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ISSN 1807-0930

Revista Magister de Direito


Civil e Processual Civil
Ano XVIII – Nº 107
Mar-Abr 2022

Repositório Autorizado de Jurisprudência


Superior Tribunal de Justiça – nº 63/2008

Classificação Qualis/Capes: B1

Editor
Fábio Paixão

Coordenadores
Anderson Schreiber – Daniel Amorim Assumpção Neves – Débora Brandão
Fernanda Tartuce – Flávio Tartuce

Conselho Editorial
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Arlete Aurelli – Carlos Nelson Konder – Cecília Asperti – Cesar Calo Peghini
Cláudia Lima Marques – Daniel Mitidiero – Ênio Santarelli Zuliani
Eroulths Cortiano Junior – Fredie Didier Junior – Giselda M. F. Novaes Hironaka
Gisele Góes – Gustavo Tepedino – Heloísa Helena Barboza – Humberto Theodoro Jr.
José Fernando Simão – José Rogério Cruz e Tucci – Luiz Guilherme Marinoni
Marco Aurélio Bezerra de Melo – Marco Jobim – Maria Helena Diniz
Marilia Pedroso Xavier – Maurício Bunazar – Pablo Malheiros Cunha Frota
Pablo Stolze Gagliano – Rodolfo Pamplona Filho
Rodrigo Reis Mazzei – Rolf Madaleno – Sílvio de Salvo Venosa
Susana Henriques da Costa – Trícia Navarro

Colaboradores deste Volume


Adherbal Lira Barros – Adriano Stanley Rocha Souza – Anselmo Prieto Alvarez
Carlos Eduardo Montes Netto – Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas
Daniel Monteiro Neves – Danilo Henrique Nunes – Dayse Braga Martins
Léia Comar Riva – Leonardo Estevam de Assis Zanini – Leonardo Lima Mota Neto
Leonardo Souza Santana Almeida – Luisa Comar Riva
Marcos Ehrhardt Jr. – Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira
Túlio Márcio Santos da Trindade – Wanessa de Cássia Françolin
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil
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Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil


v. 1 (jul./ago. 2004)-.– Porto Alegre: Magister, 2004
Bimestral.
v. 107 (mar./abr. 2022)
Coordenadores: Anderson Schreiber, Daniel Amorim Assumpção Neves, Débora Brandão, Fernanda
Tartuce e Flávio Tartuce.

ISSN 1807-0930

1. Direito Civil – Periódico. 2. Processo Civil – Periódico.

CDU 347(05)
CDU 347.9(05)

Ficha catalográfica: Leandro Augusto dos Santos Lima – CRB 10/1273


Capa: Apollo 13

Editora Magister
Diretor: Fábio Paixão

Alameda Coelho Neto, 20


Boa Vista – Porto Alegre – RS – 91340-340
Sumário
Doutrina
1. Controle de Conteúdo Exercido pelos Provedores de Internet em
Tempos de Pandemia de Fake News
Marcos Ehrhardt Jr. e Leonardo Lima Mota Neto........................................................ 5
2. Noções Gerais sobre a Legislação Autoral Alemã
Leonardo Estevam de Assis Zanini............................................................................ 27
3. O Amicus Curiae e os Limites de sua Parcialidade na Relação Jurídica
Processual
Anselmo Prieto Alvarez e Wanessa de Cássia Françolin............................................... 53
4. Estremação de Imóveis: uma Via Extrajudicial para a Propriedade
Exclusiva
Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas, Daniel Monteiro Neves e
Adriano Stanley Rocha Souza................................................................................... 68
5. A Constitucionalização do Direito de Família sob a Ótica dos
Precedentes do Supremo Tribunal Federal
Leonardo Souza Santana Almeida............................................................................ 89
6. Teoria da Imprevisão e Teoria da Resolução: o Erro Topológico do
Código Civil
Túlio Márcio Santos da Trindade............................................................................ 107
7. Os Negócios Jurídicos Processuais Atípicos como Forma de Acesso à
Justiça em Tempos de Pandemia e no Pós-Pandemia
Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Carlos Eduardo Montes Netto e
Danilo Henrique Nunes......................................................................................... 128
8. Sistema Multiportas e a Dignidade da Justiça
Dayse Braga Martins e Adherbal Lira Barros.......................................................... 152
9. Os 20 Anos de Vigência do Código Civil Brasileiro e sua Interpretação
de Acordo com os Valores Atuais
Léia Comar Riva e Luisa Comar Riva................................................................... 168

Jurisprudência
1. Superior Tribunal de Justiça – Doação. Usufruto Vitalício. Ausência de
Exercício. Divórcio. Abandono do Imóvel. Exploração do Imóvel. Gestão
Unilateral. Possibilidade. Decadência. Art. 205 do Código Civil de 2002.
Sobrepartilha. Descabimento
Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva...................................................................... 183
2. Superior Tribunal de Justiça – Impugnação ao Cumprimento de
Sentença. Litisconsortes Passivos com Procuradores Diferentes.
Contagem de Prazo em Dobro do Prazo para a Impugnação.
Cabimento. Impugnação Tempestiva. Recurso Especial Conhecido e
Provido
Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze........................................................................... 189
3. Superior Tribunal de Justiça – Incorporação Imobiliária. Legitimidade
Passiva da Incorporadora para o Pedido de Restituição da SATI. Tema
939/STJ. Cláusula Penal Moratória. Previsão para o Caso de Atraso
na Entrega da Obra. Cessação na Data do Habite-se. Descabimento.
Termo Ad Quem. Data da Efetiva Entrega das Chaves. Tema 966/STJ.
Sucumbência Recíproca. Pretensão de Redimensionamento. Ausência
de Prequestionamento. Óbice da Súmula 282/STJ. Atraso na Entrega
da Unidade Autônoma. Responsabilização Solidária da Imobiliária.
Descabimento. Ausência de Violação ao Dever de Informação por Parte
da Imobiliária. Inocorrência das Hipóteses Legais de Responsabilidade
Solidária. Precedentes. Improcedência do Pedido. Teoria da Asserção.
Primazia do Julgamento de Mérito
Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino...................................................................... 194
Doutrina

Teoria da Imprevisão e Teoria da Resolução:


o Erro Topológico do Código Civil

Túlio Márcio Santos da Trindade


Professor de Direito Civil da Faculdade Mineira de Direito da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; Doutorando
em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais; Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais; Especialista em Direito de Empresa
pelo Instituto de Educação Continuada (PUC Minas);
Membro-Fundador e Diretor do Instituto Popperiano de
Estudos Jurídicos; e-mail: tmtrindade2@gmail.com.

RESUMO: O presente estudo teve por tema a oferta de testificação crítica à


revisibilidade contratual por meio de um confronto teórico, objetivando falsear a
tese acolhida pelo Código Civil brasileiro de, ao promover tratamento normativo
a referido instituto, adotar-se topologia equivocada para cindir o regramento legal
relativo aos requisitos e efeitos da cláusula rebus sic stantibus sobre os contratos em
dois setores da lei, regulando a revisão propriamente dita no art. 317 e deixando
seus demais efeitos sob o alcance do art. 487 e seguintes, já sob a perspectiva da
teoria da resolução, situação jurídica que merece reforma legislativa a bem de
promover acertamento sistêmico ao diploma civil.

PALAVRAS-CHAVE: Direito dos Contratos. Revisão dos Contratos. Erro


Topológico Legal. Reforma do Código Civil.

