pessoa de acordo com o gênero com o qual foi registrada; no entanto, o
sentimento interno, sua psique não espelha essa realidade. Esse sim é o
principal problema desses indivíduos, não é a adequação da genitália, mas,
sim, sua adequação ao mundo externo, à sociedade, a começar pela alteração
de seu prenome e a retificação de seu gênero sexual.”23

Significa dizer que muitas pessoas que nascem com genitálias biologi-
camente características a determinado gênero se veem e se reconhecem como
pertencentes a gênero diverso, ou a gênero algum (a gêneros, ou não binários).
A realidade se impôs, e a própria linha cartesiana que separa o feminino do
masculino passou a ser questionada:

“Discursos médicos, biológicos e políticos foram confrontados com uma


variabilidade infinita de corpos e desejos (variáveis cromossômicas múl-
tiplas, gonadal, hormonal, genital externa, psicológica e política) que não
pode ser incluída no imperativo disciplinar da reprodução heterossexual.”24

Nada mais natural que o direito, diante dessa nova realidade, passasse
a dispor de normas que fossem voltadas à tutela dos indivíduos, sempre que
houvesse o fato social “alteração de gênero”. Mas isso não aconteceu sem que
houvesse grandes tropeços.
Em 1978, o médico Roberto Farina chegou a ser condenado a dois
anos de prisão, por lesão corporal, por ter realizado, com consentimento da
paciente, cirurgia de transgenitalização. A sentença só foi revertida em sede
de recurso, após a paciente apresentar uma carta relatando que a cirurgia a
“libertou”, e criou-lhe “asas novas para a vida”25.
Décadas depois, em 1997, o STF negou à atriz Roberta Close – nacio-
nalmente conhecida como uma mulher transexual – o direito de mudar de

23 SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, Maria Berenice (Coord.).
Diversidade sexual e direito homoafetivo. 3. ed. São Paulo: RT, 2017. p. 462.
24 PRECIADO, Paul Beatriz. Texto junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: n-1 edições,
2018. p. 114.
25 ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Primeira trans a realizar cirurgia de mudança
de sexo no Brasil foi chamada de “eunuco estilizado” na justiça. Brasília: ANOREG, [20--]. Disponível em: https://www.
anoreg.org.br/site/clipping-migalhas-primeira-trans-a-realizar-cirurgia-de-mudanca-de-sexo-no-brasil-foi-chamada-
de-eunuco-estilizado-na-justica/. Acesso em: 23 jan. 2023.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 17

nome e de gênero, nos seus registros civis, sob o frágil argumento de que ela
continuava produzindo hormônios masculinos26. Somente em 2005, a atriz
conseguiu, efetivamente, retificar os seus registros, para adequá-los à sua
verdadeira identidade de gênero27.
Durante muitos anos, pessoas transexuais eram obrigadas a manter os
nomes que lhes foram atribuídos pelos seus respectivos pais, causando-lhes,
naturalmente, um constrangimento absurdo. Inclusive, mesmo após passar
a permitir a mudança de nome, por muito tempo, a jurisprudência exigia,
como pré-requisito, a realização da cirurgia de transgenitalização (ainda que
esse não fosse o desejo do indivíduo). Nesse sentido, veja-se a ementa do
acórdão de 2007 do TJSP:

“REGISTRO CIVIL. Assento de nascimento. Alteração. Pedido de reti-


ficação de nome e alteração de sexo no registro civil c/c autorização para
cirurgia de reatribuição sexual. Inviabilidade. Transexualismo que reclama
tratamento médico que só pelo especialista pode ser deliberado. Admissi-
bilidade da cirurgia de transgenitalização mediante diagnóstico específico
e avaliação por equipe multidisciplinar, por pelo menos durante dois anos
(CFM, Resolução nº 1.652/02). Apelante inscrito e em fila de espera para
o tratamento, que deve ser definido pela equipe multidisciplinar, indepen-
dentemente de autorização judicial, por se tratar de procedimento médico,
competindo ao médico a definição da oportunidade e conveniência. Recor-
rente que, por ora, é pessoa do sexo masculino. Alteração no registro civil
que poderá ser tratada oportunamente após resolvida, no âmbito médico,
a questão de transexualidade. Apelo desprovido.” (TJSP, Ap. 4174134500,
Rel. Carvalho Viana, 10ª Câmara de Direito Privado, j. 09.10.2007)

Ora, como afirma Luiz Edson Fachin, impor um pré-requisito a um


direito fundamental mutila a própria definição de direitos fundamentais e di-
reitos de personalidade, que se baseiam na ideia de inerência ao ser humano28.
Ao exigir uma mudança cirúrgica para que se tenha um direito a um nome
digno (compatível com a identidade de gênero) representa uma violação ao
direito de disposição do corpo.
Isso afronta a dignidade humana, além de ser contrário ao livre desen-
volvimento da personalidade. Ora, a pessoa “desenvolve-se naquilo que é,

26 FREITAS, Silvana de. Recurso para mudança de nome de Roberta Close é negado no STF. São Paulo: Folha de São Paulo,
1997. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1997/2/22/cotidiano/16.html. Acesso em: 23 jan. 2013.
27 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Roberta Close é mulher, afirma justiça. Belo Horizonte:
IBDFAM, 2005. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/na-midia/117/Roberta+Close+%C3%A9+mulher
,+afirma+Justi%C3%A7a. Acesso em: 23 jan. 2023.
28 FACHIN, Luiz Edson. O corpo do registro no registro do corpo: mudança de nome e sexo sem cirurgia de rede-
signação. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 1, jul./set. 2014. p. 41.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
18

naquilo que vai sendo e naquilo que virá a ser”29, ou seja, a personalidade é
algo em constante desenvolvimento/mudança, e o direito deve assegurar que
esse processo constante se dê sem interferências, com o máximo de liberdade
e autonomia.
Foi o que se deu em 2018, quando do julgamento da ADI 4.275/DF.
Por meio do julgamento da referida ADI, o STF reconheceu o direito dos
transgêneros de, se assim desejarem, substituir o prenome e gênero dire-
tamente no registro civil, independentemente da realização de cirurgia de
transgenitalização ou da realização de tratamentos hormonais, como se observa
da seguinte ementa:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO


CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO.
ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL.
POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMEN-
TO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À
HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE
TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMEN-
TOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade
sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A
identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa
humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca
de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de
gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoiden-
tificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito
fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero
no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de
procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo
ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação
direta julgada procedente.”

Como se vê, com acerto, o Supremo Tribunal Federal tutelou direito


ao nome como manifestação plena da personalidade humana, guardando
hígidos os contornos constitucionais que devem ser marcados nas decisões
dessa natureza.

3.3 Direito à Imagem, à Intimidade e à Vida Privada: Caso do


Sharenting
Podemos considerar a imagem como o controle que cada pessoa tem
de sua representação externa quanto à representação de sua imagem ou sua

29 VASCONCELOS, Pedro Pais. Direito de personalidade. Coimbra: Almedina, 2006. p. 75.


Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 19

voz, sendo certo que, tal como nos ensinam Rosa e Nelson Nery, pode ser
analisada sob dois ângulos: a) a imagem como fama, como os caracteres his-
tóricos bibliográficos de uma pessoa e b) a imagem retrato, que evoca o perfil
compactado da sensibilidade humana30.
Com efeito, a imagem humana é direito da personalidade que goza de
proteção. Nos termos do art. 20 do Código Civil, salvo se autorizadas, ou se
necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a
divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição
ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu reque-
rimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra,
a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
A grande crítica que se faz ao dispositivo é o fato da associação da ima-
gem à honra para que goze de proteção. Parece-nos, todavia, equivocado o
entendimento, pois, se assim fosse, sempre que alguém precisasse proteger
sua imagem necessitaria comprovar dano prévio ao pedido de tutela, o que não
parece razoável, notadamente em razão de o ordenamento jurídico brasileiro
prever a tutela inibitória (parágrafo único, do art. 497 do CPC/2015)31, que
justamente visa a evitar danos iminentes, antes mesmo que eles ocorram.
Nesse sentido, aliás, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal em
sua Súmula nº 403: “a proteção à imagem é plena independente de prova de
uso para fins comerciais”.
Na era da exposição, a tutela da privacidade e da intimidade nunca
foram tão urgentes. Com efeito:
“A relevância dos chamados direitos da personalidade, no momento atual,
decorre também de outros fatores sociais. De um lado, provém da explosão
qualitativa e quantitativa de meios de comunicação de massa invasores,
progressivamente direcionados a desconsiderar vidas particulares; de outro
lado, do fato de que numerosas relações sociais, antes entendidas como
parte de sistema extrajurídico, foram sendo crescentemente juridicizadas.”32

Nos termos do inciso X do art. 5º da Constituição Federal: “são inviolá-


veis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o
direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Também no Código Civil há tutela da matéria quando, no art. 21 do referido

30 NERY, op. cit., p. 138.


31 CPC/2015: “Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o
pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado
prático equivalente. Parágrafo único. Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou
a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência
de culpa ou dolo”.
32 MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 122.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
20

Diploma Legal, o legislador estabelece que a vida privada da pessoa natural


é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências
necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma.
Quando se fala de intimidade se está levando em consideração uma
esfera mais restrita, do campo exclusivo que alguém reserva exclusivamente a
si. Já a vida privada, por sua vez, tem uma ideia de uma esfera mais ampla, que
também incorporaria as relações mantidas pela pessoa em seu ciclo comum.
Em tempo de uma “vida virtual” que definitivamente engole a “vida
real”, a privacidade e a intimidade ganham novos contornos e dimensões.
Novos temas e assuntos acabam chamando a atenção não só dos doutrinadores,
como também do legislador.
Um exemplo interessante para a discussão da privacidade e da intimi-
dade é o sharenting, que é a prática de compartilhar fotos e informações acerca
dos filhos e do exercício da parentalidade nas redes sociais. O termo, criado da
junção das palavras em inglês share (compartilhar) e parenting (criação, cuidado
parental), pode ser definido como a prática reiterada de compartilhamento,
pelos pais ou responsáveis, de imagens e informações sobre a vida do filho e
de seu cotidiano (escolas, atividades extras, viagens, etc.).
Há, inclusive, nessa prática, quem ultrapasse a linha do compartilha-
mento em suas próprias redes e crie vidas digitais paralelas em nome das
crianças, dando a elas perfis próprios que são geridos por seus responsáveis.
O sharenting, por si só, possui aspectos jurídicos na própria relação entre a
criança e quem posta a sua imagem ou suas informações. Fato é que, ainda que
quem publique na rede tome alguns cuidados – como fazer posts apenas em am-
bientes privados – supondo que isso seja realmente possível na internet – a ima-
gem da criança permanecerá na rede mundial de computadores por muitos anos,
podendo causar a ela prejuízos ou embaraços em algum momento de sua vida.
Um exemplo pioneiro, no Brasil, sobre o assunto, é um caso de 2012.
Na ocasião, os pais de N* O* confeccionaram um vídeo para comemorar o
Bar Mitzvah do jovem, que acabou no YouTube. Tratava-se de uma paródia da
música “Makes You Beautiful”, da boyband One Direction, adaptada com detalhes
importantes da sua vida. Acontece que o vídeo viralizou, e o adolescente passou
a ser importunado, fazendo com que a questão fosse judicializada pela família,
para diminuir a exposição do jovem. Somente em 2016, o TJSP determinou
que o Google retirasse o vídeo do ar33, mas o esforço para o cumprimento des-
sa decisão é absolutamente sisífico, pois, até hoje, mais de dez anos depois do

33 ARAUJO, Bruno; SOTO, Cesar. Nissim Ourfali: Justiça determina que Google tire do ar vídeos sobre garoto. São
Paulo: G1 Globo, 2016. Disponível em: https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/03/nissim-ourfali-justica-
determina-que-google-tire-do-ar-videos-sobre-garoto.html. Acesso em: 23 jan. 2023.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 21

seu lançamento, facilmente se encontra o vídeo nas redes, o que demonstra a


importância de se refletir antes de lançar imagens e vídeos na internet.
No mais, não há dúvidas que a publicação de imagens das crianças de
maneira excessiva pode comprometer a sua intimidade, sua vida privada e
o direito à sua imagem. A própria legislação vigente garante a proteção das
crianças neste sentido, ao prever, tanto no art. 227 da Constituição Federal
quanto nos arts. 17 e 100, V, do Estatuto da Criança e do Adolescente tutela aos
direitos e meios efetivos de cuidado quando da violação de aspectos inerentes
à exposição da criança e do adolescente.
Enfrentando o tema, o E. Tribunal de Justiça de São Paulo direcionou
o entendimento que, sopesando a livre manifestação do pensamento da mãe
e a imagem do menor, se a postagem não for danosa ou desrespeitosa, fica
salvaguardado o direito da mãe:

“DIREITO DE IMAGEM. POSTAGEM, PELA MÃE, EM REDE SO-


CIAL, ACERCA DA DOENÇA DE SEU FILHO (AUTISMO). CON-
TRARIEDADE DO PAI. NÃO CABIMENTO. EMBORA SE DEVA
EVITAR A SUPEREXPOSIÇÃO DOS FILHOS EM REDES SOCIAIS,
PRIVILEGIANDO A PROTEÇÃO À IMAGEM E À INTIMIDADE DO
INCAPAZ, NECESSÁRIO BALIZAR TAIS DIREITOS FUNDAMEN-
TAIS COM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO DA GENITORA. POSTA-
GEM QUE NÃO OFENDE OU DESMORALIZA O INFANTE. TEOR
DO TEXTO PUBLICADO QUE DEMONSTRA PREOCUPAÇÃO
E AFETO COM O MENOR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO
DESPROVIDO.” (TJSP, Apelação Cível 1015089-03.2019.8.26.0577)

Também merece grande interesse diante da relevância a questão ligada à


pornografia de vingança que é caracterizada como a exposição, para macular a
honra de alguém, de imagens íntimas compartilhadas durante um relacionamento.
A Ministra Nancy Andrigui reconheceu, em voto de sua lavra no REsp
1.735.712/SP, que a pornografia de vingança não só afronta aos direitos da
personalidade, como também violência de gênero:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE
OBRIGAÇÃO DE FAZER E DE INDENIZAÇÃO DE DANOS MO-
RAIS. RETIRADA DE CONTEÚDO ILEGAL. EXPOSIÇÃO PORNO-
GRÁFICA NÃO CONSENTIDA. PORNOGRAFIA DE VINGANÇA.
DIREITOS DE PERSONALIDADE. INTIMIDADE. PRIVACIDADE.
GRAVE LESÃO. (...) 4. A ‘exposição pornográfica não consentida’, da qual
a ‘pornografia de vingança’ é uma espécie, constituiu uma grave lesão aos
direitos de personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de con-
figurar uma grave forma de violência de gênero que deve ser combatida
de forma contundente pelos meios jurídicos disponíveis. 5. Não há como
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
22

descaracterizar um material pornográfico apenas pela ausência de nudez


total. Na hipótese, a recorrente encontra-se sumariamente vestida, em
posições com forte apelo sexual. 6. O fato de o rosto da vítima não estar
evidenciado nas fotos de maneira flagrante é irrelevante para a configuração
dos danos morais na hipótese, uma vez que a mulher vítima da pornografia
de vingança sabe que sua intimidade foi indevidamente desrespeitada e,
igualmente, sua exposição não autorizada lhe é humilhante e viola flagran-
temente seus direitos de personalidade. (...)”

Ainda no tocante ao direito à imagem, é preciso que façamos uma im-


portante distinção entre pessoa anônima e pessoa pública e notória. Pessoa
pública é aquela cuja obra tenha alcançado uma proporção que a torne reconhe-
cida socialmente. Significa dizer que a pessoa possui uma imagem pública34.
Para essas pessoas, entende a doutrina que o direito à privacidade é
mitigado. Essa mitigação fica ainda mais evidente quando tratamos de figu-
ras públicas voluntárias, assim entendidas aquelas que obtiveram fama e são
reconhecidas em decorrência de sua atividade e por atos deliberados.
O entendimento quanto ao direito à privacidade dessas pessoas tem
sido no sentido de que, em razão da exposição voluntária, haver diminuição
à proteção constitucional que o tema merece. Parece-nos acertada algum
estreitamento da proteção, até mesmo porque, em se tratando de exposição
na era da internet, muitas vezes voluntária e monetizada, acaba tirando do
ser humano aquele caráter mais intimista e protegido que outrora existiu:

“A barreira física dos portões fechados não é mais suficiente para fornecer
a tutela plena das relações íntimas. A ideia de que a vida privada encontra
guarida intramuros torna-se insípida e desatualizada a partir do momento
em que o advento da internet e de todas as interações permitidas por ela
trouxeram o campo das relações sociais para o interior do lar, levando a uma
demolição das fronteiras espaciais da privacidade (tal qual concebidas por
Warren e Brandeis), ou, quando ao menos, exigindo sua reestruturação.”35

Considere-se, outrossim, que a privacidade é amplamente tutelada não


só em vida, como também no pós-morte. A determinação legal nesse sentido é
clara quando se lê, no art. 12, parágrafo único, do Código Civil, que a proteção
à privacidade, fincada nos direitos da personalidade, é extensiva aos mortos:

“A vida privada tem um estatuto constitucional de inviolabilidade, como


termo que se deferem as garantias individuais fundamentais do direito à

34 BARBOSA, Fernanda Nunes. Biografias e liberdade de expressão: critérios para a publicação de histórias de vida. Porto
Alegre: Arquipélago, 2016. p. 217.
35 LACERDA, Luiz Augusto Castello Branco de; FILPO, Kleber Paulo Leal. Proteção do direito à vida privada na
sociedade da hiperexposição: paradoxos e limitações empíricas. Civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-31, 5 maio 2018.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 23

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Afirma o art.


5º, X, da CF que ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação’.”36

3.4 Direito à Honra: Caso da Indenizabilidade dos Danos Morais, no


Caso de Infidelidade
O direito à honra está previsto no inciso X do art. 5º da Constituição
Federal. Vale pontuarmos que, isoladamente, não há no Código Civil um
dispositivo isolado para tutela da honra, mas é abarcado por outros disposi-
tivos dispersos:

“Também por força de sua importância histórica, o direito à honra aparece


em diversas normas específicas, espalhadas pelo Código Civil. De fato, se
carece de tratamento sistemático no novo capítulo reservado aos direitos
da personalidade, o direito à honra acaba se manifestando em outros tan-
tos setores da codificação, que vão do direito dos contratos ao direito das
sucessões, passando pela responsabilidade civil.”37

Para fins de proteção plena, a honra deve ser entendida em sua inteireza,
com ambos os atributos assegurados. De fato, consideramos honra objetiva
aquele juízo que terceiros fazem acerca dos atributos de alguém. Já a honra
subjetiva, por sua vez, é o juízo que determinada pessoa faz acerca de seus
próprios atributos, aqui levados em consideração aqueles elementos mais
intrínsecos da mente humana.
Levando o tema ao direito das famílias, muito se discute sobre a re-
paração da violação à honra no contexto de violação do dever de fidelidade.
Parte da doutrina sustenta que, o casamento, como comunhão de vida entre
os cônjuges, pressupõe a incoercibilidade dos deveres conjugais, pois toda a
pretensão dirigida à sua execução forçada seria contraditória com a própria na-
tureza dos deveres conjugais, considerados “descritivos”, e não “prescritivos”38.
Apesar do acerto desse posicionamento, fato é que a responsabilidade
civil é absolutamente compatível com as relações familiares, e a família não
pode servir como um escudo às violações das quais derivem danos extrapa-
trimoniais. Exemplo disso foi o posicionamento do STJ adotado quando do
julgamento do REsp 1.159.242/SP (indenização pode danos morais por aban-

36 NERY, op. cit., p. 196.


37 SCHEREIBER, op. cit., p. 77.
38 GARBI, Carlos Alberto. Infidelidade, responsabilidade civil e teoria do terceiro cúmplice. In: GUERRA, Alexandre
(Coord.) et al. Da estrutura à função da responsabilidade civil: uma homenagem do Instituto Brasileiro de Estudos de
Responsabilidade Civil (IBERC) ao Professor Renan Lotufo. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 492.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
24

dono afetivo), que admitiu não haver “restrições legais à aplicação das regras
concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/
compensar no Direito de Família”39.
Isso não significa, porém, que toda e qualquer violação dos deveres
conjugais é ato ilícito moralmente indenizável. Em absoluto. Mas há hipóteses
em que, para além da violação do dever conjugal, há uma clara violação à honra
objetiva da pessoa, e, nessas hipóteses, é a violação ao direito da personalidade
que pode servir de fundamento de uma ação indenizatória.
É o caso, por exemplo, do cônjuge que expõe os atos de infidelidade
(não consentida) nas redes sociais, como se deu no seguinte caso, julgado
pelo TJDFT:

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO CIVIL. INFIDELIDADE CONJUGAL.


PROVA. OFENSA A ATRIBUTO DA PERSONALIDADE. DANO
MORAL CONFIGURADO NO CASO. 1. O simples descumprimen-
to do dever jurídico da fidelidade conjugal não implica, por si só, em
causa para indenizar, apesar de consistir em pressuposto, devendo haver
a submissão do cônjuge traído a situação humilhante que ofenda a sua
honra, a sua imagem, a sua integridade física ou psíquica. Precedentes. 2.
No caso, entretanto, a divulgação em rede social de imagens do cônjuge,
acompanhado da amante em público, e o fato de aquele assumir que não
se preveniu sexualmente na relação extraconjugal, configuram o dano
moral indenizável. 3. Apelação conhecida e não provida.” (TJDF, 0014904-
88.2016.8.07.0003, Rel. Fábio Eduardo Marques, j. 21.03.2018, 7ª Turma
Cível, DJE 26.03.2018, p. 415-420)

Outra situação que pode gerar o dever de reparar moralmente é a omis-


são sobre a verdadeira paternidade biológica de filho nascido na constância
do casamento, após ato de infidelidade (não consentida), como se deu no
seguinte caso, julgado pelo STJ:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL. DA-


NOS MATERIAIS E MORAIS. ALIMENTOS. IRREPETIBILIDADE.
DESCUMPRIMENTO DO DEVER DE FIDELIDADE. OMISSÃO
SOBRE A VERDADEIRA PATERNIDADE BIOLÓGICA DE FILHO
NASCIDO NA CONSTÂNCIA DO CASAMENTO. DOR MORAL
CONFIGURADA. REDUÇÃO DO VALOR INDENIZATÓRIO. 1. Os
alimentos pagos a menor para prover as condições de sua subsistência são
irrepetíveis. 2. O elo de afetividade determinante para a assunção volun-

39 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 2009/0193701-9. Apelação Cível. Direito Civil. Infidelidade
Conjugal. Prova. Ofensa a atributo da personalidade. Dano moral configurado no caso. Relator: Minª Nancy An-
drighi. Data de Julgamento: 24 abr.2012. Data de Publicação: 10 mai. 2012. RDDP, vol. 112, p. 137 RDTJRJ, vol.
100, p. 167, RSTJ, vol. 226, p. 435.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 25

tária da paternidade presumidamente legítima pelo nascimento de criança


na constância do casamento não invalida a relação construída com o pai
socioafetivo ao longo do período de convivência. 3. O dever de fidelidade
recíproca dos cônjuges é atributo básico do casamento e não se estende ao
cúmplice de traição a quem não pode ser imputado o fracasso da sociedade
conjugal por falta de previsão legal. 4. O cônjuge que deliberadamente
omite a verdadeira paternidade biológica do filho gerado na constância do
casamento viola o dever de boa-fé, ferindo a dignidade do companheiro
(honra subjetiva) induzido a erro acerca de relevantíssimo aspecto da vida
que é o exercício da paternidade, verdadeiro projeto de vida. 5. A família
é o centro de preservação da pessoa e base mestra da sociedade (art. 226
da CF/88) devendo-se preservar no seu âmago a intimidade, a reputação e
a autoestima dos seus membros. 6. Impõe-se a redução do valor fixado a
título de danos morais por representar solução coerente com o sistema. 7.
Recurso especial do autor desprovido; recurso especial da primeira corré
parcialmente provido e do segundo corréu provido para julgar improceden-
te o pedido de sua condenação, arcando o autor, neste caso, com as despesas
processuais e honorários advocatícios.” (STJ, REsp 922.462/SP, Rel. Min.
Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 04.04.2013, Terceira Turma, DJe 13.05.2013)

Diante disso, bem se vê que não é a quebra do dever de fidelidade o


fundamento do dever de indenizar aquele que foi traído, mas circunstâncias
que ferem, diretamente, os direitos da personalidade da vítima, notadamente
a honra objetiva.

4 Considerações Finais
A constitucionalização do direito privado é um movimento sem retor-
no. O direito civil, especialmente quando trata de questões do ser, não pode
descolar-se dos preceitos constitucionais de tutela e proteção, especialmente
da dignidade da pessoa humana.
Nesse contexto é que o presente trabalho reuniu características de cada
um dos direitos da personalidade tutelados no texto constitucional, buscando
analisar pontos controvertidos sobre cada um dos direitos e alguns julgados
pontuais que trouxessem questões interessantes acerca da temática, sempre
relacionada ao direito das famílias.
Por ocasião da definição da personalidade, ficou pontuada a sua con-
ceituação, o seu início, perpassando pela discussão acerca do nascituro e do
embrião. A personalidade da criança também foi tratada, com sua particular
proteção plena destinada ao ser humano em desenvolvimento.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
26

Após a análise das características dos direitos da personalidade em si,


um a um deles foram elencados e enfrentados, de modo que pontos de im-
portância e controvérsia vieram enfrentados no presente estudo.
Fica como proposta de agenda, neste ponto, a análise dos direitos da
personalidade também sob o viés da modernidade virtual, com eventuais
adequações e novos direcionamentos que possam ajustar essa tutela às novas
preocupações e angústias do ser humano.

TITLE: The personality rights and the family law: points of convergence.

ABSTRACT: This article aims to carry out a non-conclusive analysis of issues related to personality rights,
within the context of family relationships, considering some paradigmatic and judged cases related to each
of the topics. Observing the issue of protection of the human being from the perspective of constitutional
civil law, it analyzes the rights of the personality and their extension within the context of the study of
family law, with emphasis on the name (in the case of transsexuals/transgenders), image, privacy and
intimacy (cases of sharenting), honor (case of indemnity for moral damages, in the case of infidelity) and
physical integrity (cases of gender reassurance procedures).

KEYWORDS: Constitutional Civil Law. Personality Rights. Families.

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morais. Procedência decretada. Descabimento. Procedimento meramente estético, sem qualquer com-
provação de que sua falta colocaria em risco a saúde da beneficiária do plano. Laudos médicos, que ao
oposto, atestam que a autora não possui quaisquer sinais, sintomas ou indícios clínicos de transtorno
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seu protocolo facultativo. Decisão reformada. Recurso provido. Relator: Álvaro Passos. 2014.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 27

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ilícito ante agressividade das palavras utilizadas e, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa
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direito à vida. Constitucionalidade do uso de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas para fins
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Recebido em: 03.02.2023


Aprovado em: 15.02.2023
Doutrina

Eficácia do Pacto Antenupcial como


Contrato de Convivência1
Eroulths Cortiano Junior
Doutor em Direito pelo PPGD-UFPR; Professor-Associado
da Faculdade de Direito da UFPR; Coordenador-Geral do
Núcleo de Pesquisas em Direito Civil Constitucional (Grupo
Virada de Copérnico) do PPGD-UFPR; Associado do
Instituto Brasileiro de Direito Contratual; Advogado;
e-mail: ecortiano@cpc.adv.br.

Paulo Mayerle Queiroz


Mestrando em Direito pelo PPGD-UFPR; Especialista em
Direito de Família e Sucessões na UP; Membro do Grupo de
Pesquisas “Virada de Copérnico”; Advogado;
e-mail: paulomayerle@gmail.com.

RESUMO: A pesquisa localiza-se no campo do Direito das Famílias, mais es-


pecificamente, na regulamentação negocial das formações familiares. O objetivo
central é investigar se, a despeito do texto do art. 1.653 do CC, o pacto antenupcial
pode produzir efeitos independentemente da celebração do casamento (e.g.,
quando sobrevém união estável). A metodologia empregada é a hipotético-
dedutiva, com a técnica de revisão bibliográfica. A conclusão da pesquisa é de
que, mesmo não seguido pelo casamento, o pacto antenupcial pode produzir
efeitos, dentre os quais, pode adquirir a eficácia como contrato de convivência.

PALAVRAS-CHAVE: Pacto Antenupcial. Casamento. Contrato de Convivência.


União Estável. Eficácia.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Pacto Antenupcial e Contrato de Convivência:


Estrutura e Função. 3 Eficácia do Pacto Antenupcial Não Seguido pelo Casa-
mento. 4 Considerações Finais. 5 Referências.

1 Introdução
Historicamente, o casamento se revelava essencial e fundante da ins-
tituição familiar. A família era família porque era matrimonializada2. Como

1 Trabalho originalmente desenvolvido no âmbito do Eixo das Famílias do Núcleo de Estudos em Direito Civil
Constitucional do PPGD/UFPR (Grupo Virada de Copérnico).
2 “O nosso sistema jurídico, desde sua origem, conquanto reconhecida a existência do concubinato como fato social
incontornável, sempre se mostrou extremamente resistente à outorga de efeitos positivos à relação extramatrimonial.
(...) Com este quadro, identificada a família com a figura exclusiva do casamento, excluída da ordem jurídica qualquer
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
30

negócio jurídico de feição particular, tinha especial relevância para assegurar


a apropriação, circulação e concentração de bens ­– o que atendia às exigências
do Direito Civil moderno.
No Brasil, a regulação canônica do casamento prevaleceu até a Cons-
tituição de 1891, quando a promessa da laicidade do Estado republicano
recomendou a sua regulação civil3. Mesmo assim, a passagem do século XIX
ao século XX não representou uma mudança paradigmática na estrutura do
casamento: era essencialmente desigual, submetendo a figura feminina aos
poderes do cônjuge homem4 (e.g., a mulher casada era, sob o Código Civil de
1916, civilmente incapaz para a prática de determinados atos da vida civil5).
Nesse contexto, em que o casamento era estruturante da família do pon-
to de vista jurídico, é simples entender que as relações afetivas de comunhão
de vidas não matrimonializadas eram marginalizadas: não eram reconhecidas
como entidades familiares aquelas que não se fundassem no casamento. Por
essa razão, a tutela dos direitos e interesses – especialmente das coniventes
mulheres – era bastante fragilizada6.
Uma primeira tendência jurisprudencial que passou a reconhecer al-
guma relevância jurídica às situações de convivência não matrimonializadas
(para além da óptica do ilícito que recaia sobre as relações concubinárias) foi
o tratamento destas como sociedades de fato. Isso permitia atribuir a ambos
os companheiros alguns direitos, principalmente patrimoniais, relativamente

outra forma de agrupamento, toda a sua regulamentação destinava-se exclusivamente ao matrimônio, tratando o
concubinato como situação a latere, velada e restritiva de direitos.” (CAHALI, F. J. Contrato de convivência na união
estável. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 2-3)
3 Nesse sentido, o art. 72, § 4º, da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891: “A Republica só
reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”.
4 Encontra-se um interessante estudo histórico sobre os reflexos da regulação jurídica da relação de família na sub-
missão da mulher, especialmente patrimonial, em: COUTO E SILVA, C. V. Direito patrimonial de família. Revista
da Faculdade de Direito da UFRGS, ano 5, n. 1, p. 39-51, 1971.
5 No Código Civil de 1916, que vigorava até a poucas décadas: (a) a mulher casada era relativamente incapaz (art. 6º,
II), o que vigorou até 1962, quando aprovado o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62); (b) o art. 233 conferia
apenas ao homem o poder de chefiar a sociedade conjugal; (c) obrigava a mulher a adotar o patronímico do marido
(art. 240); (d) era exigida autorização do marido para que a mulher exercesse profissão fora do lar, inclusive em
cargo público, e mesmo para que litigasse em juízo (art. 242 IV, V, VII, VII); (e) o pátrio poder competia apenas ao
homem (art. 380); (e) a mulher viúva que contraísse novas núpcias perdia o poder familiar; (f) a descoberta de que
a noiva não era virgem permitia ao homem anular o casamento por erro essencial; (g) a filha “desonesta” poderia
ser deserdada (art. 1.744). Vide: DIAS, M. B. A mulher no Código Civil. Disponível em: http://berenicedias.com.br/
uploads/18_-_a_mulher_no_c%F3digo_civil.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021; PENA, C. A. M. T. G. A desigualdade
de gênero: tratamento legislativo. Revista da EMERJ, v. 11, n. 43, p. 68-82, 2008. Disponível em: https://www.emerj.
tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista43/Revista43_63.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021. Em alguma medida, a
longa sombra dessas normas é sentida, senão do ponto de vista normativo, ao menos do ponto de vista do tratamento
in concreto ainda por vezes discriminatório (por longa sombra faz-se alusão a: SEELAENDER, A. C. A longa sombra
da casa: Poder doméstico, conceitos tradicionais e imaginário jurídico na transição brasileira do antigo regime à
modernidade. R. IHGB, Rio de Janeiro, ano 178, p. 327-424, jan./mar. 2017).
6 A esse respeito, há precioso estudo histórico sobre o tratamento dispensado às tentativas de regulação do concubinato
(quer dizer, das uniões de fato não fundadas no casamento) em: CAHALI, F. J. Contrato de convivência na união estável.
São Paulo: Saraiva, 2002. p. 9-25.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 31

ao que se adquiriu na constância da união. Sobre o tema, o STF editou as


Súmulas ns. 3807 e 3828.
Sem prejuízo de outros eventos históricos que paulatinamente cha-
coalharam as rígidas fundações daquele direito de família matrimonializado,
como a aprovação da Lei do Divórcio em 19779, a viragem civil-constitucional
e seu caráter prospectivo10 impulsionaram um renovado tratamento, fundado
na centralidade da pessoa humana, o que repercutiu, no que toca à família, na
igualdade entre os cônjuges (art. 5º, I, e seu corolário, art. 226, § 5º, da CF) e
a liberdade de conformações familiares (art. 226, §§ 3º e 4º, da CF).
Se antes a família era instituição cuja constituição era fundada no casa-
mento e na filiação biológica11, e cuja função era essencialmente transpessoal,
institucional e patrimonial (aquisição e acúmulo de bens), hoje se desenvolve
como entidade plural de afeto, solidariedade, e se coloca como espaço privi-
legiado da expressão e desenvolvimento da personalidade de seus membros12.

7 “Comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha
do patrimônio adquirido pelo esforço comum.”
8 “A vida em comum sob o mesmo teto, more uxorio, não é indispensável à caracterização do concubinato.”
9 Refere-se à Lei nº 6.515/77. Vale recordar que a dissolução do casamento, durante logo tempo, era juridicamente im-
possível. O desquite, embora representasse separação (das comunhões e vida e de patrimônio), não tinha aptidão de
desconstituir o vínculo matrimonial. Isso mudou, em 1977, com o advento da referida Lei. Naquela altura, a separação
era condição para o divórcio, circunstância que permaneceu inalterada na redação original da Constituição de 1988 e
inclusive com o Código Civil de 2002. Foi a superveniência da Emenda Constitucional nº 66/2010 a responsável por
tornar praticamente obsoleta a distinção entre separação e divórcio, já que viabilizou o divórcio direto (sem a necessidade
de prévia separação). A dissolução pelo divórcio, antes impossível e depois obstaculizada com a separação, hoje ganha
caracteres e natureza de direito potestativo, inclusive com acenos no sentido de autorizar e regulamentar o divórcio
impositivo (sobre o tema, ver: EISAQUI, D. D. C.; KALLAJIAN, M. C. Fundamentos para a admissibilidade do
divórcio unilateral perante o ordenamento jurídico brasileiro. Revista de Direito Civil, v. 2, n. 1, jan./jun. 2020; SILVA,
R. B. T. Da inglória tentativa de eliminação da separação à derrotada busca do divórcio impositivo no Brasil. Revista de
Direito Notarial, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 1-31, jul./dez. 2020; TARTUCE, F. O divórcio unilateral ou impositivo. jun. 2019.
Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1342/O+div%C3%B3rcio+unilateral+ou+impositivo++).
10 O objetivo aqui não é tratar de uma relação de causa-efeito, como se o movimento histórico de formação e refor-
mação do direito decorresse, por exemplo, de um único fato histórico como a promulgação de um determinado
texto constitucional. Sem embargo, a Constituição de 1988, seja do ponto de vista histórico ou normativo, interessa
para um repensar do Direito Civil. Sobre o tema: RAMOS, A. L. A. Ensaio de uma (auto)crítica: o direito civil
contemporâneo entre a tábua axiológica constitucional e a constituição prospectiva. Pensar, Fortaleza, v. 23, n. 4, p.
1-9, out./dez. 2018. Disponível em: https://doi.org/10.5020/2317-2150.2018.7599.
11 “O Direito de Família, como propugnamos desde o projeto inicial da Constituição Federal de 1988, e depois com
seus arts. 226 e 227, recebeu a maior reformulação de seus fundamentos jurídicos, adaptando-se à realidade presente
da vida brasileira. As Constituições anteriores bradavam pela proteção da família, sob a égide do casamento civil,
enquanto o povo constituía sua família pelo concubinato puro. (...) E esse trabalho [de criar condições concretas para
defender a família constituída ainda que com origem alheia ao casamento e de melhor distribuir justiça] foi realizado,
arduamente, por todos os bem-intencionados que querem adaptar as normas à realidade vivente, para que a lei não
seja um material ilusório, irreal e injusto, a aplicar-se contra o que acontece na sociedade. O espelho o passado foi
quebrado para a tentativa de uma construção jurídica mais justa e adequada à realidade presente.” (AZEVEDO, A.
V. Estatuto da família de fato. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 514-515)
12 “(...) o antigo modelo familiar conservador e patriarcal foi calamitoso e deu origem a proliferações de uniões
extramatrimoniais, abalando a antiga estrutura familiar. Sob outra vertente, a família atual tendeu-se a buscar o
afeto e felicidade, o que a tornou diversificada. Essa diversificação, decorrida das transformações dos costumes da
sociedade brasileira, permitiu a ampliação do conceito da família em âmbito constitucional, reconhecendo outras
entidades familiares, como a união de pessoas do mesmo sexo, entre outras, e equiparou à família constituída pelo
casamento a entidade familiar resultante da união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
32

Nessa trilha, a Constituição de 1988 reconheceu as uniões estáveis como


entidades familiares (art. 226, § 3º). No interregno entre a promulgação da
CF/88 e do Código Civil de 2002, as uniões estáveis foram reguladas por leis
próprias (Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96). Depois, a regulação do Código Civil
de 2002 prevaleceu, exigente de que o fato social se qualifique como público,
contínuo, duradouro e havido com objetivo de constituir família, para que se
torne jurídico (ato-fato13 jurídico união estável).
Malgrado o status constitucional atribuído à união estável – que ganha
contornos e efeitos análogos ao casamento – distinções há entre essas confor-
mações familiares. As diferenças gravitam em torno das solenidades e forma-
lidades: o casamento é formal e solene, tanto em sua constituição como em
sua dissolução, pois negócio jurídico; a união estável é informal, surge na vida
relação e é apropriada pelo direito como ato-fato jurídico. Os efeitos de uma
e outra relação e as suas regulações guardam também algumas peculiaridades.
Essas duas conformações familiares (casamento e união estável), sem
embargo do relevante e indelével conteúdo existencial e pessoal, produzem
também e de modo bastante similar uma à outra, efeitos patrimoniais14. Refere-
se, então, a um regime de bens, ou seja, à “modalidade de sistema jurídico
que rege as relações patrimoniais derivadas do casamento”15.
Em linhas gerais, é livre a eleição do regime – ressalvadas as hipóteses
em que obrigatório o regime de separação –, respeitadas algumas formalidades
exigidas pela lei. Para o casamento e para a união estável, adotam-se formas
distintas: fala-se, respectivamente, no pacto antenupcial e no contrato de convi-
vência. A questão-problema explorada por este trabalho se coloca, justamente,
na possibilidade de que um determinado instrumento (pacto antenupcial),
celebrado com vistas à regulação de efeitos patrimoniais (principalmente, mas
não apenas) do casamento que não se realize, possa produzir efeitos jurídicos
relativamente a uma união estável que se constitua ou já estivesse constituída
anteriormente à sua celebração.

descendentes, família monoparental. Passou então a existir juridicamente, com este pluralismo de constituição de
famílias, uma grande lista dos diversos arranjos familiares.” (GARCIA, P. C.; FIGUEIREDO, C. R. A. Os efeitos
patrimoniais conferidos pelo ordenamento jurídico brasileiro aplicáveis às sociedades conjugais possíveis a partir da
família constitucionalizada. Revista Bonijuris, v. 27, n. 8, p. 20-30, ago. 2015, p. 23)
13 Sobre a qualificação da união estável como ato-fato jurídico, consultar: BALBELA, J. R. P.; STEINER, R. C. União
estável como ato-fato: importância da classificação. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, v. 14, n. 28, p.
5-21, jun./jul. 2012; L LÔBO, P. A concepção da união estável como ato-fato jurídico. mar. 2014. Disponível em: https://
ibdfam.org.br/artigos/953/A+concep%C3%A7%C3%A3o+da+uni%C3%A3o+est%C3%A1vel+como+ato-fato
+jur%C3%ADdico+e+suas+repercuss%C3%B5es+processuais.
14 “Ainda que não se leve em conta um cunho econômico direto no casamento, as relações patrimoniais resultam
necessariamente da comunhão de vida.” (VENOSA, S. S. Direito civil: família. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017. [livro
eletrônico]. 15.1)
15 VENOSA, S. S. Direito civil: família. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017. [livro eletrônico]. 15.1.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 33

Alguns elementos contextuais e empíricos justificam a pesquisa que


se instala. A uma, a constatação de que as uniões estáveis são cada vez mais
frequentes e corriqueiras16 e o casamento, por outro lado, mostra números
decrescentes17. A duas, o contexto histórico em que inserida a pesquisa, em
que se experimentam os efeitos individuais e coletivos da disseminação pandê-
mica de um vírus18, fenômeno que alterou sensivelmente as rotinas humanas
(inclusive a finitude da vida e a complexidade da morte coletiva19) e, mais uma
vez, lança luz sobre as incertezas: um casamento antes planejado pode, por
razões várias, não se realizar – nada obstante permaneçam os pretendentes
nubentes unidos estavelmente.
Além disso, a revisão da literatura indicou que existe uma carência de
aprofundamento do tema. No vasto material coletado e pesquisado, a questão-
problema é costumeiramente enfrentada de passagem, com o direcionamento
de pouca justificação para a conclusão adota pelo pesquisador ou aplicador
do direito. Esse fenômeno é comum tanto a textos que respondam positiva e
negativamente ao problema.
Nessa lacuna, insere-se a pesquisa. A primeira seção do trabalho é
dedicada à investigação de aspectos gerais sobre o regime de bens e também
a propósito de elementos estruturais e funcionais do pacto antenupcial e do

16 “Os dados da CENSEC, central de dados do Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF), entidade
que congrega os cartórios de notas, confirmam a percepção comumente compartilhada entre as pessoas de que os
casais estão preferindo se juntara se casar. Os tabelionatos de notas de todo o Brasil registraram um aumento de
57% no número de formalizações de uniões estáveis de 2011 (87.085) a 2015 (136.941)” (COLÉGIO NOTARIAL
DO BRASIL – SEÇÃO SÃO PAULO. Número de uniões estáveis cresce cinco vezes mais rápido do que o de casamentos.
17/02/2017. Disponível em: https://www.cnbsp.org.br/noticias/14006/numero-de-unioes-estaveis-cresce-cinco-
vezes-mais-rapido-do-que-o-de-casamentos. Acesso em: 02 set. 2021). Além disso, dados mais recentes indicam
que “Cartórios de Notas de várias regiões do país registraram média de aumento de 32% nas formalizações entre
maio e agosto [de 2020]. Com o isolamento social provocado pelo novo coronavírus, muitos brasileiros decidiram
oficializar o relacionamento em meio à quarentena. Cartórios de Notas de todo o país registraram um aumento
de 32% nas formalizações de uniões estáveis entre maio e agosto deste ano” (SENA, J. R. Uniões estáveis crescem
no país durante a pandemia. O Estado de Minas, 05/10/2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/
nacional/2020/10/05/interna_nacional,1191905/unioes-estaveis-crescem-no-pais-durante-a-pandemia.shtml. Acesso
em: 02 set. 2021). Embora os dados reflitam o crescimento no número de uniões estáveis, possível e provavelmente
a realidade é que ainda mais existam: como a união estável independe de formalização perante o oficial de registro
civil, tanto mais provável que existam centenas ou milhares de uniões não formalizadas que ostentam este status.
17 Caiu em 2,7% o número de casamento no ano de 2019, relativamente ao ano anterior (INSTITUTO BRASI-
LEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Estatísticas do Registro Civil 2019, Rio de Janeiro, v. 46, p. 1-8, 2019.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/135/rc_2019_v46_informativo.pdf. Acesso
em: 02 set. 2021).
18 Refere-se à notória pandemia de SARS-CoV-2, vírus causador da nefasta covid-19. A Organização Mundial da Saúde
atesta que, em 02.09.2021, eram mais de 20 milhões de casos confirmados da doença e mais de 580 mil óbitos em
decorrência dela – apenas no Brasil. (Dados obtidos em consulta ao painel eletrônico, disponível em: https://covid19.
who.int/region/amro/country/br. Acesso em: 02 set. 2021).
19 “Mas há uma outra realidade: a morte coletiva. A morte coletiva vai além da morte individual, porque ela é, ao mesmo
tempo, a morte de nossos amigos, de nossos parentes, de nossos amados e de nós mesmos. A morte coletiva é mais do
que a soma de mortes individuais, ela é uma outra coisa. (...) Para enfrentarmos a morte coletiva atual, que se nos apre-
senta pelo coronavírus, o luto deve ser outro e o Direito deve ser outro, mas não sabemos bem o que.” (CORTIANO
JUNIOR, E. Morte individual, morte coletiva: um ensaio. In: NEVARES, A. L. M.; XAVIER, M. P.; MARZAGÃO,
S. F. [Coord.] Coronavírus: impactos no direito de família e sucessões. Indaiatuba: Foco, 2020. p. 373-380)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
34

chamado contrato de convivência. Identificam-se os seus pontos comuns e


as suas distinções, sobretudo em vista do regulamento legislativo da matéria
e da literatura especializada a seu respeito. Em seguida, arrosta-se o cerne da
questão-problema colocada, etapa em que, com subsídio em ferramental inter-
facial e/ou tópicos transversais do Direito Civil (essencialmente, a autonomia
privada, a interpretação e aplicação do negócio), pretende-se estabelecer uma
resposta consistente sistematicamente.

2 Pacto Antenupcial e Contrato de Convivência: Estrutura e Função


Na dicção do art. 1.511 do CC, “O casamento estabelece comunhão
plena de vida”. A comunhão plena de vida significa, dentre outras consequên-
cias e no que interessa e este estudo, a comunhão de patrimônios (que pode
ocorrer ou não20). Por outras palavras, reside no plano da eficácia do casamento
uma consequência patrimonial, que é o regime de bens da sociedade conjugal.
Embora não seja certo dizer que o regime de bens seja uma consequência
necessária e natural do casamento (ou da união estável)
“êrro seria aconselhar-se a concepção de leis sôbre o casamento em que
se não adotasse regime matrimonial comum; quer dizer: em que se permi-
tisse o nada de regime matrimonial de bens. Primeiro, porque na ordem
mesma dos fatos o casamento produz comunidade de vida, mais ou menos
duradoura e estável.”21

Nessa medida, a lei regula as relações patrimoniais entre os cônjuges ou


conviventes, bem como as suas relações com terceiros22, seja relativamente à
apropriação ou à circulação dos bens, assim também do seu uso, gozo e fruição23.
É o regime de bens, “Em síntese, o estatuto patrimonial dos cônjuges”24 e dos
companheiros.

20 Anote-se que, “Independentemente da existência ou da formação de patrimônio comum, os efeitos do matrimônio


repercutem no patrimônio individual ou particular de cada um dos cônjuges, pois a norma lhes impõe a obrigação
de ‘concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e a educação dos
filhos, qualquer que seja o regime patrimonial’” (MAIA JÚNIOR, M. G. A família e a questão patrimonial. 3. ed. rev.,
atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p. 102).
21 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 2012. t. VII. p. 299.
22 “(...) a nova família, no exercício pleno de suas atividades e liberdade, alcança a interdisciplinaridade da vida (esferas
social, pessoal e patrimonial) e do Direito, o que significa dizer que atos relativos à prática patrimonial dos cônjuges
poderão afetar terceiro, esfera na qual o Estado tem obrigação de atuar para evitar prejuízos e visar o bem comum.”
(CARDOSO, D. F. Regime de bens e pacto antenupcial. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 41).
23 “Regime de bens é o conjunto de regras, mais ou menos orgânico, que estabelece, para certos bens, ou para os bens
subjetivamente caracterizados, sistema de destinação de efeitos. (...) O adjetivo ‘matrimonial’ mostra que é o fato do
casamento o ponto e o elemento determinante da lei que decide da propriedade, do gozo, uso, e fruto da adminis-
tração dos bens que tocam aos cônjuges. São dois sujeitos de direito que se encontram e passam a seguir juntos.
Normalmente, cada um é titular atual ou eventual de bens. O regime diz se êsses bens, que cada um traz, ou que
cada um adquire, continuam a ser particulares ou se são comunicados, de modo a pertencerem a ambos os cônjuges,
em comunhão.” (Ibid., p. 287-288).
24 GOMES, O. Direito de família. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 165.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 35

O mais comum25 é o regime da comunhão parcial de bens, que se aplica


sempre que os cônjuges (ou companheiros) não tenham elegido estatuto diverso
(arts. 1.640 e 1.725 do CC). Essencialmente, isso quer dizer que se comunicam
entre os cônjuges os bens adquiridos na constância do matrimônio26 (ou da
união estável27), sem prejuízo às normas excludentes da comunicabilidade28,
inclusivas de comunicação29, e ainda outras relativas à administração dos bens
(seja comuns, seja particulares)30. Aliás: essas características confirmam que se
trata, verdadeiramente, de um estatuto patrimonial: de um conjunto amplo de
regras a propósito das relações patrimoniais entre os cônjuges e terceiros.
Ressalvados os casos em que é impositivo o regime de separação31 (se-
paração obrigatória ou separação legal)32, prevalece a liberdade de escolha: os

25 Segundo dados do Portal da Transparência do Registro Civil, no ano de 2015 foram celebrados no Brasil um total
de 893.402 casamentos (PORTAL DA TRANSPARÊNCIA. Pesquisa por registros de casamento no ano de 2015 em todo
o território nacional. Disponível em: https://transparencia.registrocivil.org.br/registros. Acesso em: 17 ago. 2020). Por
outro lado, de acordo com dados colhidos pelo Colégio Notarial de São Paulo, no ano anterior (2014) foram lavra-
dos apenas 41.694 pactos antenupciais (MIGALHAS. Número de pacto antenupcial lavrados cresceu 36% no país. 2015.
Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/223491/numero-de-pacto-antenupcial-lavrados-cresceu-36-
no-pais. Acesso em: 17 ago. 2020). É dizer: aproximadamente 96% dos matrimônios é regulado pelo regime legal
(comunhão parcial de bens).
26 “No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento,
com as exceções dos artigos seguintes.” (Art. 1.658 do CC)
27 “Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber,
o regime da comunhão parcial de bens.” (Art. 1.725 do CC)
28 Dentre outras, as hipóteses arroladas nos arts. 1.659 e 1.661 do CC.
29 Hipóteses arroladas no art. 1.660 do CC.
30 Regulamentada pelos arts. 1.663 e seguintes do CC.
31 É controvertida a extensão da separação obrigatória ou legal às uniões estáveis. De um lado, argumenta-se que “se à
união estável deve ser dispensado tratamento igualitário ao casamento, nada justifica que o convivente com mais de
70 anos não deva se submeter ao regime obrigatório da separação de bens, tal e qual ocorre em relação aos cônjuges”
(FONSECA, P. M. P. C. Manual do planejamento patrimonial das relações afetivas e sucessórias. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Thomson Reuters, 2020. p. 54). Essa é a posição sustentada pelo Superior Tribunal de Justiça (vide julgados citados à
obra citada). Lado outro, argumenta-se que “a restrição legal da idade, consoante com a imposição do regime de sepa-
ração, inexiste no tocante à união estável, pois, se os mesmos nubentes aqui delineados optarem pela convivência em
união estável e não pelo casamento, o regime de bens aplicável àquela comunhão será a comunhão parcial de bens ou
outro regime que constar em contrato firmado pelos conviventes” (CARDOSO, D. F. Regime de bens e pacto antenupcial.
Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2010. p. 90). A subsidiar essa última posição o argumento de que o art.
1.641 do CC, constitui regra restritiva, que deve, portanto, merecer interpretação igualmente restritiva: se restringe a
liberdade de eleição de regimes no casamento, não pode estender seus efeitos restritivos à união estável (assim: MAIA
JÚNIOR, M. G. A família e a questão patrimonial. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p. 255-257). Também
contrária à extensão da obrigatoriedade da separação à união estável é a doutrina de: VELOSO, Z. Separação obrigatória
de bens – controvérsias – doação entre cônjuges. In: Direito civil: temas. Belém: ANOREG/PA, 2018. p. 251.
32 Refere-se àquelas hipóteses constantes no art. 1.641, CC. A propósito, há um volume significativo de autores que
sustentam a impertinência e mesmo a inconstitucionalidade da adoção obrigatória da separação de bens em razão
da idade, e as críticas ao dispositivo chegam a ser assaz ácidas (e.g., DIAS, M. B. Mais 10! Dez. 2010. Disponível em:
http://www.berenicedias.com.br/manager/arq/(cod2_556)mais_10.pdf). É questionável a necessidade de manuten-
ção das demais normas impositivas de regime obrigatório, sobretudo pela possibilidade de resolução de eventuais
confusões patrimoniais (refere-se ao caso dos casamentos realizados a despeito da vigência de condição suspensiva)
casuisticamente e in concreto, ampliando-se os espaços de liberdade dos cônjuges ou companheiros na opção pelo
regime de bens que melhor lhes aprouver (cf. MADALENO, R. Direito de família. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2019. p. 781-786). Finalmente, segundo parte da literatura jurídica, é possível a celebração de pactos antenupciais
inclusive nos casos em que vigora o regime de separação obrigatória de bens, sobretudo para evitar a incidência do
enunciado da Súmula nº 377/STF, que determina a comunicabilidade dos aquestos na separação obrigatória (sobre
o tema, ver: LEITE, E. O. A “armadilha” do regime de separação de bens e a humanização do direito de família
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
36

cônjuges ou conviventes podem optar por qualquer um dos típicos regimes


(separação total; comunhão parcial – ainda que, neste caso, seja absolutamente
dispensável a opção expressa pelos conviventes ou cônjuges –; comunhão
universal e participação final de aquestos) ou mesmo combinar os regimes ou
criar um totalmente próprio, inclusive com regras específicas relativamente a
um ou mais bens que integrem o patrimônio.
Os cônjuges e conviventes podem, mais do que optar por um deter-
minado estatuto, deliberar pela modificação deste incidentalmente à relação
de convivência ou marital: o Código Civil de 2002, diversamente do que
previa a legislação anterior, acarinhou a mutabilidade do regime de bens (art.
1.639, § 2º)33. A mudança, no casamento, exige autorização judicial obtida em
procedimento de jurisdição voluntária34; na união estável, pode-se modificar
o regime a qualquer tempo e independentemente de autorização judicial,
bastando a celebração de instrumento particular escrito35.

brasileiro. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, v. 17, p. 83-102, jul./set. 2018. Disponível em: https://
rbdcivil.emnuvens.com.br/rbdc/article/view/273/231; NEVARES, A. L. M. O regime de separação obrigatória de bens
e o verbete 377 do Supremo Tribunal Federal. Civilistica.com, Rio de Janeiro, ano 3, n. 1, jan./jun. 2014. Disponível
em: http://civilistica.com/o-regime-de-separaco-obrigatoria-de-bens-e-o-verbete-377-do-supremo-tribunal-federal/.
33 O Código de 1916, ao contrário da legislação vigente, proibia a mutação do regime (art. 230 do CC/1916), de modo
que “a atual mutabilidade do regime de bens do casamento constitui o ponto de chegada de uma longa evolução
teórica, fruto dos mais acalentados embates de ideais” (TUCCI, C. P. M. Aspectos patrimoniais do direito de família
no Brasil. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, n. 1, p. 37-57, jul./ago. 2014, p. 55), sendo certo afirmar
que “desacolhe a moderna doutrina a defesa intransigente da imutabilidade do regime de bens, devendo homem e
mulher gozarem da livre-autonomia privada e decidirem acerca da mudança incidental do estatuto patrimonial de
seus bens” (MADALENO, R. Direito de família. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 763).
34 A doutrina controverte sobre a pertinência da manutenção deste procedimento, e, em especial, do grau de intervenção
que se pode autorizar por parte do Estado-Juiz relativamente à motivação da alteração. Ainda que a legislação refira
à exigência de motivos, parte da literatura especializada sustenta a sua inexigibilidade, especialmente em vista do
art. 1.513 do CC, que determina a mínima intervenção do Estado nas escolhas e nos planejamentos familiares (cf.
GANDRA, C. G.; SILVA, B. A. B. Regime de bens no casamento e partilha. In: TEIXEIRA, A. C. B.; RIBEIRO, G.
P. L. (Coord.). Manual de direito das famílias e sucessões. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Processo, 2017. p. 358-359;
TEPEDINO, G. Controvérsias sobre regime de bens no Novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito das Famílias
e Sucessões, n. 2, p. 5-21, fev./mar. 2008, p. 10; FONSECA, P. M. P. C. Manual do planejamento patrimonial das relações
afetivas e sucessórias. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p.70-71). Por outro lado, há quem limite
pelo exercício de atividade cognitiva pelo Juiz, quem “emite um juízo positivo, com referência ao reconhecimento
da relevância das causas que justificam a modificação do regime de bens, e um juízo negativo, consistente na cons-
tatação de não acarretar a citada modificação prejuízos à própria família ou a terceiros” (MAIA JÚNIOR, M. G. A
família e a questão patrimonial. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p. 193).
35 “(...) de modo distinto ao estipulado para a modificação do pacto antenupcial, não se há de exigir autorização judicial,
uma vez que a lei não a impõe. Com efeito, ao contrário do pacto antenupcial, o contrato patrimonial [na união
estável] pode ser celebrado por meio de instrumento particular, razão pela qual também pode ser alterado pelo mes-
mo modo, independentemente de intervenção judicial, sem embargo de não ser seu registro compulsório” (MAIA
JÚNIOR, M. G. A família e a questão patrimonial. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p. 226). Há uma
aparente contradição no argumento da autora citada: é que, para o casamento, também não interessa a intervenção
judicial com relação à conveniência e oportunidade da opção por regime de bens, podendo os cônjuges livremente
escolhê-lo mediante escritura pública. Se a justificativa para se exigir a averiguação da justa motivação no caso de
mutação do regime de bens do casamento é a proteção da família – como visto na nota acima – raciocínio similar
poderia e deveria aplicar-se à união estável. Em sentido similar a propósito da dispensa de autorização judicial:
FONSECA, P. M. P. C. Manual do planejamento patrimonial das relações afetivas e sucessórias. 2. ed. rev. e atual. São Paulo:
Thomson Reuters, 2020. p. 74.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 37

O exercício da liberdade de eleição de regime patrimonial é condicio-


nado à celebração de um instrumento próprio, chamado de pacto antenupcial
ou contrato de convivência36, respectivamente para o casamento e para a união
estável. Para uma e outra conformação familiar, a função deste “negócio de
direito de família”37 é comum: a escolha ou estipulação do regime de bens. Sua
existência, validade e eficácia não é condicionante da existência e validade do
matrimônio ou da união estável, até porque a lei estipula regime supletivo (o
da comunhão parcial). Quer dizer: para que exista e seja válido o casamento
ou a união estável, o pacto antenupcial ou o contrato de convivência não são
necessários. O são, todavia, quando querem os nubentes ou conviventes que
o regime seja outro que não o supletivo da comunhão parcial.
Além da identidade funcional entre contrato de convivência e pacto
antenupcial, ambos ainda carregam similitude no que toca a algum aspecto
estrutural. Em especial, em sua natureza jurídica: ambos podem ser quali-
ficados como negócios jurídicos de feição especial, negócios jurídicos de direito de
família. Pontes de Miranda, a propósito do pacto antenupcial, afirma que “é
figura que fica entre o contrato de direito das obrigações (...) e o casamento
mesmo, como irradiador de efeitos”38. A identificação do pacto antenupcial
como negócio jurídico, além da obra de Pontes de Miranda, reverbera maciça-
mente na literatura jurídica39. O mesmo pode ser dito a propósito do contrato
de convivência, que igualmente é negócio jurídico

“Primeiro, porque permite aos cônjuges modular os efeitos jurídicos que


o casamento gerará (...) Segundo, porque embora exija escritura pública

36 O contrato de convivência não é constitutivo da união estável: como ato-fato, essa se constitui pelo exercício da
posição jurídica na forma descrita pela lei. É vazio o instrumento que pretenda, portanto, ausente a situação de fato
que se caracteriza e qualifica como união estável, constituí-la (Ibid., p. 64). No limite, o que se pode imaginar é
que o contrato de convivência tenha utilidade como prova relativa da união estável: “o contrato é uma das provas
do fato jurídico, mas não representa um instrumento jurídico de criação de uma situação jurídica entre as partes a
ser respeitada forçosamente por terceiros” (CAHALI, F. J. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva,
2002. p. 70).
37 PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 2012. t. VII. p. 314.
38 Ibid., p. 313.
39 À parte a discussão se o pacto é contrato ou simples negócio jurídico (se é o primeiro, é antes e necessariamente o
segundo), subscrevem à atribuição da natureza de negócio ao pacto: “A convenção antenupcial é o acordo contratual
que, tendo em vista a celebração do futuro casamento, se regulam relações de caráter patrimonial entre os cônjuges”
(VARELA, A. Direito da família. Lisboa: Petrony, 1987. p. 413); o pacto antenupcial ou o contrato de convivência
“trata-se de negócio jurídico utilizado pelos nubentes como instrumento formalizados do estatuto patrimonial
que regerá tanto as relações patrimoniais entre os cônjuges quanto as destes com terceiros” (MORAES, M. C. B.;
TEIXEIRA, A. C. B. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, A. C. B. Contratos, família e sucessões: diálogos
interdisciplinares. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 5); “O pacto antenupcial é negócio jurídico” (IANOTTI, C. C. Na-
tureza jurídica do pacto antenupcial e do casamento no direito brasileiro. In: TEIXEIRA, A. C. B. Contratos, família
e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 31); “(...) é com grande facilidade que se classifica o pacto
antenupcial como negócio jurídico, tanto do ponto de vista estrutural quanto do funcional” (FRANK, F. Autonomia
sucessória e pacto antenupcial: problematizações sobre o conceito de sucessão legítima e sobre o conteúdo e os efeitos
sucessórios das disposições pré-nupciais. 2017. 208 f. Tese (Doutorado) – Curso de Direito, Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2017. p. 65).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
38

para sua celebração (...), sua estrutura não é determinada pela lei, cabendo,
portanto, às pessoas moldá-la de acordo com seus interesses. Terceiro e
último, porque, guardados os limites legais, verifica-se que o pacto ante-
nupcial cumpre função instrumental em relação à autonomia privada, não
se adstringindo à mera decisão de praticar ou não, o ato, mas atuando de
modo positivo na sua constituição.”40

Não obstante a identidade funcional e também, parcialmente, estrutural,


havida entre o pacto antenupcial e o contrato de convivência, um e outro car-
regam particularidades e regras próprias, notadamente com relação à forma. É
condição de validade do pacto antenupcial a sua celebração em pública forma
(é o que dita o art. 1.653 do CC, e também o que se extrai do art. 166, IV, do
CC), quer dizer, se trata de solenidade substantiva e essencial (ad substantiam).
Por outro lado, o contrato de convivência dispensa a solenidade da celebração
por instrumento público, mas não dispensa a adoção de instrumento escrito
(art. 1.725 do CC)41.
A produção dos efeitos do contrato de convivência depende da efetiva
existência da situação de fato união estável. É dizer, “a caracterização da união
estável, com o preenchimento de seus elementos e requisitos, representa con-
dição jurídica para a eficácia do contrato de convivência”, isso significa que
este será “sem nenhum valor ou mesmo significado se entre os contratantes
não existir a relação que nele se objetiva seja definida”42. O pacto antenupcial
tem sua eficácia (típica) condicionada à celebração do casamento43: é o que
dita o art. 1.653, in fine, do CC.