SUMÁRIO: Introdução. 1 Antecedentes Históricos da Revisibilidade Contra-


tual; 1.1 O Direito Antigo e as Primeiras Transformações; 1.2 O Direito Romano
e a Sistematização das Convenções; 1.3 A Instituição do Pacta Sunt Servanda como
Busca pela Segurança das Convenções; 1.4 A Cláusula Rebus Sic Stantibus como
Solução ao Dinamismo dos Contratos de Duração; 1.5 Aspectos Históricos da
Cláusula Rebus Sic Stantibus. 2 Revisibilidade no Código Civil; 2.1 A Revisão
Contratual no Direito Civil Brasileiro; 2.2 Pressupostos de Aplicabilidade da Te-
oria da Imprevisão; 2.3 Apontamentos Críticos à Revisibilidade no Código Civil
de 2002. 3 Revisibilidade no Código de Defesa do Consumidor; 3.1 O Advento
da Legislação Consumerista; 3.2 A Revisão Contratual no Código de Defesa do
Consumidor. 4 Elementos de Distinção entre a Revisibilidade no Código de
Defesa do Consumidor e no Código Civil de 2002. Conclusões. Referências.

Introdução
O presente estudo destina-se a inquirir o tema da revisibilidade dos con-
tratos a partir de sua regulamentação legal no direito civil brasileiro por meio do
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
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tratamento recebido no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor,


centrando-se nas distinções havidas entre referidos diplomas, em especial no
que tange aos requisitos de sua admissibilidade e ao acolhimento ou não da te-
oria da imprevisão como consectário teórico da cláusula rebus sic stantibus, assim
como breve investigação teórica sobre sua origem romana, ao contrário do que
comumente se afirma tratar-se de criação dos juristas medievais por influências
dos preceitos éticos cristãos advindos do Direito Canônico.

1 Antecedentes Históricos da Revisibilidade Contratual


1.1 O Direito Antigo e as Primeiras Transformações
Os indivíduos na Antiguidade, como registrou Numa Denis Fustel de
Coulanges (2004), estavam submetidos a um sistema de regras provenientes
da religião, muitas das quais encontraram sua origem em proibições de acesso
público a templos e espaços sagrados em razão da mística que prevalecia sobre
o exercício do sacerdócio como meio intermediário entre o mundo dos deuses
e o mundo dos homens. A violação de tais normas, que ora se destinavam ao
controle da movimentação dos fiéis em referidos ambientes, ora protegiam
os oficiantes e os mistérios da curiosidade pública, implicava em sanções de
cunho moral ou religioso.
As instituições políticas e o direito tiveram suas origens nas religiões
primitivas a partir desse acervo normativo que se foi expandindo e tornando-se
um repertório complexo de deveres e direitos que a todos abarcava e dirigia
em sociedade.
Inicialmente, os princípios religiosos consistiam em regramentos visan-
do regular as relações entre os indivíduos, tal como revelados pelos sacerdo-
tes, que eram considerados a voz oficial entre o mundo superior e o mundo
terreno. As primeiras revoluções, como narra Fustel de Coulanges (2004),
ocorreram no regime patriarcal, que também foi instituído pelas religiões, e se
caracterizaram pela insatisfação e consequente libertação do irmão mais novo
da subserviência ao primogênito, tanto quanto a do empregado em relação ao
senhor, assim como das classes inferiores ante a predominância da aristocracia.
A lei na Idade Antiga, que até então era proclamada pela religião e de-
cretada em nome dos deuses, passou a se publicizar exigindo elaboração por
legisladores, os quais, recebendo a outorga de poder pelo povo a tal mister,
passaram a exercê-lo teoricamente em seu nome e no seu interesse. Esse
fato marcou o rompimento com a tradição religiosa e ritualística e instituiu
a mudança de paradigma da legislatura sacra para o compromisso de traduzir
a vontade popular em normas.
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A lei tornou-se, por princípio, o instrumento normatizadordo inte-


resse dos homens e adotou por fundamento o assentimento da maioria. Os
primeiros monumentos jurídicos da história apresentaram aos povos antigos
ora um rol de condutas socialmente aceitas e recomendáveis no âmbito das
obrigações, coisas e sucessão hereditária, ora paradigmas de julgamento de
atos ilícitos tal como compreendidos na época.

1.2 O Direito Romano e a Sistematização das Convenções


O Direito Romano foi dotado desde a sua origem de uma feição
consuetudinária e jurisprudencial, sendo as suas regras o resultado do que
determinavam os costumes e as decisões dos pontífices. A Lei das XII Tábuas
conseguiu afastar a religião do direito – opinião a que adere Nelson Borges
(2002) – e condensou em forma escrita as principais normas do direito públi-
co e privado oriundas do jus civile, estabelecendo e disciplinando as relações
jurídicas desde a sua apresentação ao povo romano no Comício, por volta de
451 a.C. até o fim da República.
O Direito Romano não chegou a elaborar uma teoria específica dos
contratos, antes, ocupou-se de sistematizar juridicamente os diversos tipos de
negócios que já eram conhecidos e celebrados anteriormente à fundação de
Roma, considerando-os genericamente como convenções (conventio) em que os
contratos (contractus) eram aqueles dotados de nomen iuris, forma legal e ação cor-
respondente e os pactos (pactum) eram as convenções destituídas dessas últimas
qualidades (DAIBERT, 1995). Algumas regras usualmente representadas nessa
época em brocardos ou aforismos jurídicos, que, posteriormente, no período
das codificações, tornaram-se princípios gerais de direito, passando a integrar
as obras que formaram a ciência dogmática do direito ou mesmo encontraram
tradução e representação gráfica em textos de lei, como ocorre com o Código
Civil atual ao prever a exceção de contrato não cumprido (exceptio non adimpleti
contractus) em seção própria nos arts. 476 e 477 (BRASIL, 2019).
A regra ex nudo pacto non nascitur actio é outra dessas regras obrigacionais
romanistas cujo significado era o de que o contrato destituído de amparo legal
na sua formação ou execução não originava ação, inexistindo, por conseguin-
te, no período das legis actiones, a possibilidade de a parte lesada invocar uma
actio que conferisse força jurídica a uma convenção pactuada nesses moldes.

1.3 A Instituição do Pacta Sunt Servanda como Busca pela


Segurança das Convenções
O desenvolvimento econômico em Roma deu ensejo, com o passar
do tempo, a situações jurídicas novas e seus problemas decorrentes, os quais,
pelo caráter inusitado de que se revestiam, não encontravam solução na Lei
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
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das XII Tábuas. O trabalho de Ulpiano, Gaio, Paulo, Papiniano e Modestino,


nos séculos II e III, possibilitou conferir ao Direito Romano, por meio de seus
Pareceres, certas características que o aproximaram de uma feição mais cien-
tífica, inserindo-se dentre as primeiras questões fundamentais levantadas a de
como conferir segurança e proteção jurídica às convenções (BORGES, 2011).
Ulpiano, como destaca Nelson Borges (2011), formulou uma das
primeiras proposições tendentes à busca de solução para esses problemas,
conhecida pela expressão contractus ex in legem ex conventione accipiunt (os con-
tratos aceitam a lei proveniente da convenção), que consistia em uma regra
baseada na Lei das XII Tábuas e foi inscrita no Digesto (Livro XVI, III, 1, § 6º)
do Código de Justiniano. Referida regra veio, mais tarde, a ser transformada
em dogma das relações contratuais da época e daria origem à expressão pacta
sunt servanda (Digesto, Livro 50, 17, 23), segundo a qual as partes legislam
nos contratos para si mesmas, fazendo surgir a regra da obrigatoriedade das
convenções para determinar às partes o dever de obedecer à lei que criaram,
eis que teriam efeito de lei entre as partes.
A expressão pacta sunt servanda deve-se, portanto, à criação de Ulpiano,
que a fez inserir no Digesto como salvaguarda da vontade manifesta, doravante
entendida como lei entre as partes. Apesar da contribuição de Ulpiano, não foi
o Direito Romano o primeiro sistema jurídico a contemplar a regra contida
na expressão pacta sunt servanda, pois muito antes, no Código de Hamurabi,
que vigeu na Babilônia por volta de 1.700 a.C, tanto quanto no Código de
Manu (Índia, séc. II a.C.) e na mais antiga codificação identificada, o Código
Ur-Namu (2050 a.C.), também babilônico, já havia preceitos de conduta
tendentes à obrigatoriedade das convenções (BORGES, 2011).