40 FRANK, F. Autonomia sucessória e pacto antenupcial: problematizações sobre o conceito de sucessão legítima e sobre o
conteúdo e os efeitos sucessórios das disposições pré-nupciais. 2017. 208 f. Tese (Doutorado) – Curso de Direito,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017. p. 65.
41 Assim: “Com relação à união estável, não há qualquer exigência quanto à forma, se pública ou particular, bastando
que cumpra as exigências do art. 104 do Código Civil, e que seja realizado por escrito” (FLEISCHMANN, S. T.
C.; FACHINI, L. S. Passado e futuro: questões sobre a possibilidade de mudança automática do regime de bens e
disciplina jurídica pretérita pelo pacto antenupcial e contrato de união estável. In: TEIXEIRA, A. C. B. Contratos,
Família e Sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 55-56).
42 CAHALI, F. J. Contrato de convivência na união estável. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 62-63. Apesar de que “na maior
parte das vezes o contrato é celebrado no curso da união estável, (...) nada obsta a que seja pactuado antes do início
da convivência, hipótese em que sua eficácia estará condicionada à efetiva verificação da situação de união estável”
(MAIA JÚNIOR, M. G. A família e a questão patrimonial. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p. 222).
43 Nesse sentido: “Outra particularidade do pacto antenupcial é a sua vinculação, tão estreita ao casamento que a lei
o considera nulo se a este não se seguir. Em verdade, porém, não há nulidade propriamente dita, senão ineficácia. O
casamento é condição suspensiva do pacto antenupcial; os efeitos do pacto começam, realmente, com a sua celebração
e não se produzem se os nubentes não se casam” (GOMES, O. Direito de família. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1987.
p. 170); PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. São Paulo: RT, 2012. t. VII. p. 349; “Trata-se de
contrato acessório ao casamento, constituindo a celebração deste um pressuposto essencial da eficácia da convenção”
(VARELA, A. Direito da família. Lisboa: Petrony, 1987. p. 414).
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 39

3 Eficácia do Pacto Antenupcial Não Seguido pelo Casamento


No fecho da seção antecedente, referiu-se à eficácia típica do pacto an-
tenupcial e à sua sujeição à efetiva celebração do casamento consecutivamente
à celebração daquele. Uma questão que se coloca, para além da eficácia típica
do pacto antenupcial, é uma possível eficácia atípica. Aqui, o objeto central da
pesquisa: é possível que um pacto antenupcial, ainda que não seguido pelo
casamento, produza efeitos (mesmo atípicos) diante do que dispõe o art.
1.653, in fine, do CC? Parte da literatura jurídica44 oferece solução negativa à
pergunta, sustentando que

“O fato de haver uma manifestação de vontade formalizada por pública


escritura, não é suficiente para reger o regime de bens da união estável.
Afinal, se trata de manifestação de vontade que iria adquirir eficácia com
o casamento. Se este não ocorre, o pacto caduca – expressão tão ao gosto
do legislador em matéria sucessória – e não produz qualquer efeito.”45

Sem embargo, é possível também encontrar pareceres contrários.


Há quem defenda que o pacto antenupcial, se não seguido pelo casamento,
mas pela união estável, é eficaz como contrato de convivência para regular
esta última46. A afirmação da eficácia – mesmo que atípica – do pacto como
contrato de convivência, no mais das vezes, não é acompanhada de extenso
ou verticalizado arrazoado. É neste percurso pouco trilhado, que diz com os
porquês da afirmação, pelo qual seguirá a pesquisa.

44 Além da citação, compartilham desta posição, por exemplo: TUCCI, C. P. M. Aspectos patrimoniais do direito de
família no Brasil. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões, n. 1, p. 37-57, jul./ago. 2014, p. 52; GANDRA, C.
G.; SILVA, B. A. B. Regime de bens no casamento e partilha. In: TEIXEIRA, A. C. B.; RIBEIRO, G. P. L. (Coord.).
Manual de direito das famílias e sucessões. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Processo, 2017. p. 348. Ao dizer que “No
plano da eficácia, o regime definido no pacto antenupcial começa a vigorar a partir da data do casamento. (...) E
poderá nunca atingi-la, se um ou ambos os nubentes desistirem do casamento” (LÔBO, P. Direito civil: famílias. 4.
ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 335-336), parece que este último autor também compartilha desta postura.
45 DIAS, M. B. Manual de direito das famílias. 3. ed. em e-book baseada na 12. ed. impressa. São Paulo: RT, 2017. [livro
eletrônico]. 18.4.
46 Assim: MADALENO, R. Direito de família. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 756-758; “o pacto tem eficácia para
regular a união estável que se estabeleceu entre os que manifestaram vontade válida e não a revogaram, no limite da
conduta leal das partes (CC, arts. 421 e 422)” (NERY, R. M. A. Instituições de direito civil: família. 1. ed. em e-book
baseada na 1. ed. impressa. São Paulo: RT, 2015. [livro eletrônico]. Capítulo VI, 5.1); “se o casamento não ocorrer,
mas os pactuantes passarem a conviver em união estável, as regras firmadas no pacto antenupcial serão eficazes, pois
o negócio realizado será considerado contrato de convivência, proclamando para tanto, o art. 170 do CC/02, que
prevê o aproveitamento da vontade manifestada, de forma a permitir a conversão substancial do negócio jurídico”
(IANOTTI, C. C. Natureza jurídica do pacto antenupcial e do casamento no direito brasileiro. In: TEIXEIRA, A.
C. B. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 32); MAIA JÚNIOR, M. G.
A família e a questão patrimonial. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2015. p. 232-233; “se os nubentes não casam,
mas passam a conviver em união estável, o pacto antenupcial será admitido como contrato de convivência entre eles,
respeitando a autonomia privada” (FARIAS, C. C.; ROSENVALD, N. Curso de direito civil: famílias. 7. ed. rev., ampl.
e atual. São Paulo: Atlas, 2015. p. 315); “é forçoso admitir que o ato celebrado seja aproveitado na sua eficácia como
contrato de convivência” (TARTUCE, F. Direito civil: direito de família. 14. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2019. p. 174).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
40

A hipótese testada adere à segunda linha enunciada acima: de uma


reposta positiva, em favor da eficácia do pacto antenupcial como contrato de
convivência. O percurso exploratório desta hipótese passa, antes, no assen-
tamento de pelo menos uma premissa metodológica: o reconhecimento do
direito de família (mais especialmente, do direito patrimonial de família),
como locus privilegiado para a atuação da autonomia privada.
A autonomia privada47 é um dos pilares do Direito Privado48. A sua
noção e o seu conteúdo, inegavelmente, passaram por sensíveis transforma-
ções, que acompanham a travessia do Direito Civil Moderno, individualista,
ao Direito Civil Constitucional Contemporâneo, vocacionado à tutela da
pessoa concretamente considerada. A marca mais característica desse percurso,
possivelmente, está na substituição da expressão autonomia da vontade para
a autonomia privada, que revela a superação de um paradigma marcadamente
voluntarista49.
Essa superação voluntarista, sem embargo, não conduz ao descarte da
autonomia privada como ponto focal do Direito Privado. Ao revés, refaz seu
desenho de modo funcionalizado50: a autonomia privada pode (rectius deve)
ser concebida como instrumento a serviço do exercício de liberdade(s) pela
pessoa humana, ou, em outras palavras, a função da autonomia é promocional
da(s) liberdade(s)51.
A autonomia considerada como poder ostentado pela pessoa de regula-
mentar seus próprios interesses, de constituir e regular suas relações jurídicas,

47 Quiçá, mais apropriado fosse, em termos mais abrangentes, referir às autonomias privadas. Em Direito Comparado,
percebe-se que há uma multiplicidade de significados a ela conferidos (cf.: VICENTE, D. M. A autonomia privada
e seus diferentes significados à luz do direito comparado. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 8, ano
3, p. 275-302, jul./set. 2016).
48 “A autonomia – quer no aspecto da liberdade de exercer ou não os poderes ou faculdades de que se é titular, quer
no aspecto, mais completo, da possibilidade de conformar e compor, conjuntamente com outrem ou por pacto
unilateral, os interesses próprios – é uma ideia fundamental do direito civil.” (MOTA PINTO, C. A. Teoria geral do
direito civil. 4. ed. atual. Coimbra: Editora Coimbra, 2005. p. 58)
49 A esse respeito, consultar exemplificativamente: MOUTINHO, C. Os princípios da autonomia na terminalidade
da vida. In: EHRHARDT JÚNIOR, M.; CORTIANO JÚNIOR, E. Transformações no direito privado nos 30 anos da
Constituição: estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 185-187.
50 “A funcionalização dos institutos jurídicos significa, então, que o Direito, em particular e a sociedade, em geral,
começaram a interessar-se pela eficácia das normas e dos institutos vigentes, não só no tocante ao controle ou
disciplina social, mas também no que diz respeito à organização e direção da sociedade, através do exercício de
funções distributivas, promocionais ou inovadoras, abandonando-se a função repressiva (...).” (AMARAL NETO,
F. S. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem jurídica: perspectivas estrutural e funcional. In:
MENDES, G.; STOCO, R. (Org.). Princípios e aspectos gerais. São Paulo: RT, 2011. p. 579-606. Coleção Doutrinas
Essenciais, Direito Civil: Parte Geral. v. 2. p. 603).
51 “Trata-se não apenas da possibilidade abstrata de fazer escolhas, como também a possibilidade efetiva de se fazer o
que se valoriza, o que implica tanto a não coerção de outros indivíduos ou do grupo quanto, sobretudo, as condições
materiais para que as escolhas sejam realizadas. Mais que isso: trata-se de ampliar as possibilidades reais de escolha
e o próprio espaço daquilo que se pode valorizar.” (RUZYK, C. E. P. Liberdade(s) e função: contribuição crítica para
uma nova fundamentação da dimensão funcional do Direito Civil brasileiro. 2009. 402 f. Tese (Doutorado) – Curso
de Pós-Graduação em Direito, UFPR, Curitiba, 2009. p. 231).
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 41

tem influxos e contatos com o direito de família. Essa interface, que por vezes
é conflituosa52, tem sido expandida a novos limites e fronteiras: “a autonomia
privada passou a gerar efeitos jurídicos não apenas em situações patrimoniais,
mas também existenciais”53.
Mas é “no domínio das relações patrimoniais entre os cônjuges, onde
avultam os interesses particulares dos nubentes”, que “se abrem portas ao
princípio da autonomia privada, permitindo que estes adoptem, na convenção
antenupcial, o regime de bens que melhor lhes aprouver”54-55. O pacto ante-
nupcial, como negócio jurídico, é instrumento ótimo da autonomia privada
no âmbito familiar56.
Isso posto, é necessário que se reconheçam mecanismos de tutela da
autonomia privada: é necessário levar a sério o seu exercício e seus efeitos. Isso
não significa a defesa de um retrógrado voluntarismo, algo como a aplicação
do vetusto pacta sunt servanda cega às exigências próprias do conteúdo atual da
autonomia privada. Não quer dizer que, por ser fruto da vontade, negócios
jurídicos de família mereçam aplicação tout court.
A ideia é mais simples: o negócio jurídico pacto antenupcial (ainda
que não celebrado o casamento), é negócio jurídico. Encarta uma declaração
de vontade destinada à produção de determinados efeitos jurídicos57, funda-
mentalmente o de optar por um determinado estatuto patrimonial para uma
relação existencial. Não se pode descartar, portanto, a declaração de vontade

52 Sobre isso, avaliou-se que a convivência da autonomia privada no campo do direito de família, ambiência em que
tipicamente se reconhece a existência de uma regulação cogente, revela “um paradoxo que os estudiosos do direito
têm enfrentado, posto que [sic] a família representa um lugar privado e de liberdade, mas com a imposição cada vez
mais invasiva do público, algumas vezes representado por leis, outras por decisões judiciais” (RABELO, S. M. Pacto
de convivência na união estável: disponibilidade das consequências patrimoniais decorrentes do regime convivencial.
In: TEIXEIRA, A. C. B. Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 41).
53 MORAES, M. C. B.; TEIXEIRA, A. C. B. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, A. C. B. Contratos,
família e sucessões: diálogos interdisciplinares. Indaiatuba: Foco, 2019. p. 2. Ver também a esse respeito: MULTEDO,
R. V.; MEIRELES, R. M. V. Autonomia privadas nas relações familiares: direitos do estado e estado dos direitos nas
famílias. In: EHRHARDT JÚNIOR, M.; CORTIANO JÚNIOR, E. Transformações no direito privado nos 30 anos da
Constituição: estudos em homenagem a Luiz Edson Fachin. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 625-636.
54 Os excertos são colhidos em: VARELA, A. Direito da família. Lisboa: Petrony, 1987. p. 53. É preciso admitir que o
trecho original da conta de que “Apenas no domínio das relações patrimoniais entre os cônjuges (...) se abrem portas
ao princípio da autonomia privada, permitindo que estes adoptem” (grifo original suprimido; grifo inserido agora).
Sem embargo, parece já, à luz de todos os estudos retromencionados, que é possível estender a autonomia privada
para além do campo exclusivamente patrimonial, sobremaneira no direito de família.
55 Há uma aparente fratura entre o direito patrimonial de família e o direito existencial de família. Sobre isso, já se
disse que “O direito de família aplicado, isto é, o que disciplina as relações patrimoniais entre os cônjuges, não tem
o cunho institucional do Direito de Família puro” (GOMES, O. Direito de família. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 1987. p.
166). Ainda sobre o tema: TUCCI, C. P. M. Aspectos patrimoniais do direito de família no Brasil. Revista Nacional
de Direito de Família e Sucessões, n. 1, p. 37-57, jul./ago. 2014, p. 40-44.
56 VICENTE, D. M. A autonomia privada e seus diferentes significados à luz do direito comparado. Revista de Direito
Civil Contemporâneo, São Paulo, v. 8, ano 3, p. 275-302, jul./set. 2016, p. 278-279.
57 Faz-se alusão ao conceito de negócio jurídico fornecido na seminal obra de: AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico: exis-
tência, validade e eficácia. 4. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 16.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
42

externalizada ou instrumentalizada em um pacto antenupcial pelo fato singelo


de não sobrevir o casamento, quando prevaleça a relação de afeto constitutiva
de família. Fazê-lo implicaria esvaziar de sentido o negócio jurídico de direi-
to de família, já que a vontade declarada na situação concreta seria ignorada
em favor da aplicação da norma abstrata (i.e., a aplicação do regime legal de
comunhão parcial).
Esse raciocínio orienta a aplicação de uma solução imediatamente apoia-
da no art. 112 do CC. O dispositivo trata da interpretação do negócio jurídico,
e demanda que “o intérprete volte sua atenção para a intenção objetivada na
declaração”, de modo que “se deve buscar a intenção comum, que é revelada
pelas declarações convergentes das partes”58. Celebrado o pacto antenupcial,
nele está consubstanciada uma declaração de vontade expressa e específica no
sentido da eleição por um determinado regime de bens59. Ainda que não se
realize um determinado projeto familiar matrimonial, mas em seu lugar a rea-
lidade de afeto vivida constitua uma união estável, a vontade de optar por um
determinado estatuto patrimonial foi séria e conscientemente exteriorizada.
Esse argumento, que parte de uma solução interpretativa à questão-
problema, pode se sujeitar a objeções agarradas a um ponto de vista estrutu-
ral. Poder-se-ia contra-argumentar que, ainda que fosse possível interpretar
o pacto antenupcial como declaração de vontade destinada à regulação dos
efeitos patrimoniais da relação afetiva (de união estável), isso não soluciona a
questão da ineficácia ope legis. O art. 1.653, in fine, do CC, afinal de contas, diz
taxativamente ineficazes os pactos antenupciais não seguidos pelo casamento.
Sendo ineficaz o negócio, ele não deve produzir efeitos. Assim, mesmo a in-
terpretação sugerida no argumento retro não supre a impossibilidade jurídica
de produção de efeitos de um tal pacto antenupcial, a reclamar a aplicação
do regime legal.
Há, contudo, outros dois argumentos que motivam a aplicação do
pacto mesmo quando não seguido pelo casamento, mas por união estável,
e que suplantam a objeção. Primeiro deles é fincado no princípio60 da

58 THEODORO JÚNIOR, H.; FIGUEIREDO, H. L. Negócio jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 131-132.
59 Recorde-se que “Deve o intérprete, para isso, considerar todas as circunstâncias relevantes que existam na formação
do negócio, apreciando os elementos econômicos e sociais inspiradores da emissão de vontade pelo(s) agente(s) do
negócio jurídico” (AZEVEDO, F. O. Direito civil: introdução e teoria geral. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.
p. 460).
60 Diz-se que os “princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas, e com pretensão de
complementaridade e parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de
coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção” (ÁVILA, H.
Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2018.
p. 227). Escalar a conservação do negócio com princípio é também o que se encontra em: GUERRA, A. Princípio da
conservação dos negócios jurídicos: a eficácia jurídico-social como critério para superação das invalidades negociais. São
Paulo: Almedina, 2016. p. 192.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 43

conservação61 do negócio que, em termos singelos, consiste “em se procurar


salvar tudo que é possível num negócio jurídico concreto”62. A finalidade pros-
pectiva do princípio da conservação dos negócios é justamente o que carrega
seu nome: pretende conferir máxima eficácia às declarações de vontade. Este
é o estado de coisas a ser promovido: “o ordenamento jurídico, ao admitir a
categoria negócio jurídico” está “implicitamente reconhecendo a utilidade de
cada negócio jurídico concreto”, evidentemente que interessa a preservação
disso que “representa algo de juridicamente útil”63.
As normas devem ser criadas, interpretadas e aplicadas com vistas a
garantir que as relações sejam preservadas, e só em último caso desfeitas64. Por
outras palavras: conservação do negócio significa que “em nome da proteção
da autonomia privada e da primazia da eficácia jurídico-social, seja preservado
o negócio jurídico na maior extensão possível diante das circunstâncias”65.
Ao explorar a aplicação do princípio como critério para superar invalidade,
a doutrina sustenta que há diversas ocasiões em que o “sistema cria meios
eficazes para permitir ao intérprete a manutenção do vínculo”66, e uma delas
é justamente a noção de conversão substancial.
A técnica encontra amparo no art. 170 do CC. Muito embora o dis-
positivo faça referência ao negócio nulo como aquele que pode ser objeto
de conversão, nada impede que disso se trate também com os negócios
ineficazes67-68. Até porque

61 “A salvaguarda do negócio jurídico, ou seja, o fato de se aproveitar o mínimo dos elementos constitutivos do suporte
fático para o máximo da eficácia, é a ideia essencial contida no princípio da conservação.” (SCHMIEDEL, R. C.
Negócio jurídico: nulidades e medidas sanatórias. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 41)
62 AZEVEDO, A. J. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 66-67.
63 Ibid., p. 66.
64 GUERRA, A. Princípio da conservação dos negócios jurídicos: a eficácia jurídico-social como critério para superação das
invalidades negociais. São Paulo: Almedina, 2016. p. 259.
65 Ibid., p. 170.
66 Ibid., p. 253.
67 SCHMIEDEL, R. C. Negócio jurídico: nulidades e medidas sanatórias. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 79-81.
68 Flávio Tartuce pontua que, no caso específico sobre o qual se discute nesta pesquisa (e nas próximas linhas), “a situação
não é propriamente de conversão de um negócio nulo, mas de conversão do negócio ineficaz ou pós-eficacização,
conforme premissas desenvolvidas por Pontes de Miranda. Trata-se de hipótese em que determinado negócio jurídico
não produz efeitos em um primeiro momento, mas tem a eficácia reconhecida pela situação concreta posterior que,
aqui, é a convivência entre os envolvidos” (Conversão de pacto antenupcial em contrato de convivência. Publicado em mar.
2018. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1257/Convers%C3%A3o+de+pacto+antenupcial+em+contr
ato+de+conviv%C3%AAncia). Por outro lado, o que se diz é que o “ato ineficaz pode tornar-se eficaz em decor-
rência de fato jurídico posterior”, ao que se chama de pós-eficacização (MELLO, M. B. Teoria do fato jurídico: plano
da eficácia. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 85). É difícil, nesse sentido, imaginar como se sustenta a noção de
pós-eficacização se o fato jurídico atributivo da eficácia (união estável) pode ser anterior ou mesmo contemporâneo
ao ato tido por ineficaz. De toda forma, pós-eficacização ou conversão substancial, o resultado é idêntico: atribuição
de eficácia a negócio que não deveria ostentá-la.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
44

“trata-se, aí, de fenômeno de alteração da qualificação categorial do negócio;


as partes realizam um negócio de tipo X, e, como, dentro desta categoria X,
esse negócio é nulo, anulável ou ineficaz, a lei ou o juiz determinam uma
alteração da qualificação categorial, de forma que o negócio, considerado
dentro da categoria Y, possa produzir pelo menos alguns dos efeitos que
as partes queriam.”69

No caso dos pactos antenupciais não seguidos pelo casamento, a con-


versão “importa em valorá-lo ou em caracterizá-lo como um tipo de negócio
distinto do que aquele foi realizado pelas partes”70, qual seja, o contrato de
convivência. E a conversão é possível, sobretudo porque o pacto antenupcial
atende a requisitos (de validade) mais rigorosos e que extrapolam aqueles do
contrato de convivência: a este último, basta que seja escrito – isso os pactos
antenupciais sempre serão, inclusive na pública forma. A aplicação da técnica
da conversão do negócio para atribuição de máxima eficácia ao pacto, ainda
que procedido pela união estável não pelo casamento, tem antecedentes na
literatura jurídica. Assim, por exemplo:
“se os nubentes não casam, mas passam a conviver em união estável, o
pacto antenupcial será admitido como contrato de convivência entre eles,
respeitando a autonomia privada. Até mesmo em homenagem ao art. 170
do Código Civil que trata da conversão substancial do negócio jurídico,
permitindo o aproveitamento da vontade manifestada.”71

Para além das soluções interpretativas e a de pós-eficácia com a conver-


são substancial, há ainda um terceiro argumento a apontar na direção de que o
pacto sirva como contrato de convivência. Este diz respeito com a aplicação da
boa-fé objetiva72, cuja incidência tem alcançado os rincões das relações fami-

69 AZEVEDO, A. J. A conversão dos negócios jurídicos, cit., p. 183 apud SOUZA, E. N. A teoria geral das invalidades
do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade no direito civil contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2017. p. 300-301.
N.R. 882.
70 SCHMIEDEL, R. C. Negócio jurídico: nulidades e medidas sanatórias. 2. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 75.
71 FARIAS, C. C.; ROSENVALD, N. Curso de direito civil: famílias. 7. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015. p.
315.
72 As próximas linhas se desenvolvem na tentativa de justificar dogmaticamente a aplicação da boa-fé objetiva ao
tópico investigado, ainda que de modo sintético e contingente. Isso se faz em atenção à crítica fundamentada de
que a boa-fé é recorrentemente empregada como “varinha de condão” para justificar qualquer tipo de argumento
ou decisão. Esta expressão é empregada por Schmidt ao se referir ao uso disfuncional da cláusula geral da boa-fé
objetiva. Diz ele: “ainda mais problemático é o tratamento ocasionalmente, apesar de não cotidiano, conferido ao
princípio da boa-fé: seu uso como ‘varinha de condão’ que leva o Juiz ao resultado desejado da maneira mais rápida
possível” (tradução livre. No original: “Noch problematischer ist ein anderer, zwar nicht tagtäglich, aber immerhin
gelegentlich anzutreffender Umgang mit dem Grundsatz von Treu und Glauben: seine Verwendung als ‘Zauberstab’,
der den Richter auf schnellstem Wege zum gewünschten Ergebnis bringt”. SCHMIDT, J. P. Zehn Jahre Art. 422
Código Civil: Licht und Schatten bei der Anwendung des Grundsatzes von Treu und Glauben in der brasilianischen
Gerichtspraxis. Mitteilungen Der Deutsch-Brasilianischen Juristenvereinigung, v. 32, n. 2, p. 34-47, fev. 2014. p. 42).
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 45

liares73. É natural tratar da boa-fé objetiva no caso do pacto antenupcial e do


contrato de convivência, já que estes são instrumentos negociais (ambiência
em que a boa-fé objetiva justamente se origina74).
Nesse diapasão, o terceiro argumento está apoiado na figura parcelar da
boa-fé objetiva em sua faceta corretiva75 que inibe comportamentos contraditó-
rios, reduzida na fórmula proibitiva ao venire contra factum proprium76: a ninguém é
dado contrariar as legítimas expectativas criadas em razão de um comportamento
próprio que é posteriormente traído por outro em sentido contrário.
O argumento tem uma limitação: é útil (e faz sentido) somente se um
dos conviventes questionar a eficácia do pacto antenupcial como contrato
apto a regular o estatuto patrimonial da união estável. Imagine-se que, em
caso litigioso de dissolução de união estável, o único ponto controvertido
diga respeito justamente a isso: no ínterim de uma união estável (fato incon-
troverso), celebrou-se pacto antenupcial para optar pelo regime da separação
convencional, mas por qualquer razão não sobreveio o casamento. Um dos
conviventes alega que o pacto não produz efeitos, e que deve se aplicar o
regime legal da comunhão parcial.
Nessa hipótese, seria possível dizer que (i) existe, como factum proprium
e comportamento inicial, a celebração do pacto antenupcial77; (ii) surge, para

73 A “boa-fé objetiva parece direcionar-se, por toda parte, à superação da sua última fronteira: a das relações existenciais.
De fato, a gênese obrigacional do conceito não tem impedido sua invocação em divergências inteiramente apartadas
do campo patrimonial, como as que habitualmente surgem no âmbito do direito de família” (SCHREIBER, A. Direito
civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 318). Ainda no tema: MIRANDA, V. R. A boa-fé objetiva no direito de
família. Revista dos Tribunais, RT, v. 102, n. 927, p. 99-116, jan. 2013; FARIAS, C. C. A aplicação do abuso do direito
nas relações de família: o venire contra factum proprium e a supressio/surrectio. In: Leitura complementar de direito civil: direito
das famílias: em busca da consolidação de um novo paradigma baseado na dignidade, no afeto, na responsabilidade
e na solidariedade. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 191-208; CHAVES, M. Venire contra factum proprium, suppressio e
surrectio: a tutela da confiança nas relações familiares. In: Famílias e sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo
Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 619-632; CHAVINHO, M. B. M. A boa-fé objetiva nas relações familiares: abuso
do direito, venire contra factum proprium e supressio/surrectio. In: Direito de família na contemporaneidade. Belo Horizonte:
D’Plácido, 2015. p. 193-228.
74 SCHREIBER, A. Direito civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 315-318.
75 “A mais vasta e relevante, consequente à qualificação geral da boa-fé como instituto jurídico, é a função corretora do
exercício jurídico para impedir o exercício manifestamente desleal, incoerente, imoderado ou irregular de direitos
subjetivos, formativos, faculdades e posições jurídicas” (MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado: critérios
para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 625).
76 Não se desconhece da advertência sobre a amplitude do brocardo e suas deficiências, a ponto de se argumentar, por
exemplo, que “O estabelecer de linhas dedutivas com base no venire contra factum proprium é, em particular, inviável.
Com atenção a novos elementos periféricos constitutivos e enriquecedores do tema em estudo, há que procurar
tipos mais restritos de regulações de actos inadmissíveis e ver em que medidas eles corroboram ou inflectem as
linhas depreendidas dos comportamentos contraditórios” (MENEZES CORDEIRO, A. M. R. Da boa-fé no direito
civil. Coimbra: Almedina, 1984. 6ª reimpressão. p. 770). Apesar dela, a proibição do comportamento contraditório
é ferramenta útil e de conteúdo e aplicabilidade extensamente descritas na literatura. Veja-se, exemplificativamente:
MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p.
674-689; SCHREIBER, A. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium.
2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 125-127.
77 A doutrina exige que esse comportamento inicial não seja vinculante, pois se o for, não aplicável a proibição ao venire
(SCHREIBER, A. A tutela da confiança, cit., p. 133-134). Nesse caso, adota-se para fins argumentativos a tese de que
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
46

o outro convivente, a legítima expectativa de que a opção pelo regime de


bens já foi realizada no momento da celebração do pacto antenupcial; (iii) o
comportamento do convivente que alega a aplicação do regime supletivo ou
legal é contraditório com a declaração de vontade inspiradora da confiança
legítima e (iv) tem o potencial de causar prejuízo ao convivente que confiou
no primeiro comportamento, por exemplo, com a partilha de bens particulares
seus (adquiridos na constância da união estável, por exemplo). Impede-se, por
isso, a prática do segundo ato: não se reconhece e não se tutela o convivente
que trai a confiança, e faz-se prevalecer a eficácia do pacto antenupcial no que
interessa ao regime de bens78.
Há caso paradigmático do Supremo Tribunal Federal que aplica a proi-
bição do comportamento contraditório justamente à escolha de regime de bens
e sua posterior contradição79: trata-se do Recurso Extraordinário nº 86.787/
RS, relatado pelo Ministro Leitão de Abreu. Naquele caso (e na síntese do
que interessa) dois brasileiros mudaram-se para o Uruguai e lá casaram sem
optar por regime (sendo supletivo, à época e ao local do casamento, o regime
da separação). Regressaram ao Brasil, e o relacionamento viu seu ocaso. No
curso do litígio que visava terminar a relação marital, o cônjuge alegou que
se aplicava o regime da comunhão universal, segundo ordena a lei brasileira.
O voto do Ministro Leitão de Abreu não acarinhou esta tese:
“Com perfeita boa-fé agiu o recorrente no estabelecimento do regime de
bens do casamento. Tanto quis, com lealdade, esse regime, que, realizado o
matrimônio, além de outros atos, que traduzem manifestação inequívoca de
que considerava casado sob o regime de separação de bens, chegou mesmo a
declarar-se assim cassado em escritura pública de aquisição de bens (fl. 660).
Se isso é certo, não pode, agora, passados anos, cerca de um quinquênio,
ser ouvido quando vem sustentar que o regime de bens, em vez de ser o da
separação, ao qual conscientemente se submeteu e o qual, de fato, passou a
viver, é o regime da comunhão. Tendo criado, com a recorrida uma situação
que foi condição do casamento, não pode vir agora, sem quebra da boa-fé,
renegar o regime a que ambos, no casamento, quiseram submeter-se.”80

(nem por pós-eficacização, por exemplo) o pacto antenupcial, a priori, não é vinculante imediatamente, já que o
casamento é conditio iuris da eficácia (e da vinculatividade, portanto).
78 Essa rotina de etapas de verificação é orientada pelos aspectos dogmáticos do venire como expostos em: SCHREIBER,
A. A tutela da confiança, cit., p. 131-169.
79 O achado se deve ao citado texto de: SCHREIBER, A. A tutela da confiança, cit., p. 198-205. Também aparece em:
SCHREIBER, A. Direito civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2013. p. 321.
80 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Recurso Extraordinário 86.787/RS. Relator Ministro Leitão de Abreu.
Julgamento em 20 de outubro de 1978. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=180795. p. 71.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 47

Embora, no paradigma, a situação seja de cônjuge que nega os efeitos


típicos do regime de bens pelo qual optou (e segundo o qual orientou sua
conduta na vigência do matrimônio), o raciocínio é bastante similar e aplicável
também ao caso do pacto antenupcial não seguido por casamento, mas pela
união estável. Aquele que celebra o pacto deposita no outro a confiança e a
legítima expectativa de que a relação (seja ela matrimonial ou convivencial)
adotará o estatuto de bens pelo qual se optou no negócio. Alegar o contrário
viola essa legítima expectativa, e deve ser repudiado.

4 Considerações Finais
Essa tendência de valorização e atribuição de eficácia à vontade empe-
nhada nos negócios jurídicos de direito de família já transborda dos limites da
literatura jurídica e é, paulatinamente, incorporada na adjudicação de casos.
Um caso paradigmático é representado pelo Recurso Especial nº 1.483.863/
SP, relatado pela Ministra Maria Isabel Gallotti e julgado pela Quarta Turma
em 10.05.2016.
O contexto fático do caso era bastante peculiar: os litigantes foram casa-
dos por aproximadamente 16 anos. Separaram-se, divorciaram-se e partilharam
o patrimônio comum (foram casados sob o regime da comunhão universal).
Depois da extinção do matrimônio, reaproximaram-se e passaram a conviver
em união estável (a partir de 2000). Ato contínuo, celebraram pacto antenupcial
em abril de 2003 optando pelo regime da separação total, e permaneceram
convivendo more uxorio até o casamento, que viria a ocorrer em julho 2004.
Divorciaram-se novamente em 2006, ocasião em que passaram a litigar rela-
tivamente aos bens amealhados no período de convivência em união estável.
Naquele caso, a dúvida que se colocava coincide com a questão-pro-
blema que orienta essa pesquisa: o pacto nupcial celebrado em 2003 produz
efeitos para regular os efeitos patrimoniais da união estável até a ulterior ce-
lebração do casamento em 2004? Sim, disse o Superior81, argumentando que:

“o pacto antenupcial, estabelecendo a livre vontade dos então conviventes


e futuros cônjuges de se relacionarem sob o regime da separação total de
bens, embora somente tenha vigorado com a qualidade de pacto antenupcial
a partir da data do casamento (7.7.2004), já atendia, desde a data de sua

81 Houve voto divergente, de lavra do Ministro Antonio Carlos Ferreira. O Ministro argumentou, em síntese, que
não é possível presumir a vontade dos nubentes relativamente à regulação dos efeitos patrimoniais da união estável.
Sustenta que, no caso, a melhor hermenêutica é aquela que, no silêncio (assim o aprecia o Ministro) das partes, deve-se
aplicar a norma de direito positivo – no caso, o regime da comunhão parcial de bens. Curioso perceber que o voto
opta por citar, em sua fundamentação, obra jurídica que defende exatamente o contrário do que concluiu o julgador:
Maia Junior (citado à fl. 17), defende a eficácia do pacto, como se viu ao longo deste trabalho.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
48

celebração (16.4.2003), ao único requisito legal para disciplinar validamente


a relação patrimonial entre os conviventes de forma diversa da comunhão
parcial, pois é um contrato escrito (...)”

Alguns outros julgamentos posteriores ratificaram e reproduziram essa


posição. Dentre eles, merece destaque o julgamento do Agravo Interno nos
Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração nos Embargos de De-
claração no Recurso Especial nº 1.318.249/GO, sob relatoria do Ministro Luis
Felipe Salomão. Naquele caso, que versava sobre direito de família e direito
sucessório, o autor da herança convivera em união estável e morreu antes de
casar, mas depois de celebrar pacto antenupcial (em que se elegeu o regime
da separação convencional). Entre a celebração do pacto – ocorrida em 1997
– e o óbito – em 2004 – transcorreram cinco anos: ainda assim, o Superior
considerou que aquele era suficiente à regulação dos efeitos patrimoniais da
união estável, independentemente de não ter havido casamento. Nota-se,
portanto, uma incorporação, pela jurisprudência, de algumas das tendências
doutrinárias investigadas e desvendadas nessa pesquisa.
Uma afirmativa contingentemente conclusiva é a de que o pacto an-
tenupcial, ainda que não se realize o casamento, pode produzir efeitos como
contrato de convivência. A produção desses efeitos é atípica, quer dizer, o
pacto não vale como tal, mas como contrato de convivência (embora haja
semelhanças estruturais e funcionais, são categorias distintas). Essa eficácia é
tributária do reconhecimento da declaração de vontade como fruto da autono-
mia privada, ao que se deve conferir máxima eficácia jurídica, seja por atividade
interpretativa (e.g., aplicação do art. 112 do CC), de conversão substancial ou
pós-eficacização ou em razão da função corretiva da boa-fé objetiva.
Diz-se em uma conclusão contingente, na medida em que contingente
é o fenômeno do direito. Não se pode perder de vista a necessidade de o “apli-
cador do direito descer do plano das abstrações ao terreno rico e multiforme
do concreto”82. Essa advertência sinaliza que a solução atributiva de eficácia
não pode se fazer em prejuízo da imperiosa tutela à pessoa e suas concretas
vulnerabilidades.

TITLE: Effectiveness of the prenuptial agreement as a common law marriage agreement

ABSTRACT: The research is focused on the field of Family Law, more specifically, on the negotiated
regulation of family formats. The main goal is to investigate whether, despite art. 1.653 of CC, the pre-
nuptial agreement is able to be effective regardless of the celebration of marriage. A hypothetical-deductive

82 MARTINS-COSTA, J. Comentários ao Novo Código Civil: do direito das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
v. 5. t. 1. p. 8.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 49

methodology is adopted, together with a bibliographic review technique. The research finds that, even
though not followed by the celebration of marriage, a prenuptial agreement might e effective, for instance,
as a common law marriage agreement.

KEYWORDS: Prenuptial Agreement. Marriage. Common Law Marriage Agreement. Efficacy.

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Recebido em: 03.02.2023


Aprovado em: 13.02.2023
Doutrina

Empresas Familiares, Sociedades


Limitadas e Impacto Econômico Positivo
da Mediação Empresarial Familiar
Fernanda Tartuce
Doutora e Mestra em Direito Processual pela Universidade de
São Paulo; Professora do Programa de Mestrado e em Cursos
de Especialização em Direito Civil e Processual Civil na Escola
Paulista de Direito; Presidente da Comissão de Processo Civil
do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFam; Vice-
Presidente da Comissão de Mediação do Instituto Brasileiro de
Direito Processual – IBDP e Diretora do Centro de Estudos
Avançados de Direito Processual – CEAPRO; Membro
do Instituto dos Advogados de SP – IASP e da ABEP –
Associação Brasileira Elas no Processo; Advogada, Mediadora e
Autora de publicações jurídicas; e-mail: fetartuce@uol.com.br.

Rebeca Nogueira Verbicaro


Mestranda em Resolução Extrajudicial de Controvérsias
pela Escola Paulista de Direito (EPD); Pós-Graduada
em Negociação, Mediação e Resolução de Conflitos pela
Universidade Católica do Porto (UCP) com o Instituto de
Certificação e Formação de Mediadores Lusófonos (ICFML);
LL.M. em Direito Societário e Mercado de Capitais
(IBMEC); Membro da Comissão de Mediação e Advocacia
Consensual da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-Barra),
da Comissão de Novas Práticas Colaborativas da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB-Barra) e da Associação Brasileira
de Advogados na Comissão da Mulher (ABA-RJ); Associada
do Instituto Mediare RJ; Advogada e Mediadora Judicial;
e-mail:rverbicaro@gmail.com.

Ana Raquel Fortunato dos Reis Strake


Mestranda em Resolução Extrajudicial de Controvérsias
pela Escola Paulista de Direito (EPD); Pós-Graduada em
Família e Sucessões (EPD) e Direito Contratual (EPD),
com Atualização em Direito dos Contratos pela EMERJ;
Economista (PUC-Rio – Aluna do Programa Especial
de Treinamento – PET); Trainee da 5ª Turma do Banco
Nacional; Especialização em Avaliação de Empresas e
Desempenho Empresarial (FGV/RJ); Presidente da Comissão
de Planejamento Patrimonial e Sucessório da subseção de
Barueri – OAB/SP; Membro da Comissão de Soluções
Consensuais de Conflitos e da Comissão de Direito de Família
da Seccional OAB/SP; Advogada; Perita Judicial; Mediadora e
Facilitadora em Justiça Restaurativa e Conferências Familiares;
e-mail: anafortunato1212@gmail.com.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
54

RESUMO: O presente artigo trata da aplicação da mediação empresarial familiar


na estrutura empresária brasileira, bem como da mediação como instrumento
indicador de boas práticas de governança corporativa voltada para empresas
familiares. A abordagem toma como ponto de partida a mediação como ins-
trumento de acesso à justiça na sociedade contemporânea. O estudo aborda
a compatibilidade entre o instituto da mediação no ambiente corporativo que
une dos sistemas empresarial e familiar, representando o meio de resolução de
litígios com a maior potencialidade de promoção do desenvolvimento econô-
mico da nação. Este trabalho pretende refletir sobre a importância do instituto
da mediação como método de resolução de conflito na sociedade empresária
familiar por garantir maior efetividade e eficiência na resolução de controvérsias
e, principalmente, promover pacificação.

PALAVRAS-CHAVE: Acesso à Justiça. Mediação Empresarial Familiar. Econo-


mia. Impacto Econômico. Governança Corporativa.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Empresas Familiares e Sociedades Limitadas: Base da


Economia Brasileira. 2 Mediação como Meio de Acesso à Justiça na Sociedade
Brasileira Contemporânea. 3 Mediação no Âmbito Corporativo Familiar e In-
terdisciplinaridade. 4 Vantagens e Desafios da Mediação Empresarial Familiar.
5 Efeitos da Mediação Empresarial Familiar no Desenvolvimento Econômico
Brasileiro. Conclusão. Referências.

Introdução
As empresas familiares ocupam um papel central e fundamental na
economia nacional, merecendo estímulo e suporte. Altamente relevantes
em termos econômicos, as empresas familiares podem ser focos de conflitos
internos e externos –, caso não sejam tratados no momento certo e de forma
adequada –, a ponto de tais disputas serem aptas a gerar sua extinção e romper
relações tanto comerciais como familiares1.
A economia está em constante mutação, razão pela qual conflitos re-
lativos à necessária adequação da situação empresarial à realidade econômica
do setor, ou mesmo do país em que exerce sua atividade, sempre existirão.
Nas empresas corporativas familiares misturam-se relações profissionais e de
afeto, o que faz surgir o entrelaçamento de critérios objetivos e subjetivos,
gerando conflitos2.

1 AGUIRRE, Caio Eduardo; CHISTÉ, Paula de Magalhães. Mediação em empresas familiares. In: BRAGA NETO,
Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 101.
2 FREIRE, José Nantala Badue; BRAGA NETO, Adolfo. Os desafios da mediação empresarial no Brasil. In: BRAGA
NETO, Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 17.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 55

Nesses casos, o instituto da mediação auxilia na revisão das relações e


dos contratos que as regem, tendo como premissa básica novas perspectivas
para os sócios e a sociedade, incluindo-se, em muitos casos, elementos rela-
tivos a fatores mutáveis da economia3. Diante disso, promove-se a abertura
dos empresários e de suas empresas a essas mudanças podendo resultar, in-
clusive, na revisão dos contratos de modo a adequá-los às novas perspectivas
que podem surgir a partir do procedimento de mediação.
Há de se atender aos atuais anseios da sociedade brasileira contempo-
rânea com análise, estudos e debates sobre os limites e as possibilidades de
ampliação do acesso à justiça por meio da aplicação da mediação aos conflitos
societários familiares.

1 Empresas Familiares e Sociedades Limitadas: Base da Economia


Brasileira
Conforme informam o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) e o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), “90%
das empresas no Brasil seguem o modelo familiar”, sendo “elas responsáveis
pela produção de 65% do Produto Interno Bruto” e “de cerca de 75% da força
de trabalho no país”4.
Quanto à definição do que confere a uma empresa a natureza familiar,
não há consenso entre a comunidade científica, mas apenas o apontamento
de características consideradas comuns nesta espécie de sociedade empresá-
ria, como: a) estar sob o controle de quem a criou; b) a presença de relações
familiares que interferem na dinâmica da empresa; e c) a supervalorização das
relações afetivas em prejuízo dos interesses negociais, dentre outras5.
Embora não haja consenso quanto à definição de empresa familiar, cons-
titui fato aceito pela coletividade que tais empresas são a maioria no mercado.
Em termos globais, conforme afirma relatório sobre empresas familiares
também originário do Sebrae, 95% das 300 maiores empresas mundiais são
familiares; nos EUA, 75% das empresas possuem essa natureza e são respon-
sáveis por mais de 50% do Produto Interno Bruto americano. Embora elevada

3 BRAGA NETO, Adolfo. A mediação de conflitos no contexto empresarial. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/
edicoes/revista-83/a-mediacao-de-conflitos-no-contexto-empresarial/. Acesso em: 20 nov. 2022.
4 É o que enuncia o artigo “Pais e filhos: desafios e valores entre gerações de empreendedores”, publicado pelo Sebrae,
entidade privada que promove a competitividade e o desenvolvimento sustentável de empreendimentos de micro e
pequenas empresas. Disponível em: www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/ms/artigos/pai-e-filho-os-desafios-
e-valores-entre-geracoes-de-empreendedores. Acesso em: 21 jun. 2022.
5 Disponível em: www.bibliotecas.sebrae.com.br/chronus/ARQUIVO_CHRONUS/bds/bds.nsf/195d95208c89363
622e79ce58427f2dc/$file/7599.pdf. Acesso em: 21 jun. 2022.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
56

importância, tem-se que 70% dos empreendedores familiares não resistem à


morte do fundador6.
Em consonância com o cenário mundial, como visto anteriormente,
90% das empresas brasileiras possuem perfil familiar; de acordo com dados
extraídos da Demografia das Empresas e Estatística de Empreendedorismo
do IBGE, a expectativa de sobrevivência média da sociedade empresária bra-
sileira era de 11,7 anos em 2019, tempo que tem se mantido constante nos
últimos cinco anos7.
Tais números indicam que também no Brasil a maioria das empresas
não sobrevive à morte do fundador: como hoje o intervalo intergeracional é
de dez anos, as empresas familiares mal passam para a segunda geração.
Portanto, já sob este recorte o alto impacto das relações familiares nas
estruturas societárias, e por isso na economia brasileira, resta incontroverso.
Vale também apontar o tipo societário predominante no Brasil. De
acordo com o Mapa de Empresas divulgado pela Receita Federal8 relativo
aos primeiros quatro meses de 2022, foram identificadas 5.884.240 empresas
ativas9, das quais 79,31% são limitadas (4.667.178 empresas). Em tais socieda-
des, quem são efetivamente os sócios importa, já que são caracterizadas como
sociedades de pessoas nas quais se exige a presença da affectio societatis (ainda
que a doutrina tenha mitigado tal característica, conferindo a estas empresas
caráter misto)10.

6 Artigo “Pais e filhos: desafios e valores entre gerações de empreendedores”, publicado pelo Sebrae, entidade pri-
vada que promove a competitividade e o desenvolvimento sustentável de empreendimentos de micro e pequenas
empresas. Disponível em: www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/ms/artigos/pai-e-filho-os-desafios-e-valores-
entre-geracoes-de-empreendedores. Acesso em: 21 jun. 2022.
7 Disponível em: www.sidra/ibge.gov.br/tabela /1936. Acesso em: 8 jun. 2022.
8 Disponível em: www.gov.br/governodigital/pt-br/mapa-de-empresas/boletins. Acesso em: 22 jun. 2022.
9 Necessário pontuar que o número de empresas totais apontadas pelo Mapa de Empresas da Receita Federal é de
19.373.257 CNPJs. No entanto, 13.489.017 correspondem aos empresários individuais e ao microempresário indi-
vidual, os quais não constituem pessoas jurídicas, mas apenas realizam atividades em nome próprio, e possuem suas
atividades, em regra, extintas com seu falecimento. Embora tais atividades tenham significativa relevância econômica,
sua análise foge ao escopo do presente estudo.
10 “Tais empresas eram tradicionalmente vistas como sociedades de pessoas, nas quais os sócios se uniriam em virtude
de suas qualidades pessoais, razão pela qual a morte de um dos sócios, a princípio, acarretaria a dissolução do vínculo
societário, não sendo as quotas sociais livremente cedíveis. Essas se contraporiam, portanto, às sociedades de capitais,
nas quais apenas a contribuição dos sócios seria levada em consideração. Todavia, sustenta-se que as sociedades de
caráter pessoal teriam perdido o seu enraizamento, sendo prova disso a disseminação de pessoas jurídicas que figuram
como sócias de outras, atribuindo-se à sociedade limitada um caráter misto, por reunir preceitos daqueles de cunho
pessoa e dos de capital. Ainda assim, na estrutura proposta pelo Código Civil, a sociedade limitada não deixou de
ser modalidade empresária formada por sócios que se conheciam previamente.... Conceito intimamente ligado às
sociedades limitadas, a contratualidade revela a existência de um acordo de vontades entre pessoas que se conhecem
para um fim social, que previram mediante uma elaboração ativa e consciente e contribuição de cada sócio para um
fundo comum.” (MAIA, Roberta Mauro Medina. Usufruto de quotas: desafios e peculiaridades. In: TEIXEIRA,
Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2022. tomo III. p. 619-320)
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 57

Institutos relativos à família (como divórcio e morte de sócios) causam


importantes impactos nas sociedades empresárias, já que os herdeiros e o
cônjuge/companheiro meeiro não são autorizados a ingressar diretamente
na sociedade (a menos que haja previsão expressa em sentido contrário),
o que leva à inexorável necessidade de pagar o valor econômico das quotas
societárias a que os herdeiros e cônjuge/companheiro meeiro fazem jus; tal
consequência afeta diretamente o fluxo de caixa da empresa e pode até levá-
las à dissolução total.
Desse modo, seja pela quase totalitária participação das empresas fami-
liares na economia, seja pela ampla maioria das sociedades limitadas na geração
de riquezas do país, é necessário estudar a importância não só da mediação
empresarial, mas da mediação empresarial familiar, que traz a interconexão
entre os sistemas da família e o empresarial. Tal apreciação visa colaborar para
os grandes desafios ligados à prosperidade da estrutura empresarial brasileira
e, consequentemente, ao desenvolvimento econômico do Brasil.

2 Mediação como Meio de Acesso à Justiça na Sociedade Brasileira


Contemporânea
O mundo evoluiu e a sociedade vem se desenvolvendo; contudo,
mentalidades jurídicas arraigadas à cultura do litígio parecem resistir à dinâ-
mica histórico-cultural. Essa visão deixa de atender aos anseios da sociedade
contemporânea na busca da construção do conhecimento visando à formação
e transformação dos indivíduos e, por conseguinte, modificar a realidade.
O acesso à justiça é uma garantia fundamental que não se limita ao
acesso ao Poder Judiciário, sendo imprescindível a ampliação do conceito para
incluir os meios adequados de solução de conflitos ao conjunto de princípios
de direitos fundamentais.
Convém mencionar que o ordenamento jurídico brasileiro já reconhece
as soluções extrajudiciais como instrumentos de acesso à justiça11; assim, tal
garantia é ampla e não se limita o direito de ação.
Importante dizer que o direito de acesso à justiça previsto no artigo 6.º
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem não significa acesso direto e
imediato aos tribunais12. Tal garantia assegura não somente que as partes devem

11 MARTINS, Humberto. Pensar sobre os métodos consensuais de solução de conflitos. 24 de julho de 2019. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2019-jun-24/direito-civil-atual-pensar-metodos-consensuais-solucao-conflitos. Acesso
em: 27 abr. 2022.
12 Nesse sentido, Paula Costa e Silva, “Muito tem mudado na forma tradicionalmente ligada às expressões aceder à
Justiça e fazer Justiça. (...) Agora, o direito de acesso aos tribunais é um direito de retaguarda, sendo o seu exercício
legítimo antecedido de uma série de filtros” (SILVA, Paula Costa e. A nova face da justiça: os meios extrajudiciais de
resolução de controvérsias. Lisboa: Coimbra Editora, 2009. p. 21).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
58

ter possibilidade de promover demandas em juízo (sendo-lhes assegurada uma


tramitação rápida), mas também que devem estar disponíveis outros modos
de buscar uma solução mais eficaz, eficiente e adequada à situação concreta13.
A adoção de outros métodos de solução de conflitos deixaria a cargo do
magistrado a análise e decisão do que efetivamente necessite que seja objeto
da intervenção do Poder Judiciário, não se ocupando a magistratura de outras
situações que possam e devam ser resolvidas por outros meios.
Constata-se que tal movimento fez surgir modificações dos procedi-
mentos tradicionais na busca da solução dos conflitos (como a inserção da
mediação), objetivando alcançar uma justiça mais célere e eficaz.
Como bem pondera Kazuo Watanabe,

“A incorporação dos meios alternativos de resolução de conflitos, em es-


pecial dos consensuais, ao instrumental à disposição do Judiciário para o
desempenho de sua função de dar tratamento adequado aos conflitos que
ocorrem na sociedade, não somente reduziria a quantidade de senten-
ças, de recursos e de execuções, como também, o que é de fundamental
importância para a transformação social com mudança de mentalidade,
propiciaria uma solução mais adequada aos conflitos, com a consideração
das peculiaridades e especificidades dos conflitos e das particularidades das
pessoas neles envolvidas.”14

Destaca Célia Zapparolli que:


“A cultura da justiça estritamente adversarial e formal alimenta conflitos
e, muitas vezes, mais violência, tanto entre as partes como na sociedade
e nos próprios profissionais, perpetuando-se pelas gerações. A justiça de
‘quantos processos ganhei e não quantos conflitos auxiliei a administrar’
advém e reforça a noção equivocada de que, para que haja um vencedor,
necessariamente deve haver um perdedor.”15

O sistema de “Justiça Multiportas”16 abrange a ideia de oferta ao cidadão


de diferentes opções de resolução de controvérsias conforme as particulari-

13 “Ao Poder Judiciário deve caber a apreciação apenas das questões incompossíveis por outras vias e das que, por sua
natureza, demandam obrigatória passagem judiciária, constituindo ‘ações necessárias’.” (MANCUSO, Rodolfo de
Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Tese de direito processual civil – concurso de provas e títulos para provi-
mento do cargo de professor titular, junto ao Departamento de Direito Processual. São Paulo: Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo, 2005. p. 268)
14 WATANABE, K. Cultura da sentença e cultura da pacificação. Apud YARSHELL, F. L.; MORAES, M. Z. (Org.).
Estudos em homenagem à professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2009. p. 685.
15 ZAPPAROLLI, Célia Regina. Mediação de conflitos: pacificando e prevenindo a violência. A experiência pacificadora
da Mediação. São Paulo: Summus, 2003. p. 57.
16 ALMEIDA, Tânia; PELAJO, Samantha; JONATHAN, Eva. Mediação de conflitos para iniciantes e docentes. 3. ed. Rio
de Janeiro: Juspodivm, 2021. p. 123.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 59

dades do caso concreto. Nessa concepção, tanto a esfera judicial quanto a


extrajudicial revelam-se esferas legítimas de composição de controvérsias.
A formulação desse sistema foi cunhada pelo professor Frank Sander, da
Faculdade de Direito de Harvard, opondo-se ao sistema clássico que antevia
a atividade jurisdicional estatal como a única capaz de solver conflitos. No
Brasil, tal noção foi expressamente introduzida no sistema jurídico brasileiro
pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução nº 125/201017.
Na autocomposição, “a solução do conflito contará com a vontade de
uma ou ambas as partes para que se verifique, inexistindo a participação de
um terceiro com poder decisório para definir o impasse”18.
Na mediação, a ideia é que uma pessoa imparcial contribua para esta-
belecer (ou restabelecer, se perdido) o diálogo entre os envolvidos de modo
que eles enxerguem por si mesmos outros aspectos da situação controvertida
e possam protagonizar saídas produtivas para os impasses19. Além de ajudar
as partes a pensar sobre a controvérsia por diferentes ângulos, o mediador
incentiva os mediandos a exercitar a escuta, a falar e a reflexão para que não
haja discussões estéreis nem agressividade20.
Como se nota, a implementação da mediação promove um tratamento
mais adequado dos conflitos de interesse por viabilizar soluções que atendam
a todos envolvidos, sendo estes os protagonistas e solucionadores das próprias
controvérsias21.
Águida Arruda Barbosa traz a seguinte definição:

“A Mediação, examinada sob a ótica da teoria da comunicação, é um méto-


do fundamentado, teórica e tecnicamente, por meio do qual uma terceira
pessoa, neutra e especialmente treinada, ensina os mediandos a desperta-
rem seus recursos pessoais para que consigam transformar o conflito. Essa
transformação constitui oportunidade de construção de outras alternativas
para o enfrentamento ou a prevenção de conflitos. O mediador não decide
pelos mediandos, já que a essência dessa dinâmica é permitir que as partes

17 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125, de 29/11/2010. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/
detalhar/156. Acesso em: 02 dez. 2022.
18 TARTUCE, Fernanda. Técnicas de mediação. In: SILVA, Luciana Aboim Machado Gonçalves da (Org.). Mediação
de conflitos. São Paulo: Atlas, 2013. p. 26.
19 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6. ed. São Paulo: Método, 2021. p. 189.
20 SALLES, Carlos Alberto de; LORENCINI, Marco Antonio Garcia Lopes; SILVA, Paulo Eduardo Alves da. Negociação,
mediação, conciliação e arbitragem. 3. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2020. p. 47-48.
21 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6. ed. São Paulo: Método, 2021. p. 203.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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envolvidas em conflito ou impasse fortaleçam-se, resgatando a responsa-


bilidade por suas próprias escolhas.”22

Dentro dessa sistematização, com a evolução dos métodos extrajudiciais


não contenciosos, observa-se uma modificação estrutural progressiva voltada
à consensualidade.
A preocupação com a disseminação da cultura dos métodos consensu-
ais de solução de controvérsias é legítima por ponderar sobre novos modos
(talvez nunca pensados) e trazer estratégias com potencial para culminar na
satisfação de ambas as partes com sustentabilidade temporal.

3 Mediação no Âmbito Corporativo Familiar e Interdisciplinaridade


A complexidade humana e a dinâmica familiar entrelaçada na orga-
nização constituem, sem dúvida, fatores que ensejam um campo fértil para
desavenças. A mediação, por sua vez, tem como objetivo contribuir para a
sociedade empresarial na procura de melhores formas de lidar com as disputas.
No cenário brasileiro, Águida Arruda Barbosa destaca que a mediação
“é a ideia cujo tempo é chegado”23 logo após a década dedicada à Cultura de
Paz nomeada pela Unesco. Esclarece a autora que, para que essa ideia revele
todo o seu poder, é preciso concretizar novos paradigmas despindo-se de
preconceitos e renovando valores – para tanto, “permitindo que o novo per-
meie o que existe” e operando assim a transformação que eleva o ser humano;
assim, a mediação traz como valor fundamental a palavra que, articulada pelo
homem, guarda em si um mistério a ser revelado, ainda não compreendido
em sua plenitude24.
No Brasil, a mediação “vestida” dessa ideia de que o tempo é chegado
adveio, sobretudo, no campo judicial como resposta à crise do Judiciário. Aos
poucos, os atores do sistema de Justiça foram abandonando o discurso sobre
usar os meios consensuais como forma de “desafogar” o ambiente repleto
de demandas judicializadas, trazendo uma reflexão mais ampla e sistemati-
zada para que aprimorar o acesso à justiça como um todo. Nesse contexto,
a mediação representa um instrumento de humanização do acesso à justiça,
atribuindo desse modo a qualidade de “ideia cujo tempo é chegado”25.

22 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: instrumento para a reforma do Judiciário. In: Anais do IV Congresso
Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 3.
23 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 170. “Existe uma coisa mais
poderosa que todos os exércitos: uma ideia cujo tempo é chegado” (Victor Hugo).
24 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 172.
25 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 172.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 61

No tocante aos campos de atuação da mediação, vale ressaltar que há


um amplo espectro, sendo necessário ter conhecimento da complexidade dos
sistemas relacionais humanos para um melhor desempenho da linguagem
ternária, qual seja, de inclusão do sentimento como valor, no mesmo plano
do pensamento e da ação26. Nesse contexto, cabe citar a importância da apli-
cação da mediação familiar na prática, na qual os protagonistas trazem pautas
relacionais dos sistemas familiares, sendo a mediação o meio propício para
tratar de relações humanas.
A mediação se apresenta como mecanismo muito útil à vida da empresa,
tanto para a formação quanto para o aprimoramento de suas estruturas internas
denominado de “consciência empresarial” –, quanto para suas relações com o
mundo exterior. Nesse sentido, a aplicação desse instituto na vida da empre-
sa traz inúmeros e valiosos benefícios, como o aprimoramento das relações
internas, dos mecanismos de controle e da transparência27.
A sociedade empresária decorre da união de esforços de pessoas físicas
ou jurídicas que se organizam mediante contratos para formar um novo ente
e, por meio dele, perseguir o lucro inerente àquela atividade econômica.
Diante de conflitos societários, as conversas propiciadas na mediação
empresarial auxiliam na preservação da sociedade em si e na busca da imple-
mentação de novos projetos e oportunidades para os sócios e a própria empresa.
Uma atualizada gestão empresarial tem como preocupação a sustenta-
bilidade dos negócios a médio e longo prazo a depender do tipo de empreen-
dimento. Para tanto, deve haver planejamento e estratégia para não incorrer
em riscos que ameacem a longevidade do projeto.
No cenário das empresas familiares, não há apenas preocupações sobre
diminuição do impacto de perdas financeiras, manutenção de negócios/par-
cerias comerciais e turbulências políticas, econômicas ou sociais que possam
se apresentar. Há necessidade de analisar não somente o plano das relações
negociais para continuidade de negócios e viabilidade de projetos, como
também cuidar das relações entre os sócios: nesse âmbito podem ser consta-
tadas afinidades que se mantêm ou não, havendo traços afetivos e situações
vivenciadas por cada sócio que podem afetar sobremaneira a vida empresarial.
Cada vez mais vislumbra-se a necessidade de inovar por meio do
estímulo de desenvolver profissionais para solucionar controvérsias pela via

26 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 175-176.
27 FREIRE, José Nantala Badue; BRAGA NETO, Adolfo. Os desafios da mediação empresarial no Brasil. In: BRAGA
NETO, Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 21-22.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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consensual sem descurar da inter-relação com as demais áreas do conheci-


mento humano, de forma transdisciplinar.
A história da mediação no Brasil tem fundamento na interdiscipli-
naridade para que o instrumental não se limite a efetuar acordos, mas, sim,
além contribuindo para reduzir a litigiosidade de modo geral e trazer mais
humanização nas relações sociais28. A mediação tem um alcance muito maior
do que um método adequado de resolução de conflitos: por seu potencial, ela
pode ser utilizada em todas as instâncias sociais para facilitar a convivência
entre as pessoas em sociedade.
Segundo Águida Arruda Barbosa29, constitui empresa familiar:

“(...) toda aquela que gira em torno do eixo familiar, correspondendo a um


sonho, ideal de seus integrantes, ou mesmo da necessidade ou da oportu-
nidade de uma fonte de recursos para sustento de seus membros. Assim
o empresário gera a atividade empresarial e administra o patrimônio que,
simultaneamente, pertente à empresa e à família.”

A maior parte das empresas familiares surge da iniciativa de membros


da própria família. Sob o aspecto tradicional, o modelo de empresa familiar
é caracterizado pela formação advinda da iniciativa dos fundadores – um
membro do casal – e, posteriormente, passa a envolver o cônjuge/compa-
nheiro e os filhos nas atividades empresariais. A tomada de decisão advém
dos fundadores e a sucessão do poder decisório ocorre por hereditariedade
ou planejamento sucessório. Cumpre ressaltar que se considera familiar a
empresa na qual a deliberação parte de membros da família proprietária ou
das famílias proprietárias30. No início, chegava-se até a evitar a contratação de
terceiros; no entanto, esse modelo foi se modificando ao longo dos tempos.
Como exemplo, o Grupo Votorantim fez um planejamento sucessório
com profissionais nos Estados Unidos para estabelecer os critérios de admi-
nistração da empresa em caso de falecimento de integrantes da família. Já no
Grupo Pão de Açúcar, houve vários conflitos entre irmãos que ocupavam a
segunda geração da empresa e se submeteram a uma mediação empresarial nos
Estados Unidos31. Há casos também de empresas familiares cujo conflito por
ocasião do divórcio dos fundadores resultou na falência da empresa familiar
ou na venda por valor irrisório.

28 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 189.
29 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 176-177.
30 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 177.
31 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 177. Nota de rodapé.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 63

A mediação é uma prática interdisciplinar que tem muito a contribuir


nas demandas familiares, já que mediar é ação de comunicar e muitos desen-
tendimentos familiares têm origem na dificuldade de comunicação.
A mediação familiar, no entanto, necessita de espaço e tempo próprios.
Em geral, ocorre em bem mais do que uma seção. Não é uma terapia familiar,
pois não se aprofunda nos impasses da subjetividade, mas concentra seus
esforços no restabelecimento da comunicação entre as partes.
Para Águida Arruda Barbosa, a mediação representa mecanismo que se
vale de técnicas de comunicação adequadas para a escuta qualificada, prestan-
do-se, com muita eficácia, a concretizar o princípio constitucional de proteção
à dignidade da pessoa humana e de proteção do Estado; sob uma visão ampla,
aduz que a mediação se expressa pela linguagem da interdisciplinaridade –
portanto, as ciências humanas são recepcionadas nas relações jurídicas para
ampliar a compreensão dos conflitos familiares. Esse conhecimento, assim
estruturado, visa à integração dos diversos saberes das diferentes disciplinas
– direito, psicanálise, psicologia, sociologia, filosofia etc. – fortalecendo, so-
bremodo as ciências jurídicas32.

4 Vantagens e Desafios da Mediação Empresarial Familiar


A constituição de uma empresa familiar se diferencia das demais em
razão de peculiaridades específicas de interações familiares associadas a aspectos
empresariais. Além dos conflitos corriqueiros inerentes às empresas, com o
surgimento de divergências entre sócios – por exemplo, quando há necessidade
de tomar decisão quanto a um direcionamento mais arriscado, em casos de
crises de mercado ou quaisquer situações econômico-financeiras que venham
afetá-la –, na empresa familiar há tendência de haver mistura das relações33.
A mediação é um meio de composição de conflitos preparado para lidar
com a mistura de emoção e razão nas empresas familiares, tendo potencial para
reduzir os custos emocionais dos envolvidos no impasse e contribuir para a
preservação e melhora das relações, viabilizando a descoberta dos interesses
subjacentes às posições assumidas pelas partes.
Conforme percepção de Águida Arruda Barbosa, a mediação nas em-
presas familiares constitui campo de importante aplicação desse conhecimento
com resultados rápidos, eficazes e eficientes para o fortalecimento da empresa,
do patrimônio e das relações familiares: trata-se de uma oportunidade de

32 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 55.
33 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 177.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
64

reconhecimento e ressignificação da função da empresa naquele momento


histórico tanto da empresa como da família, ou seja, uma forma de atualização
da atividade empresarial em relação ao mercado, com a possibilidade de avaliar
se os sucessores estão de fato a realizar uma vocação ou apenas atendendo aos
sonhos dos antecessores34.
Certa pesquisa realizada pela consultoria PricewaterhouseCoopers
concluiu:

“A força e a fraqueza do modelo de empresa familiar estão no próprio nome:


a família. Trabalhar com parentes pode gerar níveis muito mais altos de
confiança e comprometimento, mas também pode levar a tensões, ressenti-
mentos e conflitos abertos, pois as pessoas se esforçam para manter a razão
e o coração separados e conquistar o sucesso tanto no trabalho como na vida
familiar. Por envolver tanto a razão quanto a emoção, a profissionalização
da família é muito mais difícil do que a profissionalização do negócio.”35

Nesse sentido, cabe citar a concepção de conflito propagada pela escola


transformativa encampada, sobretudo, por Joseph Folger, para qual o conflito é
uma crise da interação humana. Diante do conflito, as pessoas ficam confusas,
inseguras e com medo, sequer conseguem identificar o verdadeiro problema
não conseguem resolvê-lo. E quando se trata de uma empresa familiar ainda
se torna mais complexo, muitas vezes sócios parentes não conseguem identi-
ficar a origem e demais contornos do conflito envoltos num círculo vicioso36.
Para Robert Bush e Joseph Folger, a mediação de conflitos tem como
objetivo principal a interação entre as pessoas37, de modo que o conflito as
fortalece e a sociedade da qual fazem parte38.
Outro aspecto desafiador é a convivência de gerações diferentes e os
aspectos conflituosos oriundos dessa situação. Além disso, há também fatores
como a inovação tecnológica, a concorrência e a globalização, dentre outros.

34 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015. p. 181.
35 A pesquisa encontra-se disponível em: https://www.pwc.com.br/pt/publicacoes/setores-atividade/assets/pcs/pesq-
emp-fam-14.pdf. Acesso em: 15 nov. 2022.
36 AGUIRRE, Caio Eduardo; CHISTÉ, Paula de Magalhães. Mediação em empresas familiares. In: BRAGA NETO,
Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 93-94.
37 BUSH, Robert A. Baruch; FOLGER, Joseph. The promise of mediation: the transformative approach to the conflict.
São Francisco: Jossey-Bass, 2005. p. 13.
38 ALMEIDA, Tânia; PELAJO, Samantha; JONATHAN, Eva. Mediação de conflitos para iniciantes e docentes. 3. ed. Rio
de Janeiro: Juspodivm, 2021. p. 50 e 561.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 65

Nas empresas familiares, as peculiaridades dos empreendimentos/ne-


gócios somam-se às tensões relativas à articulação de interesses (nem sempre
convergentes) entre família, propriedade e gestão39.
Os conflitos entre os sócios se originam do esgarçamento do ânimo
existente que os move a conviver em sociedade, a affectio societatis. Visões
distintas sobre o futuro do negócio, apreciações diversas sobre o mercado e
avaliações dissonantes sobre a gestão podem acarretar a retirada de sócios, a
exclusão e até dissolução da empresa, resultando em experiências traumáticas
e nem sempre benéficas para a continuidade da atividade empresarial.
Como se nota, a situação das empresas familiares envolve aspectos que
não são apenas estritamente profissionais, mas também subjetivos. Como
exemplo, o planejamento sucessório de uma empresa familiar envolve não
somente aspectos puramente lógicos da administração, mas também pontos
efetivos e emocionais relacionados à estrutura familiar ao oferecer orientações
sobre como as empresas familiares devem ser organizadas, como a sucessão
deve ser conduzida e sobre o papel dos consultores na viabilização dessas
difíceis transições.
Ademais, vale mencionar a existência da confusão de papéis frente à
soma da família com a empresa revela fonte de conflitos.
A empresa familiar se pauta muitas vezes por critérios subjetivos/não
objetivos, podendo ocorrer inúmeros conflitos que misturam os elementos
subjetivos da vida em família com os aspectos objetivos das relações nego-
ciais; por tal razão, a abordagem dos conflitos deve ser cuidadosa, uma vez
que podem surgir muitas controvérsias internas que envolvem aspectos não
estritamente profissionais, mas, sim, situações subjetivas: por envolverem
pontos afetivos e emocionais relacionados à estrutura familiar40.
Havendo tal confusão, o mediador pode ser importante para resgatar
nas partes o real interesse de todos (por exemplo, a expansão da empresa)
“livrando-os das contaminações com aspectos estranhos ao pleno desenvol-
vimento das atividades econômicas”41.

39 AGUIRRE, Caio Eduardo; CHISTÉ, Paula de Magalhães. Mediação em empresas familiares. In: BRAGA NETO,
Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 96-97.
40 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial para conflitos societários em empresas familiares. Revista Magister
de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, Magister, v. 111, nov./dez. 2022, p. 83-94. Trecho ref. Águida Arruda
Barbosa (em comunicação oral com a autora), é comum a confusão de espaços e papéis: no almoço em família
discutem-se assuntos da empresa, enquanto na sede desta são abordados assuntos relativos ao âmbito familiar. p.
85-86.
41 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 336.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
66

Há de se destacar a importância da participação ativa dos envolvidos no


conflito buscando a melhor forma de solucioná-lo: tal atitude gera compro-
metimento com o resultado obtido, seja ele um acordo, forma de relacionar
ou mesmo opção pelo desfazimento da sociedade42.
A utilização da mediação no âmbito das empresas familiares pode ser
uma via interessante para viabilizar a maximização de êxito entre o atendimento
de três finalidades: satisfação dos consumidores, administração de conflitos
nos negócios e melhoria do funcionamento orgânico da instituição, aprimo-
rando a comunicação entre seus competentes (especialmente tratando-se de
empresas familiares)43.
Havendo conflitos empresariais familiares, uma das vantagens da media-
ção é a possibilidade de separar as rusgas familiares dos problemas negociais.
Tal distinção traz ganhos sensíveis à gestão da empresa e dificulta, em muitos
casos, o recrudescimento de interações familiares mais ou menos afetadas por
questões que extrapolam o negócio44.
Nesse contexto, há de se destacar as seguintes vantagens da mediação
em empresas familiares: menor custo da mediação, tanto emocional quanto
financeiro se comparada aos procedimentos judiciais; menor tempo de du-
ração; confidencialidade e controle sobre o processo e sobre o resultado45.
As empresas familiares, tão relevantes para a economia do país, muitas
vezes são cenários de conflitos peculiares que adicionam elementos subjetivos
– em essência complexos – a controvérsias organizacionais da companhia46.
A mediação tende a ser um meio rápido, eficaz e efetivo para dirimir
conflitos corporativos familiares, sendo mais benéfica para que os empresários
otimizem suas operações (atendendo ao aspecto objetivo) e suas interações
no âmbito afetivo (aspecto subjetivo).
Tanto grandes como médias e pequenas empresas estão se tornando
cada vez mais globalizadas, multiculturais, complexas e precisando se conec-
tar como nunca, independentemente do tamanho e especificidade da cultura
empresarial. Para se manterem competitivas e longevas, é preciso inovar no

42 AGUIRRE, Caio Eduardo; CHISTÉ, Paula de Magalhães. Mediação em empresas familiares. In: BRAGA NETO,
Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 89.
43 TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 6. ed. São Paulo: Método, 2021. p. 374.
44 FREIRE, José Nantala Badue; BRAGA NETO, Adolfo. Os desafios da mediação empresarial no Brasil. In: BRAGA
NETO, Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 22.
45 AGUIRRE, Caio Eduardo; CHISTÉ, Paula de Magalhães. Mediação em empresas familiares. In: BRAGA NETO,
Adolfo (Org.). Mediação empresarial: experiências brasileiras. São Paulo: CLA Cultural, 2019. p. 100.
46 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial para conflitos societários em empresas familiares. Revista Magister de
Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, Magister, v. 111, nov./dez. 2022, p. 92.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 67

tratamento de situações internas e externas e buscar gerir conflitos de forma


eficiente.
Uma iniciativa importante é entender o conflito dentro do contexto
empresarial familiar a fim de criar controles efetivos e processos para escolher
o meio mais adequado de prevenção ou resolução de conflitos, minimizando
tempo e gastos sem perder a qualidade da solução e a manutenção das relações
comerciais e afetivas.
Em razão desses diversos aspectos positivos na aplicação da mediação
em conflitos empresariais familiares, esta vem sendo recomendada como
indicador de boa prática de governança corporativa.
O Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) faz menção
ao uso de mediação no Capítulo 1.4 do Código das Melhores Práticas de
Governança Corporativa47, com recomendação para que seja utilizada após a
negociação e antes da arbitragem em conflitos entre sócios e administradores
e entre estes e a organização. Como se nota, vislumbra-se a mediação como
um instrumento útil, eficaz e indicador também de boas práticas de gover-
nança corporativa, destacando-se que as empresas podem ser constituídas sob
diversos tipos societários e diferentes portes.
Realmente, a mediação pode ser adotada na governança corporativa das
empresas tanto no alinhamento de interesses como na construção de regras
para o desenvolvimento sustentável da empresa e na prevenção de conflitos;
ela tem potencial para a efetiva resolução dos conflitos especialmente quando
as pessoas buscam preservar os relacionamentos e impedir o agravamento das
controvérsias48.

5 Efeitos da Mediação Empresarial Familiar no Desenvolvimento


Econômico Brasileiro
O desenvolvimento econômico de um país provém da circulação de
bens: por meio das trocas voluntárias entre agentes, individuais ou coletivos,
adiciona-se valor agregado ao bem, gerando com isso riquezas pela simples
circulação econômica. Isso ocorre porque, ao circular, os bens transaciona-
dos saem da esfera de quem menos os valoriza para a daquele que mais os
valorizam – esta adição de valor concretiza o valor agregado da troca que,

47 Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=21138. Acesso em: 15 nov. 2022.


48 TARTUCE, Fernanda. Mediação extrajudicial para conflitos societários em empresas familiares. Revista Magister de
Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, Magister, v. 111, nov./dez. 2022, p. 92.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
68

transportado para a coletividade, aumenta a riqueza e, consequentemente, o


nível de desenvolvimento do país.
Observe-se, então, que para que os bens circulem duas premissas
são necessárias: a apropriação do bem pelo indivíduo que o faz circular e a
negociação entre as partes interessadas cujo ideal encontra-se em jogos coo-
perativos, baseados na confiança e no benefício da troca, pois o que permite
as partes negociarem é exatamente o benefício obtido por ambas diante dessa
negociação49.
Nesse sentido, do ponto de vista coletivo, considerando a maximização
do valor agregado, tem-se que as negociações diretas impactam tanto na curva
de demanda como a de oferta do mercado, já que todas as escolhas, sejam estas
realizadas por pessoa física ou jurídica, provêm de manifestação de vontade
que emana do ser humano.
Por isso, para explicar o comportamento de modo cognoscível, é neces-
sário recorrer a dois princípios basilares da economia: o princípio da otimi-
zação, pelo qual as pessoas tentam escolher o melhor padrão de consumo ao
seu alcance, e o do equilíbrio, pelo qual os preços ajustam-se até que o total
que as pessoas demandam seja igual ao total ofertado, de modo a estabelecer
o nível de produção do mercado50.

49 Exemplo simples e esclarecedor: “Fernanda tem um fusquinha velho 1965. A satisfação ou utilidade de ter o carro
(seu valor subjetivo) vale R$ 3.000. Rodrigo, que coleciona carros antigos tem ficado de olho no carro há muitos
anos e recebe uma herança de R$ 5.000. Ele resolve, então, tentar comprar o carro. Depois de levar ao mecânico e
avaliar bem o carro, Rodrigo resolve que vale pra ele R$ 4.000. Num primeiro momento, a negociação é possível uma
vez que o carro está com uma pessoa que o valoriza menos (Fernanda – R$ 3.000) e pode ser vendido para alguém
que o valoriza mais (Rodrigo – R$ 4.000). Se as partes falharem e não cooperarem, significa que não concordaram
num preço e não houve troca de dinheiro por carro. Então, Rodrigo resolve ficar com os seus R$ 5.000 e gastar de
outra forma e a Fernanda continua com o carro que para ela vale R$ 3.000. Estes são os valores iniciais de cada uma
das partes do negócio antes do negócio (thret values) e podemos dizer que a soma desse jogo (da negociação) sem
troca (não efetivada, jogo não cooperativo) para os dois permanece em R$ 8.000 (R$ 5.000 + 3.000). No entanto,
existe a possibilidade de um jogo cooperativo, gerando um valor adicionado. A negociação será possível se o valor
negociado ficar entre R$ 3.000 a R$ 4.000. Ao buscar a negociação, havendo um acordo razoável baseado em téc-
nicas equivalentes de persuasão e negociação, vamos sugerir o valor intermediário de R$ 3.500, e os dois ganham
parcelas iguais. O Rodrigo vai ter um saldo em dinheiro de R$ 1.500 (R$ 5.000 – R$ 3.500) e um carro que vale R$
4.000, portanto tendo um valor final de R$ 5.500 (R$ 1.500 + R$ 4.000). A Fernanda no final vai ter R$ 3.500 em
dinheiro. A soma dos dois valores de cada um após o negócio é de R$ 9.000 (R$ 5.500 + R$ 3.500). Observe que o
valor adicionado existe para qualquer valor de venda. Suponhamos que Fernanda seja uma excelente negociadora
e venda o carro por R$ 3.999,00. Ao final do negócio, Fernanda terá R$ 3.999 em dinheiro e Rodrigo, R$ 5.001,00
(R$ 1.001,00 em dinheiro e R$ 4.000,00, que é quanto o carro vale para ele). A soma dos dois valores continuará
sendo R$ 9.000,00. Ao comparar o resultado da não cooperação, dos valores iniciais antes do negócio, da Fernanda
e do Rodrigo, temos R$ 8.000. Por outro lado, o valor total final, após o negócio, é de 9.000. Portanto, houve um
enriquecimento dos dois de R$ 1.000. Este é o valor adicionado” (VERA, Flávia Santinoni. Análise econômica da
propriedade. In: TIMM, Luciano Benetti. Direito e economia no Brasil: estudos sobre a análise econômica do direito.
4. ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 205-206).
50 “Vamos considerar esses dois princípios. O primeiro é quase tautológico. Se as pessoas são livres para escolher, é
razoável supor que tentem escolher as coisas que desejam, em vez das que não querem. É claro que existem exceções
a esse princípio geral, mas costumam situar-se fora do domínio do comportamento econômico. A segunda noção
é um pouco mais problemática. É ao menos imaginável que, em algum momento, as demandas e as ofertas das
pessoas não sejam compatíveis, sinal que alguma coisa está mudando. Essas mudanças podem levar um longo tempo
para se concretizarem e, pior, ainda, podem induzir outras mudanças, capazes de ‘desestabilizar’ todos o sistema.”
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 69

Derivada do princípio da otimização, a teoria microeconômica assenta


a ideia de que a escolha ocorra segundo parâmetros de racionalidade, con-
substanciada na teoria da maximização da satisfação, seja pelo consumo em
si ou pelos lucros por parte de atividades produtivas.
Para tanto, a teoria da escolha ótima traduzida pelas funções de utili-
dade (ou curva de indiferença) demonstra que é o sujeito, do ponto de vista
psíquico – e aqui influenciam vários fatores particulares e pessoais como
necessidade física, memórias, sentimentos, nível de poupança de recursos
que deseja realizar e notadamente a segurança e previsibilidade do alcance
de sua satisfação – que determina o quanto está disposto a pagar por aquele
determinado bem, revelando que esta escolha é uma atitude individual e
intransmissível, já que cada um tem seu sentir.
Sob esse aspecto, a possibilidade de negociações diretas potencializa o
sentimento de segurança e previsibilidade de alcance da satisfação esperada, o
que faz com que o indivíduo esteja mais propenso de fato a consumir o bem
em questão, assim como a pagar mais por ele em caso de escassez.
Nessa seleção, dentro de uma mesma cesta de opções há mais de uma
curva de utilidade possível. Isso ocorre porque, como esclarece o economista
Hal R. Varian, as escolhas podem ocorrer dentro da própria curva de utilidade,
em seu deslocamento (implementado quando variam preços e renda) e de
acordo com a segurança que sentem51. Do ponto de vista gráfico, tem-se as
seguintes curvas de utilidade individuais:

Noutro giro, quanto à curva de oferta, o impacto positivo das negocia-


ções diretas encontra-se na redução dos custos de transação do seguinte modo:

(VARIAN, Hal R. Microeconomia: uma abordagem moderna. 9. ed. Traduzido por Regina Célia Simille Macedo. Rio
de Janeiro: GEN/Atlas, 2021. p. 2)
51 VARIAN, Hal R. Microeconomia: uma abordagem moderna. 9. ed. Traduzido por Regina Célia Simille Macedo. Rio
de Janeiro: GEN/Atlas, 2021. p. 34.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
70

Segundo a teoria tradicional econômica de Adam Smith, os custos mensurados


na produção e circulação de bens e serviços são apenas os diretamente ligados
à produção do bem circulável, como matéria-prima e despesas com a mão de
obra, por exemplo.
No entanto, observando o mercado o economista Douglass North
concluiu que há mais custos que compõem a produção, além dos tradicio-
nalmente mensurados: os custos de transação relativos à mensuração e à
execução da troca52.
Em sede de composição, segundo o também economista Ronald Coase,
o custo de transação é formado por elementos endógenos e exógenos. No que
concerne aos elementos exógenos, estes são conformados pelos três estágios
da negociação: custo de busca, concernente na localização de um parceiro que
queira negociar; custo de negociação, compostos por todos os custos emanados
das tratativas até a redação do acordo final; e custo de execução decorrente
do monitoramento do desempenho do negócio e punições de eventuais des-
cumprimentos do acordo entabulado pelos negociadores.
Nesse sentido, as negociações diretas reduzem os custos de transação na
parcela relativa às tratativas, assim como da execução, já que avenças nascidas
da negociação direta possuem maior aderência, e, portanto, menor tendência
ao inadimplemento.
Quanto aos elementos endógenos, um dos principais componentes
encontra-se nas instituições jurídicas propriamente ditas, nas quais uma das
principais funções é a de estimular negociações diretas entre as partes, de
modo a eliminar possíveis impedimentos a esta negociação, como ocorre, no
caso do presente estudo, com a criação e incentivo aos meios extrajudiciais
de soluções de conflitos, notadamente a mediação.
Sob esse aspecto, Antônio Maristrello Porto e Nuno Garoupa são
bastante incisivos ao apontarem: “o Teorema Normativo de Coase pode ser
explicado da seguinte forma: ‘estruture o direito de modo a remover os im-
pedimentos aos acordos privados’”53.
Após o estudo das escolhas pessoais dos indivíduos, organizadas de
modo a identificar a demanda pela quantidade de produto, balizada pelo preço
de mercado; tornou-se possível determinar a curva de demanda ideal, fruto
da negociação direta entre as partes.

52 NORTH, Douglass C. Instituições, mudanças institucionais e desempenho econômico. Tradução Alexandre Moraes. São
Paulo: Três Estrelas, 2018. p. 55.
53 PORTO, Antônio Maristrello; GAROPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020. p. 175.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 71

Noutro giro, após a análise do Teorema de Coase, o qual insere o custo


de transação nos custos totais de determinado produto/serviço, foi possível
identificar a curva de oferta ideal, ou seja, o quanto os fornecedores estão
dispostos a colocar no mercado, a um determinado preço, considerando a
negociação direta entre as quais, como visto, representam importante redutor
dos custos de transação, e consequentemente dos custos totais do produto/
serviço em análise.
Desse modo, nos termos do segundo princípio basilar da economia: do
equilíbrio entre a curva de oferta e demanda54 nasce o ponto máximo ideal de
desenvolvimento econômico, o qual funcionará como referência deste estudo
para as posteriores derivações. Graficamente55:

Ocorre que nem sempre as negociações diretas são possíveis por fato-
res como as próprias características dos negócios – seja pela instabilidade das
instituições que viabilizam tais tratativas, seja pela distância das partes – e a
dificuldade de tratativas e cumprimento das avenças, o que traz a necessidade
de contar com a interferência de personagens além dos diretamente envolvidos
nas negociações.

54 “As curvas de demanda e de oferta representam as escolhas ótimas dos agentes envolvidos e o fato de serem iguais
para um determinado p* indica que os comportamentos dos demandantes e ofertantes são compatíveis.” (VARIAN,
Hal R. Microeconomia: uma abordagem moderna. 9. ed. Traduzido por Regina Célia Simille Macedo. Rio de Janeiro:
GEN/Atlas, 2021. p. 293)
55 “Neste gráfico, utilizamos p* para representar o preço no qual a quantidade de apartamentos demandados iguala-se
à quantidade de apartamentos ofertados. Esse é o preço de equilíbrio de apartamentos. A esse preço, todo o con-
sumidor disposto a pagar ao menos p* pode encontrar um apartamento para alugar, e todos os proprietários serão
capazes de alugar seu imóvel ao preço corrente de mercado. Nem locatários, nem os proprietários têm motivo para
mudar seu comportamento. É por isso que nos referimos a essa situação como um equilíbrio: nenhuma mudança
de comportamento será observada.” (VARIAN, Hal R. Microeconomia: uma abordagem moderna. 9. ed. Traduzido
por Regina Célia Simille Macedo. Rio de Janeiro: GEN/Atlas, 2021. p. 07)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
72

Nesse momento, quanto menor for a parcela de negociações diretas na


solução final, maior será: a) a instabilidade e a imprevisibilidade da decisão
final, o que afeta diretamente a curva de demanda, fazendo com que menor
quantidade seja desejada a um preço constante; b) a curva de oferta, uma
vez que a dificuldade na localização das partes, tratativas e cumprimento das
decisões eleva de sobremaneira o custo de transação, o que faz com que a um
preço constante menos produtos/serviços sejam ofertados. Consequentemen-
te, observa-se uma importante retração no ponto de equilíbrio do mercado
– eis sua representação gráfica:

Trazendo essa dinâmica para as possibilidades de soluções de litígios


existentes no atual ordenamento jurídico brasileiro, consideremos os dois
grandes grupos de mecanismos, autocompositivos e heterocompositivos: o
segundo retrai muito mais o ponto de equilíbrio, já que nele as negociações
diretas dos envolvidos ocorrem em parcela menor quando comparada às veri-
ficadas no primeiro grupo. De modo gráfico, pode ser observada tal dinâmica
da seguinte forma:
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 73

No que concerne aos meios autocompositivos, a mediação é o me-


canismo que mais contém negociações diretas entre as partes, uma vez que
cabe ao mediador apenas aproximá-las e facilitar o diálogo com a finalidade de
que elas encontrem a solução desejada, ou pelo menos retomem os diálogos
diretos. Graficamente:

Desse modo, no que concerne à promoção do desenvolvimento eco-


nômico, conclui-se que, quando não é possível a negociação direta entre as
partes, a mediação se apresenta como melhor meio para compor controvér-
sias, uma vez que, por conter grande parcela de negociações diretas, possui
maior previsibilidade e estabilidade, ficando a solução muito próxima do
desfecho desejado pelas partes. Isso gera a menor retração possível na curva
de demanda e o menor custo de transação, já que o incremento a este gerado
pela impossibilidade das tratativas diretas é o menor possível frente os demais
meios de soluções possíveis (o que gera também a menor retração possível
na curva de oferta). Consequentemente, o ponto de equilíbrio do mercado
será em um maior nível de produção, resguardando assim maior patamar de
geração de riquezas.

Conclusão
Na imensa maioria das estruturas empresariais brasileiras as relações
familiares representam grande impacto, seja porque diretamente as socie-
dades empresárias são de cunho familiar, seja porque o tipo societário da
empresa escolhido é o da sociedade limitada – sociedade de pessoas. Tais
características ensejam a consequente repercussão de divórcio/dissolução
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
74

da união estável e morte do sócio na vida empresarial, visto que em regra


os herdeiros e os cônjuges/companheiros meeiros são impedidos de ingres-
sar no quadro societário da empresa: tais fatos podem ensejar dissolução
parcial da sociedade empresária e pagamento do valor econômico das quo-
tas aos impedidos, cujo impacto no fluxo de caixa da sociedade pode ser
fatalPercebe-se então que, caso inviável a solução de conflitos diretamente
pelas partes, a mediação apresenta-se como importante meio de composição
ao unir os sistemas empresarial e familiar, consubstanciando-se então na
mediação empresarial familiar.
A resolução de conflitos por meio da mediação é considerada um dos
bastiões dos novos tempos e vem evoluindo de forma multifacetada; no entan-
to, ela é repleta de desafios e passível de falhas, estando sempre em constante
evolução na busca da pacificação.
A mediação é indicada no contexto das empresas familiares, sobre-
tudo, pela necessidade de perpetuação da atividade empresarial em um
ambiente de coexistência de atividades profissionais e relações afetivas
entre os familiares.
Perquirindo os efeitos de tais conclusões sobre o desenvolvimento
econômico, observa-se que, depois das negociações diretas, a mediação em-
presarial familiar representa o melhor meio de geração de riquezas, já que
dentre as possíveis formas de soluções de litígios é a que possui maior parcela
de manutenção das negociações diretas entre as partes.
Por isso, menor será a incerteza e a imprevisibilidade dos resultados
a afetar a curva de demanda, causando-lhe menor retração, e menores serão
os custos de transação, já que a maior parcela de negociações diretas torna
menores os custos das tratativas negociais e de incerteza no cumprimento das
avenças celebradas. Com isso, a retração na curva de oferta é a menor possível,
o que faz com que o ponto de equilíbrio seja menos equidistante do ponto de
equilíbrio ideal, ou seja, do alcançado pelas negociações diretas.
A mediação desempenha um papel fundamental na consolidação
da prática da mediação no âmbito corporativo familiar, contribuindo
decisivamente para a transformação da cultura da sentença em cultura da
pacificação.
Desse modo, conclui-se que, dada a estrutura empresária brasileira, a
mediação empresarial familiar, que une os sistemas empresarial e familiar,
representa o meio de composição de conflitos com maior potencialidade de
promoção do desenvolvimento econômico no país, merecendo por isso ser
estimulado e promovido pelas instituições brasileiras.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 75

TITLE: Family companies and private limited companies: structural basis of the Brazilian economy and
the positive economic impact of mediation family business partnership.

ABSTRACT: The present article deals with the application of family business partnership mediation in the
Brazilian business partnership structure, as well as mediation as an indicator instrument of good corporate
governance practices aimed at family companies. The approach takes so its starting point mediation as an
instrument of access to justice in contemporary society. The study discuss the compatibility between the
institute of mediation in the corporate environment that unites business and family systems, representing
the means of dispute resolution with the greatest potential to promote the economic development of
the nation. This paper intends to reflect on the importance of the institute of mediation as a method of
conflict resolution in the family business partenership, which ensures greater effectiveness and efficiency
in resolving controversies and, above all, promotes social pacification.

KEYWORDS: Access to Justice; Family Business Partnership Mediation; Economics; Economic Impact;
Corporate Governance.

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Recebido em: 03.02.2023


Aprovado em: 15.02.2023
Doutrina

Artigo 390 do Novo Código de Normas


da Corregedoria-Geral de Justiça do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro – Provimento nº 87/2022: Genuína
Expressão dos Anseios Sociais, sem o
Necessário Poder Normativo: Agente de
Mudanças ou Apenas um Intensificador de
Instabilidades?
Ana Raquel Fortunato dos Reis Strake
Mestranda em Resolução Extrajudicial de Controvérsias
pela Escola Paulista de Direito (EPD); Pós-Graduada em
Família e Sucessões (EPD) e Direito Contratual (EPD),
com atualização em Direito dos Contratos pela EMERJ;
Economista (PUC-Rio – Aluna do Programa Especial
de Treinamento – PET); Trainee da 5ª Turma do Banco
Nacional; Especialização em Avaliação de Empresas e
Desempenho Empresarial (FGV/RJ); Presidente da Comissão
de Planejamento Patrimonial e Sucessório da Subseção de
Barueri – OAB/SP; Membro da Comissão de Soluções
Consensuais de Conflitos e da Comissão de Direito de Família
da Seccional OAB/SP; Advogada; Perita Judicial; Mediadora e
Facilitadora em Justiça Restaurativa e Conferências Familiares;
e-mail: anafortunato1212@gmail.com.

RESUMO: O presente estudo analisa as disposições constantes no caput, §§


1º e 3º, do art. 390 do Provimento nº 87/2022 da CGJ do TJRJ, que traz a
possibilidade de disposição de questões existenciais, retroatividade do regime
de separação absoluta de bens e renúncia antecipada da concorrência sucessória
nos contratos de convivência. Para tanto, faz uma breve análise da evolução da
tutela jurídica da união estável. Após, verifica o contexto atual, notadamente da
instabilidade contida existência da união estável, dada sua natureza de ato-fato
jurídico, e da impossibilidade de mitigação de seus efeitos patrimoniais, tanto em
vida, ao prevalecer a irretroatividade do regime de bens, quanto após a morte, ao
preponderar a impossibilidade a renúncia antecipada da concorrência sucessória,
demonstrando com isso que, apesar de o provimento em comento representar
de modo genuíno os anseios sociais, este não apresenta-se compatível com as
normas, doutrina e jurisprudência majoritárias atuais, trazendo com isso alta
potencialidade de declaração de nulidade/ineficácia, o que faz com que acabe por
atuar apenas como agravante do já instável instituto da união estável.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 79

PALAVRAS-CHAVE: Provimento CGJ nº 87/2022. TJRJ. União Estável. An-


seios Sociais. Contrato de Convivência. Instabilidade.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Amplo Reconhecimento da União Estável: Efetiva


Concretização da Democratização da Família Brasileira. 2 Previsão da Possibi-
lidade de Disposições Existenciais no Contrato de Convivência Disposta pelo
Caput do Art. 390 do Provimento nº 87/2022 da CGJ do TJRJ: o Desejo Im-
plícito do Exercício da Autonomia Privada na Caracterização da União Estável
e a Vedação Atual. 3 Permissão de Cláusula de Retroatividade do Regime de
Bens no Contrato de Convivência Através do § 1º do Art. 390 do Provimento
nº 87/2022 da CGJ do TJRJ: Expectativa de Mitigação dos Efeitos da União
Estável Enquanto Ato-Fato Jurídico. 4 A Arrojada Previsão da Possibilidade de
Renúncia Antecipada à Concorrência Sucessória do Companheiro pelo § 3º do
Art. 390 do Provimento nº 87/2022 da CGJ do TJRJ: um dos Temas de Sucessões
de Maior Controvérsia na Atualidade. Conclusão. Referências.

Introdução
A Teoria Tridimensional do Direito, enunciada por Miguel Reale,
ensina que “onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e ne-
cessariamente um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico
e de ordem técnica, etc.); um valor, que confere determinada significação
a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de
atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou
norma, que representa a relação ou medida que integra daqueles elementos
ao outro, o fato ao valor”. Quanto à correlação desses três elementos, afirma
que “tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados
um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta”1 e que estes se exigem
reciprocamente, como elos de um processo, consubstanciando a dinâmica
do Direito2.
De modo pragmático, os fatos existem no mundo fático, e a estes são
dados valores de acordo com a sociedade, valores que transmudam na cadência
da mudança de pensamentos e sentimentos da população.
Correlacionado a estes valores estão as normas, das quais faz parte,
inclusive, a opção de não normatizar, excluindo o fato social da tutela do
sistema jurídico. Entre a valoração social e a norma legal, emanada do Poder
Legislativo, ou até mesmo da Assembleia Constituinte, há um espaço de tem-

1 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 65.
2 “c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo
(já vimos que o Direito é uma realidade histórico-cultural) de tal modo que a vida do Direito resulta da sua interação
dinâmica e dialética dos três elementos que a integram.” (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São
Paulo: Saraiva, 2002. p. 65)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
80

po, que termina por ser preenchido por outros atos normativos, emanados
dos dois outros Poderes: o Judiciário e o Executivo.
Nesse contexto, o art. 390 do Provimento nº 87/2022 – Novo Código
de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro – representa expressão concreta deste movimento, já que a trajetória
do instituto da união estável foi balizada pela transformação dos valores so-
ciais ao longo das últimas décadas, os quais, inicialmente, de modo a acolher
e incluir integralmente o instituto na tutela do Estado, percorreram louvável
trajetória, mas que nas últimas décadas extrapolaram os limites do desejável,
passando a conter instabilidades que causam incômodos efeitos, tanto de
ordem individual quanto coletiva e econômica.
A norma regulamentadora em questão nada mais é do que a expressão
dos anseios sociais, no sentido de eliminar, ou ao menos mitigar as instabili-
dades presentes hoje na relação de conjugalidade fática, preenchendo o espaço
deixado pelo vácuo legislativo.
No entanto, enquanto ato normativo uniformizador dirigido aos
Cartórios de Notas cariocas, cuja abrangência é bastante restrita, nos termos
reconhecidos pelo próprio art. 390 em verificação, as disposições nele constan-
tes podem ser nulidade/ineficácia declaradas, o que faz com que, embora seja
apreciável a criação de norma infralegal e consonante com os anseios sociais,
estas acabem na prática apenas intensificando as instabilidades e desigualdades
já existentes, pois vão de encontro às posições doutrinárias e jurisprudências
majoritárias, além de fomentarem o desequilíbrio nas relações de conjugali-
dade, tanto internas quanto externas.
Do ponto de vista externo, por demandarem a anulação ou declaração de
ineficácia, a busca se restringirá somente àqueles que possuam conhecimentos
quanto a estes direitos, reduzindo por isso a democratização e uniformização
da solução.
No que concerne aos efeitos internos, trata-se apenas de regulamentação
declaratória de conteúdo das escrituras públicas de união estável, não deixan-
do claro seu teor quanto à contratualização da matéria, e, por isso, quanto
à aplicação do princípio da função social e da boa-fé objetiva, institutos de
proteção dos vulneráveis, decorrente da desigualdade da maioria das relações
de conjugalidade, nos termos da realidade social brasileira, e quiçá mundial.
Desse modo, com base nessas premissas, o presente artigo inicia-se com
uma breve análise da trajetória de inclusão da união estável no ordenamento
jurídico, sob a ótica do movimento de preenchimento do vácuo legislativo
por meio de decretos emanados do Poder Executivo e súmulas advindas do
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 81

Poder Judiciário, comprovando o preenchimento do período existente entre


a valoração social e a norma, por atos normativos de natureza diversa da lei.
Após, verifica a estrutura normativa atual da união estável, e as discussões
a elas pertinentes, assim como sua incompatibilidade com a estrutura social
atual, cuja estrutura de análise será balizada pelas três disposições normativas
contidas no art. 390 do Provimento nº 87/2022 em análise: caput, §§ 1º e 3º.
Com isso, espera-se demonstrar que de fato o conteúdo do art. 390 do
Provimento nº 87/2022 – Novo Código de Normas da Corregedoria-Geral
de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro – reflete os anseios sociais
e necessárias modificações legislativas esperadas, mas que neste momento não
se coaduna com a lei, doutrina majoritária e jurisprudência, o que confere a
disposição apenas o papel de agravante do já instável instituto da união estável.

1 Amplo Reconhecimento da União Estável: Efetiva Concretização


da Democratização da Família Brasileira
O Direito Canônico, através da sacramentalização do casamento, o
transformou em um ato solene, de caráter religioso e indissolúvel. No entanto,
como era admitida, embora altamente reprovável, a dissolução da sociedade
conjugal, a união estável, por muito tempo denominada concubinato, sempre
existiu em grande monta, embora “invisível” ao ordenamento jurídico da
época. Inicialmente, até houve sua admissão como um “casamento clandes-
tino ou presumido”, época em que, nas palavras de Álvaro Villaça, “o direito
canônico captou o sentido da realidade social do concubinato, tratando-o de
regulá-lo e de conceder efeitos, com o critério realista, procurando, com isso,
assegurar a monogamia e a estabilidade do relacionamento do casal, mas sem
ratificá-lo”3. A radicalização e a total exclusão do concubinato da tutela jurídica
ocorreram com o Concílio de Trento, em 15634.
No Brasil, dada a forte influência da igreja católica, o concubinato
sempre foi relegado ao plano de total exclusão, como argumenta Orlando
Gomes, ao dizer que “No Direito de Família, regula-se precipuamente as

3 AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 131.
4 “Mas, o concílio reunido em Trento (1563) tomando uma atitude mais firme que os seus antecedentes, decretou
a rigorosa observância de certas solenidades externas, tendentes a dar ao casamento toda a necessária publicidade e
consequente garantia. Assim foi prescrito por esta assembleia religiosa: 1º que o casamento fosse precedido de três
enunciações feitas pelo pároco do domicílio de cada um dos contraentes; 2º que fosse feita, de modo inequívoco,
perante do pároco celebrante, a manifestação de mutuo consentimento; 3º que a celebração fosse realizada pelo
pároco de um dos contraentes ou por um sacerdote devidamente autorizado, na presença de duas testemunhas
pelo menos, 4º, finalmente, que o ato se concluísse pela solenidade da benção nupcial. O livre consentimento dos
contraentes a presença do pároco e das testemunhas é essencial para que haja casamento católico.” (BEVILÁQUA,
Clóvis. Direito de família. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 55)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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relações oriundas do casamento, fonte única da família legítima, mas não


segue daí que a lei familiar, notadamente as resultantes da procriação natural.
Numerosos preceitos regem a filiação ilegítima, já que o parentesco resulta
não da legitimidade da família, mas da consanguinidade”5.
Portanto, em última ratio significa que a união estável não era fruto da
autonomia privada, mas pura falta de opção, como explica Flávio Tartuce:

“Na verdade, em um passado não tão remoto, o que se via era a união
estável como alternativa para casais que estavam separados de fato e que
não podiam se casar, eis que não se admitia no Brasil o divórcio como
forma definitiva do vínculo matrimonial. Hoje, tal situação vem sendo
substituída paulatinamente pela escolha desta entidade familiar por muitos
casais da contemporaneidade. Em suma, no passado, a união estável era
constituída, em regra, por falta de opção. Atualmente, por muitas vezes,
por clara opção.”6

Nesse sentido, para amenizar então tais incongruências, leis esparsas e


jurisprudência foram as principais ferramentas, iniciando-se pelo reconheci-
mento de direitos previdenciários dos companheiros, por meio do Decreto-Lei
nº 7.036, de 1944. Vinte anos depois mais um passo: duas leis considerando
a existência da figura da companheira e concedendo-lhes direitos, desde que
inexistente cônjuge legítimo, filhos e de que a convivência em questão fosse
pelo menos de cinco anos e em vigência no momento do óbito7.
No mesmo ano, 1963, a Súmula nº 35 do Supremo Tribunal Federal
reconheceu o direito de indenização da companheira em razão de acidente de
transporte ou de trabalho de seu companheiro, desde que na relação destes
não houvesse qualquer impedimento matrimonial, revelando assim o início
da separação do concubinato entre puro e impuro.
Saindo do campo do direito previdenciário e ampliando os direitos das
relações de casais não matrimoniais, em 1964 sobreveio a Súmula nº 3808 do
Supremo Tribunal Federal, aplicando o direito de sociedades de fato, afeito
ao direito obrigacional, decidindo, em coerência com o direito invocado, que
os bens seriam partilhados entre os concubinos de acordo com a prova do
esforço comum. Na impossibilidade de tal partilha, como forma de compensar
a concubina seria concedida indenização pelos serviços prestados, para recom-

5 GOMES, Orlando. Direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976. p. 13.
6 TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. v. 5. p. 377.
7 Lei nº 4.297, de 23 de dezembro de 1963, e Lei nº 4.242, de 17 de julho de 1963.
8 Súmula nº 380 do STF: “Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução
judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 83

pensar o tempo de convivência com aquele que não poderia se casar, instituto
típico das relações obrigacionais. Na realidade, tristemente o companheiro,
em quase a totalidade dos casos, a mulher, era indenizada pela prestação de
serviços de “cama, mesa e banho”, uma pecha, dentre outras tantas, bastante
pejorativa do direito brasileiro anterior à Constituição de 1988.
Por isso, a partir deste momento parte da doutrina e da jurisprudência
passaram a defender que a sociedade existente entre os concubinos divergia
da sociedade de fato do direito obrigacional, já que esta tinha como escopo
a constituição de família. Desse modo, a simples comprovação da perma-
nência no lar, dos trabalhos domésticos e dos cuidados com os filhos já eram
suficientes para comprovação do esforço comum, e da consequente divisão
igualitária dos bens adquiridos na constância da união.
Na direção da tutela da realidade, tal entendimento evoluiu ao dispensar
a vida em comum sob o mesmo teto para caracterizar a sociedade existente
entre o casal. Foi então editada, em 1964, a Súmula nº 382 reconhecendo que
não era necessário que o casal residisse sob o mesmo teto para caracterizar a
relação, bastando que fosse comprovada a afetividade e a intenção de constituir
família, requisitos estes positivados pela primeira vez em 1996, 32 anos depois,
na Lei nº 10.278/96, e após no art. 1.723 do Código Civil, atualmente a norma
em vigência. Finalmente, em 1988 com a promulgação da Carta Magna em
vigência foi reconhecida a união estável como família pelo § 3º do art. 226,
concretizando as novas premissas metodológicas e principiológicas9.
Apesar de tal avanço, e de as regras constitucionais terem natureza de
autoexecutoriedade, de modo imediato o reconhecimento da união estável nada
alterou no sistema jurídico. O início de cumprimento do preceito constitucional
ocorreu somente em 1994 pela Lei nº 8.971, norma que exigia para configuração
a duração mínima da relação de cinco anos ou a existência de prole.
Dois anos depois, ampliando as possibilidades de reconhecimento das
uniões estáveis, a Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, retirou o prazo de
cinco anos para a configuração do instituto, assim como a presença de prole,
exigindo somente a presença de convivência duradoura, pública e contínua

9 “Ademais, a releitura do direito de família a partir de novas premissas metodológicas e principiológicas, com apoio
no art. 226 da Constituição, em especial os §§ 3º, 4º e 7º, indica, de imediato, opções valorativas bem definidas,
que associam direitos e deveres, corroborando o caráter instrumental da família, como comunidade intermediária
concebida para a realização da pessoa humana e de sua dignidade, na solidariedade constitucional. Nota-se que o
legislador ordinário, em consonância com as diretrizes constitucionais, reconheceu em várias oportunidades, a
privatização da família a fim de propiciar a realização da dignidade de seus membros, conforme se percebe por meio
da tutela da comunhão plena de vida, ou seja, protege a família enquanto instrumento de livre desenvolvimento da
personalidade de seus membros, na medida em que ela realmente significa a realização pessoal dos componentes da
entidade familiar.” (TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito
de família. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6. p. 14)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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entre homem e mulher, com o objetivo de constituição de família, ou seja,


os companheiros deveriam se tratar como marido e mulher (tractatus), serem
reconhecidos como tal pela sociedade (reputatio) e demonstrarem a intenção
de serem família (animus familiae). Portanto, deveriam apresentar estado de
casados.
Em que se pesem tais importantes evoluções trazidas desde a Consti-
tuição, a concreta proteção da união estável ocorreu a partir da vigência do
Código Civil de 2002, que estabeleceu tratamento específico ao instituto
com sua caracterização e a respectiva normatização de direitos e deveres dos
companheiros, em que a redação do art. 1.723 do Código Civil manteve os
requisitos da Lei nº 9.278/96.
Em ampliação ao reconhecimento da união estável, a inclusão na tu-
tela das famílias formadas por pessoas do mesmo sexo percorreu caminho
semelhante ao acima descrito, embora atualmente esteja um passo atrás, dada
inexistência de lei que a regulamente.
Nesse movimento, também fruto da forte influência do direito canôni-
co no Brasil, na gênese a união de pessoas do mesmo sexo era execrada pelo
sistema, restando excluída da tutela jurisdicional, embora fosse uma realidade
fática social tangível.
Revelando o pensamento da época, e de algumas décadas posteriores,
Pontes de Miranda, assim como doutrina amplamente majoritária da época,
considera o casamento entre pessoas do mesmo sexo ato inexistente, mos-
trando o intenso repúdio à espécie, ao argumentar:

“Destarte, a união, ainda quando solenemente feita, entre duas pessoas


do mesmo sexo, não constitui matrimônio, porque ele é, por definição,
contrato entre homem e mulher, viri et mulieris conjunctio, com o fim de
satisfação sexual e de procriação. Advirta-se, porém, que em conformação
viciosa ou a mutilação dos órgãos sexuais não torna impossível a existência
do casamento (E. PACIFICI-MAZZONI. Istituzioni di diritto civile italiano,
VII, 12), se o sexo pode ser reconhecido e se distingue do sexo do outro
cônjuge (...). Se, na conformação viciosa, predomina o sexo igual ao do
outro cônjuge, está expressa a figura da igualdade sexual, ipso facto, inexis-
tente o casamento.”10

Assim como ocorreu com a união estável, diante da realidade fática o


Poder Judiciário não pôde se manter inerte, funcionando por isso como a
porta de entrada para inclusão da conjugalidade homoafetiva gradualmente

10 MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado: parte especial. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. v. 7. p. 366.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 85

no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente porque a Constituição


Federal de 1988, que reconheceu expressamente a natureza de entidade fa-
miliar da união estável entre o homem e a mulher, nada falou sobre a união
homoafetiva, algo esperável a época11.
A primeira decisão que assegurou direito às relações homoafetivas ocor-
reu em 1998 quando o Superior Tribunal de Justiça12 reconheceu a existência
de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, conforme a Súmula nº
380 do referido Tribunal. Doze anos depois, em 2010, houve nova decisão do
Superior Tribunal de Justiça13 em favor da relação entre pessoas do mesmo
sexo, deferindo a adoção conjunta ao casal homoafetivo, o que seria vedado
pelo entendimento da conformação de sociedade de fato entre os parceiros
em questão.
Nesse sentido, são sensíveis as reflexões trazidas por Flávio Tartuce
quanto ao momento de reconhecimento da união estável entre pessoas do
mesmo sexo:

“Sempre que o refletia e ainda reflito sobre o tema, vêm na minha mente
as afirmações do Professor Álvaro Villaça Azevedo – conforme as aulas
de graduação entre os anos de 1996 e 1997 na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo – no sentido de que a sociedade brasileira não
estaria até então preparada para reconhecer a união de pessoas do mesmo
sexo como família. Mais recentemente, participei de painel com o insigne
Mestre das Arcadas no I Encontro Regional da Associação dos Advogados
de São Paulo, em Campinas, no dia 12 de março de 2010. Na ocasião,
interroguei o jurista qual era sua opinião atual, e ele me disse que tende a
pensar pelo reconhecimento da união homoafetiva, mas não como união
estável. Em suma, já haveria terreno social suficiente para o seu amparo e

11 DIAS, Maria Berenice. Manual de direitos das famílias. 14. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 591.
12 “SOCIEDADE DE FATO. HOMOSSEXUAIS. PARTILHA DO BEM COMUM. O PARCEIRO TEM O
DIREITO DE RECEBER A METADE DO PATRIMÔNIO ADQUIRIDO PELO ESFORÇO COMUM,
RECONHECIDA A EXISTÊNCIA DE SOCIEDADE DE FATO COM OS REQUISITOS NO ART. 1.363
DO CC. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. ASSISTÊNCIA AO DOENTE COM AIDS. IM-
PROCEDÊNCIA DA PRETENSÃO DE RECEBER DO PAI DO PARCEIRO QUE MORREU COM AIDS
A INDENIZAÇÃO PELO DANO MORAL DE TER SUPORTADO SOZINHO OS ENCARGOS QUE
RESULTARAM DA DOENÇA. DANO QUE RESULTOU DA OPÇÃO DE VIDA ASSUMIDA PELO AU-
TOR E NÃO DA OMISSÃO DO PARENTE, FALTANDO O NEXO DE CAUSALIDADE. ART. 159 DO CC.
AÇÃO POSSESSÓRIA JULGADA IMPROCEDENTE. DEMAIS QUESTÕES PREJUDICADAS. RECURSO
CONHECIDO EM PARTE E PROVIDO.” (STJ, REsp 148.987/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de
Aguiar, j. 10.02.1998)
13 “DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL HOMOSSEXUAL. SITUAÇÃO JÁ
CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE
OS MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS
MENORES. RELATÓRIO DA ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS PARA
OS ADOTANDOS. ARTS. 1º DA LEI 12.010/09 E 43 DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCEN-
TE. DEFERIMENTO DA MEDIDA.” (STJ, REsp 889.852/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.
24.04.2010)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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reconhecimento pela sociedade brasileira, o que compartilho por percepção


pessoal. Ressalto apenas que as leis e os juristas devem acompanhar a evo-
lução da sociedade e não vice-versa, sob pena da criação de uma ditadura
dos juristas, algo condenável como qualquer ditadura.”14

No ano seguinte, em 05 de maio de 2011, sobreveio então a decisão


fundamental que colocou a relação homoafetiva definitivamente no rol de
entidade familiar, ocorrida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fun-
damental nº 132 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, ambas de
relatoria do Ministro Ayres Britto, que reconheceu ser a união entre pessoas
do mesmo sexo entidade familiar, e que a estas aplicam-se, por analogia, regras
da união estável, sem exceção. Uma vez emanada de processos com efeitos erga
omnes e de caráter vinculante, hoje não mais pode ser admitida interpretação
diversa da união entre pessoas do mesmo sexo constituir entidade familiar.
No mesmo ano da significativa conquista, a jurisprudência passou a admitir
a conversão de tais uniões em casamento, até que o Superior Tribunal de
Justiça15 passou a dispor pela possibilidade de casamento direto, por meio da
permissão da habilitação sem prévia união.
Nessa linha, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolu-
ção nº 175, proibindo as autoridades competentes de recusarem a habilitação a
celebração do casamento civil ou a conversão de união estável em casamento.
Apesar da meritória e irretocável trajetória inclusiva que a união estável
trilhou ao incluir na tutela do direito todas as relações de fato, independen-
temente do gênero dos companheiros, atualmente houve uma alteração de
rota, o que a converteu em um emaranhado de instabilidades, que vão deste
a configuração de sua existência, até os efeitos gerados por esta, tanto em caso
de dissolução da relação de conjugalidade durante a vida dos companheiros
quanto após a morte de um dos consortes.
Nesse sentido, como proposto inicialmente, a análise de tais instabi-
lidades e o distanciamento dos valores sociais serão realizados com base em
cada uma das três disposições constantes no art. 390 do Provimento nº 87/02
da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal do Rio de Janeiro, objetos do
presente estudo.