1.4 A Cláusula Rebus Sic Stantibus como Solução ao Dinamismo


dos Contratos de Duração
Os contratos de execução imediata ou instantânea não se sujeitavam
a eventuais circunstâncias externas que pudessem surgir e fragilizar a base
negocial. Tais modalidades de contratos, pela própria simplicidade e imedia-
tismo na celebração e execução, situavam-se adequadamente sob a regência do
pacta sunt servanda. Já os contratos de execução sucessiva e execução diferida,
possuindo uma fase de execução que se prolongava no tempo, eram susce-
tíveis ao surgimento de acontecimentos imprevisíveis que afetassem a base
contratual dando causa a modificações nas condições presentes na origem da
convenção que pudessem se tornar causas de impedimento ou dificuldade
na pontualidade da execução das obrigações ou resultassem em inviabilidade
de sua manutenção.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 111

Sobrevindo de tais mudanças lesão a um dos contratantes, a invocação


da regra ínsita ao pacta sunt servanda não ofereceria resposta satisfatória.
Neratius, jurista romano nascido no ano 125 da Era Cristã, foi o res-
ponsável pela fórmula latina da qual se extraiu a expressão rebus sic stantibus
(contractus qui habent tratum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus
intelliguntur). Por meio dessa proposição, Neratius defendeu a manutenção
negocial desde o estado original de criação das convenções até o advento
de seu fim, contanto que celebradas na modalidade da execução sucessiva
(BORGES, 2011).
Borges (2002) afirma que, apesar de alguns autores insistirem na tese
da origem da cláusula rebus sic stantibus na Idade Média, outros sustentaram
acertadamente o seu surgimento ainda no Direito Romano. Originalmente
denominada rebus sic si habentius (as coisas que assim permanecem), foi inclu-
ída posteriormente por iniciativa de Neratius no texto do Digesto do Corpus
Iuris Civilis por intermédio da fórmula contractus qui habent tractum sucessivum
et dependentiam de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur (contratos que têm trato
sucessivo ou dependem do futuro devem conservar sua base de contratação
inicial), cuja redução ficou conhecida como rebus sic stantibus, sendo essa a
versão que mais tarde influenciou os juristas medievais. Há, ainda, o registro
de outra regra atribuída a Neratius, representada na fórmula omnis pacto intelli-
gittur rebus sic stantibus et in eodem statu manenti bus (tudo se entende no contrato,
desde que permaneçam as mesmas condições e circunstâncias).
Instituía-se no Direito Romano a cláusula segundo a qual os pactos de
execução sucessiva ou diferida deveriam manter o estado existente na formação
do vínculo obrigacional, atentando-se, para tanto, em um duplo aspecto. O pri-
meiro, de caráter expresso, ao dispor que as convenções deveriam manter-se como
haviam sido formuladas, efetivando-se a sua segurança; o segundo, de caráter
implícito, que traçava diretrizes para reequilibrar a contratação, pela via revisio-
nal, ora comprometida por eventos ocorridos entre a celebração e a execução.

1.5 Aspectos Históricos da Cláusula Rebus Sic Stantibus


As primeiras manifestações escritas sobre a imprevisibilidade remon-
tam ao Império Mesopotâmico, que promoveu uma primeira tentativa de
uniformização de sua jurisprudência ao compilar suas normas e regras no
Código de Hamurabi, encontrado em 1902 na cidade de Susa, na Pérsia, pelo
arqueólogo Jacques Morgan (BORGES, 2002).
O primeiro registro escrito (rupestre) dos homens sobre a imprevi-
sibilidade, como assevera Borges (2002), estava inserido na Lei 48 daquele
Código e dizia respeito à hipótese de caso fortuito ou força maior, referindo-se
à liberação do devedor de sua obrigação diante de um evento imprevisível.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
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Embora as primeiras menções à imprevisibilidade como atenuação da regra


de cumprimento das convenções tenham surgido muitos séculos antes do
Império Romano, sua instituição como cláusula rebus sic stantibus só iria ser
instituída no início da Era Cristã pela iniciativa de Neratius.
Outra vertente teórica situa a origem da cláusula rebus na Idade Mé-
dia entre os séculos XII e XIII por obra dos filósofos da Igreja, inicialmente
fundamentada em preceitos de moral religiosa. Por influência da Summa
Theologica de São Tomás de Aquino, que, em seus estudos sobre o Direito
Canônico, incluiu a regra rebus sic se habentibus subordinando a sua teoria de
justiça ao conceito de lexa eterna, estabeleceu o dogma de que toda mentira é
pecado, embora não estivesse mentindo aquele que havia prometido mas não
cumprido porque as circunstâncias não permaneceram as mesmas (BORGES,
2011). Assim também Santo Agostinho, em seus Sermões, como lembra Borges
(2011), ao estabelecer que quando ocorre alguma coisa de maior importância
e impeditiva da execução fiel de uma promessa não se quis mentir, mas apenas
não se pode cumprir o prometido.
A grande difusão, contudo, da cláusula rebus sic stantibus ocorreu no séc.
XIV, pela obra dos pós-glosadores (ou bartolistas), escola de juristas formada
por Bártolo, Baldo, Juan de Andrea, dentre outros, que teve suas bases no
Direito Canônico e no Digesto. Essa escola foi a responsável pela aceitação,
aplicação e difusão da cláusula rebus sic stantibus na Idade Média (BORGES,
2002).
Bártolo teria sido fortemente influenciado pela obra de Neratius em
sua exposição sobre o matrimônio contraído antes da idade mínima legal,
partindo dessa premissa para justificar qualquer modificação da base contra-
tual. Conferiu-lhe, portanto, estrutura de cláusula tácita a todos os contratos
de execução diferida, sustentando sua teoria no argumento de que o acordo
entre os contratantes só vigoraria até o ponto em que aquilo que havia sido
convencionado se pudesse manter, em consonância às circunstâncias presentes
em sua celebração (BORGES, 2011).
A cláusula manteve o vigor até meados do século XVIII, quando, por
consequência dos abusos em sua aplicação, não mais reteve o interesse dos
juristas, vindo a enfrentar um período de crise e enfraquecimento com o
advento da revolução inglesa, de teor econômico, e francesa, de feição po-
litica, das quais resultou o individualismo e as novas concepções jurídicas
decorrentes da autonomia da vontade, segurança jurídica e estabilidade dos
contratos, características que resgataram ao direito contratual a ideia de rigidez
e reduziram a importância da cláusula a mero registro histórico (BITTAR FI-
LHO, 1993). Por todo o século XVIII até o início do século XIX, ressurgiram
os princípios reguladores da autonomia da vontade e da intangibilidade dos
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 113

pactos, revitalizando o pacta sunt servanda, que já estava sofrendo atenuações


em sua força normativa desde o século XIII.
O Código Civil Francês de 1804 (Código de Napoleão) veio corroborar
a ideia de força de lei aos pactos de trato sucessivo com a máxima inserida no
art. 1.134, ao estabelecer que as convenções legalmente formadas equivalem a
lei para aqueles que a fizerem, afastando qualquer possibilidade de revisão dos
contratos (BITTAR FILHO, 1993). A Corte de Cassação de Turim, entretanto,
em agosto de 1900, resgatou a aplicação da cláusula rebus sic stantibus em um
julgado, a despeito do domínio absoluto do pacta sunt servanda conferido pelo
Código Civil Italiano de 1865. Osti permaneceu como um dos defensores
da cláusula rebus sic stantibus até o final do século XIX, na Itália, opondo-se à
posição majoritária, até que o advento do Código Civil de 1942 fez com que
a Itália passasse a integrar o rol dos países revisionistas (BORGES, 2002).
O contrato durante o século XIX até o advento da Primeira Guerra
Mundial regia-se pela autonomia da vontade e pela noção de lei entre as par-
tes, não admitindo qualquer intervencionismo do Estado. A deflagração da
guerra abalou a estrutura econômica dos povos envolvidos e o preço médio
do carvão, como item de primeira necessidade e essencial à produção do gás
de iluminação, duplicou em março de 1915 e quintuplicou ao fim daquele
ano. O desequilíbrio contratual entre a Municipalidade de Bordeaux e a Com-
panhia de Gás alcançou situação incontornável nos Tribunais e a edição de
novas normas fez-se necessária.
A solução veio com a Lei Failliot, denominada “Lei da Guerra”, de ini-
ciativa do deputado francês Auguste Gabriel Failliot e de caráter temporário,
promulgada em 21 de janeiro de 1918 (RÉPUBLIQUE FRANÇAISE, 2021),
que instituiu a intervenção do Estado nas convenções autorizando a resolução
de contratos, pela iniciativa de qualquer dos contratantes, desde que celebrados
antes de 1º de agosto de 1914 e relativos a fornecimento de mercadorias ou
gêneros alimentícios, em prestações sucessivas ou diferidas, se ante o estado
de guerra sua execução resultasse em ônus que ultrapassasse consideravel-
mente as previsões feitas ao tempo da celebração. Embora não se destinasse a
regular a revisão dos contratos e permitisse a possibilidade de resolução ante
aquele cenário, foi reconhecida pelos teóricos da teoria da imprevisão como
um marco do resgate da revisibilidade no século XX.
O advento da revisibilidade dos contratos no Brasil ocorreu, por sua
vez, no século XX por meio da sentença proferida por Nélson Hungria, em
outubro de 1930, então Juiz Titular da 5ª Vara Cível do Distrito Federal, a
qual foi considerada o primeiro julgado de adoção da teoria da imprevisão no
país, embora viesse posteriormente a ser reformado pelo Tribunal de Justiça
em 1932.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
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O Supremo Tribunal Federal, em maio de 1934, reconheceu a apli-


cabilidade da cláusula rebus sic stantibus ao negar provimento a um recurso
extraordinário. Posteriormente, em janeiro de 1938, o Ministro Eduardo
Espíndola proferiu o julgado, hoje considerado histórico e paradigmático,
no qual asseverou que a regra rebus sic stantibus não contraria texto expresso
legal (BORGES, 2011).
Conferiu-se, portanto, um aspecto renovado à cláusula rebussic stantibus,
ampliando-se os seus requisitos para a ideia de imprevisão, caso aconteci-
mentos extraordinários provocassem radical modificação no estado de fato
contemporâneo à formação do contrato e acarretasse efeitos imprevisíveis,
dos quais decorresse onerosidade excessiva no cumprimento da obrigação.
Nesse sentido, o vínculo contratual poderia ser resolvido ou, a pedido da
parte prejudicada, alterado pelo juiz para a restauração do equilíbrio desfeito.

2 Revisibilidade no Código Civil


2.1 A Revisão Contratual no Direito Civil Brasileiro
O Código Civil de 1916 não acolheu a teoria da imprevisão, já que a
elaboração do Projeto Beviláqua, suas discussões e posterior aprovação, não
foram contemporâneos aos eventos que surgiriam em razão da Primeira Guer-
ra, como decorrência das situações de inadimplemento no fornecimento de
carvão e gás, do fechamento das fronteiras e dos bloqueios das linhas férreas
na Europa, circunstâncias que delimitaram o discurso teórico-filosófico que
fundou o referido Diploma nos postulados do individualismo e patrimonialis-
mo advindos do paradigma do Estado Liberal que vigorava à época dos estudos
que subsidiaram o Projeto, assim como do crescente formalismo jurídico que
atingiria o clímax posteriormente com Kelsen, consequências da considerável
lentidão de sua tramitação que, por ironia, veio a se consumar com o início
de sua vigência já às portas do Estado Social que se avizinhava como advento
da Constituição Mexicana de 1917.
A despeito de o Código Civil de 1916 não contemplar a teoria da im-
previsão, informam Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto Bittar Filho (1993)
que três vertentes teóricas se formaram no Direito Civil no período de sua
vigência: a dos antirrevisionistas, a dos revisionistas e a dos moderados.
Os antirrevisionistas, como Castro Magalhães, Pereira de Cordis, Mu-
rilo de Barros Guimarães, Orosimbo Nonato e Carvalho Santos, sustentavam
que a lei não exige o consentimento senão para a formação do contrato, não
podendo a anormalidade das circunstâncias no momento da execução influir
na validade do consentimento original. Seguiram a teoria de Ripert, que con-
sidera o contrato sob a ideia de seguro. Os revisionistas, como Artur Rocha,
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 115

na monografia Da intervenção do Estado nos contratos concluídos (1932), e Abgar


Soriano de Oliveira, em Da cláusula rebus sic stantibus (1940), defenderam o seu
acolhimento com suporte em fundamentos não apenas jurídicos, mas também
de ordem moral. Os moderados, por sua vez, como Arnoldo Medeiros da
Fonseca, autor da obra Caso fortuito e teoria da imprevisão (1932), aceitaram a
revisão somente quando as circunstâncias imprevistas fossem decorrência de
caso fortuito ou de evento cujas condições exógenas afetassem analogamente
as relações formadas (BITTAR FILHO, 1993).
O Supremo Tribunal Federal, como visto, já em 1938 admitia que
o acolhimento da cláusula não violava disposição de lei e desde então a ju-
risprudência brasileira, assim como a teoria, vieram se alinhando à tese de
admissibilidade da teoria da imprevisão, eis que a ela não se opunha a lei, até
que o seu acolhimento textual veio a fazer parte do Código Civil de 2002.