14 TARTUCE, Flávio. União homoafetiva. Comentários ao julgamento da Apelação Civil nº 643.179-4/0, do Tribunal
de Justiça de São Paulo, em 17 de junho de 2009. In: LAGRASTA NETO, Caetano; TARTUCE, Flávio; SIMÃO,
José Fernando. Direito de família: novas tendências e julgamentos emblemáticos. São Paulo: Atlas: 2011. p. 223.
15 “DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO).
INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 E 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊN-
CIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO
SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCI-
PIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF.”
(STJ, REsp 1.183.378/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.10.2011)
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 87

2 Previsão da Possibilidade de Disposições Existenciais no Contrato


de Convivência Disposta pelo Caput do Art. 390 do Provimento
nº 87/2022 da CGJ do TJRJ: o Desejo Implícito do Exercício
da Autonomia Privada na Caracterização da União Estável e a
Vedação Atual
Consta no Título II do Provimento nº 87/2022 da Corregedoria-Geral
de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, concernente
às Escrituras Públicas, de onde faz parte o Capítulo VIII, que versa sobre as
uniões estáveis, o art. 390, onde o caput traz a seguinte orientação: “Da escritura
de reconhecimento da união estável, dentre outras, poderão constar cláusu-
las patrimoniais dispondo sobre o regime de bens, incluindo a existência de
bens comuns e de bens particulares de cada um dos conviventes, assim como
cláusulas existenciais, desde que não vedadas por lei”.
Tal regulamentação, especialmente da parte final do referido artigo, traz
como base a contratualização das relações de conjugalidade de natureza de união
estável, quando versa sobre a possibilidade de pactuação quanto às questões
existenciais, abrindo caminho para a possibilidade de dispor quanto à existência
da própria união estável, o que, sem dúvida alguma, representa significativa
parcela dos anseios sociais, especialmente no sentido de evitar surpresas quanto
a possível relação de conjugalidade, que sequer se sabe que se está vivendo.
Quanto ao tema, a celeuma atual inicia-se quanto a sua natureza jurídica
da união estável: ato-fato jurídico ou ato jurídico composto por manifestação
de vontade e por suporte que a complemente?16
A pedra de toque que define a diferença entre as naturezas acima men-
cionadas está no requisito disposto pelo art. 1.723 do Código Civil, que exige
para a configuração da união estável a intenção imediata dos companheiros
em constituírem família (animae família).
Na percepção de Marcos Bernardes de Mello, este constitui o elemento
volitivo do instituto, configurando a necessária manifestação de vontade, o
que faz com que o instituto saia do campo do ato fato jurídico e passe a con-
figurar um ato jurídico sui generis, conforme explica Marília Pedroso Xavier:

“O jurista afirma que, de acordo com a norma do art. 1.723 do Código Civil,
existe, além da descrição de uma situação fática, um elemento subjetivo

16 “Feitas essas considerações, Marcos Bernardes de Mello conclui que a união estável só pode ser classificada como
ato jurídico composto por manifestação de vontade e por suporte fático que a complete. Esta categoria é denominada
‘atos jurídicos compósitos’.” (XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo.
2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 100)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
88

relevante configurado no ‘intuito de constituição de família’. Assim, ‘o ser


preciso que haja manifestação consciente de vontade em estabelecer a união
estável não permite tê-la como ato-fato jurídico’. No entanto, também não
é possível afirmar que a união estável é um negócio jurídico, pois além
da vontade são exigidos os requisitos de convivência pública, contínua e
permanente. Ou seja, a norma exige também um suporte fático para que
se reconheça a existência da união estável.”17

Nessa direção, a autora acima mencionada acrescenta que tal entendi-


mento se coaduna com a nova ordem constitucional, instaurada pela Cons-
tituição de 198818, e conclui:

“Este nível de ingerência estatal viola frontalmente o princípio da autonomia


privada. Com a imposição da união estável aos variados relacionamentos,
o indivíduo perde uma das suas únicas faculdades no âmbito do direito de
família existencial: escolher a forma de realização de seu projeto afetivo,
inclusive com quem ele será desenvolvido. A ingerência estatal, neste nível,
nada mais faz do que retirar do indivíduo a liberdade afetiva. Por conse-
quência, a tese do ato-fato jurídico pode, paradoxalmente, contribuir para
a diminuição da própria dignidade humana. É imperioso, portanto, que se
reconheça a natureza da união estável como ato jurídico compósito, sendo
que a vontade e o suporte fático são igualmente importantes.”19

Em sentido contrário, na defesa de que a união estável possui nature-


za de ato-fato jurídico, Paulo Lôbo inicia sua explicação na gênese do texto
constitucional, mostrando que ao dizer o § 3º do art. 226 da Constituição
Federal Brasileira “é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher
como entidade familiar”, há por parte da Carta Cidadã o “reconhecimento
jurídico de determinado fato social e afetivo, ou socioafetivo, convertido em
entidade familiar, merecedora de proteção do Estado, antes apenas admitido
para o casamento, ou família matrimonial. A Constituição, portanto, apanha
uma situação fática, existente no mundo dos fatos, que passa a receber sua
tutela normativa ou sua incidência”20.

17 XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2020. p. 100.
18 “Não é apenas do referido artigo que decorre esta interpretação. Na realidade, com a passagem do modelo transpessoal
de família para o modelo eudemonista, centrado no bem estar e na realização dos sujeitos, os indivíduos adquiriram
maior autonomia e liberdade. A família passou a ser entendida sob um enfoque muito mais democrático, pelo que a
vontade de seus componentes importa muito mais do que o interesse estatal.” (XAVIER, Marília Pedroso. Contrato
de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020. p. 101)
19 XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2. ed. Belo Horizonte:
Fórum, 2020. p. 102.
20 LÔBO, Paulo. A concepção da união estável como ato-fato jurídico e suas repercussões processuais. IBDFAM, 2014. Disponível
em: www.ibdfam.org.br/artigos/953/A+concepção+da+união+estável+como+ato+fato+jurídico+e+suas+rep
ercussões+processuais. Acesso em: 06 jan. 2023.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 89

Note-se que para o referido autor, a partir do reconhecimento expresso


constitucional de novos arranjos familiares, há atualmente no ordenamento
jurídico uma entidade familiar que provém de ato jurídico formal e solene,
o casamento, e as demais formas de família provenientes da existência fática,
como, por exemplo, ocorre com as famílias monoparentais, o que as confere
a natureza jurídica de ato fato jurídico21.
Esse posicionamento constitucional resta atendido pelo Código Civil,
que ao exigir convivência pública, contínua e duradoura, demonstra definiti-
vamente a localização do instituto da união estável no mundo dos fatos, onde,
inclusive, “Se houver divergência entre a vontade dos figurantes e o fato real
da convivência com natureza familiar, este prevalece sobre aquela”22.
Nessa direção também é o posicionamento de Maria Berenice Dias,
ao arguir: “A união estável nasce da convivência, simples fato jurídico que
evolui para a constituição de ato jurídico, em face dos direitos que brotam
dessa relação”23.
Em que se pesem os pertinentes e necessários argumentos de Marco
Bernardes Mello e Marília Xavier, a tese defendida por Paulo Lôbo resta
integralmente acolhida pela recente jurisprudência inclusive de modo ex-
presso, quando no Recurso Especial 1.761.881/MS24 dispõe expressamente
que a união estável nasce de um ato fato jurídico, e no Agravo Interno no
Recurso Especial 1.621.458/SP25 aponta para a necessidade de exteriorização
da intenção imediata de constituir família. Desse modo, passa-se a verificar
o instituto dos atos-fatos jurídicos.

21 “Portanto, no direito de família brasileiro atual, há uma entidade oriunda de um ato jurídico formal e as demais,
entre elas a união estável, constituídas a partir de situações de fato, a que o direito confere reconhecimento. De
todas elas a união estável é a que apresenta a maior dificuldade de comprovação de sua existência jurídica, o que a
leva a depender de decisão judicial, sempre que dúvida houver quanto ao seu termo inicial e, quando for o caso, à
sua dissolução.” (LÔBO, Paulo. A concepção da união estável como ato-fato jurídico e suas repercussões processuais. IBDFAM,
2014. Disponível em www.ibdfam.org.br/artigos/953/A+concepção+da+união+estável+como+ato+fato+juríd
ico+e+suas+repercussões+processuais. Acesso em: 06 jan. 2023)
22 LÔBO, Paulo. A concepção da união estável como ato-fato jurídico e suas repercussões processuais. IBDFAM, 2014. Disponível
em www.ibdfam.org.br/artigos/953/A+concepção+da+união+estável+como+ato+fato+jurídico+e+suas+repe
rcussões+processuais. Acesso em: 06 jan. 2023.
23 DIAS, Maria Berenice. Manual de direitos das famílias. 14. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 590.
24 “RECURSO ESPECIAL. CIVIL. FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL POST MOR-
TEM. ENTIDADE FAMILIAR QUE SE CARACTERIZA PELA CONVIVÊNCIA PÚBLICA, CONTÍNUA,
DURADOURA E COM OBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA (ANIMUS FAMILIAE). DOIS MESES DE
RELACIONAMENTO, SENDO DUAS SEMANAS DE COABITAÇÃO. TEMPO INSUFICIENTE PARA SE
DEMONSTRAR A ESTABILIDADE NECESSÁRIA PARA RECONHECIMENTO DA UNIÃO DE FATO.”
(REsp 1.761.887/MS, 4ª Turma, Rel. Min. Luiz Felipe Salomão, j. 06.08.2019)
25 “AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE CONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL
POST MORTEM. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL VERIFICADA. PRESENTES OS REQUI-
SITOS DE CABIMENTO, ADMISSIBILIDADE E CONHECIMENTO DO RECURSO. POSSIBILIDADE
DE JULGAMENTO MONOCRÁTICO. RAZÕES RECURSAIS INSUFICIENTES. AGRAVO INTERNO
DESPROVIDO.” (Ag. Int no REsp 1.621.458/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22.06.2022)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
90

No que concerne aos atos-fatos jurídicos, Pontes de Miranda leciona que:

“Os atos-fatos jurídicos são os fatos jurídicos que escapam às classes dos
negócios jurídicos, dos atos jurídicos stricto sensu, dos atos ilícitos, inclusive
atos de infração culposa das obrigações, da posição de réu e exceptuado
(ilicitude infringente contratual), das caducidades por culpa, e dos fatos
jurídicos stricto sensu. Abrangem os atos reais, a responsabilidade sem culpa,
seja contratual ou extracontratual, e as caducidades sem culpa (exceto o per-
dão). Ainda quando, no suporte fático, de que emanam, haja ato humano,
com vontade ou culpa, esses atos tratados como ato-fato.”26

Enquanto atos reais, explica brilhante e sempre atual doutrinador:

“Os atos reais, ditos, assim, por serem mais dos fatos, das coisas, que dos ho-
mens – ou atos naturais, se separamos natureza e psique, ou atos meramente
externos, se assim os distinguirmos, por abstraírem êles do que se passa no
interior do agente – são atos humanos cujo suporte fático se dá entrada, como
fato jurídico, sem se atender, portanto, à vontade dos agentes: são atos-fato
jurídicos. Nem é preciso que se haja querido a juridicização dêles, nem, a
fortiori, a irradiação de efeitos. Nos atos reais, a vontade não é elemento do
suporte fáctico (= o suporte fáctico seria suficiente, ainda sem ela).”27

Desse modo, não se exige que o casal deseje viver em união estável,
mas apenas a presença dos requisitos autorizadores de reconhecimento de tal
relação, o que muitas vezes vai de encontro à vontade do próprio casal, ou
pelo menos de um deles. Nas palavras de Gustavo Tepedino e Ana Carolina
Brochado Teixeira:

“Não se pode aferir tal pressuposto mediante avaliação de sentimentos ou


intenção subjetiva, mas por meio do comportamento objetivo do casal, que
caracteriza a existência de uma família. É a conduta dos companheiros, por-
tanto, reveladora da exteriorização da formação da família, a configurar a fonte
de declaração da união estável, indicando a posse do estado de casados.”28

Por isso, não se sabe exatamente se aquele casal vive em união estável,
e quando tal união se iniciou, como bem aponta Maria Berenice Dias:

“Com segurança, só se pode afirmar que a união estável se inicia de um


vínculo afetivo. O envolvimento mútuo acaba transbordando o limite pri-
vado, e as duas pessoas começam a ser identificadas no meio social como

26 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. tomo II. p. 372.
27 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. tomo II. p. 373-374.
28 TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito de família. 3. ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6. p. 192.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 91

um par. Com isso, o relacionamento se torna uma unidade. A visibilidade


do vínculo o faz ente autônomo merecedor de tutela jurídica como uma
entidade familiar. O casal transforma-se em universalidade única, que
produz efeitos pessoais com reflexos de ordem patrimonial.”29

Tal imprecisão gera sensível confusão, já que tanto a relação de conju-


galidade quanto a sucessão do companheiro geram importantes efeitos patri-
moniais, sendo por essa razão que tem sido buscado instrumentos contratuais
para manter um mínimo de previsibilidade, como, por exemplo, ocorre como
os contratos de namoro e de coparentalidade, como aponta Marília Pedroso
Xavier:

“É muito grave o fato de o instituto da união estável ter ganhado tentáculos


tão extensos e numerosos a ponto de levar os interessados a promover a
criação de instrumentos para evitar sua configuração. No fundo, a grande
lição que se extrai é que o instituto da união estável precisa urgentemente
ser repensado.... Este caminho lembra um movimento pendular, que vai da
sua negação, avança para a indenização por serviços prestados e pela socie-
dade de fato, e aporta na família. Agora, porém, parece ter atingido o outro
extremo da trajetória: alcançar relações amorosas e afetivas em que não há
vontade expressa de ambas as partes para que a união estável se constitua.”30

Portanto, não há dúvida de que o exercício da autonomia privada quanto


a disposição da existencial questão que diz respeito à caracterização de união
entre o casal, consiste em demanda social, o que faz com que o caput do art.
390 do Provimento nº 87/2022 do CGJ do TJRJ seja de fato uma expressão
dos anseios sociais atuais. No entanto, enquanto ato-fato jurídico, atualmente
não há ressonância de tal anseio na doutrina e na jurisprudência, o que faz
com que tal dispositivo não seja compatível com o estado da arte atual do or-
denamento jurídico brasileiro, representando por isso, apenas um agravante
das instabilidades.

3 Permissão de Cláusula de Retroatividade do Regime de Bens no


Contrato de Convivência Através do § 1º do Art. 390 do Provimento
nº 87/2022 da CGJ do TJRJ: Expectativa de Mitigação dos Efeitos
da União Estável Enquanto Ato-Fato Jurídico
Além da grande problemática existente na configuração da união estável,
agravando a situação de instabilidade encontram-se os efeitos patrimoniais, na

29 DIAS, Maria Berenice. Manual de direitos das famílias. 14. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 595.
30 XAVIER, Marília Pedroso. O contrato de namoro como instrumento de planejamento sucessório. In: TEIXEIRA,
Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2022. tomo III. p. 569.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
92

qual, a passos largos a jurisprudência tem equiparados os efeitos do instituto


com os produzidos pelo casamento, embora devam se manter as diferenças
essenciais, pela própria diferença da natureza jurídica dos atos31, as quais Ana
Carolina Brochado Teixeira e Gustavo Tepedino diferenciam regras que podem
ser equiparadas, das que não permitem tais semelhanças:

“O vocábulo casamento é polissêmico, indica tanto o ato jurídico como a


relação jurídica dele decorrente. Por isso mesmo, é necessário diferenciar as
normas que têm a sua ratio no ato jurídico em si considerado, daquelas que
se destinam à relação familiar. As primeiras – como é o caso do estado civil –
não podem ser aplicadas às uniões estáveis, já que dependem essencialmente
da solenidade do ato, pressuposto fático para sua incidência. São regras que,
por encontrem justificativa no casamento como ato jurídico, não admitem
a interpretação extensiva para entidades desprovidas das características de
segurança jurídica e da publicidade próprias da sua celebração. Por outro
lado, as normas que encontram justificativa na convivência própria da
relação familiar devem ser estendidas a toda e qualquer entidade familiar
merecedora de tutela, independentemente da sua forma de constituição.”32

Tal distinção resta expressa pelo Enunciado nº 641 da VIII Jornada


de Direito Civil33, que defende a equiparação somente no que concerne à
solidariedade, excluindo por isso as decorrentes de formalidades, como, por
exemplo, a exigência da vênia conjugal prevista pelo art. 1.647 do Código Civil.
Embora a jurisprudência esteja rumando neste caminho, a exemplo da
declaração da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, objeto de
análise da próxima seção, esta tem incorrido em algumas contradições, como
a que ocorreu recentemente com o Recurso Especial de número não revelado,
por tramitar em segredo de justiça, que não reconheceu a família anterior
constituída pelo consorte do casamento em questão, com outra mulher,
negando-lhe proteção estatal a partir do momento em que aquele homem

31 “As consequências da união estável, ao contrário do casamento, não decorrem do ato jurídico solene, capaz de produzir
efeitos que lhes são próprios. A Constituição Federal não pretendeu equiparar entidades heterogêneas, identificando
a relação familiar de fato com o mais solene dos atos jurídicos. O casamento como ato jurídico, pressupõe uma
profunda e prévia reflexão de quem o contrai, daí decorrendo uma série de efeitos que lhe são próprios – dada a
certeza e a segurança que oferecem os atos solenes. Já a união estável, ao contrário, formada pela sucessão de eventos
naturais que caracterizam uma relação de fato, tem outros elementos constitutivos, identificáveis ao longo do tempo,
na medida em que se consolida a vida em comum.” (TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado.
Fundamentos do direito civil: direito de família. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6. p.196)
32 TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito de família. 3. ed. rev.,
atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6. p. 197.
33 Enunciado nº 641 da VIII Jornada de Direito Civil: “A decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a incons-
titucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável.
Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade
familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico
que funda o casamento, ausente na união estável”.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 93

contraiu casamento, ainda que posteriormente, ressuscitando a famigerada


Súmula nº 380 do STF, que indeniza o companheiro pelos serviços de “cama,
mesa e banho”, conforme notícia extraída do site do Superior Tribunal de
Justiça, em 15 de setembro de 202234.
Ao assim decidir, a Terceira Turma do Colendo Tribunal, na relatoria da
Ministra Nancy Andrighi, não equiparou o casamento à união estável quanto
aos direitos emanados pelo princípio da solidariedade, assegurando direitos
à relação que veio depois, por ser esta decorrente do casamento, relegando a
união estável, a primeira relação de conjugalidade, ao status de família simul-
tânea e, portanto, não destinatária da proteção estatal.
Portanto, embora tendência, atualmente a equiparação de efeitos decor-
rentes do princípio da solidariedade entre os dois institutos não é uniforme.
Desse contexto, faz parte a controvérsia quanto à possibilidade de retro-
atividade do regime de bens. Diz o § 1º do art. 390 do Provimento nº 87/2022
da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de
Janeiro: “Caso as partes optem pelo regime de separação absoluta de bens e
estabeleçam retroagir os efeitos à data do início da relação, o tabelião deve
adverti-las quanto a possível anulabilidade da cláusula, o que deverá constar
expressamente do ato”.
Nota-se nesta norma a tentativa de privilegiar o direito constitucional
do livre planejamento familiar, disposto pelo art. 226, § 7º, da Constituição
Federal, assim como a autonomia privada, como concretização do princípio
da dignidade humana, expressos pelo art. 1.513 do Código Civil35, em detri-

34 “Por unanimidade, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que é incabível o reconhecimento
de união estável simultânea ao casamento, assim como a partilha de bens em três partes iguais (triação), mesmo
que o início da união seja anterior ao matrimônio. O entendimento foi firmado no julgamento ao Recurso Especial
interposto por uma mulher que conviveu três anos com um homem antes que ele casasse com outra e manteve o
relacionamento por mais 25 anos. Ao STJ, a recorrente reiterou o pedido de reconhecimento e dissolução da união
estável, com partilha de bens em triação. Ao dar provimento ao recurso, o colegiado considerou que não há impedi-
mento da união estável no período de convivência anterior ao casamento, mas, a partir deste momento, tal união se
transforma em concubinato (simultaneidade das relações) (...) Relatora do caso no STJ, a Ministra Nancy Andrighi
afirmou que, segundo a jurisprudência, ‘é inadmissível o reconhecimento de união estável concomitante ao casamen-
to, na medida em que aquela pressupõe ausência de impedimento para o casamento, ou, ao menos, a exigência de
separação de fato’ (...). Acerca do período posterior a celebração o matrimônio, a relatora destacou que a recorrente
e o recorrido tiveram dois filhos durante o concubinato que durou 25 anos e era conhecido por todos os envolvidos.
Segundo ela, essa relação de equipara à sociedade de fato, e a partilha nesse período também é possível, desde que
haja prova de esforço comum na construção patrimonial (Súmula nº 380 do STF).” (NOTÍCIAS STJ, disponível
em: www.stj.jus.br/sites/portalp/paginas/comunicacao/noticias/2022/15092022-E-incabivel-o-reconhecimento-de-
uniao-estavel-paralela-ainda-que-iniciada-antes-do-casamento.aspx. Acesso em: 06 jan. 2023)
35 “A evolução do tratamento jurídico das famílias revela a necessidade de se assegurar a liberdade nas escolhas exis-
tenciais que, na intimidade do recesso familiar, possa propiciar o desenvolvimento pleno da personalidade de seus
integrantes. Esse é o propósito do art. 1.513 do Código Civil: ‘É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou
privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família’. A proteção da autonomia, a fim de assegurar os
espaços de decisão pessoal em questões intimas, faz-se ainda mais relevantes quando, por exemplo, está em jogo
o tipo de entidade familiar que cada um constituirá ou a forma de exercer o planejamento familiar (respeitados os
limites). Trata-se de resguardar os espaços existenciais de maior intimidade da pessoa humana, invulneráveis à invasão
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
94

mento da proteção ao direito adquirido, disposto pelo inciso XXXVI do art.


5º da Constituição Federal, e mais que isto, busca a disposição regulamentar,
de modo a uniformizar as atividades dos tabelionados do Rio de Janeiro, a
possibilidade de mitigação do “efeito surpresa” causado em razão da união
estável ser considerada ato-fato jurídico.
Portanto, se a caracterização da união estável depende da aparência da
relação emanada pelo casal à sociedade, a ratio desta norma é que pelo menos
sejam mitigados os efeitos desta relação, muitas vezes indesejadas, no que
tange aos efeitos patrimoniais.
Interessante anotar que, a norma ora analisada restringe a retroativi-
dade ao regime de separação absoluta de bens, demonstrando claramente o
atendimento aos anseios sociais quanto à possibilidade de escolha de não co-
municabilidade patrimonial, desde a gênese da relação, como assim acontece
com o casamento, por meio da lavratura dos pactos antenupciais, que somente
ganham eficácia com o matrimônio.
Por isso, além de promover a mitigação da violação da autonomia
privada, em última análise, tem-se que permitir a retroatividade do regime
de bens ao início da união estável, significa equiparar o casamento à união
estável em seu sentido material quanto livre escolha patrimonial, já que so-
mente assim os consortes podem escolher o regime de bens vigente desde o
início da relação de conjugalidade, tendo em vista a difícil detecção do início
da relação, oposto do que ocorre com o matrimônio.
No entanto, apesar da clara lógica e plausibilidade da possibilidade de
retroatividade do regime de bens, a irretroatividade deste tem sido reconhe-
cida pela doutrina36 e pela jurisprudência37, na direção de não conceder mais

do legislador infraconstitucional, de qualquer decisão do Poder Judiciário, de ordem do Poder Executivo ou de ato
de particulares. A vida provada existencial, individual e familiar, encontra-se protegida, portanto, de interferências
externas, pois é necessário que cada um desenvolva sua personalidade livremente e participe da sua comunidade de
forma autônoma.” (TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito
de família. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6. p. 14)
36 O contrato de convivência não cria a união estável, pois sua constituição decorre do atendimento aos requisitos
legais (CC, art. 1.723): continuidade, duração, publicidade e com o propósito de constituir uma família. O contrato
obrigatoriamente terá efeito retroativo, em relação à existência da união estável, o que não retroage é o regime de
bens quando é eleito outro regime que não seja o da comunhão parcial de bens. Não há possibilidade de ser atribuído
efeito retroativo a regime de bens mais restritivos, por afrontar direitos já adquiridos. (DIAS, Maria Berenice. Manual
de direitos das famílias. 14. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 615)
37 “CIVIL. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. CONTRATO DE CONVIVÊN-
CIA. 1) ALEGAÇÃO DE NULIDADE DO CONTRATO. INOCORRÊNCIA. PRESENÇA DOS REQUISITOS
DO NEGÓCIO JURÍDICO. ART. 104 E INCISOS DO CC/02. SENILIDADE E DOENÇA INCURÁVEL, POR
SI, NÃO É MOTIVO DE INCAPACIDADE PARA O EXERCÍCIO DE DIREITO. AUSÊNCIA DE ELEMEN-
TOS INDICATIVOS DE QUE NÃO TINHA O NECESSÁRIO DISCERNIMENTO PARA A PRÁTICA DO
NEGÓCIO JURÍDICO. AFIRMADA AUSÊNCIA DE MANIFESTAÇÃO DE VONTADE. INCIDÊNCIA DA
SÚMULA Nº 7 DO STJ. DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA Nº 284
DO STF. REGIME OBRIGATÓRIO DE SEPARAÇÃO DE BENS NO CASAMENTO. INCISO II DO ART.
1.641 DO CC/02. APLICAÇÃO NA UNIÃO ESTÁVEL. AFERIÇÃO DA IDADE. ÉPOCA DO INÍCIO DO
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 95

benefícios à união estável que ao casamento, já que a modificação do regime


de bens no casamento surte apenas efeitos ex nunc, o que faz com que, nos
termos do art. 1.640 do Código Civil, enquanto não celebrado contrato de
convivência entre os companheiros elegendo regime diverso, incida a co-
munhão parcial de bens, direito este adquirido do companheiro meeiro para
aquisições onerosas até o momento de celebração do contrato de convivência.
Tem-se, então, mais uma demonstração da colisão entre os anseios
sociais expressos pelo Provimento nº 87/2022 do CGJ do TJRJ e a atual ju-
risprudência e doutrina majoritárias, revelando.

4 A Arrojada Previsão da Possibilidade de Renúncia Antecipada


à Concorrência Sucessória do Companheiro pelo § 3º do Art. 390
do Provimento nº 87/2022 da CGJ do TJRJ: um dos Temas de
Sucessões de Maior Controvérsia na Atualidade
Por fim, de modo bastante ousado, o § 3º do Provimento 87/2022 do
CGJ do TJRJ toca em uma das mais polêmicas questões sucessórias da atu-
alidade, ao regulamentar: “A cláusula de renúncia ao direito concorrencial
(art. 1.829, I, do CC) poderá constar de ato a pedido das partes, desde que
advertidas quanto à sua controvertida eficácia”.
Para análise da referida norma, inicia-se pelo Recurso Extraordinário
878.694/MG38, que em 2017, em sede de repercussão geral (Tema nº 809),
fixou a tese de que “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios
entre cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/02, devendo

RELACIONAMENTO. PRECEDENTES. APONTADA VIOLAÇÃO DE SÚMULA. DESCABIMENTO. NÃO


SE ENQUADRA NO CONCEITO DE LEGISLAÇÃO FEDERAL. PRECEDENTES. DISSÍDIO JURISPRU-
DENCIAL NÃO DEMONSTRADO. RECURSO ESPECIAL DO EX-COMPANHEIRO NÃO PROVIDO. 2)
PRETENSÃO DE SE ATRIBUIR EFEITOS RETROATIVOS A CONTRATO DE CONVIVÊNCIA. IMPOS-
SIBILIDADE. RECURSO ESPECIAL DA EX-COMPANHEIRA NÃO PROVIDO.” (STJ, REsp 1.383.624/MG,
Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 02.06.2015)
38 “DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL.
INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E
COMPANHEIROS. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta
do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar,
para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união
estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. 3. Assim sendo,
o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis ns. 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou o compa-
nheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste
com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente,
e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é
aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às
partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação,
em repercussão geral, da seguinte tese: ‘No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes
sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art.
1.829 do CC/02’.” (RE 878.694, Tribunal Pleno, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 10.05.2017)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento quanto nas de união estável, o
regime do art. 1.829 do CC/02”.
Com isso, passou então a ser aplicado aos companheiros o art. 1.829
do Código Civil, e com ele a incompatibilidade da norma sucessória disposta
pelo Código Civil de 2022, que transformou a natureza transitória dos direitos
sucessórios do cônjuge/companheiro, para permanente, trazendo a figura do
“supercônjuge”, expressão cunhada por Ana Luiza Maia Nevares, e agora
também do “supercompanheiro”; e a dinâmica social derivada da plena dis-
solubilidade do casamento e da fugacidade das relações, em tempos de amor
líquido, de acordo com Zygmunt Bauman.
Analisa-se então tal movimento: Até a promulgação da Lei do Divórcio,
o regime legal de bens era o da comunhão universal, o que significa que o
cônjuge sobrevivente possuía meação em todos os bens deixados pelo falecido.
Além disso, já neste sistema era permitido a escolha de regimes diversos de
bens, surgindo um universo de bens particulares do de cujus, além das próprias
incomunicabilidades permitidas ao regime da comunhão universal de bens.
Deste monte a ser partilhado, os direitos permanentes do cônjuge
sobrevivente eram bastante restritos, ou até mesmo inexistentes, já que não
eram considerados herdeiros necessários, podendo por isso serem plenamente
afastados da sucessão, conforme esclarece Orlando Gomes:

“O direito atribuído ao cônjuge supérstite na sucessão do consorte varia


conforme as condições em que se verifiquem. Sucede em propriedade,
usufruto e habitação. Adquire herança, como proprietário dos bens, na
sua totalidade, quando chamado em falta de descendentes e ascendentes.
O principal pressuposto dessa aquisição plena é a falta, ou a ineficácia de
testamento, visto que, não sendo o cônjuge herdeiro necessário, pode
o outro consorte dispor, em ato de última vontade, de todos os bens.
Toda herança lhe é devolvida, em plena propriedade, sempre que suceda
por título legal. O direito do cônjuge sobrevivente atribui-se-lhe, nestas
condições, seja qual for o regime matrimonial, comunitário ou não, de
separação pactuada, ou obrigatória. Bem claro é que, tendo sido casado
pelo regime da comunhão, recolhe hereditariamente metade do acervo
comum, porquanto lhe pertence a outra metade, denominada meação, e
conservada indivisa até a abertura da sucessão.”39

Desse modo, de acordo com o regime jurídico do Código Civil de 1916,


o máximo que era reservado, por força de lei, ao cônjuge sobrevivente eram os
temporários direitos decorrentes do usufruto vidual ou do direito de habitação,

39 GOMES, Orlando. Sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 1970. p. 84-85.


Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 97

conforme o regime de bens escolhidos, benesse auferida somente após a vigência


da Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962, o Estatuto da Mulher Casada.
Tal regime jurídico sucessório vigeu até 11 de janeiro de 2003, quando o
Código Civil de 2002 entrou em vigor, inaugurando neste momento sistema
sucessório com profundas modificações, dentre elas, a concessão de direitos here-
ditários permanentes ao cônjuge, e agora também ao companheiro, privilegiando,
assim, as relações conjugais. Em sentido oposto, a ampla incidência da liberdade
de escolha quanto às regras a vigerem na relação de conjugalidade durante a vida
dos cônjuges/companheiros, o sistema sucessório podou tais liberdades40.
Na nova ordem jurídica, o cônjuge sobrevivente se tornou herdeiro
necessário (e aqui pende discussão quanto ao companheiro), e passou a con-
correr com descendentes, de acordo com o regime de bens incidente na relação
conjugal, e com os ascendentes, seja qual for o regime, ou seja, o cônjuge/
companheiro supérstite tornou-se herdeiro no regime jurídico implementado
pelo Código Civil de 2002, no qual também foi mantido o seu direito real
de habitação. Tais regras, quando confrontadas com a dinâmica social atual,
apresentam profundo e lamentável descompasso, como preleciona Daniele
Chaves Teixeira:

“Atualmente, o Direito Sucessório encontra-se em desacordo com a socie-


dade brasileira. As transformações socioeconômicas abalaram os alicerces
do Direito das Sucessões, que são a família e a propriedade. A falta de
autonomia do Direito das Sucessões enrijece-o, conservando-o com um
perfil de uma sociedade oitocentista. Principalmente nos dias de hoje,
pois se deve interpretar os institutos do Direito Civil de uma forma mais
funcionalizada do que estrutural.”41

Desse modo, aquele que ocupa o papel de cônjuge/companheiro no


momento da morte de seu consorte, possui direitos hereditários permanen-
tes, seja como herdeiro integral, seja de modo concorrencial, quando estão
presentes descendentes e ascendentes, cada uma das situações respondendo
por regras próprias.

40 “No entanto, ao elevar o cônjuge à categoria de herdeiro necessário, pode-se dizer que a solução se mostra, em certa
medida, paradoxal, vez que, em matéria de regime de bens, garantiu o legislador ampla flexibilidade àqueles que
pretendem se casar. Com efeito, o legislador confere ampla discricionariedade aos nubentes para fixarem o regime
que melhor lhes convier, além de permitir sua alteração a qualquer tempo (art. 1.639, caput e § 2º). Ademais, previu
plena liberdade para alienação de bens no âmbito do regime de separação absoluta (art. 1.647, I) e, no regime de
participação final dos aquestos, garantiu a livre administração dos bens (art. 1.673, parágrafo único), assim como a
possibilidade convencional de sua livre disposição (art. 1.656). De fato, a mesma liberdade não resta garantida no
âmbito sucessório.” (TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito
de família. 3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6. p. 97)
41 TEIXEIRA, Daniele Chaves. Noções prévias do direito das sucessões: sociedade, funcionalização e planejamento
sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
tomo I. p. 37-38.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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Tal dinâmica sucessória, quando correlacionada à dissolubilidade plena


do casamento, o amplo reconhecimento das uniões estáveis e a fugacidade das
relações atuais, demonstram o intenso descompasso das atuais regras com a
conformação familiar contemporânea, como reflete Flávio Tartuce:

“Na verdade, passados mais de quinze anos da entrada em vigor do Có-


digo Civil brasileiro de 2002, temos nos filiado aos críticos do sistema de
concorrência sucessória, pois ele não se coaduna com a realidade social e
familiar, tendo sido um grande equívoco a sua inclusão no sistema jurídi-
co nacional. A ordem de vocação hereditária que constava da codificação
brasileira de 1916 era muito mais simples e presumia melhor a vontade do
morto, seja para ele mesmo, seja no âmbito nacional (...). Ainda, o Código
Civil Brasileiro teve seu processo embrionário surgido em 1972. Nessas
épocas, quando este autor sequer havia nascido, os valores sociais eram
outros, totalmente diversos da contemporaneidade. Eram valorizadas de
sobremaneira o casamento tradicional, a família típica e a propriedade irre-
tocável. Imaginavam que as gerações anteriores, como premissa-regra, que
o casamento era para toda vida, até que a morte separasse os cônjuges. Por
isso, era imperioso valorizar a figura do cônjuge, ao lado dos descendentes,
como fizeram as três legislações civis citadas. Não é isso que se contata
socialmente nas gerações atuais. Estudos antropológicos demonstram que os
mais jovens – componentes das gerações denominadas de X, Y e Z – tendem
a ter casamentos menos duradouros, instáveis, que dificilmente chegam
a uma década. Muitos, aliás, têm feito a opção de casamento pelo regime
de separação convencional ou por regimes mistos, que afastam qualquer
comunicação de alguns bens. O casamento perpétuo está em crise. Não
o casamento em si, pois as pessoas das gerações mais novas continuam se
casando e cada vez mais, mas aquele modelo tradicional, cativo no tempo,
indissolúvel, está em derrocada. Aqui existem motivos sociais consideráveis
para se abandonar o sistema introduzido pelo Código Civil de 2002.”42

Os efeitos de tal descompasso são tão visíveis, que um dos assuntos em


pauta diz respeito às estruturas de planejamento sucessório, as quais, quando
respeitados os limites legais, mitigam os efeitos indesejados da concorrência
sucessória do cônjuge, instalada no Brasil43.

42 TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito das sucessões. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. v. 6. p. 179.
43 “Um planejamento sucessório efetivo é capaz de minimizar o risco de litígios judiciais, uma vez que respeita os limites
legais da liberdade do autor da herança e a parte legítima dos herdeiros necessários. Em contraposição, a ausência do
planejamento sucessório ou sua existência ineficaz pode acarretar uma instabilidade em razão da multiplicidade de
critérios utilizados pelos julgadores, com decisões judiciais muitas vezes contrariando a vontade do autor da herança.
Há ainda, de se considerar a lentidão dos processos judiciais, que termina por corroer o patrimônio.” (TEIXEIRA,
Daniele Chaves. Noções prévias do direito das sucessões: sociedade, funcionalização e planejamento sucessório. In:
TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do Planejamento Sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2019. tomo I. p. 37)
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 99

Quanto ao enrijecimento do Direito Sucessório, esfera de pequeno


espaço de autonomia, tal efeito deletério ganha ainda mais gravidade, em
razão da doutrina majoritária e da jurisprudência não admitirem renúncia
antecipada ao direito concorrencial nos pactos antenupciais, tornando obri-
gatória a concorrência sucessória do cônjuge/companheiro, a menos, que por
mera liberalidade, este renuncie a sucessão após a morte de seus consorte, o
que gera grande insegurança ao autor da herança, já que a concretização de
tal atitude é absolutamente imprevisível. Tal posicionamento é defendido por
João Ricardo Brandão Aguirre ao aduzir:

“A nossa opinião diverge frontalmente daquela expressada pelos dois gran-


des civilistas – e diletos amigos –, posto que a liberdade das disposições
antenupciais encontra austeros limites no direito sucessório, cuja rigidez
sistemática ancora-se na rigorosa proibição da cessão e, também, da renúncia
a direitos hereditários em momento anterior ao da abertura da sucessão.
Atos jurídicos que tenham por objeto fraudar essa proibição legal são nulos
pela regra do art. 166, inciso IV, do Código Civil.”44

Nessa linha, conclui o autor:

“Neste sentido, alertamos para as armadilhas trazidas por arranjos pré-


nupciais que, fundeados em concepção desmedida da autonomia privada,
tenham por objeto a disposição de direito sucessório, em especial aquelas
que estabelecem a sua renúncia e que acarretarão a declaração de sua nu-
lidade por fraude à lei imperativa, nos exatos termos do inciso IV do art.
166 do Código Civil, bem como por afronta a regras proibitivas dos arts.
426 e 1.808 de nosso Código Civil. As planícies da autonomia privada
são vastas e acolhedoras para os artífices dos planos sucessórios, mas não
ilimitadas, o que faz com que algumas de suas veredas não conduzam à
terra prometida.”45

Nesse mesmo sentido, argumenta Flávio Tartuce:

“De acordo com o art. 1.655 do CC/02, é nula a convenção ou cláusula que
consta no pacto que entre em conflito com disposição absoluta de lei. Por
essa última pode-se entender norma de ordem pública. Esse é o comando
legal que limita a autonomia privada do pacto, reconhecendo a função
social do pacto antenupcial. Isso, porque pode ser traçado um paralelo

44 AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Algumas Reflexões sobre o planejamento sucessório: a escolha de algumas
veredas pode não levar à terra prometida. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Belo
Horizonte: Fórum, 2021. tomo II. p. 376.
45 AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Algumas Reflexões sobre o planejamento sucessório: a escolha de algumas
veredas pode não levar à terra prometida. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Belo
Horizonte: Fórum, 2021. tomo II. p. 380-381.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
100

entre esse dispositivo e o art. 421 do CC que limita a autonomia contratual


para os contratos em geral. Portanto, a eficácia social da primeira norma é
indiscutível (...). A título de exemplo de incidência do art. 1.655 do CC,
serão nulas as seguintes cláusulas constantes do pacto antenupcial, por
violarem preceitos absolutos de lei, ou seja, normas de ordem pública: (...)
É totalmente nula a cláusula do pacto antenupcial que estabeleça renúncia
prévia à herança, por constituir pacto sucessório ou pacta corvina, nos termos
do art. 426 do Código Civil. A renúncia à herança somente pode ocorrer
após o falecimento, e desde que preenchidos os requisitos dos arts. 1.806
e seguintes da própria codificação privada.”46

Em que se pese minoritária doutrina em sentido contrário, no que con-


cerne a jurisprudência, esta faz voz uníssona com a doutrina majoritária, que
defende a impossibilidade de renúncia antecipada à concorrência sucessória,
a exemplo do Recurso Especial 1.142.945/RJ, julgado pela Terceira Turma do
Superior Tribunal de Justiça47.
Portanto, dispor sobre a possibilidade de renúncia antecipada dos
companheiros representa uma ordem bastante arrojada, já que atualmente
doutrina e jurisprudência majoritária entendem que não é possível, tanto para
o matrimônio quanto para a união estável, por violar frontalmente os arts. 426
e 1.808 do Código Civil, inclusive entendendo que sequer por interpretação
pode ser inserida tal possibilidade no ordenamento jurídico brasileiro. O
assunto demanda alteração legislativa direta.
Desse modo, tem-se mais um dispositivo que, apesar da louvável previ-
são, visando corrigir a incoerência existente entre o regime jurídico sucessório
vigente e a dinâmica e valores sociais atuais, na realidade propaga afronta
direta a dispositivos legais, gerando por isso nada mais do que o incremento
das instabilidades já existentes na ordem jurídica do dia.

Conclusão
A união estável consiste em uma das mais antigas relações de conju-
galidade, e de ampla existência, já que a indissolubilidade do casamento e a
possibilidade de dissolução da sociedade conjugal fazia com que os consortes,

46 TARTUCE, Flávio. Direito civil: direito de família. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. v. 5. p. 193-194.
47 “RECURSO ESPECIAL. DIREITO DAS SUCESSÕES. INVENTÁRIO E PARTILHA. REGIME DE BENS.
SEPARAÇÃO CONVENCIONAL. PACTO ANTENUPCIAL POR ESCRITURA PÚBLICA. CÔNJUGE SO-
BREVIVENTE. CONCORRÊNCIA NA SUCESSÃO HEREDITÁRIA COM DESCENDENTES. CONDIÇÃO
DE HERDEIRO. RECONHECIMENTO. EXEGESE DO ART. 1.829, I, DO CC⁄02. AVANÇO NO CAMPO
SUCESSÓRIO DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL.”
(STJ, REsp 1.142.945/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 07.10.2014)
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 101

de forma imposta, vivessem em relação fática, integralmente excluída da


tutela do Estado.
Dada a profunda injustiça contida neste exílio, por pressão social aos
poucos tal relação de conjugalidade foi sendo incluída no sistema jurídico
brasileiro, inicialmente por meio de atos normativos isolados, emanados do
Poder Executivo e do Poder Judiciário, culminando em reconhecimento
constitucional como entidade familiar em 1988, com a promulgação da atual
Carta Magna em vigência.
O ápice da ampliação da cognição da união estável ocorreu em 2011,
quando foi admitida expressamente pelo Poder Judiciário, em caráter vincu-
lante, a possibilidade de reconhecimento de união estável entre pessoas do
mesmo sexo, e a sua consequente conversão em casamento, e, posteriormente,
a possibilidade de casamento direto.
Apesar da airosa trajetória, hoje a união estável transbordou, passando
a representar tormento na vida dos parceiros, que querem se relacionar, mas
não desejam constituir relação de conjugalidade, muito menos sofrer os efeitos
patrimoniais destas decorrentes.
A gênese de tal tormenta acontece já na caracterização da união estável,
onde por ser majoritariamente considerada ato-fato jurídico, sua consubstan-
ciação está relacionada à aparência da relação no mundo externo, e não na von-
tade íntima dos consortes, o que torna o instituto dotado de um significativo
e indesejado “efeito surpresa”, os quais os envolvidos tentam livrar-se através
da confecção de contratos de namoro ou de coparentalidade, por exemplo,
admitidos atualmente, no máximo, como elemento de prova.
Em vista a esta dinâmica atual, incrementando ainda mais os efeitos
indesejados aos consortes, estão os efeitos patrimoniais gerados pela irretro-
atividade do regime de bens, e pela concorrência sucessória.
No que concerne à irretroatividade do regime de bens, doutrina e
jurisprudência majoritárias a defendem, com base no princípio individual
fundamental constitucional do direito adquirido. Tal disposição incrementa o
“efeito surpresa” da relação, uma vez que não se sabe ao certo se a aparência da
relação é de união estável, tudo depende do sentir da coletividade. E, se assim
for, os efeitos serão do regime de bens legal, já que a disposição contratual
somente incidirá a partir da lavratura do contrato de convivência. Logicamente
é desejo social mitigar tais efeitos. No entanto, tal elã não é acolhido pelo
entendimento doutrinário majoritário e jurisprudência atual.
Por fim, quanto à sucessão, a equiparação do regime sucessório dos
companheiros aos dos cônjuges, trouxe com ela todas as inconsistências fáti-
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
102

cas existentes no âmbito do casamento, que concedeu direitos permanentes


ao cônjuge, em tempos de dissolubilidade plena e fugacidade das relações.
Nesse contexto, não há dúvida de que os anseios sociais são no sentido
de mitigar a intensidade dos direitos sucessórios concedidos pelo Código
Civil à conjugalidade, especialmente considerando as múltiplas e temporárias
núpcias e relações fáticas ao longo do tempo; através de institutos como a
renúncia antecipada da concorrência sucessória do cônjuge/companheiro.
Embora absolutamente legítimos tais anseios, atualmente doutrina e
jurisprudência majoritárias não a admitem, com base nos arts. 426 e 1.808
do Código Civil, normas de ordem pública, o que faz com que a possibili-
dade de tal instituto sequer possa ocorrer de lege lata, mas demande alteração
legislativa.
Desse modo, verifica-se que, apesar de o caput, §§ 1º e 3º, do art. 390
do Provimento nº 87/2022 da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro prever a possibilidade de disposição de questões existências,
de retroatividade do regime de separação absoluta de bens e da renúncia
antecipada da concorrência sucessória nos contratos de convivência, tais
previsões não se coadunam com o atual regramento e posicionamento do
sistema jurídico brasileiro.
Portanto, o provimento em referência de fato representa de modo
genuíno os anseios sociais. Contudo, em decorrência de seu distanciamento
em relação às atuais diretrizes do ordenamento jurídico brasileiro, contêm
alta possibilidade de declaração de nulidade/ineficácia, o que os torna por isso,
apenas agravantes das instabilidades já vividas pela união estável. A torcida é
para que tal provimento represente pelo menos o prelúdio de novos tempos
e sítio de consideração da expressão e notoriedade dos anseios sociais, fun-
cionando como um verdadeiro agente de mudanças.

TITLE: Section 390 of New General Judicial Council Complaint of Rio de Janeiro State Court Clause
Code – Appointment no. 87/2022: genuine expression of social yearnings, without the necessary norma-
tive power: an agent of change or just an aggravating factors of instabilities?

ABSTRACT: This study analyzes the provisions contained in the caput, first and third paragraphs of Sec-
tion 390 of Appointment nº 87/2022 of the General Judicial Council Complaint of Rio de Janeiro State
Court, which brings the possibility of disposition of existential issues, retroactivity of separation prop-
erty system and early waiver the concurrence will in the cohabitation agreement. With this objective, it
makes a brief analysis of the evolution of the legal relief of consensual marriage. After that, it verifies the
current context, notably the instability contained in consensual marriage existence, given its nature as a
legal act-fact, and the impossibility of mitigating its property effects, both during life, when the property
system’s irretroactivity prevails, and after death, when the impossibility of early wiaver the concurrence
will prevails, thus demonstrating that, although the appointment in question genuinely represents social
desires, it is not compatible with the current norms, doctrine, and majority jurisprudence, thus bringing
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 103

with it a high potential nullity/ineffectiveness declaration, which only ends up aggravating the already
unstable institution of the consensual marriage.

KEYWORDS: CGJ Appontment nº 87/2022. TJRJ. Consensual Marriage. Social Desires. Cohabitation
Agreement. Instability.

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TEPEDINO, Gustavo; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Fundamentos do direito civil: direito de família.
3. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2022. v. 6.
XAVIER, Marília Pedroso. Contrato de namoro: amor líquido e direito de família mínimo. 2. ed. Belo
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XAVIER, Marília Pedroso. O contrato de namoro como instrumento de planejamento sucessório. In:
TEIXEIRA, Daniele Chaves. Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2022. tomo III.

Recebido em: 03.02.2023


Aprovado em: 16.02.2023
Doutrina

Nem Isso, Nem Aquilo. Art. 1.698 do


Código Civil como Modalidade Especial e
Autônoma de Intervenção de Terceiros

Augusto Passamani Bufulin


Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP); Professor concursado de
Direito Civil do Departamento de Direito da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES); Juiz de Direito do
Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES);
e-mail: augustopassamani@terra.com.br.

Schamyr Pancieri Vermelho


Mestranda em Direito Processual Civil pela Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES); Especialista em Direito
das Famílias e das Sucessões pela Escola Paulista de Direito
(EPD); Advogada; e-mail: schamyrp@gmail.com.

RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade discutir a modalidade de


intervenção de terceiros introduzida de forma excepcional no art. 1.698 do Có-
digo Civil, que trata sobre a possibilidade de chamar os parentes para integrarem
a lide. Apesar de reconhecer a existência de diversas interpretações do art. 1.698
do Código Civil, defendeu-se no presente trabalho que tanto o chamamento
ao processo previsto nos arts. 130 a 132 do Código de Processo Civil quanto a
denunciação da lide prevista nos arts. 125 a 129 do Código de Processo Civil
são incompatíveis com o conteúdo e finalidade do art. 1.698 do Código Civil.
Chegou-se à conclusão de que o referido artigo traz uma nova e especial modali-
dade de intervenção de terceiros que não encontra correspondência no Código de
Processo Civil, surgindo, então, a necessidade de estabelecer alguns parâmetros
de aplicação dessa espécie de intervenção nos processos de alimentos. Para o
desenvolvimento da pesquisa foi utilizado o método dialético.

PALAVRAS-CHAVE: Intervenção de Terceiros. Alimentos. Obrigação. Divi-


sibilidade.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Obrigação Alimentar e suas Especificidades. 3


Responsável Primário e Subsidiário. 4 Intervenção de Terceiro; 4.1 Chamamen-
to ao Processo; 4.2 Denunciação da Lide. 5 Intervenção de Terceiros Especial
Prevista no Art. 1.698 do Código Civil. 6 Considerações Finais. 7 Referências
Bibliográficas.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 105

1 Introdução
A obrigação alimentar é pautada em relação de parentesco e possui
respaldo constitucional nos princípios da dignidade da pessoa humana e
solidariedade familiar. Essa obrigação tem por objetivo a subsistência de um
indivíduo que ainda não pode provê-la pelo próprio trabalho.
Sabendo da relevância do instituto dos alimentos para a garantia de uma
vida digna é que o ordenamento jurídico brasileiro cria formas de viabilizar
a eficácia do direito quando há uma insuficiência no acionamento dos pa-
rentes mais próximos do alimentando, que são legalmente instituídos como
responsáveis primários.
Diante da insuficiência de recursos dos responsáveis primários, surge
a necessidade de buscar assistência em parentes mais remotos. Para isso, o
Código Civil de 2002 inovou ao trazer no art. 1.698 a possibilidade de in-
cluir no processo os parentes de grau imediato, na medida de sua capacidade
econômica.
Ocorre que, o referido artigo diz apenas que os demais devedores
poderão ser chamados a integrar a lide, sem especificar qual é a modalidade
dessa intervenção de terceiros e quem deverá providenciar o “chamamento”.
Tais questionamentos serão discutidos no desenvolvimento do presente tra-
balho, juntamente com o momento processual adequado para provocar essa
intervenção.
Para tanto, primeiro será discutido acerca das obrigações alimentares
quem são os responsáveis pelo cumprimento. Em seguida, será analisado o
conceito de intervenção de terceiros e algumas espécies típicas previstas no
Código de Processo Civil, com o intuito de comparar com a modalidade
prevista no art. 1.698 do CC/02. Por fim, serão estabelecidas algumas regras
para o processamento da intervenção de terceiro especial, considerando a
lacuna existente sobre o tema.
O uso do método em uma pesquisa científica é fundamental para a
verificabilidade do resultado atingido, é o método que permite ao pesquisador,
por meio do uso de procedimentos e de técnicas, chegar a um determinado
conhecimento (GIL, 1999, p. 26-27).
Assim, dentre os vários métodos disponíveis para se realizar uma pes-
quisa científica na área jurídica, opta-se no presente trabalho pelo método
dialético, que se desenvolve a partir de uma tríade formada por uma tese, uma
antitese e uma síntese (POPPER, 1940, p. 404).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
106

2 Obrigação Alimentar e suas Especificidades


A obrigação alimentar funda-se em uma relação de assistência e so-
lidariedade desenvolvida dentro do seio familiar, sendo que o seu cumpri-
mento interessa não somente aos sujeitos da obrigação, mas a toda sociedade
(BEVILÁQUA, 1977, p. 862). O referido instituto está previsto no art. 1.694
do CC/02, que diz que “Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros
pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo
compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades
de sua educação”.
Em complemento está o art. 1.695 do CC/02, que estabelece que “São
devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes,
nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem
se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento”.
Nota-se, portanto, que os alimentos têm por objetivo prestar assistência
para aqueles inseridos em uma relação familiar, que ainda não podem prover
o seu próprio sustento, para que possam arcar com as despesas básicas de uma
vida digna, tais como alimentação, moradia, saúde, educação, dentre outras
necessidades básicas do ser humano.
A obrigação alimentar observa o binômio da necessidade do credor e
da possibilidade do devedor, na medida em que o cumprimento da obrigação
não pode causar prejuízos ao sustento de quem paga, nem ser insuficiente às
necessidades de quem recebe. Além disso, na análise do quantum debeatur não é
possível deixar de lado o princípio da razoabilidade, como forma de evitar um
enriquecimento sem causa (TARTUCE, 2017, p. 320), constituindo a existên-
cia de um trinômio formado pela necessidade, possibilidade e razoabilidade,
balizador da fixação do quantum na obrigação alimentar (LÔBO, 2008, p. 350).
Devido à natureza e à destinação deste tipo de obrigação, é possível
observar algumas características específicas, tais como a irrepetibilidade, im-
penhorabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade regulada pelo art.
1.707 do CC/02.
Além da irrepetibilidade dos alimentos, ou seja, que não podem ser
objeto de restituição (SCHREIBER, 2018, p. 918) importante lembrar que
“o direito de alimentos é imprescritível, alcançando a prescrição, apenas, as
respectivas parcelas, ou seja, não existe prescrição nuclear ou de fundo de
direito, mas, somente, a prescrição parcelar” (DUARTE, 2010, p. 162).
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 107

Outra importante característica dos alimentos diz respeito a sua divi-


sibilidade, que impede ao credor de receber a prestação por inteiro, quando
existirem outros responsáveis diretos pelo cumprimento da obrigação, como
ocorre, por exemplo, nos casos de multiparentalidade. Havendo a filiação
socioafetiva, o filho “terá que promover a ação de alimentos contra o pai
biológico e o pai socioafetivo, fazendo vínculo com ambos e condições iguais
em prestar alimentos” (TARTUCE, 2021, p. 647).
Esse entendimento leva em consideração o fato de que, em regra, ha-
vendo mais de um devedor em obrigação divisível, esta presume-se dividida
em tantas obrigações, iguais e distintas, quantos devedores existirem, tal como
previsto no art. 258 do CC/02.
A exceção ocorre nos casos em que o alimentado for idoso, “hipótese
em que a própria lei estabelece que a obrigação é solidária, cabendo ao idoso
optar entre os prestadores (Lei nº 10.741/03, art. 12)” (DINIZ, 2007, p. 138).
Observa-se, que nesse caso, a solidariedade é estabelecida pela lei, o que não
pode ser estendido a outras espécies de obrigação alimentar, visto que a soli-
dariedade não se presume, conforme consta no art. 265 do CC/02.
Feitas essas considerações acerca das características da obrigação ali-
mentar, agora resta entender quem são os possíveis responsáveis pelo cum-
primento dessa obrigação e como eles podem ser invocados a participar de
uma ação de alimentos.