2.2 Pressupostos de Aplicabilidade da Teoria da Imprevisão


A aplicação da teoria da imprevisão na revisão dos contratos pressupõe
a implementação de certos requisitos, os quais, para Borges (2002), seriam a
existência de contrato de execução sucessiva ou diferida, a imprevisibilidade, a
ausência de estado moratório, a lesão virtual, a inimputabilidade e o binômio
onerosidade excessiva e extrema vantagem.
A teoria da imprevisão não se aplica aos contratos de execução imediata,
por razões de ordem lógica, eis que, para o surgimento do evento imprevisível,
seria indispensável o decurso de tempo entre a formação do vínculo e os atos
de execução das obrigações, característica que tais contratos não possuem,
restringindo-se a sua aplicabilidade, por tal razão, aos contratos de duração.
A imprevisibilidade não se confunde com o fortuito ou a força maior,
como ressalta Borges (2002), pois nesses a anormalidade do acontecimento é
de relativa importância e guarda relação com a inevitabilidade e a irresistibili-
dade do evento. A teoria da imprevisão diz respeito à excessiva dificuldade de
adimplemento, e não à sua impossibilidade como decorrência do inusitado,
daquele elemento extraordinário encontrado fora das situações de previsi-
bilidade dos riscos e suscetível de provocar modificação na base negocial a
ponto de dar origem a uma lesão virtual. Até certa medida, todos os eventos
são relativamente previsíveis em uma facticidade de certeza e probabilidade,
sendo somente incerto e improvável o evento imprevisível como a guerra,
a revolução, o golpe de Estado, a epidemia, o racionamento, a proibição de
fabricar certo produto, de importar certa matéria prima, dentre outras situa-
ções semelhantes.
Fato imprevisto e fato imprevisível, por outro lado, possuem noções dis-
tintas, uma vez que o imprevisto é tudo aquilo que pode ser aprioristicamente
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
116

identificado, mas acabou não sendo, embora esteja situado em uma perspectiva
de normalidade das previsões. Imprevisível é o fato ocorrido que está além dos
padrões de previsibilidade e expectativa, por tal razão extraordinário, porque
situado fora das possibilidades de previsão na vida diária. Borges (2002, p. 309)
considera, em síntese, que “fato imprevisto será todo aquele que poderia ser
previsto e não o foi; imprevisível, aquele a que faltou a possibilidade normal
de previsão”.
O ato de invocar a revisão como abrandamento do pacta sunt servanda
deve ser exercitado anteriormente ao vencimento da obrigação contratada,
pois a constituição em mora impediria a aplicação da teoria da imprevisão.
Esse entendimento, no entanto, vem sendo relativizado para as situações em
que a alteração da base negocial tiver ocorrido antes do estado moratório.
A presença de lesão virtual (subjetiva ou iminente) é, no entender de
Borges (2011), pressuposto para a revisão contratual no Direito Civil. A lesão
virtual consiste em razões que tornem difícil executar a obrigação por questões
de ordem física, como também de ordem moral. Para tanto, é preciso que se
situe no campo da iminência, visto que o cumprimento da obrigação, ainda
que com sacrifício ou danos, impede a invocação da revisão.
A inimputabilidade, na visão de Arthur Marques da Silva Filho (1993),
define-se pela impossibilidade de pretensão revisionista na hipótese de o fato
extraordinário e modificativo da base negocial ter sido provocado por meio de
ação ou omissão por aquele a quem possa beneficiar. Tanto seria imputável a
parte que suscitou a alteração das circunstâncias como aquela que, podendo
evitá-la, manteve-se inerte, sendo que a esses seria descabida a pretensão de
revisão, já que a ninguém é lícito beneficiar-se da própria torpeza.
O binômio excessiva onerosidade e vantagem imoderada, não obstante ter so-
frido certa crítica, revela o ponto fundamental pelo qual a teoria da imprevisão
é também conhecida como onerosidade excessiva. O contratante que pretende
invocar a revisão deverá produzir a prova da existência de exacerbação da sua
obrigação como consequência dos efeitos que o evento imprevisível provocou
na base contratual, dando origem à lesão virtual que se tornará objetiva caso
não venha a ser interrompida. Informa Borges (2002) que juízes e tribunais
têm concedido a revisão independentemente da presença de extrema vantagem
para o credor, situação que considera questionável ao formular crítica à adoção
dessa expressão como requisito concomitante, haja vista que o Código Civil de
2002 baseou-se no Código Italiano de 1942, o qual não representa fielmente a
teoria da imprevisão, uma vez ser irrelevante que o credor esteja na iminência
de auferir extrema vantagem, bastando apenas a referência à vantagem.
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 117

2.3 Apontamentos Críticos à Revisibilidade no Código Civil de 2002


A teoria da imprevisão, do modo como se pretendeu o seu acolhimento
no art. 478 do Código Civil atual, consistiu em uma quase transcrição dos
arts. 1.467 a 1.469 do Código Civil italiano de 1942 no que concerne à one-
rosidade excessiva. Desviou-se o texto final do apuro técnico, no tocante ao
art. 478, quando se referiu a “acontecimentos extraordinários e imprevisíveis”,
fato que mereceu oportuna crítica de Borges. Um acontecimento imprevisível,
como destaca o autor, seria aquele não previsível, não ordinário, incomum
ou extraordinário, pois, se a extraordinariedade significa a não previsibilidade,
tem-se que é sinônimo de imprevisível, logo, haveria redundância inaceitável
no texto do dispositivo, eis que os termos em questão significam tecnicamente
a mesma coisa.
Outro aspecto merecedor de crítica, para Borges (2011), é a hipótese de
resolução com exclusão da revisão, contida no texto do art. 478 ao dispor que
o devedor poderá pedir a resolução do contrato na presença de acontecimentos
extraordinários e imprevisíveis, dando a entender que a lei autoriza a extinção
do pacto sem responsabilidade para o devedor pela inexecução abstendo-se
de qualquer distinção se foi voluntária ou involuntária, concluindo-se que o
dispositivo equiparou situações de imprevisão a outras que não dizem respeito
à inexecução involuntária.
Nota-se, também, uma vinculação desnecessária das situações de exces-
siva onerosidade e extrema vantagem, como se o desequilíbrio ensejador da
revisão fosse forçosamente dependente da coexistência simultânea das duas
condições. A crítica oferecida por Borges (2011, p. 214) ressalta a subjetivida-
de da expressão extrema vantagem como consequência natural da onerosidade
excessiva, e assevera que as “(...) verdadeiras disposições que, atendo-se ao
espírito revisionista da Teoria da Imprevisão, integraram o princípio ao orde-
namento jurídico brasileiro, constaram do art. 317”.
Gustavo Tepedino (2004), tanto quanto Borges (2011), aponta a
adoção do art. 317 como opção e solução coerente e representativa de uma
melhor concepção da teoria da imprevisão a ser aplicável aos julgamentos,
considerando que a revisão contratual instituída no referido dispositivo, no
âmbito das relações contratuais em geral, constituiu o meio de intervenção
do julgador nas convenções a impedir que o inadimplemento ou mesmo a
insolvência alcancem o contratante por motivo de crise econômica insuperável
e inesperada, destacando a tendência atual de se afastar da imprevisibilidade
o sentido subjetivo para tornar inexigível aos contratantes a demonstração de
que seriam capazes de prever intimamente um hipotético desequilíbrio nas
prestações futuras.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
118

Fábio Henrique Podestá (2018) acrescenta, por sua vez, que a despro-
porção entre as prestações ocasionada pela interferência de fatos estranhos e
insuscetíveis de previsão para os contratantes justifica a revisão como pos-
sibilidade de se evitar o aproveitamento indevido pelo contratante que se
beneficia do desequilíbrio, bem como atende à motivação de equidade que
deve estar presente no negócio jurídico de modo a se superarem as situações
que se incompatibilizem com a justiça comutativa.
Situação incomum resultou do que parece ser uma cisão no modo
como o Código Civil regulamentou a revisibilidade contratual, dispondo, em
primeira parte no art. 317, naquilo que seria a adoção da teoria da imprevisão
em texto legal civil e, em um segundo momento, no art. 478, nos dispositivos
relativos à resolução dos contratos. A abordagem topológica utilizada na lei
obscureceu o regramento jurídico da revisão ante a aparência de que o art.
317 estaria fundado na teoria da imprevisão para o atingimento de seus fins
originais, quais sejam, admitir a possibilidade a priori de se rever as condições
ajustadas para preservar o contrato, enquanto o art. 478 estaria destinado
a regular o momento seguinte da revisão, que permitiria ao juiz extinguir
o contrato e liberar as partes sem ônus, caso, mesmo com a revisão de seu
conteúdo, fosse improvável o reequilíbrio das prestações e a consequente
manutenção da avença.
O tratamento conferido à revisão pela lei estabeleceu dois fundamen-
tos distintos nos referidos dispositivos legais, encontrando o art. 317 o seu
fundamento na teoria da imprevisão e o art. 478 na teoria da resolução, ainda
que pautada pela rejeição da onerosidade excessiva e dos demais requisitos
que também justificavam a revisão para preservação do contrato como origi-
nalmente proposto pela primeira teoria.
Álvaro Vilaça Azevedo (2004) entende de modo ligeiramente diverso ao
afirmar que o texto original do art. 317 no Projeto 634-B possibilitava ao juiz
determinar a correção monetária mediante aplicação de índices oficiais por
cálculo do contador, mas foi alterado na redação final para admitir os motivos
imprevisíveis como motivação para o juiz corrigir o valor da prestação caso
resulte desproporção manifesta entre o valor da prestação e o momento de
sua execução. Afirma o autor haver o acolhimento da teoria da imprevisão
diversamente do princípio da onerosidade excessiva, pois aquela é insuscetível
de ser aplicada às situações de inflação, como já pacificado no STF. Devia-se,
portanto, cogitar da possiblidade de exclusão da imprevisibilidade no texto
do art. 317 a benefício da onerosidade excessiva, de modo a que, caso não se
possa evitar a resolução pela aplicação desse dispositivo, aplicar-se-ia suces-
sivamente o art. 478 para liberar as partes.
A crítica ao problema topológico da revisibilidade no Código Civil
mereceu atenção dos comentaristas do Código Civil sob a coordenação de
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 119

Ricardo Fiúza, relator do Projeto 634-B, revelando que os arts. 315 a 317
tratavam no texto original da correção monetária, tema que foi excluído na
redação final, por iniciativa do Senador Josaphat Marinho, resultando no
acolhimento da teoria da imprevisão para permitir a correção por decisão
judicial na desproporção das prestações, mediante provocação do interes-
sado, se presentes os requisitos mencionados (RÉGIS, 2006). Entendeu-se,
também, com relação ao art. 478, que houve a assimilação da cláusula rebus sic
stantibus, nos termos em que prevista no art. 1.467 do Código Civil italiano,
com a ideia de que representava limitação ao pacta sunt servanda e priorizando
a onerosidade excessiva como todo evento que dificulta o adimplemento da
obrigação do contratante, seja decorrente ou não da imprevisibilidade. Nota-se
que o texto contido na norma não prioriza a conservação do contrato, como
ressalta Jones Figueirêdo Alves (2006), haja vista que invoca a cláusula rebus
sic stantibus para justificar a sua resolução.
Alves (2006) propõe acertadamente que o tema da revisibilidade seja
reposicionado no Código Civil para um capítulo próprio, já que o tratamen-
to conferido à cláusula rebus sic stantibus no art. 478 a despeito de pretender
referir-se à revisão está situado no Capítulo da Extinção dos Contratos na Parte
Especial, o qual deveria ter a sua denominação alterada para “Da Revisão e da
Extinção do Contrato”, face à necessidade de se dedicar ao tema da revisão
uma metodologia e sistematização mais aperfeiçoadas no referido Diploma,
posição que se compartilha desde a promulgação e publicação do texto final.
O art. 478, a despeito do modelo adotado como modo de rompimento
legitimado do vínculo obrigacional, é também considerado por Carlos Al-
berto Bittar (2004, p. 157) como fundamentado na cláusula rebus sic stantibus
ao considerar “(...) aceita, na melhor doutrina, a tese de que a figura em tela
encontra na ideia da cláusula rebus a sua explicação, cláusula esta implícita
em todo contrato bilateral, comutativo (...)”, identificado, portanto, com o
implemento das obrigações em um recinto negocial de estabilidade.
Foi de sua autoria o Projeto de Lei nº 6.960/2002, ofertado ao Deputado
Ricardo Fiúza com a proposta de modificação no Capítulo II, do Título V, Livro
I da Parte Especial, que passaria a dispor sobre o assunto do seguinte modo:
“Capítulo II
Da revisão
Art. 474. Nos contratos de execução sucessiva ou diferida, tornando-se
desproporcionais ou excessivamente onerosas suas prestações em decorrên-
cia de acontecimento imprevisível, anormal e estranho aos contratantes à
época da celebração contratual, pode a parte prejudicada demandar a revisão
contratual desde que a onerosidade exceda os riscos normais do contrato.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
120

§ 1º Nada impede que a parte deduza, em juízo, pedidos cumulados, na


forma alternativa, oportunizando, assim, o exame judicial do que venha
ser mais justo para o caso concreto.
§ 2º Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, po-
derá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de
executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.
§ 3º A parte que requer a revisão do contrato não deve encontrar-se em
mora no momento da alteração das circunstâncias.
§ 4º Os efeitos da revisão contratual não devem ser estendidos às prestações
satisfeitas, mas somente às ainda devidas, resguardados direitos adquiridos
por terceiros.
§ 5º Nos contratos com obrigações unilaterais aplicam-se os dispositivos
anteriores, no que for pertinente, cabendo à parte obrigada pedido de
revisão contratual para redução das prestações ou modificações na forma
de seu cumprimento.
Seção II
Da resolução por onerosidade excessiva
Art. 475. Requerida a revisão do contrato, a outra parte pode opor-se ao
pedido, pleiteando a sua resolução em face de graves prejuízos que lhe
possa acarretar a modificação das condições contratuais.
Parágrafo único. Os efeitos da sentença que decretar a resolução do contrato
retroagirão à data da citação.
Art. 476. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar
equitativamente as condições do contrato.” (ALVES, 2006, p. 383-384)

Posição a que se adere por já se conviver há quase duas décadas com uma
disciplina equivocada da cláusula rebus sic stantibus no Código Civil em razão
dessa perspectiva de cisão do tema em setores topologicamente diversos: o da
revisão por imprevisão propriamente dita no art. 317 (Do Pagamento) e o da
resolução dos contratos no art. 478 e seguintes (Da Extinção do Contrato).
Infere-se de tal método que a Lei Civil contemplou a teoria da imprevisão
no primeiro dispositivo e fundamentou o segundo pela teoria da resolução,
ainda que enfatizando a onerosidade excessiva, haja vista o art. 478 figurar
como uma das causas supervenientes de resolução do contrato quando da
ocorrência dos mesmos requisitos que justificam a sua revisão no art. 317.
Outro ponto que merece destaque é o de que a cláusula rebus sic stantibus
não representa, contrariamente ao que se supõe, exceção ou atenuação do
pacta sunt servanda, pois, na verdade, o confirma. É justamente a possibilidade
de revisão que corrobora o valor da convenção original ao ter por finalidade
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 121