3 Responsável Primário e Subsidiário


Considerando o disposto no art. 1.696 do CC/02, que diz que “O direito
à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os
ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta
de outros”, é possível concluir pela existência de uma “ordem de preferência”
na responsabilidade de prestar os alimentos.
Como responsáveis primários pelo cumprimento da obrigação alimen-
tar, temos os pais em relação aos filhos, e os filhos em relação aos pais. Im-
portante mencionar que no caso de filhos menores e incapazes, por exemplo,
caso os pais não estejam vivos, ou apesar de vivos, não tenham condições de
prover o sustento do menor, é permitido o “chamamento” dos parentes de
grau mais próximo, como, por exemplo, os avós.
Apesar de existir o dever dos avós, como parentes de grau mais pró-
ximo, de prestarem alimentos aos netos é preciso lembrar que essa é uma
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
108

responsabilidade subsidiária. Isso significa dizer que os avós somente serão


obrigados a cumprir com a obrigação alimentar, se restar comprovado que os
pais, como responsáveis primários, já foram acionados, e comprovadamente
não possuem condições de suportar a obrigação.
Esse entendimento firmado na IV Jornada de Direito Civil, com a
redação do Enunciado nº 342 do CJF/STJ da seguinte forma: “Observadas
suas condições pessoais e sociais, os avós somente serão obrigados a prestar
alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não
solidário quando os pais destes estiverem impossibilitados de fazê-lo, caso em
que as necessidades básicas dos alimentandos serão aferidas, prioritariamente,
segundo o nível econômico-financeiro de seus genitores” e sumulado pelo
Superior Tribunal de Justiça (Súmula nº 596 da Corte).
Nota-se, portanto, que sendo a obrigação não solidária, não exclusiva e
subsidiária, existindo mais de um dos avós obrigados a prestar os alimentos,
maternos e paternos, por exemplo, todos devem concorrer na proporção dos
respectivos recursos financeiros, podendo, caso a ação tenha sido interposta
em desfavor de somente um deles, ocorrer um “chamamento para integração
da lide”.
No entanto, sobre essa hipótese de intervenção de terceiros, prevista
no art. 1.698 do CC/02 e sem correspondência no Código de Processo Civil,
surgem algumas questões de ordem prática, que serão tratadas no presente
artigo.

4 Intervenção de Terceiro
As partes integram o processo civil como “sujeitos interessados da
relação processual, ou os sujeitos do contraditório instituído perante o juiz”
(DINAMARCO, 2009, p. 246). O interesse na relação processual se justifica
na medida em que esses sujeitos estão defendendo alguma pretensão jurídica
por meio dos atos processuais, para ao final receberem a tutela jurisdicional do
Estado juiz. Segundo Dinamarco (2009, p. 246), elas “participam dos combates
inerentes a este e beneficiar-se-ão com os seus efeitos substanciais diretos ou
indiretos, ou os suportarão: a tutela jurisdicional a ser concedida endereçar-
se-á a uma das partes impondo-se à outra o sacrifício de uma pretensão”.
Fato é que o processo lida com uma variedade de relações jurídicas,
sendo que em alguns casos um ato processual pode acabar atingindo esfera
jurídica de sujeito que inicialmente não integra a lide como parte, mas que
eventualmente tenha algum interesse jurídico no desfecho daquela demanda,
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 109

como acontece no caso dos parentes de grau mais próximo que podem ser
chamados a integrar a lide tal como previsto no art. 1.698 do CC/02.
Diante do exposto, não restam dúvidas de que o artigo supracitado
trata de uma das hipóteses de intervenção de terceiros, como um instrumento
processual legalmente previsto, que possibilita àqueles que inicialmente não
integram a relação processual como parte, a participarem do processo, desde
que demonstrado o seu interesse jurídico no desenvolvimento do processo.
“Trata-se de ato jurídico processual pelo qual um terceiro, autorizado por lei,
ingressa em processo pendente, transformando-se em parte” (DIDIER Jr.,
2015, p. 476).
No entanto, é preciso saber se a intervenção de terceiro de que trata o
art. 1.698 do CC/02 se trata de uma hipótese autônoma e especial de interven-
ção de terceiros ou se enquadra na hipótese típica de intervenção de terceiros
prevista no Código de Processo Civil?

4.1 Chamamento ao Processo


O chamamento ao processo é uma das espécies do gênero intervenção
de terceiros prevista nos arts. 130 a 132 do Código de Processo Civil em
que “(...) o réu, quando trazido ao processo como alegado devedor por uma
obrigação solidária, pede que outro devedor solidário seja integrado ao polo
passivo da relação processual, objetivando que a condenação também o atinja”
(DINAMARCO, 2017, p. 231).
O chamamento ao processo é uma modalidade de intervenção criada em
benefício do réu, uma vez que amplia a possibilidade de defesa dos devedores
solidários. No entanto, para que seja aplicada devem ser observados alguns
requisitos, quais sejam: i) só pode ser utilizada pelo réu; ii) deve ser suscitada
em contestação (processo de conhecimento); e iii) aplica-se somente aos casos
de solidariedade entre o chamante e o chamado (DIDIER Jr., 2016, p. 515).
Apesar de ser um importante instrumento de intervenção de terceiros,
o chamamento ao processo foi alvo de duras críticas por conta do seu aparente
descompasso com o direito material. Isso, porque, em se tratando de obri-
gações solidárias, é direito do credor exigir toda a dívida de somente um dos
devedores, conforme consta no art. 275 do CC/02, o que é completamente
ignorado pelo instrumento do chamamento ao processo.
Esse benefício ao réu conferido pelo Código de Processo Civil permite
que ele traga ao processo devedor inicialmente dispensado pelo credor, impon-
do ao credor o prosseguimento do processo em face de sujeito inicialmente
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
110

dispensado. Nas palavras de Barbosa Moreira, o chamamento ao processo


“desfigura o instituto da solidariedade passiva, criado pelo direito substantivo
em benefício do credor” (MOREIRA, 1974, p. 89). O litisconsórcio que se
forma com o chamamento ao processo é passivo, facultativo e ulterior, po-
dendo ser “unitário ou simples a depender da indivisibilidade do bem objeto
da obrigação” (DIDIER Jr., 2016, p. 516).
Feitas tais considerações sobre o chamamento ao processo, é possível
concluir que apesar de estar escrito no art. 1.698 do CC/02 que “sendo várias
as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção
dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais
ser chamadas a integrar a lide”, onde está escrito “chamadas” não significa
dizer que integrarão o processo por meio do chamamento ao processo.
Como apresentado, o chamamento ao processo tem hipóteses espe-
cíficas de cabimento e admissibilidade, que não podem ser preenchidas no
contexto da obrigação alimentar devida pelos responsáveis subsidiários. Isso,
porque o chamamento ao processo tem cabimento restrito aos: i) casos de
obrigações solidárias, o que não ocorre na obrigação alimentar, visto que é
obrigação divisível; ii) benefício do réu, o que também não está presente no
art. 1.698 do CC/02, visto que é norma criada em benefício do alimentado
(credor); iii) Utilizada pelo réu em contestação, o que também não está pre-
sente no art. 1.698 do Código Civil, visto que pode ser requerido pelo autor
após a contestação.
Por tais razões, conclui-se pela incompatibilidade do chamamento ao
processo previsto nos arts. 130 a 132 do Código de Processo Civil, com a
modalidade de intervenção de terceiros prevista no art. 1.698 do CC/02.
No entanto, diferentemente do que sustenta o presente trabalho, vale a
pena trazer o posicionamento do ilustre doutrinador Cassio Scarpinella Bueno,
que trabalha com a possibilidade de aplicação da técnica do chamamento ao
processo para incluir os responsáveis subsidiários na ação de alimentos por
meio de uma extensão da regra solidariedade da obrigação (BUENO, In:
DIDIER Jr.; WAMBIER, 2004, p. 83-84).

“O que penso possível – e desejável, à luz do direito material – fazer é am-


pliar o termo ‘solidariedade’ empregado no inciso III do art. 77 do Código
de Processo Civil para nele admitir, pelo menos na hipótese a que aqui
me refiro, também o chamamento de devedores comuns. Além de não ver
qualquer prejuízo para o processo – muito menos para o autor, principal
interessado em ampliar a possibilidade concreta da efetivação da tutela ju-
risdicional a seu favor – as diversas obrigações alimentares manifestam-se
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 111

de forma bastante próxima à solidariedade.” (BUENO, In: DIDIER Jr.;


WAMBIER, 2004, p. 85-86)

Com o devido respeito ao brilhante jurista, tal posicionamento não


merece prosperar por dois motivos. O primeiro deles é que o termo solida-
riedade não pode ser ampliado, visto que esta não se presume (art. 265 do
Código Civil), deve estar prevista em lei ou decorrer da vontade das partes, o
que não se observa no presente caso. O segundo motivo consiste na incompa-
tibilidade técnica do chamamento ao processo com a intervenção de terceiros
especial do art. 1.698 do CC/02, conforme fora devidamente demonstrado
no presente tópico.

4.2 Denunciação da Lide


A denunciação da lide é uma das espécies do gênero intervenção de
terceiros prevista nos arts. 125 a 129 do Código de Processo Civil em que o
réu traz para o processo alguém que tem com ele uma relação jurídica ma-
terial que lhe confere direito de regresso, sem que exista relação jurídica do
denunciado com o autor da ação (DINAMARCO, 2002, p. 145).
Em outras palavras, a denunciação da lide consiste em inclusão de um
terceiro no processo “por força de garantia prestada, ou em razão de direito
regressivo existente em face dessa pessoa; aproveita-se o denunciante do
mesmo processo para exercer a ação de garantia ou a ação de regresso em face
do denunciado” (DIDIER Jr., 2016, p. 501).
Partindo desses conceitos, doutrinadores como Renan Lotufo (2001, p.
70-79) tentam aproximar a denunciação da lide com a modalidade de inter-
venção de terceiro inserida como novidade no art. 1.698 do CC/02, como se
observa com a seguinte argumentação apresentada pelo referido doutrinador:

“A alteração implica em tornar a obrigação solidária entre os de grau


sucessivo, remanescendo com o autor o direito de escolha contra quem
direcionar o pedido, facultando ao ‘eleito’ o direito regressivo, mediante
denunciação à lide.”

No entanto, tal interpretação não deve prosperar. Ao analisar o conceito


da denunciação da lide, é possível concluir que não há como aproximar o art.
1.698 do CC/02 da denunciação prevista no Código de Processo Civil por
uma incompatibilidade técnica entre as espécies de intervenção justificada
principalmente por dois motivos.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
112

Primeiro, porque no caso do art. 1.698 do CC/02, o “terceiro convoca-


do para o processo mantém relação jurídica de direito material com o autor
da ação, pois a lei lhe atribuiu a responsabilidade (subsidiária) por prover
alimentos a ele” (CARNEIRO, 2018, p. 109), o que não pode ocorrer nos
casos de denunciação da lide. Segundo, porque não existe ação de regresso
do réu primário da ação de alimentos contra o parente que passa a integrar a
lide (GAJARDONI, 2008, p. 77), o que também é um dos requisitos para a
caracterização da denunciação da lide.

5 Intervenção de Terceiros Especial Prevista no Art. 1.698 do


Código Civil
Estabelece o art. 1.698 do Código Civil que “Se o parente, que deve
alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente
o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as
pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos
respectivos recursos e, intentada a ação contra uma delas, poderão as demais
ser chamadas a integrar a lide”.
Apesar da tentativa de alguns juristas, em aproximar a modalidade de
intervenção trazida pelo art. 1.698 do Código Civil da denunciação da lide e do
chamamento ao processo, não há nenhuma possibilidade de estabelecer uma
interface entre os institutos por uma incompatibilidade técnica. Nesse mesmo
sentido sustenta o professor Fredie Didier Jr. que: “Se não há possibilidade de
direito de regresso, não se pode falar nem de denunciação da lide, que o tem
como pressuposto fundamental, nem de chamamento ao processo. Se não
há solidariedade, também por isso a alusão ao chamamento não se justifica”
(DIDIER Jr., 2016, p. 544).
Conclui-se, portanto, que a melhor interpretação ao art. 1.698 do CC/02
é aquela que respeita a finalidade da norma, reconhecendo-o como uma espécie
especial ou sui generis de intervenção de terceiros. Em se tratando de norma
material sem correspondência no Código de Processo Civil, resta saber como
se processa a referida intervenção de terceiros especial nas ações de alimentos.
Para tanto, o primeiro ponto a ser analisado diz respeito à legitimida-
de para provocar a intervenção de terceiro especial. Seria esta somente uma
prerrogativa do autor (alimentando) ou também uma prerrogativa defensiva
do réu (alimentante)?
O art. 1.698 do Código Civil diz apenas que os demais devedores pode-
rão ser chamados a integrar a lide, sem especificar quem deverá providenciar
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 113

o “chamamento”. Para os professores Rodrigo Mazzei (2009, p. 223-246) e


Fredie Didier Jr. (2016, p. 545), a inclusão, ou “chamamento” dos responsáveis
subsidiários para a participação da ação de alimentos seria uma prerrogativa
exclusiva do autor, formando assim um litisconsórcio passivo facultativo e
ulterior. Nesse sentido afirma Didier Jr. que:

“Não se poderia imaginar que o réu (devedor comum inicialmente citado)


pudesse trazer ao processo um terceiro em face de quem o autor deveria
propor a demanda. É uma situação, no mínimo, esdrúxula: o réu seria
substituto processual do autor, adiantando a petição inicial, mesmo contra
a sua vontade.” (DIDIER Jr., 2016, p. 545)

No entanto, para melhor entender o momento da intervenção, deve-se


dividir o art. 1.698 do CC/02 em duas partes. A primeira delas diz o seguinte:
“Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em con-
dições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de
grau imediato”.
A título de exemplo, imagine-se que um filho pede alimentos ao genitor
na importância de R$ 1.000,00 (mil reais), considerando as suas necessidades
e no processo o genitor prova que somente tem condições de arcar com R$
500,00 (quinhentos reais). Nesse caso, poderiam os avós (parentes de grau
imediato) serem incluídos no processo para complementar a pensão a pedido
do autor, sendo essa a primeira forma de intervenção.
Ocorre que, pela lógica do processo de alimentos, não parece ser possí-
vel essa primeira intervenção ser requerida pelo réu. Primeiro, porque apesar
dos alimentos serem irrenunciáveis, é uma escolha do autor o exercício desse
direito, ou não, tal como estabelece o art. 1.707 do CC/02.
Nesse sentido, não parece lógico e compatível com o instituto dos
alimentos permitir ao genitor, que nesse exemplo é o responsável primário e
integral, que escolha exercer um direito que não é dele, redirecionando o valor
complementar da pensão para o parente de grau mais próximo por iniciativa
própria. Por essa razão, nesta parte inicial do art. 1.698 do CC/02, conclui-se
que quem pode invocar a inclusão deste terceiro no processo é apenas o autor,
não o réu (TARTUCE, 2018, p. 245).
Já a segunda parte do art. 1.698 do CC/02 diz que: “sendo várias as pes-
soas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos
respectivos recursos e, intentada a ação contra uma delas, poderão as demais
ser chamadas a integrar a lide”, se tratando de integração de terceiros que
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
114

possuem responsabilidade concorrente à do réu originário (GAJARDONI,


2008, p. 79).
Supondo que uma ação de alimentos foi proposta em face de um avô
paterno, o que a segunda parte do art. 1.698 do CC/02 garante é que existindo
outros avós vivos, todos devem concorrer na proporção dos seus respectivos
recursos financeiros. Nota-se, portanto, que nesse caso há um interesse de-
fensivo do réu em convocar esse terceiro para integração da lide.
Isso, porque, caso esse terceiro não exista (se for o único parente em
grau mais direto vivo), a responsabilidade alimentar vai ser assumida inte-
gralmente por um único sujeito, na medida de sua capacidade econômica.
No entanto, se houver outros coobrigados, a responsabilidade será dividida
gerando um benefício tanto para o autor quanto para o réu, o que justificaria
a intervenção de terceiro ser provocada tanto pelo autor quanto pelo réu.
Nesse mesmo sentido está o posicionamento de Cristiano Chaves e Nelson
Rosenvald (2016, p. 719):

“De um lado, a presença dos demais coobrigados interessa, particularmente,


ao acionado (o alimentante), permitindo uma melhor aferição da situação
jurídica de cada um deles e, por conseguinte, facilitando a fixação do quan-
tum que tocará a cada um para atender às necessidades do alimentando. Mas
não é só. Essa convocação é positiva ‘também para o alimentando, autor da
ação’, pois será ampliado o objeto cognitivo da demanda, podendo resultar,
no final, em um leque maior de possibilidades para o próprio beneficiário
da pensão.” (FARIAS; ROSENVALD, 2016, p. 719)

Por essa razão, nessa segunda parte do art. 1.698 do CC/02 é possível
defender que a provocação da intervenção venha tanto do autor quanto do
réu. Assim está a redação do Enunciado nº 523 das Jornadas de Direito Civil
do Conselho da Justiça Federal: o “chamamento dos codevedores para inte-
grar a lide, na forma do art. 1.698 do Código Civil, pode ser requerido por
qualquer das partes, bem como pelo Ministério Público, quando legitimado”.
Sobre o momento processual adequado para providenciar a intervenção
de terceiros que trata o art. 1.698 do CC/02, por uma necessidade de estabili-
zação objetiva e subjetiva do processo, seria permitido ao autor até a réplica e
ao réu em contestação, ou até o saneamento do processo (DIDIER Jr., 2016,
p. 547) (fase cognitiva).
Em fase de execução não é possível promover esse tipo de intervenção
de terceiros, uma vez que já existe um título executivo (judicial ou extraju-
dicial) devidamente constituído, sem a participação desse terceiro que pode
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 115

ser responsabilizado, sem ao menos ter a oportunidade de demonstrar a sua


capacidade financeira. Tal permissão violaria uma série de garantias processuais
inegociáveis, tais como a garantia da ampla defesa, contraditório e devido
processo legal.

6 Considerações Finais
Apesar da tentativa de alguns juristas, em aproximar a modalidade de
intervenção trazida pelo art. 1.698 do Código Civil da denunciação da lide e
do chamamento ao processo, não há nenhuma possibilidade de estabelecer
uma interface entre os institutos por uma incompatibilidade técnica.
Conclui-se, portanto, que a melhor interpretação ao art. 1.698 do
CC/02 é aquela que respeita a finalidade da norma, reconhecendo-o como
uma espécie especial ou sui generis de intervenção de terceiros prevista no
Código Civil. Ocorre que, o referido artigo se limitou a dizer que os demais
devedores poderão ser chamados a integrar a lide, sem especificar quem deverá
providenciar o “chamamento”.
Assim, para responder acerca da legitimidade para provocar a inter-
venção de terceiro do art. 1.698 do CC/02 é preciso dividir o artigo em duas
partes, sendo que a primeira delas estabelece que “Se o parente, que deve
alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente
o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato”.
Nesse primeiro momento, concluiu-se que nesta parte inicial do art.
1.698 do CC/02, quem pode invocar a inclusão deste terceiro no processo é
apenas o autor, uma vez que não seria compatível com o instituto dos alimentos
permitir que o réu escolha exercer um direito que não é dele, redirecionando
o valor complementar da pensão para o parente de grau mais próximo por
iniciativa própria.
Na segunda parte do referido artigo, que determina que: “sendo várias
as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na propor-
ção dos respectivos recursos e, intentada a ação contra uma delas, poderão as
demais ser chamadas a integrar a lide” a conclusão não foi a mesma.
Isso, porque, nesse segundo caso, a participação dos coobrigados inte-
ressa juridicamente tanto ao autor, que será beneficiado com o cumprimento
da obrigação de pagar alimentos, quanto ao réu, que poderá dividir a obrigação
com outro coobrigado.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
116

Sobre o momento da intervenção, conclui-se que só pode ser admitida


até o saneamento do processo, por uma necessidade de estabilização da lide.

TITLE: Neither this nor that. Article 1698 of Civil Code as a special and autonomous modality of third-
party intervention.

ABSTRACT: The purpose of this paper is to discuss the modality of third-party intervention introduced
exceptionally in article 1698 of the Civil Code, which deals with the possibility of calling relatives to join
the dispute. Despite recognizing the existence of different interpretations of article 1698 of the Civil Code,
it was defended in the present work that both the call to the process provided for in articles 130 to 132 of
the Code of Civil Procedure, and the denunciation of the dispute provided for in articles 125 to 129 of
the Code of Civil Procedure are incompatible with the content and purpose of article 1698 of the Civil
Code. It was concluded that the aforementioned article brings a new and special modality of intervention
by third parties that does not find correspondence in the Code of Civil Procedure, thus arising the need
to establish some parameters for the application of this type of intervention in the maintenance processes.
For the development of the research, the dialectical method was used.

KEYWORDS: Third-Party Intervention. Alimony. Obligation. Divisibility.

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Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 117

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Recebido em: 02.12.2022


Aprovado em: 28.01.2023
Doutrina

Da Monogamia à Boa-Fé Objetiva:


Breves Considerações para o
Reconhecimento das Uniões Familiares
Poliamorosas

Aloísio Alencar Bolwerk


Doutor em Direito Privado (com Distinção Magna Cum Laude)
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Mestre
em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana
de Santos; Professor Adjunto da Fundação Universidade Federal
do Tocantins; Pós-Graduado em Direito Público; Graduado
em Direito; Professor Permanente do Programa de Mestrado
Profissional em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da
UFT/ESMAT; Advogado; e-mail: bolwerk@mail.uft.edu.br.

Layssa Gabrielly B. Garcia Ramos


Graduada em Direito pela Universidade Federal do Tocantins;
e-mail: layssa.gabrielly@uft.edu.br.

RESUMO: O artigo fez análise da boa-fé objetiva como elemento constitutivo


das uniões poliamorosas enquanto formatações familiares. A partir de inter-
pretação aberta das normas do Direito de Família, o texto traça reflexão sobre o
exercício da autonomia, em especial a autonomia da vontade, além de abordar
crítica ao paradigma monogâmico e sua correspondente mitigação. O estudo
empregou método de abordagem indutivo, de caráter exploratório e bibliográfico.
Com o desenvolvimento da pesquisa foi possível concluir que a hermenêutica
civil, por meio da recepção dos princípios da boa-fé objetiva, pluralismo familiar,
autonomia, liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana é suficiente
para interpretar e endossar o reconhecimento das uniões poliamorosas como
entidades familiares.

PALAVRAS-CHAVE: Uniões Familiares Poliamorosas. Monogamia. Autono-


mia. Boa-Fé Objetiva.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Apontamentos sobre o Exercício da Autonomia no


Direito de Família. 2 Considerações sobre o “Ideal” Monogâmico. 3 A Boa-Fé
Objetiva Enquanto Elemento Constitutivo para o Reconhecimento das Uniões
Familiares Poliamorosas. Considerações Finais. Referências.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 119

Introdução
A partir das transformações sociais, o conceito de família amplificou-se
e se tornou plural, especialmente após a promulgação da Constituição de 1988,
abrindo espaço para o surgimento de novos arranjos familiares.
Apesar do avanço na seara do Direito de Família, que possibilitou espaço
mais dinâmico aos núcleos familiares e o surgimento de outras formatações,
a concepção contemporânea da estrutura e da unidade familiar, construída
principalmente pelos tribunais brasileiros, não abarca todos os modelos, con-
denando à invisibilidade outras formas de concepção de família, sobremaneira
os arranjos que rompem com o padrão monogâmico, a exemplo dos erigidos a
partir das relações poliamorosas1, compreendidas como uma união estabelecida
entre três ou mais pessoas que, com o consentimento de todos os envolvidos,
instituem uma relação com o intuito de constituir família.
As famílias poliamorosas, nesse contexto, estão excluídas da proteção
assegurada às entidades familiares no Texto Constitucional, tendo de se rela-
cionar à margem do Direito, sem receber a tutela adequada para orientá-las
nas hipóteses de dissolução parcial ou total, sucessão, filiação e regime de
bens, entre outras hipóteses que requerem a necessária intervenção estatal.
Em virtude dessa realidade, este estudo propõe-se, por meio de uma
pesquisa exploratória bibliográfica, apresentar a possibilidade de reconheci-
mento das uniões poliamorosas a partir de interpretação aberta e flexível das
regras do direito civil coadunadas com o perfil exegético da Constituição
Federal de 1988.
Nessa perspectiva, a presente pesquisa se justifica pela necessidade de ga-
rantir a tutela jurídica das famílias poliamorosas, colaborando academicamente
com o adensamento do tema e ampliação do conceito de núcleo familiar, a fim
de abastecer as aspirações das diferentes formas da família contemporânea.
O estudo empregou a indução como método de abordagem, e a partir de
levantamento bibliográfico em livros, artigos científicos, acervo jurisprudencial
e legislação civilista aplicável à matéria procurou destrinchar a problemática,
cujo objetivo central foi analisar a boa-fé como elemento constitutivo das uni-
ões poliamorosas enquanto entidades familiares no Direito de Família pátrio.

1 Durante o desenvolvimento do artigo será utilizada a expressão “poliamor” como sinônimo de “poliafeto”, apesar
de acreditarmos que a primeira opção é mais adequada, visto que o afeto, para alguns autores – como Luciana Costa
Poli, César Fiuza e Giselda Hironaka – é insuficiente para atuar como elemento caracterizador da entidade familiar,
pois se trata de valor que pode ser agregado tanto de maneira positiva quanto negativa.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
120

1 Apontamentos sobre o Exercício da Autonomia no Direito de


Família
Importante introduzir desde já breve distinção entre autonomia da
vontade e autonomia privada. Todavia, já se antecipa em afirmar que ambas
se entrelaçam e terminam por estabelecer sintonia jurídica.
A autonomia da vontade correspondendo à certa manifestação da liber-
dade de cada um dentro do campo jurídico. Não se confunde com autonomia
privada, vez que esta gira em torno do poder de criação do agente que, a partir
da esfera do Direito, ou, ainda, dentro de determinada reserva legal, tem a
liberdade/faculdade de se autorrevestir por normas e comandos próprios,
porém subordinadas àquelas impostas pela vontade da força estatal. Ao seu
turno, a autonomia da vontade afigura-se de forma subjetiva, a partir de co-
mando cuja orientação é de ordem psicológica e denota o rumo a ser traçado
e o sentido a ser atingido pela vontade do agente (AMARAL, 2006, p. 345).
Como se vê, a autonomia da vontade caracteriza-se por ser uma vontade
subjetiva do agente, de modo que ele tenha o poder-direito para elaborar o
desenho de sua autodeterminação; já a autonomia privada assume critérios
objetivos para sua composição, em que o agente tem o poder-direito de au-
torregulamentação para arquitetar as normas internas e privatistas a lhe guiar,
respeitando os limites legais.
No que tange ao Texto Constitucional, art. 226 da CF/88, não faz
referência a nenhuma formação específica de família, diferentemente das
constituições anteriores que prestigiavam uma cláusula de exclusão ao limitar
o recorte de modelo familiar ao casamento. O aludido dispositivo se apresenta
enquanto cláusula geral de inclusão, de modo que a supressão de outras formas
de se conviver em família – que também estão alicerçadas na solidariedade,
reciprocidade de interesses, estabilidade e ostensibilidade – termina por in-
fringir a dignidade humana do núcleo familiar.
É nesse contexto de transformações sociais que se faz imprescindível
novo olhar à instituição familiar, papel para o qual o Estado precisou se res-
significar, sendo possível verificar que, com o passar do tempo, a intervenção
estatal foi se modificando e a tutela familiar paulatinamente passa a ser gerida
cada vez mais pelos integrantes da própria família (ALVES, 2009).
Impulsionado pela Carta Constitucional de 1988, tal alteração da fun-
ção estatal na seara da família ensejou ambiente mais versátil para o exercício
da autonomia da vontade, para a qual a intervenção estatal apenas se justifica
em situações específicas. Destarte, a autonomia privada restaria preservada,
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 121

porém prescrevendo normas mínimas de intervenção do Estado em assuntos


tão peculiares e adstritos à subjetividade das pessoas.
Perceba-se que não se está defendo aqui a abolição da autonomia
privada, que por meio de regras próprias deve edificar seu arcabouço jurí-
dico-normativo. Noutros termos, é imprescindível um marco normativo a
regulamentar a autonomia privada. Também não se está afirmando acerca de
uma abstenção total do Estado em prol de um exercício pleno e absoluto da
autonomia da vontade, mas, sim, de uma intervenção com vistas a resguardar
as liberdades e os direitos fundamentais dos membros da família a partir de
regras mínimas, porém necessárias, de intervenção em direitos atrelados às
projeções biopsíquicas do “Ser” (ÁVILA SANTOS, 2013, p. 27).
Pontualmente, o que se questiona em se tratando de Direito de Fa-
mília, em específico sobre as novas formatações familiares, é até que ponto
a intervenção do Estado em assuntos que retratam a seara mais privada do
“Ser”, qual seja – a intimidade –, perde sua natureza protetiva e se reveste de
controle estatal excessivo?
A título de exemplo desse controle excessivo, destaca-se a decisão do
Conselho Nacional de Justiça, que em 2018 vedou a lavratura de escritura
pública das uniões poliamorosas nos cartórios brasileiros (CNJ, 2018).
Em sentido contrário e já em prol do exercício da autonomia que rege a
vontade das pessoas em detrimento da ingerência estatal, o Conselho Nacional
de Justiça, por meio de normativas internas, proibiu a negativa de realização de
casamentos por pessoas do mesmo sexo nos cartórios de registro civil (CNJ,
Provimento nº 175/2013), legitimou o reconhecimento voluntário para fins
de registro de paternidade e maternidade socioafetiva (CNJ, Provimento nº
63/2017) e autorizou a alteração de prenome e gênero de pessoa transgênero
(CNJ, Provimento nº 73/2018).
A presente pesquisa entende que a intervenção estatal na família deve
ser revestida de um caráter protetivo, promovendo a dignidade da pessoa
humana. Dessa forma, a atuação do Estado no âmbito familiar é fundamental
quando visar, a título de exemplo, a proteção de incapazes e pessoas fragili-
zadas, evitando abusos e garantindo seu desenvolvimento, sem ingerência na
sua constituição e manutenção (CARVALHO, 2015, p. 97).
Na atual roupagem jurídica, as famílias poliamorosas se encontram
num ambiente de invisibilidade jurídica, cuja anomia é tão latente que ter-
mina por gerar posicionamentos discriminatórios a partir de visões turvas e
conservadoras que se revelam no teor das jurisprudências; além, claro, de um
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
122

limbo normativo em razão da total ausência de tutela, ou mesmo exclusão


legal sobre a matéria no Direito de Família.
É sob o manto desse cenário que a atividade hermenêutica se destaca
para assumir papel interpretativo na tentativa de colmatar a lacuna sobre o as-
sunto. Assim, o suporte hermenêutico ganha novas feições para que os núcleos
familiares poliamorosos possam adquirir reconhecimento e legitimidade, a
partir de atividade interpretativa que ascende mais para aspectos antropológi-
cos e sociais do que jurídicos. Fica aqui, a título de situação concreta, o aceno
proposto pela hermenêutica e posteriormente abraçado pela jurisprudência
acerca do reconhecimento do casamento e da união estável entre pessoas do
mesmo sexo, que por muito tempo na história jurídica e legislativa do país
permaneceu no limbo e avesso ao próprio Direito.

2 Considerações sobre o “Ideal” Monogâmico


Ao iniciar estudo acerca das famílias poliamorosas, logo é possível
verificar a presença de todos os elementos constitutivos da entidade familiar.
Constata-se, nessa perspectiva, um vínculo jurídico pautado na ostensibi-
lidade, estabilidade, cooperação, solidariedade, entre outras características
consagradas pela doutrina e pelo ordenamento jurídico como essenciais à
formação familiar; porém, se limitando a um único diferencial: a não adoção
da estrutura monogâmica.
Destaca-se, no entanto, que é nesse distintivo que reside o maior obs-
táculo para o reconhecimento das uniões poliamorosas como núcleo familiar.
Apesar de ausente a previsão expressa na Constituição, a monogamia, jun-
tamente com o dever de fidelidade, é consagrada pela jurisprudência como
um ingrediente necessário e estruturante do Direito de Família no Brasil,
condenando à invisibilidade outros núcleos que não incorporam o paradigma
do “ideal” monogâmico.
Assim, faz-se necessário desconstruir o “ideal” institucionalizado de que
a família monogâmica é o único formato possível para uma entidade familiar,
evidenciando que este modelo deveria, na realidade, ser uma possibilidade
para o indivíduo, sem sobrepujar a autonomia da vontade daqueles que optam
por não adotar a estrutura monogâmica em suas relações, corroborando com
a concepção de que a nova hermenêutica civil pautada pela boa-fé objetiva se
mostra suficiente para reconhecer a natureza familiar das uniões familiares
poliamorosas.
Conforme asseveram Farias, Braga Netto e Rosenvald (2021, p. 73),
durante a vigência do Código Civil de 1916 a entidade familiar era balizada
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 123

por uma estrutura matrimonial, patriarcal, heteroparental e biológica, com


fins de reprodução e transmissão de patrimônio. Contudo, a sociedade se
transformou e o conceito de Família tornou-se plástico, de modo que a
Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002 refletiram tal avanço
inclinando-se para conceito mais elástico, democrático e agregador – e não mais
necessariamente derivado do casamento –, reafirmando, assim, o pluralismo
familiar instituído pela nova ordem constitucional.
A família poliamorosa surgiu nesse contexto, de ruptura com o modelo
obrigatório heteroparental e matrimonial, compreendendo um vínculo jurídi-
co conjugal e concomitante entre três ou mais pessoas com o consentimento
de todos os envolvidos, no qual os integrantes buscam construir uma família
pautada na “liberdade, igualdade, honestidade, cooperação, lealdade, amor,
ética (boa-fé-objetiva) e compersão” (VIEGAS; ROCHA, 2019, n.p).
Apesar disso, as uniões familiares poliamorosas têm sido discriminadas
pela institucionalização do padrão monogâmico na estrutura familiar, perma-
necendo à margem e sujeitando-se à invisibilidade por meio de condenações
sociais, morais e de parte de operadores do Direito de Família, que ainda
advogam pela tradição e pela aplicação do classicismo civilista.
Em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”,
Friedrich Engels expõe que a monogamia surgiu como um instrumento de
controle social, objetivando, sobretudo, a procriação e a garantia de paternidade
incontestável, defendendo, inclusive, que esse modelo familiar se balizava na
supremacia do homem sobre a mulher, com o propósito de conceber filhos
cuja paternidade não poderia ser questionada, garantindo a transmissão de
patrimônio aos filhos legítimos (ENGELS, 1984, p. 324). Todavia, a mono-
gamia2 era imposição exclusiva ao sexo feminino. Ao homem era tolerada a
infidelidade, desde que não levasse outra mulher para sua casa, ao passo que
à mulher era estabelecida a castidade e a fidelidade, resultado em uma socie-
dade patriarcal e caracterizada pela desigualdade entre homens e mulheres
(ENGELS, 1984, p. 325).
Erigida ao posto de princípio do Direito de Família por parte da dou-
trina, a monogamia foi imposta de tal forma que as pessoas são compelidas a
acreditar que esta é a única moldura correta para a formatação familiar, sendo
os demais comportamentos que não se enquadrem nesta estrutura tratados

2 Destaca-se que o objetivo deste artigo não é estimular visão negativa, desacreditadora ou mesmo desrespeitosa quanto
à monogamia, mas evidenciar que não há razões, ao menos jurídicas, para fomentar a institucionalização do padrão
monogâmico de conduta enquanto arquétipo das relações familiares. Em verdade, esta pesquisa está alicerçada no
exercício da boa-fé, cabendo a cada indivíduo, a partir do exercício da autonomia, realizar o poder de escolha acerca
de suas formatações familiares, seja pelo arranjo monogâmico, seja pelo poliamorismo.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
124

como inadequados e pervertidos, não passando de mera promiscuidade,


obstruindo qualquer caminho para o reconhecimento dos direitos das uniões
familiares poliamorosas.
O conceito de monogamia, em verdade, se aproxima muito mais ao
modo de viver, de conduta adotada que enseja comportamento a servir de
guia e a orientar as pessoas ao estilo de se relacionarem com outras. No plano
jurídico, entende-se que a monogamia não poderia representar obstáculo para
o reconhecimento de outras entidades familiares que não a adotam, porém,
a jurisprudência rechaça qualquer direito à validação e constituição dessas
entidades em razão da ruptura com “ideal” monogâmico.
A imposição da monogamia como princípio esbarra em outros, como
a pluralidade familiar e o exercício da autonomia da vontade. Nessa toada,
César Fiúza e Luciana Poli (2015, p. 166) apontam que:

“Elevar a monogamia à categoria de princípio é perpetuar o que o texto


constitucional não disse; é vendar os olhos para inúmeras realidades fa-
miliares; é perseguir resultados desastrosos; é negar o reconhecimento e
proteção a diversos núcleos familiares.”

A monogamia apresenta-se, portanto, como um estilo de vida, cabendo a


cada indivíduo averiguar o que é melhor e apropriado em face de suas ambições
como membro do esteio familiar. Apreciá-la como princípio equivale a cercear
qualquer possibilidade das pessoas de buscarem construir o núcleo familiar
em que se percebem confortáveis, refletindo um viés excludente e totalmente
contrário àquele pretendido pelo Texto Constitucional (VIEGAS, 2017).
Ademais, a imposição do estilo monogâmico para caracterização da
entidade familiar remonta a inadequação do ordenamento jurídico brasileiro à
realidade social, representando verdadeiro retrocesso das conquistas históricas
alcançadas no Direito de Família.
Na perspectiva proposta neste artigo, a monogamia possui natureza
axiológica, apresentando-se, muitas vezes, como um valor de moral religiosa,
não possuindo caráter normativo. Ora, não é admissível emprestar ao modelo
monogâmico o status de princípio simplesmente para evitar o reconhecimento
de novos arranjos familiares.
Importante destacar que ainda que fosse considerada um princípio jurídi-
co, a monogamia não seria suficiente para obstar aquisição de direitos das uniões
familiares poliamorosas. Veja, não raro, ao Direito é necessário se confrontar e,
a partir da técnica da ponderação, em casos de colisão entre princípios, afasta-se
aquele em detrimento de outro(s). Para esta hipótese, os princípios da dignidade
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 125

da pessoa humana, pluralismo familiar e autonomia já seriam suficientes para


legitimar o reconhecimento de famílias não monogâmicas.
É nesse sentido que, mesmo considerando a monogamia como um
princípio, Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 269) assevera que esta

“(...) deve ser ponderada com o princípio da dignidade humana (...)


não respeitar o princípio da dignidade humana, nesses casos, é repetir o
mesmo discurso hipócrita e moralista que excluiu pessoas do laço social,
condenando-as à invisibilidade, como ocorria com os filhos ilegítimos
havidos fora do casamento, denominados até a CF de 1988 de ilegítimos.”

Em relação ao padrão estabelecido de dever de fidelidade imputado ex-


clusivamente para o casamento no art. 1.566 do Código Civil, e ao modelo de
dever de lealdade infligido para as uniões estáveis, nos termos do art. 1.724 do
CC/02, é preciso argumentar que para as relações poliamorosas, os deveres de
fidelidade e de lealdade têm feições próprias, mas não se distinguem comple-
tamente das características atinentes aos relacionamentos monogâmicos. No
caso das famílias poliamorosas, verifica-se uma polifidelidade. Rafael da Silva
Santiago defende que o tratamento jurídico conferido à polifidelidade deve
ser idêntico ao fixado às famílias monogâmicas, tendo como única diferença
o número de parceiros (SANTIAGO, 2014, p. 91).
Complementando o posicionamento acima, destaca-se o entendimen-
to de Sandra Elisa de Assis Freire e Valdiney Veloso Gouveia (2017, p. 67),
que aduzem que a fidelidade e lealdade estão presentes no relacionamento
poliamoroso de forma ampla, no sentido de que tudo que foi previamente
estabelecido entre os membros da família deve ser cumprido, valorizando a
boa-fé, confiança, transparência e o apoio mútuo entre os parceiros, fazendo
imperar o sentimento de compersão e não possessividade.
Acerca da resistência em relação aos relacionamentos não monogâmi-
cos, Maria Berenice Dias (2015, p. 107) rememora que todos os modelos de
convivência que contrariam o padrão convencional heteronormativo são alvos
de danação religiosa, e, consequentemente, de repulsa social e de exclusão ou
invisibilidade por parte do legislador.
Nesse sentido, Cesar Fiúza e Luciana Poli (2015, p. 162-163) apresen-
tam a noção de “pânico moral”, que elucida bem o repúdio diante de relações
poliamorosas:

“O pânico moral pode ser compreendido, numa acepção mais abrangente,


como o consenso, partilhado por um número substancial de membros de
uma sociedade, de que determinada categoria de indivíduos estaria ame-
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
126

açando a estrutura social e a ordem moral. A partir dessa suposta ameaça,


confabulam que seria necessário o fortalecimento do aparato de controle
social, provocando a promulgação de novas leis, orientando a atuação es-
tatal por políticas públicas capazes de imprimir hostilidade e condenação
pública a determinado estilo de vida.”

O pensamento acima esboçado é resultante de uma necessidade de


reafirmação dos valores tradicionais e da forçosa perseguição em face de um
suposto perigo social afrontado por comportamentos individuais considerados
imorais, perpetuando-se a sensação de que a família estaria em “risco” e seve-
ramente comprometida em seus valores convencionais. Exemplo evidente do
pânico moral agindo contra o reconhecimento de novos arranjos familiares,
mas já superado na seara jurídica, são as famílias homoafetivas, que por décadas
foram rechaçadas e consideradas uma ameaça à tradicional família brasileira.
Não há sentido, portanto, em continuar negando direitos àqueles que
optaram por outra estrutura familiar, vez que não há que falar em prejuízo
ao Estado, tampouco lesão àqueles que escolheram o modelo de convivência
tradicional. Noutras palavras, “não havendo prejuízo a ninguém, de todo
descabido negar o direito de viver a quem descobriu que em seu coração cabe
mais de um amor” (DIAS, 2015, p. 136).
Nessa equação os únicos que seguem sendo prejudicados são os mem-
bros das uniões poliamorosas, tendo seus direitos relegados, sem receber
a tutela adequada principalmente nos casos de dissolução total ou parcial,
sucessão, filiação da prole e regime de bens.

3 A Boa-Fé Objetiva Enquanto Elemento Constitutivo para o


Reconhecimento das Uniões Familiares Poliamorosas
O presente artigo parte da premissa de que a nova hermenêutica civil
é suficiente para erigir interpretação robusta em argumentos e fundamentos
a endossar o reconhecimento e a legitimação das uniões poliamorosas como
entidade familiar. A partir de exegese flexível, aberta e calcada em princípios
que primam pela pluralidade, diversidade e dignidade humana, é possível
mitigar a monogamia enquanto arquétipo principiológico – que sequer está
estampado na Carta Constitucional – convertendo-a em conduta comporta-
mental e interpessoal a ser axiologicamente balizada por cada pessoa, de acordo
com sua autonomia e processos individuais de escolhas.
Nessa conjectura, é fundamental adicionar volume jurídico por meio
de elementos e princípios que possam servir de argumento a balizar e estru-
turar o surgimento de novos modelos de constituição familiar. Para o caso
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 127

em tela, vem à baila a boa-fé objetiva, que ganha destaque na medida em que
tais arranjos familiares estabelecem um vínculo pautado na ética, confiança e
honestidade dos membros da relação, entre si e para com a sociedade.
É nesse sentido que Ferrarini (2010, p. 28) aponta a boa-fé como um
dos elementos identificadores das famílias poliamorosas. De fato, no caso do
poliamorismo, a boa-fé atua como um elemento estruturante, uma vez que as
partes se unem com o consentimento de todos os envolvidos, firmando um
acordo pautado na solidariedade, transparência e confiança, caracterizando
uma verdadeira família, digna de toda a tutela garantida constitucionalmente.
Acerca da boa-fé objetiva, Rodrigo da Cunha Pereira (2018, p. 208,
209-210) preceitua que esta se trata do

“(...) comportamento ético que se espera das pessoas. É a manifestação


do princípio fundamental da eticidade, que é a exigência de lealdade das
partes, o que se espera de alguém por um simples senso ético. Trata-se de
uma evolução do conceito da boa-fé propriamente dita, que se dividiu em
objetiva e subjetiva, não mais residindo apenas no plano da intenção (boa-
fé subjetiva), mas no plano da conduta de fato também (boa-fé objetiva).
(...) A boa-fé objetiva não tem a intenção de servir como instrumento de
correção de posições de hipossuficiência ou inferioridade contratual, isto
é, não se trata de um princípio de proteção da parte mais fraca, mas do
comportamento ético-socializante que se espera das partes. (...) O con-
ceito da boa-fé objetiva está estritamente ligado à ideia de honestidade e à
dignidade e ao seu oposto, a indignidade.”

Nesse sentido, a boa-fé objetiva constitui-se como um componente


fundamental do poliamor, visto que é na confiança e na honestidade, tuteladas
pela eticidade, que se cumprem as expectativas referentes ao dever de respeito,
transparência e lealdade entre os membros das famílias poliamorosas, vez
que nesse núcleo familiar todos consentem com os termos éticos pactuados,
vedada a intenção de enganar e ludibriar seus parceiros; todos buscam o
crescimento individual e conjunto, promovendo a família como um alicerce
para o desenvolvimento de seus membros.
Outrossim, essa roupagem axiológica também se reveste do dever de
lealdade cultivado entre os integrantes do núcleo familiar – fazendo prevalecer
as promessas e acordos realizados no seio do relacionamento – e do respeito à
dignidade de todos os membros da família, fomentando o apoio mútuo entre
os parceiros e privilegiando a comunicação e negociação como mecanismos
importantes para a manutenção sadia da relação, afastando o sentimento de
possessividade em prol da compersão, da honestidade e do compromisso entre
os companheiros (FREIRE; GOUVEIA, 2017, p. 68).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
128

A boa-fé objetiva exerce importante papel ao identificar as relações


poliamorosas enquanto núcleos familiares, mas também serve como freio às
comparações equivocadas com os conceitos de concubinato e/ou união para-
lela. Veja bem, o poliamorismo não é impuro, tampouco ilegal ou tipificado.
Ademais, não se está diante de uniões distintas e que correm concorrentemente
sem que haja o devido conhecimento e transparência entre os envolvidos. Em
verdade, no poliamorismo há um só vínculo jurídico familiar, com mais de
duas pessoas, onde todos os envolvidos entram em consenso sobre o tipo de
relacionamento que estão vivendo e possuem ciência uns dos outros.
Dessa forma, as uniões poliamorosas não constituem uma segunda
família fruto de um relacionamento subsidiário, adjacente, como ocorre
nas uniões paralelas ou no concubinato. E do mesmo modo como acontece
nas relações monogâmicas, a traição também é repelida e se configura pelo
descumprimento consciente dos termos previamente pactuados na relação.
Ao contrário do que se possa pensar, o poliamor não é ambiente de orgia e
perversão; a traição, tal qual em outra relação tradicional, não é admitida,
privilegiando-se a honestidade e a boa-fé nas relações.
Nesse sentido, destacam Sandra Elisa de Assis Freire e Valdiney Veloso
Gouveia que o poliamor retrata uma nova feição acerca do amor e “constitui
uma base ética pautada na honestidade, negociação respeitosa e igualdade, no
qual todos os participantes estão cientes do caráter recíproco de seu relacio-
namento e do potencial não monogâmico do mesmo” (2017, p. 72).
Corroborando com esse entendimento, Bacellar (2017, p. 61) reitera
que no poliamorismo há uma não monogamia responsável na medida em que
os envolvidos têm uma visão clara a respeito de sua relação, assegurada pela
honestidade e eticidade entre os companheiros.
De igual modo, é equivocada a afirmação de que poliamor e a poligamia
se tratam de mesmo instituto. Ora, a poligamia é caracterizada pela multipli-
cidade de cônjuges, ou seja, é a relação entre uma mulher e vários homens
(poliandria) ou um homem e várias mulheres (poliginia), havendo a exigência
de exclusividade sexual e afetiva a somente uma das partes, não constituindo
uma exclusividade recíproca (PEREIRA, 2018, p. 86).
Ocorre, por exemplo, quando um homem se casa com duas mulheres,
estabelecendo com elas duas relações distintas em que ambas mantêm-se
fiéis a este cônjuge. Não existe, nesse caso exemplificativo, relação alguma,
seja afetiva ou sexual, entre as duas mulheres. No Brasil, esta prática não é
permitida, sendo inclusive tipificada no art. 235 do Código Penal.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 129

A poligamia, nessa conjectura, pressupõe uma assimetria de gênero,


uma vez que há um único polígamo em cada relação. Assim, apenas um dos
companheiros possui mais de um parceiro, diferente do que ocorre no po-
liamor. Depreende-se, portanto, que a poligamia, em todas as suas formas,
se difere das relações poliamorosas na medida em que nestas há apenas um
vínculo jurídico familiar, uma única relação, com o consentimento de todos
os envolvidos. Constitui-se em uma relação amorosa simultânea, mas não
paralela, consensual e igualitária, estabelecendo uma família conjugal em
que três ou mais pessoas compartilham entre si uma relação amorosa circular
(SANTOS, 2019, p. 79).
Com base no panorama apresentado, a boa-fé objetiva exerce função
fundamental para a identificação das famílias poliamorosas, atuando como
alicerce dessas relações e agindo enquanto elemento necessário para a dife-
renciação desse formato de relacionamento com outros arranjos familiares
não monogâmicos.
O princípio da boa-fé objetiva, somado aos princípios da dignidade
da pessoa humana, igualdade, solidariedade, pluralidade, não intervenção e
vedação do retrocesso social, bem como outros consagrados pela nova her-
menêutica do Direito Civil, representam um grande marco para o Direito
de Família, fazendo prevalecer conceito amplo e plural de entidade familiar,
promovendo redimensionamento e maior compreensão de instituto tão
importante para o desenvolvimento das pessoas. Ademais, aderir à exegese
aberta sobre o conceito de família e permear novos arranjos e formatações
familiares permite retratar cenário inclusivo ainda tão almejado para grupos
que frequentemente são rechaçados pelo Direito e por parcela da sociedade
movida por ideais conservadores.
É nesse enredo que as uniões familiares poliamorosas reivindicam o
reconhecimento jurídico, cabendo ao Direito fomentar ambiente que permita
que cada pessoa constitua sua família de acordo com seus próprios julgamentos
acerca do que é melhor para seu desenvolvimento e sua felicidade, visto que
as possibilidades de relacionamentos são plurais e diversificadas (VIANNA;
SEMÍRAMIS, 2019, p. 12).
Ainda na esteira da boa-fé objetiva, é preciso ressaltar que para os fins
pretendidos nessa pesquisa, faz-se necessária adotá-la como cláusula geral
do Direito nas relações familiares. É que a boa-fé, no sentido agora retrata-
do, diz respeito aos deveres familiares de compromisso, responsabilidade,
solidariedade, transparência, reciprocidade de interesses, entre outros; mas
a boa-fé também se ajusta com os direitos mútuos que nascem das relações
familiares. Direitos são frutos não somente por força de lei, a exemplo dos
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
130

deveres alimentares, de tutela e guarda, mas aqueles que se extraem de toda


e qualquer relação familiar, como o cuidado, respeito, sustento financeiro,
segurança, moradia, educação e lazer.

Considerações Finais
A família representa refúgio, ambiente onde se encontra proteção, ca-
rinho, amor, convívio, reciprocidade e troca de interesses entre os membros.
É no seio familiar que o ser humano se desenvolve; por isso, o Estado deve
buscar mecanismos que permitam o desenvolvimento do indivíduo e possi-
bilite ele tenha liberdade para dirimir por si só acerca de questões inerentes
ao espaço pessoal mais privado e particularizado de cada um – a intimidade.
Assim é que este escrito defende que a atuação estatal deve ocorrer
tão somente em situações para as quais se inclinam a ordem pública e cujo
interesse social é preponderante. Outras questões atinentes à intimidade e aos
processos e escolhas das projeções intrapessoais e interpessoais dos sujeitos,
entende-se que o Direito de Família, por esta perspectiva, deva ser de aplica-
ção mínima em respeito e valoração atribuídos ao exercício da autonomia da
vontade dos particulares.
É notório que a família contemporânea acompanhou o fluxo da dinâ-
mica das transformações sociais; se dissociou do modelo institucionalizado,
afastou-se do arquétipo estritamente heteroparental, patrimonial e hierar-
quizado. As pessoas passaram a valorizar a liberdade, seja amorosa ou sexual,
e a família passou a se apoiar na busca pela felicidade, amor e solidariedade
entre os membros do núcleo familiar. As famílias poliamorosas surgiram nesse
contexto de transformações, rompendo o paradigma de “ideal” monogâmico,
cuja intenção deste artigo fora justamente mitigar a fim de agregar novos
contornos interpretativos aos arranjos familiares.
Assim, adotou-se a concepção de que a monogamia tem natureza
axiológica e representa uma opção à mercê do indivíduo; um modo de viver
e uma orientação para aqueles que buscam se relacionar, sentimentalmente
ou puramente sexualmente, com apenas uma pessoa por vez. Da discussão,
chegou-se ao entendimento de que a monogamia não pode ser fator impeditivo
para a construção das uniões familiares poliamorosas, cuja base explicativa está
respaldada na boa-fé objetiva.
É da boa-fé que se deve extrair a compreensão para a formação dos
vínculos existentes entre os integrantes das famílias poliamorosas. As obriga-
ções atinentes e os direitos oriundos se encontram reproduzidos no convívio
pautado pelos deveres anexos da boa-fé, como a transparência, eticidade,
clareza e honestidade das relações. O empenho da palavra dada para os casos
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 131

das uniões familiares poliamorosas realmente ganha status diferenciado e o


endosso entre os participantes, de fato, recebe uma valia própria singularizada.
A família é um dos alicerces da sociedade. É necessário assegurar que
o indivíduo tenha espaço para buscar sua felicidade, constituir família e ga-
rantir o desenvolvimento de seus membros sem ter seus direitos condenados
à invisibilidade. Nesse sentido, o reconhecimento das uniões poliamorosas
não encontra óbice na Constituição Federal de 1988, restando à hermenêu-
tica civilista realizar atividade interpretativa nas regras do Direito de Família
pátrio a fim de possibilitar o reconhecimento dessas formatações familiares.

TITLE: From monogamy to objective good faith: brief considerations for the recognition of polyamorous
family unions.

ABSTRACT: The article analyzed the objective good faith as a constitutive element of polyamorous unions
as family formations. Based on an open interpretation of the rules of Family Law, the text reflects on the
exercise of autonomy, especially the autonomy of the will, in addition to criticizing the monogamous
paradigm and its mitigation. The study used an inductive, exploratory and bibliographic approach. With
the development of the research it was possible to conclude that civil hermeneutics, through the recep-
tion of the principles of objective good faith, family pluralism, autonomy, freedom, equality, and human
dignity is sufficient to interpret and endorse the recognition of polyamorous unions as family entities.

KEYWORDS: Polyamorous Family Unions. Monogamy. Autonomy. Objective Good Faith.

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pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 10 de mai. de 2022.

Recebido em: 29.01.2023


Aprovado em: 12.02.2023
Doutrina

(Im)Possibilidade de Reconhecimento de
União Estável no Metaverso

Renato Horta Rezende


Mestre em Direito Público; Especialista em Ciências Penais;
Professor Universitário e Advogado;
e-mail: renatohorta@yahoo.com.br.

Marcos Paulo Bianchini


Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional;
Mestre em Direito Público; Especialista em Direito Penal,
Processual Penal e Constitucional; Professor Universitário;
Coordenador do Curso de Direito na Faculdade Anhanguera;
Advogado; e-mail: marcos.bianchini@pitagoras.com.br.

RESUMO: Com o investimento de grandes companhias no desenvolvimento


e criação de protometaversos, assim como as consequentes formulações sobre
diversas perspectivas envolvendo o assunto, foi identificada a necessidade do
exame sobre a eventual possibilidade de reconhecimento de união estável no
metaverso. O desenvolvimento teórico, especulativo e investigativo da pesquisa
possui como referencial teórico os apontamentos feitos por Conrado Paulino
da Rosa, na obra “iFamily: um novo conceito de família?”, sobre família, sendo
examinadas três hipóteses sequenciais e dependentes dirigidas à possibilidade
das relações humanas afetivas ocorrerem independentemente do meio; a
personificação dos “símbolos humanos” no ciberespaço; e a necessidade de
se garantir especial proteção à família construída no metaverso. A pesquisa foi
desenvolvida em três partes, a primeira relacionada à definição de metaverso, a
segunda acerca da definição e requisitos da união estável e a terceira dirigida à
testagem das hipóteses. As hipóteses levantadas foram parcialmente confirmadas.

PALAVRAS-CHAVE: Metaverso. Protometaverso. União Estável. Definições.


Especulações.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Indispensável Definição de Metaverso. 3 União


Estável: Arranjo Familiar, Conceito e Requisitos. 4 União Estável no Metaverso e
a Vontade Humana Manifesta por Meio de Avatares. 5 Conclusões. 6 Referências.