preservar o pacto original.1 Não se trata de uma via de exceção ou de fragi-


lização como usualmente defendem muitos civilistas, mas a confirmação da
regra pacta sunt servanda, uma vez que o pacto original, quando da conclusão
do contrato foi celebrado ante as circunstâncias fáticas que permitiram as pro-
jeções econômicas para o tempo de sua execução, tanto quanto as condições
jurídicas para a sua eficácia.
O contrato reflete, portanto, os elementos de facticidade e juridicida-
de de que dispunham os contratantes no momento em que fizeram a opção
de instituir aquele negócio jurídico. Sendo a boa-fé objetiva o norteador da
vontade declarada nos negócios jurídicos, as declarações manifestadas na ce-
lebração contiveram ínsitas as análises e planejamentos que as antecederam,
sendo por tais razões a cláusula rebus sic stantibus a confirmação do pacta sunt
servanda, e não sua fragilização.
A Reforma de 2019, por intermédio da Lei nº 13.874, pouco acrescen-
tou ao promover alterações no art. 421 para incluir um parágrafo único e o
intermediário art. 421-A, em manejo de técnica legislativa pouco louvável
conquanto em moda ultimamente na política legislativa. O parágrafo único
repete o equívoco de se compreender a revisão contratual como medida de
excepcionalidade, quando, pelos motivos já expostos, trata-se de direito sub-
jetivo que confirma a regra da obrigatoriedade dos contratos, vindo o mesmo
a ocorrer no art. 421, III, que repete desnecessariamente o que já havia sido
inscrito no parágrafo único em, ao que parece, displicente redundância.2
A Lei nº 13.874/2019, que teve origem na MP 881/2019, foi intitulada
Declaração dos Direitos da Liberdade Econômica, cuja motivação parece
ter sido meramente ideológica por dois motivos muito singelos. O país, por
um lado, não havia se afastado da liberdade econômica, embora contasse
costumeiramente com o manejo estatal no controle da economia. Logo, não
se fazia presente um clamor popular que justificasse o advento de uma De-
claração de Direitos, tampouco houve uma assembleia ou convenção prévia
que a aprovasse, como ocorre na história dos Direitos Humanos e de seus
documentos internacionais.
Por outro lado, a economia nacional, desde o advento da lei, continuou
a se manter dentro de níveis nítidos de controle estatal. Portanto, há que se
perceber que o Brasil ainda se encontra em inexorável percurso de implantação
do Estado Democrático de Direito, como foi a opção da Constituição Federal,

1 No mesmo sentido, Nelson Borges em Revisão das convenções nos ordenamentos jurídicos: da flexibilidade das obrigações.
Curitiba: Juruá, 2011.
2 A esse respeito, também, embora inclinando-se à revisibilidade como exceção, a recomendada análise de Flávio Tartuce
em A Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) e os seus principais impactos para o direito civil: segunda parte.
Migalhas, 15 out. 2019. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/313017/a--lei-da-liberdade-economica-
--lei-13-874-19--e-os-seus-principais-impactos-para-o-direito-civil. Acesso em: 20 jun. 2021.
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
122

eis que se mantém dentro dos limites de um Estado visivelmente Social que
é capitalista pela própria necessidade de contar com ingressos públicos para a
manutenção de sua política de igualdade socioeconômica.

3 Revisibilidade no Código de Defesa do Consumidor


3.1 O Advento da Legislação Consumerista
O Código de Defesa do Consumidor foi promulgado em 11 de se-
tembro 1990 (Lei nº 8.078/90), motivado pelo princípio constitucional da
proteção ao consumidor contido no art. 5º, XXXI, da Constituição Federal,
e foi elaborado a partir de referenciais presentes em fontes estrangeiras, como
a legislação de consumo da França, da Espanha, do México, de Portugal, da
Alemanha e dos Estados Unidos. A proteção constitucional ao consumidor
está estruturada em vários princípios que objetivam assegurar o equilíbrio
das prestações, dentre os quais João Batista de Almeida (2011) destaca o da
transparência, o da boa-fé e o da equidade, que impõem à atuação dos con-
tratantes nas relações de consumo a observância à sinceridade, à lealdade, à
seriedade e à veracidade.
A estrutura tradicional dos contratos regida pelo pacta sunt servanda e a
regra atenuadora da cláusula rebus sic stantibus sofreram modificações com o
advento do Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 2019), que inovou
no regramento das situações de revisibilidade com as hipóteses de nulidade
das cláusulas abusivas (art. 51), previsão de modificação das cláusulas que
contenham prestações desproporcionais e revisão em razão de fatos superve-
nientes que as tornem excessivamente onerosas (art. 6º, V).

3.2 A Revisão Contratual no Código de Defesa do Consumidor


O Código de Defesa do Consumidor é estruturado a partir de normas
de ordem pública, de origem constitucional, que pouco espaço conferem à
autonomia privada, pois consistiu em relevante pioneirismo do direito bra-
sileiro ao possibilitar o giro de uma influência liberal recebida pelo direito
civil no Código de 1916 para uma tônica de socialidade dos contratos com
propostas de salvaguarda do seu equilíbrio, afastando a concepção mítica e,
por vezes, ideológica de que a autonomia privada é suficiente à regulação da
equidade nas convenções.
A preocupação com o acertamento da economia mundial tornou-se a
tônica após o impacto da Segunda Guerra Mundial, pela convicção surgida de
que os pilares da livre iniciativa e da livre concorrência seriam aptos à reorga-
nização da sociedade europeia e americana, tendo-se verificado, contudo, que
tais práticas não foram suficientes ao atendimento de uma função social que se
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 123

esperava do mercado, dando surgimento ao direito econômico e à percepção de


que a dominação de mercado seria um fator de desvio da desejada recuperação,
devendo-se estimular a livre concorrência de modo a não resultar, por via
oblíqua, em favorecimento a práticas abusivas de mercado, pressupostos que
despertaram a atenção dos sistemas jurídicos para a necessidade de proteção
ao um direito do consumidor (THEODORO JÚNIOR, 2004).
O art. 6º, V, do CDC possibilitou a ingerência estatal nas relações de
consumo pela via da revisibilidade, deferindo ao órgão judicante o poder
modificativo do conteúdo textual das cláusulas reportadas como abusivas
face à superveniência de fatos que as tornem excessivamente onerosas ao
consumidor. Cláudia Lima Marques (2011) entende que referido dispositi-
vo representou o acolhimento da teoria da imprevisão no referido Código,
ainda que para alcançar exclusivamente o interesse do consumidor, posição
que diverge da observação de Borges, segundo a qual não se cogitou de im-
previsão no regramento das relações de consumo no Brasil. Ressalta, ainda,
a autora que é posição pacífica na jurisprudência nacional a possibilidade do
pronunciamento de ofício pelo juiz no controle em concreto da abusividade
das cláusulas nos contratos de consumo (MARQUES, 2002).
O CDC, adotando técnica legislativa considerada inovadora, instituiu no
art. 6º, V, como direito do consumidor, a modificação das cláusulas contratuais
abusivas (concomitantes), permitindo a revisão judicial de seu conteúdo, cor-
roborando a tese do dirigismo estatal na autonomia privada, por meio da qual
se abre ao juiz uma via interventiva e modificativa dentro das relações privadas
em relação ao conteúdo gráfico-textual declarado que extrapola os limites do
equilíbrio pretendido para reduzi-lo em conformidade aos postulados da lei.
A teoria da revisão dos contratos, para Carlos Alberto Bittar (2004), se
justificaria ainda nos casos de inflação e reconhecimento de correção monetária
em dívidas de valor, como circunstâncias exteriores e imprevisíveis ensejadoras
do rompimento da base negocial cujo reequilíbrio somente se resgataria pela
intervenção do órgão judicante. Referida técnica, proveniente da teoria ale-
mã, ressalta Marques (2011), é denominada de “redução de eficácia” e prevê
hipótese de declaração da ineficácia e não da invalidade da cláusula.
O art. 6º, V, constitui o ponto-chave da revisibilidade no CDC, no
entender da autora citada, ao prever uma exceção ao sistema de nulidades
quando permite ao juiz a revisão ou a modificação, a pedido do consumidor,
das cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou excessivamente
onerosas em razão de fato superveniente, sendo a desproporcionalidade das cláu-
sulas o elemento que acarreta o desequilíbrio do contrato, podendo levar a
situações de lesão, autorizando o Estado a intervir na manifestação de vontade
original para restaurar o equilíbrio perdido. A modificação da cláusula, por sua
vez, é outro elemento da revisibilidade no CDC, ainda que haja disposição
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
124

expressa sobre revisão adiante no texto da lei, eis que a mera hipótese de se
alterar o texto contratual para retirar a cláusula abusiva e substituí-la na falta
de norma supletiva, pelo regramento legal, já constitui atuação revisionista
do Estado.
A revisão propriamente dita consta no inciso V do art. 6º e se refere à pos-
sibilidade de revisão judicial da cláusula de preço, anteriormente em equilíbrio,
mas que, em razão de fatos supervenientes, tornou-se excessivamente onerosa
para o consumidor. Adverte Marques (2002) que a onerosidade excessiva e
superveniente que possibilita a revisão judicial é unilateral, alcançando apenas
o consumidor na condição de seu direito básico.

4 Elementos de Distinção entre a Revisibilidade no Código de Defesa


do Consumidor e no Código Civil de 2002
A revisibilidade prevista no art. 6º do CDC não exige que o fato super-
veniente seja imprevisível ou irresistível, centrando a ratio legis na quebra da
base negocial objetiva. O elemento ensejador da intervenção revisionista do
Estado relaciona-se com a quebra do elemento intrínseco do contrato, que é
a equivalência das prestações, prescindindo da qualidade de imprevisibilidade
do fato superveniente.
Extrair-se, contudo, o sentido de teoria da imprevisão como base
fundante do art. 6º, V, poderia reverter em prejuízo ao consumidor pela
inferência de que incumbiria a ele o mister de provar a referida imprevisão
e o alcance de seus efeitos nos contratos de consumo quando tais requisitos
não constam textualmente do dispositivo. Tal é também a posição de Cláudia
Lima Marques (2011, p. 343) ao lembrar que a teoria da imprevisão “não foi
acolhida expressamente pelo Código de Defesa do Consumidor, embora o
tenha sido em legislações esparsas” enquanto a teoria e a jurisprudência aco-
lhem a imprevisão como elemento para a revisão dos contratos nas leis civis.
Destinando-se a teoria da imprevisão à liberação do contratante motiva-
da por fato superveniente e extraordinário que tornasse sua posição contratual
debilitada, a tese de que o sistema revisional do CDC não comportaria tal
objetivo centra-se na proposição de que sua finalidade é possibilitar a revisão
pela atuação do juiz visando à manutenção do vínculo, e não para dissolvê-lo.
A revisão dos contratos no direito civil, por sua vez, sempre esteve fun-
dada na teoria da imprevisão, eis que, como visto, tem como um dos elementos
essenciais a imprevisibilidade do fato superveniente. Quanto à finalidade de sua
aplicação, tanto poderá ser aplicada para assegurar a permanência do vínculo,
como na situação do art. 317 do Código Civil, quanto para extingui-lo, na
hipótese do art. 478 e seguintes, caso a base negocial se deteriore de tal modo
Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 125

que resulte impossível ao contratante prejudicado sustentar a regularidade das


obrigações originais sem o risco de mora ou mesmo de insolvência.

Conclusões
A revisibilidade passou a ser regulamentada no ordenamento jurídico
brasileiro com a edição do Código de Defesa do Consumidor em 1990, quando
a possibilidade de revisão dos contratos nas relações de consumo foi prevista
no art. 6º, V, para as situações de desproporcionalidade entre prestações que
levassem o consumidor a uma situação econômica desfavorável, sem, contudo,
haver vinculação com a ideia de imprevisibilidade. A revisão no CDC não
se fundou na teoria da imprevisão, mas da abusividade da posição contratual
que fosse favorável ao fornecedor em detrimento do consumidor, fato que
justificou a outorga de tal direito a este último, e não àquele.
O Código Civil veio adotar a revisibilidade somente em 2002, no novo
Diploma, embora cindindo o tema em dois setores distintos, mesmo que
pertencentes às obrigações, instituindo a revisão no art. 317 com o intuito de
preservação do negócio jurídico ante a alteração das condições presentes na
celebração em decorrência de fatos imprevisíveis que afetassem a base negocial
suscitando o desequilíbrio das prestações originalmente concebido. Nesse caso, a
lei conferiu o direito subjetivo a qualquer dos contratantes para pleitear a revisão.
Adiante, contudo, a lei civil tratou novamente do tema no art. 478 com
a finalidade específica de se possibilitar a resolução excepcional do contrato
caso presentes os requisitos da excepcionalidade do fato superveniente que
alterasse o equilíbrio original das posições subjetivas e objetivas do contrato e
acarretasse onerosidade excessiva a um e vantagem imoderada a outro, desde
que em qualquer dos casos regidos pelo Código os contratos a serem revistos
fossem celebrados nas modalidades execução sucessiva ou a termo.
A opção topológica no tratamento da cláusula rebus sic stantibus pelo
Código Civil fez parecer que se adotaram duas teorias para reger o mesmo
assunto, prestigiando-se a teoria da imprevisão no art. 317, genuinamente
estruturado em conformidade à cláusula original proposta por Neratius e
enaltecida pelo Direito Canônico, e instituindo-se uma inovação teórica sin-
crética no art. 478, que passa a ter suas bases fundantes na teoria da resolução,
eis que somente se destina à extinção do contrato a despeito de se erigir sobre
os mesmos requisitos da cláusula em questão
Uma reforma, por tais razões, é justificável e recomendada no texto
do Código Civil, como proposta por Figueirêdo Alves (2006), de modo a se
corrigir o equívoco possivelmente resultante de uma tramitação que pode ter
estado sujeita a uma aceleração e compressão desnecessária das discussões em
sua fase final, a ponto de ter permitido a abordagem sincrética que resultou no
Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 – Doutrina
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equívoco teórico e topológico descrito quanto ao tratamento técnico-legislativo


de tão relevante matéria.

TITLE: Unpredictability theory and resolution theory: the topological error of the Civil Code.

ABSTRACT: The theme of the present study is an offer of critical approach to the contractual revision
through a theoretical confrontation, aiming to falsify the thesis accepted by the Brazilian Civil Code
which, in the normative treatment given to the aforementioned institute, adopted a mistaken topology
by splitting legal regulation regarding the requirements and effects of the rebus sic stantibus on contracts in
two parts by regulating the revision itself in art. 317 and leaving the other effects under the scope of art.
487 et seq. from the perspective of resolution theory, a legal situation that deserves legislative reform in
order to promote a systemic adjustment to the civil law.

KEYWORDS: Contract Law. Contract Revision. Error in Legal Topology. Civil Code Reform.

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Doutrina – Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil Nº 107 – Mar-Abr/2022 127

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596, 599, 602, 603, 607, 623, 624, 625, 633, 637, 642, 655, 765, 788, 790, 872, 927, 928, 931, 944, 947, 949,
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Recebido em: 15.12.2021


Aprovado em: 10.03.2022

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