1 Introdução
A vida vem se tornando cada vez mais virtualizada e, em algumas pers-
pectivas, fica difícil, inclusive, separar a vida analógica da digital. Acreditando
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
134

na potencialidade de expandir fronteiras e criar ciberespaços tridimensionais,


intensamente interativos e imersivos por meio de conexões permanentes
entre usuários e seus mais diversos desejos e interesses, grandes companhias
como a Meta Platforms Inc. e a Epic Games Inc. têm investido bilhões de dólares
no desenvolvimento de tecnologias de ponta para a criação de seus próprios
metaversos (ARCENOVICZ, 2022).
O acesso dos usuários ao metaverso se dará por meio de “símbolos hu-
manos”, avatares, que passam a se relacionar no ciberespaço hiperconectado
em comunhão com o universo material, explicitando, desde já, divergência
com aqueles que compreendem o futuro em uma dualidade entre virtual e
analógico1, compreendendo em sentido oposto por uma união entre ambos.
Diante do cenário brevemente apresentado, pretende-se examinar a (im)
possibilidade da ocorrência de união estável no metaverso e suas implicações
frente ao direito pátrio.
Frente ao problema supramencionado, foram investigadas três hipóteses
sequenciais e dependentes, a primeira dirigida à possibilidade das relações
humanas afetivas ocorrerem independentemente do meio, seja ele virtual ou
analógico; a segunda de que os “símbolos humanos” correspondam à perso-
nificação dos usuários no ciberespaço; e, por derradeiro, a necessidade de se
garantir especial proteção à família construída no metaverso.
O desenvolvimento teórico, especulativo e investigativo impresso na
pesquisa compreende o método hipotético-dedutivo, sendo examinado de
forma geral, em um primeiro momento, temas gerais com a finalidade de
definir conceitos e aplicações, enquanto no segundo estágio foi impressa
abordagem direta para investigar as hipóteses levantadas.
A pesquisa tem como marco teórico os elementos e definições sobre
família virtual apresentado por Conrado Paulino da Rosa na obra “iFamily: um
novo conceito de família?”, por estar esta mais próxima do que se pretende
desenvolver como conceito para a família no metaverso.
Os resultados foram especificamente construídos em três partes, na
primeira foram apresentadas definições e extensões do metaverso e a repre-
sentação humana; na parte seguinte, restou dedicada à definição e apresentação
dos requisitos indispensáveis à configuração da união estável; posteriormente,

1 No sentido dual, contrário ao desenhado nesta pesquisa, parece ser a perspectiva proposta por Zampier (2021, p
74), ao afirmar que “torna-se natural que diversas projeções da pessoa humana passem a ser incorporadas ao mundo
digital. Mais e mais a vida real vai se atualizando e migrando para o ambiente digital. Este é um processo inexorável,
sem freios e com uma velocidade impressionante”.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 135

foram empenhados esforços a testar as hipóteses levantadas em contraponto


às seções anteriores.
Para o desenvolvimento do trabalho, foi realizado levantamento bibliográ-
fico com consultas a livros, dissertações e artigos científicos, assim como também
à legislação pertinente, com a finalidade de contribuir para o desenvolvimento
do raciocínio jurídico-científico sobre o tema apresentando parâmetros ainda
especulativos e incipientes sobre as relações humanas no metaverso.

2 Indispensável Definição de Metaverso


Invariavelmente, em todos os registros que tratam sobre o metaverso é
possível identificar três momentos sobre o tema, o primeiro de ordem literária
dentro do gênero ficção científica; o segundo relacionado aos jogos online e
interativos; e, o mais recente, de ordem especulativa destinada a expectativas
incipientes sobre questões econômicas e laborais (TUPY; LEITÃO, 2022).
Desde logo, é importante destacar que a apresentação em três momen-
tos diversos se dá em razão de seu surgimento e, apesar de independentes,
todos os momentos se convergem em perspectivas, não se tratando, pois, de
momentos geracionais e nem mesmo complementares, mas compreendendo
como verdadeiros componentes indispensáveis à compreensão e definição do
que venha ou possa vir a ser o metaverso.
Ao primeiro momento é atribuído à gênese de termos como “metaverse”
e “avatar” colhidos do romance Snow Crash (STEPHENSON, 2015, p. 22, 23)
do qual também se granjeia insights sobre a possibilidade de realidades paralelas
com pontos de interseção complementares entre a vida analógica e digital de
forma a se tornarem uma só, afastando a ideia de duplicidade de realidades.
No segundo momento, foram desenvolvidos jogos em rede, com
interação entre usuários, criação de avatares, “símbolos humanos” que este-
ticamente podem possuir qualquer configuração sendo estas representações
capazes de interagirem com ou sem auxílio de óculos de VR (virtual reality)
em ciberespaço construído, ou, ainda, em construção, com a possibilidade
de, dentro destes ambientes, além de ações estratégicas gamificadas, executar
ações também de ordem econômica, entretenimento e convivência, bem como
aquisição de bens digitais incorpóreos, mas em uma concepção dualista de
realidades, ou seja, bem separado o que seria exclusivamente virtual e o que
seria analógica, ainda que quanto a esta última nada impede que os usuários
convivam ou passem a conviver também no mundo exterior ao jogo.
No terceiro momento, mais recente, se deu com a declaração de Mark
Zuckerberg, ainda em 2021, quanto aos esforços por meio de grandes in-
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
136

vestimentos em alta tecnologia dedicada a conferir experiências imersivas a


serem executadas pela holding a qual é cofundador, Meta Platforms Inc., foram
anunciadas visando desenvolver a sua própria versão de metaverso, ou, como
optou-se aqui por denominar, protometaverso2, em que, de forma até então
especulativa, as realidades, analógicas e digitais, se complementariam de ma-
neira constante e, portanto, ininterruptos sem grande separação daquilo que
seria virtual ou analógico (ARCENOVICZ, 2022).
A declaração de Zuckerberg gerou imediatamente inúmeras especula-
ções (ZOMPERO, 2022) que possuem como centro de divergência e gerador
de concepções variadas o próprio conceito de metaverso, a partir do qual
especulam-se sobre sua atual existência; contorno; dimensão; interações e
independência; complementaridade ou paralelismo entre protometaversos e
entre esses e a realidade analógica; relações entre usuários e entre usuários e
desenvolvedores; acessibilidade; hibridismo; regulações; proteções; controles;
segurança; tecnologia entre outras inúmeras variáveis3.
Apesar de já existirem ciberespaços dedicados à imersão com uso de
avatares, a proposta deste terceiro momento afastaria a concepção de Second
life4-5, pois, diferente deste, aquele afastaria a dualidade entre mundo analógico
e virtual tratando-se de vidas hiperconectadas por meio de grande imersão,
analógica no virtual, e aplicação de realidade aumentada, virtual no analógico.
Portanto, é indispensável situar em que momento e sobre qual definição
de metaverso foi desenvolvida a pesquisa. Em virtude do tema estar centrado
no exame acerca da união estável e existir a expectativa de maior interação,
no terceiro momento compreendeu-se este como o mais adequado para o
desenvolvimento do estudo, ainda que cercado de indefinições conceituais,
como a seguir será demonstrado.
A indefinição quanto ao conceito de metaverso fica explicitada nos 11
artigos jurídicos que compõem a coletânea, “Metaverso e Direito: Desafios
e Oportunidades”, coordenada por Bernardo de Azevedo e Souza, em que é
possível encontrar em cada texto singular definição sobre o que é ou possa
vir a ser o metaverso, assim como se este já seria factível, ou se o será a curto,
médio ou longo prazo.

2 O termo “protometaverso” é aqui utilizado como ciberespaço insulado cujos usuários e seus ativos virtuais estariam
restritos àquele ciberespaço, portanto, ausente relação intercambial com outros protometaversos ainda que possa
haver interação com o mundo analógico.
3 V.g.: SOUZA, Bernardino de Azevedo. Metaverso e direito: desafios e oportunidades. São Paulo: RT, 2022.
4 Cf: http://secondlife.com.
5 Secondlife foi criado em 2003 por Philip Rosedale em que seus habitantes criam avatares e passam a interagir com
outros de vários lugares do mundo em ambiente virtual tridimensional estabelecendo relacionamentos profissionais
e pessoais (ROSA, 2014).
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 137

A dificuldade em conceituar algo ainda incipiente é perfeitamente


razoável e diante da imensidão de possibilidades, trabalha-se aqui a cons-
trução do conceito tateando as poucas compreensões consolidadas sobre o
tema, sem, por óbvio, ter a pretensão de converter em unanimidade o que é
expressamente especulativo.
Como proposto pela maioria daqueles que pretendem conceituar me-
taverso, partindo-se da literalidade de seu étimo, inicialmente tem-se que a
palavra sob exame é composta pelo prefixo “meta”, que corresponde a “algo
além” em uma concepção literal de lugar ou momento posterior, diversa,
portanto, da concepção filosófica dirigida à essência (DIONISIO; BURNS
III; GILBERT, 2013), somado à abreviação “verso”, cuja raiz é “universo”
(Idem, 2013), que, por sua vez, compreende tudo que existe dentro de uma
concepção unitária de mundo, razão pela qual o metaverso poderia ser com-
preendido como aquilo que está para além de uma única versão de mundo.
Entretanto, a definição etimológica e genérica de metaverso não parece
ser suficiente para atribuir sentido exato ao termo e tampouco como ele vem
sendo especulado atualmente, razão pela qual, se faz necessário retornar à ori-
gem de sua utilização forjada no início da década de 90 do século passado, no
romance Snow Crash (STEPHENSON, 2015), para compreender a extensão
e a roupagem atualmente pretendida.
Pereira (2009) sintetiza a descrição de metaverso presente no romance
de Stephenson (2015) como o ciberespaço que simula o mundo analógico de
forma constante e online, sendo percebido pelos usuários não apenas como
algo real, mas também como um local adequado para todo o tipo de interações
interpessoais por meio de profunda imersão sem distinção entre aquilo que
seria analógico e o que seria virtual, possuindo as ações praticadas no ambiente
virtual resultados no meio externo, assim como também o inverso.
No momento atual, a expectativa com o metaverso se dá, principalmen-
te, com a forma com que se utiliza a internet, que deixaria de ser um meio
para se tornar um local de conexão permanente entre usuários que viveriam
simultânea e integralmente tanto no ambiente analógico como no virtual em
razão de suas reais existências (PIRONTI; KEPEN, 2021), assim em vez de
acessar um site por meio de um browser, os usurários saltar-se-iam diretamente
para o ciberespaço tridimensional, interativo e imersivo utilizando smartpho-
nes, óculos e fone VR, assim como malha tátil e até simuladores de odores
(ARCENOVICZ, 2022).
O salto ao ciberespaço hiperconectado e imersivo exige a personifica-
ção do usuário que se daria por meio de seu avatar (PEREIRA; MAFALDO,
2022), que não necessariamente precisaria corresponder à representação
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
138

física e estética de seu controlador ou usuário, sem que com isso deixasse de
representá-lo, assim como suas principais necessidades e interesses.
A diferença principal entre os jogos interativos online que também são
desenvolvidos e exigem a construção de um ciberespaço e o terceiro momento
do metaverso estaria não apenas na indispensável permanente conexão, mas
também na diversidade de atividades relacionais afetivas e negociais especu-
ladas, bem como no desenvolvimento de extraordinária inteligência artificial
(IA) com capacidade de aprendizado autossupervisionado conjugada com
tecnológica suficiente a suportar o armazenamento e processamento de dados
em grande velocidade, o que viabilizaria o afastamento de concepções dualistas
entre o que seria analógico e o que seria virtual em uma complexidade de vida
analógico-digital indissociável.
Apesar de tamanha conexão exigida pelo metaverso, as relações, ain-
da que naturalmente realizadas em ciberespaço tridimensional e altamente
imersivas, se dariam por meio de avatares controlados por humanos com o
auxílio de inteligência artificial dotada de capacidade de aprendizado autos-
supervisionado, algo que O’Neill (2016) aponta como preocupante, pois esta
intermediação tecnológica poderia trazer padrões de ações ou inações deturpa-
dos a depender do foco da programação e de pontos cegos propositais ou não,
determinando e fazendo determinar pessoas sem examinar o exuberante acervo
que compõe a personalidade e as ações humanas de seu então “controlador”.
Frente ao que se colheu das variadas concepções, todas especulativas,
poder-se-ia definir o metaverso, para os fins desta pesquisa, como o conjunto
de ambientes analógico e digitais (protometaversos), que somados dão lugar
a algo extraordinariamente novo, para além da única versão de mundo, per-
fazendo a perfeita conexão entre o ambiente analógico e os virtuais, de forma
constante, simultânea e online, em que seus habitantes não apenas percebem
como algo real, mas também como local adequado para todo o tipo de intera-
ções interpessoais por meio de profunda imersão, viabilizada por alta tecnologia
e uso de avatares, sem distinção entre aquilo que seria analógico e o que seria
virtual, afastando assim qualquer dicotomia entre eles e possuindo as ações os
mesmos resultados independentemente do meio no qual foram executados.
Mesmo ainda incipientes todas as definições, inclusive a acima proposta,
e as inúmeras inquinações, o entusiasmo apresentado por alguns com as possi-
bilidades trazidas pelo metaverso decorrem não apenas dos altos investimentos
financeiros e tecnológicos envolvidos, mas do momento apontado como per-
feitamente adequado ao seu desenvolvimento observado o amadurecimento
da sociedade pós-moderna (TAVEIRA JÚNIOR, 2018), marcada por intensa
geração de conhecimento, processamento de informações, comunicação de
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 139

símbolos (cibercultura) e gerida por relações humanas adaptáveis e plurais,


dentro da perspectiva de liquidez identificada por Bauman6.
Todavia, contrapõem-se ao ímpeto anteriormente manifesto os inú-
meros questionamentos quanto a real viabilidade7 da criação do metaverso
e não apenas de uma versão de um espaço tridimensional hiperconectado
controlado por um grande criador com poderes imensuráveis e sobre os
relacionamentos ali desenvolvidos e a própria vida dos usuários no além uni-
verso em contrapontos a direitos fundamentais, preocupações atuais a serem
solucionados em breve.

3 União Estável: Arranjo Familiar, Conceito e Requisitos


Enfatiza Madaleno (2022, p. 689) que “a família é um fenômeno da nature-
za, e não uma criação da sociedade e do legislador, este apenas instituiu o casamento
como um modelo de conduta social”, sendo importante frisar que o casamento
como modelo de conduta social não esteve presente em todas as sociedades e,
mesmo hoje, em algumas sociedades modernas que têm o casamento como prin-
cipal ou único modelo familiar, não existe um contorno único de família, mas,
sim, o reconhecimento e a tutela estatal especial a este singular arranjo familiar.
Como criação humana, o casamento não foi o primeiro arranjo familiar,
sendo evidenciados na história outros agrupamentos convivenciais que o ante-
cedeu (PEREIRA, 2016), o que, inclusive, talvez tenha levado Fiuza (2019, p.
1.236) a afirmar que “casamento é a união estável e formal entre duas pessoas
naturais, com o objetivo de satisfazer-se e amparar-se mutuamente, consti-
tuindo família”, em uma construção conceitual inversa diante daquilo que
costumeiramente é encontrado em manuais8, quanto à conceituação de união
estável hodiernamente apresentada em paralelo ao casamento colocando-se
este último como paradigma.
Independentemente da utilização do casamento como parâmetro para
conceituar união estável, ou a união estável para conceituar o casamento, é
relevante destacar que não existe ou não deveria existir, após a Constituição
da República de 1988, hierarquia entre arranjos familiares devendo todos ser
tutelados igualmente pelo Estado brasileiro (TARTUCE, 2021).

6 Cf: BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Plínio Dentzien (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
7 Souza (2022), bebendo das ideias de Steven Johnson (2015), observa acerca dos questionamentos sobre os limites
do possível adjacente, advertindo, contudo, de forma otimista que diante da atual tecnologia, assim como os inves-
timentos financeiros dispensados o metaverso é algo viável, sendo assim muito mais que um mero hype.
8 V.g.: CARVALHO, Dimas Messias de. Direito das famílias. 6. ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2018. p. 458; DIAS, Maria
Berenice. Manual de direito das famílias. 14. ed. Salvador: Juspodivm, 2021. p. 590; DINIZ, Maria Helena. Curso de
direito civil: direito de família. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 354; MADALENO, Rolf. Manual de direito de família.
4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022. p. 707.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
140

A tutela especialmente conferida à família pelo art. 226 da Constituição


da República de 1988, independentemente da origem do arranjo familiar de
que descendem, portanto, também direcionada à união estável, tem como
principal fundamento a dignidade da pessoa humana9, em uma perspectiva
eudemonista dirigida à concretização da autonomia do indivíduo e de sua
relação afetiva, cabendo ao Estado a tarefa de propiciar meios a conferir o
exercício do direito ao livre planejamento familiar.
Como consequência do dever imposto ao Estado de valorização e
respeito ao ser humano dentro do planejamento familiar, foi editada a Lei nº
8.971, de 29 de dezembro de 1994, estabeleceu, ainda, que de forma deficiente,
critério objetivo temporal ou circunstancial para comprovar a ocorrência de
união estável, possível, a quem não possuísse impedimento para o casamento
ou estivesse separado de fato (REZENDE, 2020).
Pouco depois, a Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996, estabeleceu re-
quisitos para caracterização da união estável – convivência duradoura, pública
e contínua entre um homem e uma mulher, com objetivo de constituição
de família –, assim como a possibilidade de dissolução, direito a alimentos e
ao direito real de habitação, fixando ainda a competência do juízo de família
para examinar os casos relacionados aos companheiros (CARVALHO, 2018).
A Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil – repetiu os
critérios para definição da união estável, a exceção da restrição da diversidade
sexual, fixando ainda os deveres de “lealdade, respeito e assistência, e de guarda,
sustento e educação dos filhos” (BRASIL, 2002, s/p).
Examinando os elementos da união estável, tem-se que, assim como
o casamento, pressupõe-se como requisito de existência, ou finalidade, o
elemento anímico da vontade direcionada aos companheiros em constituir
família, ainda que seus efeitos posteriores decorram da lei, tratando-se, pois,
de ato-fato jurídico.
A vontade, portanto, imperiosa a união estável se porta como prévio
requisito de existência, tendo fundamento no princípio da liberdade individual
e na decisão do livre planejamento familiar, garantidos não apenas na ordem
constitucional10 como infraconstitucional11.
Possuindo como pressuposto a vontade, a união estável pode ser con-
ceituada como, conforme lecionam Farias e Resenvald (2020), situação de

9 Cf. § 7º do art. 226 da Constituição da República de 1988.


10 Cf. o art. 5º, caput e o § 7º do art. 226, ambos da Constituição da República de 1988.
11 Cf. os arts. 1.513 e 1.565, ambos do Código Civil.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 141

fato existente entre pessoas (humanas), sem impedimentos para o casamento


com a finalidade de constituir família.
Superando o pressuposto volitivo, os demais requisitos legais também
devem restar presentes para que possa ser conferida especial proteção a que
trata o caput do art. 226 da Constituição da República do Brasil.
O primeiro deles, convivência duradoura, ou como prefere a literatura
especializada, a estabilidade da relação convivencial não exige prazo mínimo
determinado como outrora fixado pela Lei nº 9.278/96 a configurar união es-
tável devendo o exame se dar de forma casuística verificando as características
e circunstância de cada caso (MADALENO, 2022).
O posicionamento da literatura especializada parece estar em sintonia
com a atual forma com que as relações humanas são construídas; isso, porque
a exigência de determinado prazo mínimo para configuração de união estável
além de dificultosa, diante da origem volitiva e fática deste arranjo familiar
ainda se posicionaria de forma anacrônica quando compromissos extensa-
mente duradouros são lidos na modernidade líquida como foco de opressão
capaz de produzir situações de dependência degradantes (BAUMAN, 2004),
mantendo-se enquanto for conveniente, em uma perspectiva utilitarista.
Por essa razão, a análise da duração da união estável deve ser examinada
caso a caso e conjuntamente com outros elementos, sendo requisito indis-
pensável à união estável também a convivência pública no sentido de não ser
clandestina, ainda que não se exija exaustiva publicidade da intimidade do casal,
intimidade essa protegida constitucionalmente (FARIA; ROSENVALD, 2020).
Soma-se aos requisitos anteriores, a convivência contínua que não
precisa ser perpétua, mas suficiente a verificar a solidez do vínculo que se
contrapõe à eventualidade ou mera relação transitória (Idem, 2020).
Todas as características acima devem possuir finalidade qualificada, a
constituição de uma família, e este elemento anímico será verificado por meio
do comportamento exteriorizado das intenções dos envolvidos socialmente
em manter uma comunhão de vidas (MADALENO, 2022).
Presentes os requisitos legais para a configuração da união estável esta
restará estabelecida, independentemente da resistência de um dos conviventes,
tratando-se, pois, de ato-fato jurídico cujos elementos constitutivos são de
ordem pública (REZENDE, 2020).
A união estável, como todo arranjo familiar, goza de especial tutela
por ser a base da sociedade brasileira, formadora de cidadãos que integram o
Estado e formam a vontade estatal.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
142

4 União Estável no Metaverso e a Vontade Humana Manifesta por


Meio de Avatares
Conceituando família virtual (iFamily), Rosa (2014) identifica esta
tanto em sua concepção generalista como espécie de entidade familiar, po-
dendo se apresentar de forma provisória ou permanente, possuindo como
elementos definidores além da relação virtualizada, a afetividade como mola
propulsora dos laços familiares, a estabilidade como elemento constitutivo
e a ostentação volitiva dos elementos anteriores como requisitos a conceder
o status diferenciado ao agrupamento humano o qual deve ser recipiente de
especial tutela estatal.
Os elementos definidores utilizados pelo autor têm como fundamento
a concepção de família eudemonista voltada ao desenvolvimento da autono-
mia do indivíduo como membro de determinada família e de sua realização
afetiva, sendo irrelevante o lugar ou ambiente em que se desenvolvem, con-
forme pode ser extraído da Súmula nº 382 do STF, cujo verbete, apresenta
que, “a vida em comum sob o mesmo teto, more uxório, não é indispensável
à caracterização do concubinato” (BRASIL, 1964, s/p), havendo, entretanto,
isolados posicionamentos contrários como o apresentado por Madaleno
(2022) compreende, ainda que de forma isolada, que a coabitação estaria in-
serida dentro do requisito de convivência pública como forma de explicitar a
manutenção da vida em comum, em comunhão plena, sendo a sua ausência
aceitável apenas em casos excepcionais.
Portanto, a configuração da família, de forma geral, não estaria circuns-
crita a ambientes predeterminados ou mesmo a condições impositivas de
coabitação de seus membros, até mesmo porque, a comunhão de vidas não
exige a presença física indissociável e inarredavelmente absoluta, justamente
por ser esta última impossível, estando o compartilhamento de ambiente co-
mum identificado no campo do desejo recíproco e não na sua indispensável
materialidade para configuração da família, o que torna viável a proposta de
uma família virtualizada, em que o convívio se dê por meio virtual.
Ainda na esteira do marco teórico, é certo que se aproximadamente uma
década, quando da publicação da obra “iFamily: um novo conceito de família?”
já se vislumbrava a existência de “um novo tipo de intimidade” (ROSA, 2014,
p. 98) exercida por e-mail, chats e redes sociais, atualmente12, essa se mostra

12 Cf. REZENDE, Renato Horta. Contrato de namoro e a quarentena provocada pela pandemia de covid-19: alternativa
válida? In: REZENDE, Renato Horta (Org.). Direito de família e a pandemia de covid-19: reflexões necessárias. Belo
Horizonte: Conhecimento, 2020. p. 41-54.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 143

inquestionável, sendo, inclusive, objeto de condutas valoradas pelo Judiciário


brasileiro na esfera do Direito das Famílias13.
A família virtualizada proposta por Rosa (2014) possui estreita conexão
com a eventual família constituída no metaverso, sendo possível vislumbrar o
compartilhamento de todos os elementos definidores, pairando divergência
apenas quanto à formação, pois a família paradigma tem origem ou conserva-
se em ambiente virtual dentro de uma dinâmica dualista entre o virtual e o
analógico, por meio de separações rígidas entre relacionamentos ocorridos,
iniciados ou mantidos no ciberespaço e, de outro lado, relacionamento ex-
clusivamente criado ou mantido em ambiente externo analógico.
A divergência apontada decorre da perspectiva especulativa lançada
sobre o metaverso, compreendido como o estágio em que o ambiente analó-
gico e o ciberespaço se mesclariam de forma indissociável, tornando forçoso
compreender que eventual família desenvolvida nessas condições teria con-
cepção diversa daquela virtualizada, pois as imbricações entre virtual e analó-
gico seriam tão intensas que se tornariam indissociáveis, não havendo assim
espaço para compreensões dualistas como apontada acima, ou seja, inexistiria
diferença entre os companheiros que convivam apenas no ciberespaço, ou
apenas no ambiente analógico ou em ambos, por inexistir tal dicotomia, não
havendo que se falar em, “tenho um(a) companheiro(a) no mundo analógico
e sou solteiro(a) no mundo virtual”, justamente por inexistir separação entre
os meios, restando também pelas mesmas razões afastada, enquanto não es-
tiver madura a sociedade para tanto, o reconhecimento de famílias paralelas.
Essa importante distinção imprime uma maior atenção às representa-
ções humanas ou “símbolos humanos”, avatares, por meio do qual se tornará
possível a intensa imersão, ainda que neste momento, apenas de forma espe-
culativa no metaverso.
Examinando a proteção dos avatares no metaverso, Pereira e Mafaldo
(2022, p. 111) afirmam que, “os avatares correspondem à nossa personificação
no metaverso. Se assim é, há de se resguardar a eles, simetricamente, direitos e
garantias constitucionais transportáveis para esse novo ambiente diversificado
de possibilidades”.
A conclusão trazida pelos autores acima, apesar de contundente, não
explicita acerca do enquadramento jurídico a ser concedido aos avatares, se
estes seriam ou não sujeitos de direitos, sendo, portanto, importante trazer as
anotações de Souza (2020), para quem mecanismos dotados de inteligência
artificial não possuem personalidade jurídica aduzindo que ao não humano

13 Cf. STJ, AgREsp nº 1.269.166/SP; TJMG, ApCiv nº 1.0572.13.000343-5/001; TJDF, Sentença nº 2005.01.1.118170-3.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
144

estaria reservada a subjetividade jurídica apenas na medida em que for rele-


vantemente determinados expedientes técnicos direcionados à satisfação das
finalidades juridicamente merecedoras de tutela como a dignidade da pessoa
humana, pois, caso contrário, estaria em risco o interesse humano, o qual a
tutela jurídica é especialmente dirigida.
Coadunando com o último posicionamento apresentado acima, aos
avatares deve-se atribuir apenas a condição de meros símbolos representativos
de seus controladores, humanos ou não, restando afastada à representação
qualquer personalidade jurídica, o que não, necessariamente, excluiria as
ações, inações, responsabilidade ou obrigações praticadas por ou contra seus
controladores, o que torna relevante o exame sobre a extensão do controle
e determinação das representações humanas no metaverso, precedendo este
o sentido apontado pelo Enunciado nº 677 da IX Jornada de Direito Civil14.
Como já adiantado alhures, O’Neill (2016) adverte que o uso da IA do-
tada de capacidade de aprendizado autossupervisionado impressa aos avatares
no metaverso poderia trazer padrões deturpados e ações diversas daquelas as
quais desejam seus “controladores” humanos, diante da capacidade dos avatares
aprenderem com experiências próprias e tomarem decisões que acreditem ser
aquelas que seus controladores aplicariam em determinada situação.
A apuração da vontade livre e desimpedida praticada por pessoas dire-
tamente ou por representações, como, por exemplo, avatares, é de extrema
importância para avaliação das relações convivenciais no metaverso, pois,
como tratado na seção anterior, o elemento subjetivo volitivo direcionado à
constituição da família é pressuposto indispensável para o exame sobre união
estável, ainda mais observado que os efeitos decorrentes estão arrimados em
normas de ordem pública.
Compreendendo acerca das distorções possíveis com o uso da IA, Gib-
bons (2021) propõe, dentre outras medidas, que o exame dos atos praticados

14 “ENUNCIADO nº 677 – A identidade pessoal também encontra proteção no ambiente digital. Justificativa: O estudo
do direito à identidade sob enfoque diverso das conceituações tradicionalmente apresentadas (que conferem ênfase na
identificação) e da ressignificação contemporânea, baseada na identidade dinâmica, deve receber abordagem específica
e aprofundada pela perspectiva da influência das novas tecnologias no Direito Privado e revela simbiose com a própria
concepção da identidade pessoal. O Direito foi salvo pela tecnologia. Essa afirmação de Stefano Rodotà provoca reflexão
a respeito da utilização da internet e do ciberespaço e as inevitáveis influências na livre formação da personalidade
e demanda análise aprofundada, de forma mais detida, em relação ao direito fundamental à identidade pessoal e as
possíveis influências nas relações no meio virtual. A generalidade e amplitude dessa resumida conceituação compre-
ende os complexos e multifacetados componentes do valor da personalidade em sua dimensão plural e existencial,
cuja prevalência de tutela decorre de proclamação constitucional. Reconhecida a tutela da pessoa humana em todos
os espectros e o correspectivo direito à diferença, e analisando o paralelismo com o conteúdo do direito à igualdade,
exsurge, essencialmente, o direito de manifestar a singularidade inata em cada ser humano como valor inerente à
personalidade, especialmente nas relações travadas em ambiente digital. O respeito à alteridade e às peculiaridades da
relação entre o eu e o outro, exige, agora sob os contornos do componente tecnológico, exige, agora sob os contornos
do componente tecnológico, tratamento conformado com os valores constitucionais.” (BRASIL, 2022a)
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 145

por avatares deva observar o grau de conexão entre o símbolo humano e seu
controlador, quando então o elemento volitivo humano deve ser considerado
como determinante para apuração dos fatos e consequências decorrentes, o
que poder-se-ia representar por meio da equação, segundo a qual, quanto
maior o controle humano sobre o avatar, maior as suas responsabilidades,
quanto menor o controle, menor as suas responsabilidades15.
O fato de ações ora poderem ser atribuídas de forma ampla aos contro-
ladores de avatares e ora não, pode trazer enorme insegurança nas relações,
ainda mais nas relações afetivas fundadas na confiança e afeto; isso, porque
nas demais relações, salvo melhor juízo, a mera aceitação das condições do
uso de avatares pode justificar os resultados de atos praticados por IA previa-
mente aceitos pelo usuário, todavia, dentro do recorte examinado o elemento
volitivo possui especial relevância direcionada à própria existência ou não de
uma família convivencial.
Contudo, apesar do destaque, observando os elementos indispensáveis
à união estável, quais sejam, a estabilidade da relação convivencial de forma
contínua e pública, as eventuais decisões tomadas por IA quanto à comunhão
de vidas exigiria a confirmação, ainda que tácita, de seus controladores por
não serem efêmeras, instantâneas e restritas a um único ato, mas, muito antes
pelo contrário, exigem práticas continuadas e reiteradas, sendo assim forçoso
concluir pela possibilidade de existência de união estável no metaverso, não
sendo suficiente para seu afastamento a utilização de inteligência artificial
ainda que dotada de capacidade de aprendizado autossupervisionado.
Compreendendo possível a existência de união estável no metaverso,
resta examinar os seus efeitos, tanto de ordem pessoal como patrimonial de
eventual ocorrência, sendo o primeiro direcionado à repercussão de direitos
e deveres recíprocos, enquanto o segundo inquinado às consequências de
ordem econômica (FARIAS; ROSENVALD, 2020).
Quanto aos efeitos pessoais de uma união estável gestada no metaver-
so, tem-se que essa deve obedecer a mesma sorte da união estável até então
circunscrita ao mundo analógico; isso, porque a relação amorosa sob exame,
independentemente do meio em que se efetivar, estará direcionada à realização
pessoal por meio do compartilhamento das alegrias e tristezas em comunhão
de vidas, gerando, por exemplo, efeitos quanto ao parentesco por afinidade16,

15 Ainda que em perspectiva diversa, o Parlamento europeu editou a Resolução nº 16, de 2017, recomendando a
regulamentação da e-personality e das responsabilidades decorrentes aos robôs autônomos com maior sofisticação e
capacidade de interagir com terceiros de forma independente (PARLAMENTO EUROPEU, 2017).
16 Cf. o art. 1.595 do CC.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
146

necessidade de litisconsórcio em ações que tratem sobre direitos reais17, direi-


tos e deveres recíprocos18, uso do sobrenome do(a) companheiro(a)19, adoção
conjunta20, legitimidade ativa na ação de interdição do(a) companheiro(a)21,
e, em contrapartida, afastando, a concessão de emancipação ao menor22 em
união estável, assim como também a atribuir paternidade presumida23, e,
ainda, mantendo o estado civil dos envolvidos inalterados.
Por sua vez, a repercussão de ordem patrimonial e econômica merece
maior investigação, não por seus contornos gerais serem diversos daqueles
estabelecidos para a união estável no mundo exclusivamente analógico, porque
como examinado anteriormente não são, mas, principalmente, em razão da
localização física das pessoas envolvidas e da própria essência do patrimônio
virtual a ser partilhado.
Tratando-se de reconhecimento e dissolução de união estável desen-
volvida no metaverso, caso o(a) demandado(a) resida no Brasil, observada a
legislação atual, seria a autoridade brasileira competente para o exame dos fatos,
conforme regra contida no art. 21, I, do CPC, assim como também quando
se tratar de partilha de bens físicos situados no Brasil, quando então, ter-se-ia,
nesta derradeira hipótese, com exclusividade, por competente a autoridade
nacional para decidir sobre o assunto, à luz do art. 23, III, do CPC.
Por sua vez, os bens digitais existentes, assim como o próprio reco-
nhecimento, extensão e regulamento das relações humanas desenvolvidas
nessa perspectiva, inicialmente, estão circunscritos às regulamentações dos
criadores e desenvolvedores de protometaversos em que se desenvolvem, o
que parece, salvo melhor juízo, não estarem circunscritas às fronteiras políticas
ou geológicas existentes no mundo analógico.
Assim, tratando-se de partilha de bens digitais, ainda que adquiridos
ou construídos por pessoas com domicílio analógico situado no Brasil, a re-
percussão dos efeitos patrimoniais e econômicos de eventual dissolução de
união estável poderia sofrer resistência em sua efetiva execução; isso, porque
os protometaversos não possuiriam localização territorial material, mas ima-
terial, inexistindo correspondência física entre seus usuários/habitantes e o
ciberespaço hiperimersivo, além de cada singular ambiente virtual guardar

17 Cf. o art. 73, § 3º, do CPC.


18 Cf. o art. 1.724 do CC.
19 Cf. o art. 57, §§ 2º e 3º, da Lei de Registros Públicos.
20 Cf. o art. 42, § 2º, do ECA.
21 Cf. o art. 747, I, do CPC.
22 Cf. o art. 5º do CC.
23 Cf. o art. 1.597 do CC.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 147

regramentos, condições e possibilidades próprios atinentes ao gerenciamento


de contas24.
Apesar de tratar de temática diversa, a resistência a decisões judiciais
a serem aplicadas em ambiente virtual já foi experimentada pelo Judiciário
brasileiro conforme registrada na decisão proferida nos autos da PET nº
9.935 (BRASIL, 2022c), em que, para o cumprimento da ordem, o Ministro
Alexandre de Morais, do STF, determinou a completa suspensão do funcio-
namento e acesso ao aplicativo Telegram no Brasil, como forma a dar eficácia
às determinações judiciais.
Cumpre destacar ainda que, atualmente, os contratos firmados entre
usuários e provedores de ambientes virtuais não atribuem àqueles sequer a
propriedade dos bens digitais que gerenciam, ainda que adquiridos onerosa-
mente pelo usuário, conservando para si o domínio e franqueando apenas o
seu uso, exclusivo ou não (ALMEIDA, 2019), fato que tem grande repercussão
em eventual partilha patrimonial decorrente da dissolução da união estável.
Todavia, de forma especulativa e agora mais abrangente, parece que a
viabilidade do metaverso está condicionada não apenas a circulação de pessoas
e representação humanas entre protometaversos, e entre estes e o ambiente
analógico, mas também na possibilidade de circulação da propriedade cons-
truída e adquirida nos ambientes, físico e/ou digitais25, fato que solucionaria
a dificuldade dirigida à questão patrimonial acima.
Soma-se às dificuldades práticas acima, a mesma problemática quanto
à definição dos bens digitais de conteúdo econômico e patrimonial passíveis
de eventual partilha, a definição do que seriam bens digitais e, ainda, quais
seriam passíveis de partilha.
Segundo Almeida (2019), nos Estados Unidos da América, digital assets
são definidos de forma ampla como a variedade de bens informacionais intan-
gíveis associados com o mundo digital podendo ser catalogados em categorias
conforme o local em que se encontram, todavia, os bens digitais, diferentes
dos ativos digitais, podem ter conteúdo econômico ou não, podendo estar
ainda conexos com a personalidade de seu usuário ou a questões estritamente
econômicas, ou, ainda, gozar de caráter misto, quando possuir aspectos per-
sonalíssimos, mas com conteúdo econômico, podendo estar armazenados em
dispositivos autônomos ou em servidores.

24 Cf.: https://www.facebook.com/help/1017717331640041.
25 Collaço e Bino (2022) especulam que o NFT (token não fungível) tem potencialidade de tornar-se a principal forma
de se negociar no metaverso, por se atribuir exclusividade ao bem, possuir capacidade de trafegar e ser disposto
com facilidade no ambiente virtual, possuindo ainda tanto proteção legal (Código Civil e Lei nº 14.478, de 21 de
dezembro de 2022) como sistêmica por meio da rede blockchain vinculadas a smart contracts.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
148

De forma semelhante, Zampier (2021) identifica os bens digitais como


um gênero que comportaria vários conteúdos, postados, compartilhados ou
armazenados por meio do ambiente virtual de natureza incorpórea, poden-
do ser classificados em duas categorias, o primeiro de aspecto nitidamente
econômico e caráter patrimonial, enquanto o segundo inteiramente ligado
aos direitos da personalidade de natureza existencial. Restando, ainda, outra
possibilidade não categorizada, mista, que trafegaria entre ambas as categorias
apresentando tanto aspectos patrimoniais como existenciais.
A definição da natureza jurídica dos bens virtuais é importante, pois po-
derá determinar o que será incluído ou excluído da partilha conforme regime
de bens legalmente determinado ou livremente escolhido pelos envolvidos,
compreendendo excluído da partilha, independentemente do regime adotado,
os bens de natureza existencial, em consonância com a mens legis dos arts. 1.659,
V, e 1.668, V, ambos do CC, assim como misto, entre o patrimonial e o existen-
cial, neste último caso, salvo os frutos econômicos decorrentes, a depender do
regime de bens contraído, conforme os arts. 1.660, V, e 1.669, ambos do CC.
Apesar das apontadas dificuldades algumas já enfrentadas atualmente
enquanto outras apenas especuladas, não parecem estas estarem entre as prin-
cipais preocupações do legislador brasileiro que, vez ou outra, faz inserir sim-
plórias regulações genéricas na legislação existente (ZAMPIER, 2021) sobre
o tema, como se colhe da recente Lei nº 14.478, de 21 de dezembro de 2022,
que estabeleceu de forma genérica o que é ativo virtual, uma representação
digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos
e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento;
atribuiu competência ao Banco Central do Brasil para estabelecer as condições
e prazos de aplicação das novas diretrizes; e, por fim, inseriu e alterou a reda-
ção de legislações existentes, não trazendo efetiva e profunda regulamentação
sobre relações humanas no protometaverso, ou definições aprofundadas sobre
as relações humanas virtuais ou virtualizadas.

5 Conclusões
O conceito de metaverso vem sendo desenvolvido ao longo das últimas
três décadas, inicialmente vinculada ao gênero literário ficção científica e atu-
almente toma contorno especulativo diante do interesse de grandes empresas.
Por se tratar de algo ainda em desenvolvimento, inexiste conceito
unânime do que é ou poderia vir a ser o metaverso, sendo trabalhado nesta
pesquisa como o conjunto de ambientes analógico e digitais (protometaversos)
que somados dão lugar a algo extraordinariamente novo, para além da única
versão de mundo, perfazendo a perfeita conexão entre o ambiente analógico
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 149

e os virtuais, de forma constante, simultânea e online, em que seus habitantes


não apenas percebem como algo real, mas também como local adequado
para todo o tipo de interações interpessoais por meio de profunda imersão,
viabilizada por alta tecnologia e uso de avatares, sem distinção entre aquilo
que seria analógico e o que seria virtual, afastando, assim, qualquer dicotomia
entre eles e possuindo as ações os mesmos resultados independentemente do
meio no qual foram executados.
Paralelo à definição de metaverso como um ambiente hiperconectado
tanto ao mundo analógico como a protometaversos destinado a interações
interpessoais, apurou-se que a união estável constitui arranjo familiar es-
pecialmente tutelado pelo Estado cujos requisitos – convivência pública,
contínua e duradoura – independem de convivência física, ainda que tenha
como finalidade a constituição de familiar, a qual, por sua vez, está dirigida
à concretização da autonomia do indivíduo e de sua relação afetiva indepen-
dentemente do meio e da forma com que se realiza.
A independência do meio em que se verifica a possibilidade de consti-
tuição de união estável quando presentes seus requisitos e finalidades indica a
viabilidade jurídica do reconhecimento de famílias convivenciais no metaver-
so, ainda que no ciberespaço a convivência se dê por meio “símbolos huma-
nos”, sem personalidade jurídica, cuja vontade manifesta deve ser conferida
com aquela desejada por seu “controlador”, quando então restaria garantida
a especial proteção à família construída no metaverso.
Todavia, a possibilidade de reconhecimento da união estável no meta-
verso não afasta a dificuldade projetada com relação à partilha de patrimônio
existente exclusivamente em ambiente digital, algo que tem exigido, já hoje,
o esforço do Judiciário brasileiro ainda que conte com pouca atenção do
Legislativo nacional.

TITLE: (Im)possibility of recognition of stable union in the metaverse.

ABSTRACT: The need to examine the possible possibility of recognizing a stable union in the metaverse
was identified due to the investment of large companies in the development and creation of protametaverses,
as well as the consequent formulations on different perspectives involving the subject. The theoretical,
speculative and investigative development of the research has as a theoretical reference the notes made by
Conrado Paulino da Rosa in the work “Ifamily: a new concept of family?”, in which the author examines
three sequential and dependent hypotheses aimed at the possibility of affective human relationships occur-
ring regardless of the environment, the personification of “human symbols” in cyberspace, and the need to
guarantee special protection to the family built in the metaverse. The research was developed in three parts,
the first related to the definition of metaverse, the second about the definition and requirements of the
stable union and the third aimed at testing the hypotheses. The raised hypotheses were partially confirmed.

KEYWORDS: Metaverse. Protametaverse. Stable Union. Definitions. Speculations.


Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
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Recebido em: 17.01.2023


Aprovado em: 06.02.2023
Doutrina

A Valorização das Quotas Sociais e a sua


Projeção para a Sucessão Causa Mortis, o
Divórcio e a Dissolução da União Estável

Rodrigo Mazzei
Doutor (FADISP) e Mestre (PUC-SP), com Pós-
Doutoramento (UFES); Líder do Núcleo de Estudos em
Processo e Tratamento de Conflitos (NEAPI – UFES);
Professor da UFES (Graduação e PPGDir) e da FUCAPE
Business School; Advogado, Consultor Jurídico e atuação em
Arbitragem; e-mail: mazzei@mmp.adv.br.

Fernanda Bissoli Pinho


MBA em Direito Empresarial e em Direito Societário (FGV-
RJ); Mestranda (em regime especial) na UFES; Advogada;
e-mail: fernanda@mmp.adv.br.

RESUMO: O presente trabalho tem por escopo avaliar o tratamento jurídico


que vem sendo dado pela jurisprudência à questão relativa à transmissão de
quotas sociais em decorrência da sucessão causa mortis, do divórcio e da dis-
solução da união estável. Para tanto, perpassar-se-á, de início, pela disciplina
legal atinente às quotas sociais, sobretudo, no que diz respeito à transmissão
dos direitos patrimoniais que lhes são inerentes. Em seguida, no propósito de
viabilizar o aprofundamento do tema, debruçar-se-á sobre as regras gerais dos
regimes matrimoniais, destacando-se aquelas que orientam a comunhão parcial
de bens, bem como suas principais repercussões, tanto em sede de falecimento
como de divórcio e ruptura de união estável. Em seguida, já fixadas as normas
que orientam a comunicabilidade das quotas sociais, passar-se-á à análise da
problemática central do artigo, no sentido de avaliar a possibilidade de partilha
da valorização econômica incidente sobre as quotas sociais, o que se fará à luz de
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, apresentando reflexão e análise
crítica das respectivas premissas decisórias.

PALAVRAS-CHAVE: Quotas Sociais. Valorização Patrimonial. Partilha. Sucessão


Causa Mortis. Divórcio. Dissolução de União Estável.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Panorama Geral e as Quotas Sociais. 2 A Disciplina


Legal Acerca da Comunicabilidade das Quotas Sociais. 3 O Entendimento do STJ
(Recurso Especial 1.173.931/RS). 4 Análise Crítica da Jurisprudência: a Anacronia
do Posicionamento e o Equívoco da Premissa. Considerações Finais. Referências.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 153

Introdução
O desenvolvimento econômico e o progresso social implicam, sem
dúvidas, grande complexidade nas relações jurídicas, especialmente naquelas
relacionadas à exploração da atividade econômica e organização patrimonial.
Cada dia mais, por diferentes motivações – que perpassam desde a con-
veniência fiscal, até a estratégia de organização societária ou planejamento
sucessório – as pessoas naturais deixam de titularizar diretamente as relações
jurídico-econômicas, passando a desenvolver suas atividades produtivas por
meio da estrutura das sociedades empresárias.
Naturalmente, como consequente lógico deste cenário de “pejotização”,
em que as sociedades assumem o protagonismo no exercício das funções
profissionais e mercantis, torna-se corriqueiro que o acervo patrimonial das
pessoas físicas compreenda quotas sociais representativas de participações
societárias nas respectivas sociedades. E este fato, como se vê na prática, enseja
dúvidas e questionamentos especialmente no momento da sucessão causa mortis
e do divórcio/ruptura da união estável, devendo-se encontrar mecanismos
que permitam a melhor aplicação dos direitos tidos como “empresariais” (=
participações societárias).
Nesse contexto, dentre as questões que está a merecer atenção, destaca-
se a avaliação acerca da comunicabilidade (e a respectiva da valorização eco-
nômica) das quotas sociais de titularidade de um dos cônjuges/companheiros,
sendo este o ponto sobre o qual nos debruçamos, buscando apresentar uma
reflexão a partir da revisitação, em análise crítica, de jurisprudência firmada
na perspectiva de posicionamento do Colendo Superior Tribunal de Justiça.

1 Panorama Geral e as Quotas Sociais


As sociedades empresárias, consoante a exegese legal do art. 981 do
Código Civil1, são constituídas por pessoas que reciprocamente se obrigam
a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica
e a partilha, entre si, dos resultados.
No âmbito das sociedades limitadas – que serão aquelas consideradas no
recorte proposto para os fins deste estudo – esta contribuição deve ser sempre
de natureza patrimonial2 e pode ser feita mediante prestação em dinheiro ou
integralização de qualquer modalidade de bem sujeita à avaliação pecuniária.
A esta dotação que cada sócio destina para a formação do capital social – e, por

1 “Art. 981. Celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou
serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.”
2 Código Civil: “Art. 1.055. (...) § 2º É vedada contribuição que consista em prestação de serviços”.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
154

conseguinte, do patrimônio social3 – denomina-se quota social, que, assim


sendo, nada mais é do que a fração correspondente ao capital social empre-
sarial, da qual emana uma posição de direitos e deveres perante a sociedade4.
Nesse sentido, Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2018, p. 395):
“A quota social, portanto, tem a natureza de um bem incorpóreo, que enfeixa
direitos pessoais e patrimoniais. Os direitos pessoais são os de deliberar,
de fiscalizar a sociedade, de votar e ser votado, de retirar-se da sociedade e
de, eventualmente, geri-la; os direitos patrimoniais são o de receber divi-
dendos, quando determinados em balanço e deliberada sua distribuição,
e o de participar do acervo social em caso de dissolução total ou parcial da
sociedade ou de apuração de seus haveres em decorrência de falecimento,
de exclusão ou do exercício do direito de retirada.”

Sem adentrar nas discussões pertinentes à natureza jurídica das quotas,


porquanto não se mostram indispensáveis à consecução do tema aqui proposto,
pode-se qualificar a quota social, em apertada síntese, como um bem móvel
incorpóreo (art. 83, III, do Código Civil5) e de acepção bifronte, pois, de sua
titularidade, se desdobram simultaneamente direitos pessoais e patrimoniais.
Para o presente estudo, interessam tão somente os direitos de cunho patrimo-
nial, afinal, aqueles de natureza pessoal não são, a rigor, transmissíveis pela
sucessão causa mortis, tampouco no divórcio ou na dissolução da união estável.
A propósito, convém esclarecer que, em decorrência da natureza con-
tratual das sociedades limitadas, impõe-se o entendimento de que a “condição
de sócio” não é transmissível por sucessão ou no divórcio/dissolução da união
estável, afinal, é inconcebível, na perspectiva dos princípios da autonomia da
vontade e da relatividade dos efeitos dos contratos, que um terceiro estranho à
relação contratual possa dela tomar parte, sem que haja prévio consentimento
de todos os partícipes em relação a tal, sobretudo, porque o liame que se esta-

3 O capital social, com efeito, representa a importância vertida pelos sócios para formar o patrimônio da sociedade, seja
no momento de sua constituição, seja em decorrência de deliberações posteriores. Contudo, embora indicando o
patrimônio que deve ter a sociedade, o capital social com ele não se confunde. Por patrimônio social deve-se entender
o conjunto de bens e direitos de que a sociedade é possuidora. Já o capital social estampa o valor do patrimônio que
ingressou na sociedade em razão da contribuição dos sócios, sendo, pois, a expressão numérica do valor do patrimônio
fornecido pelos sócios e por eles reputado suficiente para a consecução dos fins sociais. Daí por diante, adquirindo
vida, a sociedade passa a agir no mundo jurídico para a realização de seu objeto social e seu patrimônio fica sujeito à
performance da atividade empresarial, crescendo ou definhando em conformidade com as injunções do mercado ou
com a expansão ou encolhimento das atividades sociais. Assim, se no momento da constituição da sociedade eles se
equivalem, ao longo da vida social eles se distanciam (GONÇALVES NETO, 2018, p. 390-392).
4 Diferentemente das ações de sociedades anônimas, as quotas não se constituem um bem em si mesmas, porquanto
não se revestem de ampla e autônoma circularidade, por meio de processos translativos de natureza registrária. De
modo outro, portanto, a quota, no âmbito da sociedade limitada, é representativa, sim, de uma posição de direitos – de
caráter pessoal e patrimonial – perante a sociedade. Enquanto a ação, na qualidade de valor mobiliário, é, ela própria,
o objeto do direito, da quota decorrem os direitos de seu titular perante a sociedade (BORBA, 2022, p. 42-43).
5 “Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais: (...) III – os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas
ações.”
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 155

belece entre os sócios, em regra, é de cunho pessoal (caráter intuito personae),


sendo determinante para o vínculo entre eles a affectio societatis6.
Dessa maneira, ao falecer, o sócio transmite, por meio das quotas de
capital social, sua participação societária aos seus sucessores, mas isso não
legitima tais sucessores a integrarem-se à rotina social e ou imiscuírem-se na
gestão da atividade empresarial. Raciocínio semelhante, com os devidos ajustes,
também se aplica ao divórcio e à ruptura da união estável, sem prejuízo de se
analisar eventual comunicação de caráter patrimonial em relação às quotas.
A saisine (art. 1.784 do Código Civil7), aplicável especificamente às quo-
tas do capital social de determinada empresa, provoca a atração destas para o
condomínio hereditário (art. 1.791 do Código Civil8), sendo a herança tratada
como bem único, de natureza imóvel e indivisível (art. 80, II, do Código Ci-
vil9). A titularidade dos herdeiros é, pois, de quota condominial que necessita
ser liquidada por meio de inventário causa mortis (art. 1.796 do Código Civil10),
não podendo esta ser confundida com a própria quota societária, pois a última
é tão somente um dos componentes da massa hereditária que, repita-se, não
pode ser individualizada, muito menos cindida até o desfecho do processo
sucessório, afora as exceções previstas na própria legislação11.
Nem mesmo o legatário de quotas societárias pode ser tratado como
“sócio” da pessoa jurídica, pois a entrega destas reclama também a liquidação
da herança, isto é, o procedimento que envolve o pagamento de todas as dí-
vidas e a definição em decisão judicial de que o legado deve ser cumprido12,

6 No tema, com mais vagar: MAZZEI; PINHO, 2021, p. 5-24.


7 “Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.”
8 “Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até
a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas
normas relativas ao condomínio.”
9 “Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais: (...) II – o direito à sucessão aberta.”
10 “Art. 1.796. No prazo de trinta dias, a contar da abertura da sucessão, instaurar-se-á inventário do patrimônio he-
reditário, perante o juízo competente no lugar da sucessão, para fins de liquidação e, quando for o caso, de partilha
da herança.”
11 Por exemplo, admite-se a partilha antecipada com espeque no art. 647, parágrafo único, do CPC, proferindo-se
decisão que autorizará o uso e gozo de determinado bem componente do condomínio hereditário até que o desfecho
do inventário sucessório ocorra. Permite-se, outrossim, por meio de interpretação do art. 1.793, § 3º, do Código
Civil, a alienação de bem que compõe a herança, mediante o pagamento e autorização do juízo sucessório, operando-
se a sub-rogação do bem e/ou direito em dinheiro em favor da herança. Note-se, todavia, que tais situações não
são naturais e reclamam que sejam proferidas decisões judiciais que individualizam bens e/ou direitos da herança,
retirando-os do estado de indivisibilidade que é inerente a qualquer componente objetivo do condomínio hereditário.
No tema, com mais vagar: MAZZEI, Rodrigo. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 610 a 673). In: GOUVÊA,
Jose Roberto Ferreira; BONDIOLI, Luis Guilherme; FONSECA, João Francisco Naves da (Coord.). São Paulo:
Saraiva, no prelo. v. XII.
12 Como obstáculo ao cumprimento do legado, por exemplo, poderá se impor o respeito aos limites da legítima (arts.
1.845 e 1.846 do Código Civil) ou o consumo do patrimônio legado pelas dívidas do falecido. No tema, com análise
do cumprimento do legado a partir da bandeja legal do art. 645 do CPC, confira-se: MAZZEI, Rodrigo. Comentários
ao Código de Processo Civil: arts. 610 a 673). In: GOUVÊA, Jose Roberto Ferreira; BONDIOLI, Luis Guilherme;
FONSECA, João Francisco Naves da (Coord.). São Paulo: Saraiva, no prelo. v. XII.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
156

interpretação esta que pode ser perfeitamente extraída do disposto no art.


1.923 do Código Civil13.
Assim sendo, a saisine não cria direito que permite que qualquer
beneficiado com a herança se poste como sócio, em decorrência dela ter
atraído quotas societárias do falecido14. Dito de outro modo, o herdeiro e/
ou o legatário não podem ter sua posição equiparada àquela exercida pelo
sócio, tal como era o falecido, pois seus direitos estão sob condição, qual seja,
o resultado da liquidação da herança, com a entrega efetiva da titularidade das
quotas societárias. Nessa perspectiva, as quotas, por si só, salvo entendimento
manifesto dos sócios sobreviventes e dos herdeiros em sentido diverso (art.
1.028 do Código Civil15), – não garantem o ingresso na sociedade, mas tão
somente o recebimento da sua respectiva representação econômica (= con-
teúdo econômico das quotas sociais16)17. Portanto, em linhas gerais, como adverte
Hernani Estrella (2010, p. 55-56), em seara de sociedade limitada, “a vocação
hereditária se opera exclusivamente na esfera patrimonial, jamais a respeito
da relação essencialmente pessoal, como é aquela que deriva da qualidade
de sócio”.
Toda a construção acima efetuada, sem rebuços, se aplica ao divórcio e a
extinção da união estável, pois a eventual comunicação patrimonial das quotas
não pode avançar contra a lógica do cunho pessoal (caráter intuito personae), ou

13 “Art. 1.923. Desde a abertura da sucessão, pertence ao legatário a coisa certa, existente no acervo, salvo se o legado
estiver sob condição suspensiva. § 1º Não se defere de imediato a posse da coisa, nem nela pode o legatário entrar
por autoridade própria. § 2º O legado de coisa certa existente na herança transfere também ao legatário os frutos
que produzir, desde a morte do testador, exceto se dependente de condição suspensiva, ou de termo inicial.”
14 Na linha (ainda que tendo como pano de fundo ações de sociedade anônima): “(...) A transferência de ações nomi-
nativas em virtude de sucessão por morte somente se dá mediante averbação no correspondente livro de registro da
sociedade empresária. Inteligência do art. 31, § 2º, da Lei nº 6.404/76. 6. Destarte, não se sustenta a tese defendida
no recurso especial no sentido de que, por força do disposto no art. 1.784 do CC, o recorrente teria assumido a
posição de acionista da companhia automaticamente a partir do falecimento de seu genitor, independentemente de
qualquer formalidade” (STJ, 3ª Turma, REsp 1.953.211, j. 15.03.2022).
15 “Art. 1.028. No caso de morte de sócio, liquidar-se-á sua quota, salvo: I – se o contrato dispuser diferentemente; II
– se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; III – se, por acordo com os herdeiros, regular-se
a substituição do sócio falecido.”
16 No sentido (e bem fundamentado): STJ, 3ª Turma, REsp 1.531.288, j. 24.11.2015.
17 O Código Civil da Itália possui um dispositivo específico sobre o tema, confira-se: “Art. 2.289 – Liquidazione della
quota del socio uscente. Nei casi in cui il rapporto sociale si scioglie limitatamente a un socio, questi o i suoi eredi
hanno diritto soltanto ad una somma di danaro che rappresenti il valore della quota. La liquidazione della quota e fatta
in base alla situazione patrimoniale della società nel giorno in cui si verifica lo scioglimento. Se vi sono operazioni
in corso, il socio o i suoi eredi partecipano agli utili e alle perdite inerenti alle operazioni medesime. Salvo quanto e
disposto nell’art. 2270, il pagamento della quota spettante al socio deve essere fatto entro sei mesi dal giorno in cui
si verifica lo scioglimento del rapporto”. Tradução: Art. 2.289 – Liquidação da quota do sócio que se retira – Nos
casos em que a relação social se dissolver limitadamente a um sócio, este, ou seus herdeiros, tem direito somente
a uma importância em dinheiro que represente o valor da quota. A liquidação da quota é feita na base da situação
patrimonial da sociedade no dia em que se verifica a dissolução. Se houver operações em curso, participarão, o sócio
ou seus herdeiros dos lucros e das perdas inerentes às próprias operações. Observado o disposto no art. 2.270, o
pagamento da quota que cabe ao sócio deve ser feito dentro de seis meses em que se verificar a dissolução da rela-
ção. Tradução efetuada com base em Diniz (1961, p. 329). Também fazendo alusão ao Código Civil da Itália, com
tradução própria, confira-se: FRANÇA; ADAMECK, 2021, p. 85-86.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 157

seja, a affectio societatis. Assim, a comunicabilidade será analisada tão somente


no plano patrimonial da relação entre os cônjuges/companheiros, inclusive
em relação à pessoa jurídica e demais participantes da sociedade.
Note-se, por deveras relevante, que na vertente patrimonial (e na esteira
de todo o delineado) as quotas são, pois, a representação de um direito de
feição econômica, que, como tal, constitui-se patrimônio de seu titular (pes-
soa física)18, não se confundindo, em hipótese alguma, com o patrimônio da
própria empresa (pessoa jurídica). No pormenor, quadra destacar o princípio
da autonomia patrimonial, que é o principal corolário da personalização das
pessoas jurídicas.
Com efeito, a constituição de uma sociedade tem por propósito a criação
de um novo sujeito de direito, distinto das pessoas que o ajustam, capaz de
direitos e obrigações na ordem civil, para facilitar o intercâmbio no mundo
do direito, interpondo-se entre seus criadores e terceiros na realização de
negócios (GONÇALVES NETO, 2018, p. 154).
Assim sendo, na medida em que a lei estabelece a separação entre
a pessoa jurídica e os membros que a compõem, os sócios não podem ser
considerados os sujeitos das relações jurídicas negociais, sendo a própria
sociedade a titular dos direitos e a devedora das obrigações correlacionadas
à exploração da atividade comercial (COELHO, 2007, p. 14). Como bem
esclarece Carla Wainer Chalréo Lgow, “a distinção fica clara quando se nota
que os sócios não são coproprietários do patrimônio social. No patrimônio
dos sócios encontra-se a participação societária, enquanto os bens sociais
são de titularidade da própria sociedade” (LGOW, 2007, p. 25). Nessa toada,
constituindo-se patrimônio do sócio, as quotas, como não poderia deixar
de ser, integram, como qualquer outro bem, o acervo de bens do titular e,
por conseguinte, do espólio, quando do seu falecimento19, estando sujeitas à
partilha, situação aplicada, de modo semelhante, no divórcio e na dissolução
da união estável (com os ajustes necessários à hipótese).

18 Muito embora atualmente não remanesçam dúvidas a respeito do caráter patrimonial das quotas sociais, o assunto
já foi controvertido no passado, cabendo destaque às considerações outrora apresentadas pelo STJ, no julgamento
do REsp 1.531.288/RS: “De plano, releva consignar ser inquestionável que as quotas sociais, seja de uma sociedade
empresarial, seja de uma sociedade simples, além de serem dotadas de expressão econômica, não se confundem
com a atividade econômica desenvolvida pela sociedade (objeto social). (...) Ante a inegável expressão econômica das
quotas sociais, a compor, por consectário, o patrimônio pessoal de seu titular, estas podem, eventualmente, ser objeto
de execução por dívidas pessoais do sócio, bem como de divisão em virtude de separação/divórcio ou falecimento
do sócio” (STJ, REsp 1.531.288/RS, 3ª Turma; j. 24/11/2015).
19 Por constituírem bens dotados de expressão econômica, afigura-se possível a partilha de quotas sociais na dissolução
da sociedade conjugal do sócio ou de morte de seu cônjuge, quando se atribui aos herdeiros a parcela que lhe é devida
em razão da meação. Tal divisão dependerá do regime de bens adotado. A norma objetiva preservar o patrimônio
social, a evitar a descapitalização que o pagamento de ativos para todos os envolvidos geraria (WALD, 2005, p. 221).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
158

2 A Disciplina Legal Acerca da Comunicabilidade das Quotas Sociais


Por certo, as relações familiares, para além de centros de relação de
parentesco e afetividade, constituem-se núcleos econômicos, que emanam
efeitos de ordem patrimonial, os quais serão orientados em consonância com
o regime de bens eleito para disciplinar a conjugalidade.
Nas palavras de Fabiana Domingues Cardoso e Viviane Girardi (2021,
p. 177), “o regime de bens pode ser definido como um conjunto de regras
aplicáveis às relações patrimoniais no âmbito conjugal”. Para Flávio Tartuce
(2017, p. 1.284), “o regime matrimonial de bens pode ser conceituado como
sendo o conjunto de regras de ordem privada relacionadas com interesses pa-
trimoniais ou econômicos resultantes da entidade familiar” e, em semelhante
trilhar, Silvio Rodrigues (2004, p. 135) assevera que “é o estatuto que regula
os interesses patrimoniais dos cônjuges durante o matrimônio”.
Para além de regulamentar a forma de tratamento e administração
do patrimônio durante o curso da relação marital, o regime de bens assume
função tão importante quanto, de balizar o modo como acontecerá a trans-
missão patrimonial causa mortis. Nesse passo, a vocação sucessória do cônjuge/
companheiro depende, exatamente, da eleição do regime de bens.
A legislação brasileira, de modo enumerativo, contempla os seguintes
modelos de regime de bens: comunhão parcial (arts. 1.658 e seguintes do
Código Civil); comunhão universal (arts. 1.667 e seguintes do Código Civil);
separação convencional (total ou absoluta) de bens (arts. 1.687 e seguintes do
Código Civil); separação obrigatória (legal) de bens (art. 1.641 do Código Ci-
vil) e participação final nos aquestos (arts. 1.672 e seguintes do Código Civil),
prevendo-se, ainda, a possibilidade de criação de regimes atípicos (ou mistos),
em que as partes podem, no exercício de sua autonomia privada, livremente
estipular quanto ao tratamento dos bens, criando, em contrato ou escritura
pública, as regras que melhor lhes aprouverem (art. 1.639 do Código Civil).
Mais uma vez, para melhor direcionar o presente trabalho, debruçar-
se-á, tão somente, e de modo tangencial, sobre o primeiro deles, que é aquele
considerado na situação fática em torno da qual se erige a problemática em
apreço.
Com efeito, o regime de comunhão parcial é o mais recorrente em nossa
sociedade, especialmente porque, em consonância com a previsão normativa
estatuída no art. 1.640 do diploma civil, é aquele que vigorará quando não
houver convenção do casal, ou quando esta for nula ou ineficaz. Portanto,
é o regime legal dito supletivo, que incide por força de lei nos casos em que
os cônjuges não tenham livremente pactuado regime diverso – situação
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 159

corriqueira em nosso país, em que, por questões culturais, não se verifica


costumeiramente a pactuação antenupcial20.
Tal imperativo se aplica também ao regime de união estável, incidindo
a comunhão parcial nas relações patrimoniais dos companheiros, quando da
inexistência de contrato escrito entre eles (art. 1.725 do Código Civil).
Caracteriza-se, segundo Conrado Paulino da Rosa, pela “comunicação
dos bens que sobrevierem ao casal, na constância do relacionamento, por título
oneroso, sendo excluídos os bens que cada um possuía de modo antecedente,
assim como aqueles recebidos por doação ou herança” (ROSA, 2022, p. 70).
Por conseguinte, como elucida o autor na sequência, ocorre a formação de
três massas patrimoniais, sendo uma de bens comuns (art. 1.660 do Código
Civil), os aquestos, que serão divididos de modo igualitário (meação), e duas
de bens particulares (art. 1.659 do Código Civil) (ROSA, 2022, p. 71).
Em relação a tais bens (particulares), assim como aos sub-rogados, em
caso de dissolução, em vida, da relação conjugal, são incomunicáveis, sendo
excluídos da partilha (art. 1.659, I e II), havendo a comunhão, tão somente,
das benfeitorias sobre eles constituídas (art. 1.660, IV) e dos frutos deles
percebidos na constância do casamento ou pendentes ao tempo de cessar a
comunhão (art. 1.660, V).
Entretanto, em caso de falecimento de um dos cônjuges, tomando-se
os nortes legais da sucessão – isto é, obedecendo-se a ordem de sucessão legí-
tima, excluindo-se a hipótese de existência de testamento –, existe substancial
diferenciação quanto à criteriologia de divisão da herança, pois que o cônjuge
supérstite concorrerá com os herdeiros do de cujus na sucessão dos bens par-
ticulares (art. 1.829, I)21, regra esta importante e que refoge à ideia generalista
de incomunicabilidade do patrimônio particular, por permitir que o cônjuge
herde justamente aquilo que se reputava, a princípio, excluído da comunhão22.

20 Como destacam Fabiana Domingues Cardoso e Viviane Girardi (2021, p. 179), a modalidade supletiva do regime é
fixada na lei a partir da análise dos costumes e das necessidades da sociedade na qual ele se aplica e, normalmente,
engloba as regras que a maioria das pessoas, submetidas a tal legislação, restaria satisfeita ou escolheria.
21 Não se descura que a disposição do art. 1.829, I, do CC, por sua redação controvertida, suscitou variadas discussões
doutrinárias com reflexo na jurisprudência nacional, gerando polêmica sobre a vocação hereditária e a concorrência
do cônjuge sobrevivente com os descendentes do autor da herança, tanto que estabeleceram-se quatro correntes
interpretativas distintas, conforme identificadas esquematicamente no julgamento do REsp 992.749/MS (BAGNOLI,
2016, p. 19). No entanto, sob pena de introduzir demasiada complexidade na análise de ponto adjacente no trabalho,
para fins de corte metodológico, adota-se no presente estudo a corrente majoritária, que é aquela formada a partir da
hermenêutica literal do Código, conjugada com o Enunciado nº 270 da III Jornada de Direito Civil, que assim dispõe:
“O art. 1.829, inciso I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os descendentes do autor
da herança quando casados no regime de separação convencional de bens ou, se casados nos regimes de comunhão
parcial ou participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipótese em que a concorrência se
restringe a tais bens, devendo os bens comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes”.
22 Como adverte Conrado Paulino da Rosa (2022, p. 73), esta regra faz cair por terra a ideia de que, no regime de co-
munhão parcial de bens, a comunicabilidade dos bens acontecerá apenas em relação aos bens construídos “a quatro
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
160

Em se tratando de união estável, contudo, a lei não fazia a mesma dis-


tinção, prevendo o art. 1.790 do Código Civil um regime próprio, em que
o companheiro somente participa da sucessão quanto aos bens adquiridos
onerosamente na vigência da união estável. Como é de sabença geral, o re-
ferido dispositivo, em 2017, veio a ser considerado inconstitucional, fixando
o Supremo Tribunal Federal, nos Temas de Repercussão Geral nº 498 e 809,
a seguinte tese: “É inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre
cônjuges e companheiros prevista no art. 1.790 do CC/02, devendo ser apli-
cado, tanto nas hipóteses de casamento quanto das de união estável, o regime
do art. 1.829 do CC/02”23.
Desse modo, transportam-se à seara da união estável as considerações
tracejadas a respeito da mitigação da incomunicabilidade, quanto aos bens
particulares, em caso de que a transmissão de patrimônio ocorra após o fale-
cimento de um dos companheiros.
De modo bem resumido, são estas as regras que disciplinam a partilha
dos bens no regime de comunhão parcial. À vista disso e delineada, como se fez
alhures, a premissa de que a quota social é um bem que integra o patrimônio
de seu titular, o tratamento a ela destinado não deveria, em regra, variar daquele
previsto para qualquer outro bem, sendo que a confusão costumeiramente
percebida a respeito do tema se relaciona mais às parcas noções societárias do
que às regras de divisão patrimonial propriamente ditas.
A partir desse ponto, então, não deve haver dificuldade na definição
acerca da comunicabilidade das quotas sociais, norteando-se a análise, grosso
modo, quanto ao momento de constituição do patrimônio, tal qual se organi-
zam as normas legais de regência.
Tratando-se de quotas adquiridas na constância do matrimônio, ocorre
a mancomunhão24, de modo que o cônjuge ou companheiro supérstite tem
direito à meação, cabendo reiterar, em conformidade com o que já exposto,
que a ele somente toca, em regra, a expressão econômica das quotas e não a
titularidade dos direitos políticos a ela inerentes, no âmbito da sociedade. De
modo outro, diante de participação societária constituída preteritamente ao
casamento/união estável, trata-se de ativo que integra a massa patrimonial de

mãos”. A participação tão somente quanto às aquisições onerosas só acontecerá por divórcio ou dissolução da união
estável: aqueles que acreditam no “até que a morte os separe” terão mais uma desilusão além da perda do amor de
sua vida, pois tal critério é desconhecido da maioria da população e costuma surpreender após a morte de um dos
parceiros.
23 Karime Costalunga (2019, p. 121), ao discorrer sobre tal decisão do STF, comenta que se tratou da realização do
mister hermenêutico e adaptativo da jurisprudência, buscando uma tentativa de superar o retrocesso da lei e, assim,
minimizar o prejuízo que vinha sofrendo o companheiro sobrevivente, facilitando a ordem e vocação hereditária,
muito embora não tenha a decisão incluído o companheiro no rol de herdeiros necessários.
24 Traçando os contornos da mancomunhão (por todos): RANGEL, 2016, p. 105-116.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 161

bens particulares, sendo que na sucessão inter vivos, ter-se-á por incomunicável,
ao passo que na sucessão post mortem o cônjuge – e também companheiro, por
força da equiparação consagrada pela citada jurisprudência do STF – concorre
com os descendentes na herança.
A dúvida surge, pois, ao se deparar com a possibilidade de partilha da
valorização econômica incidente sobre as quotas sociais enquanto bens par-
ticulares, sendo que, para tal questionamento, o Superior Tribunal de Justiça
ofereceu solução a partir do julgamento do paradigmático Recurso Especial
nº 1.173.931/RS.

3 O Entendimento do STJ (Recurso Especial 1.173.931/RS)


Em 2013, apreciando o Recurso Especial tombado sob o nº 1.173.931
e que desafiava decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, o Su-
perior Tribunal de Justiça, por meio de sua Terceira Turma, decidiu que a
valorização patrimonial de quotas sociais de sociedade limitada, adquiridas
antes do início do período de convivência, não se comunica na partilha causa
mortis. Tal raciocínio, como já antecipado, se projeta – ainda que com ajustes
necessários – também para o divórcio e para a ruptura da união estável.
Em suma, o caso julgado tratava de ação de reconhecimento de união
estável e dissolução de sociedade de fato, proposta pela companheira sobrevi-
vente, contra a sucessão do seu companheiro falecido. Narrava a companheira
que conviveu com o de cujus pelo período de cinco anos, entre 1993 e 1997,
quando sobreveio seu passamento, o que restou reconhecido em sentença de
primeira instância, provimento este que também determinou a partilha, na
proporção de 50%, de um bem imóvel, de um veículo e da valorização expe-
rimentada pelas quotas sociais de empresas tituladas pelo falecido durante a
união estável, embora adquiridas em momento anterior ao termo inicial da
convivência.
Em grau recursal, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no
ponto em questão, rejeitou a apelação do Espólio, mantendo o decisum a quo.
Irresignado, o Espólio manejou recurso especial, alegando, dentro outros,
violação ao art. 5º da Lei nº 9.278/96, cuja redação é: Os bens móveis e imó-
veis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união
estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração
comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais,
salvo estipulação contrária em contrato escrito.
Ao apreciar a controvérsia, a Turma julgadora, por unanimidade, deu
provimento ao recurso especial, excluindo da partilha a valorização patri-
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
162

monial experimentada pelas quotas adquiridas anteriormente ao período de


união estável.
Em suas razões decisórias, o voto destaca, preambularmente, que os
fatos decorreram na vigência do Código Civil de 1916, período em que a le-
gislação não contemplava em seus dispositivos a figura do concubinato puro,
apenas regulamentando o concubinato adulterino, utilizando-se o instituto
da sociedade de fato para resolver a partilha de bens.
Nessa disciplina, apuravam-se os efetivos ingressos ao patrimônio
comum e os bens eram repartidos na proporção dos respectivos aportes a
fim de evitar o enriquecimento sem causa. Em outras palavras, era apenas
partilhado o patrimônio adquirido pelo esforço comum dos concubinos, na
esteira da Súmula nº 380 do STF (“Comprovada a existência de sociedade de
fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha
do patrimônio adquirido pelo esforço comum”).
Em 1994, foi editada a Lei nº 8.971, que disciplinava a união estável e,
em 1996, portanto, ainda antes da data de término da convivência, no caso,
sobreveio a Lei nº 9.278, que introduziu no sistema norma que regulava espe-
cificamente a partilha dos bens na união estável (art. 5º do referido Diploma),
equiparando o tratamento àquela destinado ao regime da comunhão parcial
de bens do casamento.
Nesse contexto normativo, o Superior Tribunal de Justiça entendeu
que dois seriam os requisitos a serem preenchidos para que houvesse a
comunicabilidade dos bens: que a aquisição do ativo ocorresse durante o
período de convivência e também que o crescimento patrimonial adviesse
do esforço comum, mesmo que presumidamente. E, nesse passo, entendeu
pela inexistência do segundo pressuposto, na medida em que a valorização da
quota social seria “decorrência de um fenômeno econômico, dispensando o
esforço laboral da pessoa do sócio detentor”.
Para bem ilustrar tal conclusão, citou excerto do voto vencido do acórdão
do Tribunal local, segundo o qual, acaso se tratasse o bem em apreço de um
imóvel, “nem ele (imóvel), nem sua valorização imobiliária, seriam objeto de
partilha, devendo ser aplicada a mesma lógica às quotas sociais”. Concluiu,
assim, sem maiores digressões, que “não há relação entre a comunhão de es-
forços do casal e a valorização das quotas sociais que o companheiro detinha
antes do período de convivência”.
O julgado, sendo o pioneiro da Corte Superior a respeito do tema,
muito embora sem apresentar qualquer efeito vinculante, reverberou perante
os tribunais de justiça locais, que passaram, de forma maciça (senão homo-
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 163

gênea), a delinear seus julgados a partir de tal entendimento, de sorte que o


aresto em comento moldou a jurisprudência a propósito do tema.
Eis que é chegado, contudo, o momento de se revisitar tal posiciona-
mento, haja vista que não mais compatível com o contexto jurídico da matéria,
como se demonstra a seguir.

4 Análise Crítica da Jurisprudência: a Anacronia do Posicionamento


e o Equívoco da Premissa
De plano, o cotejo das delineações traçadas neste trabalho, em uma
perspectiva temporal, já denota a necessidade de se reavaliar a jurisprudência
em voga, eis que as razões que integraram o acórdão sofreram, inegavelmente,
com os influxos da evolução social e da modificação do arcabouço jurídico
concernente à temática.
Nessa toada, convém rememorar que o REsp 1.173.931/RS data do ano
de 2013, ao passo que, em 2017, sobreveio relevante modificação na disciplina
relativa ao regime de bens e à vocação sucessória na união estável.
Como já demonstrado anteriormente, a normativa do art. 1.790 do
Código Civil, que regulamenta a partilha na união estável, foi considerada
inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do
Recurso Extraordinário 878.69425, fixando-se a tese, com efeito vinculante,
de que a distinção entre os regimes sucessórios de cônjuges e companheiros,
então prevista no citado dispositivo do Diploma Civil, afronta a constituição.
Ficou assentado que deve ser aplicado, tanto nas hipóteses de casamento
quanto nas de união estável, o regime do art. 1.829 do CC/02.
Nessa perspectiva, é de bom alvitre registrar que, embora muito aplau-
dido à época, o julgado ora sob exame não mais se torna coerente frente ao
hodierno contexto jurídico, pela singela constatação de alteração das nuances
jurídicas que o permeiam. Não obstante isso, pouco ou nada se colhe atual-
mente a respeito do assunto, não se verificando críticas na doutrina, tampouco
ponderações ou novos posicionamentos na jurisprudência, que segue, ainda
hoje, replicando o posicionamento consagrado no REsp 1.173.931/RS.

25 “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO CONSTITUCIONAL


E CIVIL. REPERCUSSÃO GERAL. APLICABILIDADE DO ART. 1.845 E OUTROS DISPOSITIVOS DO
CÓDIGO CIVIL ÀS UNIÕES ESTÁVEIS. AUSÊNCIA DE OMISSÃO OU CONTRADIÇÃO. 1. Embargos de
declaração em que se questiona a aplicabilidade às uniões estáveis, do art. 1.845 e de outros dispositivos do Código
Civil que conformam o regime sucessório dos cônjuges. 2. A repercussão geral reconhecida diz respeito apenas à
aplicabilidade do art. 1.829 do Código Civil às uniões estáveis. Não há omissão a respeito da aplicabilidade de outros
dispositivos a tais casos. 3. Embargos de declaração rejeitados.” (STF, RE 878.694, Tribunal Pleno; j. 10.05.2017)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
164

A exemplo, o Tribunal do Estado de São Paulo continua aplicando,


sem o necessário exame crítico, o entendimento então formatado em 2013,
colhendo-se ao menos três julgados26, entre os anos de 2018 e 2022, neste
sentido.
Ora, a modificação posterior das regras pertinentes ao regime sucessó-
rio na união estável, por si só, seria suficiente para demonstrar a incoerência
do posicionamento jurisprudencial, uma vez que, como evidenciado, com
a mudança de perspectiva, o companheiro sobrevivente, tal qual o cônjuge,
concorre, na sucessão causa mortis quanto aos bens particulares, a teor do art.
1.829 do Código Civil.
Logo, em caso que guarde similitude fática com aquele submetido ao
crivo do STJ no Recurso Especial em testilha, as quotas, per se, embora inte-
grantes da massa patrimonial de bens particulares, seriam sujeitas à partilha
na sucessão. Isso suplantaria a própria discussão a respeito da valorização ex-
perimentada pelo bem no decorrer da união, afinal, por suscetíveis à divisão,
as quotas, como sói evidente, seriam consideradas pelo valor atual, isto é,
pela valoração contemporânea à data de abertura sucessão, aí já contemplado,
portanto, qualquer acréscimo patrimonial eventualmente advindo dos efeitos
do tempo.
Não bastasse estar aquebrantado o primeiro dos requisitos legais elen-
cados na decisão para que houvesse a comunicabilidade do patrimônio (“que
a aquisição do bem ocorra durante o período de convivência”), percebe-se
que estremecido está também o segundo pressuposto (“que o crescimento
patrimonial advenha do esforço comum, mesmo que presumido”). E esse
nem mesmo por conta de uma anacronia, como no primeiro caso, mas, sim,
pelo assentamento de premissa equivocada no julgado, que desde então já se
revelava passível de crítica.
Como se extrai do voto condutor do aresto, a conclusão alcançada re-
pousa sobre o entendimento de que a valorização da participação societária é
fenômeno meramente econômico e que não deve ser, portanto, atribuído ao
esforço do sócio. Logo, o acréscimo patrimonial daí decorrente não deveria
aproveitar ao cônjuge/companheiro. Tal constatação merece ponderação, haja
vista que a valorização das quotas, a toda evidência, é matéria mais complexa
do que faz parecer a decisão.

26 No sentido: “Agravo de Instrumento. Reconhecimento/dissolução de união estável. Sentença parcial de mérito.


Inexistência de direito do autor em relação às cotas sociais da requerida que a ela foram doadas pelo genitor antes
da união estável. Empresa, ademais, de caráter familiar formada há muitos anos pelo pai da demandada. Não cabi-
mento de valorização da participação social, ocorrida em 2013, pois não decorreu de aporte da ré ou esforço comum
dos companheiros. Precedentes do C. STJ” (TJSP, 5ª Câmara de Direito Privado, 2006927-79.2022.8.26.0000, j.
01.07.2022). Com semelhante linha: 1002897-32.2018.8.26.0073 e 1011080-05.2018.8.26.0004.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 165

Para adentrar em tal análise, é necessário ter-se em mente que, não


obstante não seja este o padrão verificado na sociedade comercial brasileira,
é possível, de fato, que o sócio, na sociedade limitada, assuma a figura de
mero investidor, sendo absolutamente passivo quanto ao desenvolvimento
da atividade produtiva, colaborando tão somente com a injeção de recursos,
mediante integralização da fração do capital social subscrito, e colhendo, por
conseguinte, os lucros advindos da performance da empresa.
O quadro fica ainda mais evidente diante da figura da sociedade limi-
tada de capital, em que o liame que vincula o conglomerado empresarial se
forma em torno do capital e não das pessoas, cujas qualidades subjetivas, nesta
medida, são absolutamente irrelevantes para a consecução do objeto social27.
Já desde 2013, com efeito, se concebia tal cenário – em verdade, desde
o advento do Código Civil, em 2002, em que se previu a possibilidade de
regência supletiva de sociedades limitadas pela Lei de Sociedades Anônimas,
normatizando, assim, a utilização do tipo societário de quotas por responsa-
bilidade limitada para formatação de sociedades de vínculo institucional, em
que as contribuições aportadas pelos sócios se revelam mais importantes para
o atingimento do objeto social do que seus atributos pessoais – e hoje, com
ainda mais relevo, uma vez que grandes operações empresariais vêm, cada
vez mais, constituindo-se sob a forma de sociedades limitadas, pela menor
complexidade da disciplina legal e, especialmente, pela flexibilidade das nor-
mativas legais aplicáveis.
Nesses moldes, realmente, coerente é a afirmativa de que o sócio em
nada colabora com o acréscimo patrimonial decorrente da valorização das quo-
tas, podendo o sucesso da atividade empresarial, sem embargos, ser atribuído
a um fator meramente econômico/mercadológico. Entretanto, situações há, e
estas hão de ser a maioria no cenário nacional, em que a valorização financeira
experimentada pela quota está intimamente ligada ao trabalho desenvolvido
pelo sócio, sendo a sociedade, por vezes, a fonte produtiva e meio de subsis-
tência sua e de seu núcleo familiar. Em casos tais, a figura do sócio é cara ao
desenvolvimento da atividade empresária e sua pertinácia pessoal, com empre-
go de know-how e boas técnicas de administração, é indispensável ao sucesso
do negócio, o qual, por sua vez, é fator determinante na valoração das quotas.

27 A propósito das sociedades limitadas de capital, Fábio Ulhoa Coelho (2007, p. 384) discorre: “Cada sociedade, em
particular, em razão das tratativas entabuladas pelos seus sócios, terá um ou outro perfil. A hibridez do tipo importa
a existência de sociedades limitadas de pessoas e de capital, de acordo com o respectivo contrato social. A discussão
sobre a natureza da sociedade limitada, assim, somente se completa pelo exame do disposto no documento que
instrumentaliza a sua constituição. Em outros termos, para se definir se uma específica sociedade limitada é de capital
ou de pessoas, deve-se consultar o seu contrato social.”
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
166

Não há como dissociar, neste panorama, o êxito ou malogro da empresa


da forma como é conduzida por seus controladores, a quem estão afeitas as
incumbências de pautar os nortes para direcionamento do negócio, bem como
a assunção de riscos e tomada de decisões estratégicas.
Importa então dizer que, quanto maior e mais bem-sucedido o empenho
dos sócios, mais exitosa será a atividade empresarial, e quanto mais o for, maior
será a valorização experimentada pelas quotas. A afirmativa é corroborada pelo
fato de que, na apuração de haveres a ser realizada em caso de liquidação da
quota, a jurisprudência segue a linha de que esta seja feita “de forma ampla,
com a exata verificação, física e contábil, dos valores do ativo”28, determinando
a legislação, no art. 606 do CPC29, o emprego de técnicas que considerem,
no balanço de determinação especialmente levantado, ativos tangíveis e in-
tangíveis, inclusive imobilizados, elementos estes que, indiscutivelmente,
associam-se à forma com que se pauta a condução dos rumos da mercancia.
Assim, de fato, não obstante o crescimento (ou encolhimento) da so-
ciedade dependa, por evidente, de influências e injunções de mercado, não há
dúvidas de que vezes há em que seu incremento decorre de modo não natural,
por ingerência determinante do empenho e da força de trabalho empregados
pelo sócio no exercício da atividade empresarial, de modo que, havendo o
esforço do sócio, há, por conseguinte, o esforço presumido de seu do cônjuge
ou companheiro. E isso porque o regime de comunicação patrimonial presume
a concorrência dos cônjuges em desenvolver um esforço matrimonial solidário
(seja direto, vertendo efetivamente contribuição econômica; seja indireto,
prestando cooperação marital através de apoio psicológico, afetivo e moral,
bem como tarefas realizadas em âmbito doméstico), que empreendem para
levar à frente os propósitos do casamento e a viabilizar a aquisição dos bens e
das riquezas necessárias para a subsistência e conforto da família constituída
(MADALENO, 2017, p. 283).
Nesse contexto, dessarte, o acréscimo patrimonial incorporado à
participação societária é reputado ao esforço comum do casal, sendo curial a
ponderação de que, muito embora se tenha afirmado, anteriormente, que a
disciplina legal acerca da comunicabilidade das quotas sociais deva se equivaler
a qualquer outro bem que integre o patrimônio do titular, está-se aqui diante
de uma peculiaridade que não pode ser negligenciada.

28 STJ, 3ª Turma, REsp 1.335.619, j. 03.03.2015.


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“Art. 606. Em
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caso de omissão do contrato social, o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor pa-
trimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens
e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma.”
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 167

É que, quanto ao aspecto da mensuração econômica do bem, se torna


imprópria a comparação levada a efeito no julgado entre a quota social e um
imóvel, afinal, a sociedade não é um bem em si mesmo e o dinamismo da
atividade empresarial é preponderante para o incremento do valor das quotas,
diferentemente dos fatores que alavancam a valorização imobiliária, que, ine-
gavelmente, são alheios ao trabalho direto e pessoal do titular, relacionando-se
à localização, características físicas do imóvel e conjuntura mercadológica.
Nesse passo, com todo respeito, demonstra-se que a premissa erigida no
REsp 1.173.931/RS não se revela adequada, ao menos não suficiente para um
regulamento completo e abrangente da matéria, afinal, a despeito das razões
decisórias, situações há, casuisticamente, em que o cenário de valorização
experimentado pelas quotas não decorre meramente de um fator econômi-
co, mas, sim, da atuação direta e pessoal do sócio – do que se presume, por
conseguinte, o esforço comum do cônjuge ou companheiro.
Quer nos parecer, a toda evidência, que o posicionamento jurispruden-
cial não pode ser, quanto a tal matéria, objetivo e estático, sob pena de oferecer
disciplina insatisfatória e alijada da dinâmica e cambiante realidade empresarial,
podendo traduzir-se em preceito que não se amolda adequadamente à tutela
reclamada no caso vertente. Em palavras outras, seria preciso analisar, em cada
caso, a partir das características próprias do negócio titularizado por meio da
propriedade das quotas, seu funcionamento, sua organização empresarial e as
variantes relacionadas ao êxito da empresa e ao incremento do seu patrimônio.
Ainda assim, conquanto tal conclusão ressoe até mesmo intuitiva, o
posicionamento simplista e objetivo do STJ segue – quiçá pela falta de se
lançar foco novamente à temática – encontrando eco na jurisprudência, sendo
replicado sem os cuidados necessários de conformação às circunstâncias do
caso concreto.
Em especial, quadra gizar que tal premissa, não obstante as críticas
apresentadas, ofereceu norte para julgamento do REsp 1.495.667/SC30, em que
o pano de fundo era diverso, mas, ao fim, perpassou-se pelo entendimento
consagrado no REsp 1.173.931/RS para construção das razões decisórias.
Em tal caso, a controvérsia veiculada no mérito do recurso especial,
baseada tanto em violação a dispositivo de lei federal quanto em dissídio
jurisprudencial, referia-se à definição do marco temporal para avaliação das
ações relativas às empresas Intelbrás e Fazenda Revoredo S/A –, a serem co-
lacionadas no inventário, para efeito de acertamento de legítimas.

30 STJ, REsp 1.495.667/SC, 4ª Turma, j. 15.05.2018.


Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
168

O cerne do debate, preponderantemente, referia-se à fixação quanto à data


de avaliação de bem sujeito à colação e a ratio decidendi, com efeito, centrou-se
em tal discussão, confrontando-se as possibilidades oferecidas pela legislação,
para, ao fim, identificar aquela que melhor se amoldava às circunstâncias fático-
jurídicas da causa – no caso, aplicou-se como referencial a data da abertura da
sucessão, por força da inteligência do art. 1.014, parágrafo único, do CPC/73.
Em obter dictum, contudo, extrai-se interessante debate concernente ao
modo de mensuração da valorização acrescida ao bem, pois a doação envol-
via quotas e ações societárias, verificando-se, neste pormenor, exatamente,
o ponto de contato com a matéria aqui discutida, eis que, no caso em julga-
mento, houve substancial incremento do patrimônio entre a data da doação
e da sucessão, querendo os herdeiros donatários atribui-lo ao seu empenho
na gestão das sociedades.
Prevaleceu, contudo, o entendimento sufragado no REsp 1.173.931/RS –
cujas razões foram, inclusive, invocadas no acórdão –, reportando-se à premissa
de que a valorização decorre de mero fenômeno econômico e que eventual labor
despendido pelos sócios/herdeiros/donatários à frente da sociedade, frutuoso
ou não, deveria ser remunerado mediante a contraprestação enumerada no art.
152 da Lei de Sociedades Anônimas31, não se confundindo com o acréscimo
patrimonial experimentado pela boa performance da companhia. À vista de tais
considerações, não vislumbrou o STJ, tal qual empreendido no aresto de piso,
razões suficientes para mitigar a aplicação da norma legal objetiva, concernente
ao marco temporal para colação, tampouco tendo embarcado na tese de que a
valorização do patrimônio decorrente do empenho humano possa ser equipara-
da, para efeitos legais, às benfeitorias ou mesmo às noções de “melhoramentos”
ou “implantes” que permeiam a regra positivada. Assim, encaminhou a matéria
no sentido de rejeitar a pretensão dos herdeiros donatários e considerar, para
efeito de colação, o valor atualizado da participação acionária, negando o re-
conhecimento de qualquer desconto pecuniário em decorrência do benefício
advindo do esforço pessoal do sócio gestor.
Pertinente ponderar que não se discorda do raciocínio empregado
pelo STJ, neste caso, para fins de se dissociar os conceitos de valorização
patrimonial e de benfeitorias, contudo, sem se imiscuir na avaliação quanto
ao resultado alcançado no julgado, porquanto guiado por questões jurídicas
outras, não se revela coerente a replicação indistinta da premissa albergada
no REsp 1.173.931/RS, a uma porque o cenário deste julgamento era diverso,

31 “Art. 152. A assembléia-geral fixará o montante global ou individual da remuneração dos administradores, inclusive
benefícios de qualquer natureza e verbas de representação, tendo em conta suas responsabilidades, o tempo dedicado
às suas funções, sua competência e reputação profissional e o valor dos seus serviços no mercado.”
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 169

tratando-se de sociedades anônimas, que possuem, a toda evidência, natu-


reza, funcionamento e regramento especiais; e a duas porque, por pautar-se
em análise objetiva do tipo societário, presumindo uma impessoalidade que
desconsidera a relevância das qualidades subjetivas dos acionistas, deixou
sequer de sopesar as nuances do caso concreto, que sugeriam uma correlação
direta entre a perspicácia gerencial e o empenho dos acionistas e os resultados
exitosos alcançados pela companhia em seara econômica.
Portanto, o que se está a evidenciar é que o caminho trilhado pelo jul-
gado, com arrimo na proposição consignada no citado REsp 1.173.931/RS,
não traduz uma análise completa com as circunstâncias específicas da causa,
transparecendo descura na reiteração de tal posicionamento.
Lado outro, o que se pretende demonstrar é que a quaestio merece cui-
dado em seu manejo, com a avaliação casuística para fins de se aferir a origem
e o suporte fático da valorização patrimonial das quotas societárias32, sendo
que qualquer entendimento objetivo que se venha a oferecer neste sentido
será, em algum momento, impreciso diante do dinamismo que envolve as
relações econômicas empresariais.
Dessa forma, a revisitação do entendimento jurisprudencial é necessária
e a crítica é pertinente para oferecer, a partir reflexões pontuais, uma resposta
mais coerente ao questionamento proposto neste trabalho, que tenha em
consideração as nuances do caso concreto e a forma de atuação da sociedade
em apreço. Somente assim, tomando em conta todas as nuances albergadas no
caso, é que se poderá concluir satisfatoriamente quanto à comunicabilidade
(ou não) da valorização das quotas sociais na partilha causa mortis.

Considerações Finais
Percebe-se na sociedade atual, por diferentes motivações, movimento
denominado de “pejotização”, em que as pessoas naturais passam a exercer as

32 Vale a ressalva de que o esforço de avaliar, casuisticamente, a origem da valorização patrimonial das quotas não é
estranho ao labor judicante do STJ, sendo que tal exercício já foi feito para o enfrentamento de controvérsia asse-
melhada, no REsp 1.595.775/AP. Neste caso, a decisão ponderou que o acréscimo do valor patrimonial das quotas
decorreu de retenção de lucros da sociedade, que, ao invés de distribuídos aos seus sócios, foram mantidos em conta
de reserva, para reinvestimento e custeio de aumento de capital. Diante deste contexto, entenderem que, mesmo
constituindo-se os frutos bens comuns, ao serem manejados em tal operação contábil, representam um acréscimo
não passível de comunicabilidade: “As quotas ou ações recebidas em decorrência da capitalização de reservas e lucros
constituem produto da sociedade empresarial e aumentam o seu capital social com o remanejamento dos valores
contábeis da própria empresa, consequência da própria atividade empresarial. Assim, tal reserva não se caracteriza
como fruto, à luz do art. 1.660, V, do Código Civil, apto a integrar o rol de bens comunicáveis ante a dissolução da
sociedade familiar. Assim, não havendo redistribuição dos lucros da sociedade empresária aos sócios, porquanto
retidos na empresa para reinvestimento, não há como reconhecer o alegado acréscimo do patrimônio do casal, motivo
pelo qual não há falar em incidência do art. 1.660, V, do Código Civil de 2002” (STJ, REsp 1.595.775/AP, 3ª Turma,
j. 09.08.2016).
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Doutrina
170

atividades produtivas a partir da estrutura de sociedades empresárias, utilizan-


do-se de sua personalidade própria e autônoma para o desenvolvimento das
atividades profissionais e de mercancia. Como consequência deste cenário,
é cada vez mais frequente que as quotas sociais representativas da participa-
ção destas pessoas físicas nos quadros sociais destas sociedades empresárias,
integrem o acervo patrimonial pessoal e, como tal, se sujeitem à sucessão.
Dúvidas surgem no manejo das questões jurídicas relacionadas a estas
quotas sociais, o que, por vezes, não se justifica, sobretudo, no que atine ao as-
pecto da transmissibilidade de patrimônio, afinal, o tratamento a ser destinado
às quotas se assemelha, neste ponto, àquele endereçado a qualquer outro bem.
A legislação, contudo, não oferece resposta objetiva para fins de se
avaliar quanto à comunicabilidade da valorização patrimonial alcançada pelas
quotas que integram o monte de bens particulares de um dos cônjuges com
o decurso do tempo, havendo julgado no Superior Tribunal de Justiça, tendo
como pano de fundo união estável e transmissão causa mortis, que se posiciona
pela impossibilidade de que tais acréscimos integrem a partilha.
Como sustentáculo argumentativo, a decisão apresenta dois pilares
jurídicos: (i) que a aquisição do bem ocorra durante o período de convivên-
cia, pois, a rigor, o companheiro supérstite não concorreria com os demais
herdeiros quanto aos bens particulares e (ii) que o crescimento patrimonial
advenha do esforço comum do casal, mesmo que presumido, o que não se
verifica no caso em apreço, por considerar que a valorização das quotas decorre
de mero fenômeno econômico.
Em avaliação crítica de tal decisão, demonstrou-se que o primeiro pi-
lar não se sustenta frente à modificação do contexto jurídico que circunda a
matéria, uma vez que, em 2017, após, portanto, o julgamento em testilha, foi
declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC, equiparando o regime
da união estável quanto ao do matrimônio, no que tange à vocação sucessó-
ria. Logo, o companheiro sobrevivente, no regime de comunhão parcial de
bens, passa a concorrer pelas quotas em si, ainda que sendo bens particulares,
suplantando, nessa medida, a discussão concernente à sua mera valorização.
Já quanto ao segundo pilar, criticou-se a conclusão objetiva alcançada
pelo STJ, demonstrando-se que em diversas situações, em razão da tipologia e
da forma de organização da sociedade empresária, a valorização da quota tem
relação íntima com o empenho e pertinácia pessoal do sócio, aquebrantando
o raciocínio propalado no citado Recurso Especial e que vem sendo indistin-
tamente replicado pela jurisprudência do próprio STJ e dos tribunais locais.
Doutrina – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 171

Por fim, verificadas as áreas de insegurança da decisão e a reiteração


da premissa decisória por outros julgados, arrematou-se o assunto mediante
a conclusão de que qualquer resposta ao questionamento proposto que seja
objetiva e estática oferecerá solução imprecisa e insuficiente, ante o dinamis-
mo característico à atividade empresarial. Destarte, é necessário que a análise
prévia à formação de convencimento se faça de modo casuístico, tomando
em consideração as nuances do caso concreto, para fins de se aferir a origem
e o suporte fático da valorização patrimonial das quotas societárias, somente
então se podendo formatar, de modo pontual, uma resposta adequada ao
questionamento.

TITLE: The assets gains of equity shares and their repercussion in the context of the probate process,
divorce and dissolution of the stable union.

ABSTRACT: The present work aims to evaluate the legal treatment that has been given by the jurispru-
dence to the question concerning the transmission of equity shares in the context of the probate process,
divorce and dissolution of the stable union To this end, we will first study the legal discipline regardind the
equity shares especially what concerns the transfer of property rights inherent to them. Then, in order to
enable the deepening of the theme, it will focus on the general rules of matrimonial regimes, highlighting
those that guide the partial communion of goods, as well as their main repercussions, both in the event
of death, as well as divorce and rupture of stable union. Then, already fixed the rules that guide the com-
municability of equity shares, will move on to the analysis of the central problem of the article, in order
to evaluate the possibility of sharing the assets gains incident on equity share, which will be done in the
light of jurisprudence of the Superior Court of Justice, presenting reflection and critical analysis of the
respective decision-making premises.

KEYWORDS: Equity Shares. Assets Gains. Divorce Share. Probate Process. Divorce. Stable Union
Dissolution.

Referências
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Recebido em: 09.01.2023


Aprovado em: 08.02.2023
Jurisprudência

Superior Tribunal de Justiça


RECURSO ESPECIAL Nº 1.698.728 MATO GROSSO DO SUL
RELATORA P/O ACÓRDÃO: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Adoção. Destituição do Poder Familiar e Abandono


Afetivo. Cabimento. Exame das Específicas
Circunstâncias Fáticas da Hipótese. Criança em
Idade Avançada e Pais Adotivos Idosos. Ausência
de Vedação Legal que Deve Ser Compatibilizada
com o Risco Acentuado de Insucesso da Adoção.
Notória Diferença Geracional. Necessidade de
Cuidados Especiais e Diferenciados. Provável
Ausência de Disposição ou Preparação dos Pais.
Ato de Adoção de Criança em Avançada Idade que,
Conquanto Louvável e Nobre, Deve Ser Norteado
pela Ponderação, Convicção e Razão. Consequências
Graves aos Adotantes e ao Adotado. Papel do Estado
e do Ministério Público no Processo de Adoção.
Controle do Ímpeto dos Adotantes. Zelo pela
Racionalidade e Eficiência da Política Pública de
Adoção. Falha das Etapas de Verificação da Aptidão
dos Pais Adotivos e de Controle do Benefício da
Adoção. Fato que Não Elimina a Responsabilidade
Civil dos Pais que Praticaram Atos Concretos
e Eficazes para Devolução da Filha Adotada ao
Acolhimento. Condenação dos Adotantes a Reparar
os Danos Morais Causados à Criança. Possibilidade.
Culpa Configurada. Impossibilidade de Exclusão da
Responsabilidade Civil. Valor dos Danos Morais.
Fixação em Valor Módico. Observância do Contexto
Fático. Equilíbrio do Direito à Indenização e do Grau
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
174

de Culpa dos Pais, sem Comprometer a Eficácia da


Política Pública. Destituição do Poder Familiar.
Condenação dos Pais Destituídos a Pagar Alimentos.
Possibilidade. Rompimento do Poder de Gestão da
Vida do Filho, mas Não do Vínculo de Parentesco.
Maioridade Civil da Filha. Fato Novo Relevante.
Retorno do Processo ao Tribunal com Determinação
de Conversão em Diligência. Observância do Binômio
Necessidade da Alimentada e Possibilidade dos
Alimentantes
1. Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se é cabível a reparação
por danos morais em decorrência do abandono afetivo dos pais adotivos
em relação ao adotado e se estão configurados, na hipótese, os pressu-
postos autorizadores da responsabilidade civil; (ii) se é admissível que os
pais adotivos sejam condenados a prestar alimentos ao filho adotado após
a destituição do poder familiar, inclusive no período em que a criança se
encontre acolhida institucionalmente.
2. Para o exame do cabimento da reparação de danos morais pleiteada pela
adotada ao fundamento de abandono afetivo dos pais adotivos, é impres-
cindível o exame do contexto em que se desenvolveram os fatos, que, na
hipótese, revelaram que a criança foi adotada quando já possuía 09 anos,
vinda de anterior destituição de poder familiar e de considerável período
de acolhimento institucional, por um casal de idosos de 55 e 85 anos e que
já possuía um filho biológico de 30 anos ao tempo da adoção.
3. Embora não seja legalmente vedada a adoção nas circunstâncias especiais
acima mencionadas, era possível inferir o acentuado risco de insucesso
da adoção em virtude da notória diferença geracional entre pais e filho,
de modo que era possível prever que a criança muito provavelmente
exigiria cuidados muito especiais e diferenciados dos pais adotivos que
possivelmente não estivessem realmente dispostos ou preparados para
despendê-los.
4. Conquanto o gesto de quem se propõe a adotar uma criança de avançada
idade e com conhecido histórico de traumas seja nobilíssimo, permeado
de ótimas intenções e reafirme a importância da política pública e social de
adoção, não se pode olvidar que o ato de adotar, que não deve ser temido,
deve ser norteado pela ponderação, pela convicção e pela razão, tendo em
vistas as suas inúmeras consequências aos adotantes e ao adotado.
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 175

5. No processo de adoção, o papel do Estado e do Ministério Público é


de extrema relevância, pois às instituições cabe, por meio dos assistentes
sociais, psicólogos, julgadores e promotores, controlar o eventual ímpeto
dos pretensos adotantes, conferindo maior racionalidade e eficiência à
política pública de adoção, o que efetivamente ocorre na grande maioria
das situações.
6. Na hipótese, contudo, verifica-se que a inaptidão dos adotantes diante
das circunstâncias fáticas específicas que envolviam a criança adotada era
bastante nítida, de modo que é possível concluir que as instituições de
controle não apreciaram adequadamente a questão ao deferir a adoção aos
pais adotivos.
7. A constatação desse fato não elimina completamente, todavia, a res-
ponsabilidade civil dos pais adotivos pelos danos efetivamente causados à
criança quando, tencionando devolvê-la ao acolhimento, praticaram atos
concretos e eficazes para atingir essa finalidade, pois, embora a condena-
ção dos adotantes possa eventualmente inibir o sucesso dessa importante
política pública, deixar de sancioná-los revelaria a condescendência judicial
com a prática de um ato contrário ao direito.
8. Na hipótese, fiel aos fatos apurados e às provas produzidas nas instân-
cias ordinárias, é possível inferir a existência de dano moral à criança em
decorrência dos atos praticados pelos pais adotivos que culminaram com
a sua reinserção no sistema de acolhimento institucional após a adoção,
de modo que a falha estatal no processo de adoção deve ser levada em
consideração tão somente para aferir o grau de culpa dos pais, mas não
para excluir a responsabilização civil destes.
9. A formação de uma família a partir da adoção de uma criança é um ato
que exige, dos pais adotivos, elevado senso de responsabilidade parental,
diante da necessidade de considerar as diferenças de personalidade, as
idiossincrasias da pessoa humana e, especialmente, a vida pregressa da
criança adotada, pois o filho decorrente da adoção não é uma espécie de
produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar
a existência de vícios ocultos.
10. Considerada a parcela de responsabilidade dos pais adotivos, arbitra-se
a condenação a título de danos morais em R$ 5.000,00, corrigidos mone-
tariamente a partir da data do arbitramento na forma da Súmula 362/STJ,
valor que, conquanto módico, considera o contexto acima mencionado
de modo a equilibrar a tensão existente entre o direito à indenização da
filha e o grau de culpa dos pais, bem como de modo a não comprometer
a eficácia da política pública de adoção.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
176

11. Mesmo quando houver a destituição do poder familiar, não há cor-


relatamente a desobrigação de prestação de assistência material ao filho,
uma vez que a destituição do poder familiar apenas retira dos pais o poder
que lhes é conferido para gerir a vida da prole, mas, ao revés, não rompe
o vínculo de parentesco.
12. Na hipótese, a filha atingiu a maioridade civil em 2019 e, embora a
maioridade civil, por si só, não acarrete a inviabilidade da prestação alimen-
tícia, há fato superveniente relevante que deve ser considerado para que se
delibere sobre a condenação em alimentos, de modo que deve ser provido
o recurso especial para determinar o retorno do processo ao Tribunal e para
determinar seja o julgamento da apelação convertido em diligência, apenas
em relação ao capítulo decisório dos alimentos, investigando-se se a filha
ainda necessita dos alimentos e quais são as atuais possibilidades dos pais.
13. Recurso especial conhecido e provido, a fim de: (i) restabelecer a sen-
tença que julgou procedente o pedido, mas arbitrando em R$ 5.000,00 a
condenação a título de reparação de danos morais, corrigidos monetaria-
mente a partir da data do presente arbitramento; (ii) determinar o retorno
do processo ao Tribunal, com determinação de conversão do julgamento
da apelação em diligência, para investigar a necessidade da alimentada e as
possibilidades dos alimentantes.
(STJ; REsp 1.698.728; Proc. 2017/0155097-5; MS; 3ª T.; Relª p/o Ac. Minª
Nancy Andrighi; DJE 13/05/2021)

ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos Prosseguindo no julgamento, após o voto-
vista da Sra. Ministra Nancy Andrighi, inaugurando a divergência, no que foi
acompanhada pelos Srs. Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Paulo de Tarso
Sanseverino e o voto do Sr. Ministro Marco Aurélio Bellizze, acompanhando o
Relator, por maioria, dar provimento ao recurso especial nos termos do voto da
Sra. Ministra Nancy Andrighi, que lavrará o acórdão. Vencidos os Srs. Ministros
Moura Ribeiro e Marco Aurélio Bellizze. Votaram com a Sra. Ministra Nancy An-
drighi os Srs. Ministros Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva.
Brasília (DF), 04 de maio de 2021 (Data do Julgamento).
Ministra Nancy Andrighi – Relatora
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 177

RELATÓRIO
O Exmo. Sr. Ministro Moura Ribeiro (Relator):
A C DA R (A C), menor impúbere, nascida aos 9/3/2001, assistida pela
Defensoria Pública Estadual, ajuizou ação de reparação de danos morais e afetivos
cumulada com alimentos contra E C DE S e A C DA R (E e A), na qual narrou
que aos 9 (nove) anos de idade foi adotada por eles, que a agrediam física e men-
talmente, em manifesto descumprimento do poder familiar, o que lhe acarretou
abalos psíquicos.
Relatou, ainda, que (i) E procurou o Ministério Público buscando medidas
protetivas em seu favor, tendo afirmado que estava apresentando comportamentos
antissociais e havia, até, fugido do colégio onde estudava; (ii) o Ministério Públi-
co Estadual ajuizou medida protetiva em seu favor na qual pediu a intervenção
judicial para o acompanhamento temporário da família por equipe técnica e
órgãos oficiais, e a realização de estudo psicossocial na residência familiar para
acompanhamento da sua situação; (iii) o estudo psicológico constatou que E e A
desejavam entregá-la para uma instituição de acolhimento e que eles não tinham
interesse em resolver o conflito familiar; (iv) confidenciou para a equipe técnica
que tinha muito medo da sua genitora porque ela a agredia com frequência; e,
(v) a equipe técnica constatou indícios de transtornos nas suas áreas cognitiva,
comportamental, emocional e física, o que acarretou a sua recomendação ins-
titucional para o fim de garantir sua plena integridade, tendo a Justiça acolhido
a recomendação e determinado o seu acolhimento institucional, além da perda
do poder familiar.
Pugnou pela condenação de E a A ao pagamento de compensação por aban-
dono material e afetivo em razão dos abalos sofridos, bem como ao pagamento
de pensão alimentícia para o atendimento das suas necessidades.
O Juízo da Vara da Infância, Juventude e Idoso da Comarca de Campo
Grande/MS julgou parcialmente procedentes os pedidos para condenar E e A
ao pagamento de pensão alimentícia no valor correspondente a 50% do salário
mínimo e ao pagamento de indenização por danos morais para A C, em virtude
de abandono afetivo, no montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) (e-STJ, fls.
221/232).
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJ/SM) deu provimento ao
recurso de apelação de E e A, em acórdão que recebeu a seguinte ementa:
“RECURSO DE APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DA-
NOS MORAIS E ALIMENTOS. ADOÇÃO. PERDA DA AUTORIDADE
PARENTAL POR ATO JUDICIAL. TÉRMINO DEFINITIVO DO PO-
DER FAMILIAR. AUSÊNCIA DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. DANOS
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
178

MORAIS NÃO CONFIGURADOS. REQUISITOS NÃO CONFIGU-


RADOS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO PROVIDO.”
A perda da autoridade parental por ato judicial acarreta o término definitivo
do poder familiar (artigo 1.635, V, do Código Civil), logo, não há que se falar em
prestação de alimentos em tais situações.
O pressuposto lógico para reparação é a existência de ato ilícito, dano,
culpa do agente e nexo causal.
E, na ausência de tais requisitos, não há que se falar em dever de indenizar
(e-STJ, fl. 312).
Inconformada, A C interpôs recurso especial com fundamento no art.
105, III, a, da CF, alegando violação dos arts. 186 e 1.634 do CC/02 e 3º, 4º, 22
e 92 da Lei nº 8.069/90 (ECA), ao sustentar que (1) em virtude do vinculo de
parentesco decorrente da adoção, os pais adotivos permanecem com a obrigação
alimentar; (2) a destituição do poder familiar não tem o condão de acarretar a
extinção da obrigação alimentar; e (3) a comprovação do abandono afetivo por
parte dos recorridos, que descumpriram os deveres parentais, enseja o dever de
indenizar pelos danos psicológicos sofridos.
Contrarrazões ao recurso especial (e-STJ, fls. 359/392).
O recurso especial foi admitido por força de provimento do agravo em
recurso especial.
O Ministério Público Federal, em parecer lançado pelo em. Subprocurador-
Geral da República, Dr. ANTÔNIO CARLOS ALPINO BIGONHA, opinou
pelo parcial provimento do recurso especial (e-STJ, fls. 453/460).
É o relatório.

VOTO VENCIDO
O Exmo. Sr. Ministro Moura Ribeiro:
Adianto que o inconformismo merece prosperar, em parte.
De plano vale pontuar que as disposições do NCPC, no que se refere aos
requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante
os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na
sessão de 9/3/2016:
“Aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a deci-
sões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos
de admissibilidade recursal na forma do novo CPC.”
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 179

Discute-se, em síntese, se a desconstituição do poder familiar tem o con-


dão de exonerar os pais da obrigação alimentar em relação a filha adotiva (que
era menor), e se, na hipótese dos autos, houve abandono afetivo por parte dos
genitores, devendo ser deferida indenização por eventuais abalos psicológicos.

(1) e (2) Da destituição do Poder Familiar e da Permanência da


Obrigação Alimentar
Colhe-se dos autos que E e A adotaram A C quando ela tinha 9 (nove) anos
de idade, sendo que com a chegada da adolescência e dos consequentes diversos
conflitos familiares, eles foram destituídos do poder familiar após 4 (quatro) anos
de convivência, em virtude da constatação de negligência no exercício de tal poder
de guarda, sustento e educação da filha – Proc. nº 0819438-44.2015.8.12.0001.
O TJ/MS entendeu que a perda da autoridade parental por ato judicial
acarreta o término definitivo do poder familiar, de modo que não há que se falar
em prestação de alimentos pelos pais adotivos em tal situação, ainda mais consi-
derando que A C está abrigada e sob a proteção do Estado, recebendo deste todos
os cuidados de que necessita.
Parece que outra deveria ser a decisão do Tribunal Sul-Mato-Grossense
neste particular, salvo melhor juízo.
Nos termos do art. 1.634 do CC/02, compete a ambos os pais o pleno
exercício do poder familiar em relação aos filhos, cabendo a eles, entre outras
coisas, dirigir-lhes a criação e a educação, exercer a guarda, conceder-lhes ou
negar-lhes consentimento para se casarem ou viajarem ao exterior e representá-
los ou assisti-los nos atos da vida civil e em juízo.
Segundo FLÁVIO TARTUCE, o poder familiar é uma decorrência do
vínculo jurídico de filiação, constituindo o poder exercido pelos pais em relação
aos filhos, dentro da ideia de família democrática, do regime de colaboração fa-
miliar e de relações baseadas, sobretudo, no afeto (Manual de Direito Civil: Volume
único. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método,
2016, p. 1.408).
A extinção do poder familiar é uma sanção imposta aos genitores por in-
fração aos deveres decorrentes dele, com a finalidade de preservar e proteger os
interesses e a dignidade dos filhos. Ela se dá, exemplificativamente, nas hipóteses
de morte dos pais ou do filho, nas de emancipação, maioridade, adoção ou por
decisão judicial, na forma do art. 1.638 do CC/02 (arts. 1.630 e 1635 do CC/02).
Na hipótese dos autos, verifica-se que E e A aos 5/8/2015, foram destituídos
do poder familiar que detinham sobre A C, na ação promovida pelo Ministério
Público Estadual (Proc. nº 0819438-44.2015.8.12.0001), com fundamento no
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
180

art. 1.638, II, III e IV, do CC/02, porque eles não estavam exercendo na prática
os deveres inerentes a tal função (e-STJ, fls. 209/212).
Operada a destituição do poder familiar e salvaguardados os interesses de
A C, diferentemente do que consignou o acórdão recorrido, entendo que em tal
hipótese o encargo alimentar não se extingue automaticamente, pelos seguintes
motivos.
O primeiro argumento, do ponto de vista da legislação civil, é que a sentença
que decreta a perda do poder familiar não determina o cancelamento do registro
civil de nascimento da criança ou do adolescente, o que somente ocorre quando
se operar nova adoção (art. 47, § 2º da Lei nº 8.069/90 (ECA), determinando a lei
que apenas a sentença seja averbada à margem do registro civil (art. 163 do ECA).
Nessa toada, observa-se que o decreto judicial de perda do poder familiar
não desconstitui os vínculos parentais, o que somente pode ocorrer com a coloca-
ção do menor em outra família substituta para nova adoção, que, então, atribuirá
a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, desligando-o
de qualquer vínculo com os pais primitivos (art. 41, caput, do ECA).
Assim, decretada a extinção do poder familiar e não ocorrendo nova adoção,
os genitores ainda possuem obrigações e deveres com a prole comum, incluindo
o dever de prestar-lhes alimentos, que são essenciais a manutenção digna do ali-
mentado, pois ainda permanecem os vínculos de parentesco entre eles, que os une.
E existindo vínculo de parentesco, o art. 1.695 do CC/02 dispõe que o direito
à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes,
recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.
ROLF MADALENO bem esclarece o que é vínculo de parentesco, le-
cionando que são parentes as pessoas que descendem uma das outras ou de um tronco
comum, e, no caso da afinidade, o que aproxima cada uma dos cônjuges dos parentes do
outro, e também há vínculo de parentesco na relação estabelecida por ficção jurídica entre o
adotado e o adotante (Direito de Família. 10ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro:
Forense, 2020, p. 518).
Não é só.
No caso dos autos, com a destituição do poder familiar, A C foi levada para
abrigo institucional e, por conseguinte, a sua guarda foi atribuída provisoriamente
a terceiro, no caso, à Coordenadora da Instituição de Acolhimento SOS Abrigo
(e-STJ, fl. 37), ou seja, ao Estado (Município de Campo Grande/MS).
Nesse cenário, o § 4º do art. 33 do ECA, estabelece expressamente que não
havendo determinação judicial em contrário da autoridade judiciária ou quando
a medida for aplicada em preparação para adoção, “o deferimento da guarda para
terceiro não impede o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como o dever
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 181

de prestar alimentos”, o que é a hipótese dos autos, indicando que a obrigação ali-
mentar não se desfaz com a só destituição do poder familiar.
Por derradeiro, a Lei de Alimentos (Lei nº 5.478/68), no seu artigo 2º,
dispõe que o credor para fazer jus aos alimentos, deve se dirigir ao juiz compe-
tente, qualificando-se e expondo suas necessidades, provando apenas o parentesco ou
a obrigação alimentar do devedor, de modo que esta última não está vinculada
apenas ao poder familiar.
Pelo exposto, sob o aspecto legal, em virtude da manutenção do parentesco,
os pais destituídos do poder familiar permanecem obrigados a prestar alimentos
a seus filhos, desde que eles não tenham sido adotados, o que é o caso dos autos.
Desse modo, agiu certo o juiz sentenciante ao ressaltar que “mesmo que
os requeridos tenham sido destituídos do poder familiar, essa situação não lhes
desobriga de prestar assistência material à filha, pois a destituição do poder familiar
apenas retira dos pais o poder que lhes é conferido para gerir a vida da prole, mas
não rompe o vínculo de parentesco” (e-STJ, fl. 224).
A respeito do tema, na jurisprudência desta eg. Corte Superior, não en-
contrei nenhum um precedente específico das Turmas que compõem a Segun-
da Seção, mas somente uma decisão monocrática proferida pela em. Ministra
NANCY ANDRIGHI, em processo semelhante, esclarecendo que na perda do
poder familiar o vínculo biológico com todos os seus consectários permanece, o que é retirado
é apenas o dever que o genitor tem de gerir a vida do filho (AREsp nº 1.720.813/MS,
Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, DJe de 21/8/2020).No campo doutrinário,
MARIA BERENICE DIAS defende que a destituição do poder familiar não
implica a extinção da obrigação alimentar, que permanece em virtude da relação
de parentesco, com os seguintes argumentos:
“A perda ou suspensão do poder familiar não retira dos pais o dever de ali-
mentos. Entendimento em sentido contrário premiaria quem faltou com
seus deveres. Tampouco a colocação da criança ou do adolescente em família
substituta, ou sob tutela afasta o encargos alimentar dos genitores. Trata-se de
obrigação unilateral, intransmissível, decorrente da condição de filho e inde-
pende do poder familiar.” (Manual do Direito das Famílias. 12ª ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Revista do Tribunais, 2017, p. 496)
Nesse mesmo sentido, trilha ROLF MADALENO, para quem, ao contrário
do dever alimentar, a obrigação alimentar não está vinculada ao poder familiar, mas unica-
mente à relação de parentesco, como estabelece o art. 1.696 do Código Civil, ao ordenar ser o
direito à prestação de alimentos recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes
(op. cit., p. 1.031).
Para finalizar, cumpre ressaltar que o STJ já proclamou que, mesmo ces-
sando o poder familiar na hipótese da ocorrência da maioridade, a obrigação de
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
182

prestar alimentos não se extingue de forma automática, pois subsiste o dever de


sustento, com base no parentesco.
A propósito, confiram-se os seguintes julgados:
“AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCES-
SO CIVIL E DIREITO DE FAMÍLIA. REQUISITOS DO RECURSO
ESPECIAL. ATENDIMENTO. APLICAÇÃO DE SÚMULA A CASOS
PENDENTES. POSSIBILIDADE. PENSÃO ALIMENTÍCIA. MAIORI-
DADE DO FILHO. EXONERAÇÃO AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILI-
DADE. NECESSIDADE DE CONTRADITÓRIO.
1. Este Tribunal Superior assentou o entendimento de que, conquanto atin-
gida a maioridade do filho, cessando, pois, o poder familiar, o dever de prestar
alimentos não se extingue de forma automática, devendo ser oportunizada,
primeiramente, a manifestação do alimentado em comprovar sua impossi-
bilidade de prover a própria subsistência, seja nos próprios autos, seja em
procedimento próprio, respeitado, em qualquer caso, o contraditório. Isso
porque ainda subsiste o dever de prestar alimentos com base no parentesco.
Incidência da Súmula 358/STJ.
2. O enunciado de súmula é apenas uma consolidação da jurisprudência rei-
terada do Tribunal e, por não se confundir com dispositivo de lei ou instru-
mento normativo, pode incidir aos casos pendentes de julgamento.
3. Agravo regimental não provido.” (AgRg nos EDcl no Ag 1020362/SP, Rel.
Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVO-
CADO DO TJ/RS), Terceira Turma, julgado aos 2/6/2009, DJe de 16/6/2009)
“ALIMENTOS. MAIORIDADE DO ALIMENTANDO. EXONERAÇÃO
AUTOMÁTICA DA PENSÃO. INADMISSIBILIDADE.
Com a maioridade, extingue-se o poder familiar, mas não cessa desde logo o
dever de prestar alimentos, fundado a partir de então no parentesco.
É vedada a exoneração automática do alimentante, sem possibilitar ao ali-
mentando a oportunidade de manifestar-se e comprovar, se for o caso, a im-
possibilidade de prover a própria subsistência.
Precedentes do STJ.
Recurso especial conhecido e provido, prejudicada a Medida Cautelar n.
9.009-DF.” (REsp nº 682.889/DF, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO,
Quarta Turma, julgado aos 23/8/2005, DJ de 2/5/2006, p. 334)
Finalmente, merece destaque a manifestação do Ministério Público Fe-
deral, que assinalou que a destituição do poder familiar não implica a igual extinção
da obrigação alimentar, a qual, caso necessário, pode ser instituída com base na relação de
parentesco (e-STJ, fl. 459).
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 183

Diante do exposto, entendo que o acórdão recorrido deve ser reformado


no ponto, com o restabelecimento da sentença somente na parte que condenou
E e A ao pagamento de alimentos para A C.

(3) Da Indenização por Danos Morais em Virtude de Suposto


Abandono Afetivo
A C sustentou que deve ser indenizada pelos danos psicológicos que
sofreu em virtude do comprovado abandono afetivo que lhes foi imposto pelo
comportamento de E e A.
O TJ/MS entendeu, à luz dos elementos e das provas colhidas dos autos,
que não ficou comprovada nenhuma situação de maus-tratos sofridos por A C
ou abandono afetivo por parte dos recorridos E a A (inexistência de ato ilícito),
consignando que a adoção não deu certo em virtude do despreparo emocional e
psicológico do casal adotante, nos seguintes termos:
“(...) No caso dos autos os apelantes adotaram a recorrida quando ela tinha 9
anos de idade, sendo a adoção constituída por meio da sentença proferida nos
autos nº 0054829-69.2010.8.12.0001 (fls. 20/25).
Todavia, após 3 anos de convivência, a adolescente passou a apresentar com-
portamento com o qual os pais adotivos não concordavam, surgindo diversos
conflitos familiares, o que levou à remoção da menor do lar e à destituição do
poder familiar, como já acima mencionado.
A apelada sustenta que sofreu agressões físicas e psicológicas por parte de sua
mãe e que dela tinha muito medo, bem como que era responsável por reali-
zar todos os serviços domésticos, como limpeza da casa, lavar os banheiros,
passar as próprias roupas e as do irmão mais velho.
Por outro lado, os recorrentes aduzem que jamais pretenderam desistir da
adoção, pois sempre amaram a criança e sempre lhe proporcionaram as me-
lhores condições de vida, sendo inverídicas as alegações no sentido de que era
mal tratada e não recebia carinho e atenção da mãe.
As testemunhas ouvidas nos autos (fls. 124), não confirmaram a alegação de a
menor ser constantemente agredida e negligenciada pelos pais.
Débora dos Santos Soares, que deu atendimento à família após a menor ter
sido encaminhada aos Creas Centro, sustentou ter conservado com a Sra.
Edileusa que se mostrava preocupada, pois não vinha sabendo como lidar
com o comportamento da adolescente que já havia fugido e estava praticando
pequenos furtos. Sustentou, ainda, que apesar de a mãe adotiva relatar que
não mais queria a menor morando junto consigo, disse desconhecer qual-
quer relato de agressões físicas.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
184

No mesmo sentido foi o depoimento de Geyssimar Sandim Bacargi Dias,


que confirmou as afirmações da colega de trabalho Débora.
(...)
Do mesmo modo, as cartas e partes do diário escrito pela adolescente e junta-
dos aos autos de nº 0821036-96.2016.8.12.0001, demonstram que convivên-
cia familiar não se mostrava tão conflituosa quanto narrado, tendo a criança
escrito, em diversas ocasiões, que amava a mãe.
O documento de fls. 68 daqueles autos, uma carta escrita pela adolescente,
relata que em certa ocasião ela havia fugido da escola para se encontrar com
um menino, às escondidas, e que a mãe havia ficado extremamente preocu-
pada e procurado pela adolescente, insistentemente, até que fosse encontrada.
O comportamento rebelde também é confirmado no processo de nº 0817819-
16.2014. Depois de sair da casa dos pais adotivos e ser transferida para o abri-
go, a menina tentou contato com a família biológica, sendo levada para Bela
Vista. Ocorre que lá, novamente, fugiu por diversas vezes, inclusive para o
Paraguai, para se encontrar com o namorado.
Também, vale ressaltar não ter ficado demonstrado que os recorrentes agi-
ram com má-fé ou que tenham sido irresponsáveis em relação à educação da
adolescente.
Conforme acima narrado, as testemunhas sustentaram que havia uma rela-
ção de afeto na família e que todas desconheciam a existência de maus tratos
naquele ambiente.
Logicamente, na presente situação, a adoção não foi bem sucedida. A famí-
lia adotiva não soube lidar com as situações advindas com a adolescência da
menina e também com possíveis dificuldades na personalidade da criança
decorrentes do histórico de violência a que foi submetida desde tenra idade.
(...)
Deve-se atentar para o fato de que ao poder público, também deve ser cre-
ditada parcela de culpa, uma vez que concedeu a adoção de uma criança
(repita-se, já com 9 anos de idade) a um casal de idosos e que, certamente,
não se encontrava preparado, emocional e psicologicamente, para recebê-la
e orientá-la adequadamente, bem como para enfrentar as situações adversas
no que diz respeito à adoção da criança.” (e-STJ, fls. 322/323, sem destaques
no original)
Observa-se da transcrição supracitada que para o TJ/MS, soberano na aná-
lise dos fatos e das provas dos autos, não houve comprovação de que A C sofreu
maus tratos, sejam físicos ou psicológicos, por parte dos seus pais adotivos, e que
não se configurou o alegado abandono afetivo.
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 185

Isso posto, impossível juridicamente desconstituir as premissas fáticas


adotadas pelo TJ/MS de que não foi comprovado o ato ilícito (abandono afetivo).
Para tanto seria indispensável o reexame do conjunto fático-probatório dos autos,
providência que não pode ser levada a efeito em recurso especial, em virtude do
óbice da Súmula nº 7 do STJ.
Ademais, tudo indica que a prova colhida foi bem avaliada.
Nessa mesma ordem de decidir, confiram-se os seguintes precedentes do
STJ:
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. ABANDONO DE MENOR. DANOS MORAIS. MA-
TÉRIA QUE DEMANDA REEXAME DE FATOS E PROVAS. SUMULA
7 DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
(...)
2. O STJ possui firme o entendimento no sentido de que ‘O dever de cui-
dado compreende o dever de sustento, guarda e educação dos filhos. Não há
dever jurídico de cuidar afetuosamente, de modo que o abandono afetivo, se
cumpridos os deveres de sustento, guarda e educação da prole, ou de prover
as necessidades de filhos maiores e pais, em situação de vulnerabilidade, não
configura dano moral indenizável’ (REsp 1579021/RS, Rel. Ministra MA-
RIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 19/10/2017, DJe
29/11/2017).
3. O Tribunal de origem, amparado no acervo fático – probatório dos autos
concluiu que: ‘Não houve comprovação de abandono afetivo ou material dos
pais em relação à filha, de modo a configurar um ilícito ensejador de dano
moral’.
Dessa forma, alterar o entendimento do acórdão recorrido sobre a não com-
provação dos requisitos caracterizados da responsabilidade civil demandaria,
necessariamente, reexame de fatos e provas, o que é vedado em razão do
óbice da Súmula 7 do STJ.
4. Agravo interno não provido.” (AgInt no AREsp nº 1.286.242/MG, Rel.
Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, julgado aos 8/10/2019,
DJe de 15/10/2019, sem destaque no original)
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.
COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsa-
bilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de
Família.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
186

2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento


jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que
manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida im-
plica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão.
Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se,
o necessário dever de criação, educação e companhia – de cuidado – importa
em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se plei-
tear compensação por danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno
cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo míni-
mo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garan-
tam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada
formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ain-
da, fatores atenuantes – por demandarem revolvimento de matéria fática –
não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é
possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo
Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.” (REsp nº 1.159.242/SP, Rel. Mi-
nistra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, julgado aos 24/4/2012, DJe de
10/5/2012, sem destaque no original)
“AGRAVO INTERNO NO AGRAVO (ART. 544 do CPC/73). AÇÃO DE
EXONERAÇÃO DE PENSÃO ALIMENTÍCIA. RECONVENÇÃO. DE-
CISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLA-
MO. INSURGÊNCIA DO REQUERIDO/RECONVINTE.
(...)
2. Este Superior Tribunal de Justiça já afirmou entendimento no sentido de
não ser possível falar em abandono afetivo antes do reconhecimento da pa-
ternidade.
2.1. ‘O dever de cuidado compreende o dever de sustento, guarda e educação
dos filhos. Não há dever jurídico de cuidar afetuosamente, de modo que o
abandono afetivo, se cumpridos os deveres de sustento, guarda e educação da
prole, ou de prover as necessidades de filhos maiores e pais, em situação de
vulnerabilidade, não configura dano moral indenizável.’ (REsp 1579021/RS,
Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado
em 19/10/2017, DJe 29/11/2017)
2.2. A revisão do entendimento da Corte de origem quanto ao cumprimento
dos deveres da paternidade pelo recorrido, com o afastamento do abando-
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 187

no afetivo na espécie, somente seria possível mediante o reexame do acervo


fático-probatório dos autos, o que não se permite na via estreita do recurso
especial por força da Súmula 7/STJ.
3. Agravo interno desprovido.” (AgInt no AREsp nº 492.243/SP, Rel. Ministro
MARCO BUZZI, Quarta Turma, julgado aos 5/6/2018, DJe de 12/6/2018,
sem destaque no original)
“RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE
INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFETIVO. NÃO OCORRÊNCIA.
ATO ILÍCITO. NÃO CONFIGURAÇÃO. ART. 186 DO CÓDIGO CI-
VIL. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA CONFIGURAÇÃO DO
NEXO CAUSAL. SÚMULA Nº 7/STJ. INCIDÊNCIA. PACTA CORVI-
NA. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. VEDAÇÃO. AUSÊN-
CIA DE PREQUESTIONAMENTO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL.
NÃO CARACTERIZADO. MATÉRIA CONSTITUCIONAL.
1. A possibilidade de compensação pecuniária a título de danos morais e
materiais por abandono afetivo exige detalhada demonstração do ilícito civil
(art. 186 do Código Civil) cujas especificidades ultrapassem, sobremaneira, o
mero dissabor, para que os sentimentos não sejam mercantilizados e para que
não se fomente a propositura de ações judiciais motivadas unicamente pelo
interesse econômico-financeiro.
2. Em regra, ao pai pode ser imposto o dever de registrar e sustentar finan-
ceiramente eventual prole, por meio da ação de alimentos combinada com
investigação de paternidade, desde que demonstrada a necessidade concreta
do auxílio material.
3. É insindicável, nesta instância especial, revolver o nexo causal entre o su-
posto abandono afetivo e o alegado dano ante o óbice da Súmula nº 7/STJ.
4. O ordenamento pátrio veda o pacta corvina e o venire contra factum proprium.
5. Recurso especial parcialmente conhecido, e nessa parte, não provido.”
(REsp nº 1.493.125/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA,
Terceira Turma, julgado aos 23/2/2016, DJe de 1º/3/2016, sem destaque no
original)
Isso posto, o recurso especial não merece ser conhecido no ponto.
Nessas condições, pelo meu voto, CONHEÇO EM PARTE do recurso
especial e nessa extensão a ele DOU PARCIAL PROVIMENTO para restabelecer
a sentença no que tange a obrigação alimentar dos recorridos (E e A).

VOTO-VISTA
A Exma. Sra. Ministra Nancy Andrighi:
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
188

Cuida-se de recurso especial interposto por A C DA R, por meio do qual


pretende a reforma do acórdão de fls. 312/324 (e-STJ), por meio do qual a 4ª
Câmara Cível do TJ/MS deu provimento à apelação interposta pelos recorridos,
E C DE S e A C DA R, reformando a sentença que havia julgado procedente os
pedidos de alimentos e de reparação de danos morais.
Voto do e. Relator, Min. Moura Ribeiro: conheceu em parte e, nessa
extensão, deu parcial provimento ao recurso especial de A C DA R, a fim de:
(i) restabelecer a sentença quanto à obrigação de pagar alimentos imposta aos
recorridos, ao fundamento de que mesmo os pais destituídos do poder familiar
permanecem obrigados a prestar alimentos a seus filhos, inclusive durante o
período de acolhimento institucional; (ii) manteve o acórdão recorrido quanto à
inexistência de dever de reparar danos morais decorrentes de abandono afetivo,
ao fundamento de que as conclusões do acórdão recorrido, no sentido de que não
teria havido prova de maus tratos físicos ou psicológicos dos recorridos em relação
à recorrente, não seriam suscetíveis de reexame em virtude da Súmula 7/STJ.
Em razão do ineditismo da matéria, pedi vista para melhor exame da con-
trovérsia na sessão telepresencial ocorrida no último dia 09/02/2021.

Do Dano Moral por Abandono Afetivo


01) Para melhor compreensão da controvérsia, é indispensável que se esta-
beleçam algumas premissas fáticas acerca da hipótese em exame e, especialmente,
de suas singularidades.
02) De início, é preciso destacar que a recorrente foi adotada pelos recor-
ridos no ano de 2010, quando já possuía 09 anos, vindo de anterior destituição de
poder familiar e considerável período de acolhimento institucional. Os recorridos,
por sua vez, eram idosos ao tempo da adoção da recorrente (ela com 55 e ele com
85 anos) e possuíam filho biológico com quase 30 anos àquela época.
03) Esse contexto revela desde logo que se tratava, nitidamente, de uma
adoção com riscos acima daqueles que normalmente se espera, pois era previsível que a
recorrente, diante de seu histórico de vida, demandaria cuidados ainda mais especiais
e diferenciados, ao mesmo tempo em que se poderia vislumbrar que os recorridos
talvez não estivessem realmente dispostos ou preparados para despendê-los.
04) Essa combinação de fatores não passou desapercebida pelo acórdão
recorrido:
“Logicamente, na presente situação, a adoção não foi bem sucedida. A famí-
lia adotiva não soube lidar com as situações advindas com a adolescência da
menina e também com possíveis dificuldades na personalidade da criança
decorrentes do histórico de violência a que foi submetida desde tenra idade.
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 189

Como sabido, o ato de adoção é cercado de diversas formalidades, não so-


mente jurídicas, mas que também se destinam a avaliar a aptidão do pos-
tulante, sua orientação e preparação psicológica que, na presente situação
mostraram-se falhas.
Deve-se atentar para o fato de que ao poder público, também deve ser cre-
ditada parcela de culpa, uma vez que concedeu a adoção de uma criança
(repita-se, já com 9 anos de idade) a um casal de idosos e que, certamente,
não se encontrava preparado, emocional e psicologicamente, para recebê-la e
orientá-la adequadamente, bem como para enfrentar as situações adversas no
que diz respeito à adoção da criança.”
05) Conquanto a presente ação de alimentos cumulada com reparação de
danos morais tenha sido ajuizada pela recorrente em Agosto de 2014, é possível
constatar, a partir do exame do processo, que os conflitos familiares tiveram origem
03 anos após a adoção e se prolongaram no tempo, culminando com a propositura,
no ano de 2015, de ação de destituição do poder familiar pelo Ministério Público
do Estado do Mato Grosso do Sul.
06) Anote-se, ademais, que a referida ação veio a ser julgada procedente e
a transitar em julgado naquele mesmo ano, razão pela qual a recorrente voltou ao
acolhimento institucional em Janeiro de 2016, no qual permaneceu, ao menos, até
atingir a maioridade civil, no ano de 2019.
07) Essa contextualização inicial é necessária porque bem demonstra como
uma política pública e social de altíssima relevância pode ser sabotada pela realidade
e, principalmente, pela falta de adequado manejo das suas ferramentas, da qual
resultaram sucessivos e incontestáveis equívocos.
08) A começar pelos adotantes, um casal de idosos, sendo que um deles
possuía 85 anos ao tempo dos fatos. Não havia óbice legal para que adotassem
uma criança de 09 anos e, sublinhe-se, a conduta de adotar uma criança à essa
altura da vida é nobilíssima, certamente tomada com a melhor das intenções e
com a finalidade de propiciar uma segunda chance à criança que viveu longos
anos em acolhimento institucional.
09) Entretanto, por melhores que tenham sido as intenções dos adotantes,
não se pode olvidar que, a partir do quadro fático acima delineado, já seria possível
imaginar a efetiva possibilidade de um processo de adaptação bastante difícil – muito mais
difícil do que normalmente se espera e se verifica – em razão da notória diferença
geracional entre os adotantes e a adotada associado ao fato de que a história de
vida da adotada era, sim, extremamente traumático.
10) De outro lado, é preciso destacar o papel do Estado, no sentido mais
amplo possível (assistentes sociais, psicólogos, julgadores), e do Ministério Pú-
blico, não apenas diante das circunstâncias fáticas muito específicas e peculiares
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
190

aqui verificadas, mas também no próprio contexto global de implementação e


concretização dessa relevante política pública.
11) Não há dúvida de que o Estado e o Ministério Público exercem papeis
imprescindíveis para que a política nacional de adoção seja densificada, eficiente
e frutífera. Também não há dúvida de que, na grande maioria das situações, essa
atuação é digna de todos os elogios, firme, adequada e em prol dos melhores
interesses das crianças.
12) Entretanto, na hipótese em exame, é preciso sublinhar que a perceptível
inaptidão dos adotantes, que salta aos olhos de todos em uma análise mais detida e
equidistante da questão, somente veio a ser observada e considerada por ocasião
do julgamento da apelação da ação indenizatória ajuizada pela adotada em face
dos adotantes, quando a situação era mesmo irreversível.
13) Não houve, ao que tudo indica, adequada atenção para esse fato no
processo de adoção, o que poderia evitar a colocação dessa criança em uma entidade
familiar imprópria para recebê-la, assim como não houve adequada atenção para
esse fato na ação de destituição de poder familiar ajuizada pelo Ministério Público, que,
respeitosamente, não deveria ter sido proposta e, como foi, não deveria ter sido julgada
procedente, eis que da leitura da sentença proferida naquela ação, data venia, não se
extraem razões suficientes para o desfazimento do vínculo paterno-filial.
14) Percebe-se, pois, que todos os mecanismos de controle existentes no
sistema de adoção falharam sucessivamente, reconhecimento que, para além das
específicas consequências para o desfecho da hipótese em exame, convida a todos
para reflexões ainda mais amplas.
15) Às milhares de pessoas que pretendem adotar, a palavra é ponderação.
Embora não se deva temer a adoção, um gesto de generosidade e grandeza inigua-
lável, é preciso ter a mais elevada convicção dessa escolha, pois ela terá, sempre,
inúmeras consequências, não apenas aos adotantes, mas também ao adotado. O
ímpeto de adotar deve encontrar firme amparo em motivos racionais para adotar.
16) E aos demais partícipes do processo de adoção, a palavra é atenção, pois
somente o olhar humano e individualizado será capaz de evitar situações como
a tratada neste processo, em que condenar os adotantes poderia criar sérios obs-
táculos ao sucesso dessa importante política pública, mas deixar de sancioná-los
poderia revelar a condescendência com a prática de um ato contrário ao direito.
17) Dito isso, anote-se que a pretendida reparação pelos danos morais
alegadamente causados pelos recorridos à recorrente foi negada pelo acórdão
recorrido sob os seguintes fundamentos:
“Todavia, após 3 anos de convivência, a adolescente passou a apresentar com-
portamento com o qual os pais adotivos não concordavam, surgindo diversos
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 191

conflitos familiares, o que levou à remoção da menor do lar e à destituição do


poder familiar, como já acima mencionado.
A apelada sustenta que sofreu agressões físicas e psicológicas por parte de sua
mãe e que dela tinha muito medo, bem como que era responsável por reali-
zar todos os serviços domésticos, como limpeza da casa, lavar os banheiros,
passar as próprias roupas e as do irmão mais velho.
Por outro lado, os recorrentes aduzem que jamais pretenderam desistir da
adoção, pois sempre amaram a criança e sempre lhe proporcionaram as me-
lhores condições de vida, sendo inverídicas as alegações no sentido de que era
mal tratada e não recebia carinho e atenção da mãe.
As testemunhas ouvidas nos autos (fls. 124), não confirmaram a alegação de a
menor ser constantemente agredida e negligenciada pelos pais.
D dos S S, que deu atendimento à família após a menor ter sido encaminha
ao Creas Centro, sustentou ter conversado com a sra. E que se mostrava pre-
ocupada, pois não vinha sabendo como lidar com o comportamento da ado-
lescente que já havia fugido e estava praticando pequenos furtos. Sustentou,
ainda, que apesar de a mãe adotiva relatar que não mais queria a menor mo-
rando junto consigo, disse desconhecer qualquer relato de agressões físicas.
No mesmo sentido foi o depoimento de G S B D, que confirmou as afirma-
ções da colega de trabalho D.
A M da S, amiga da família, sustentou que a criança foi bem recebida, nunca
teve notícia de maus tratos e que o comportamento da menina (principal-
mente relativos a notas baixas na escola e namoro) ocasionou os diversos
conflitos familiares que motivaram a presente ação. Noticiou que a relação
entre mãe e filha sempre foi de muito amor e carinho. E que tanto a genitora
quanto a testemunha tentaram conversar bastante para que a adolescente fos-
se dissuadida da ideia de sair de casa.
M F N da S, vizinha dos apelantes, do mesmo modo, asseverou não ter co-
nhecimento acerca de qualquer comportamento violento na família e confir-
mou que havia relação de amor e carinho na família.
Do mesmo modo, as cartas e partes do diário escrito pela adolescente e junta-
dos aos autos de nº 0821036-96.2016.8.12.0001, demonstram que convivên-
cia familiar não se mostrava tão conflituosa quanto narrado, tendo a criança
escrito, em diversas ocasiões, que amava a mãe.
O documento de fls. 68 daqueles autos, uma carta escrita pela adolescente,
relata que em certa ocasião ela havia fugido da escola para se encontrar com
um menino, às escondidas, e que a mãe havia ficado extremamente preocu-
pada e procurado pela adolescente, insistentemente, até que fosse encontrada.
O comportamento rebelde também é confirmado no processo de nº 0817819-
16.2014. Depois de sair da casa dos pais adotativos e ser transferida para o
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
192

abrigo, a menina tentou contato com a família biológica, sendo levada para
Bela Vista. Ocorre que lá, novamente, fugiu por diversas vezes, inclusive para
o Paraguai, para se encontrar com o namorado.
Também, vale ressaltar não ter ficado demonstrado que os recorrentes agi-
ram com má-fé ou que tenham sido irresponsáveis em relação à educação
da adolescente. Conforme acima narrado, as testemunhas sustentaram que
havia uma relação de afeto na família e que todas desconheciam a existência
de maus tratos naquele ambiente.”
18) Examinando-se as razões de decidir acima declinadas, conclui-se ser
possível, respeitosamente, extrair uma conclusão jurídica distinta.
19) Com efeito, nos conflitos atinentes ao direito de família, a ausência ou
a insuficiência da prova das agressões físicas ou psicológicas que justificariam a
responsabilização civil é matéria que deve ser vista cum grano salis, tendo em vista
a própria dinâmica familiar, por vezes bastante reservada e íntima.
20) A esse respeito, anote-se que a prova oral reproduzida no acórdão re-
corrido, se bem examinada, revela, em verdade, um cenário de falta de adequado
esclarecimento da matéria fática, tendo em vista que: (i) nenhuma das testemunhas
pode ser considerada como presencial, eis que apenas reportaram genericamente
nunca ter notícia de maus tratos e não ter conhecimento de qualquer comportamento violento
da família; (ii) uma das testemunhas poderia ser considerada como suspeita, eis que
era confessadamente amiga dos recorridos, atraindo a incidência da regra do art.
405, § 3º, III, do CPC/73; (iii) os depoimentos de duas das testemunhas, as assis-
tentes sociais, foram considerados apenas a partir dos diálogos que mantiveram
exclusivamente com a recorrida e não a partir de sua própria observação dos fatos.
21) O depoimento de uma das assistentes sociais, a propósito, permite
inferir conclusão distinta daquela adotada pelo acórdão recorrido, na medida
em que diz ela ter ouvido, diretamente da mãe adotiva, o expresso desejo de não mais
querer a menor morando junto consigo – isso menos de 05 anos após a adoção de uma
criança que somente veio à entidade familiar em avançada idade, já com 09 anos.
22) Esse desejo – de devolução da menor adotada ao abrigo – foi reiterado
em, pelo menos, mais uma oportunidade. Quando citados para a ação de desti-
tuição do poder familiar, os recorridos, a despeito de negarem as agressões físicas
e psicológicas, reconheceram que não reuniriam condições de exercer o poder familiar e
reconheceram a procedência do pedido formulado pelo Ministério Público do Estado
de Mato Grosso do Sul, concordando, pois, com a destituição. Na sentença que
julgou procedente o pedido, consta expressamente:
“A presente ação teve início em razão da requerida E ter comparecido ao setor técnico ob-
jetivando devolver a filha A, sendo que, realizada a avaliação psicológica do caso,
a conclusão foi de que ‘o acolhimento institucional de A C da R, é recomen-
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 193

dado a fim de garantir sua integridade física e emocional conforme preconiza


o ECA’.” (fls. 209/212, e-STJ)
23) De outro lado, também é importante observar, a partir da prova oral
reproduzida no acórdão recorrido, a nítida preocupação em enfatizar o comportamento
da recorrente, filha adotiva e menor à época dos fatos, como o único elemento causal
do rompimento do vínculo familiar.
24) Nesse contexto, a fuga da escola, os supostos pequenos furtos (que
apenas constam da parcial narrativa da mãe adotiva, sem outros elementos que o
corroborem), o relacionamento amoroso e o desempenho aquém do desejado em
atividades educacionais – problemas que são enfrentados por milhões de famílias
diariamente – são reiteradamente destacados para justificar o fato de a filha adotiva
supostamente não corresponder às expectativas e ao modelo de conduta esperado
pelos pais adotivos e, com isso, justificar a mencionada devolução.
25) Ocorre que a adoção, embora possuísse índole negocial nos primórdios
do CC/1916, muito em razão do contexto social e das condutas tidas por aceitá-
veis naquela época, é sabidamente um ato irrevogável desde, ao menos, a entrada
em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 48 da versão original da
Lei 8.069/90, posteriormente renumerado para o art. 39, § 1º, em razão da Lei
nº 12.010/2009).
26) Assim, a partir dos mesmos elementos fático-probatórios, é possível
inferir conclusão distinta, no sentido de que, cientes da impossibilidade jurídica
de revogar a adoção da filha que não atendeu às expectativas nela depositadas, os
recorridos provocaram artificialmente a destituição do poder familiar, de modo
a devolver a filha adotiva que não servia aos seus propósitos e aos seus desígnios.
27) Essa perspectiva egocêntrica de família, formada a partir da ideia de que
somente será valioso aquele que sai exatamente aos seus e que não considera as
diferenças de personalidade e as idiossincrasias da pessoa humana, é ainda mais le-
siva quando se constata que, na hipótese, havia um conhecido passado de abandono,
de abrigamento e de profundas mazelas que não poderia jamais ser desconsiderado
e que impunha aos adotantes, por isso mesmo, um senso de responsabilidade
parental além daquele que normalmente se exige.
28) Assim, embora realmente tenha havido falha estatal ao deferir à adoção
de criança em condições tão especiais a quem muito provavelmente não poderia,
ou não desejaria, despender cuidados diferenciados, não se pode eximir os pais
adotivos de uma parcela dessa responsabilidade, pois, ainda que tenham agido
imbuídos das melhores intenções, é preciso dizer que o filho decorrente da adoção não
é uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido se se constatar
a existência de vícios ocultos.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência
194

29) Diante desse cenário, é absolutamente crível e presumível concluir pela


existência de grave abalo e de trauma psíquico em uma criança de 09 anos que, após
anos de acolhimento institucional, é recebida em um lar em que espera perma-
necer e que, a partir de problemas que são cotidianamente enfrentados por todas
as famílias do universo – talvez exponencialmente maiores em razão de sua vida
pregressa, vê os seus pais agindo para devolvê-la ao albergamento aos 14 anos.
30) É nesse contexto que merece ser apreciada a prova documental produ-
zida no acórdão recorrido, no sentido de que “as cartas e partes do diário escrito
pela adolescente (...) demonstram que convivência familiar não se mostrava tão
conflituosa quanto narrado, tendo a criança escrito, em diversas ocasiões, que
amava a mãe”.
31) Se a convivência não era tão conflituosa e se havia amorosidade entre
as partes, a despeito de todas as adversidades, os recorridos, maiores, capazes e
cientes de suas responsabilidades, não adotaram a melhor conduta ao, conscien-
temente, devolvê-la ao abrigamento.
32) É por isso que, respeitosamente, ouso divergir do e. Relator, para co-
nhecer e dar parcial provimento ao recurso especial interposto pela recorrente no
ponto, restabelecendo a sentença que julgou procedente o pedido, mas arbitrando
a condenação a título de danos morais em R$ 5.000,00 (e não em R$ 20.000,00,
como na sentença), corrigidos monetariamente a partir da data do arbitramento,
na forma da Súmula 362/STJ.
33) O valor de R$ 5.000,00, conquanto módico, considera todo o contexto
anteriormente mencionado, a fim de equilibrar a tensão existente entre o direito
à indenização a que faz jus a recorrente e o grau de culpa dos recorridos, bem
como de modo a não comprometer a eficácia da política pública de adoção.

Da Obrigação de Pagar Alimentos Após a Destituição do Poder Familiar


34) De outro lado, ao propor o restabelecimento da sentença que conde-
nou os recorridos a pagarem alimentos à recorrente, consignou o e. Relator, em
síntese, que mesmo quando houver a destituição do poder familiar, não há correlatamente
a desobrigação de prestação de assistência material à filha, uma vez que a destituição do
poder familiar apenas retira dos pais o poder que lhes é conferido para gerir a vida
da prole, mas, ao revés, não rompe o vínculo de parentesco.
35) Trata-se, como destacado na sessão de julgamento, de matéria ver-
dadeiramente inédita nesta Corte. Conquanto se faça referência, no voto do e.
Relator, a uma decisão monocrática de minha Relatoria no AREsp 1.720.813/MS,
saliente-se que, naquela oportunidade, o recurso não foi conhecido em virtude
da incidência da Súmula 7/STJ, sendo que o trecho destacado por S. Exa. é, em
verdade, do acórdão recorrido.
Jurisprudência – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 195

36) Acerca desse ponto específico – alimentos – inclino-me a concordar


com a tese proposta no judicioso voto do e. Relator, ressalvando, contudo, que
há, na hipótese, uma particularidade que merece ser examinada neste julgamento.
37) Com efeito, é fato incontroverso que a recorrente A C DA R nasceu
em 09/03/2001, razão pela qual completou a maioridade civil em 09/03/2019, quando
o recurso especial já estava ao aguardo do julgamento nesta Corte.
38) A despeito de a maioridade civil, por si só, não acarretar a inviabilidade
jurídica da condenação em alimentos, há fato superveniente relevante que deve ser
considerado para que se delibere sobre a condenação.
39) Com efeito, poderá a recorrente por exemplo, a partir da maioridade
civil e da consequente saída do acolhimento institucional, possuir renda própria
e atividade laborativa ou econômica que lhe garanta o sustento sem a necessidade
de prestação dos alimentos pelos pais que, relembre-se, possuem idade avançada.
40) Assim, para evitar a propositura de ação revisional ou exoneratória
e considerando que a fixação dos alimentos na sentença que se pretende resta-
belecer ocorreu em Maio de 2016, isto é, há quase 05 anos, parece mais adequado
que, se acolhida a tese proposta pelo e. Relator – a qual desde logo adiro –, seja
dado provimento ao recurso especial para determinar o retorno do processo ao TJ/MS, com
determinação de conversão do julgamento da apelação em diligência apenas em relação ao
capítulo decisório dos alimentos, a fim de que seja investigado se a recorrente ainda
necessita dos alimentos após ter alcançado a maioridade civil e quais são as atuais
possibilidades dos alimentantes.

Conclusão
41) Forte nessas razões, rogando as mais respeitosas venias ao e. Relator,
CONHEÇO e DOU PROVIMENTO ao recurso especial, a fim de: (i) restabe-
lecer a sentença que julgou procedente o pedido, mas arbitrando em R$ 5.000,00
a condenação a título de reparação de danos morais, corrigidos monetariamente a
partir da data do presente arbitramento; (ii) determinar o retorno do processo ao
TJ/MS, com determinação de conversão do julgamento da apelação em diligência,
a fim de que seja investigado se a recorrente ainda necessita dos alimentos após ter
alcançado a maioridade civil e quais são as atuais possibilidades dos alimentantes.
J u r i s p r u d ê n c i a C o m e n ta d a

STJ Fixa Indenização por Danos Morais


em Decorrência do Abandono Afetivo
dos Pais Adotivos em Relação à Criança
Adotada
(STJ, REsp 1.698.728/MS)

Amanda Danyane de Almeida Silva


Pós-Graduada em Direito de Família Aplicado pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (IEC/
PUC); Graduada em Direito pela Universidade de Uberaba
(UNIUBE); e-mail: amandanyane@gmail.com.

Anna Beatrice Silva Dantas


Pós-Graduada em Direito de Família Aplicado pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (IEC/PUC); Pós-
Graduada em Direito Público pela UNINASSAU; Graduada em
Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP);
e-mail: annabsdantas@recife.pe.senac.br.

Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas


Coordenadora Regional MG/RJ/GO da Ânima Educação;
Professora no Centro Universitário Una; Professora-Adjunta
de Direito de Família na Pós-Graduação da PUC Minas;
Servidora Pública Federal do TRT/MG; Pós-Doutorado
em Direito pela Universidade Federal da Bahia – UFBA;
Doutora; Mestre em Direito Privado pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais; Especialista em
Direito Processual Civil pela Universidade Gama Filho;
Especialista em Educação a Distância pela PUC Minas;
Especialista em Direito Público – Ciências Criminais pelo
Complexo Educacional Damásio de Jesus; Bacharel em
Administração de Empresas e Direito pela Universidade
FUMEC; Site: www.claudiamara.com.br;
e-mail: claudiamaraviegas@yahoo.com.br.

1 O Caso (o Fato)
Trata-se de ação de reparação de danos morais e afetivos cumulada com
alimentos proposta pela adotada A C DA R (A C), menor impúbere, nascida
aos 9/3/2001, contra os adotantes E C DE S e A C DA R (E e A), perante o
Jurisprudência Comentada – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 197

Juízo da Vara da Infância, Juventude e Idoso da Comarca de Campo Grande/


MS. Narra que aos 9 (nove) anos de idade foi adotada pelos requeridos, que
a agrediam física e mentalmente, em manifesto descumprimento do poder
familiar, o que lhe acarretou abalos psíquicos.
Em suma, A C foi adotada por E e A no ano de 2010, quando já possuía
09 anos, vindo de anterior destituição de poder familiar e considerável período
de acolhimento institucional. E e A, por sua vez, eram idosos ao tempo da
adoção de A C (ela com 55 anos e ele com 85 anos) e possuíam filho biológico
com quase 30 anos àquela época.
A presente ação de alimentos cumulada com reparação de danos morais
foi ajuizada por A C em agosto de 2014, na qual é relatado que os conflitos
familiares tiveram origem 03 anos após a adoção e se prolongaram no tempo,
culminando com a propositura, no ano de 2015, de ação de destituição do
poder familiar pelo Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul.
A C pugnou pela condenação de E a A ao pagamento de compensação
por abandono material e afetivo em razão dos abalos sofridos, bem como ao
pagamento de pensão alimentícia para o atendimento das suas necessidades.
O Juízo da Vara da Infância, Juventude e Idoso da Comarca de Campo
Grande/MS julgou parcialmente procedentes os pedidos para condenar E e
A ao pagamento de pensão alimentícia no valor correspondente a 50% do sa-
lário mínimo e ao pagamento de indenização por danos morais para A C, em
virtude de abandono afetivo, no montante de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
E e A interpuseram apelação e, no julgamento, o Tribunal de Justiça
de Mato Grosso do Sul (TJMS) deu provimento ao recurso no que tange à
obrigação alimentar, porém considerando que os danos morais não restaram
configurados:
“RECURSO DE APELAÇÃO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DA-
NOS MORAIS E ALIMENTOS. ADOÇÃO. PERDA DA AUTORI-
DADE PARENTAL POR ATO JUDICIAL. TÉRMINO DEFINITIVO
DO PODER FAMILIAR. AUSÊNCIA DE OBRIGAÇÃO ALIMEN-
TAR. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. REQUISITOS
NÃO CONFIGURADOS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO
PROVIDO.”
Portanto, cuida-se de recurso especial interposto por A C DA R,
pretendendo a reforma do acórdão proferido pelo TJMS, por meio do qual
a 4ª Câmara Cível do TJ/MS deu provimento à apelação interposta pelos
recorridos, E C DE S e A C DA R, reformando a sentença que havia julgado
procedente os pedidos de alimentos e de reparação de danos morais.
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência Comentada
198

A controvérsia reside na possibilidade de fixação de alimentos mesmo


após o término do poder familiar e na hipótese de indenização por danos
morais em virtude do abandono afetivo praticado pelos recorridos, infligindo
danos psicológicos à criança adotada.
Porém, a análise, no momento, pretende ater-se à viabilidade de in-
denização quando da ocorrência de danos morais, por abandono afetivo, em
relação a pais adotivos para com os adotantes.

2 O Julgamento
In casu, o julgamento abarca, além da possibilidade de pagamento de pensão
alimentícia pelos pais adotivos destituídos do poder familiar, precipuamente o
cabimento de compensação por abandono material e afetivo por danos psicoló-
gicos sofridos pela recorrente por parte dos recorridos, julgado em 04/05/2021.
No que tange à matéria objeto de análise no momento, o Ministro Relator
Moura Ribeiro votou pela improcedência de fixação de indenização por danos
morais em virtude do abandono afetivo. Neste ponto, em seu voto, o ministro se
ateve à conclusão do próprio TJMS acerca das provas carreadas originariamente
aos autos, diante do óbice para reexame fático-probatório em Recurso Especial.
O relator ressaltou que, para o TJMS “à luz dos elementos e das provas
colhidas dos autos, que não ficou comprovada nenhuma situação de maus-tratos
sofridos por A C ou abandono afetivo por parte dos recorridos E e A (inexis-
tência de ato ilícito)” (BRASIL, 2021). Tomando para si o entendimento do
TJMS, o ministro asseverou que: “para o TJ/MS, soberano na análise dos fatos
e das provas dos autos, não houve comprovação de que A C sofreu maus tratos,
sejam físicos ou psicológicos, por parte dos seus pais adotivos” (BRASIL, 2021).
Em suas considerações, apontou a não configuração do abandono
afetivo, o que implica em não estar comprovado o fato ilícito que porventura
ensejaria a indenização por dano moral.
O ministro evocou precedentes da Corte em que, para se alterar en-
tendimento de acórdão recorrido acerca da configuração de danos morais,
demandaria reexame de fatos e provas, o que a Súmula nº 7 do STJ1 impede
(a exemplo o AgInt no AREsp 1.286.242/MG2 e o REsp 1.493.125/SP3).

1 Súmula nº 7 do STJ: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”.
2 “AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ABANDONO
DE MENOR. DANOS MORAIS. MATÉRIA QUE DEMANDA REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA
Nº 7 DO STJ. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.” (AgInt no AREsp 1.286.242/MG, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, j. 08.10.2019, DJe 15.10.2019)
3 “RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFE-
TIVO. NÃO OCORRÊNCIA. ATO ILÍCITO. NÃO CONFIGURAÇÃO. ART. 186 DO CÓDIGO CIVIL.
Jurisprudência Comentada – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 199

O ministro relator restringiu-se a essa argumentação, sem nenhuma


outra consideração do que constava nos autos e que não se fazia necessário
reexame de provas.
Acompanhou o voto do relator o Ministro Marco Aurélio Bellizze.
A Ministra Nancy Andrighi abriu divergência, sendo acompanhada pelos
Ministros Ricardo Villas Bôas Cueva e Paulo de Tarso Sanseverino e, por
maioria, deu-se provimento ao recurso especial.
Em seu voto-vista, a Ministra Nancy Andrighi, muito lúcida, destacou
que: “(...) embora realmente tenha havido falha estatal ao deferir à adoção de criança
em condições tão especiais a quem muito provavelmente não poderia, ou não
desejaria, despender cuidados diferenciados, não se pode eximir os pais adotivos
de uma parcela dessa responsabilidade, pois, ainda que tenham agido imbuídos das
melhores intenções, é preciso dizer que o filho decorrente da adoção não é
uma espécie de produto que se escolhe na prateleira e que pode ser devolvido
se se constatar a existência de vícios ocultos” (destaque nosso).
A ministra ressaltou que, em razão do histórico familiar da recorrente –
que já havia passado por anterior destituição de poder familiar e considerável
período de acolhimento institucional – e das características dos adotantes, ora
recorridos, a adoção em tela demandaria maior atenção e cuidados especiais
do Poder Público.
Frisou que se tratava de adoção com nível de risco diferenciado do
cotidiano de adoção, além de se considerar o nível de preparação e disposição
dos adotantes em receber a criança. Situação que veio a ser reconhecida no
acórdão proferido pelo TJMS.
A ministra acentuou que a realidade pode não compreender até mesmo
uma política pública e social de tão grande relevância como o instituto da
adoção. A ausência de estrutura para atender e acompanhar essas famílias são
falhas estatais que vêm a resultar em quadros danosos para os mais vulneráveis
que, nesse caso, se materializam nas crianças e adolescentes. Pontuou que no
contexto da adoção, se olhado com atenção, já poderia notar a dificuldade do
processo de adaptação, para além das adversidades corriqueiras, pois estar-se-ia
diante de grande diferença geracional e de vida pregressa traumática da adotada.
Ponderou o papel do Estado, com o atendimento multidisciplinar, e
do Ministério Público no contexto da concretização da adoção e, precipua-

AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA CONFIGURAÇÃO DO NEXO CAUSAL. SÚMULA Nº 7/STJ.


INCIDÊNCIA. PACTA CORVINA. VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. VEDAÇÃO. AUSÊNCIA
DE PREQUESTIONAMENTO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. NÃO CARACTERIZADO. MATÉRIA
CONSTITUCIONAL.” (REsp 1.493.125/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, j. 23.02.2016,
DJe de 01.03.2016)
Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 – Jurisprudência Comentada
200

mente, de observar a aptidão dos adotantes no momento em que ainda pode


se reverter a situação – o que não ocorreu no caso em tela.
Os mecanismos de controle existentes no sistema de adoção e exerci-
dos por esses órgãos falharam, no entendimento da ministra, durante todo
o processo de adoção e até mesmo na ação de destituição de poder familiar
ajuizada pelo Ministério Público.
Passando para a análise das razões do acórdão, a ministra concluiu ser
possível obter conclusão jurídica distinta por entender de maneira contrária
quanto à necessidade de provas das agressões físicas e psicológicas. Acerta-
damente a ministra considera que tais agressões que ensejariam a responsa-
bilidade civil devem ser vistas com reservas, como demandam as questões
familiares de modo geral.
A ministra sublinhou que há nos autos a constatação de que, em mais de
uma oportunidade, os recorridos manifestaram o desejo de devolver a menor
adotada ao abrigo, constando inclusive em depoimento de assistente social
e expressamente na sentença que julgou procedente o pedido em primeiro
grau: “A presente ação teve início em razão da requerida E ter comparecido
ao setor técnico objetivando devolver a filha A”.
Perpassando pela irrevogabilidade da adoção, a ministra demonstra que
os recorridos ocasionaram a destituição do poder familiar para que a adotada
voltasse ao abrigo institucional, por não satisfazer as expectativas dos adotan-
tes. Os danos causados por esse egocentrismo dos adotantes – que faltaram
com a responsabilidade parental que lhes cabia – somam-se ao abandono e
abrigamento pelo qual a recorrente já havia passado desde tenra idade.
Por fim, a ministra sustenta que a prova documental produzida no
acórdão deve ser levada em consideração, pois mesmo a convivência entre as
partes não sendo tão conflituosa e haver amorosidade, os adotantes entenderam
por bem devolver a adotada à institucionalização.
Ultimando ser “absolutamente crível e presumível concluir pela
existência de grave abalo e de trauma psíquico”, a ministra diverge do relator e
restabelece a sentença que julgou procedente a condenação dos recorridos ao
pagamento de indenização por danos morais.

3 Conclusões e Considerações
Para além de perquirir a necessidade versus possibilidade da pensão
alimentícia depois da maioridade e da destituição do poder familiar e da ce-
leuma acerca da devolução da criança após estágio de convivência, tudo isso,
Jurisprudência Comentada – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 201

sem desestimular o ato de adoção nem inviabilizar os idosos de fazê-lo, nossas


considerações se restringirão à responsabilidade civil dos adotantes e do Estado.
A controvérsia que se dará enfoque trata-se da possibilidade de indeni-
zação por danos morais em virtude de abandono afetivo pelos pais adotantes
em relação à criança adotada, bem como pela lesão de direitos por descum-
primento da responsabilidade parental.
Como já implícito, expressamos nossa concordância – com as devidas res-
salvas a serem feitas oportunamente – com a decisão proferida pela maioria dos ministros
do Superior Tribunal de Justiça pela responsabilização civil dos recorridos decorrente do
abandono afetivo.
A começar pelo ato ilícito – a partir do qual surge a necessidade de
se reparar o dano – no caso em tela tem-se o descumprimento de preceitos
constitucionais e deveres parentais fundamentais que causaram danos irre-
versíveis à recorrente, ações e omissões que ensejam a responsabilização civil.
A responsabilidade parental está no sistema constitucional como o
conjunto de poderes e deveres a serem exercidos por aqueles que possuem
o poder familiar de forma a propiciarem o completo, harmonioso e saudável
desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, nos termos também dos
arts. 7º e 194 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Previsto no art. 227 da Constituição Federal, o princípio da paternidade
responsável tem por escopo a definição de garantias e prerrogativas funda-
mentais à criança e ao adolescente, tendo como responsáveis por efetivá-las
a família, a sociedade e o Estado. A fragmentação desse preceito, com ações
negligentes e omissões que coloquem a criança em risco, demonstra que não
há responsabilidade na criação daquele vulnerável.
No caso sub judice é possível apreender atitudes claras que ensejam a
necessidade de reparação do dano, a dizer os atos de devolução da criança após
a finalização de todo o processo de adoção, a culpabilização da criança – com
conhecido histórico de abandono e longo tempo de institucionalização – por
não atender às expectativas e propósitos dos adotantes, acontecimentos que
causam indubitável trauma e dano psicológico irreversível.

4 ECA: “Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas
sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de
existência”.
ECA: “Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente,
em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento
integral”.
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Respaldada está a reparação do dano no art. 186 do Código Civil, com


a lesão a direitos de personalidade da criança, por meio das ações e omissões
especificadas anteriormente, culminando no total abandono afetivo da criança.
Sobre o tema, a jurista Maria Berenice Dias (2017, p. 572) leciona que
“O dano à dignidade humana do filho em estágio de formação deve ser passível
de reparação material, não apenas para que os deveres parentais deliberada-
mente omitidos não fiquem impunes, mas, principalmente, para que, no
futuro, qualquer inclinação ao irresponsável abandono possa ser dissuadida
pela firme posição do Judiciário, ao mostrar que o afeto tem um preço muito
alto na nova configuração familiar”.
Ademais, como bem pontuou a ministra em seu voto, a concepção
egocêntrica de família, adotada pelos recorridos, concorre para o agravamento
da lesão provocada por seus atos. Frisa-se que essa perspectiva de família vai
na contramão do conceito atual de família baseada no afeto – eudemonista – e
que exige que os pais dirijam aos filhos “o carinho necessário para a forma-
ção plena de sua personalidade” dentre os deveres na criação e educação das
crianças e adolescentes (DIAS, 2017, p. 108).
No mesmo sentido, o cuidado já tem atribuição de valor jurídico pelo
STJ5, logo, é possível constatar o abandono afetivo como ilícito civil com
consequente dever de indenizar.
Doutro lado, inegável a necessidade de responsabilização também do
Estado, no caso especial em comento, e aqui se faz uma crítica. As falhas dos
aparatos do Estado responsáveis pelo processo de adoção e do Ministério
Público são igualmente causadoras de ato ilícito que merece reparação.
Apesar de a ministra ter destacado em seu voto a insuficiente e inade-
quada cautela destas partes durante o processo de adoção e na ação de desti-
tuição do poder familiar, não houve sequer menção de fixação de quantum a
ser destinado à recorrente a título de reparação de dano por descumprimento
de seus deveres, inclusive preceitos constitucionais.
Reconhecidamente, houve falhas sucessivas que demandam a respon-
sabilização civil e reparação do dano pelo Estado e pelo Ministério Público,
justamente por também possuírem o dever constitucional de zelar pelas
garantias fundamentais de crianças e adolescentes.
Por tratar-se de um julgamento de riqueza acadêmica ímpar, podem-
se inferir os mais diversos tipos de problematizações acerca das violações aos

5 “CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL.
POSSIBILIDADE.” (REsp 1.159.242/SP, Relª Minª Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 24.04.2012, DJe 10.05.2012)
Jurisprudência Comentada – Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões Nº 52 – Jan-Fev/2023 203

direitos da, então menor, A C, por parte dos demandados e do Estado de forma
dúplice, enquanto órgão administrativo e fiscal da lei no tocante às ações – ou
omissões – do Ministério Público.
Aprioristicamente, é possível identificar deslizes advindos sob vários
prismas: entre o Estado enquanto administração pública e os – no momento
– pretensos adotantes, no momento em que os agentes multidisciplinares
não foram capazes de identificar e antecipar futuros problemas que poderiam
surgir com base nos estudos psicossociais realizados com os requeridos, não
necessariamente pela idade avançada dos postulantes à adoção – uma vez que
as únicas ressalvas legais no tocante à faixa etária é sua margem mínima, tal
como explicitado pelo art. 42 do ECA6 –, mas pelo perfil psicológico e social dos
requerentes de forma independente e em comparação com o perfil da adotada;
entre os mesmos entes e a adotada, que, além de – dever – ser acompanhada
diuturnamente já que uma vez em acolhimento institucional, cuja obrigação
era de, no mínimo, tentar minimizar todo o impacto psicológico sofrido pela
menor enquanto retirada de sua família biológica, não fez o levantamento de
família substituta que mais encaixasse com o seu perfil e suas necessidades;
com ambos requeridos e requerente durante o estágio de convivência, utili-
zado exatamente para corrigir falhas ocorridas durante a percepção inicial e,
por fim, do Parquet estadual, fiscal da lei, que, diante de todos os indícios de
maus-tratos físicos e psicológicos, ainda, durante o procedimento, inclusive
de tentativa de devolução da criança, não agiu de forma altiva e eficaz a fim
de sanar todas as irregularidades que outrora passaram despercebidas.
As reflexões que se fazem em relação ao perfil dos adotantes, sobretudo
no que concerne à faixa etária, não tem o condão de ser discriminatória ou
de coibir a habilitação de quaisquer postulantes, mas se faz extremamente
necessária a fim de garantir um olhar mais atento ao caso concreto.
De um lado, tem-se uma criança com então nove anos, institucionali-
zada, advinda de uma experiência psicológica tamanha que fez com que seus
genitores fossem destituídos do poder familiar, sem contar com a evidente
amplitude de sua capacidade analítica dada por conta da idade. Não são ne-
cessários muitos esforços – a despeito do voto divergente do Ministro Relator
– para que se conclua sobre as necessidades psicológicas e sociais que deverão
ser trabalhadas ao longo dos anos para que essa criança se torne uma adulta
com padrões mínimos de funcionalidade.

6 ECA: “Art. 42. Podem adotar os maiores de 18 (dezoito) anos, independentemente do estado civil. (...) § 3º O adotante
há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando”.
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Do outro lado, por sua vez, tem-se um casal de idosos, cujo mais
velho dentre eles tinha 85 anos à época, e, por mais que sejam saudáveis no
momento da adoção, deve ser levado em consideração as futuras limitações
físicas e biológicas com o passar dos anos. Além disso, como evidenciou a
Ministra Nancy Andrighi em seu pertinente voto, deviam ser tomados como
pressupostos a diferença geracional e as dificuldades trazidas pelas cicatrizes
carregadas pela menor desde tenra idade.
Se faz mister reforçar a louvável disponibilidade dos adotantes para
exercer importante papel, mas não se pode olvidar a extrema necessidade,
então, de uma avaliação meticulosa por parte do Estado de tais perfis, a fim
de se evitar a tão temida requisição de devolução de um infante adotado,
dando sequência ao ciclo de rejeições, traumas e desconfianças vivenciados
por esta menina.
O caso em comento serve para elucidar e fixar que o afeto, apesar de
não quantificável, pode sim originar a responsabilização civil quando não é
dirigido nas relações familiares – qualquer que seja a formação da família – e,
precipuamente, quando é negado a crianças e adolescentes. A decisão evidencia
que violados os deveres parentais, impedindo que as garantias fundamentais
das crianças e dos adolescentes sejam efetivadas, verificável está a causação do
dano com culpa – seja por ação ou omissão.

Referências Bibliográficas
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.
htm. Acesso em: 01 jun. de 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.698.728. Relator: Ministro Moura Ribeiro. Julgamento:
04/05/2021.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2017.
SOUSA, Bruna Alessandra Costa Rossi de. Responsabilidade civil por abandono afetivo dos pais para com os filhos.
2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1465/Responsabilidade+civil+por+abandono+afetiv
o+dos+pais+para+com+os+filhos. Acesso em: 05 jun. 2022.

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